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Os Essênios e os Manuscritos do Mar Morto. Kerigma, Petrópolis, n. 5, p.

4-7,
1996.
Em fins de 1946 três jovens beduínos da tribo dos ta’amireh, que pastoreavam
seus rebanhos em um oásis próximo ao Mar Morto, na Palestina, descobriram
acidentalmente alguns manuscritos antigos dentro de uma gruta. Foi apenas o começo
da mais importante descoberta de manuscritos deste século [Obs.: século XX].
Divulgada a notícia da descoberta de preciosos manuscritos bíblicos anteriores à
era cristã - quando os mais antigos textos do AT que possuíamos datam de 900 d.C. -,
seguiram-se, em meio a muitas controvérsias e dificuldades, a busca de novos
manuscritos nas muitas grutas da região e as escavações das ruínas de Qumran, situadas
aproximadamente a 1 km a noroeste do Mar Morto.
No total, cerca de mil documentos foram recuperados em 20 grutas no deserto de
Judá, entre os anos de 1946 e 1966. Destes, em 11 grutas próximas às ruínas de
Qumran, foram encontrados 11 manuscritos mais ou menos completos e milhares de
fragmentos de outros cerca de 600 a 800 manuscritos em pergaminho e papiro. Escritos
em hebraico, aramaico e grego, cerca de 1/3 dos manuscritos são cópias de livros
bíblicos, sendo o restante livros apócrifos, trabalhos exegéticos e escritos da
comunidade que viveu em Qumran de 135 a.C. a 68 d.C. Acredita a maioria dos
estudiosos que esta comunidade era formada pelos essênios, grupo judaico radical que
saiu de Jerusalém por estar em conflito com o governo dos Macabeus.
Estes manuscritos não são importantes apenas porque através deles podemos
conhecer melhor os essênios, mas também porque podemos conhecer melhor a
complexidade do judaísmo desta época e os ambientes político e religioso onde nasceu
o cristianismo. Questões como: Era João Batista um essênio? Teria Jesus entrado em
contato com os essênios? são, a partir da descoberta dos manuscritos, frequentemente
colocadas.
Hoje existe enorme bibliografia sobre os manuscritos do Mar Morto. E, passados
quase 50 anos da descoberta, a maioria dos fragmentos ainda não pôde ser decifrada e
publicada [Obs.: em novembro de 2001 a publicação dos Manuscritos do Mar Morto foi
concluída]. A equipe de pesquisadores, constituída originariamente somente por
especialistas cristãos, já foi ampliada com a inclusão de judeus, talvez os maiores
interessados na compreensão destes textos.
Mas isso sempre gerou muita polêmica, com sugestões da mídia de ocultamento
de prodigiosos segredos acerca do judaísmo e do cristianismo, da não originalidade do
cristianismo - cujas ideias já estariam todas nos manuscritos dos essênios - da
interferência de autoridades eclesiásticas que tentariam evitar a sua publicação e coisas
do gênero.
A verdade é uma só: há dificuldades técnicas enormes para a leitura de cerca de
80 mil pequenos fragmentos muito danificados e um certo ciúme de quem está
encarregado da pesquisa, que sempre os considerou como os “nossos” manuscritos. É
dentro desta lógica que hoje há um debate intenso em torno dos manuscritos do Mar
Morto, gerando publicações em grande quantidade.
É preciso assinalar que em nenhum dos manuscritos até agora publicados
aparece a palavra “essênio”. Este termo vem, provavelmente, do hebraico hassidim (=
os piedosos), em aramaico hassayya, em grego essaioi, daí “essênios”.
Embora a quase totalidade dos estudiosos identifique a comunidade de Qumran
com os essênios, são, às vezes, sugeridas outras possibilidades. Há a hipótese caraíta,
judeu-cristã, zelota, saduceia e farisaica.
O testemunho dos autores antigos sobre os essênios é importante para a
identificação da comunidade de Qumran. Localização geográfica, valores e modo de
vida dos essênios são descritos pelos judeus Flávio Josefo e Fílon de Alexandria e pelos
romanos Plínio, o Velho e Solino.
Fílon de Alexandria, por exemplo, nos diz que “a Síria Palestina, que ocupa uma
parte importante da populosa nação dos judeus, não é, também ela, estéril em virtude.
Alguns deles, que somam mais de quatro mil, são denominados essênios”. Este número
é confirmado por Flávio Josefo: “São mais de quatro mil homens a se comportarem
dessa maneira”.
Tanto Flávio Josefo quanto Fílon de Alexandria noticiam a opção celibatária e a
vida comunitária dos essênios, o que os manuscritos de Qumran confirmam, pelo menos
para uma parte da organização. É que havia essênios que viviam nas cidades e aldeias
da Palestina, e estes não eram celibatários, como os de Qumran.
Os líderes desta comunidade eram sacerdotes sadoquitas. Os assideus (= os
piedosos) lutavam ao lado dos Macabeus contra a aristocracia filo-helênica a partir de
167 a.C. Mas, quando estes, que não eram sadoquitas, se apossaram indevidamente do
sumo sacerdócio, rompendo uma tradição milenar, um sacerdote sadoquita do Templo
de Jerusalém, conhecido nos manuscritos apenas como o Mestre da Justiça (Môreh
hasedeq) rompeu com os Macabeus e liderou um grupo de sacerdotes e assideus que se
afastou de Jerusalém. O enquadramento do Mestre da Justiça é importante para se
reconstruir a história da comunidade, pois ele é apresentado como a figura mais
importante entre os essênios e deve ter escrito a famosa Regra da Comunidade que
orienta a vida do grupo.
