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VRIL, O PODER DA RAÇA FUTURA ou VRIL, A


RAÇA SUBTERRÂNEA ou VRIL, A RAÇA
FUTURA

CAPÍTULO I

Sou nativo de ----, nos Estados Unidos da América. Meus ancestrais


migraram da Inglaterra no reinado de Charles II, e meu avô foi ilustre na
guerra da Independência. Minha família, em conseqüência disto, desfrutou até
certo grau de alta posição social em direito hereditário; e sendo também rica,
foi considerada inapropriada para o serviço público. Meu pai uma vez
concorreu ao Congresso, mas foi notavelmente derrotado por seu alfaiate.
Após tal evento ele pouco tomou parte em política, e viveu mais em sua
biblioteca. Fui o primogênito de três filhos, e enviado na idade de dezesseis
anos para o velho país*, em parte para completar minha educação literária, em
parte para iniciar meu treinamento comercial em uma firma mercantil em
Liverpool. Meu pai morreu logo após eu completasse vinte e um anos; e
estando bem de vida, e tendo uma predileção por viagens e aventuras,
renunciei, por um tempo, a todas as buscas ao glorioso Dollar, e tornei-me um
despreocupado viajante sobre a face da Terra.

No ano 18----, ocorrendo estar em ----, fui convidado por um


engenheiro, com quem travei conhecimento, a visitar as profundezas de uma
mina cuja exploração ele dirigia.

O leitor compreenderá, antes do término desta narrativa, minhas razões


para encobrir todas as pistas do distrito do qual escrevo, e irá talvez me
agradecer por abster-me de qualquer descrição que possa levar à descoberta do
mesmo.

Deixe-me dizer, assim, tão resumidamente quanto possível que


acompanhei o engenheiro ao interior da mina, e encontrei-me tão
estranhamente fascinado por suas belezas sombrias, e tão interessado nas
explorações de meu amigo, que decidi prolongar minha estada naquelas
localidades, e desci diariamente, por algumas semanas, para o interior das
abóbadas e galerias escavadas pela natureza e por arte abaixo da superfície da
Terra. O engenheiro estava convencido que no novo poço, cuja abertura havia
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sido começado sob sua direção, se encontrariam jazidas de mineral muito mais
abundantes e valiosas que as descobertas até então. Ao perfurar tal poço, nos
deparamos um dia com uma fenda profunda e dentada e aparentemente
carbonizada nas laterais, como se em um passado distante houvesse sido
aberta por fogos vulcânicos. Descendo nesta fenda, meu amigo fez com que
fosse baixado em uma espécie de gaiola, depois de ter testado a
respirabilidade da atmosfera por meio de uma lâmpada de segurança. Ele
permaneceu aproximadamente uma hora no abismo. Quando ele retornou
estava muito pálido, e com uma expressão apreensiva e meditativa em seu
rosto, algo muito diferente de seu caráter ordinário, que era franco, alegre e
despreocupado.
À minhas perguntas, respondeu secamente que a descida lhe pareceu pouco
segura e levando a nenhum resultado. Foi suspenso todo posterior trabalho no
poço e voltamos às seções mais conhecidas da mina. Durante o resto daquele
dia o engenheiro pareceu preocupado por algum pensamento fixo. Mostrou-se
extraordinariamente taciturno e em seus olhos se encontrava uma expressão de
espanto e confusão, como se houvesse visto a um fantasma. Durante a noite,
enquanto nos encontrávamos sozinhos, sentados no alojamento perto da
entrada da mina que havíamos compartilhado durante quase um mês, disse a
meu amigo:

“Diga-me francamente o que você viu naquele precipício: estou certo de ter
sido algo estranho e terrível. Seja o que for, tal coisa deixou sua mente em
estado de dúvida. Se é assim, duas cabeças valem mais que uma. Tenha
confiança em mim.”

O engenheiro fez o quanto pode para evadir-se de minhas perguntas; mas


como enquanto falava bebia, quase sem dar-se conta, o conteúdo de uma
garrafa de brandy* em uma quantidade a qual estava completamente
desacostumando, posto que era homem sóbrio, suas reservas foram
gradualmente desaparecendo. Aqueles que quiserem guardar segredos devem
imitar os animais mansos e beber apenas água. Ao fim, disse:

“Vou lhe contar tudo. Quando a jaula parou me encontrei sobre uma abertura
na rocha; e abaixo de mim, o poço, tomando uma direção oblíqua, descia a
uma profundidade considerável, cuja escuridão minha lâmpada não podia
penetrar. Mas do fundo chegava, com indizível surpresa para mim, uma luz
fixa e brilhante. Se tivesse sido de algum fogo vulcânico, haveria seguramente
sentido o calor do mesmo. Não obstante, ainda que disto não tivesse dúvidas,
creditei da maior importância para nossa segurança, que devia checar o que
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era. Examinei, assim, os lados do precipício e vi que podia aventurar-me pelas


saliências e bordas irregulares das rochas, ao menos até certa distância. Saí da
gaiola e fiz a descida. À medida em que me aproximava mais e mais da luz, o
precipício se alargava, até que por fim, para meu inenarrável espanto, vi no
fundo do abismo, um amplo caminho nivelado, iluminado até onde alcançava
a vista, pelo que pareceram-me lâmpadas de gás artificial, colocadas a
intervalos regulares como nas vias públicas de uma grande cidade; ouvi,
ademais, à distância, algo como o zumbido do que pareciam ser de vozes
humanas. Eu sei, por certo, que não há mineradores rivais trabalhando nesta
região do país. De quem poderiam ser tais vozes? Que mãos humanas
puderam nivelar o caminho e alinhar aquelas lâmpadas?
“A superstição corrente entre os mineradores, segunda a qual gnomos ou
espíritos malignos habitam as entranhas da terra, começou a tomar conta de
mim. Arrepiou-me o pensamento de descer além e defrontar-me com os
habitantes deste mundo infernal. De qualquer maneira não teria podido descer
sem cordas; posto que desde o ponto onde me encontrava, as paredes do
precipício se ampliavam em forma de abóbada, o que fazia impossível
qualquer descida. Com certa dificuldade voltei atrás. Agora lhe contei a
história toda”.

-“Voltará você a descer?”

-“Eu deveria, mas sinto que não me atrevo.”

-“Um companheiro de confiança divide pela metade as dificuldades da jornada


e duplica a coragem. Irei com você. Nos muniremos com cordas de extensão e
resistência apropriadas e ----- perdoe-me ------ você não deve beber mais esta
noite. Nossas mãos e pés tem de estar firmes e fortes amanhã.”

CAPÍTULO II

Na manhã seguinte, os nervos do meu amigo já se haviam acalmado e sua


curiosidade não estava menos excitada que a minha. Talvez até mais. Pelo
razão que evidentemente acreditava em seu próprio relato, enquanto que eu
tinha bastantes dúvidas. Não que acreditasse que havia contado
deliberadamente uma mentira; mas eu achava que se encontrava sob uma
destas alucinações que se apoderam de nossa fantasia e de nossas nervos em
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lugares solitários ou não habituais, em que damos forma ao sem forma e som
ao silêncio.
Escolhemos seis mineiros veteranos para auxiliar a descida. Como a
gaiola não podia conter mais de um por vez, o engenheiro desceu primeiro;
quando chegou a borda da rocha em que se havia detido no dia anterior, saiu
da gaiola e esta foi elevada para que eu descesse por minha vez e tão logo me
encontrei ao lado de meu amigo. Tínhamos providenciado para nós mesmos
um potente rolo de corda.
A luz atingiu minha vista como tinha acontecido com meu amigo no dia
anterior. A galeria pela qual avançávamos descia diagonalmente; pareceu-me
luz atmosférica difusa, não como a do fogo, mas suave e argêntea como de
uma estrela polar. Abandonando a gaiola, descemos um atrás do outro sem
dificuldade, graças às rochas salientes nas paredes, até que chegamos ao lugar
em que meu amigo teve de deter-se, a qual era um prolongamento bastante
espaçoso de forma que pudéssemos estar juntos. Desde este ponto, o
precipício se alargava bruscamente até abaixo como um grande funil, e vi
distintamente a planície, a estrada e as lâmpadas que meu amigo havia
descrito. Não havia exagerado em nada. Ouvi os sons que ele tinha escutado---
- um indescritível murmúrio misturado de vozes e um tropel como de passos
apagados. Forçando minha vista, mais abaixo percebi claramente à distância
as linhas do que imaginei um edifício muito grande. Não podia ser mera rocha
natural; era demasiado simétrico; se destacavam imensas colunas de estilo
egípcio e todo ele iluminado como se a partir de dentro. Levava comigo um
pequeno binóculo de bolso e com a ajuda do mesmo pude distinguir, próximo
ao edifício que menciono duas formas, ao que parecia humanas, apesar de não
ter certeza. Ao menos eram seres vivos, porque se moviam e ambos
desapareceram dentro do edifício. Procedemos a firmar uma ponta da corda,
que havíamos trazido, na rocha em que estávamos, com a ajuda de presilhas e
ganchos que também levávamos juntos com as ferramentas necessárias.
Executamos este trabalho quase em silêncio. Trabalhamos como
homens que temiam conversar. Depois de firmar um extremo da corda na
rocha, amarramos uma pedra na outra extremidade e baixamos até que pousou
no solo a uma profundidade de 15 metros. Eu era mais jovem e mais ágil que
meu companheiro e por haver servido em uma embarcação em minha
mocidade, o deslizamento pela corda era-me mais fácil que para ele. Em voz
baixa reivindiquei o direito de preferência, com o propósito de uma vez no
solo sustentar a corda, a fim de que, estando esta mais fixa, poder ele baixar
melhor. Cheguei em segurança no solo; imediatamente o engenheiro começou
a baixar. Mas apenas havia descido uns quatro metros, quando os ganchos que
críamos estarem bem seguros cederam ou mais certo a rocha mesma se
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quebrou por causa da tensão e o desgraçado foi jogado ao fundo, caindo a


