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in a Forbidden World

1ª Edição Todos os direitos dessa Obra


reservados aos seus autores
End Of Eternity

Chega ao fim uma época de árduo e contínuo trabalho de


um grupo que sempre acreditou no que fez. Anos se passaram e a
cada nova conquista, a cada nova criação, o objetivo parecia ficar
mais e mais distante.
Durante esse período, diversas mudanças ocorreram,
amigos deixaram a jornada, outros uniram força, todos os que
ficaram se dedicaram de corpo e alma para o alcance do objetivo
comum.
Composições foram aperfeiçoadas com o passar do tempo
e quando tudo parecia estar pronto com nosso objetivo alcançado,
nós batemos de frente com a realidade e o que vimos não foi
agradável. Percebemos que não estávamos nem próximos do que
queríamos. Foi triste. Naquele dia uma batalha foi perdida, e a
ferida que ficou não foi profunda o suficiente para nos abater. Ela
apenas deixou uma cicatriz que nos mostrou que precisávamos
melhorar continuamente para que pudéssemos atingir nossas
metas.
Pouco depois um dos dois fundadores da banda nos deixou,
e deixou também uma dúvida. Devemos continuar?
Sim! Apesar da perda ter sido enormemente considerável,
pois além de fundador, ele era responsável por composições que
definiam a personalidade da banda. Acreditamos em nossos
objetivos e seguimos o caminho.
Mudanças foram feitas e o novo membro não era alguém
que iria se unir ao grupo, mas alguém que já estava caminhando
conosco no backstage, mas que a partir de então assumiria uma
nova posição. Estava agora a frente de todos nós.
A partir daí novas composições surgiram, novas idéias
uniram-se com antigas músicas, à antigas canções foram dados
arranjos enriquecedores e, apesar de mais cheio de obstáculos, o
caminho foi sendo seguido de maneira mais acelerada.
Passamos a estudar tudo que pudesse acrescentar algo de
bom à nossas composições, e as letras e harmonias começaram a
fazer mais sentido, ficando mais compreensíveis, pois unimos
complexidade com simplicidade.
Com a banda bem estruturada, o nosso principal inimigo
passou a ser o tempo. Tempo esse que não possuíamos mais como
antes, que demorou a passar, que pareceu interminável. Muito
tempo, pouco tempo, ele nos limitava de todas as formas.
Passamos a olhar nosso objetivo de perto, mas ele parecia
mais distante que nunca e isso nos desiludia de tal forma que
desistir de toda aquela história e criação passou pela cabeça de
todos nós por diversas vezes.
Mas contemplar tudo o que já havíamos feito nos dava
força para insistir no que acreditávamos, e foi o que fizemos.
Hoje finalmente consolidamos nossos objetivos não apenas
da maneira que imaginávamos que seria, a música, mas
expandimos nossa obra para a literatura mesclando duas puras
formas de arte de uma maneira que nos agrada imensamente, que
une o peso do Heavy Metal à bonança da leitura.
Seguimos o caminho mudando as notas, mas nunca
esquecendo a melodia.

Darlan Anderson
Agosto 2012
Capítulo I – Guardian

Hoje eu vi o último alvorecer. Como mágica, o Sol expulsava


toda a escuridão da Terra, cada canto em que ele tocava, ficava
cercado com o mais terno brilho jamais imaginado. Queria eu ter
esse poder, será que um dia eu abrandarei o medo que mora no
coração das pessoas e extinguirei o mal apenas com minha
presença… como o Sol?
Estava ele lá em frente à cidade em um dia de primavera,
um homem comum vindo de família nobre, que jurou lealdade ao
seu rei e tornou-se um guardião da cidade e desde então adotou
esse como sendo seu nome, Guardião.
Podia ouvir os tambores da batalha se aproximando ao
longe. Parecia uma canção tocada pelo horizonte, a fim de avisar o
que estava por vir. Não seria algo bom, aquela não era uma bela
música, sabia que ao anoitecer ele também contribuiria para a
melodia e não teria escolha, a guerra era o regente, e ele nada
poderia fazer.
Todos os homens da guarda estavam lá, prontos para
batalha que se aproximava lentamente naquele que não foi um dia
comum, um dia em que não se passaram apenas algumas horas,
passaram-se anos. Cada homem da guarda da cidade mergulhou
em lembranças de suas vidas, desde a infância até aquele
momento, cada um deles, menos Guardião. O futuro era o que ele
via, pois o passado já se fora. Estava lá para defender o futuro de
cada cidadão daquele local, cada mulher, criança e ancião dependia
dele. Lutaria com toda a coragem de sua alma, abraçaria a causa
com seu coração e brandiria a espada como o mestre da canção.
Ele sabia que iria ver o alvorecer novamente, acreditava e lutaria
por isso mesmo que custasse sua vida.
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Cada regimento possuía cerca de mil homens com
cavaleiros, arqueiros e guerreiros. Os inimigos possuíam catapultas,
não muitas, porém muito rápidas e precisas. A cidade contava com
uma muralha de dois metros de espessura e mais alta que a
maioria das copas das velhas árvores que a rodeavam, nela tinham
onze torres, cinco grandes e seis pequenas. Seria uma batalha
difícil, todos sabiam desde o início. Com chances igualitárias,
apenas as armas e armaduras não bastavam para fazer a diferença.
Foi então que Guardião percebeu uma enorme energia que corria
em seu corpo, a cada segundo essa força era mais intensa, era
como se seu falecido pai estivesse com ele. Seu mestre de armas,
antigo guardião da cidade, bravo e nobre guerreiro. Foi ele quem
lhe ensinou a não defender apenas o passado, mas o futuro.
Com as tropas inimigas já próximas, deu por si que não
contava mais com o Sol, e toda aquela calmaria que ele havia
espalhado pelo mundo se fora. Mostre-me pai, o caminho. Por
favor, mostre-me!
Ouviu-se o primeiro grito de dor, soube que aquele era o
momento, o refrão da tão tenebrosa música da morte. À medida
que as tropas a sua frente avançavam e caiam, ele foi se enchendo
da mesma energia que o consumira anteriormente, e não temeu a
morte. Ele jamais temia.
Deferiu então o primeiro golpe, certeiro! Separou o braço
do corpo do inimigo tão facilmente que estranhou a própria força e
antes mesmo de o braço cair no chão por inteiro, já havia
decepado-o com um golpe dado com tanta força que o fez ficar
sobre os joelhos. O sangue jorrou em seu elmo, mas não se
importou. Assim que se pôs de pé, percebeu um cavaleiro que
corria em sua direção com uma lança apontada precisamente no
seu pomo de adão. Esperou o momento certo e numa fração de
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segundo antes de ser atingido, desviou da lança e cravou a espada
no peito do enorme cavalo de guerra pardo. A queda arremessou o
cavaleiro longe e quebrou-lhe o pescoço. Mesmo assim Guardião
cravou a espada no coração do corpo daquele que um dia serviu as
tropas inimigas, e continuou lutando, lutando e lutando.
A batalha durou poucas horas. Quase todos que
participaram dela estavam mortos e o restante estava à beira da
morte certa. A cidade foi atingida por pedregulhos enormes que
destroçaram parte da muralha e muitas construções, abóbadas
jaziam no chão, grandes casas tiveram suas paredes destruídas, e
uma das pequenas torres da muralha desaparecera.
Olhou ao redor e só o que viu foi a morte, a batalha
terminara, porém a canção ainda soava naquela longa e sombria
noite. Nenhum homem permaneceu em pé, as notas daquela
canção não eram mais dadas por espadas e catapultas, no silêncio
da escuridão ouvia-se apenas o choro das crianças e os gritos das
mulheres desesperadas, eram esses os tristes acordes.
Enquanto amanhecia novamente naquele campo de
batalha ele refletiu. As folhas caídas crescem sobre o sangue no
campo de batalha enquanto o sol nasce fazendo brotar novas
virtudes. Sofrimento e dor me fizeram um guardião e foi em tempos
de paz que eu enchi a minha ira!
Heróis morreram naquele campo florido, sacrifícios foram
feitos para manter o sorriso no rosto de suas proles.

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Capítulo II – The Waltz of Dumb Mermaid

Passado algum tempo desde aquela que ficou conhecida


como a batalha das flores, com a cidade parcialmente recuperada e
voltando a normalidade, Guardião percebeu que poderia ser muito
mais poderoso do que era e apenas uma vontade o consumia:
Poder. Aquele lugar já não lhe pertencia mais, ali morava apenas
seu passado. Vivemos agora o futuro, meu dever foi cumprido. Irei
em busca do poder, tornar-me-ei tão poderoso quanto o Sol.
Na madrugada seguinte pegou seu odre de vinho quente e
um pouco d’água, selou um dos cavalos de guerra, agora sem
cavaleiros para montá-los, e partiu munido apenas de sua espada,
sua coragem e sua ganância. Cavalgou por três dias e três noites
sem destino. Na manhã do quarto dia seu vinho já havia acabado a
muito, lhe restava apenas um bocado de água que estava prestes a
tomar quando avistou um vilarejo ao longe, a beira de um rio ou
talvez do mar. Havia montanhas que cercavam a água, sua vista
estava embaçada e ele não tinha certeza do que via.
Juntamente com os últimos raios de sol, Guardião estava
chegando naquilo que parecia um porto, agora mais próximo tinha
certeza. É o mar. O porto não era protegido, não existia uma
muralha, nem se quer um muro ou guardas ao seu redor, não se
viam estandartes de nenhum reino e aparentemente cada pessoa
que se encontrava naquele local já cometera algum tipo de crime.
Prostitutas, afeminados, ladrões, mercadores, pescadores. Era fácil
identificá-los.
Então Guardião deu por si que não era uma boa idéia se
mostrar um homem nobre que jurou lealdade a um rei, isso
chamaria muita atenção naquele local. Precisava de um nome.

