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A França e

nós —
religião,
religiões,
laicidade
Uma reflexão sobre “o regresso a Deus”, “o triunfo do religioso”, a
proliferação de “inumeráveis seitas” e o sucesso, no interior do espaço e
da cultura europeias — berço da laicidade —, de religiões históricas como
o islão e o budismo.

EDUARDO LOURENÇO
26 de Agosto de 2018, 6:54

No estilo profético peremptório que lhe era particular, André Malraux


declarou que o século XXI seria religioso ou não seria. Morreu cedo de
mais para assistir já neste tempo, não só ao que, em termos mediáticos, se
designa como “o regresso de Deus”, ou o triunfo do religioso, mas à
proliferação de inumeráveis seitas — aos olhos dos cultos tradicionais —
que congregam à sua volta tanto ou maior fervor que as
chamadas religiões estabelecidas. Parece que assistimos à ressurreição dos
comportamentos que assinalaram os últimos tempos ainda gloriosos e
cosmopolitas do Império Romano. Os mesmos que viram a emergência de
uma nova religião cujo triunfo espiritual, cultural e simbólico iria imprimir,
primeiro ao espaço romanizado do Mediterrâneo, depois à Europa inteira,
mais tarde aos domínios por ela influenciados, uma presença
tendencialmente universal, expressão do carácter simbolicamente
transétnico da sua mensagem, tal como São Paulo a precisou.

Embora muitos destes novos movimentos se reclamem ou pretendam


situar-se na órbita do cristianismo ou sejam a manifestação de uma
sensibilidade e exigência espiritual de inspiração cristã e mesmo católica
— como o movimento carismático —, não é esta vinculação a nota
surpreendente e insólita, no horizonte da cultura europeia, desse bem mais
vasto e espectacular “regresso do religioso”. A surpresa é que esse famoso
“regresso” — mesmo se pode ser lido, quer como mero revivalismo, quer
como autêntica renovação da prática religiosa numa Europa que ao mesmo
tempo glosa sem cansaço não só a “morte de Deus” como o mais
genérico desencantamento do mundo —, qualquer que seja o seu conteúdo,
traduz-se, sobretudo, na implantação e sucesso de religiões históricas,
longamente ignoradas ou combatidas no interior do espaço e da cultura
europeias. Tal é o caso do islão, trazido pela emigração magrebina e de
outros cultos, tão alheios à Europa que só a título de exotismo eram
aludidos, como o budismo. André Malraux, que viveu sempre fascinado
pelo Oriente sob o modo da “tentação” e pelo seu tipo de religiosidade
sincretista, veria, sem dúvida com bons olhos, este museu imaginário de
crenças, substituindo a secular tradição europeia, não só ele uma religião
dominante mas exclusiva e, por assim dizer, inerente à identidade europeia.
Deixando de lado o fenómeno de moda — “Deus está na moda”, “Cristo
está na moda” —, o que só por si denota a extensão e a fundura da
desertificação religiosa no espaço europeu (ou fora dele), o actual
panorama de pluralismo religioso ou de potencial ecumenismo (um pouco
forçado, diga-se de passagem...) só foi e é possível pelo facto de a cultura
europeia se ter tornado, ao longo de um processo milenário, uma cultura
tendencialmente laica. Laica, não apenas como expressão histórica
paradigmática da separação e, em seguida, autonomia do temporal e
do espiritual, mas como lógica consequência da essência mesma do
cristianismo. Só no interior da cultura europeia, como sobredeterminada
pelo cristianismo, o conceito de laico e laicidade tem sentido. Pouco ou
nenhum, fora dela.

