Você está na página 1de 10

1

UMA RELIGIÃO DE ADULTOS1

Tradução de “Une Religion d´Adultes”. In: Difficile Liberté: essais sur le judaïsme. 3ed.
Paris: Albin Michel, 1963 et 1976. Livre de Poche, Série Biblio Essais, 1997 . 2

I – A LINGUAGEM COMUM

Diante de semitas e cristãos, dos quais Pio XI disse que são espiritualmente semitas,
não seria supérfluo enunciar a tese que coloca o homem acima da ordem natural das coisas?
Não se lhes ensinaria nada, se quiséssemos ensinar que o homem ocupa no mundo uma
posição excepcional: que sua situação é a de um ser dependente; que este ser dependente é
soberano em sua dependência mesma, pois sua dependência não é qualquer, mas a de uma
criatura; que a dependência não exclui o feitio à imagem de Deus; que a educação deve
manter esta sociedade entre o homem e Deus instituída por sua semelhança e que, num
sentido muito amplo do termo, a educação tem por objetivo esta sociedade e é talvez a
definição mesma do homem .
Como os judeus, os cristãos e muçulmanos sabem que se os seres deste mundo têm
a condição de resultados, o homem cessa sua existência de simples resultado e recebe,
segundo São Tomás de Aquino, “uma dignidade de causa”, na medida em que ele sofre a
ação da causa, exterior por excelência, da causa divina. Todos nós sustentamos, com efeito,
que a autonomia humana repousa sobre uma suprema heteronomia e que a força que produz
tão maravilhosos efeitos, a força que institui a força, a força civilizadora, chama-se Deus.
Esta linguagem comum que reencontramos espontaneamente e que, aqui, a 1600
metros de altitude, ressoa de modo particularmente puro, não é fonte de satisfações
unicamente acadêmicas.
Durante os anos nos quais, frente a esta linguagem, se afirmavam orgulhosamente
energias entregues a si próprias, durante os anos nos quais esta linguagem foi ensurdecida
pelo transbordamento de forças puramente naturais, esta linguagem comum também foi
uma vida comum. Gostaria de lembrar, diante dos representantes de tantas nações, algumas
das quais não têm judeus em seu seio, o que foram, para os judeus, os anos 1933-1945.
Entre milhões de seres humanos que aí encontraram a miséria e a morte, os judeus viveram
a experiência única de desamparo total. Eles conheceram uma condição inferior à das
coisas, uma experiência de passividade total, uma experiência da Paixão. Para eles, o
capítulo 53 de Isaias esgotava aí todo seu sentido. O sofrimento, que lhes foi comum com
todas as vítimas da guerra, recebeu sua significação última da perseguição racial que é
absoluta, pois ela paralisa, por sua intenção mesma, qualquer fuga, recusa de antemão
qualquer conversão, proíbe qualquer abandono de si, qualquer apostasia no sentido
etimológico do termo e atinge assim a inocência mesma do ser chamado a sua derradeira

1
Exposição feita em 1957 na Abbaye de Tioumliline, no Marrocos durante as jornadas de estudo sobre
educação. Publicado em Tioumliline I, 1957.
2
Tradução “caseira” de Sybil Safdie Douek, para efeitos didáticos, e para uso dos alunos do curso do prof.
Alexandre Leone: “Levinas. Eu diante do outro”, ministrado no Sedes, 1o semestre de 2007.
Nota do tradutor: tendo em vista o objetivo da tradução, o de tornar a leitura do texto mais accessível para os
alunos do curso, a presente tradução não se preocupou, ou só muito pouco, com o estilo do texto, seguindo
quase que à risca as palavras ou expressões empregadas por Lévinas, mesmo quando estas soassem um pouco
estranhas aos nossos ouvidos “brasileiros”. A tradução, como foi dito acima, deve ser considerada: “caseira”.
2