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– Boa tarde senhor. Não me lembro de ter cruzado com
alguém parecido com você por essas terras antes – um velho
moribundo o abordou. – Sou Archor, velho morador do porto
Nemartarlan. Qual seu nome?
Não lhe veio nome algum à cabeça, nem mesmo o seu
verdadeiro nome. E quase gaguejando, porém firmemente,
respondeu.
– Sou Ûrgûóu, apenas um aventureiro, e não lhe devo mais
explicações que isso.
Saiu sem olhar para traz tentando decorar o nome que de
um ímpeto ele cuspiu. Ûrgûóu, Ûrgûóu, Ûrgûóu…
Distraiu-se com toda a movimentação do porto e, passado
alguns minutos desde seu encontro com Archor, ouviu ao longe um
grito.
– Ûrgûóu!
Estranhou de imediato, mas o reflexo o fez olhar em
direção do chamado. Um velho pirata na proa de seu barco
acenava para ele com um olhar penetrante. Como sabe meu
“nome”? Pensou e ficou parado durante poucos segundos.
– Vamos homem, teme a mim? Então pelo visto não
precisarei de um covarde como você, esqueça – o velho virou-se e
começou a andar.
– O que quer? – Respondeu-lhe apreensivo e
espantadamente curioso.
– Sou Baai, capitão desse navio pirata – para Guardião
parecia apenas um barco grande. – Tive muitas perdas na minha
última viagem e preciso de novos homens fortes como você. Um
velho amigo mencionou seu nome e disse que era um forasteiro.
Não tens interesse em partir comigo em busca de riquezas,
mulheres, e toda bebida e carne que puder engolir? Não somos um
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grupo violento, jamais matamos mulheres antes de lhes oferecer
um merecido último carinho – soltou uma gargalhada rápida.
Archor.
– Vejo que seu amigo além de intrometido também tem
uma boca grande. Sorte a dele que é exatamente isso que estou
procurando. Mas antes de conversarmos qualquer coisa, preciso
me alimentar – e precisava mesmo, já estava perto de desmaiar de
fome.
Os dois sentaram-se a uma mesa farta, assim como Baai
havia prometido. Ûrgûóu comeu um pernil perfeitamente
temperado e bebeu hidromel enquanto ouvia o que Baai tinha para
lhe dizer, não tinha muito interesse em mulheres, dinheiro nem
toda aquela baboseira que o velho lhe segredara. Queria apenas
poder, e o mar era uma bela porta para sua nova busca. Motivo
que o fez aceitar as condições impostas pelo velho capitão, e
seguiram viagem poucos dias depois de sua chegada ao porto de
Nemartarlan.
Durante a conversa Baai havia lhe contado uma lenda sobre
um canto das sereias, conhecido como A Valsa das Sereias Mudas,
que perturbava o cérebro dos homens e os chamavam para a valsa
da morte. Segundo a lenda, o homem que resistisse a tal canto
conseguiria um poder sobre-humano.
– Uma boa lenda para contar para novatos como você –
falou Baai sorrindo. – Ninguém jamais resistiu nem resistirá ao
canto das sereias.
Um poder sobre-humano. Guardou aquilo em seus
pensamentos e não respondeu à Baai, apenas continuaram
conversando sobre qualquer outra coisa.
– Diga-me jovem Ûrgû, Órgûóu… Ûrgûóu! Raios, que nome
terrível! Diga-me, o que realmente você procura? Nunca vi em você
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interesse algum nas mulheres que capturamos, tampouco no nosso
ouro – perguntou-lhe Baai, alguns meses após terem zarpado pela
primeira vez. – Alguma vez você viu o tesouro que está à procura
dia e noite?
Realmente é um nome terrível.
– Procuro poder, nunca o vi, mas já senti, ele queimava
dentro de mim e me fazia sentir completamente inexpugnável, e eu
realmente fui. Nenhum homem seria capaz de me ferir naquele
momento, senti como se o próprio sol morasse dentro do meu
coração e que sua força se espalhava por entre minhas entranhas.
Poder é o que eu procuro. Esse poder.
Baai soltou uma gargalhada alta, e enxugando as lágrimas
perguntou.
– Você não acreditou que resistiria ao canto das sereias
daquela velha lenda? – Riu.
– Na verdade eu… – E então Ûrgûóu foi interrompido por
um grito vindo do convés.
– Homem ao mar! – Algum marinheiro gritou.
Correram os dois para ver o que estava acontecendo e a
cena que viram era totalmente surreal. Três quartos dos homens
estavam completamente perdidos em seus pensamentos, vagando
como zumbis sem parecer se preocupar com a fúria repentina do
mar, se jogando nas águas. O restante deles estavam perturbados e
atordoados com um som distante que parecia vir de dentro de suas
cabeças. Baai cambaleou e correu para seus aposentos, Guardião
podia ouvir aquele som, mas não o incomodava. A sereia!
Quando todos os homens já haviam sido abatidos,
engolidos pelo mar, rasgados pelos corais ou haviam desmaiado no
chão do barco ele a viu. Linda! Seus olhos não eram capazes de
focar outra coisa a não ser aquela beleza. Ela roubava-lhe a razão,
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estava quase se entregando quando sentiu seu corpo queimar
novamente trazendo-o de volta a si. Parou a dois passos dela.
Então ela esperou, e como não houve mais aproximação ela o
puxou pelo braço e deu-lhe um beijo. Antes mesmo de Guardião
abrir os olhos, já estava sozinho.
Algumas horas depois os homens se acordaram. Mas não
lembravam nada do que havia acontecido. Eu terei o poder sobre-
humano da lenda. Eu serei invencível!
– Ûrgûóu, você está vivo. Há tempos que um novato não sai
vivo de um ataque. Você não deve lembrar, mas esse foi o canto da
sereia. Todos os fracos são levados para o mar, ainda bem, não
preciso de homens como eles. Já os que sobrevivem, nunca
lembram o que aconteceu. Archor foi o único homem que lembrou
o que viu, mas ele desmaiou em seguida, não resistiu e hoje ele é
apenas um moribundo do porto de Nemartarlan. Não tem poderes
sobre-humanos – segredou-lhe Baai.
– Não imagino o que se passou aqui, mas peço que me
deixe ir embora assim que chegarmos ao próximo porto, não sei se
sobreviveria novamente – disse Guardião, percebendo que já não
precisava mais de nada que Baai pudesse lhe oferecer. Já
encontrara seu tesouro.
– Claro que sobreviveria! Não seja tolo, está aqui de pé,
falando comigo. Como pôde pensar que não resistiria?
– Acredito que não caí porque acordei com os pés
enroscados em uma corda – foi a primeira coisa que lhe veio à
cabeça.
– Covarde! Como pode desistir tão fácil, você não deseja o
poder!? – O capitão gritou em um tom irritado.

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– Infelizmente hei de concordar com você, sou um covarde,
já vi que nunca terei chances de enfrentar o canto da sereia e não
conquistarei meu tão sonhado tesouro.
– Pois muito bem, faço questão de dar-lhe um chute no
próximo porto, não preciso de “homens” como você!
Isso!
Dez dias depois, Guardião estava no antigo porto de
C’aric’óu, um porto já a muito abandonado, olhando a embarcação
de Baai partir. E deu por si que nunca soubera o nome daquele
navio. Nada poderá me deter agora.