A lembrança da história do cristianismo — em particular na sua forma


católica —, deixando de lado a sua versão polémica ou amarga, à maneira
de Voltaire ou Sören Kierkegaard e, com maioria de razão, a linhagem
daqueles que o impugnaram como Schopenhauer, Nietzsche ou Heidegger
— poderia levar a ver nesta afirmação de uma genealogia cristã
da laicidade um paradoxo de pouca relevância. Todavia, não só numa mera
perspectiva dialéctica — o que nasce contra provém de onde nasce —, mas
no da consideração da essência mesma do cristianismo, o paradoxo nada
tem de chocante. A laicidade é uma resposta, de algum modo, hipercristã,
ao processo, na aparência incontível, de objectivaçãoda mensagem cristã.
Quer dizer, à metamorfose do cristianismo em poder espiritual com efeitos
na ordem do político, do jurídico, do ético e mesmo do
metafísico, dogmaticamente formulados e historicamente encarnados. Não
se trata, meramente, para empregar uma célebre fórmula do Charles Péguy,
da degradação do místico em político. É mais do que discutível que o
cristianismo seja uma mística, embora haja, naturalmente, uma mística
cristã.

É mesmo mais do que discutível que o cristianismo seja uma religião, no


sentido antigo e clássico do termo ciceroniano de religare, embora fosse
esse o que, exceptuando o horizonte da teologia negativa, se impôs
culturalmente. A religio, segundo Cícero, denota a dependência, o laço que
ata o homem a Deus. Mas, de algum modo, esse laço não ata menos Deus
ao homem. O cristianismo está aquém ou além desta mútua
interdependência. O nome de “Pai”, dado a Deus, não é uma mera
antropologização destinada a nomear o que não tem nem pode ter nome —
como se fosse “criado” pela nossa nomeação —, mas a pura metáfora do
sentimento de pura gratuidade que é a essência do laço que não nos ata a
Deus — e muito menos Deus a nós — mas nos desata de todo o império da
necessidade. Deus não é a nossa “propriedade”, nem nós a de Deus. Na
medida em que a “religião” cristã nas suas expressões históricas foi vivida,
pregada, imposta como dever de amor a Deus (que como todo o amor não
se impõe) a resistência a essa apropriação — a essa privalização — de
Deus corresponde à vivência mesma, à revelação singular do cristianismo.

Na medida em que a “laicização” da cultura europeia não faz mais do que


obedecer a essa inspiração, a laicidade, não só por paradoxo formal, mas
por essência, exprime uma exigência religiosa. E não deixa de ser profunda
a famosa “boutade”, “sou ateu graças a Deus”, aplicada à laicidade. Mas
todos sabemos que o histórico discurso laico na Europa — sobretudo na
sua versão francesa — é um subproduto da cultura anticlerical, quando, na
verdade, devia ser o contrário. Equivocada ou excessivamente “formatada”,
como se diz hoje, a laicidade, ao menos negativamente, é “religiosa”, por
excesso de exigência religiosa. Mas com mais verdade por esquecimento da
exigência de gratuidade do que é a essência mesma do cristianismo.

Na medida em que todas as grandes religiões são “visões do mundo”, o


cristianismo não é uma religião. As religiões são respostas, as mais subtis e
sublimes que os homens foram capazes de imaginar para converter a
necessidade e o destino, violência, mal, em existência salva, liberta, mas
não pura abertura, abandono absoluto a uma vontade, a um apelo que não
desenham a figura de um poder e de uma lei que se nos impõe do alto e de
fora, por terem apenas o rosto infinitamente indecifrável e irredutível do
outro. O cristianismo não é um processo de auto-iluminação, como a de
Buda que dissolve a aparência do mundo, ou o mundo como soma de
aparência para assim pôr termo à cadeia de sofrimento que lhe é
consubstancial, mas a revelação de um Deus carente e da sublimação dessa
carência. Nietzsche denunciou com energia o carácter inaceitável, segundo
ele “oposto à vida”, dessa carência, dessa complacência em relação ao que
é “fraco”, mas nunca encontrou resposta para o facto paradoxal de que essa
“fraqueza” não cedeu diante da tirania humana e pagou o preço dessa fuga
sem temer o sofrimento mas transfigurando-o em instrumento de redenção.
Pascal escreveu sobre isso palavras de fogo e é escusado repeti-lo.

