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Linguagem e estilo

O tom oralizante e a pontuação

Como é característico da obra de Saramago, o texto é percorrido por


múltiplas vozes, que trazem para a escrita e a oralidade e a fluidez do
discurso quotidiano. No diálogo entre Fernando Pessoa e Reis, verifica-se o
recurso ao registo coloquial por parte daquele:

Permita-me que exprima as minhas dúvidas, caríssimo Reis, vejo-o aí a ler


um romance policial, com uma botija aos pés, à espera duma criada que lhe
venha aquecer o resto, rogo-lhe que não se melindre com a crueza da
linguagem […] (Cap. V)

Nos comentários do narrador, encontra-se, igualmente, o tom oralizante,


informal, quer ao nível do repertório lexical quer ao nível da construção
frásica.

Tipicamente saramaguiana é também a transgressão ao nível do uso


canónico da pontuação, apontada como uma das dificuldades do
inexperiente leitor. Em frases longas, é usual verificar a presença de dois ou
até três interlocutores, servindo o recurso às vírgulas e às maiúsculas para
marcar a mudança de personagem.

Assim, a supressão de quase todos os sinais de pontuação, à exceção da


vírgula e do ponto final, leva a que se estabeleça um pacto com o leitor, que
tem de ler e reler os trechos, encontrar o sentido, encontrar o ritmo e o tom,
encontrar, no fundo, no texto, as interrogações, as exclamações que
Saramago não explicita graficamente.

Reprodução do discurso no discurso

Singular é também a forma como o autor reproduz o discurso no discurso.


Ao não seguir as convenções ligadas ao discurso direto, Saramago
reinventa o texto dialogal, marcando o discurso de cada personagem pela
inicial maiúscula no início de fala, seguida de vírgula no fim, como o diálogo
entre Reis e o taxista, aquando do desembarque daquele, atesta:

Para um hotel, Qual, Não sei, e tendo dito, Não sei, soube o viajante o que
queria, com tão firme convicção como se tivesse levado toda a viagem a
ponderar a escolha, Um que fique perto do rio, cá para baixo, Perto do rio
só se for o Bragança, ao princípio da Rua do Alecrim, não sei se conhece,
Do hotel não me lembro, mas a rua sei onde é, vivi em Lisboa, sou
português, Ah, é português, pelo sotaque pensei que fosse brasileiro,
Percebe-se assim tanto, Bom, percebe-se alguma coisa, Há dezasseis anos
que não vinha a Portugal, Dezasseis anos são muitos, vai encontrar
grandes mudanças por cá, e com estas palavras calou-se bruscamente o
motorista. (Cap.

Para além da inexistência dos dois pontos, do travessão e do parágrafo na


marcação do discurso direto, o leitor tem ainda de encontrar a
intencionalidade de cada vírgula: ora a marcar pontos finais, ora a marcar
suspensões frásicas / reticências, ora a marcar pontos de interrogação. Este
excerto prova, igualmente, a presença das diferentes vozes narrativas, já
que, a par da voz das duas personagens, também se pode encontrar a voz
do narrador – “soube o viajante o que queria, com tão firme convicção como
se tivesse levado toda a viagem a ponderar a escolha”.

Recursos expressivos

Através do recurso a termos opostos, reforça-se o contraste


entre diferentes elementos, objetos, etc.

Ex.: “Aqui o mar acaba e a terra principia.” – através das


A antítese
antíteses “mar “/“terra” e “acaba“/“principia”, é realçada a
localização geográfica de Portugal, para além da relação
intertextual com a epopeia camoniana, por meio da
subversão (“Aqui onde a terra se acaba e o mar começa”).

A partir da analogia, estabelece-se uma relação de


semelhança entre duas realidades opostas.

Ex.: “Não estou apaixonado, Pois muito o lamento, deixe que


A lhe diga, o D. João ao menos era sincero, volúvel mas
comparação sincero, você é como o deserto, nem sombra faz” (Cap. VIII) – a
aproximação que Pessoa faz de Reis a um deserto é
reveladora da dificuldade que este tem em se relacionar com
o sexo feminino, sendo uma pessoa estéril, árida, em que
nenhum sentimento cresce.

A
enumeração
Através da apresentação de elementos sucessivos da
mesma classe gramatical, elencados de acordo com uma
determinada lógica, intensifica-se uma dada ideia:

Ex.: “Respira-se uma atmosfera composta de mil cheiros


intensos, a couve esmagada, a excrementos de coelho, a
penas de galinha escaldadas, a sangue, a pele esfolada”  (Cap.
II) – a enumeração dos cheiros que boiam no ar na Praça da
Figueira revela a importância das sensações na observação
do real.

A ironia assume um papel central nesta obra, estando ao


serviço da crítica social, política e religiosa.

Ex.: “Quis Fernando Pessoa, na ocasião, recitar


mentalmente aquele poema da Mensagemque
está dedicado a Camões, e levou tempo a perceber que não
há na Mensagem nenhum poema dedicado a Camões,
parece impossível, só indo ver se acredita, de Ulisses a
A ironia
Sebastião não lhe escapou um, nem dos profetas se
esqueceu, Bandarra e Vieira, e não teve uma palavrinha,
uma só, para o Zarolho”  (Cap. XVI) – o epíteto pejorativo
atribuído a Camões bem como a omissão de Pessoa quanto
ao épico português realçam o jogo subversivo do narrador ao
longo da obra, para além de insinuar a terrível sombra que
Camões representa para os escritores futuros, incluindo
Pessoa.

A relação de analogia entre duas realidades realça a


caracterização feita:
A metáfora Ex.: “saiu pela porta da Rua dos Correeiros, esta que dá
para a grande babilónia de ferro e vidro que é a Praça da
Figueira.” (Cap. II) – a metáfora enfatiza a desordem nas
construções da Praça, identificadas como babilónicas porque
grandes, confusas e sem planeamento.

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