(ou: principal) identidade. Novamente Israel se encontrou no coração mesmo da história


religiosa do mundo, explodindo as perspectivas nas quais se tinham fechado as religiões
constituídas, re-estabelecendo, nas mais finas consciências, o elo, até então
incompreensivelmente dissimulado, entre o Israel de nossos dias e o Israel da Bíblia. No
momento em que se vivia esta experiência, cuja amplitude religiosa marcou para sempre o
mundo, católicos – laicos, padres, monges – salvavam crianças e adultos judeus na França e
fora da França; e, nesta terra mesma, judeus ameaçados pelas leis radicais ouviram a voz de
um príncipe muçulmano que os tomou sob sua mais alta proteção.
Lembro-me de uma visita que, durante uma cerimônia religiosa, tive a ocasião de
fazer no início da guerra, na Igreja Santo Agostinho em Paris, os ouvidos ainda dilacerados
pela fraseologia da “nova moral”, que se elevava havia 6 anos através da imprensa e dos
livros. Ali, num pequeno canto da Igreja, me encontrava próximo de um quadro
representando Ana levando Samuel ao templo. Lembro-me desta impressão de retornar
momentaneamente ao humano, à possibilidade mesma de falar e ser ouvido, que então se
apossou de mim. Emoção que só se compara àquela que senti durante os longos meses de
detenção fraternal em um Frontstalag na Bretânia com os prisioneiros norte-africanos;
àquela que, num Stalag, na Alemanha, senti quando, diante do túmulo de um camarada
judeu que os nazis queriam enterrar como um cão, um padre católico, o padre Chesnet,
recitou orações que eram, no sentido absoluto do termo, orações semitas.

II– COMO OUVIR A VOZ DE ISRAEL?

É portanto inútil neste contexto, lembrar as teses fundamentais sobre o homem, que
nos unem! A breve menção que fiz no início teria sido excessiva se, por algum tipo de
paradoxo da história, a antropologia filosófica da mais antiga das religiões monoteístas não
passasse por caduca. Ela assim parece por causa de sua antiguidade mesma. Ela assim
parece por causa do povo judeu que a ensina, mas se mantém à margem da história política
do mundo do qual teve o privilégio moral de ser vítima. Pensa-se geralmente que os valores
do judaísmo entraram, há muito tempo, em sínteses mais amplas, e que, tomadas em si
mesmas, elas representam apenas balbucios, diante da expressão em espírito e em verdade
que elas receberam nas religiões que o judaísmo engendrou.
Acontece assim que a voz de Israel é ouvida no mundo apenas, na melhor das
hipóteses, como voz de um precursor, como a voz do Antigo Testamento que nós judeus,
como diz Buber, não temos nenhuma razão de considerar nem como testamento, nem como
antigo e que não nos situamos na perspectiva do Novo. Há também outro modo de expor o
judaísmo. Há algum tempo, este é revelado ao mundo moderno em certas obras que retêm
por demais facilmente a atenção de cristãos pois permanecem nas generalidades generosas,
sedutoras e declamatórias, lisonjeiras e vagas. As saudamos, muito amiúde, como o
mistério e a mensagem de Israel. Mas isto prova até que ponto esta generosidade elementar
da fé judaica é ignorada pelo grande público.
Para que a união de homens de boa vontade, que desejo, não se faça no abstrato e no
vago, me permitirei aqui insistir precisamente nas vias particulares do monoteísmo
judaico. Sua particularidade não compromete, mas sim promove o universalismo. Para isso,
este monoteísmo judaico deve ser buscado na Bíblia, comum à tradição judaica e cristã,
banhada nas fontes em que ela guarda sua fisionomia especificamente judaica. Falo da
3

tradição oral de exegese que se cristalizou no Talmud e em seus comentários. O modo que
esta tradição instituiu, constitui o judaísmo rabínico. Quaisquer sejam os argumentos
históricos que provam sua alta antiguidade – e eles são muito sérios – o cânon bíblico, tal
como o mundo o recebeu, foi fixado pelos adeptos desta tradição. O judaísmo que tem uma
realidade histórica – o judaísmo, simplesmente – é rabínico. As vias que levam a Deus
neste judaísmo não atravessam as mesmas paisagens que as vias cristãs. Se devêsseis estar
chocados e surpresos, estariam chocados e surpresos que sejamos ainda judeus diante de
vós.

III - ENTUSIASMO OU MAIORIDADE RELIGIOSA?