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Capítulo III – Chronos

Posso sentir… realmente posso sentir. Durante muito


tempo Guardião ficou parado olhando para o mar, extasiado com
aquela energia dentro dele. Sentia que estava próximo de
conseguir todo o poder que desejava, mas sabia que o beijo da
sereia não o fizera… ainda não. Não entendia como podia sentir
tanta energia e ao mesmo tempo tanta impotência. Ainda não está
completo.
Guardião estava irreconhecível, com longos cabelos que
roçavam em seu cinto, uma barba disforme que escondia seu
pescoço e parte de seu peito. Ficou lá por nove anos inteiros, sem
comer, sem beber, sem dormir, sem ao menos se movimentar, mas
seu vigor era o mesmo do dia em que foi deixado naquele porto
abandonado, nem mais nem menos.
De repente uma chuva de estrelas prendeu-lhe a atenção,
nove anos depois de estar ali, era a primeira vez que olhava para
outro ponto. Cinco estrelas mergulharam do céu para traz das
colinas que cercavam a bacia do porto de C’aric’óu.
– Venha, você está pronto – uma poderosa voz o chamou.
Abriu os braços erguendo a cabeça para o céu com os olhos
fechados, e jogou-se para traz. Não caiu, flutuou no ar e seu corpo
foi sendo puxado para cima, como se uma força maior que a
gravidade o atraísse. Ele estranhamente sabia que tinha de fazer
aquilo e deixou ser levado.
Ao acordar estava em um local distante, mítico, cercado por
absolutamente nada e totalmente preenchido com algo que não se
via nem mesmo se sentia.
– Você chamou-me a atenção. Não caiu com o canto da
sereia. Não esqueceu aquela melodia e permaneceu determinado a
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cumprir o destino que sentia dentro de si – ouviu, mas não sabia de
onde vinha tal voz, a mesma voz poderosa que o chamara.
– Poder. Meu destino é o poder! – Falou aquilo tão
impulsivamente que só percebeu o que tinha dito quando ouviu
sua própria voz.
– Não me diga o que quer, eu sei exatamente o que faz
aqui. Eu lhe trouxe aqui, eu lhe dei essa oportunidade!
Guardião aos poucos ia sentindo uma presença, mas era
algo completamente disforme, não era humano.
– O que é você? – Perguntou olhando para o vazio. –
Porque me deu essa chance?
– Sou aquele que lhe dará todo o poder que anseia. Será
meu guardião místico do templo do tempo. Sou Chronos, o deus do
Tempo.
Guardião não podia acreditar no que acabara de ouvir. O
próprio deus do tempo lhe dirigia a palavra. Mergulhou na
lembrança do dia em que adotou o nome Guardião para si, e
lembrou que naquele dia ele sentiu uma estranha sensação, não
sabia o que era, mas podia sentir nitidamente. Guardião, o
Guardião do Templo do Tempo. Era isso.
– O que me diz jovem humano, deseja realmente ter esse
poder? – Chronos deu-lhe a escolha, mas não havia lhe dito o preço
de tal poder.
– Mas é claro que sim, nasci para isso e aqui estou – estava
feito, Guardião aceitou de imediato a proposta do deus sem nem
mesmo se questionar quais seriam as conseqüências. Não lhe
importavam.
– Aiz argûóurar óu Gûûrarrdeniaróu denóu Taimãplanóu
denóu Taimãpóu – falou Chronos em uma linguagem totalmente
desconhecida, mas ele compreendeu cada palavra.
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Então, em seu peito explodiu uma sensação de êxtase
juntamente com um ardor intenso que queimava cada veia de seu
corpo, a intensidade da dor era algo indescritível, inimaginável,
sentiu seu coração explodindo e parando por completo, seus
músculos enrijeceram-se de uma maneira não natural, sua pele não
tinha mais a textura de uma pele humana, estava grossa, firme.
Não sentia mais seu coração, mas sentia um fluído de algo
desconhecido correndo violentamente por suas veias. É isso! É
isso!
Estava completo, sua transformação ocorreu ali, naquele
local estranho, naquele tempo desconhecido. Nada disso importava
mais. Estava com o poder que tanto desejou.
– Agora que lhe dei o poder que alimentou sua ganância,
preciso que me recompense. Volte à Terra e faça sacrifícios em
segredo. Não deixe que te descubram.
– És um deus, para que queres que eu sacrifique vidas
humanas? – O guardião perguntou ingenuamente.
– A morte é apenas o alimento da vida, assim como a vida
é o alimento da morte. Agora vá e faça o que mandei, capture
todos os que se opuserem a você. Serão meu rebanho, e você
controlará cada um deles com seu poder. Vá!
Quando deu por si, estava na Terra novamente, no mesmo
local em que esteve pela ultima vez, mas não parecia igual. Tudo
estava diferente. O porto que um dia esteve ali não existia, nem
mesmo havia sinais de que um dia existiu. O mar parecia mais
distante e as colinas menores, mas ainda assim era definitivamente
o local que ele esteve por nove anos.
Durante muito tempo, o guardião apenas cumpriu seu
dever, fazendo sacrifícios como lhe fora ordenado, e jamais sendo
descoberto. Porém, um belo dia olhando o alvorecer lembrou-se da
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primeira vez que sentiu a força queimando em seu peito. Era meu
pai, meu nobre pai.
A lembrança do pai fez com que se sentisse estranho como
no dia da batalha das flores em sua antiga cidade.
– Filho, estás entregando os filhos do deus para morte,
tens-me dentro de ti, e não posso deixar que um pai destrua seus
filhos com a ajuda de meu poder. Pare com os sacrifícios, você está
sendo enganado – ouviu a voz do pai.
– Pai? Como? Como fala comigo?
– Eu sou a força que lhe foi concedida, durante anos me
fortaleci dentro de teu corpo, e finalmente consigo comunicar-me
com você. Escute-me, pare agora com essa loucura!
Aquilo aterrorizou o guardião, foi um ataque de realidade.
No que eu me tornei? O nobre homem que um dia defendeu o
futuro dos filhos de heróis que lutaram em batalhas sangrentas
ficou cego à procura de um poder só para ele e o conquistou em
troca do sacrifício da prole de um novo comandante. Não
importava quem o comandante era. Não era certo.
Consentiu as palavras do pai e percebendo que estava
apenas sendo usado pelo deus, voltou ao Templo do Tempo e
gritou.
– Como ousa me mandar para caçar seus próprios filhos?
Enganou-me! Seu bastardo! Quanto tempo pretendia que eu lhe
servisse cegamente?
Então ouviu o deus falando firmemente.
– O que é o tempo para você? Saiba que o tempo é aquilo
que em ocasião de fome e miséria se engrandece, e é tímido na paz
e no afeto. Hora! O tempo é ilusão, deve me servir o tempo que for
necessário. Você mesmo sabia que deveria esquecer o passado e
pensar no futuro, e agora, eis aqui seu presente: Seja o possuidor
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do que sentiu ao primeiro alvorecer e sirva-me enquanto possuir
esse poder. Sou Chronos o deus do Tempo, o primeiro dos deuses –
e a voz que antes não possuía corpo foi transformando-se numa
forma humana, de cabelos e barbas longos e prateados. – É
impossível fugir de mim, cedo ou tarde todos serão vencidos por
mim. Todos inclusive meus filhos! Ninguém tem poder sobre o
tempo!
– Veremos – iludido com o poder que possuía e com a
imagem de um homem em sua frente, o guardião tentou atacar
Chronos. Em vão.
– Tolo! Eu lhe dei esse poder! Eu sou o deus do tempo! Te
dei a escolha de aceitar ou não o seu destino e você aceitou sem
pensar. Você nunca terá chances contra mim. Pagará por sua
insolência!

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Capítulo IV – Holy Nova

Vazio.
O guardião não sabia onde estava, nem o próprio templo
do tempo era tão abstrato quanto aquele local. Ele não podia
imaginar a quanto tempo se encontrava ali. Mal podia lembrar-se
de seu passado, não compreendia o presente e nem ao menos
imaginava o que esperar do futuro.
Exilado! Percebeu que tinha sido mandado para algum
local desconhecido, e que passara tempo demais lá, mas não sabia
exatamente o quanto. Podia sentir que o poder que lhe fora dado
ainda habitava seu corpo sobre-humano, mas não sabia o que
fazer.
Agora tudo o que tinha havia sido concedido pelos deuses
em troca do sacrifício de sua própria espécie, nada daquilo fazia
sentido para o guardião. Só de lembrar-se da palavra “deuses” o
guardião tornava-se irascível, e todo aquele ódio que o destinara a
esse local crescia de tal maneira que quase o roubava a
consciência, e no apogeu de sua ira ele percebeu que aquele lugar
não pertencia aos humanos, foi quando sentiu a presença do seu
pai.
– Liberte-me! – Suplicava seu pai. – Você precisa! Liberte-
me!
– Não! Tenho que me livrar dos deuses! – O guardião ainda
estava repleto de ódio.
– Esse é o único jeito. Liberte-me filho! Você não tem
escolha.
– Não entendo! Porque devo libertar-lo? Você é minha
força – perguntou ao pai.

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– Você é sua força. Não se esqueça, assim como a beleza da
lua depende da luz do sol, nós também precisamos de algo para
iluminar-nos. Mas o que você realmente deve aprender, é que a luz
do sol serve apenas para mostrar aos homens como a lua é bela,
contudo mesmo sem esse brilho, sua beleza é intangível, apenas
não podemos enxergá-la. Saiba que assim como a lua, tudo que
você precisa está com você, você tem o poder. Liberte-me e torne-
se humano novamente, é a única maneira de sair daqui – disse o
pai. – Deixe de lado tudo o que você aprendeu, abra sua mente
para ver que nosso mundo não é apenas a poeira soprada pelos
deuses. Liberte-me!
– Como pai? Diga-me, como?
– Dentro de você há todas as virtudes necessárias para
fortalecer sua alma – disse ao guardião com sua voz se esvaecendo.
– Pare de procurar pela felicidade em superstições, seja forte para
esquecer tudo o que sabe sobre religião.
– Mas os deuses… – O guardião tentou argumentar em vão.
– Os deuses te usaram para um propósito sombrio, vingue a
morte dos seus semelhantes, filho – com a voz quase inaudível
despediu-se. – Adeus. Estou livre…
– Paaaai!
De repente o guardião acordou de seu frenesi de ira e se
viu em um cenário familiar, não conhecia aquele local, mas sabia
exatamente onde estava. Terra!
Estranhou o seu corpo, estava mais humano, mas ainda
contava com um poder extraordinário, porém agora desconhecido.
Estava lá, completamente perdido, não sabia em que tempo estava,
tampouco onde se encontrava precisamente.

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– Chronos seu mentiroso! Estou farto de seus jogos! –
Gritou como que para ninguém, sem acreditar que obteria
resposta.
– Seu destino é fazer certo o que é errado – a poderosa voz
de Chronos surgiu de lugar nenhum e o respondeu.
Surpreso e determinado o guardião do templo do tempo
falou:
– Você não pode me impedir de espalhar seu segredo.
Ouviu uma risada perturbadora.
– Não me importo com isso, és de fato muito ingênuo. Sou
um deus, pedi para manter a matança em segredo apenas para
poupar-lhe a reputação e facilitar seu trabalho – surpreendeu-lhe
Chronos. – Mas você, olhe para si mesmo, um humano – cuspiu
essas palavras com desprezo – um ninguém. Diga-me, onde está
sua verdade?
– Um humano sim, mas a verdade é que não estou mais sob
seu controle – já tinha certeza que estava livre do deus.
– Tolo! Seu espírito será meu. Estou preparando o seu
sacrifício – e com essas palavras a poderosa voz de Chronos sumiu
deixando Guardião abandonado onde quer que ele estivesse.
Percebendo que estava só, Guardião silenciou-se e
começou mais uma jornada sem rumo, contudo ele possuía um
objetivo e estava determinado a cumpri-lo. Caminhou por algumas
semanas, mas dessa vez ele precisou comer, beber, dormir e
descansar, era novamente um humano, por sorte acordara do
exílio em um local com comida e água em abundância, não teve
dificuldades para caçar pequenos animais, pescar ou colher
suculentas frutas em baixos galhos de fartas árvores.
Chegou finalmente a um imenso povoado, maior que a
cidade onde vivera, porém muito mais primitivo. Soube que ali
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começaria a por em prática seu objetivo de voltar a humanidade
contra os deuses.
Não foi fácil, ao chegar ao povoado, Guardião não foi
recebido com a cordialidade que desejava, durante muitos meses
viveu como um escravo, mas sabia que provavelmente não
receberia melhores boas vindas que aquelas, e o tempo para ele já
não tinha mais tanta importância. O tempo é aquilo que em ocasião
de fome e miséria se engrandece, mas é tímido na paz e no afeto.
Durante sua estada no povoado, mostrou sabiamente seu valor e
aos poucos foi sendo admirado ao ponto de ser idolatrado e
conseguir status de um verdadeiro rei em poucos anos, e então,
finalmente ele tinha condições de começar o que tinha planejado.
Gradativamente, Guardião mudou o costume de todos que
lá viviam e imprimiu seus valores, sempre usando as palavras que
seu pai lhe dirigira em seu exílio “A Lua e sua beleza intangível não
depende do Sol para ser bela. Não dependemos dos deuses para
viver”.
A aceitação de todo aquele povo foi mais fácil do que
poderia prever. Desde que se tornou influente, já contava com um
exército imenso e bem treinado, estava anos a frente de quem
quer que vivesse naquele tempo desconhecido. Todo o povoado,
que agora tomava proporções de um verdadeiro reino, ostentava
seu símbolo, o símbolo do Guardião, um enorme escudo redondo
com duas estacas cruzadas em X, estava em todos os lugares,
estandartes, armaduras, construções, jardins e até mesmo os
escudos da guarda tinham essa forma.
Finalmente após anos vivendo num local desconhecido
sentiu-se pronto. Chegou a hora.

