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A ILUSTRE CASA DE RAMIRES DE EÇA DE QUEIRÓS – documento – A (des)contrução do


Romance Histórico Em A Ilustre Casa de Ramires – Maria Fátima Marinho

Relembrar contexto histórico do surgimento do género de obra romancista em causa – O Romance


Histórico – Resumo Alexandre Herculano
Relembrar papel da História e da capacidade de efabulação do autor – pontos fulcrais da construção
deste tipo de obras

- Em A Ilustre Casa de Ramires, Gonçalo procede, por vontade própria, à tentativa de produção de
uma obra romântica de cariz histórico, narrando, com este objetivo, um feito do século XII, há
setecentos anos atrás, em relação ao momento de enunciação, os feitos de um antepassado, defensor
dos direitos das irmãs de D. Afonso II e vingador implacável da honra ultrajada.

- Naturalmente, a História, recuperada por Gonçalo de diversos modos, mas, acima de tudo, através
de documentação que atesta a realidade dos factos, desempenha o papel de pano de fundo da ação,
no qual se movimentam as personagens, de acordo com o os interesses do autor e do próprio
público, ao qual a obra se dirige.
- Neste romance, produzido, não pelo narrador, mas, sim, pelo protagonista da intriga, é
simbolizado, desde logo, pela Torre de D. Ramires, que, por sua vez, apresenta uma dupla função:
por um lado, estimula a produção artística, desempenhando o papel referencial de objeto
imprescindível à inspiração literária; por outro, desempenha, ainda, a função tipicamente romântica
de mecanismo de atestação de veracidade, sendo, esta, ainda, enfatizada pela íntima relação entre o
autor da novela, Gonçalo, e os seus ascendentes, personagens desta mesma obra, pormenor utilizado
pelo narrador (Gonçalo), de modo a reconhecer, diretamente, a legitimidade da tarefa a que se
propõe dedicar (“A quem, com mais seguro direito do que a ele, Ramires, pertencia a memória dos
Ramires Históricos?” - página 23/ “E aos descendentes dos que outrora fizeram o Reino incumbia,
mais que aos outros, o cuidado piedoso de o refazer…? Como? Reatando a tradição, caramba!” -
página 19 / “E sentia nele realmente toda a alma de um Ramires, como eles eram do século XII, de
sublime lealdade, mais presos à sua palavra que um santo a seu voto , e alegremente desbaratando,
para manter bens, contentamento e vida! - página 66)

- Para além disso, esta fidelidade quase completa que é garantida à narrativa, não sendo, apenas
exposta pelo narrador, é, também, apontada e reiterada como traço fundamental da produção
literária, por outra das personagens, o que lhe confere um maior poder de atestação de veracidade -
“- Sublime!… A Torre de D. Ramires!… O grande feito de Tructesindo Mendes Ramires, contado
por Gonçalo Mendes Ramires!… E tudo na mesma Torre! Na Torre o velho Trutesindo pratica o
feito; e setecentos anos depois, na mesma Torre, o nosso Gonçalo conta o feito! Caramba, menino,
carambíssima! Isso é que é reatar a tradição!” (página 24)

- Ainda, na tentativa de atestação de veracidade e da íntegra vontade de conservação do passado e


da tradição, Gonçalo acaba por se colocar criticamente em relação aos momentos históricos
retratados, na sua obra, os quais, embora não lhe agradem, enquanto matéria romanesca de fraca
potencialidade poética, não é capaz de alterar. - Deste modo, Gonçalo, atesta, mais uma vez, a sua
fidelidade aos conteúdos históricos.
“E, ao tomar a pena, Gonçalo também, realmente, lamentava que seu avô Tructesindo não matassse
outrora o Bastardo, no fragor da briga, com uma dessas cutiladas maravilhosas, e tão doces de
celebrar, que racham o cavaleiro e depois racham o ginete, e para sempre retinam na História.”

- No entanto, como é natural, adotando, neste momento, o papel de romancista, como já referido,
Gonçalo acaba por recorrer à efabulação, e, nesse sentido, acaba por adaptar a ação, situando-a,
temporalmente, numa estação do ano, o Verão, distinta daquela em que esta, realmente, ocorreu (ou
seja, o outono – remeter para os versos do poema do tio Duarte - “Na palidez da tarde, entre a
folhagem/ Que o Outono amarelece” - página 25), dado o facto de o momento de enunciação, neste
caso, de produção da trama ser de facto aquele em que a ação acaba por ser desenvolvida.