meus pés e arrastando com ele pedaços de rocha, um dos quais,
afortunadamente pequeno, atingiu-me na cabeça e por algum tempo atordoou-
me. Ao recobrar meus sentidos, vi meu companheiro inanimado a meu lado;
sua vida completamente extinta. Enquanto eu estava inclinado sobre seu
cadáver, cheio de dor e horror, ouvi próximo a mim um estranho ruído,
mistura de ronco e silvo e virando-me instintivamente para a direção de onde
vinha, vi surgir de uma escura fenda na rocha, uma enorme e terrível cabeça
com mandíbulas abertas e olhos mortiços, lívidos e famintos. Era a cabeça de
um monstruoso réptil, semelhante ao crocodilo, mas infinitamente maior que o
maior daquela espécie que jamais havia visto em minhas viagens. Levantei-me
de um salto e corri para o vale o mais depressa que pude. Detive-me, ao fim,
envergonhado de meu pânico e de minha disparada e voltei ao local em que
havia ficado o corpo de meu amigo. Porém este havia desaparecido. Sem
dúvida alguma, o monstro já o tinha arrastado para sua toca e devorado-o. A
corda e os ganchos jaziam, todavia, onde haviam caído; porém não me davam
meio de voltar atrás; era impossível voltar a enganchá-los nas rochas acima, e
as paredes da rocha eram muito lisas para que pés humanos pudessem
encontrar apoio nas mesmas. Encontrava-me sozinho neste mundo
desconhecido nas entranhas da Terra.

CAPÍTULO III

Devagar e cautelosamente segui pelo caminho iluminado até o grande edifício,


que tinha mencionado anteriormente. O caminho em si tinha o aspecto de uma
grande via alpina, margeando montanhas rochosas de cuja cadeia fazia parte a
do precipício do qual havia descido. A grande profundidade à minha esquerda
visualizava um amplo vale, que oferecia a meus assombrados olhos a
inconfundível evidência de arte e cultura. Havia campos cobertos de uma
estranha vegetação que não se parecia a nada do que havia visto na superfície
da Terra; a cor não era verde, mas mais exatamente de um matiz plúmbea
opaca ou de um vermelho dourado. Haviam lagos e regatos, ao que parece
formados artificialmente; uns de água pura; outros brilhavam como tanques de
nafta. À minha direita abriam-se ravinas e desfiladeiros entre as rochas com
passagens entre eles, evidentemente construídos com arte e margeado por
árvores, parecidas em sua maior parte a gigantescos samambaias de primorosa
variedade de suave folhagem e troncos como os das palmeiras. Outros eram
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mais assemelhados com a cana, porém mais altos terminados em grande


ramalhete de flores; outros, ao invés, tinham a forma de enormes cogumelos
com troncos curtos e grossos, que suportavam um amplo teto a guisa de
cúpula, do qual se elevavam e caíam largas e esbeltas ramificações. A
totalidade da paisagem a frente, atrás e a meus lados, até onde a vista podia
alcançar, brilhava à luz de inumeráveis lâmpadas. O mundo sem um Sol era
luminoso e quente como uma paisagem italiana ao meio-dia; porém o ar era
menos opressivo e o calor mais suave. O cenário perante mim tampouco
carecia de sinais de habitação. Podia distinguir a certa distância, nas margens
de lagos e regatos, ou nos declives parcialmente cobertos com vegetação,
edifícios que seguramente serviam de casa a seres humanos. Pude até discernir,
ainda que muito distante, formas que me pareceram humanas, movendo-se em
meio à paisagem. Em um momento em que me detive a observar vi a minha
direita deslizar-se rapidamente pelo ar, o que parecia ser uma pequena
embarcação, impulsionada por velas que mais pareciam com asas. Sem
demora esta saiu de meu campo de visão, descendo por entre as sombras da
floresta. Diretamente acima de mim não havia céu, unicamente um teto
cavernoso. Este teto se elevava mais e mais com a distância sobre os vales
distantes até que se tornava imperceptível. Uma atmosfera de neblina o
preenchia todo.
Continuando meu caminho, vi que de um arbusto, que se parecia a um grande
emaranhado de algas marinhas, misturadas com samambaias e plantas de
folhas largas de forma parecida com a do aloés, saía um curioso animal de
tamanho e forma de um veado. Depois de dar alguns passos, o animal voltou-
se e olhou-me inquisitivamente; só então me dei conta de que não se parecia a
nenhuma das espécies de veados que hoje existem na superfície da Terra e
trouxe a minha memória instantaneamente uma figura de gesso, que havia
visto em algum museu, de uma variedade de alce adulto que se dizia ter
existido antes do dilúvio. O animal parecia ser bastante manso; e depois de
observar-me por alguns instantes, começou a pastar na singular vegetação ao
redor, sem importar ou preocupar-se comigo.

CAPÍTULO IV

Pouco depois, o edifício inteiro a que havia me referido, estava ante minha
vista. Efetivamente, estava construído por mão humana e parcialmente talhado
em uma grande rocha. A primeira vista, podia supor-se que o estilo do mesmo
pertencia à primitiva forma de arquitetura egípcia. Em sua frente tinha grandes
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colunas afiladas sobre plintos maciços, cujos capitéis, segundo observei ao


aproximar-me, eram mais ornamentais e mais fantasticamente garbosos do que
a arquitetura egípcia permite. Assim como o capitel coríntio reproduz a folha
do acanto, assim os capitéis daquelas colunas imitavam a folhagem da
vegetação que rodeava o edifício, algo como a alcachofra e a samambaia.
Enquanto fazia estas observações, saiu deste edifício uma forma humana...era
humana? Deteve-se no amplo portal, olhou ao redor, viu-me e se aproximou.
Chegou a até poucos passos de mim. Ante sua visão e presença meus pés
ficaram enraizados no chão e apoderou-se de mim indescritível temor que me
fez tremer. Recordou-me as imagens simbólicas dos gênios ou demônios que
se vêem em nos vasos etruscos ou desenhadas nas paredes das sepulturas
orientais; imagens que reproduzem o perfil do homem, mas que são de outra
raça. Era alto, não gigante; mas tão alto quanto o homem que mais se
aproxima ao gigante.
Sua roupa principal, conforme me pareceu, consistia de grandes asas
dobradas sobre seu peito, que lhe chegavam até ao joelho; o resto da sua
vestimenta estava composta de uma túnica e perneiras de um material delgado
fibroso. Na cabeça levava uma espécie de tiara que resplandecia com pedras
preciosas; e em sua mão direita levava um bastão delgado de um metal
brilhante parecido com aço polido. Mas, a face! Isto foi o que me inspirou
inquietude e terror; era o rosto de um homem, mas de um tipo distinto de
nossas raças conhecidas. O que mais se lhe aproximava é o perfil e a
expressão da esfinge, tão regular em sua serenidade e beleza intelectual e
misteriosa. Sua cor era peculiar, mais parecida com aquela do homem
vermelho que qualquer outra variedade de nossa espécie; sua tez era mais rica
e suave; os olhos eram grandes, negros, profundos e brilhantes; as
sobrancelhas arqueadas em semicírculo. O rosto era imberbe; mas tinha algo
indistinto em seu aspecto, que apesar da expressão serena e a beleza das
feições, despertava o instinto de perigo que se sente à vista de um tigre ou de
uma serpente. Senti que aquela imagem varonil estava dotada de forças hostis
ao homem. Ao ver que se aproximava senti um suor frio, caí de joelhos e me
cobri o rosto com as mãos.