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Capítulo V – Distant Freedom

A cidade estava toda decorada, a população mal dormira,


todos estavam agitados para o grande dia. Povoados próximos
foram chamados para o evento, acampamentos foram montados
nas praças e no entorno da cidade, milhares de barracas estavam
às margens do rio que abastecia o povoado. Gente de todo o tipo
se encontravam ali, desde pequenos povoados praticamente
nômades à populações de cidadelas mais desenvolvidas. Faltavam
apenas duas noites para Guardião se pronunciar. Ele calculou cada
detalhe do evento, deixou que o povo esperasse para que
admirassem a grandeza daquele que há pouco tempo era apenas
um povoado que vivia da colheita e caça. Agora era uma bela
cidade, com construções de pedra, torres, jardins e praças
harmoniosos, enormes tavernas, um mercado bastante
movimentado e diversificado, até a qualidade dos prostíbulos era
de se impressionar.
Conseguia sentir a admiração de cada forasteiro. Estão
quase prontos para me ouvir, não deixarei escolha.
Na manhã do pronunciamento, toda a guarda da cidade
estava armada, espalhada por todos os cantos, a fim de garantir a
segurança e organização daquele que seria um dia importante.
Todos estavam reunidos em frente ao seu modesto castelo, que
mais parecia um grande salão com alguns poucos cômodos na
parte de trás. Não teve tempo suficiente para construir nada
monumental. Mas para aquele povo, toda aquela estrutura de
pedra, com portas levadiças enormes e janelas grandiosas, era mais
do que impressionante.

19
Os principais homens das cidades e povoados que o
visitaram já estavam no grande salão, ansiosos para conhecer o que
Guardião tinha a dizer.
Todos queriam saber como um homem que um dia fora
praticamente um escravo conseguiu tudo aquilo em tão pouco
tempo. Não se importavam de esperar até a noite naquele salão
para garantir um bom lugar.
Na tarde do pronunciamento, Guardião estava em seu
quarto, imóvel, olhando para o céu através da janela e pensando
em cada palavra que diria àqueles homens. Algum tempo depois,
percebeu que olhava para os últimos raios de sol e viu que estava
na hora.
Vestiu um manto branco de veludo de mangas curtas,
bordado com pequenos escudos dourados que cobria seu corpo
deixando aparecer apenas suas grevas e botas de ouro puro e a
manga comprida da cota de malha que vestia por baixo do manto,
prateada e com um grande escudo dourado no peito feito com
pequenas argolas de ouro que estava coberto pelo manto, e por
fim colocou a manopla dourada. De tão grande que ele era, parecia
um guerreiro com sua armadura completa, tinha ainda sua espada
embainhada presa à sua cintura no lado esquerdo e um punhal à
direita. Pegou seu elmo prata que tinha apenas uma fresta em
forma de T em frente para dar-lhe visão, e era adornado com uma
placa de ouro no formato do escudo em torno dos olhos. Estava
imponente e foi assim que adentrou o grande salão.
Sua guarda estava em posição e todos os quase dois mil
homens que lotavam o ambiente estavam ansiosos pela sua
chegada. Assim que Guardião se fez presente, o ruído das vozes
que ambientava o local foi cessando ao ponto que qualquer um

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presente podia ouvir a reverberação que o tinir de suas botas
faziam no chão de mármore.
– Saudações. Sou Guardião, líder dessa cidade e dono de
toda a riqueza que seus olhos admiraram. Espero que todos
estejam satisfeitos com nossas estalagens. É uma grande honra tê-
los aqui em C’arnemdenailan e uma grande satisfação – fez uma
pausa e ouviu um baixo ruído das vozes dos homens.
– Amigos – deixou as cordialidades de lado e começou
enfim o pronunciamento. – Estão aqui hoje para conhecer o
segredo de minha riqueza. Sim, não tenho nada a esconder de
vocês, tampouco quero enriquecer-me a custa de suas cidades. Vim
de um local que muitos de vocês acreditam ser o paraíso – os
ruídos aumentaram abruptamente. – Isso mesmo – falou com uma
voz forte que silenciou a todos, – mas não sou a reencarnação de
um homem, muito menos um deus, mas eu estive entre os deuses
e eles me concederam um poder muito além do que vocês podem
imaginar. Fui tão poderoso quanto um, nenhum homem na Terra
teria chances contra mim, até mesmo alguns exércitos seriam
incapazes de me deter. Penso que isso soa como algo incrível,
maravilhoso, mas não se enganem, os deuses não são tão
generosos como pensam que são. Acordem desse sonho, vocês
têm que lembrar que nesse mundo não há paraíso. Os deuses
também têm seu preço.
Naquele momento uma confusão de vozes tomou conta do
salão, quase saindo de controle. Tudo acontecia exatamente como
Guardião planejou.
– Tragam-nos! – Ordenou para seus guardas.
Seis guardas entraram no salão com sacos cheios de
dezenas de cabeças decepadas e de imediato um cheiro fétido
tomou conta do ambiente. Todos se silenciaram cheios de terror.
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– Vêem isto? – Falou enquanto abria um dos sacos. – São as
cabeças de homens como vocês que fui obrigado a sacrificar para o
mesmo deus que me concedeu esse poder, ele não me deixou
escolha e quando fui contra sua vontade me exilou em um local
que me levaria à loucura e me mataria, mas fui forte e consegui
escapar. Hoje sou um homem como qualquer um, mas tenho um
poder dentro de mim que nenhum de vocês jamais alcançará.

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Com apenas uma das mãos, pegou seu próprio elmo de
prata pura e amassou-o como se fosse uma folha de papel
envelhecida.
– Não se enganem – falou enquanto soltava a bola de prata
disforme no chão, – vocês não são protegidos dos deuses, são
apenas a sua ceia, a morte de vocês servirá de sacrifício para eles.
Eles precisam disso. E assim como eu fui, outros serão escolhidos
para matar quem quer que seja. Não percam seu tempo com os
deuses, tudo o que vocês precisam está em cada um de vocês.
Olhem para lua – todos olharam para as inúmeras janelas a procura
da lua, era noite de lua cheia. – Vocês vêem sua beleza graças ao
brilho do sol, todos sabem, mas não se enganem, a lua não precisa
do brilho do sol para ser bela, ela é bela por si só, o brilho do sol
serve apenas para que vocês vejam e acreditem nisso, mas mesmo
que o sol não a ilumine ela continua bela. Vocês são como a lua,
belos, e eu sou como o sol. Estou aqui para mostrar-lhes isso. Aos
que acreditam que serão livres após a morte, digo-lhes, para
comprar a liberdade, vocês terão que vender suas almas, e ficarão
presos eternamente.
Novamente ruídos tomaram conta do salão.
– Acreditem, também sou um humano, livrei-me
completamente dos deuses – enquanto falava tirou a manopla da
mão esquerda e pegou o punhal com a direita. – Vejam.
Cortou lentamente a palma de sua mão sem esboçar
nenhuma reação e deixou o sangue pingar para que todos vissem.
A reação de todos fora exatamente como previa. Via homens
cheios de dúvidas e questionamentos, rostos estagnados, cobertos
de espanto e admiração.
– Coragem homens! Não tenham medo, vocês têm uma
chance para tentar, acreditem em suas forças ou caiam com suas
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mentiras – falou enquanto cobria a mão com bandagens e colocava
a manopla novamente. – São todos bem vindos a minha cidade por
quanto tempo acharem necessário, terão comida e abrigo e
receberei cada um de vocês pessoalmente para apresentar-lhes a
liberdade. Amanhã mesmo podem me procurar. Grato por sua
atenção. Sintam-se a vontade – fez uma leve reverência com a
cabeça e virou-se.
Com essas palavras Guardião deixou o grande salão e
voltou para seu quarto, trocou-se e tratou seu ferimento enquanto
tomava alguns odres de vinho para garantir um bom sono.
Algumas horas depois que regressara ao quarto, já deitado,
Guardião ouviu uma voz grave que parecia ser a de um deus.
– Estou impressionado – disse uma voz que ele não
conhecia.
Pensou estar bêbado demais para saber se aquilo era coisa
de sua cabeça ou realmente estava acontecendo. Não falou nada.
– Está com medo de mim? Não creio – insistiu, tentando
quebrar o silêncio de Guardião.
– Não pretendo falar com deuses, não me importo se você
está impressionado – respondeu Guardião com um ar de desprezo
em sua fala.
Ouviu então uma risada.
– Não sou um deus e assim como você eu os odeio.
Guardião ficou confuso, como um ser que não fosse um
deus poderia falar com ele de tal maneira.
– Então apareça, como ousa entrar em meus aposentos
sem ser convidado? Como passou pela guarda? – Se sentiu ingênuo
depois que fez essas perguntas, mas o vinho já fazia efeito e não
era mais tão capaz de medir as palavras.

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– Acredita mesmo que sou um humano qualquer, vamos lá
Guardião, você é mais esperto que isso – a voz riu novamente. –
Sabe que ninguém entraria aqui. Sou aquele que pode te ajudar a
acabar com os deuses, mas também tenho um preço, só que
diferente dos deuses, eu lhe contarei qual é antes de lhe
apresentar minha proposta.
Novamente esse jogo, quando isso vai acabar? Quem
estaria falando comigo?
– Isso é apenas um truque de Chronos, acha que sou tolo?
Deixe-me dormir, não é a primeira voz sem corpo que me dirige a
palavra, não me assustará – e realmente não assustava, Guardião
estava apenas um pouco perturbado.
– Não quero te assustar, tampouco quero ajudar qualquer
deus e também não sou muito paciente para discussões ridículas.
Não lhe devo satisfações, vim apresentar minha proposta. Cabe a
você aceitar ou não – respondeu a voz em tom irritado, porém
sereno.
De repente uma pesada nuvem negra foi preenchendo todo
o chão do cômodo, a nuvem estava adentrando pelas frestas da
porta e pelas janelas e quando o centro do chão do quarto estava
completamente preenchido, um espiral de vento formou-se e
elevou a nuvem que foi transformando-se em algo parecido com
um humano. Uma criatura negra, deformada, medonha, um
homem qualquer teria fugido e enlouquecido com aquela visão, um
ser totalmente macabro, com dentes pontiagudos que não se
limitavam a crescer apenas por dentro da boca, seus cotovelos
ficavam abaixo da linha da cintura e a ponta de seus dedos quase
tocavam o chão, de tão comprido aparentava ser magra, porém era
coberta de músculos vigorosos e cheios de veias, sua pele tinha um
aspecto cadavérico e seu rosto era deformado.