“Mas, como era então Junho e a Lua crescia, Gonçalo determinou por fim aproveitar as sensações
de calor, luar e arvoredos, que lhe fornecia a aldeia – para levantar, logo à entrada da sua novela, o
negro e imenso Paço de Santa Ireneia, no silêncio de uma noite de Agosto, sob o resplendor da lua
cheia.” (página 25)

- Embora constitua um pormenor basicamente irrelevante, sem grande importância na intriga, certo
é que pode ser, ainda, considerada como uma manifestação de nacionalismo exacerbado, se
considerarmos que, no seguinte excerto, no qual nos é sugerida a situação temporal da enunciação
na época estival, Gonçalo é, praticamente colocado ao mesmo nível, enquanto fonte de obras ou
feitos heroicos, materializados, no seu caso, no romance que escreve, de várias figuras históricas
portuguesas, cujos atos pelos quais foram eternizados, tiveram lugar na época para a qual a diegese
é transferida:
“Para Portugueses, menino, o Verão é o tempo das belas fortunas e dos rijos feitos. No verão nasce
Nuno Álvares no Bonjardim! No Verão se vence em Aljubarrota! No verão chega o Gama à Índia!
… E no Verão vai o nosso Gonçalo escrever uma novelazinha sublime!” (página 19)

- Neste sentido, Gonçalo, pela sua obra, é, à semelhança das figuras produtoras dos feitos
anteriormente enunciados, considerado como “benemérito restaurador da consciência heroica de
Portugal!”.

- Todos estes pormenores parecem revelar o processo de criação/ gênese do romance histórico, na
medida em que Gonçalo tenta imprimir à narrativa todos os traços caraterísticos do mesmo. -
Gonçalo indica minuciosamente todos os passos de escrita e a dificuldade de reconstituição
histórica, traços fundamentais do romance histórico de inícios do século, tendo, este, como
principais representantes Walter Scott, Alexandre Herculano e Rebelo da Silva, entidades, aliás,
referidas na obra, sob a égide das quais, é, ainda capaz de colocar:

“quando os camaradas da “Pátria” e das ceias o aclamavam “o nosso Walter Scott”, compor um
romance moderno, de um realismo épico, em dois robustos volumes, formando um estudo
ricamente colorido da Meia Idade portuguesa… E agora lhe servia, e com deliciosa facilidade para
essa novela curta e sóbria, de trinta páginas, que convinha” (página 22)

“Na realidade só lhe restava transpor as fórmulas fluidas do Romantismo para a sua prosa tersa e
máscula (…) de ótima cor arcaica, lembrando o “O Bobo” “ (obra de Alexandre Herculano) (página
23)

“E, atento às páginas marcadas num toma da “História” de Herculano, esboçou com segurança a
época da sua novela(...)” (página 58)

“Depois , do pó das suas estantes, desenterrou as obras de Walter Scott, volumes desirmanados do
“Panorama”, a “História” de Herculano, “O Bobo”, “O Monge de Cister” (página 24)

“Assim Gonçalo adornara a soturna sala afonsina com alfaias tiradas do tio Duarte, de Walter Scott,
de narrativas do “Panorama”.” (página 63)

- Esta referência constantes ao autores referidos pode apresentar, de maneira polissémica, diferentes
sentidos ou simbolismos:
- servem para atestar a qualidade da sua obra, visto ter sido, esta, moldada de acordo com os
padrões elevados dos melhores romancistas portugueses e europeus, partindo da imitação dos seus
processos de produção, ou, meramente, estilísticos:

- servem para situar o autor na linha clássica dos romancistas históricos

- servem como uma espécie de hipotexto, embora não muito eficaz, uma vez que são, apenas,
referidas, não sendo os processos ou técnicas narrativas confrontados, nem, muito menos,
particularizadas as técnicas estudadas e aplicadas na conceção da novela de Gonçalo

- Neste sentido, surgem dois textos que, embora completamente inventados dentro do universo da
ação/diegético, se revelam mais eficazes na construção do hipotexto, adotando várias funções.

