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Jesus - Terapeuta e Cabalista - Introdução

Nihil Obstat

Como a vida do mítico chinês Pan-Ku; do mesmo modo que a vida descrita
pela lenda árabe transmitida pelo Ikhwan al-Safá de Rasail; e também
semelhante à do hindu Prakriti que se separa para ser; assim a vida de
Jesus é dispersada pela manifestação para em seguida ser reunificada pelo
Espírito.

Como a obra de Kung-Tsé ou Confúcio, que quis ser saboroso melão na


boca de seus discípulos, de igual modo a obra de Jesus ansiou ser pão e
vinho para seus contemporâneos.
Como filho do Céu ou herói mítico, Jesus sonhou com a reintegração a partir
de uma vigília desmembrada, buscou o dom indivisível através do sacrifício
simbólico.
Não foi o único no seio de Israel, seu povo, nem o último dos homens a
experimentar a filiação sagrada.
Na verdade, somos todos filhos de Deus, como o atesta o Salmo 82,6: "Eu
disse: Sois deuses; sois todos filhos do Altíssimo", versículo que o próprio
Jesus cita em João 10,34: "Não está escrito na vossa Lei: `Eu disse: Vós
sois deuses'? Se a Lei chama deuses àqueles a quem a palavra de Deus foi
dirigida (e a Escritura não pode ser desprezada), a mim, a quem o Pai
santificou e enviou ao mundo, vós dizeis: 'Tu blasfemas, por eu ter dito Sou
o Filho de Deus'?"

Suspeito que também esses mestres de épocas e lugares diferentes têm o


direito de se proclamarem filhos do céu, criaturas do Altíssimo.
A teoria do unigênito, do único, transformou Jesus num semideus à parte,
as mais das vezes retirando-o de seu contexto e, o que é pior, desvirtuando
os textos que ainda conservam suas palavras.
Porém, por favor da sorte — graças ao descobrimento dos Manuscritos do
Mar Morto e suas referências ao misterioso Mestre de Justiça; aos tesouros
do Cristianismo gnóstico desenterrados em Nag Hammadi, Egito; apelando
a Filou de Alexandria e a Flávio Josefo; reconstruindo imaginariamente a
vida dos terapeutas e dos essênios, e sobretudo lembrando o fato
sociológico mais alucinante deste século: o retorno dos filhos de Israel a sua
terra natal, fato que propiciou a união do povo, terra e livro — tudo parece
reintegrar-se à sua fonte, retornar à sua raiz.

Quase todos os eruditos e acadêmicos, orientalistas e teólogos reconhecem


hoje que o áspero idioma em que Jesus se expressava foi o aramaico,
língua intimamente aparentada com hebraico clássico.
Assim, Claude Tresmontant esclarece em seu livro Le Christ Hébreu (Paris,
1983) que "Jesus falava aramaico quando se dirigia aos homens, mulheres
e crianças da Judéia, Galiléia e Samaria, mas falava hebraico quando se
dirigia aos sábios, aos teólogos e aos escribas, que podiam ler as
Escrituras".
Como cada língua supõe uma determinada percepção da realidade, o que
ocorre é que cada ontologia é lingüística.
Só um Jesus filtrado pelo tamis helenístico poderia chegar a dizer,
depreciativamente, vossa Lei.
Por acaso não era também sua lei?
Somente um Jesus deformado pelas lendas e fantasias infantis poderia
aparecer como um inimigo do seu povo, povo esse que amou e a quem se
consagrou, como mais um dentre os profetas.
Sua condenação, lembremos, foi manipulada pelos romanos, uma gentalha
infame de cujo despotismo ainda se disse pouco.
Seus discípulos foram judeus, e judeus seus pais, como os meus e os pais
dos meus.
O temor cristão frente à herança judia, culpado de tantos e tão
irremediáveis males, provém do âmbito imperial romano: os judeus foram o
único povo da Antiguidade cuja feroz resistência esteve a ponto de colocar
os romanos "fora dos eixos".

Hoje, agora, depois das obras de Joseph Klausner, Jesús de Nazaret (edição
espanhola de 1971), de David Flusser, Jesús en sus Palabras y en su
Tiempo (versão espanhola de 1975) e do excelente livro de Geza Vermes,
Jesús el Judio (edição espanhola de 1977), estudiosos e peritos
redescobrem o ambiente em que cresceu, ensinou e morreu aquele que foi,
para muitos, o maior profeta que Israel gerou em seu crisol.

A conhecida frase de Martin Buber, "Desde muito jovem intuí que Jesus era
meu grande irmão, e estou mais certo que nunca de que merece um lugar
de honra na história religiosa de Israel e também de que esse
lugar não pode ser classificado de acordo com nenhuma das categorias
normais", revela tanto o interesse de certos círculos ecumênicos como a
ambigüidade que, de um e outro lado da Aliança, obscurece o entendimento
de judeus e cristãos em torno da figura de Jesus.

"Ao que parece — escreve Flusser em seu livro —, os atos e palavras de


Jesus foram muito rapidamente recompilados em hebraico, e a experiência
me ensinou que, com muita probabilidade, tais documentos foram
traduzidos literalmente para o grego pouco depois; do contrário, seria difícil
explicar como em nossos evangelhos sinóticos se pôde, em geral, conservar
o sentido das ações e palavras de Jesus, a despeito dos muitos
acontecimentos históricos que se sucederam no entretempo".