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Sou Denaimãóu, como pode ver os deuses não gostam muito de
mim, e me aprisionaram nessa forma demoníaca. Mas não me
importo com isso, eu até gosto.
Guardião teve certeza que quem estava com ele não era
um deus, pois ele podia sentir a presença de um e o que ele sentia
era algo horrível, aterrorizante e, para ele, muito mais agradável
que a presença de qualquer deus.
– Diga-me, quais suas propostas? – Perguntou Guardião.
– Dê-me sua alma, garantirei sua liberdade perante os
deuses para sempre, porém terá que vir comigo quando sua hora
chegar, mas garanto-lhe um bom descanso caso consiga voltar
todos contra esses deuses imundos e assassinos, se não quiser o
deixarei em paz e ficarei rindo de sua tentativa fracassada de se
voltar contra os deuses em um corpo de humano.
Aquele preço pareceu muito caro para sua vingança, sabia
que se concordasse estaria entregando sua alma a um demônio, e
isso em hipótese alguma era algo bom. Mas por conta de sua
natureza protetora, aceitou a proposta da criatura, pois para
proteger ou, nesse caso, vingar seus semelhantes, ele não media
conseqüências.
Estaria eu louco? Enquanto pensava a criatura monstruosa
a sua frente sorriu e foi novamente se transformando em fumaça
negra até desaparecer por completo.

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Capítulo VI – A Glance of Reality

A cidade continuava cheia de forasteiros, os acampamentos


que tinham sido levantados ainda estavam por lá e dava a
impressão que mais gente ia chegando. Os que deixavam a cidade
retornavam em maior número, pouquíssimos partiram de vez.
Guardião sentia a presença de Denaimãóu a todo o momento
desde que acordara na manhã seguinte do pronunciamento.
Passou nove dias inteiros em seu quarto pensando em sua
última conversa, mal conseguia dormir. Aceitei de bom grado a
proposta do monstro, hei de arcar com todas as conseqüências, mas
sofrerei sozinho. Nenhum inocente pagará por minhas escolhas.
Durante os nove dias em que esteve trancado, ocupou-se apenas
conversando com os homens a quem prometeu estar a disposição
para receber em seus aposentos e explicar como tudo aquilo era
possível. Baóulanar foi o único rosto conhecido que lhe fez
companhia, era o seu criado, que lhe trazia alimento e renovava a
água de seus banhos.
Acabava de amanhecer quando terminava de beber o
derradeiro gole de chá de seu desjejum, sua mão já estava bem
melhor.
De repente Baóulanar adentrou no quarto. Mais visitas.
– Senhor – falou logo após fechar a porta, – não terás
visitas hoje, nenhum homem apareceu até então.
Notara que ultimamente o número de visitas estava
diminuindo drasticamente, logo após seu pronunciamento dezenas
de homens amontoavam-se em frente à porta de seu quarto para
saber como ele conseguira tamanho poder em tão pouco tempo, e
ainda por cima sendo um forasteiro. Atendeu a todos, um a um,
sem descanso e percebeu que após alguns dias, os senhores que o
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visitaram repassavam suas palavras para seus seguidores, e para
seu alívio, reduziam seu trabalho.
– Arrume-me trajes adequados, preciso dar uma volta –
ordenou Guardião.
– Sim senhor – consentiu seu criado.
Vestiu roupas leves e colocou sua coroa, apenas simbólica,
pois não herdara nenhum reino. Finalmente saiu de seu quarto e
pôde encarar a todos de frente, grandes homens, mulheres,
anciãos, crianças, servos, aleijados, todos os que se abrigavam nas
ruas de seu povoado. Sentiu uma devoção no olho de cada um
deles.
Horas após sua saída, isolou-se ao leste de C’arnemdenailan
e sentiu algo se aproximando. Denaimãóu.
– Vê? Todos o idolatram, tu estás tirando dos deuses seus
seguidores, isso é um bom começo e já tens um poderoso aliado.
Eu!
– Conte-me Denaimãóu, de onde viestes?
– Eu vim de onde todos vieram, vim do reino das mentiras,
vim para espalhar minhas próprias verdades – sabia que Guardião o
entenderia. – Os deuses nunca me enganaram, assim como não te
enganam mais.
O clima naquele dia estava estranho, o céu ostentava um
tom avermelhado com pesadas nuvens que anunciavam um
temporal e desde o aparecimento da criatura, alguns raios
começaram a riscar toda a paisagem. Guardião compreendeu cada
palavra que ouviu, para ele, os deuses não cuidavam da
humanidade por compaixão, cuidavam porque precisavam do
sacrifício para se fortalecer, não acreditava mais nas histórias que
ouvira quando jovem, perdera completamente a fé em todos os
deuses.
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Durante os meses que se seguiram, mais e mais pessoas
foram se juntando aos seus seguidores, há muito havia deixado
C’arnemdenailan e espalhado seu símbolo por novas terras. Era
impossível não segui-lo, impressionava até os mais grandiosos
reinos, porém, desde que começou sua vingança o mundo estava
tornando-se instável demais. Era assustador. Os dias estavam mais
curtos, as marés mais altas e violentas, algumas regiões eram
banhadas de chuvas torrenciais, já outras sofriam com a seca,
dezenas de tornados devastavam o que tocavam, a Terra sangrava
lava cuspida por vulcões que estavam adormecidos há gerações.
Com o passar do tempo, percebeu que os homens estavam
cheios de dúvidas. Muitos diziam “Os deuses estão enfurecidos,
vão varrer da Terra todos os que lhes abandonaram”, “Para quê
toda essa riqueza se ela não nos protege da fúria dos deuses?”.
Eu sigo o caminho mudando as notas, mas sem esquecer a
melodia, sou um guardião e honrarei isso até o fim de meu tempo.
Seguia agora pela estrada proibida, onde as pegadas deixadas pelos
homens revelavam sua história. Deu por si que ainda não sabia em
que lado estava a verdade, mas já não agüentava mais tantas
versões e concluiu que o mundo se resumia a impulsos, e agora não
poderia voltar atrás.
Tornou-se um homem impetuoso, e todos percebiam que
estava sendo manipulado por alguém, porém ninguém, nem
mesmo Baóulanar tinha conhecimento da existência de
Denaimãóu. Muitos já cogitavam a possibilidade dele estar louco, e
diziam que sua hora estava para chegar. A cada passo que Guardião
dava ficava mais difícil esconder a sua nova companhia e suas
intenções, o que começou a gerar mais questionamentos entre os
homens, e isso era um péssimo sinal.

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Capítulo VII – The First Accident

– Não podemos mais aguentar senhor, por favor, diga-me o


que falar-lhes. Estão todos enfurecidos – Baóulanar parecia
desesperado.
Os olhos de Guardião estavam fundos, cansados. Pouco
daquele homem que discursara há alguns anos lhe restara, estava
envelhecido, à medida que o mundo ia sendo tomado pelo caos,
suas forças iam se esvaecendo.
A situação não lhe era mais favorável, a humanidade
acreditava que ele enlouquecera, chamavam-no de O Velho
Homem. O negro de seu cabelo havia sumido junto com seu nome
e sua reputação. A única coisa que lhe segurava no poder era o
legado que havia construído nos anos anteriores e até mesmo
Denaimãóu parecia tê-lo abandonado.
– Deixe-os ir, e de bom grado vá junto com eles, você não
merece esse fardo – tentou mais uma vez dispensar a ajuda de seu
escudeiro.
– Sabe que jamais te abandonarei, mas direi a eles que vão
– Baóulanar sempre se recusava a deixá-lo.
A impulsividade do Velho homem lhe custou muito mais do
que estava disposto a pagar. Mesmo fraco ainda possuía um poder
sobre-humano, porém o preço que pagou não foi apenas o
combinado com a criatura que lhe visitara anos antes, mas a
devastação do mundo, e ele não conseguia aceitar que os deuses
tivessem tanto poder a ponto de deixar a Terra naquela situação.
Havia retirado deles quase todo o seu rebanho. Houve um tempo
em que a imensa maioria dos povos não possuía mais devoção a
nenhum ser divino, eram seus seguidores, mas ainda sim não era
capaz de conter a fúria daqueles.
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Seus dias passaram a ser rotineiros, estava sempre
mudando de localidade, tudo o que os olhos podiam alcançar lhe
pertencia, e ainda assim precisava deslocar-se para garantir comida
e segurança a todo o momento. A cada nova jornada centenas de
pessoas o abandonavam, a cada novo dia pequenos grupos o
confrontavam, a cada novo confronto mais aliados morriam. Sua
hora estava chegando. Não podia aceitar ser atacado por aqueles
pelos quais ele vendeu sua alma para garantir uma suposta
salvação, mesmo sabendo que ele tinha se enganado, não fez
aquilo por mal, estava perturbado com o novo mundo que o
destino lhe introduziu e queria livrar a todos da fome dos deuses.
– Meu querido filho, é muito fácil manipulá-lo – ouviu seu
pai após muitos anos.
O murmúrio debochado que acabará de ouvir não poderia
ter sido dito pelo seu pai, ele era um homem de muita honra que o
amava, jamais brincaria de tal maneira.
– Por que está a debochar de mim pai? – O Velho Homem
perguntou com os olhos fechados.
– Porque me divirto dessa maneira, esse é o meu jogo e eu
sempre ganho.
Denaimãóu!
– Isso velho amigo, sou eu – respondeu o demônio. –
Sempre fui, estive manipulando você desde a batalha das flores,
falei cada palavra que seu pai lhe disse. Nem mesmo Chronos sabia
disso, sou muito mais poderoso do que imagina, sou um servo das
trevas e agora tenho sua alma e junto com ela a de milhares de
seus seguidores e digo-lhe, foi muito fácil consegui-la, apenas lhe
ofereci um preço mais atrativo que o dos deuses. Alguns deles não
são tão delicados, mas garanto-lhe que eles se importam com cada