Tal é a exigência “religiosa” específica do cristianismo, crítica radical do


poder pelo amor dos outros e, mais radicalmente, crítica de um Deus-poder.
Em todas as culturas onde esta exigência não é formulada e, sobretudo,
vivida, da mesma maneira, aquelas onde, para usar termos de Kant, a
religião é de simples culto, ou mero reflexo condicionado pela repetição
etnológica, qualquer coisa como o processo que caracterizou a cultura
europeia como tendencialmente laica não podia surgir. E, de facto, não
surgiu. No interior da cultura chinesa, da cultura hindu ou da cultura
islâmica, a emergência de um fenómeno como o da laicidadeé recente e de
indução europeia. Os casos da Turquia, do Iraque ou do Egipto só na
aparência desmentem esta constatação. Na maioria dos casos, essa forma
incipiente de laicidade é apenas, como o era na Europa do Édito de Nantes,
não separação e muito menos recusa da prática religiosa, mas aceitação de
práticas diferentes para preservar a paz civil. É um capítulo da história da
tolerância, paralelo e, por vezes, interconexo com o da emergência e
afirmação do espírito laico, mesmo na sua forma benigna de secularização.
Em última análise, é de outra natureza.

Na Europa, a religião, não só no seu campo próprio, o espiritual, mas nas


suas relações inextricáveis com o poder, em todas as ordens, desde a
política, a jurídica ou da prática social, foi um objecto de discussão, de
conflito, permanentes. Se num dado momento, o combate pareceu
suspenso, foi apenas porque a religião se pluralizou, com a Reforma. Com
essa pluralização, de imprevistos ou previsíveis efeitos na política, na
cultura, na sensibilidade, surgem duas Europas criando uma nova dimensão
religiosa à já existente depois da separação de Roma e de Bizâncio. Em
termos históricos, este momento é o da pré-história da laicidade. Pois,
curiosamente, não se pode dizer que esta pluralidade de estatutos religiosos
na cristandade, embora favorecendo a tolerância, equivalesse ao triunfo da
laicidade. Com a separação entre católicos e protestantes, a religião passa a
confundir-se com a religião de Estado, antecipando o tempo em que o
Estado moderno se arrogue um estatuto religioso. Não é exactamente este o
estatuto propício à laicidade. Mas menos o era dentro da Europa católica,
abalada mas não liquidada pela Reforma. Neste espaço, a luta pela
laicidade será, naturalmente, mais áspera. A liberdade de crença, no seu
sentido mais lato, sempre apareceu à Igreja Católica como a antecâmara da
descrença. E de facto o é, pois a laicidade em outra coisa não consiste
senão na liberdade de crer nisto ou naquilo ou de todo não crer. Por isso, e
em termos culturais, a questão da laicidade não tem o mesmo perfil nos
países de tradição protestante e nos países de tradição católica. Sem
contradição alguma, o conceito de laicidade só tem ecos polémicos ou gera
ainda conflitos nas áreas de tradição católica, onde o termo laico tem
intenção diversa da que tem nos países protestantes. Não se pode dizer que
a Alemanha ou até a Inglaterra sejam culturas “laicas”. A liberdade
religiosa (como nos Estados Unidos) não é uma entre outras formas de
liberdade, mas o fundamento de todas as outras. Pelo contrário, na Itália, a
ideia de laicidade contém implícita quer no plano religioso, quer no
político, a oposição ou o distanciamento em relação ao ideário católico. Por
isso, a passagem a uma cultura laica, não só na Itália, como nos outros
países de tradição católica (Espanha, Portugal), será não só lenta mas
complexa. Sob muitos aspectos, ela continua sob os nossos olhos, como o
mostram não só as querelas escolares ou os problemas de sociedade que
continuam a ser tratados em função de opções religiosas ou anti-religiosas,
como o da interrupção legal da gravidez e outros.