Para o judaísmo, o objetivo da educação consiste em instituir uma relação entre o


homem e a santidade de Deus e manter o homem nesta relação. Mas todo seu esforço –
desde a Bíblia até o encerramento do Talmud no século VI, e através da maioria de seus
comentadores da grande época da ciência rabínica – consiste em compreender esta
santidade de Deus num sentido que se distingue da significação numinosa deste termo, tal
como aparece nas religiões primitivas nas quais os modernos com freqüência quiseram ver
a fonte de toda religião. Para estes pensadores, a posse do homem por Deus, o entusiasmo,
seria a conseqüência da santidade ou do caráter sagrado de Deus, o alfa e o ômega da vida
espiritual. O judaísmo desenfeitiçou o mundo, distingui-se desta pretensa evolução das
religiões a partir do entusiasmo e do sagrado. O judaísmo permanece estrangeiro a qualquer
retorno ofensivo destas formas de elevação humana. Ele as denuncia como sendo a essência
da idolatria.
O numinoso ou o sagrado envolve e transporta o homem para além de seus poderes
e seus quereres. Mas uma verdadeira liberdade se ofende com estes excessos incontroláveis.
O numinoso anula as relações entre as pessoas fazendo participar os seres, por exemplo, no
êxtase, de um drama que estes seres não quiseram, de uma ordem na qual se perdem. Esta
potência, de certo modo, sacramental do divino, aparece ao judaísmo como ferindo a
liberdade humana e como contrária à educação do homem, educação esta que permanece
sendo ação sobre um ser livre. Não que a liberdade seja um objetivo em si. Mas ela
permanece sendo a condição de qualquer valor que o homem possa atingir. O sagrado que
me envolve e me transporta é violência.
O monoteísmo judeu não exalta uma potência sagrada, um numen que
triunfa sobre outras potências numinosas, mas que participa ainda de sua vida clandestina e
misteriosa. O Deus dos judeus não é o sobrevivente de deuses míticos. Abraão, o pai dos
crentes, teria sido o filho de um mercador de ídolos, segundo um apólogo. Aproveitando a
ausência de Térah, Abraão teria quebrado todas elas, poupando a maior dentre elas para
atribuir-lhe, aos olhos de seu pai, a responsabilidade do massacre. Mas ao voltar, Térah não
pode aceitar esta versão fantástica: ele sabe que nenhum ídolo no mundo pode destruir
outros ídolos. O monoteísmo marca uma ruptura com uma certa concepção do sagrado. Ele
não unifica nem hierarquiza estes deuses numinosos e numerosos; ele os nega. Diante do
divino que estes encarnam, ele é apenas ateísmo.
Aqui, o judaísmo se sente extremamente próximo do Ocidente, quero dizer da
filosofia. Não é por simples acaso que a via em direção à síntese entre a revelação judaica e
o pensamento grego, tenha sido magistralmente traçada por Maimônides, ao qual recorrem
4

filósofos judeus e muçulmanos; que haja um profundo respeito pela sabedoria grega já
entre os sábios do Talmud; que a educação para o judeu se confunda com instrução e que o
ignorante não possa ser realmente piedoso! E são freqüentes, os curiosos textos talmúdicos
que tentam apresentar a natureza da espiritualidade de Israel como residindo em sua
excelência intelectual. Não certamente por orgulho luciferino da razão, mas porque a
excelência intelectual é interior e que os “milagres” que ela torna possíveis não ferem,
como a taumaturgia, a dignidade do ser responsável; mas sobretudo porque eles não
arruínam as condições da ação e do esforço. Daí, em toda vida religiosa judaica, a
importância do exercício da inteligência aplicada, claro, em primeiro lugar, ao conteúdo da
revelação, à Torá. Mas a noção de revelação se alargará rapidamente e abrangerá todo saber
essencial. Um apólogo rabínico representa Deus ensinando os anjos e Israel. Nesta escola
divina, os anjos (inteligências sem falhas mas sem malícias) perguntam a Israel, que está na
primeira fila, o sentido da palavra divina. A existência humana, apesar da inferioridade de
sua posição ontológica – por causa desta inferioridade, por causa do que ela tem de
atormentado, de inquieto e de crítico – é o verdadeiro lugar em que a palavra divina
encontra o intelecto e perde o resto de suas virtudes pretensamente místicas. Mas o apólogo
quer também nos ensinar que a verdade dos anjos não é de outra espécie que a verdade dos
homens, que os homens acedem à palavra divina sem que o êxtase deva arranca-los de sua
essência, de sua natureza humana.
A afirmação rigorosa da independência humana, de sua presença inteligente diante
de uma realidade inteligível, a destruição do conceito numinoso do sagrado, comportam o
risco do ateísmo. Risco a ser corrido. Somente através dele o homem se eleva à noção
espiritual do Transcendente. É uma grande glória para o Criador ter colocado em pé um ser
que o afirma após tê-lo contestado e negado nos prestígios do mito e do entusiasmo; é uma
grande glória para Deus ter criado um ser capaz de procura-lo e de ouvi-lo de longe, a partir
da separação, a partir do ateísmo. Um texto do Tratado Taanith (página 5) comenta o
versículo de Jeremias 2,13: “Pois ele é duplo, o malfeito cometido por meu povo: eles me
abandonaram, eu, a fonte de água viva, para cavar cisternas, cisternas fendidas, que não
podem segurar as águas.” Ele insiste na dupla transgressão que se comete pela idolatria.
Ignorar o verdadeiro Deus é, com efeito, apenas meio mal; o ateísmo é melhor que a
piedade devotada aos deuses míticos na qual uma Simone Weil distingue já os passos e os
símbolos da verdadeira religião. O monoteísmo ultrapassa e engloba o ateísmo, mas ele é
impossível para alguém que não atingiu a idade da dúvida, da solidão e da revolta.
A via difícil do monoteísmo junta-se com a estrada do Ocidente. Pode-se perguntar,
com efeito, se o espírito ocidental, se a filosofia, não seria, em última análise, a posição de
uma humanidade que aceita o risco do ateísmo, que é preciso correr, mas superar, preço a
pagar por sua maioridade.