O sistema de admissão na comunidade era bastante rigoroso. Temos as
informações da Regra da Comunidade e de Flávio Josefo sobre o assunto. O candidato,
que devia ser israelita, passava inicialmente por um rigoroso exame feito pelo líder da
comunidade “quanto a seu entendimento e a seus atos”. Se fosse considerado apto, ele
era instruído nas regras da comunidade e passava a viver como um deles durante um
ano, mas fora da comunidade.
Após esse ano, caso fosse aprovado pela assembleia, o candidato ingressava na
comunidade, mas durante um ano inteiro não participava de suas refeições comuns nem
da comunhão de bens. Era um tempo de aprendizado, certamente guiado pelo
“instrutor”, que era o encarregado da formação espiritual.
Ao término desse segundo ano, iniciava o candidato um terceiro ano no qual
entregava seus bens ao tesoureiro da congregação e continuava sua formação, mas ainda
sem participação integral. Só no fim desses três anos, se aceito pela assembleia, o
candidato passava a participar integralmente da comunidade, com direito às purificações
rituais, banquete, voz e voto nas assembleias e comunhão de bens.
O ideal dessa comunidade era o de caminhar “ao encontro de Deus de todo o
coração e alma”; fazer “o que é bom e certo conforme o que Ele ordenou por intermédio
de Moisés e seus servos os profetas”, diz a Regra da Comunidade.
Segundo os arqueólogos, viviam em Qumran entre 150 e 200 pessoas. Em dois
séculos de existência da comunidade devem ter vivido ali cerca de 1200 pessoas. A
partir das ferramentas encontradas e das instalações escavadas, sabe-se que eles
cultivavam a terra, faziam cerâmica, curtiam peles e copiavam manuscritos.
Os essênios se viam como a comunidade da nova aliança, como o resto de Israel,
os santos que permanecem fiéis a Deus, certamente inspirados em Jr 31,31-34, que
propõe uma nova aliança, porque o projeto original faliu.
Um dos textos mais reveladores de sua visão de mundo é o trecho da Regra da
Comunidade que trata dos dois espíritos. Segundo o documento, Deus criou o homem
com dois espíritos, com os quais ele deve conviver: o espírito da verdade, que nasce de
uma fonte de luz e o espírito da falsidade, que nasce de uma fonte de trevas.
Os filhos da justiça, que andam pelos caminhos da luz, têm um espírito de
humildade, paciência, amor fraterno, bondade, compreensão, inteligência,
discernimento, zelo pelas leis, pureza etc. Os filhos da falsidade, que andam pelos
caminhos das trevas, têm um espírito de ganância, negligência, maldade, arrogância,
orgulho, hipocrisia, crueldade, luxúria, insolência, engano e assim por diante.
Para os filhos da justiça o julgamento divino será de saúde, vida longa,
abundância, bênçãos, alegria, enquanto que para os filhos da falsidade será de flagelos,
maldição, tormentos e desgraça. Não é preciso dizer que, naturalmente, os essênios se
julgavam portadores de uma porção maior de verdade que de falsidade, exatamente o
contrário de seus inimigos, segundo seu julgamento.
Este dualismo teológico do texto sobre os dois espíritos oculta/revela o conflito
social que se vivia na Palestina da época, e do qual os essênios participavam como
atores extremamente ativos. Não é à toa que seu manual de guerra chama-se “Guerra
dos filhos da luz contra os filhos das trevas”. Como acreditavam estar vivendo os
momentos decisivos da História, os essênios elaboraram uma doutrina da guerra,
codificada nesta Regra da Guerra. Nesta guerra, os essênios vencerão os israelitas
desencaminhados da Lei e os estrangeiros que dominam o país, no caso, os romanos. Só
que eles foram totalmente destruídos pelos romanos em 68 d.C.
Para finalizar, é bom lembrarmos que as ideias apocalípticas, que tão fortemente
colorem a teologia essênia, pregam mesmo é a mudança da ordem social em vigor.
Segundo os padrões apocalípticos, esse mudança social tem alcance mundial.
Só que os essênios tinham consciência de que os indivíduos isolados jamais
poderiam desencadear a mudança social, daí a necessidade da ação comunitária; e de
que o homem só é ainda incompetente para tal revolução cósmica, donde a necessidade
das forças divinas. Os essênios tinham esperança de alcançar benefícios concretos dessa
mudança, por isso romperam com a ordem social dominante e se organizaram segundo
princípios alternativos.
A antiga solidariedade israelita baseada nas relações de parentesco tornou-se
inviável na sociedade helenizada que dominou a Palestina. Mas a solidariedade torna-se
independente e é racionalizada em normas éticas, cuja validade fica assegurada através
de um pacto rigoroso que insiste na construção de relações pessoais e recíprocas. Esse
era o projeto dos essênios.
Leia o texto e analise a contribuição desse achado arqueológico para o
Cristianismo.

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