CAPÍTULO V

Uma voz dirigiu-se a mim. Um tom de voz muito calmo e musical em uma
língua que não pude entender uma palavra, mas que serviu para dissipar meu
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medo. Destapei meu rosto e olhei para cima. Aquele ser (eu dificilmente podia
considerá-lo “homem”) observava-me com um olhar que parecia ler as
profundezas do meu coração. Então, aplicou sua mão esquerda sobre minha
testa, e com a varinha que portava em sua direita tocou gentilmente meu
ombro. O efeito deste duplo contato foi mágico.
No lugar de meu medo anterior, experimentei uma sensação de contento,
de alegria, de confiança em mim mesmo e não coisas que me rodeavam.
Levantei-me e falei em minha própria língua. O desconhecido escutou-me
com aparente atenção, porém havia certa expressão de surpresa em sua face, e
balançou a cabeça como para dar a entender que não me compreendia. Depois
me tomou pela mão e me conduziu em silêncio ao edifício. A entrada era
aberta, posto que de fato não havia porta alguma. Entramos em um imenso
salão, iluminado pelo mesmo sistema de luz que no exterior; mas se difundia
pelo ar um delicado perfume. O pavimento era de mosaico, formado por
blocos de metais preciosos, e em parte coberto por uma espécie de esteiras.
Uma suave melodia se deixava ouvir por todos as regiões do salão, tão natural
ali como o murmúrio de água, em uma paisagem montanhosa, ou o gorjeio de
pássaros em arvoredo primaveril.
Uma figura de traje semelhante ainda que mais simples que o do meu
guia, estava imóvel perto da entrada. Meu guia o tocou duas vezes com sua
varinha, a figura se pôs rapidamente em u rápido e flutuante movimento,
deslizando silenciosamente pelo chão, ao olhar-me, me dei conta que não
tinha vida, senão que era um autômato mecânico.
Faria dois minutos que havia desaparecido, por uma abertura sem porta, meio
coberta com cortinas, situada no outro extremo do salão, quando saiu pela
mesma um garoto de uns doze anos, de feições tão parecidas às de meus guia,
que evidentemente me pareceram pai e filho. Ao ver-me, o garoto soltou um
grito e levantou em atitude ameaçadora uma varinha parecida com a que
levava meu condutor; mas a uma palavra deste a baixou.
Os dois falaram durantes alguns instantes, examinando-me enquanto
falavam. O garoto tocou minhas roupas e acariciou meu rosto com evidente
curiosidade, emitindo um som parecido a uma risada; mas sua hilaridade era
mais controlada que o regozijo expresso por nossa gargalhada. Prontamente
desceu uma plataforma, construída como os elevadores de nossos grandes
hotéis e armazéns para subir aos pisos superiores.
Meu guia e o garoto subiram na plataforma e me indicaram que fizesse
o mesmo, como assim o fiz. A ascensão foi rápida e segura e nos
encontrávamos no meio de um corredor com entradas em ambos os lados.
Através de uma destas entradas, eu fui conduzido a uma câmara adornada com
esplendor oriental; as paredes eram cobertas de mosaicos, formados com
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mastros, metais e pedras preciosas brutas; abundavam divãs e almofadas;


umas aberturas a guisa de janelas, que avançavam do chão, mas sem vidros,
davam iluminação ao aposento e estabeleciam comunicação a espaçosas
varandas que permitiam contemplar a paisagem iluminada dos arredores. Em
gaiolas penduradas no teto, viam-se pássaros de estranha forma e de brilhante
plumagem, e que, à nossa entrada, entoaram em coro um canto modulado ao
estilo de nossos melros. Um delicioso perfume, procedente de incensários de
ouro elaboradamente esculpidos enchia o ambiente.
Vários autômatos, parecidos ao que antes havia visto, permaneciam de
pé, mudos e imóveis, apoiados na parede. O desconhecido me fez sentar perto
dele em um divã e falou-me novamente e também eu falei; mas sem conseguir
entender-nos um ao outro.
Comecei, então, a sentir mais agudamente os efeitos do golpe recebido ao cair
em cima de mim os fragmentos da rocha. Sobreveio-me algo como um súbito
desmaio, acompanhado de pungentes e muito agudas dores na cabeça e no
pescoço. Deixei-me cair para trás no respaldo do assento, fazendo vãos
esforços para abafar um gemido. Ao ver-me neste estado, o garoto, que até
então parecia olhar-me com desconfiança e antipatia, ajoelhou-se a meu lado
para sustentar-me, tomou uma de minhas mãos entre as suas, aproximou seus
lábios de minha testa e assoprou suavemente sobre esta. Em poucos momentos
minha dor havia cessado; e uma calma letárgica e pesada tomou conta de mim.
Neste momento adormeci.
Não sei quanto tempo permaneci neste estado; só sei que, ao despertar,
senti-me perfeitamente restabelecido. Ao abrir os olhos me vi cercado de
formas silenciosas, sentadas ao meu redor com a gravidade e quietude dos
orientais; todas eram parecidas com a do primeiro indivíduo com quem me
encontrei; iguais asas os envolviam como mantos; vestiam as mesmas roupas,
tinham os mesmos rostos de esfinge, de olhos profundos e pele cor vermelha;
acima de tudo, era o mesmo tipo de raça; tipo humano, mas de aspecto mais
robusto e de melhor aparência, a qual inspirava um indizível sentimento de
terror. Ainda assim, cada expressão era gentil e tranqüila, e até mesmo
bondosa. Por estranho que pareça, me parecia que nesta mesma calma e
benignidade estava o segredo do terror, que sua presença inspirava.
Seus rostos eram isentos de linhas e sombras, com que os cuidados e tristezas
marcam os rostos dos homens; pareciam mais bem rostos de deuses esculpidos;
algo assim como aparece, aos olhos de um compadecido cristão, a serena face
do mortos.
Senti em meu ombro o contato quente de uma mão; era a do garoto. Em
seus olhos se refletiam uma mistura de pena e ternura, como quando olhamos
para algum pássaro ou mariposa em sofrimento. Esquivei-me ante tal contato e
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ante tal olhar; me causavam a vaga impressão de que, aquele garoto poderia,
se quisesse, matar-me, com a mesma facilidade que um homem pode matar a
um pássaro ou uma mariposa. O garoto pareceu magoar-se de minha
repugnância; separou-se de mim e se retirou para o lado de uma das janelas.
Os outros continuavam conversando em voz baixa. Por seus olhares em minha
direção, me dei conta de que eu era o objeto de sua conversação. Um deles,
em particular, parecia empenhado em convencer, ao que me havia encontrado
primeiramente, sobre alguma proposta que me afetava; o último pareceu-me,
por seus gestos, a ponto de consentir, quando, de repente, o garoto deixou seu
lugar próximo à janela e se interpôs entre os outros e eu, como para proteger-
me, e falou de maneira viva e enérgica. Por intuição ou instinto, me dei conta
de que o garoto, a quem tanto temia anteriormente, estava advogando em meu
favor. Ainda não havia o garoto terminado de falar, quando outro
desconhecido entrou no aposento. Aparentemente era de idade mais avançada
que os outros, ainda que não era velho. Seu aspecto, menos sereno que o dos
demais dava uma sensação de humanidade mais em consonância com a minha.
O recém chegado escutou calmamente o que lhe diziam. Primeiro a meu guia,
logo aos do grupo e finalmente ao garoto; depois se dirigiu a mim, não com
palavras, senão por signos e gestos. Pensei entender-lhe perfeitamente e não
me equivoquei. Compreendi que me perguntava de onde havia vindo. Estendi
meu braço e apontei em direção ao caminho que havia seguido, desde o
precipício de rochas; então se me ocorreu uma idéia. Saquei meu caderno de
anotações e em uma das folhas fiz um desenho da borda da rocha, da corda e
eu pendurado nesta; logo delineei as rochas cavernosas abaixo, a cabeça do
réptil e o corpo sem vida de meu amigo. Entreguei este primitivo tipo de
hieróglifo a meu interrogador, quem, depois de examiná-lo gravemente, o
passou a seu vizinho e assim percorreu todo o grupo. Após tal exame, o
primeiro ser, a quem eu havia encontrado, proferiu algumas palavras e o
garoto, que se havia aproximado e examinado o desenho, moveu a cabeça
afirmativamente, dando a entender que compreendia o que significava. O
garoto se aproximou da janela, expandiu suas asas, as sacudiu uma ou duas
vezes e se lançou no espaço.
A surpresa fez-me dar um salto e corri para a janela. O menino já estava
no ar, sustentado por suas asas, as quais ele não agitava para frente e para trás,
como a dos pássaros, senão que se elevavam sobre sua cabeça e pareciam o
sustentar nas alturas, sem esforço de sua parte. O menino voava com a rapidez
de uma águia. Observei que estava seguindo em direção à rocha que eu havia
descido, cujos contornos conseguiam-se divisar através da brilhante atmosfera.
A uns poucos minutos, voltava entrando pela mesma abertura da qual havia
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saído, largando no chão a corda e os ganchos, os quais eu havia abandonado