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um de vocês humanos – soltou então uma gargalhada com sua
poderosa voz.
Pai! Não pode ser. Os homens. A Terra. Todos pagaram
pela minha ingenuidade, como pude ser tão estúpido?Acreditei que
meu pai estava comigo, mas parecia tão real. Era... era impossível...
era como se eu o visse. Pai! O quê eu devo fazer?
– Chorar meu filho – disse Denaimãóu com a voz de seu pai,
debochando de seus pensamentos. – Sei tudo o que pensa, vejo os
seus pensamentos. Não fique tão triste, você não foi o único que
manipulei. Você deve lembrar-se de um moribundo de um antigo
porto de seu tempo, ele se chamava Archor, dei a ele a chance de
lembrar-se do canto da sereia, mas ele ficou tão perturbado que
depois de louco resolveu abandonar o mar e plantou-se em terra
firme para ajudar a recrutar fortes viajantes para os capitães
daquele porto. Você não chegou lá por acaso, até mesmo seu
cavalo foi manipulado por mim – riu novamente. – Dei a você a
mesma chance que dei para Archor, a diferença foi que você era
poderoso e determinado, tinha as qualidades que Chronos
procurava para seu novo guardião do templo do tempo. Daí para
frente você já sabe, basta substituir seu pai por quem vos fala, e
entenderá, enfim, toda a verdade – disse isso e sumiu.
Fui um fantoche o tempo todo. Traí Chronos e joguei fora
meu destino condenando milhares de almas junto comigo.
Cada segundo o deixava mais confuso e irritado, a coroa em
sua cabeça tornava-se mais pesada, tinha o peso de anos de
sofrimento, anos de mentiras, tormentas, dor, morte, desilusão,
miséria, longos anos…
Não posso voltar para meus súditos, irão me matar! Eu
mereço a morte, mas… mas não fiz por mal… eu os defendi,
entreguei minha alma. Não podem tentar me matar! Não… eu…

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eu… aqueles ingratos! Nunca serão capazes de me tocar, nem
mesmo nos dias de hoje… nem… nem… que eu esteja só. Aos que
me traírem só resta um destino…
Já era tarde quando seus pensamentos pararam de
perturbar-lhe, ele não sabia onde estava. Passou tantas horas
andando por entre as casas e acampamentos que acabou se
perdendo. Que lugar é esse? Pensou enquanto retirava a coroa da
cabeça e a examinava com os dedos já envelhecidos de suas mãos.
Seu manto balançava contra suas costas e as pontas, por vezes,
quase tocavam a coroa, o vento cobriu seus olhos e boca com seu
cabelo, mas não se incomodava. Examinou seus trajes, era todo
composto com cores claras, partes douradas e prateadas, cada
peça de sua vestimenta era ricamente adornada, e então olhou em
volta. Negro. Tudo estava destruído, a Terra parecia o próprio
inferno. Que direito tenho eu de vestir-me cheio de distinção
quando tudo que dei a todos foram as trevas?
Daquele dia em diante passou a usar negro, toda sua
armadura, seus tecidos, tudo era negro. Fez então um último
pedido ao seu escudeiro.
– Baóulanar – havia algo de triste em seu olhar, – quero
que me encomende uma coroa. Não importa se ficará bela ou não,
quero apenas que seja negra e que me entregue o quanto antes.
Sem questionar o pedido Baóulanar partiu e dois dias
depois trouxe-lhe a chamada Coroa Negra do Rei que não passava
de um bocado de ferro destorcido com algumas partes mais
escuras que outras, entregou ao seu mestre e ao se virar para ir
embora, foi surpreendido com a lâmina da espada do Velho
Homem entrando na base de sua coluna e partindo-o no meio até a
sua clavícula esquerda.
Estás agora livre amigo.

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Capítulo VIII – Forbidden World

Olhou para trás enquanto partia e só o que viu foi um


amontoado de barracos mal feitos, nada que lembrasse um reino
de verdade. Já não são mais meus aliados. Então virou-se para
continuar a seguir seu caminho…
– Olhe ele está acordando, eu disse que ele resistiria. É o
Velho Homem, tenho certeza, ele é inconfundível é o único homem
da Terra que sobreviveria.
– Tolice, ele não trajava preto, ele era galante, era belo.
– Calem-se suas prostitutas, é ele mesmo, mas realmente
está em trajes diferentes dos habituais – uma terceira voz falou
soberana, uma forte voz rouca e grave, mas havia algo de feminino
nela.
O Velho Homem abriu os olhos, estava desnorteado. Onde
estou? O que me aconteceu? E o que viu foi apenas uma cobertura
de galhos e peles de animais bem organizada, não parecia ser de
um acampamento nômade. Olhou então ao redor e percebeu três
robustas mulheres o observando e discutindo entre si.
– Quem são vocês? O que querem de mim?
A voz grave respondeu.
– Sou Zyenlan, comando o maior exército que caminha
nessas terras. Seremos as novas mandantes desse mundo. O seu
tempo acabou velho inútil.
Mulheres! Mas é claro! Percebeu que a grande maioria dos
homens já haviam se matado em inúmeras batalhas travadas
diariamente, enquanto isso milhares de mulheres tinham que se
virar para garantir a própria segurança e elas fizeram bem mais do
que apenas se proteger, uniram-se e formaram tropas organizadas,
bem armadas e bem treinadas. A única coisa que não compreendia,
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era como mulheres mortais poderiam tê-lo abatido sem que sequer
ele percebesse.
– Você é realmente tão forte quanto cantam pelo mundo,
nem mesmo dezenas de homens resistiriam ao veneno que estava
na flecha que o atingiu – Zyenlan falou com um ar impressionado.
Examinou seu corpo com os olhos e percebeu um
minúsculo corte em seu bíceps onde a flecha o acertara, não era
profundo, pois sua pele era muito resistente, porém era fundo o
suficiente para o veneno agir.
– Confesso que me pegaram de surpresa, mas foram tolas
em não terem me matado enquanto podiam.
– Não fique triste, sua hora acaba de chegar, esse tempo
nos obrigou a abrigarmo-nos antes de cuidar de você – falou
enquanto levantava uma espada longa que aparentemente
pertencera a algum grande cavalheiro.
O Velho Homem estava amarrado com grossas tiras de
couro nos pulsos, uma corda em seu tornozelo esquerdo e uma
grossa corrente no direito.

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39
A mulher sorriu e brandiu sua espada para decapitá-lo,
então ele ergueu os braços em frente ao pescoço, arrebentando as
amarras sem dificuldade alguma, defendeu o golpe com a ulna
direita e de súbito deu um soco com o punho esquerdo na garganta
de Zyenlan matando-a instantaneamente. As outras mulheres
ficaram em estado de choque por alguns segundos e correram
desesperadas, elas não conseguiram ver nada do que se passou,
tamanha velocidade do golpe.
A essa altura já havia liberado também a perna esquerda,
mas a corrente ainda era um obstáculo. Tentou de tudo para
libertar-se, mas ele não tinha mais o poder nem a juventude de
antes. Pouco tempo depois ouviu muitos passos apressados vindo
rapidamente, não sabia de quantas pessoas se tratavam, mas era
uma tropa considerável. Com a aproximação, pôde ouvir também o
tinir de armas, espadas talvez ou até mesmo machados. Não teve
escolha, pegou seu pé com as duas mãos deslocando-o e usou o
sangue que jorrava de seu antebraço para deixar seu tornozelo
mais escorregadio. Consegui!
Estava livre, e com um rígido golpe no chão deixou seu pé
com uma aparência mais normal, ao menos agora podia calçar-se.
Pegou a espada que o acertara e saiu a passos calmos da barraca.
A tropa que provocara um pequeno tremor no chão e que
parecia estar determinada a lutar parou algumas dezenas de
metros a sua frente, como se tivessem acabado de encarar um
exército cem vezes maior e mil vezes mais bem equipado. Apenas
mulheres, nenhum homem sequer, não passavam de cinco dúzias.
– Suas tolas, sabem muito bem que não tem chance contra
mim – nunca antes o Velho Homem tinha falado com uma voz tão
agressiva, todas que ali estavam ficaram intimidadas.

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Ninguém se movia, então ele apontou a longa espada para
uma das duas mulheres que fugiram da barraca e a chamou.
– Venha a mim prostituta!
Todos os olhos focaram-na enquanto ela olhava ao redor
procurando por qualquer coisa.
– És surda vadia?!
Agora todas, inclusive ela o olharam com olhos
aterrorizados. A mulher começou a se aproximar, tremendo. Suas
vestes estavam ensopadas de urina, o terror que o Velho homem
via era maior do que podia esperar.
– Si… s… sim meu senh… meu… meu senhor – não pôde
conter as lágrimas.
– Diga-me, como se chama?
– Arnemar senhor – respondeu.
– Como ousam tentar me matar? Mulheres! Vocês tiveram
sua chance, mas agora é muito tarde. Quais são seus objetivos?
– S… senh… – Arnemar foi interrompida por um forte tapa
em seu rosto que a fez sangrar e cuspir pedaços de dentes.
– Não gagueje sua puta – o Velho Homem estava irado.
– Senhor – controlou-se, para não apanhar novamente. –
Nós aprendemos com seus seguidores que você era como o sol
para os homens, eles disseram que fora você quem disse essas
palavras.
Ele apenas confirmou com um leve movimento com a
cabeça.
– Todas nós perdemos nossos maridos, filhos, pais, irmãos,
os homens que amávamos, estávamos vivendo em um mundo
cheio de ganância e vaidade, e eles lutavam por você e
recentemente alguns deles contra você, isso não importa. O que
importa é que perdemos nossos amados por sua causa, e
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decidimos que era a hora de alcançar o sol e tornar nossas fantasias
reais, acabando de vez com essa loucura. Precisamos apenas
esconder nossas fraquezas com boas ideias, como o veneno que
usamos no senhor.
O velho não podia suportar mais esse fardo, era muita
culpa para ele carregar sozinho e sem pensar degolou a mulher
sem sequer olhá-la uma última vez.
– Se querem guerra…
Muito rapidamente ele pegou o corpo da mulher e
arremessou com uma força descomunal para as mulheres que o
cercavam a esquerda derrubando várias de uma só vez e
quebrando os ossos das que foram atingidas, pegou a cabeça e
jogou em uma mulher que estava ensopando pontas de flechas em
algum líquido viscoso, afundando o crânio dela.
Segundos depois metade das que ali estavam começaram a
fugir, e a outra metade não teve reação, mas ficaram em guarda. O
Velho Homem correu em direção delas e deferiu dezenas de golpes
arrebatadores, cada golpe acertava pelo menos três mulheres, até
mesmo os ossos eram fatiados pela lamina da espada. Alguns
golpes o acertaram, mas nenhum deixou ferida maior que a que
tinha no braço.
Das mulheres que o rodearam, só restavam corpos e
poeira. Aproveitou para se livrar do veneno que o derrubou. Apesar
de não estar ferido gravemente, tinha bastante cortes pelo corpo e
estava bem cansado e faminto. Não podia se dar ao luxo de
enfrentar exércitos daquela maneira sempre. Deitou-se no chão e
tentou descansar, porém antes mesmo de fechar os olhos, sentiu o
chão tremer. Dessa vez sabia que não teria chances.
Milhares de mulheres estavam subindo a colina em que ele
se encontrava, vinham por todos os lados, marchando como um
42
verdadeiro exército. Não estavam devidamente equipadas por
conta das circunstâncias, mas estavam precisamente alinhadas e
organizadas, com certeza tiveram algum bom treinamento.
– Capturem-no, mas não o matem! – A derradeira mulher
que ele viu ao acordar ordenou para todas as outras.
– Não lutem, eu me rendo – o velho reconheceu sua
desvantagem, já havia descarregado toda sua fúria e estava agora
mais são.
– Seu filho da mãe! Não pense que não será punido por se
render! Joguem-no na prisão em uma sela exclusiva, e todas vocês
terão direito a torturá-lo quantas vezes quiserem – deu as ordens e
entrou em meio às mulheres, sumindo.