Durante mais de um século, como questão vivida e passional, eco de uma


longa querela ao mesmo tempo religiosa, ideológica, política e cultural, a
laicidade foi um assunto não só quase intra-europeu, como mais
particularmente francês ou de áreas permeáveis à influência francesa. Não é
certo que o não continue a ser neste tempo que parece aceitar, nas culturas
que se reclamam de uma concepção democrática de raiz europeia na ordem
política, uma espécie de sinonímia fácil, ou óbvia, entre democracia,
tolerância e pluralismo. Com um suplemento de novidade e urgência na
medida em que essa sinonímia significa que a laicidade é o lugar de
resistência e oposição às diversas formas de fundamentalismo ou
de integrismo surgidos nas últimas décadas e alheios ou hostis à ideia
mesma de laicidade.
Todavia, quer pela sua genealogia, quer pela contextualização, o estatuto
da laicidade — ou do laicismo — não tem aquela transparência ou auto-
evidência que, à primeira vista, lhe é atribuída ou lhe atribuem, quer os que
se reclamam do seu espírito, quer os que o rejeitam. É uma ideia não só
intrinsecamente polémica, como de alcance necessariamente prisioneiro do
contexto cultural em relação ao qual tem sentido ou pertinência. Assim, nas
culturas onde uma tradição laica é um facto consumado ou tido como tal,
pensar ou discutir a laicidade é sem grande alcance ou sem urgência; e
naquelas onde se impôs ou triunfou uma qualquer forma de
fundamentalismo, não só perigoso como, à primeira vista, vão. Na verdade,
as coisas são, ao mesmo tempo, mais simples e mais complexas. Se
fundamentalismo, hoje, quer dizer, modelagem de uma dada sociedade,
indissociável da referência religiosa que a constitui como sociedade de
crentes, não há lugar nele, e do seu ponto de vista, para aquela espécie de
atitude, de princípio ou de facto, que na Europa se vive ou manifesta
como laica. Em sentido oposto, se o específico da laicidade é a invenção de
um espaço de autonomia em relação à crença ou crenças de uma sociedade
determinada, considerando-a, por esse simples facto, uma sociedade livre,
o fundamentalismo é aquilo mesmo que a laicidade recusa para existir. Em
qualquer dos casos, não há comunicação entre ambos. Dificilmente,
coexistência. Apenas exclusão.

A dupla exclusão que o antagonismo entre a cultura fundamentalista ou de


hegemonia ortodoxa e a cultura de inspiração laica configuram, se tem
algum sentido numa perspectiva meramente culturalista de perfil
ideológico-político, a que certas consequências mediáticas conferem, a
justo título, grande relevo — a condenação de Salman Rushdie, por
exemplo — é, em si mesma, irrelevante e ilusória. Só na perspectiva de
uma cultura realmente tendencialmente laica, a condenação “moral” de
Rushdie — não a da barbárie contida na “pena de morte” ritual — é um
autêntico escândalo além de acto incompreensível. Mais incompreensível
do que realmente escandaloso, na medida em que “o religioso”, do ponto
de vista laico, é uma mera alucinação ou, pelo menos, uma esfera que, por
definição, está fora de discussão, por defeito ou por excesso. Numa cultura
idealmente laica, como desde há mais de dois séculos uma parte da cultura
europeia a si mesma se representa, nenhuma consideração de ordem
religiosa provoca qualquer efeito de sentido. Pelo menos, na ordem do
discurso. Efectivo ou hipotético, o espaço do religioso é o da
sua neutralização.