ao descer pelo precipício.
Entre os presentes cruzaram-se algumas palavras. Um do grupo tocou a
um dos autômatos, o qual avançou e deslizou-se para fora da sala. Logo, o
último que havia entrado e dirigindo-se a mim através de gestos, me tomou
pela mão, e me conduziu ao corredor. Ali nos esperava a plataforma em que
havíamos ascendido; subimos nela e descemos até o salão inferior. Meu novo
companheiro, sempre me segurando pela mão, me conduziu do edifício para a
rua (por assim dizer) que se estendia à frente, margeada em cada lado por
edifícios separados entre si por jardins, cobertos de brilhante vegetação de
cores vivas e flores exóticas. Em meio a estes jardins (os quais estavam
separados por paredes baixas) ou caminhando pela rua, viam-se muitas formas
similares às que já havia visto. Alguns dos transeuntes, ao observarem-me,
aproximaram-se de meu guia, e evidentemente por seus tons, expressões e
gestos o perguntavam sobre mim. Em poucos instantes juntou uma multidão
ao nosso redor, que me examinava com grande interesse, como se tratasse de
algum raro animal selvagem. Não obstante, ao satisfazer sua curiosidade,
mantiveram uma atitude cortês e grave e depois de breves palavras de meu
guia, quem me pareceu que se queixava da obstrução de nosso caminho,
afastaram-se fazendo uma solene inclinação de cabeça e seguiram seus
caminhos, com tranqüila indiferença.
Havíamos percorrido a metade da rua, quando nos detivemos ante um
edifício diferente dos que até então tínhamos passado; formava os três lados
de um vasto pátio; nos ângulos do mesmo, elevavam-se altas torres de forma
piramidal e no espaço aberto entre os lados havia uma fonte circular de
dimensões colossais, da qual brotava um jorro de água que logo descia em
forma de deslumbrante chuva, que a mim me pareceu de fogo. Penetramos no
edifício por um dos portais e nos encontramos em um enorme salão; neste se
viam grupos de crianças, todos aparentemente trabalhando como se em uma
grande fábrica. Em uma das paredes havia uma enorme máquina em pleno
funcionamento, com rodas e cilindros, parecida a nossas máquinas a vapor,
com a diferença de que estava ricamente ornamentada com pedras e metais
preciosos e emitia resplendor pálido e fosforescente atmosfera de luz irregular.
Alguns dos garotos trabalhavam em algo misterioso naquela maquinaria;
outros estavam sentados em mesas. Não fui permitido me alongar tempo
suficiente para examinar a natureza de seus trabalhos. Não se deixava ouvir
nem uma única voz daqueles garotos e nem uma única cabeça moveu-se para
nos olhar. Estavam quietos e indiferentes como fantasmas, entre os quais
passam inadvertidas as formas viventes.
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Saindo deste salão, meu guia me levou por uma galeria, ricamente
pintada em seções, com uma exótica mistura de ouro nas cores, como os
quadros de Luis Cranach*. Os temas descritos naquelas paredes aparentaram-
me como pretendendo ilustrar eventos na história da raça em meio da qual
havia caído. Em todas pinturas havia figuras, a maioria delas iguais às
criaturas de aparência humana que tinha visto, mas não todas com a mesma
vestimenta, nem todas com asas. Havia também representações de vários
animais e pássaros, completamente desconhecidos para mim. Os fundos
reproduziam paisagens e edifícios. Até onde meus escassos conhecimentos de
arte pictórica me permitem opinar, aquelas pinturas me pareceram exatas em
desenho, rica em cores, mostrando um perfeito conhecimento da perspectiva;
porém os detalhes não se ajustavam de maneira alguma às regras de
composição aceitas por nossos artistas, pois lhes faltava, por assim dizer, um
centro, de maneira que o efeito era vago, espalhado, confuso, desconcertante;
eram como fragmentos heterogêneos de um sonho de arte.
Chegamos a uma sala de dimensões moderadas, na qual estava reunida
a que, depois soube, era a família de meu guia. Achavam-se sentados ao redor
de uma mesa como para almoçar. As formas ali agrupadas eram a esposa de
meu guia, a filha e dois filhos. De imediato reconheci a diferença entre os dois
sexos. Observei que as mulheres eram mais altas e de maiores proporções que
os homens e de linhas e contornos, todavia mais simétricos; porém careciam
da suavidade e expressão tímida que dão encanto ao rosto de nossas mulheres
sobre a Terra. A esposa não possuía asas. As da filha eram mais longas que as
dos homens.
Meu guia proferiu umas poucas palavras; ao ouvi-las, as pessoas
sentadas se levantaram e com a peculiar doçura no olhar e maneiras, que havia
observado antes e que, em verdade, era característica comum daquela
formidável raça, saudaram-me à sua maneira, a qual consiste em levar-se a
mão direita gentilmente à cabeça e emitir um monossílabo sibilante: ssssi...,
cujo significado é equivalente a “Bem vindo”.
A dona de casa me indicou um assento a seu lado e serviu um grande
prato de ouro em minha frente com uma das iguarias.
Ao prová-las, não obstante serem comidas desconhecidas para mim,
fiquei maravilhado, mais pela delicadeza e qualidade do sabor das mesmas,
que por seu estranho aroma. Meus companheiros, entretanto conversavam
calmamente entre si, e pelo que pude notar, evitavam cortesmente toda
referência direta a mim ou comentário indiscreto sobre minha aparência. Não
obstante, eu era a primeira criatura, da variedade da raça humana, a que
pertenço, que eles haviam visto, sendo conseqüentemente, considerado por
eles como um muito curioso e anormal fenômeno.
13

Porém toda rudeza é desconhecida para aquela gente e a mais jovem


criança é ensinada a desprezar qualquer veemente demonstração emocional.
Quando a refeição estava terminada, meu guia novamente tomou-me
pela mão e voltando à galeria, tocou uma lâmina metálica coberta de estranhos
caracteres, a qual conjeturei seria algo assim como nosso telégrafo. Desceu
uma plataforma, mas desta vez, ascendemos a maior altura que no edifício
anterior e nos encontramos em uma sala de dimensões modestas, cujo aspecto
geral tinha muito que pudesse ser familiar às associações de habitantes do
mundo superior. Havia estantes nas paredes contendo o que pareciam ser
livros, e de fato o eram; em maioria muito pequenos, como volumes em
miniatura, todos encadernados em belas capas de fino metal. Distribuídos pela
sala havia vários mecanismos muito curiosos, que me parecem modelos, como
os que se encontram no laboratório de qualquer mecânico profissional. Em
cada ângulo da sala havia, parado, imóvel como um fantasma, um autômato
(dispositivo mecânico, do qual se valia aquela gente para todos os afazeres
domésticos). Numa alcova havia uma cama baixa ou divã com almofadões.
Uma janela, com as cortinas de um material fibroso descerradas, abria-se
sobre uma grande varanda. Meu guia saiu para ela e eu o segui. Nos
encontrávamos no piso mais alto de uma das pirâmides angulares. A vista que
desde ali se dominava era de beleza selvagem e imponente impossível de
descrever. As vastas cordilheiras de rochas escarpadas que formavam o fundo
distante da paisagem, os vales intermediários cobertos de místicas ervas
multicoloridas, o cintilar das águas, muitas de cujas correntezas pareciam de
chama rosácea, a serena luminosidade difusa que iluminava tudo, procedente
de miríades de lâmpadas, se combinavam em um conjunto que não tenho
palavras para transmitir descrição adequada. Tão esplêndido era, ainda tão
sombrio; tão atraente e, ainda assim, tão terrível.
Poucos momentos depois, me vi interrompido na contemplação de tão
estranhas paisagens. Repentinamente, difundiu-se pelo espaço uma alegre
música que parecia proceder da rua; logo apareceu pelos ares uma forma alada;
logo outra, como em perseguição da primeira; logo outras e outras, até que me
foi impossível contá-las, tão numerosa e densa era a multidão que enchia o
espaço. Mas, como descrever a graça fantástica daquelas formas e seus
ondulantes movimentos! Pareciam dedicados a algum esporte ou
entretenimento; umas vezes se reuniam em grupos opostos; outras se
separavam; um grupo seguindo ao outro, elevando, descendo, interligando,
separando-se; todos os movimentos no compasso da música de abaixo, como
nas danças do lendário Peri.*
Voltei meu olhar pasmo a meu hóspede com assombro febril. Atrevi-me
a tocar, com minha mão, as largas asas, dobradas sobre seu peito e, ao contato,
14

senti algo como uma descarga elétrica. Encolhi-me temeroso; meu anfitrião
sorriu e, como se quisesse cortesmente satisfazer minha curiosidade, estendeu
lentamente seus braços. Notei que sua vestimenta abaixo das asas se dilatava
como uma bexiga que se enche de ar. Os braços pareciam deslizar-se dentro
das asas; um momento depois se havia lançado ao espaço luminoso, ficando
ali suspenso com as asas estendidas, como uma águia que se aquece ao sol.
Então, rapidamente como uma águia que se precipita, lançou-se para baixo no
meio de um dos grupos, deslizando de um lado pelo outro, se elevou de novo.
Logo após, três formas separaram-se dos demais, em uma das quais pareceu-
me reconhecer a filha de meu guia, seguindo-o, como os pássaros seguem um
atrás do outro. Meus olhos, deslumbrados pelas luzes e assombrado pela
multidão, deixaram de enxergar os giros e evoluções destes jogadores alados;
até que meu anfitrião saiu de dentre aquela multidão e pousar a meu lado.
O maravilhoso de tudo aquilo, jamais visto por mim, começou a afetar
fortemente meus sentidos; minha mente por si só começou a variar.
Ainda que não tendente a ser supersticioso, nem jamais havia acreditado,
até então, que o homem pudera colocar-se em contato corporal com os
demônios, senti o terror e a incrível excitação que, na idade média, teria
sentido um viajante na presença de um sabat* de demônios e bruxas. Tenho a
vaga lembrança de que tentei veementes gesticulações e fórmulas de
exorcismo e palavras sonoras incoerentes para repelir meu cortês e indulgente
anfitrião; quem com amáveis esforços tratava de acalmar e tranqüilizar-me;
pois acertadamente compreendeu que meu terror e agitação eram ocasionados
pela diferença de forma e movimento, principalmente pelas asas, os quais
haviam excitado minha maravilhosa curiosidade e que o espetáculo havia
excitado ainda mais. Parece-me recordar seu sorriso gentil quando, para
acalmar meu medo, deixou cair suas asas no chão, com a idéia de demonstrar-
me serem apenas um dispositivo mecânico. A repentina transformação não fez
mais que aumentar meu horror; e vítima de um paroxismo extremo, que se
manifesta por extrema coragem, lancei-me em seu pescoço tal qual besta
selvagem. No mesmo instante caí no solo como se tocado por uma descarga
elétrica; as imagens confusas que flutuaram perante meus olhos, até que fiquei
inconsciente, foi a forma de meu anfitrião, ajoelhado a meu lado, com uma de
suas mãos à minha frente e o belo e calmo rosto de sua filha, com seus
grandes olhos inescrutáveis, cravados fixamente nos meu.
15