Um ano após sua crucificação, seus discípulos já haviam formado várias


congregações cujo centro se localizava em Jerusalém e nas quais se falava
aramaico e se rezava em hebraico.
Pinchas Lapide, em sua obra Los Três Últimos Papas y los Judios (edição
espanhola de 1969), comenta que essa comunidade era conhecida pelo
"nome de Nesorayya — nazarenos —, e apesar de praticarem o batismo
como rito simbólico de purificação e fazerem suas refeições em comum,
coisas que, por outro lado, eram também próprias de outras seitas judias,
nada havia de irregular em sua forma de vida".
Uma comunidade nazarena significa: consagrada aos mistérios da luz
interior e ao desenvolvimento espiritual; com voto temporário ou perpétuo
de castidade e, como se verá neste estudo, com cabelos longos e vestes
brancas.
Sabe-se que quando Paulo passou a fazer parte dela, os valores e idéias da
cultura helênica permearam a cultura judia como o haviam feito anos antes
em Alexandria.
Desse confronto, mas também dessa síntese sublime entre o hebraico e o
grego, surgiu o Cristianismo.

"Quando se estudam as duas línguas” — comenta Tresmontant —, “o


hebraico e o grego, uma semítica e outra indo-européia, fica-se chocado
pela diversidade de suas características. Os modos de pensar não são
iguais. Por exemplo, o tempo não é o mesmo em hebraico e em grego.
Em grego se pensa o passado, o presente e o futuro. Em hebraico se pensa
no que está acabado, terminado, seja no passado, no presente e no futuro,
e no que está em processo de fazer-se no passado, presente ou futuro, e
que continua fazendo-se e ainda permanece".
Através do mundo grego, o Ocidente conheceu a razão e seus limites.
Através do mundo hebreu, a paixão e o ilimitado.
Lembremos uma vez mais que nunca se fala da "razão" de Jesus, mas sim
de sua "paixão".

De modo semelhante, este não é um estudo razoável, mas sim apaixonado.


Se analisei e sopesei os ditos e parábolas do Jesus evangélico e tradicional,
e também os conselhos e admoestações do Jesus gnóstico contra o
matizado quebra-luz da Cabala ou tradição oral hebréia, foi porque acreditei
que, após anos de estudos de uma e outra fontes, era revelador o conjunto
de coincidências significativas, maravilhoso o eco vivo e atual de sua
linguagem assim desvelada.

Por exemplo, se lermos em hebraico o versículo de João 13,20: "Quem


recebe aquele que eu enviar, recebe-me; e o que me recebe, recebe aquele
que me enviou", descobriremos que quem recebe é chamado ha-mekabel e
acharemos de imediato o primeiro indício cabalístico.
Com efeito, lendo, por aliteração, mi-Kabalá, da-Cabala, palavra escrita
com letras idênticas, chegaremos a compreender o que os discípulos e seus
mestres recebiam e davam entre si.

Uma tradição antiga como o mundo, que possivelmente remonta ao Egito e


da qual Israel conserva, ainda hoje, a memória intacta; uma tradição
espiritual que se oculta no Cristianismo e se insinua em símbolos e
imagens, entre seus místicos e santos, e que no Judaísmo é voz, vibração
invisível.
Por causa dos gentios que entravam no Novo Pacto (Jeremias 31,31), a
iconografia foi pouco a pouco substituindo a tradição oral.
Foram postos de lado o aparato dietético e a circuncisão.
O olho foi se distanciando cada vez mais do ouvido, e a cabeça de si
mesma.
Assim como o Judaísmo quis apagar Jesus de sua memória, imediatamente
a Igreja primitiva apagou e vituperou os doutores judeus, os rabinos.
"Em lugar do Judaísmo” — escreveu o sábio alemão Reuther — “que tinha a
Tora sem o Messias, o Cristianismo introduz o Messias sem a Tora".

Diante de um mundo agnóstico submerso na vulgaridade, na degradação


constante de sua própria tradição metafísica, e constatando que o Messias
não cumpriu, socialmente, a promessa de paz, segurança e amor, para a
qual devia vir, ou que a cumpriu só em parte e a cumpre ainda para quem
considera Jesus sob esse ângulo; ao observar que muitos falam dele e
poucos o ouvem de verdade, com devoção imparcial decidi inclinar-me
sobre os textos que registram sua estelar passagem, ultrapassando as
simples categorias de judeu ou gentio, crente ou não-crente; abandonando
toda pretensão escolástica e também todo desejo apologético, com o único
fim de poder ouvir, uma vez mais, por entre o concerto de vozes legadas
pela Antiguidade, aquela que pode ter sido a de Jesus Nazareno, cabalista e
terapeuta.

Creio ter sentido em mais de uma ocasião o sussurro mágico de suas


palavras, o poder e a graça de suas idéias, as elipses o hipérboles de seu
idioma.
Oxalá se haja cumprido, pelo menos em parte, aquilo que diz o Evangelho
de Tomé: "Quem beber de minha boca se tornará como eu, e eu mesmo me
tornarei essa pessoa; e as coisas que estão ocultas lhe serão reveladas".
É meu desejo que, pelo caminho de Jesus, os cristãos redescubram os
tesouros da Torá e, estudando a vida e a obra do Mestre, os judeus possam
nele ver o grande e nobre irmão que Buber elogiou, porque na palavra
"irmão", „aj‟, está já impressa a metade de Sua "Unidade", „ejad‟.
Para que se cumpra o que foi dito por Zacarias 14,9: "Naquele dia o Criador
será um, e um o seu nome".

Por: Mario Satz.

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