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Capítulo IX – Disillusion

Desiludido, os pensamentos do Velho Homem vagavam por


lugar nenhum.
Após sua captura, foi jogado junto aos homens que eram
mantidos presos para garantir a procriação, os de melhor
comportamento ficavam apenas acorrentados, o restante ficava em
celas que mais pareciam gaiolas a céu aberto. Já ele ficou em uma
cela completamente escura. Sofreu as mais terríveis torturas jamais
imaginadas, nenhuma mulher abriu mão de seus direitos. Elas
surravam-lhe, afogavam-lhe, queimavam-lhe, cortavam-lhe,
penduravam-no de cabeça para baixo, sem um momento sequer de
descanso. Muitas delas ainda tentavam ter relações sexuais, mas a
imensa maioria das vezes era sem sucesso e isso só aumentava sua
punição.
Não conseguiu ficar consciente por muito tempo, um ou
dois dias depois de capturado, sentiu que não estava mais em seu
corpo. Aquele sou eu? Pôde ver seu corpo, à beira de um lago,
sendo penalizado e sentiu que sua alma já não estava mais presa a
ele.
– Idiota, não sente mais dor? Anda, reaja! – Disse uma
guerreira qualquer enquanto arrancava suas unhas do pé.
– Tente afogá-lo – falou Ailanar, a mulher que o condenara.
– Ele não reage, já tentei de tudo. Acho que está morrendo.
A tortura estava muito intensa e pesada, era só questão de
tempo para que ele morresse.
– Melhor o deixarmos descansar um pouco, dê um pouco
de água e restos de comida para não o matarmos ainda. Ele não
merece esse descanso – ordenou Ailanar.

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O quê está havendo? Como posso estar me vendo? Podia
flutuar. Estou morto? Não posso estar, estão me banhando e eu
posso sentir a água tocar minha pele.
Ficou frente a seu corpo como se estivesse olhando seu
reflexo, o que via nas águas não era o que o rodeava. Via um
mundo destruído, a Terra cuspia lava como se quisesse destruir a si
própria, o céu estava enegrecido, seu corpo estava frágil, sentia
que a morte o espreitava, seu tempo ia se acabando, porém ele se
encontrava no mundo que sempre sonhou, e passou sua vida
lutando por ele, um mundo em paz, sem sacrifícios, sem mortes em
vão, com belas montanhas, florestas e o céu tinha um tom de ciano
com nuvens que formavam imagens que desapareciam com o
vento, era jovem novamente. Rhenoda. É isso, meu pai sempre
contava histórias sobre como os antigos homens alcançavam esse
estado de espírito.
Mergulhou no lago e vagando pelo acampamento passou a
observar cada parte de seu caminho, começou a vagar por entre as
mulheres, entre os prisioneiros, via neles muito mais que guerreiras
ou escravos, podia enxergar bem fundo em cada pessoa o reflexo
de uma vida que não existia mais, pais, mães, via a história de suas
vidas que haviam se perdido no caos e na destruição que se tornara
o mundo. Tudo havia sido fruto de seu destino.
– Filho – uma voz familiar o chamou ao longe.
Denaimãóu!?
– Já chega demônio! Estou farto de seus joguinhos, irás
morrer! – Cheio de ira o espírito do Guardião virou-se em direção à
voz para atacar Denaimãóu a qualquer preço, mas seus olhos
encontraram a imagem de seu pai.
Imediatamente seus olhos encheram-se de lágrimas e
involuntariamente correu em direção de seu velho pai. Ele estava

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exatamente como em sua memória, alto com ombros largos e um
corpo repleto de músculo, porém com alguns sinais de velhice,
algumas rugas já riscavam seu rosto e seus cabelos e barba já
estavam pincelados de prata.
– Sim meu filho, sou eu, dessa vez realmente sou eu, vi
tudo que lhe aconteceu desde minha morte – havia um ar de
frustração em seu rosto, – mas nunca pude fazer nada pra lhe
ajudar, dentro de mim não flui o mesmo poder que habita seu ser.
Guardião estava confuso.
– Poder, que poder? E… como? Como posso falar com
você? Você está morto. Eu deveri… eu… eu estou morto? – Seus
olhos se arregalaram em direção ao pai.
– Já respondeu suas perguntas filho, você não está morto,
está vivendo entre os dois mundos, o mundo que você desejou e o
reflexo dele, o mundo criado por suas ações. Só você tem esse
poder, sinta – o homem tocou o peito do filho. – Seu coração, pode
sentir?
– Não – disse Guardião confuso.
– Todas as veias dentro de seu coração não fluem mais, seu
sangue está coagulando e gritando por liberdade.
– O que devo fazer meu pai?
– Você deve desfazer tudo o que foi influenciado a fazer, o
mundo precisa retomar a ordem, os deuses precisam de sacrifícios.
Lembre-se, você foi o Guardião do Templo do Tempo, terá que
encontrar alguém para substituí-lo, ainda há tempo para você se
livrar do destino que lhe aguarda. Você não precisa entregar sua
alma àquele demônio pela eternidade, corrija seus erros enquanto
você for capaz de viver entre os dois mundos.
– Mas como viverei entre os dois mundos se meu corpo
está morrendo?
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– Esse é o segredo, o sangue que corre em suas veias e em
seu coração está deixando de fluir, e quando ele parar por
completo, sua alma vagará por entre os dois mundos.
Guardião olhou pela última vez para seu pai, ele estava
sorrindo e fazendo um leve aceno com a cabeça, então virou-se de
costas e seguiu em busca de um novo guardião.

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Capítulo X – Contemplate the Life

Ano após ano fui amadurecendo, vivi grandes alegrias,


chorei com grandes perdas, sofri com grandes depressões, sorri
com pequenos momentos.
No começo não passava de um jovem garoto em meio a
outros jovens rapazes que não sabiam bem o que esperar da vida
que estavam construindo, era divertido termos nossas armas, de
baixa qualidade, algumas até emprestadas, mas usávamos como
homens, bem… acreditávamos que estávamos usando como
verdadeiros homens, mas nossas idades e imaturidade não
enganava a mais ninguém além de nós mesmos. Víamos os
verdadeiros guerreiros daquela época travando batalhas e se
enfrentando em duelos, todos tinham histórias maravilhosas que
contavam por todos os lados e que viajavam por todo o mundo pelas
bocas de quem as ouviam, e vê-los nos inspirava a continuar
praticando, por piores que fossem as dificuldades e limitações,
ajudávamos uns aos outros, para um dia sermos como eles.
Sempre fui decidido a seguir nessa vida, não era fácil, ela
exigia dedicação em tempo integral e os que me rodeavam não
compreendiam isso, apenas os que escolheram essa vida sabiam do
que eu estava falando.
Fui então amadurecendo junto com meus velhos amigos que
seguiram esse destino e sempre acreditando no que eu estava
fazendo, fui ganhando respeito e reconhecimento de quem não me
apoiou em tempos anteriores, isso alimentou minha alma de uma
maneira muito boa, o que passou a refletir em minhas ações.
Até que fui nomeado e selei meu destino, independente do
que me acontecesse, eu sabia o que eu era. O que eu sou.
Vivi intensamente a vida que me foi dada, lutei por todos os
cantos do mundo, com bons homens do meu lado, alguns dividiram

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histórias comigo por muitas lutas, outros não tiveram a chance de
dar um fim à primeira história que contariam. Mas cada um deles
me engrandeceu de sua maneira.
Sempre acreditando no que eu sou, tomei algumas decisões
que não foram muito inteligentes, mas não foram maldosas, não tive
escolha, manipularam meu destino para que eu escolhesse aqueles
caminhos, e infelizmente paguei muito caro por isso, um preço
muito além do que eu poderia pagar, tive que ver cada cidadão
desse mundo pagando pelos meus erros e isso me destruiu por
dentro, se o destino não tivesse me dado o poder que eu conquistei,
teria morrido de desgosto.
Seu espírito vagava tão alto que as pequenas coisas que via
na Terra o faziam lembrar as melhores chances que perdera no
passado para evitar essa situação. Viu o mundo mudando, novas
Eras vinham e iam, há muito não estava mais preso ao seu corpo,
era apenas um espírito que não cumprira seu destino e que ainda
vagava por entre os vivos. Foi assim que viu cada pedaço do mundo
se transformar. Construções erguiam-se cada vez maiores e mais
resistentes. A população aumentava ao ritmo que a natureza se
extinguia. Todos os antigos valores deixaram de existir pouco a
pouco.
A Terra então deixou de ser um lar para a população e
passou a ser o caminho mais curto para o inferno, todos os que
viviam nela trilhavam esse caminho, e muitos estavam fadados a
segui-lo até o fim. Mas a morte garantia a alguns poucos um lugar
no paraíso.
O espírito do Velho Homem distraíra-se com uma belíssima
cidade moderna, cheia de prédios iluminados que abraçava uma
bacia de águas calmas que refletia as luzes e a movimentação
daquele local, ao mesmo tempo em que colinas abraçavam todas
aquelas construções e por sua vez o mar cercava todo o resto,
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quando teve a impressão de ouvir trombetas e a sensação de que
possuía asas como as dos anjos e que podia voar como eles, mas ao
tentar batê-las para partir em seu vôo muito mais rápido do que
podia vagar, sentiu que elas se despedaçavam e caiam por trás das
colinas. A sensação foi tão real que pôde vê-las caindo e se
desfazendo em cinco pedaços. Cinco estrelas cadentes caíram atrás
das colin… É isso!
Olhou novamente para cidade. É o porto de C’aric’óu! Da
última vez em que estive aqui me tornei o Guardião do Templo do
Tempo.
– Chronos! – Gritou eufórico, ele sabia finalmente como
completar seu destino.