CAPÍTULO VI

Conforme soube depois, permaneci naquele estado durante muitos dias,


melhor dito semanas, segundo nós mesmos computamos o tempo. Ao voltar a
mim, encontrei-me em um quarto desconhecido e meu anfitrião e toda sua
família me rodeavam. Com indizível surpresa para mim, a filha de meu
anfitrião dirigiu-se a mim em meu próprio, com apenas um leve sotaque
estrangeiro:
- como se sente? – perguntou.
Passaram alguns momentos antes que pudesse controlar minha surpresa, o
suficiente para balbuciar:
- “você conhece meu idioma? Como? Quem e o que é você”?
Meu anfitrião sorriu e fez um sinal a um de seus filhos, que pegou de uma
mesa várias finas folhas metálicas e mostrou-as a mim. Nelas estavam
traçados desenhos de diversas figuras: uma casa, uma árvore, um pássaro, um
homem, etc.
Naqueles desenhos reconheci meu próprio estilo. Abaixo de cada figura estava
escrito o respectivo nome em meu idioma e em minha escrita, e, embaixo,
com outra caligrafia, uma palavra desconhecida para mim.
Disse-me meu anfitrião: “assim começamos; minha filha Zee, que
pertence ao Colégio dos Sábios, tem sido sua instrutora e a nossa também”.
Zee então pôs em minha frente outras folhas de metal, nas quais havia
escrito com minha caligrafia, primeiro palavras e depois frases. Abaixo de
cada palavra e cada frase havia estranhos caracteres em outra escrita.
Concentrando meus sentidos compreendi que daquela maneira haviam
formado um rudimentar dicionário. Tinha tal sido feito enquanto eu sonhava?
“Isto é suficiente, por hoje” disse Zee com tom imperativo. “Descanse e
alimente-se”.

CAPÍTULO VII

Foi-me concedido um quarto particular naquele vasto edifício. Estava bela e


fantasticamente arrumado; mas sem a esplendorosa decoração de metal e
pedras preciosas que havia nos salões públicos. As paredes estavam cobertas
de tapeçarias feitas de talos e fibras de plantas e o chão estava coberto por
tapetes do mesmo material.
A cama não tinha cortinas, os suportes de ferro descansavam sobre
bolas de cristal; a roupa de cama era de um material delgado branco parecido a
16

algodão. Havia ainda várias estantes contendo livros. Em um compartimento


coberto com uma cortina havia um aviário cheio de aves cantoras, entre as
quais não pude reconhecer nenhuma que se parecesse às vistas em nossa Terra,
exceto uma bela espécie de pomba, ainda que esta se distinguia das nossas por
uma alta crista de plumas azuladas. Todas estas aves tinham sido treinadas
para que cantassem em tons artísticos que excediam grandemente ao de nossos
melros, os quais raras vezes podem alcançar mais que dois tons e quanto
menos cantar em concerto. Alguém se acreditaria transportado à uma ópera,
ao escutar as vozes de meu aviário. Havia duos, trios, quartetos e coros, todos
arranjados como em uma partitura. Quereria eu fazer silenciar a meus pássaros?
Não tinha mais que fechar a cortina e seu canto cessava ao ficarem na
escuridão.
Outra abertura formava uma janela, sem vidros; mas tocando um
ferrolho ascendia do solo uma espécie de persiana, feita de substancia menos
transparente que o vidro, porém o bastante translúcido para permitir uma vista
suavizada do exterior. Esta janela dava saída a um amplo terraço, melhor dito,
um jardim suspenso, no que cresciam muitas plantas graciosas e flores
brilhantes. O apartamento e seus móveis tinham, assim, um caráter que ainda
que estranho em detalhe, era familiar em conjunto à moderna noção de luxo, e
poderia ter causado admiração de haver-se encontrado em alguma casa
aristocrática inglesa ou de um autor francês de moda. Antes de minha chegada,
este era o quarto de Zee, quem hospitaleiramente cedeu para mim.
Algumas horas depois de haver despertado, segundo explicitei no
capítulo precedente, me encontrava deitado em minha cama tratando de
coordenar minhas idéias e fazendo conjeturas acerca da natureza e gênero da
gente entre a qual me encontrava, quando meu anfitrião e sua filha Zee
entraram. Meu anfitrião falando sem seu idioma nativo, me perguntou com
muita cortesia se me seria agradável conversar ou se preferia ficar sozinho.
Respondi-lhe que me considerava muito honrado e agradecia a oportunidade
que me proporcionava para expressar-lhe minha gratidão pela hospitalidade e
atenções que se me faziam objeto, em um país em que eu era um estranho,
como também para aprender algo de seus costumes e hábitos, a fim de não
ofender por meio de minha ignorância.
Enquanto eu falava, levantei-me naturalmente da cama; porém Zee,
muito devido à minha confusão, ordenou que me deitasse novamente; percebi
algo em sua voz e olhar que me forçaram obediência. Ela sentou-se sem
cerimônia ao pé de minha cama enquanto seu pai se acomodava em um divã, a
poucos passos de nós.
“Mas de que parte do mundo vem você?”, perguntou-me o pai, “que
pareçamos tão estranhos a você e você a nós? Tenho visto tipos individuais de
17

aproximadamente quase todas as raças, diferentes da nossa, exceto as mais


primitivas que habitam nos mais desolados e remotos rincões sem
desenvolvimento. Estas não conhecem outra luz que a que emana de fogos
vulcânicos e se contentam em viver quase às escuras, como muitos seres que
se arrastam, engatinham e até mesmo voam. Porém você certamente não pode
pertencer a estas tribos bárbaras; ainda que por outro lado não pareça
pertencer a nenhum povo civilizado.”
Fiquei de certo modo um pouco magoado com sua última observação e
lhe retorqui que tinha a honra de pertencer a uma nação considerada uma das
mais civilizadas da Terra e que, no que se referia à questão da luz, enquanto
eu admirava a ingenuidade e esplendor com que meu anfitrião e seus
concidadãos haviam conseguido iluminar as regiões em que a luz do sol não
podia penetrar, não conseguia eu conceber que quem havia contemplado os
corpos celestes podia comparar seu brilho com as luzes artificiais, inventadas
pelas necessidades do homem. Porém meu interlocutor insistiu em que havia
visto tipos de quase todas as raças diferentes da sua, salvo os atrasados
bárbaros que havia mencionado. Pois bem, era possível que jamais houvera
estado na superfície da Terra e se referisse unicamente a comunidades
enterradas nas entranhas da mesma?
Meu anfitrião ficou por alguns momentos em silêncio. Seu semblante
expressou uma certa surpresa, coisa que raramente manifestam os de sua raça
sob nenhuma circunstância, por mais extraordinária que seja. Mas Zee, que era
mais inteligente e exclamou: “Vê você, meu pai, como é verdade a antiga
tradição. Há sempre algo de verdade em toda tradição comumente mantida em
todos os tempos e por todas as tribos.”
“Zee”, disse meu anfitrião docemente, “tu pertences ao Colégio dos
Sábios e deve ser mais inteligente que eu; porém, como chefe do Conselho
Conservador da Luz, meu dever é não dar nada por admitido até tal estar
provado pela evidência de meus próprios sentidos.” Nisto, voltando-se para
mim, fez-me perguntas a respeito da superfície da Terra e dos corpos celestiais;
às quais respondia o melhor que meus conhecimentos me permitiam; mas
minhas respostas não pareciam satisfazer-lhe ou convencer-lhe. Moveu a
cabeça em silêncio e mudando o tema quase bruscamente, me perguntou como
havia descido e passado de um mundo a outro.
Explique-lhe que abaixo da superfície da Terra havia minas que
continham minerais, ou metais, essenciais para satisfazer nossas necessidades
e para o progresso de nossas indústrias e artes; logo lhe expliquei de maneira
breve a maneira como explorando uma destas minas, meu desgraçado amigo e
eu havíamos vislumbrado algo das regiões a que havíamos descido e como ao
descer meu amigo havia perdido a vida. Mencionei a corda e os ganchos, que
18