- Tratam-se portanto, do “poema do Tio Duarte” e o “Fado dos Ramires”, da autoria de Videirinha –
os autores são personagens fictícias, criadas de acordo com os propósitos do autor na evolução da
ação, daí que a sua obra também o seja.

- Era regra geral entre os românticos (e não só os romancistas históricos) estabelecer a autenticidade
dos seus textos, inventando-lhes fontes - manuscritos, descobertos em conventos ou bibliotecas,
poemas de tradição popular – conferir matéria sobre Herculano – prefácio e prólogos das suas obras
- Contudo, todas estas fontes apareciam referidas em prólogos ou epílogos e a autor empírico
assumia-se como tal para imprimir veracidade ao seu romance.

- No romance de Eça, o caso é ligeiramente diferente. Aqui, todo o processo ante-textual é


transferido para o interior da diegese e não é o autor empírico, mas Gonçalo, personagem inventada,
que diz servir-se de dois textos pré-existentes, mas cujos fragmentos surgem na diegese. - fenómeno
inovador de Eça

- É possível, então afirmar, que o fado dos Ramires pretende, para além de atestar a veracidade da
narrativa, sobretudo marcar a diferença de atitudes e mentalidade entre as personagens das duas
épocas (Gonçalo e os seus ascendentes) – pormenor fundamentando e intensificado pela crítica
subjacente ao poema (abaixo explicada)
“Os Ramires d’outras eras/ Venciam com grandes lanças/ Este vence com um chicote, Vede que
estranhas mudanças!/ É que os Ramires famosos,/ Da passada geração/ Tinham a força nas armas/ E
este a tem no coração!” (página 329)

- O poema do tio Duarte surge, em primeira estância, como principal fonte inspiradora, ou antes,
como única base da sua escrita, no que diz respeito ao desenrolar da ação, propriamente dita,
garantindo-lhe assim o ponto de partida para a sua obra– os restantes autores são apenas referidos a
tentativa de assegura a fidelidade à reconstrução do ambiente pretérito evocado, para criar cor local

“E o trabalho, a composição moral do vetustos Ramires, a ressurreição arqueológica do viver


afonsino, as cem tirar de almaço a atulhar de prosa forte – não o assustavam… Não! Porque
fezlimente já possuía a “sua obra” .- e cortada em bom pano, alinhavada com linha hábil. Seu tio
Duarte, irmão de sua mãe (uma senhora de Guimarães, da casa das Balsas), nos seus anos de
ociosidade e imaginação, de 1845 e 1850, entre a sua carta de bacharel e o seu alavrá de delegado,
fora poeta – e publicara no Bardo, seminário de Guimarães, um poemeto em verso solto, o Castelo
de Santa Ireneia, que assinara com duas iniciais, D.B.” (página 21)

– portanto, toda a história estaria já, de certa forma, escrita e produzida, alinhavada e logicamente
constituída, teria de ser apenas adaptada – transcrição quase fidedigna dos documentos – remete a
Herculano em “Lendas e Narrativas” - os fragmentos do poema mantém o leitor a par das
semelhanças da ação narrada por Gonçalo com a narrada pelo seu tio

- para além desta função primordial do texto pré-existente, o “poemeto” parece fazer ecoar as
críticas aos romances históricos da primeira era, na medida em que, apesar de seguir o texto referido
como documento, acaba por se distanciar deste, considerando fundamental destacar o caráter
medieval das personagens, ao não incutir nestas caraterísticas românticas de excitação e
sobrevalorização das emoções e dos sentimentos, uma vez que estes em nada coadunam com as
mentalidades das personagens representadas, sendo estas, naturalmente, influenciadas pelo contexto
histórico no qual se situam