A primeira expressão dessa neutralização traduz-se de imediato pela leitura


do “religioso” como intrinsecamente plural: há religiões, não religião. De
um ponto de vista laico, o que continua a ser visado como religião é do
domínio da doxa, da mera opinião. Por isso, o uso do plural “religiões”
nada tem de neutro e tudo de neutralizante. A pretensão de exclusivismo,
inerente a toda a religião, na perspectiva laica, é insustentável diante da
pluralidade histórica das religiões e supor que a contradição possa ser
resolvida releva do dogmatismo.

Quer no plano da sincronia, quer no da diacronia só existem religiões,


judaica, católica, islâmica, budista; ou egípcia, romana, azteca, etc. É em
função deste duplo eixo, subdeterminado pela História, pela cultura ou por
um código sincrético que as tenha como referência, que existe a
chamada História das Religiões ou, sob forma ainda mais profana, um
qualquer dicionário ou enciclopédia das religiões. Como realidade
susceptível de plural, a religião só existe como leitura do religioso a partir
de uma visão laica cuja essência é a relativização, em termos de verdade,
daquilo que, em si mesmo, não comporta a possibilidade de ser
relativizado: a religião mesma.
E se a perspectiva laica, quer na ordem da genealogia, quer na do conceito,
não fosse inteligível a partir de si mesma, mas só da religião que põe entre
parêntesis, primeira na ordem do tempo e da manifestação ontológica?
Nem relativizável, nem redutível, a religião enquanto religiosidade vivida,
manifesta, não tem exterior, a não ser sob a forma de negação, quer dizer,
supondo que é totalmente falha de sentido. Não há, nesta matéria, meio
termo. Como dizia ironicamente Kierkegaard, a propósito do “ser cristão”,
não se pode ser “um pouco” ou “pouco mais ou menos” cristão. O religioso
define um campo de auto-referência absoluto. Como a laicidade releva de
uma visão intrinsecamente relativista nesta matéria, a questão põe-se de
saber se a querela que parece opor laicidade-religião — mesmo apenas no
círculo da cultura do Ocidente — tem realmente sentido fora dos avatares
intelectuais e ideológicos de certas culturas e, eminentemente, da cultura
francesa. Ou então se só adquire sentido com a condição de ser pensada e
integrada em qualquer discurso previamente delimitado pela ideia de que
a laicidade é uma atitude tão transparente e indiscutível que não precisa de
ser interpelada. O que se parece um pouco com o círculo vicioso. Nesse
caso, só como conceito dogmático ou dogmaticamente assumido, essa
atitude que, segundo os tempos e o contexto, exige que a pensemos como
associada à liberdade de consciência, à liberdade de pensamento, à
tolerância, como condição ou expressão dela, a laicidade poderia ser
tematizada. Em família, por assim dizer, e polemicamente. Na aparência,
também sem que a pretensão de ser a expressão histórica e cultural da
liberdade de crer ou de não crer importe em especial à ideia que nós
fazemos da cultura europeia e do papel que atribuímos quer no passado,
quer no presente ou lhe reservamos para o futuro.

Por mais eurocêntrica que seja essa pretensão, genealógica e


estruturalmente, a invenção e a vivência da laicidade é um apanágio e uma
especificidade da cultura europeia ou da área por ela influenciadas. É
dentro dela produto de um conflito que não terminou. Num tempo
caracterizado não só pela aceitação da diferença mas pelo culto ou idolatria
das diferenças — conceito que, em si mesmo, deveria ser a mera
constatação do não semelhante sem conotação valorativa, atribuir uma
especificidade cultural (naturalmente “positiva”) a um continente, entre
outros, a uma civilização entre outras ou a uma sociedade, entre outras,
parecerá não apenas vã provocação como absurdo. É possível ou não é
logicamente inviável que o carácter universalista com que a prática e a
ideia de laicidade são concebidos na Europa — e, em particular, nos países
que se autodefinem como oficialmente laicos — seja um mito. Ou, pelo
menos, uma atitude sem carácter universalizável, como a democracia, sem
matriz ou sem efeito, para as culturas alheias a códigos ocidentais.