IV – A RELAÇÃO ÉTICA COMO RELAÇÃO RELIGIOSA.

Como, então, ao mesmo tempo ciumento de sua independência mas sedento de


Deus, o judaísmo concebe o humano? Como integrará a exigência de uma liberdade quase
vertiginosa com seu desejo de transcendência? Sentindo a presença de Deus através da
relação com o homem. A relação ética aparecerá para o judaísmo como relação
5

excepcional: nela, o contato com um ser exterior, ao invés de comprometer a soberania


humana, a institui e a investe.
Contrariamente à filosofia que faz de si mesmo a entrada no reino do absoluto e que
enuncia, segundo Plotino, que “a alma não irá em direção à outra coisa que si, mas em
direção a si” e, “que ela não será portanto em nada além de si, mas em si mesmo” 3, o
judaísmo nos ensina uma transcendência real, uma relação com Aquele que a alma não
pode conter e sem O Qual ela não pode, de nenhum modo, apoiar-se em si mesma.
Sozinho, o eu se encontra num estado de despedaçamento e desequilíbrio. Quer dizer: ele se
encontra como aquele que já invadiu outrem, como arbitrário e violento. A consciência de
si não é uma inofensiva constatação que um “eu” faz de seu ser, ela é inseparável da
consciência da justiça e da injustiça. A consciência de minha injustiça natural, do dano
causado a outrem, por minha estrutura de Ego, é contemporânea de minha consciência de
homem. Ambas coincidem. Para um comentador do século II menos preocupado com o que
o homem pode esperar do que com o que ele deve fazer, o início do Gênesis é um objeto de
espanto: porque começa a Revelação com a narrativa da Criação quando o que só importa
ao homem são os mandamentos de Deus? Este espanto é ainda o do comentador do século
XI, Rachi, através de quem, há mil anos, os judeus do mundo inteiro penetram na Bíblia. E
a resposta antiga que Rachi nos propõe consiste em sustentar que importa ao homem – para
possuir a terra Prometida – saber que Deus criou a terra. Pois sem este saber, ele só a
possuirá por usurpação. Nenhum direito pode, portanto decorrer do simples fato de que a
pessoa precisa de espaço vital. A consciência de meu “eu” não me revela nenhum direito.
Minha liberdade se descobre arbitrária. Ela apela para uma investidura. O exercício
“normal” de meu “eu” que transforma em “meu” tudo que ele pode atingir e tocar, é posto
em questão. Possuir é sempre receber. A terra prometida não será nunca na Bíblia uma
“propriedade”, no sentido romano do termo, e o camponês, no tempo das primícias, não
pensará nos elos eternos que o prendem ao solo, mas na progênie de Aram, seu ancestral
que foi um errante.
Não nos importa invocar aqui o estatuto legal, tão singular, da propriedade
territorial do Antigo Testamento, mas a consciência de si que aí preside, consciência na
qual a descoberta de seus poderes não se separa da descoberta de ilegitimidade destes. A
consciência de si se surpreende inevitavelmente no seio de uma consciência moral. Esta não
se acrescenta àquela, mas é seu modo elementar. Ser para si, já é saber minha falta
cometida em relação a outrem. Mas o fato de que eu não me interrogue acerca do direito do
outro indica paradoxalmente que outrem não é uma reedição do eu; em sua qualidade de
outrem, ele se situa em uma dimensão de altura, do ideal, do divino e, por minha relação
com outrem, estou em relação com Deus.
A relação moral reúne, portanto, ao mesmo tempo a consciência de si e a
consciência de Deus. A ética não é o corolário da visão de Deus, ela é esta visão mesma. A
ética é uma ótica. De modo que tudo que sei de Deus e tudo que posso ouvir de sua palavra
e dizer-Lhe razoavelmente, deve encontrar uma expressão ética. Na Arca Santa onde
Moises escuta a voz de Deus, não há nada além das tábuas da Lei. O conhecimento de Deus
que podemos ter e que se enuncia, segundo Maimônides, sob a forma de atributos
negativos, recebe um sentido positivo a partir da moral: “Deus é misericordioso” significa:
“Seja misericordioso como ele.” Os atributos de Deus são dados não no indicativo, mas no
imperativo. O conhecimento de Deus nos vem como um mandamento, como uma Mitzvá.