o garoto havia trazido na casa que fui primeiramente recebido, em testemunho


da verdade de quanto havia relatado.
Meu hóspede continuou fazendo-me perguntas sobre os costumes e
modos de vida das raças que habitavam a superfície da Terra; especialmente
as consideradas mais avançadas. Ele definia a civilização como “a arte de
difundir em uma comunidade a serena felicidade que corresponde a uma
virtuosa e bem ordenada família”. Naturalmente procurei apresentar o mundo,
do qual eu vinha, com as mais favoráveis cores, e referi-me ligeira, ainda que
indulgentemente, às antiquadas instituições européias, com a intenção de
contrastá-las com a presente grandeza e futuro predomínio da gloriosa
República Americana ao qual a Europa invejosamente trata de copiar
pressentindo sua ruína.
Como exemplo da vida social dos Estados Unidos, escolhi a cidade na
qual o progresso avança com a maior rapidez e me entretive em uma animada
descrição dos costumes de Nova York. Senti-me mortificado ao ver nos rostos
de meus ouvintes que não lhes causava a favorável impressão que eu esperava,
e elevei meu tema, tratando da excelência das instituições democráticas como
provedoras de sereno bem-estar, por meio do partido que governa, e a maneira
como tal bem-estar se difunde por toda a comunidade, a qual elege para o
exercício do poder aos cidadãos mais probos, de maior cultura e bom caráter.
Afortunadamente, naquele momento, relembrei a síntese de um discurso,
sobre os efeitos purificadores da democracia americana, destinada a difundir-
se por todo o mundo, de certo eloqüente orador (por cujo voto a companhia
ferroviária a qual dois de meus irmãos pertenciam, acabava de pagar 20.000
dólares), e terminei repetindo as entusiastas predições sobre o porvir
magnífico que a humanidade tinha ante si, uma vez que a bandeira da
liberdade ondulasse em todo continente e que duzentos milhões de cidadãos
inteligentes, acostumados desde sua infância à diária manipulação dos
revólveres, aplicaria a um universo acovardado a doutrina do patriota Monroe.
Ao concluir, meu hóspede moveu ligeiramente sua cabeça e adotou uma
atitude meditativa, fazendo um sinal a sua filha e a mim para que nos
calássemos enquanto ele refletia. Após um tempo, disse com tom sério e
solene: “se você crê, como disse, que apesar de estrangeiro tem recebido
atenções de minha parte e dos meus, lho recomendo que nada revele aos
demais a respeito do mundo de onde você vem, a não ser que eu lhe dê
permissão para tal. Concorda com o que lhe peço?”
“Certamente, lhe dou minha palavra”, falei algo surpreendido e estendi
minha mão para tomar a sua; mas ele colocou minha mão suavemente em sua
testa e sua mão direita em meu peito, que é o costume desta raça para selar
todas as promessas e obrigações verbais. Então, voltando-se para sua filha, lhe
19

disse: “E tu, Zee, não repetirá nada do que o estrangeiro tenha dito, ou diga, de
outro mundo que não seja o nosso.” Zee levantou-se e, beijando a seu pai nas
têmporas, disse com um sorriso: “A língua de uma Gy é solta, mas o amor a
sujeita fortemente. Mas, meu pai, se temes por um momento que uma palavra
minha ou sua pode colocar em perigo a nossa comunidade por causa de um
desejo de explorar o mundo mais além do nosso, não bastaria uma onda de
Vril, adequadamente dirigida, para apagar de nosso cérebro até a lembrança
do que temos ouvido dizer o estrangeiro?

“O que é Vril?”, perguntei.

A esta pergunta, Zee entrou em explicações, de quais entendi muito pouco;


pela razão que não existe palavra alguma em nenhum idioma, dos que eu
conheço, que seja sinônimo exato da palavra Vril. A chamarei eletricidade;
porém abarca em suas múltiplas ramificações outras forças da natureza, as
quais em nossa nomenclatura científica dão-se outros nomes, tais como:
magnetismo, galvanismo, etc. Aquela gente acreditava que no Vril haviam
alcançado à unidade das energias naturais, conjeturada por muito de nossos
filósofos da superfície e da que Faraday insinua, sob os mais cuidadosos
termos de analogia:
“Por muito tempo tenho sustentado a opinião”, diz este ilustre experimentador,
“que quase é uma convicção, em comum, segundo creio, com muitos outros
amantes dos conhecimentos naturais, que as várias formas sob as quais se
manifestam as forças da matéria, têm uma origem em comum; ou, em outras
palavras, estão tão diretamente relacionadas e em mútua dependência que são
convertíveis, por assim dizer, uma em outra e possuem equivalências de poder
em sua ação”.
Estes filósofos subterrâneos afirmam que, mediante uma operação de
Vril, ao que Faraday talvez chamaria: “magnetismo atmosférico”, podem eles
influenciar as variações de temperatura; em outras palavras, o clima; que com
outras operações, similar àquelas atribuídas ao mesmerismo, forças
eletrobiológicas, força ódica, etc., porém aplicadas cientificamente através de
condutores de Vril, podem influenciar nossas mentes e os corpos animais e
vegetais, a um grau não sobrepujado pelos relatos de nossos místicos. À
combinação de todos estes agentes, dão eles o nome comum de Vril.
Durante muito tempo estivemos Zee e eu conversando sobre as
propriedades da força “Vril”, tratando Zee de fazer-me compreender a enorme
influência que tal força havia tido no desenvolvimento tão notável daquela
raça.
20

Zee me perguntou se no mundo, de onde eu vinha, não se sabia que as


faculdades mentais podem ser aguçadas a um grau desconhecido em estado de
vigília, de transe ou telepatia, nos quais os pensamentos de um cérebro podem
ser transmitidos a outro e desta maneira estabelecer um intercâmbio rápido de
conhecimentos. Respondi que se falava entre nós de tais casos de transes e
telepatia; que eu mesmo havia ouvido muito sobre estes e havia presenciado
algo do modo de proceder ao provocá-los artificialmente em experimentos de
clarividência mesmérica; acrescentei que tais práticas haviam caído em desuso
e descrédito por causa, em parte, às vulgares fraudes em que elas tinham sido
feitas e, parcialmente devido a que, ainda em casos em que os efeitos sobre
certos sujeitos de constituição anormal eram genuínos, tais efeitos,
examinados e analisados seriamente resultavam-se decepcionantes e não se
podia ter confiança nestes como verdade sistemática ou para fins práticos. Ao
contrário, resultavam prejudiciais para as pessoas crédulas pelas superstições a
que davam origem.
Zee escutou meus argumentos com muito benévola atenção e disse que
casos similares de abuso e credulidade haviam comprovado em sua
experiência científica no alvorecer de tais conhecimentos e enquanto as
propriedades de Vril eram mal compreendidas, mas se reservou dar maiores
explicações sobre o tema para quando eu estivesse melhor preparado para
compreender tal estudo. Contentou-se em acrescentar que, precisamente,
valendo-se de Vril enquanto me encontrava em estado de transe, havia eu
aprendido os rudimentos de seu idioma; e que ela e seu pai, os únicos da
família que haviam tomado parte no experimento, haviam adquirido um
conhecimento de meu idioma muito maior do que havia eu aprendido o deles,
devido em parte que meu idioma era muito mais simples que o seu, pois
continha idéias muito menos complexas, e em parte porque o organismo de
sua raça era, em razão de cultura hereditária, muito mais dúctil e muito mais
capaz que o meu de adquirir conhecimentos. Tal não pude admitir, ainda que
não tenha manifestado tal opinião. Tendo tido que aguçar minha inteligência
no curso de minha vida ativa em meu país e em minhas viagens, não podia
aceitar que minha constituição cerebral fosse menos viva que a das gentes que
haviam vivido sempre sob luz artificial. Mas, enquanto minha mente
desenvolvia tais pensamentos, Zee tranqüilamente dirigiu seu dedo indicador
em minha testa e me fez dormir.
21

CAPÍTULO VIII

Ao despertar novamente, vi ao lado de minha cama o garoto que havia trazido


os ganchos e a corda na casa em que fui primeiramente recebido; a qual
segundo depois soube, era a residência do magistrado chefe da tribo. O garoto
cujo nome era Taë era o filho mais velho do magistrado. Descobri que durante
meu último sono ou transe, havia eu feito grandes progressos na aprendizagem
do idioma do país e que podia conversar com relativa facilidade e
desenvoltura.
Este garoto era singularmente belo, ainda levando em conta a beleza da
raça a qual pertencia. De semblante muito varonil para sua idade, possuía uma
expressão mais vivaz e enérgica que a serena e desapaixonada dos homens que
até então havia visto. Trouxe-me a caderneta a que eu havia desenhado minha
descida e a cabeça do horrível réptil que me havia aterrorizado, fazendo com
que me afastasse do cadáver de meu amigo. Apontando para esta parte do
desenho, Taë fez-me algumas perguntas com respeito ao tamanho e forma do
monstro, bem como da fenda ou caverna da qual havia saído. Seu interesse em
minhas respostas parecia tão absorvente que o fez esquecer sua curiosidade
com respeito a mim ou meus antecedentes. Porém, com extraordinária
confusão de minha parte, por causa do que havia prometido a meu anfitrião,
havia começado a fazer-me perguntas sobre o mundo do qual havia eu vindo.
Afortunadamente, entrou Zee, que ao ouvi-lo, disse: “Taë, dê a nosso hóspede
quantas informações desejes, mas não peças tu nada em troca”. “Perguntar-lhe
quem é, de onde vêm, ou porque esta aqui seria violar a lei que meu pai
estabeleceu para esta casa”.
“Assim seja”, disse apoiando sua mão sobre seu coração: desde aquele
momento até o que o vi pela última vez, aquele garoto, o qual travei grande
intimidade, nem uma única vez fez-me nenhuma das perguntas que se lhe
haviam sido proibidas.