Admiramo-lo. É verdade que temos de adaptar o nosso olhar, supostamente


universal por direito divino, a tradições de racionalidade diversas das
nossas — sobretudo no que diz respeito a crenças e valores —, mas não ao
ponto de aceitar como divina a visão alheia, só por não ser a nossa. O
masoquismo cultural europeu e ocidental é hoje sem limites, talvez para
que seja perdoada a boa consciência com que, durante séculos, os europeus
se passearam no mundo, como se só o “outro” tivesse direito a essa boa
consciência. É o complexo das “Cartas Persas”. Ora a laicidade é apenas
um resultado, penosamente alcançado ao longo dos séculos, em si mesma
ambígua e complexa, para fazer triunfar a ideia de uma sociedade
profana quando a sociedade europeia era, como todas as outras, regida por
uma exigência religiosa informadora de todos os conteúdos da vida. Pouco
a pouco, do direito à “profanidade”, converteu-se em afirmação de uma
autonomia ideal, paradigma da única sociedade digna de ser lida como livre
por meramente humana.
O momento mítico da emergência da laicidade — ou do que,
dialecticamente, já assim se poderia considerar — foi, como se sabe, a
Revolução Francesa. Pelo menos, é essa — e não sem motivos — a leitura
que a historiografia francesa, ou aquela que nela se inspirou, faz desse
acontecimento. Na verdade, só cem anos depois da revolução, com o
triunfo da III República em França, e mais tarde com a lei da separação da
Igreja e do Estado, é que a laicidade se tornou uma espécie de dado da
consciência cidadã francesa. E é a partir desse momento que todo o
passado, não só da França como de quase toda a Europa, se relê como
longa, dramática e numa terminada invenção de uma sociedade
emblematicamente secular. Não foi apenas por chauvinismo ou
racionalismo e, ainda menos, pela consciência do seu “rang” entre nações,
obsessão de De Gaulle, que em França se forjou o conceito da excepção
francesa. Mas “excepção” com vocação de modelo ou exemplo. Qualquer
que seja o juízo sobre esta pretensão, o que a justifica em termos de
itinerário cultural, religioso, ideológico, é unicamente um destino, muito
cedo anunciado, ou esta vocação subjacente da França para se outorgar um
estatuto de nação laica. Que a mesma nação se tenha também imaginado
simbolicamente como nação cristianíssima só pode espantar quem não veja
o laço orgânico que existe entre a longa deriva e luta por uma sociedade
laica e o cristianismo. A França foi a primeira e única nação da Europa que
conheceu um processo de secularização praticamente ininterrupto desde
Filipe, o Belo, a Robespierre ou a Jules Ferry, cimentando pouco a pouco
as relações simbólicas entre o poder espiritual e temporal, ao mesmo tempo
que, procedendo assim, afinal, recebia inspiração do mesmo cristianismo
como doutrina — a única — que explicitamente e, para sempre, separa o
espiritual do temporal.
As consequências desta tradução prática na ordem política, legitimada no
domínio teológico e jurídico pelos grandes responsáveis da emergência do
espírito laico, de Marsílio de Pádua, Duns Scoto, Ockam — que tanto
influenciará Lutero — foram incontroláveis. Mas em França o
desenvolvimento do religioso volveu-se também, e fatalmente,
investimento sacralizante do temporal. O “teocracismo” de Alexandre III
converteu-se em religião do Estado com Luís XIV, antecipando o futuro
Estado como religião de Robespierre e dos totalitarismos modernos. A
laicidade não é inocente se não comporta distância em relação à tentação de
se fechar sobre si como “discurso de verdade”. Ela vive do que nega ou do
que a nega. Este estatuto oscilante é o seu ponto de honra: A liberdade de
não crer é precedida, no tempo e em direito, pela liberdade de crer. Em
termos de “religião” ou de ideologia. Como o nosso século,
simbolicamente laico, mostrou.

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