3
Plotino. Ennéades, VI, 9-11, citado por Gandillac: La Sagesse de Plotin
6

Conhecer Deus é saber o que se deve fazer. Aqui, a educação – a obediência à outra
vontade – é a instrução suprema: o conhecimento desta Vontade mesma que é a base de
toda realidade. Na relação ética, outrem se apresenta ao mesmo tempo como absolutamente
outro, mas esta alteridade radical em relação a mim não destrói, não nega minha liberdade,
como pensam os filósofos. A relação ética é anterior à oposição de liberdades, à guerra que,
para Hegel, inaugura a história. O rosto de meu próximo tem uma alteridade que não é
alérgica, ela abre para o além. O Deus do céu é accessível sem nada perder de sua
transcendência, mas sem negar a liberdade do crente. Esta esfera intermediária existe. O
Talmud o diz, nesta linguagem aparentemente infantil que, aos olhos de tantos rápidos
leitores, lhe vale a reputação de aliar complicações inextricáveis a uma ingenuidade que
desarma: “Nunca Deus desceu no Sinai, nunca Moises subiu ao céu. Mas Deus dobrou o
céu como um cobertor, recobriu o Sinai e se encontrou assim em terra sem nunca ter
abandonado o céu.” Há aqui uma dessacralização do sagrado.
A justiça feita ao outro, meu próximo, me dá de Deus uma proximidade
inultrapassável. Ela é tão íntima quanto a oração e a liturgia que sem a justiça nada são.
Deus nada pode receber de mãos que cometeram violência. O piedoso é o justo. Justiça é o
termo que o judaísmo prefere ao invés de termos mais evocativos de sentimento. Pois o
amor ele próprio pede justiça e minha relação com o próximo não saberia ficar exterior às
relações que este próximo mantém com terceiros. O terceiro é também meu próximo.
A lei ritual do judaísmo constitui a severa disciplina que tende para esta justiça.
Somente pode reconhecer o rosto do outro, aquele que soube impor uma regra severa a sua
própria natureza. Em nenhum momento, ela toma o valor de um sacramento. Em um
notável trecho talmúdico, Rabbi Yohanan Zakaï, interrogado por seus alunos acerca das
razões dos ritos relativos à água de purificação de Números, se refugia na autoridade do
mandamento divino. Mas ele acrescenta que, sem este mandamento, “nem o contato do
morto torna impuro, nem a água de purificação purifica.” Nenhum poder intrínseco é
outorgado ao gesto ritual. Mas, sem ele, a alma não poderia se elevar a Deus.
A via que leva a Deus, leva portanto ipso facto – e não além disso – ao homem; e a
via que leva ao homem nos reconduz à disciplina ritual, à educação de si. Sua grandeza está
em sua regularidade cotidiana. Eis uma passagem na qual três opiniões são enunciadas; a
segunda indica a maneira pela qual a primeira é verdadeira e a terceira indica as condições
práticas da segunda. Ben Zomma disse: “Encontrei um versículo que contém toda a Torá:
Escuta Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é Um.” Ben Nanas disse: “Encontrei um
versículo que contém toda a Torá: amarás ao próximo como a ti mesmo.” Ben Pazi disse:
“Encontrei um versículo que contém toda a Torá: sacrificarás um cordeiro de manhã e o
outro ao crepúsculo.” E Rabbi, seu mestre, levantou-se e decidiu; “A lei é segundo Ben
Pazi.”
A lei é esforço. A fidelidade cotidiana ao gesto ritual exige uma coragem, mais
calma, mais nobre e maior que a do guerreiro. É conhecida a evocação profética de Israel
por Balaam. “Vejam! Este povo se levanta como um leopardo, ele se ergue como um leão.”
O talmudista não hesita em relacionar este despertar real com a potência soberana de um
povo capaz do rito cotidiano. Estremecimento do leopardo que se levanta, mas que não se
levanta sob um jugo. A lei para um judeu nunca é um jugo. Ela comporta sua alegria
própria da qual se nutrem uma vida religiosa e toda a mística judaica.
Nos Salmos, nos quais se conciliam tão intimamente os apelos os mais nostálgicos à
presença paternal de Deus, a plenitude desta presença consoladora e salvadora para quem
“nada falta”, e a glorificação de Sua Realeza, de Sua Jurisdição, de Sua Legislação e de Sua
7