CAPÍTULO IX

Passou algum tempo antes que, por repetidos transes, se assim podem ser
chamados, minha mente ficara mais bem preparada para trocar idéias com
meus anfitriões e foi mais capaz dar-me conta de seus diferentes usos e
costumes. Até então, eram demasiadas estranhas e novas em minha
experiência para que minha razão as pudesse compreender, e fora capaz de
22

coordenar os detalhes da origem e história desta população subterrânea, a qual


formava parte de uma grande família racial chamada Ana.
De acordo com as mais antigas tradições, os progenitores mais remotos da
raça habitaram em um mundo na superfície da Terra, sobre o mesmo lugar que
os descendentes então habitavam. Conservavam-se, contudo, em seus arquivos,
mitos daquele mundo e com os mitos, lendas, segundo os quais na abóbada
daquele mundo havia luminares que nenhuma mão humana acendia. Mas tais
lendas eram consideradas por alguns comentadores como fábulas alegóricas.
Segundo as mesmas tradições, a Terra mesma, na época em que a tradição
alcançava, já não estava realmente em sua infância, estando senão em estado
de agonia e nas dores de uma transição de uma forma para outra; sujeita a
muitos e violentos cataclismos da natureza.
Em um de tais cataclismos, a porção da superfície habitada pelos
antepassados desta raça sofreu inundações, não repentinas, mas graduais e
incontroláveis nas quais foi submersa e pereceram todos, salvo um pequeno
número. Não me atrevo a conjeturar, se este relato se refere a nosso histórico e
sagrado dilúvio ou a algum anterior suposto por geólogos; ainda que
comparando a cronologia daquele povo com a de Newton, tal dilúvio deve ter
ocorrido muitos milhares de anos antes da época de Noé. De outro lado, os
relatos dos escritores não vão de acordo com as opiniões mais em voga entre
os entendidos em geologia, por quanto àqueles situam a existência de uma
raça humana sobre a Terra em épocas muito anteriores à designada para a
formação terrestre, adequada para a introdução dos mamíferos. Um grupo da
infortunada raça, invadida pela inundação, refugiou-se fugindo desta em
cavernas entre as mais altas rochas e vagando por estas galerias cada vez mais
profundas, perderam para sempre de vista o mundo superior. Com efeito, a
inteira face da Terra havia mudado com aquele grave cataclismo; o mar se
havia convertido em terra firme e esta em mar. Nas entranhas da Terra, ainda
na época de meu relato, segundo me asseguraram, se encontravam restos de
habitações humanas; não em cabanas e cavernas, senão em vastas cidades
cujas ruínas atestam a civilização das raças que floresceram antes da época de
Noé, e que não se há de confundir com aquele gênero ao qual a filosofia
descreve o uso da pederneira e a ignorância do ferro.
Os fugitivos levaram com eles o conhecimento das artes que haviam
praticado sobre a Terra; artes de cultura e civilização. Sua primeira
necessidade deve ter sido a maneira de proporcionar sob a terra a luz que
haviam perdido de acima. E a sem tempo, nem em seus primeiros tempos, a
raça a que pertencia a tribo com que eu vivia, havia ignorado a arte de obter
luz de gases, manganês, ou petróleo. Estavam acostumados em seu estado
anterior a lutar com as rudes forças da natureza. De fato, a continuada batalha
23

com seu conquistador, o oceano, que havia demorado séculos em estender-se,


havia aguçado seu engenho para conter as águas em diques e canais. A esta
habilidade deviam sua conservação na nova residência. “Durante muitas
gerações” – me dizia meu anfitrião, com uma espécie de menosprezo
misturado com horror – “nossos primitivos antepassados tiveram, segundo se
conta, que degradar sua dignidade e encurtar suas vidas comendo carne de
animais, muitos dos quais, como eles mesmos, escaparam do dilúvio e
buscaram abrigo nas cavernas da Terra. Outros animais que se supõem eram
desconhecidos no mundo de acima, habitavam estas mesmas cavernas”.
Quando o que poderíamos chamar a época histórica, emergiu do
crepúsculo da tradição, a raça Ana já havia se estabelecido em diferentes
comunidades e havia alcançado um grau de civilização muito análogo ao que
hoje desfrutam as nações mais avançadas de sobre a Terra. Conhecia a maioria
de nossos inventos mecânicos, inclusive a utilização do vapor e do gás. As
comunidades mantinham feroz competição umas com as outras. Tinham seus
ricos e seus pobres; seus oradores e conquistadores e guerreavam seja por um
domínio, ou por uma idéia. Ainda que diversos estados reconheciam várias
formas de governo, começavam a preponderar às instituições liberais; o poder
e a influência das assembléias populares crescia; as repúblicas de pronto se
generalizaram; a democracia, a que os políticos europeus mais inteligentes
anelam como meta final do progresso político, e no qual este sistema ainda
prevalecia na época de meu relato em algumas raças subterrâneas, porém
consideradas com desprezo como bárbaras, pela mais avançada comunidade
dos Ana (a que pertencia à família com a qual eu vivia), pois se a considerava
como um dos mais cruéis e ignorantes experimentos da infância da ciência
política. Era a época do ódio e da inveja, de ferozes paixões, de mudanças
sociais constantes, mais ou menos violentas, de lutas de classes, de guerra
entre estado e estado. Esta fase da sociedade não obstante, durou algumas eras
e então finalmente terminou, ao menos, entre as populações mais nobres e
mais intelectuais, graças ao gradual descobrimento das potências latentes,
armazenadas no omnipenetrante fluído que eles denominaram Vril.
Segundo as explicações que me dava Zee, a qual como erudita
professora do Colégio dos Sábios, havia estudado tais questões mais
diligentemente que os demais membros da família de meu anfitrião, tal fluido
era suscetível de ser obtido de toda classe de matéria, animada ou inanimada,
e convertido em um poderoso agente. Pode destruir como o raio; inversamente,
aplicado diferentemente, pode restabelecer e fortalecer a vida, curar e
preservar. Valem-se do mesmo para curar as enfermidades ou, melhor dito,
para ajudar o organismo físico a restabelecer o equilíbrio de seus poderes
naturais e, conseqüentemente, a curar-se por si mesmo. Por meio do mesmo
24

agente atravessam as substâncias mais sólidas, e abrem vales para cultivo


através das formações rochosas de sua imensidão subterrânea. Do mesmo
extraem a luz que os proporciona suas lâmpadas, a qual é mais fixa, suave e
saudável que a obtida das substâncias inflamáveis utilizadas antigamente.
Mas os efeitos deste descobrimento dos meios para manipular a terrível
força de Vril, deixaram-se sentir mais particularmente nas relações político-
sociais. À medida que tais efeitos foram conhecidos e habilmente manipulados,
a guerra entre os conhecedores de Vril cessou; pela simples razão de que
desenvolveram a arte de destruição a tal grau de aperfeiçoamento que
anularam toda superioridade em número, disciplina e estratégia militar. O fogo,
concentrado no espaço oco de uma varinha manejada pela mão de um menino,
era capaz de arrasar a mais resistente fortaleza e abrir seu caminho incendiário
desde a linha de frente até a retaguarda dos exércitos. Se um exército
enfrentava-se com outro, e ambos dominavam tal agente, não podia ocorrer
outra coisa que a aniquilação mútua. Para tanto, todos os dias de guerra
haviam passado. O homem estava tão à mercê do homem (posto que se
quisessem, podiam destruir-se em um instante) que desapareceu toda noção de
governo pela força, e anularam-se todos os sistemas políticos e formas de lei.
Somente pela força podem manter-se unidas vastas comunidades dispersas em
grandes extensões de espaço; mas com tal agente já não existia a necessidade
de lutar pela própria conservação, nem havia a necessidade de engrandecer-se
para que um estado pudesse predominar sobre outro.
Os descobridores de Vril, para tanto, no transcurso de várias gerações,
dividiram-se pacificamente em comunidades de população moderada. A tribo,
na que eu havia caído, estava limitada a 12.000 famílias. Cada tribo ocupava
uma extensão de território suficiente para satisfazer todas suas necessidades.
Em determinados períodos, a população excedente separava-se para formar
outras tribos. Aparentemente não havia necessidade de seleção alguma dos
emigrantes, porque havia sempre voluntários em número suficiente para partir.
Estes estados subdivididos pertenciam todos a uma vasta família geral.
Falavam o mesmo idioma, ainda que tivessem dialetos ligeiramente diferentes.
Casavam-se entre si; conservavam as mesmas leis e costumes gerais. O
conhecimento da energia “Vril” constituía vinculo muito forte entre aquelas
comunidades. A palavra A-Vril era sinônimo de civilização e Vril-ya
significava “Nações Civilizadas”, nome comum pelo qual as comunidades que
utilizavam tal agente se distinguiam das que estavam ainda em estado de
barbárie.
O governo da tribo Vril-ya que tratamos era aparentemente muito
complicado; mas em realidade era muito simples. Estava baseado no princípio,
admitido em teoria, ainda que pouco praticado, sobre a Terra, de que os
25