“Mas, agora, este choroso desalento não lhe parecia coerente com a alma indomavelmente violenta
do avô Trutesindo. O tio Duarte, da casa das Balsas, não era um Ramires, não sentia
hereditariamente a fortaleza da raça: - e, romântico plangente de 1848, inundara logo de prantos
românticos a face férrea de um lidador do século XII, dum companheiro de Sancho I! Ele, porém,
devia restabelecer os espíritos de Santa Ireneia, dentro da realidade épica.” (página 171) - a
exclamação, embora realizada pelo narrador heterodiegético salienta a indignação de Gonçalo
quanto às caraterísticas atribuídas pelo seu tio às personagens, suas ascendentes, na medida em que
destruiriam o esforço ou a tentativa de reconstituição histórica
– A oposição marcada entre “o poema do tio Duarte” (romântico) e a novela redigida por Gonçalo
atesta também e, ironicamente, a diferença fundamental entre o primeiro romance histórico e o seu
equívoco ao pensar fazer a reconstituição do passado e a narrativa que Gonçalo nos oferece. Basta
recordarmos heróis como Eurico ou Vasco para percebermos nitidamente o que Eça quer significar.
Na verdade, muito mais do que personagens representando o sentir e pensar dos séculos VIII e XIV,
eles encarnam típicas figuras de heróis românticos, preenchendo todos os tópicos inerentes a essa
estética: infelicidade, solidão, exílio, invocação da noite e da morte, desespero, angústia.

- Nenhum destes sentimentos tem lugar na novela construída em A Ilustre Casa de Ramires. Há aí
um predomínio quase exclusivo da ação, levada a cabo por motivos de honra que prevalecem
sempre sobre qualquer tipo de emoção. Tudo se passa no plano da determinação heroica e a própria
vingança de Tructesindo se baseia num código de honra que exclui qualquer intervenção de cariz
menos elevado

- As consequências diretas desta valorização da reconstituição fidedigna:

- A focalização é demasiado externa para que o leitor se possa apiedar de Lopo de Baião ou de
Violante (a sua amada e involuntária causadora da sua morte), Violante cujos sentimentos nos são
completamente desconhecidos, uma vez que nunca aparece em cena e apenas é referida como a
filha de Tructesindo e amada do Bastardo.

- Toda a ação nos é descrita em termos de movimento e peripécias, não havendo nenhuma pausa
descritiva que nos transmita as emoções e sentimentos das personagens (“Não há amores, tudo
guerras” - página 97). A maior preocupação parece ser a de reconstruir um ambiente medieval.

- a utilização de personagens referenciais em papel de relevo na ação (os seus ascendentes são
razoavelmente conhecidos, menor liberdade de efabulação) – aproxima-se de Scott – distancia-se de
Herculano

- Como é natural, a reconstituição histórica passa pela intromissão da cor local, numa tentativa
comum a todos os romancistas do género de fazer acreditar na veracidade dos factos narrados. Na
novela escrita por Gonçalo, o esforço de localização espácio-temporal vai ao ponto de introduzir
arcaísmos nas falas das personagens («Bofé!…Mentes pela gorja!…Pagem, o meu morzelo!…» -
página ), de fazer pequenas resenhas históricas, de aludir a costumes da época, ou supostamente da
época, ou até, de fazer referência ao trabalho aturado da escrita, na mira de conseguir esse tão
almejado efeito de real.
- Além do pendor satírico-irónico a que já fizemos referência, convém ainda salientar que a diegese
do hipotexto pretende transmitir, simultaneamente, a ideia do passado autêntico (o que nunca é
possível) e a de um passado arquetípico, recriado, que nos é sugestivamente indiciado na alusão ao
subtítulo, processo tão em voga, ao tempo.
- crítica ao romantismo:
- o subtítulo serviria apenas para situar a diegese num certo momento histórico, no romantismo, sem
o subtítulo, dado o facto de a História servir apenas de mero pano de fundo, sem o subtítulo as
personagens seriam apenas personagens românticas num trama tipicamente romântica, logo o
subtítulo seria um mero engodo ao leitor; na novela de Gonçalo é a expressão fidedigna do tipo de
diegese escolhido, pretendendo chamar a atenção para o ambiente reconstituído e não para a
caraterização das personagens

Carta de Castanheiro - “(…) desejo que o amigo Gonçalo me informe se ela tem, à moda de 1830,
um saboroso subtítulo, como Episódios do Século XII, ou Crónica do Reinado de Afonso II, ou
Cenas da Meia Idade Portuguesa.” ( página 129)

Exemplo:
- O Monge de Cister ou a Época de D. João I
- Torre de D. Ramires (novela de Gonçalo)

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