Lei, os judeus não se sentem aquém dos horizontes abertos pelos Evangelhos. O acordo
entre tanta bondade e tanta legalidade constitui a nota original do judaísmo. O Talmud
avalia com lucidez a altura e a aparente oposição, mas também a real interdependência dos
princípios que o produzem. Não podemos aqui analisar a ordem ontológica que o torna
possível. Mas nada parece mais simples nem mais autêntico que sua confusão no mesmo
versículo. O salmista associa de modo impressionante sua aflição humana mais profunda
com um chamado ao mandamento divino, à Mitzvá, à lei. “Sou estrangeiro nesta terra, não
me esconda seus mandamentos”; como ele une o élan íntimo da alma sedenta de Deus à
visão severa da justiça divina: “Minha alma se despedaça de desejo por teus julgamentos a
cada instante.” (CXIX, 19,20)4.

V - A RESPONSABILIDADE

Que a relação com o divino atravesse a relação com os homens e coincida com a
justiça social, eis todo o espírito da Bíblia judaica. Moises e os profetas não se preocupam
com a imortalidade da alma, mas se preocupam com o pobre, a viúva, o órfão e o
estrangeiro. A relação com o homem na qual se realiza o contato com o divino não é uma
espécie de amizade espiritual, mas é a que se manifesta, se experimenta e se realiza em
uma economia justa e da qual todo homem é responsável. “Porque vosso Deus, que é o
Deus dos pobres, não alimenta os pobres?” pergunta um romano a Rabbi Aquiba. “Para que
possamos escapar da danação”, responde Rabbi Aquiba. E não se pode afirmar mais
fortemente a impossibilidade na qual se acha Deus de assumir os deveres e as
responsabilidades do homem.
A responsabilidade pessoal do homem em relação ao homem é tal que Deus não a
pode anular. Eis no comentário rabínico o diálogo entre Deus e Caim: “Acaso o guarda de
meu irmão sou eu?”, a questão não é mera insolência. Ela vem daquele que ainda não sentiu
a solidariedade humana e que pensa (como muitos filósofos modernos) que cada um existe
por si e que tudo é permitido. Mas Deus revela ao assassino que seu crime perverteu a
ordem natural. A Bíblia põe então na boca de Caim uma palavra de submissão: “É tão
grande o meu delito de não poder se suportar?”. Os rabinos fingem ler nesta resposta uma
nova pergunta: “É tão grande o meu delito de não poder se suportar? É pesado demais para
o Criador que suporta a terra e os céus?”. A sabedoria judaica ensina que Aquele que criou
e que suporta todo o universo, não pode suportar, não pode perdoar o crime que o homem
comete contra o homem. “É possível? Não apagou o Eterno o pecado do bezerro de ouro?”
E responde o mestre: a falta cometida em relação a Deus diz respeito ao perdão divino, a
falta que ofende o homem não diz respeito a Deus. O texto enuncia assim o valor e a plena
autonomia do ofendido humano, assim como afirma a responsabilidade na qual incorre
aquele que toca no homem. O mal não é um princípio místico que se pode apagar por um
rito, ele é uma ofensa que o homem faz ao homem. Ninguém, nem mesmo Deus, pode se
substituir à vítima. O mundo no qual o perdão é todo-poderoso torna-se inumano.
Esta doutrina severa não leva à inumanidade do desespero. Deus é paciente, quer
dizer: deixa um tempo, espera o retorno do homem, sua separação ou sua regeneração. O
judaísmo acredita nesta regeneração do homem sem a intervenção de fatores extra-