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Capítulo XI – Slave of Dreams

– Queres que eu fale com Morpheus para que você possa


me trazer cinco novos guardiões do templo do tempo? – Perguntou
Chronos.
– Exatamente, garanto-lhe que sei o que faço – a conversa
já se prolongava tanto que o espírito do Velho homem não sabia há
quanto tempo estava ali. – Foi um sinal, já lhe disse, o destino fez
com que eu mostrasse a mim mesmo.
Estavam novamente no Templo do Tempo, mas dessa vez
não era apenas a voz de Chronos que não possuía de fato um corpo
físico. Os dois já haviam discutido sobre tudo que acontecera desde
seu primeiro encontro até aquele momento, o que deixou o deus
mais receptivo.
– Pois bem, já não precisa falar mais nada – respondeu o
deus.
Como por mágica ouviu-se uma terceira voz.
– Saudações, sou Morpheus, certamente já ouviu falar de
mim, em que posso ser útil.
Morpheus tem o poder de controlar o sonho de quem quer
que seja e era exatamente isso que o Velho Homem tinha em
mente. Após outra longa conversa esclarecedora o segundo deus
concordou em fazer o que ele propusera.
– Muito obrigado deuses, sei que não serei capaz de
reparar o que eu fiz, mas farei o possível para melhorar a situação
que criei – falou o espírito.
– Vá embora, já sabe o que fazer – disse Morpheus.
Então o guardião se foi, e começou a colocar seu plano em
prática, cuidadosamente ele fez tudo o que Morpheus lhe ensinou
e ficou observando o resultado de seus novos truques.
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– Oi, o que fazem aqui? – um jovem perguntou a outros
quatro, que eram seus amigos de longas datas.
– Como o que faço aqui? Primeiro temos que saber que
lugar é esse? – disse outro.
– Estamos na Terra? Onde estamos? Por que não há mais
ninguém aqui além de nós?
As perguntas foram se seguindo, porém todas sem
respostas fáceis e o Velho homem acompanhava tudo sem ser
notado.
– Este lugar me parece… me parece um sonho, mas vocês
são tão reais e… e eu consigo controlar minhas ações… – os jovens
estavam muito confusos, mas conseguiam perceber que aquilo era
realmente um sonho.
– Vejo que eu escolhi bem – falou o Velho homem,
enquanto seu espírito ia tomando forma, e foi pouco a pouco se
transformando no homem que um dia foi conhecido como
Guardião.
Aos poucos a forma de um homem forte e com longos
cabelos que o tempo ainda não havia roubado a cor foi se
concretizando na frente dos cinco jovens. Estava vestido apenas
com uma manta de cetim branco que acariciava sua pele
suavemente e deixava seus músculos quase desnudos.
– Não tenham medo, como já notaram isso é só um sonho,
não posso fazer mal algum a vocês – uma luz clara o rodeava e
abrandava a estranha sensação que aquele sonho tinha para os
jovens.
– O que quer da gente? – Perguntou o mais jovem deles.
– Quero que me sigam, vamos dar uma volta – com um
gesto nas mãos os cinco jovens desprenderam seus pés do chão e

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começaram a flutuar. – Venham, sigam-me! Quero mostrar umas
coisas a vocês.
Acompanhado dos cinco jovens, Guardião começou a viajar
através do tempo, e quanto mais se distanciavam, mais deixavam o
futuro para trás.
Eles partiram de um ponto onde a Terra estava um caos
total, a humanidade estava descontrolada e a natureza sangrava e
chegaram a uma época de ordem e tranquilidade.
– Vêem? Esse é meu mundo, e eu o destruí. Não tive culpa,
fui controlado por um demônio, ele me usou para criar o mundo
em que vocês vivem. O mundo que nasceu quando a noite superou
o dia. Já imaginaram quantos sonhos foram destruídos antes desse
sonho em que estamos? – Guardião pronunciava essas palavras
com amargura.
– Por que fez isso? E por que está nos mostrando esse
mundo? – perguntou o mais velho dos cinco.
– Como eu disse, fui manipulado. Eu, assim como vocês sou
um mortal, mas assim como vocês, não sou como os outros, tenho
algo de especial em mim, algo que os deuses viram e os demônios
também, ambos me usaram para seus interesses. Chronos me
levou até o Templo do Tempo e deu-me um poder incrível, mas o
demônio foi mais astuto, e o resultado de sua astúcia dura até hoje,
é esse mundo descontrolado em que vocês vivem, mas finalmente
encontrei vocês. Vocês podem mudar isso, serão os novos
guardiões de Chronos. Vocês cinco serão nomeados os Guardiões
do Templo do Tempo e trarão a ordem de volta a Terra.
– E por que o próprio Chronos não nos levou ao templo do
tempo? – A pergunta soou como um coro já ensaiado pelos cinco
de uma só vez.

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– Chronos está enfraquecido, e não pode procurar novos
guardiões, se o fizesse condenaria a todos. Pois se o demônio que
me manipulou conseguisse o controle do tempo, tudo estaria
acabado. Então, desde minha morte eu procuro meu sucessor, mas
nunca achei alguém capaz, até que o destino me mostrou tudo o
que eu precisava, ele cruzou meu passado com o meu presente e
eu percebi que apenas um guardião não seria suficiente, mas cinco
– enquanto o Guardião falava os jovens o olhavam atentamente. –
Foi então que pedi a ajuda de Chronos e Morpheus para que eu
pudesse falar com vocês.
– Mas porque em um sonho? – o jovem mais tímido
finalmente se expressou.
– Caro jovem, eu não seria capaz de viajar no tempo com
vocês cinco, fiz tudo isso pois vocês não podem me ver em vida.
Agora chegou a hora, vocês precisam acordar…
– Você… – o mais jovem o interrompeu – você tocou nossas
almas em nossos sonhos e não podemos te ver em vida? Como
saberei se esse sonho merece todo esse valor? Como saberei que
isso é real?
– Não saberá – Guardião respondeu seriamente. – São
agora escravos desse sonho, e uma vez escravos vocês terão
apenas uma chance de retomar essa antiga realidade. Acordem!
Assim como no dia em que se tornou Guardião do Templo
do Tempo, o espírito do guardião via novamente cinco pontos
cortando o céu, mas dessa vez eles estavam subindo, e não eram
estrelas, eram cinco jovens indo ao seu encontro e ao de Chronos.
– Muito bem velho amigo, vejo que cumpriu o seu destino,
agora garanto-lhe seu merecido descanso. – Uma poderosa voz
sem corpo falava de algum lugar distante e ecoava dentro da
cabeça de cada um dos futuros guardiões.
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A única imagem que viam era a de um velho homem,
parecido com o que viram em seus sonhos, mas muito mais frágil e
inofensivo, e aquele velho homem esboçava um sorriso tão
profundo que parecia tocar o coração de cada um, um sorriso cheio
de lembranças do seu passado, um passado onde ele era cego, mas
via, onde ele era surdo, mas ouvia, onde ele não conhecia os
verdadeiros poderes do mundo, mas vivia como se o verdadeiro
poder de tudo estivesse dentro de seu coração. Ao mesmo tempo
que sorria, ele chorava. Chorava a lágrima de cada pessoa que ele
fez sofrer, cada família que ele destruiu, cada filho que deixou sem
pais, lágrimas de profunda tristeza e arrependimento. E com esse
sorriso regado com essas lágrimas, o espírito do Velho Homem foi
deixando de existir, pouco a pouco, e aqueles poucos segundos
pareceram demorar tanto quanto toda a história da humanidade,
desde sua nomeação até agora.
Os cinco jovens não conseguiram entender, tampouco
controlar a enorme tristeza que os consumiam, mas entenderam
qual escolha deviam fazer.
– Suponho que já sabem quem sou. Sou Chronos, o deus do
Tempo, e ofereço-lhes o poder a que foram destinados a possuir.
Porém terão de fazer algo em troca. O que me dizem querem esse
poder? – Novamente ofereceu o poder sem mostrar as condições.
– O que devemos fazer em troca? – perguntou um dos
jovens.
– Sábio de sua parte, vejo que a ganância não me
atrapalhará dessa vez – respondeu Chronos. – É muito simples,
vocês terão de passar essa mensagem para todos os que puderem,
contarão a história do Velho Homem e da humanidade, e mudarão
aos poucos o mundo que ele criou.

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– Faremos isso! – respondeu o mesmo jovem com a
aprovação de todos os outros.
– Zóuiz argûóurar óui Gûûrarrdenióuaii denóu
Taimãplanóu denóu Taimãpóu. Zairaróu c’óunemaizidenóui
c’óumãóu Wonarnemdenairzóunem, Arnemdenraiwon, Mãartaiûrz,
Jióunem’yen ai Denarrlanarnem.
E naquele momento, no peito de cada um dos novos
guardiões, explodiu numa sensação terrível de dor juntamente com
um êxtase inebriante que dava a impressão de se ter poder total
sobre tudo. O mesmo sofrimento que os consumia, enchia-os de
prazer. Era o tipo de sensação de não se pode descrever, apenas
sentir.
Os cinco sorriram e choraram juntos e a partir daquele
momento eram um só.
Chronos tomou forma de homem e presenteou cada um
deles com um dom e disse:
– Vocês têm o poder de mudar o mundo, mas só o farão se
trabalharem juntos. Aceite meu presente e agora vão e passem a
mensagem a todos. O mundo os aguarda!

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