4
Tradução de André Chouraqui
8

humanos, além da consciência do Bem e a Lei. “Tudo está nas mãos de Deus, exceto o
temor mesmo a Deus.” As possibilidades do esforço humano são ilimitadas. Há, enfim, o
socorro de uma sociedade justa da qual pode se beneficiar o injusto.
Mas, neste socorro, nada se assemelha à comunhão dos santos. A transitividade do
ato redentor é toda educativa. São conhecidas as passagens de Ezequiel nas quais a
responsabilidade do homem se estende aos atos de seu próximo. Entre homens, cada um
responde pelas faltas de outrem. E mesmo pelo justo que corre o risco de se corromper, nós
respondemos. Não se pode levar mais longe a idéia de solidariedade.
Assim a aspiração a uma sociedade justa é no judaísmo, para além de qualquer
piedade individual, uma ação eminentemente religiosa. Um texto do Tratado Taanith
enaltece esta salvação do injusto pelo justo. A constituição de uma sociedade justa –
daquela que “recebe a chuva” – é comparada aos instantes que marcam, em toda teologia, o
ápice da vida religiosa. Rabbi Abhou disse: “O dia da chuva é maior que a ressurreição dos
mortos, pois a ressurreição dos mortos só diz respeito aos justos e a chuva diz respeito aos
justos e aos injustos.” Rabbi Jehouda disse: “O dia da chuva é tão grande quanto o dia em
que a Torá foi entregue.” Rabbi Hanna bar Hanina disse: “O dia da chuva é tão grande
quanto o dia em quem a terra e o céu foram criados”. Subordinação de todas as relações
possíveis entre Deus e os homens: redenção, revelação, criação – à instituição de uma
sociedade na qual a justiça, ao invés de permanecer uma aspiração da piedade individual, é
suficientemente forte para se estender a todos e para se realizar.
É talvez este estado de espírito que convém chamar de messianismo judaico.

VI - O UNIVERSALISMO

O papel desempenhado pela ética na relação religiosa permite compreender o


sentido do universalismo judeu.
Uma verdade é universal quando ela vale para todo ser racional. Uma religião é
universal quando é aberta a todos. E nesse sentido, o judaísmo que liga o divino ao moral,
se quis sempre universal. Mas a revelação da moralidade, que descobre uma sociedade
humana, descobre também o lugar da eleição que, nesta sociedade humana universal, cabe
àquele que recebe esta revelação. Eleição que não é feita de privilégios mas de
responsabilidades. Nobreza que não resulta de um direito de autor ou de primogenitura
conferido em virtude de um capricho divino, mas que resulta da posição de todo “eu”
humano. Cada um, como “eu” , está à parte [separado] de todos os outros a quem é devido
o dever moral. A intuição fundamental da moralidade consiste talvez em perceber que eu
não sou igual ao outro; e isto, neste sentido bem estrito: eu me vejo obrigado relativamente
ao outro e por conseguinte sou infinitamente mais exigente comigo mesmo do que com os
outros. “Quanto mais justo sou, mais severamente sou julgado”, diz um texto talmúdico.
Desde logo, não existe consciência moral que não seja consciência desta posição
excepcional, consciência da eleição. A reciprocidade é uma estrutura fundada sobre uma
desigualdade original. Para que a igualdade possa fazer sua entrada no mundo, é preciso
que os seres possam exigir de si mais do que exigem dos outros, que eles sintam
responsabilidades das quais depende o destino da humanidade e que eles se coloquem,
nesse sentido, à parte [separados] da humanidade. Esta “posição à parte [separada] das
nações” – da qual fala o Pentateuco – está realizada no conceito de Israel e de seu
particularismo. Trata-se de um particularismo que condiciona a universalidade. E trata-se
mais de uma categoria moral do que do fato histórico de Israel, mesmo se o Israel histórico
9

foi na realidade fiel ao conceito de Israel e sentiu moralmente responsabilidades e


obrigações que ele não exige de ninguém, mas que sustentam o mundo.
De acordo com um apólogo do Talmud, é somente no lugar em que se celebra o
culto de uma sociedade eleita que se pode salvar uma humanidade. A destruição do Templo
comprometeu a economia do mundo. E Rabbi Meir – um dos principais doutores da Lei –
pôde dizer que um pagão que conhece a Torá é o igual do Grande Sacerdote. A tal ponto a
noção de Israel se deixa separar, no Talmud, de toda noção histórica, nacional, local e
racial.

VII - CIDADÃOS DE ESTADOS MODERNOS.

A primeira relação do homem com o ser passa pela sua relação com o homem.
O homem judeu descobre o homem antes de descobrir as paisagens e as cidades.
Estar em casa para ele é estar numa sociedade, antes de estar numa casa. Ele compreende o
mundo a partir de outrem, mais do que o conjunto do ser em função da terra. Ele é, num
certo sentido, exilado sobre esta terra, como diz o salmista, e ele reencontra um sentido para
a terra a partir de uma sociedade humana. Não se trata de uma análise da alma judaica
contemporânea, mas do ensinamento literal da Bíblia onde a terra não é possuída
individualmente, onde ela pertence a Deus. O homem começa no deserto onde mora em
cabanas, onde adora Deus num templo que se transporta.
Desta existência livre com relação às paisagens e arquiteturas, com relação a todas
estas coisas pesadas e sedentárias que se é tentado a preferir ao homem, o judaísmo lembra,
no curso de toda sua história, que ela se enraíza nos campos ou nas cidades. A festa das
“cabanas” é a forma litúrgica desta memória, e o profeta Zacharias anuncia, para os tempos
messiânicos, a festa das cabanas como festa de todas as nações. A liberdade em relação às
formas sedentárias de existência, é, talvez, o modo humano de estar no mundo. Para o
judaísmo, o mundo se torna inteligível diante de um rosto humano e não, como para um
grande filósofo contemporâneo que resume um aspecto importante do Ocidente por casas,
templos e pontes.
Esta liberdade não tem nada de doentio, nada de crispado e nada de atormentado.
Ela põe em segundo plano os valores de enraizamento e institui outras formas de fidelidade
e responsabilidade. O homem, afinal de contas, não é uma árvore e a humanidade não é
uma floresta. Formas mais humanas pois elas supõem engajamento consciente; mais livres,
pois elas permitem entrever horizontes mais vastos que os da cidade natal, e uma sociedade
humana.
Estes elos conscientemente desejados, estes elos livremente consentidos – com tudo
que as liberdades comportam de tradições – não seriam aqueles que constituem as nações
modernas, definidas pela decisão de trabalhar em comum muito mais do que pelas vozes
obscuras da hereditariedade? Estes elos consentidos seriam menos sólidos que o
enraizamento? Em uma circunstância, certamente: quando os agrupamentos por eles
formados cessam de corresponder aos valores morais em nome dos quais eles tinham se
formado. Mas não se deveria conceder ao homem o direito de julgar, em nome da
consciência moral, a história à qual de certo modo ele pertence, ao invés de deixar para a
história anônima este direito de julgamento? Uma liberdade em relação à história em nome
da moral, a justiça acima da cultura (terra ancestral, arquitetura, artes) – tais são, no final
das contas, os termos que contam o modo pelo qual o judeu encontrou Deus.
10

O velho Hillel, o grande doutor da Lei do século primeiro A.C., vendo um crânio
sendo levado por uma corrente de água, exclamou: “Fostes morto por ter matado, mas os
que te mataram, serão mortos.” Se os crimes da história não castigam sempre os inocentes,
não são por isto julgamentos. Incorretamente, concebemos a cadeia de violências que
preencheram o tempo como veredictos da história e a história ela própria como magistrado.
Hillel sabia que a história não julga e que, abandonada à própria sorte, ela repercute os
crimes. Que nada – nenhum evento histórico – pode julgar uma consciência. É o que
sustenta uma linguagem teológica, apreciando toda a maravilha de uma tal liberdade,
dizendo que somente Deus julga.

Você também pode gostar