objetivos de todos os sistemas de pensamento filosófico tendem a alcançar a


unidade, ou a ascensão, através de todos os labirintos intermediários até a
simplicidade de uma única causa primeira ou princípio. Assim, na política, até
os escritores republicanos concordam em que uma benevolente Autocracia
asseguraria a melhor administração, se oferecesse suficientes garantias de
continuidade ou contra o gradual abuso dos poderes a ela acordados.
Em conseqüência, a comunidade a que nos referimos elegia um único
Supremo Magistrado, ao que nomeavam Tur. Nominalmente o cargo era
vitalício; mas raramente se podia induzir a quem o ocupava a mantê-lo uma
vez chegado ao início da velhice. Verdadeiramente, nada havia naquela
sociedade que fizesse que seus membros ambicionassem a manutenção do
cargo. Não havia honras, nem distinções de alta classe inerentes ao mesmo. O
Supremo Magistrado não se distinguia dos demais nem por sua residência nem
por seus emolumentos. Por outro lado os deveres que sobre ele pesavam eram
maravilhosamente rápidos e fáceis; posto que não demandavam um grau
preponderante de energia ou inteligência. Não havendo temores de guerra, não
havia de manter exércitos; não existindo um governo de força, não havia
forças de polícia para mobilizar nem dirigir. O que chamamos crime era algo
desconhecido entre os Vril-ya e não havia cortes de justiça criminal. Os raros
casos de lides civis eram resolvidos por meio de arbitragem de amigos eleitos
pelas partes, ou decidido pelo Conselho de Sábios, que descreverei mais
adiante. Não existiam os advogados profissionais; pois, em realidade, as leis
eram acordos amigáveis, posto que não existia nenhum poder capaz de aplicar
a lei a um ofensor que portava em sua varinha o poder para destruir seus juízes.
Existiam costumes e regras, para cumprimento das quais a população
havia-se tacitamente habituado, no transcurso de várias eras e, se em algum
caso qualquer indivíduo encontrava dificuldades em cumpri-las, abandonava a
comunidade e dirigia-se para outra parte. De fato, existia naquele estado
aprazível um conjunto muito similar ao de nossas famílias privadas, nas em
que virtualmente dizemos aos membros adultos independentes que recebemos
e entretemos: “fique ou vá, segundo que nossos hábitos e regras lhe agradem
ou não”. Porém, ainda que não houvesse leis como as nossas, nenhuma raça da
Terra é tão respeitosa à lei quanto era aquela. A obediência à lei adotada pela
comunidade se havia tornado instintiva neles, como se fosse estabelecida pela
natureza. Em cada lar o chefe do mesmo estabelecia regras para sua direção,
que não eram resistidas nem discutidas por qualquer que ali pertencesse.
Tinham um provérbio, o significado do qual se perde em grande parte ao
parafraseá-lo; dizia: “Não existe felicidade sem Ordem, não existe ordem sem
Autoridade; não há Autoridade sem Unidade”.
26

A bondade de todo governo, civil ou doméstico, entre eles se põe


manifesta nas expressões idiomáticas que tinham para termos tais como
“ilegal” ou “proibido”. Diziam: “pede-se não fazer esta ou outra coisa”. A
pobreza entre os Ana era tão desconhecida quanto o crime. Não que a
propriedade fosse comunitária ou que todos fossem iguais na extensão de suas
posses ou em suas dimensões e luxo de suas casas; senão que, como não
existia diferença de classe ou posição entre os graus de riqueza ou na eleição
dos trabalhos, cada um seguia suas próprias inclinações sem despertar inveja
ou rivalidades e o limite posto à população, fazia difícil que uma família
caísse na miséria. Não havia explorações arraigadas, nem competidores que
ambicionavam maior riqueza ou mais alto nível social. Sem dúvida alguma,
em cada assentamento, todos recebiam originalmente a mesma porção de terra;
mas alguns, mais aventureiros que os outros, haviam estendido suas posses
para a selva fronteiriça ou haviam melhorado seus campos para dar-lhes mais
produtividade, ou empreenderam o comércio ou a indústria. Assim,
logicamente, uns tinham-se feitos mais ricos que outros, mas nenhum havia
chegado a ser absolutamente pobre, ou a faltar-lhe nada do que pudesse
desejar, de acordo com seus gostos. Se tal caso acontecia, podiam sempre
emigrar, ou, no pior dos casos, solicitar sem mácula e com segurança de obtê-
la, a ajuda dos mais ricos; porque todos os habitantes da comunidade
consideravam-se como irmãos de uma afetuosa e unida família. Voltarei a
ocupar-me incidentemente deste tema à medida que avance em minha
narrativa.
O principal dever do Supremo Magistrado consistia em manter-se em
relação com certos organismos encarregados da administração de detalhes
especiais. O mais importante e essencial de tais detalhes era o relacionado
com a provisão de luz. Deste departamento, meu anfitrião, Aph-Lin, era o
chefe. Outro departamento, que poderíamos chamar de Relações Exteriores,
relacionava-se com os diversos estados vizinhos; mormente para inteirar-se de
todos novos inventos; outro departamento estava dedicado a tais novos
inventos e aos aperfeiçoamentos da maquinaria submetida à prova.
Dependente do ultimo departamento mencionado estava o Colégio dos
Sábios, cujos membros eram principalmente os Ana viúvos e sem filhos ou as
jovens solteiras; destas, Zee era uma das mais ativas e, se entre aquela gente se
reconhecia o que chamamos distinção ou renome (reconhecimento que como
veremos mais adiante não existia), Zee era uma das mais renomadas e
distintas. Eram as mulheres Professoras deste Colégio, as que estudavam as
matérias de menor aplicação à vida prática, tais como: filosofia puramente
especulativa, história dos tempos remotos; e ciências tais como: entomologia,
conchology*, etc. Zee, cuja mente ativa como a de Aristóteles, com a mesma
27

facilidade abarcara os mais amplos assuntos e os mais minuciosos detalhes,


havia escrito dois volumes sobre um inseto que se alojava entre a pelugem das
garras do tigre; obra considerada de grande autoridade sobre o tema. Porém as
investigações dos sábios não se limitam a estudos tão sutis e abstrusos.
Compreendem outros mais importantes, especialmente às propriedades de Vril,
à percepção de qual a mais fina organização dos Professores femininos é
eminentemente sensível. Deste Colégio escolhe o Tur, o Supremo Magistrado,
os conselheiros, limitados a três, nos raros casos em que a novidade de um
acontecimento ou circunstância dificulta seu próprio juízo.
Existem outros departamentos, de menor importância; mas todos são
guiados com tanto sigilo e quietude, que desaparece toda evidência de governo;
e a ordem social é tão regular e sem incidentes, como se fosse uma lei da
natureza. A maquinaria é empregada de forma inconcebível em todas as
operações de trabalho, dentro e fora dos edifícios e a melhoria e rendimento
dos mecanismos é o principal e incessante encargo da administração. Não
existe a classe de diaristas ou serventes, senão que os necessários para ajudar a
manejar a maquinaria se escolhem entre os jovens e meninos, desde que
deixam os cuidados maternos até a idade matrimonial, que é aos dezesseis
anos para as Gy-ei (mulheres) e de vinte para os Ana (homens). Estes jovens
são organizados em grupos e seções, sob seus próprios chefes. Cada um segue
suas próprias inclinações, ou aquilo para o que se sente mais bem adaptado.
Alguns se inclinam para as artes manuais, outros para a agricultura, outros aos
afazeres domésticos e alguns aos únicos serviços perigosos a fim de proteger à
população dos riscos a que está exposta. Os únicos perigos que ameaçam a
tribo são: em primeiro lugar, os tremores ocasionais de terra, para prevenir e
resguardar-se dos quais empregam para tal a máxima ingenuidade; as erupções
de fogo e água; as tormentas de ventos subterrâneos e escape de gases. Nos
confins dos domínios e em todos os locais susceptíveis de que se produzam
tais perigos existem guardas que podem se comunicar telegraficamente com o
local em que constantemente se encontram sábios de guarda, revezando-se em
turnos. Os citados guardas elegem-se entre os jovens de maior idade,
próximos à puberdade, eleição que se baseia no princípio de que em tal idade
a atenção é mais aguda e as forças estão mais em alerta que em nenhuma outra.
O segundo serviço perigoso, menos grave, é a destruição de todas as
criaturas perigosas para a vida, ou a cultura, e até a comodidade da raça Ana.
Destas as mais formidáveis são os imensos répteis, dos quais se conservam
relíquias antediluvianas em nossos museus, e certas espécies aladas
gigantescas, metade ave e metade réptil. Estes, junto com os animais
selvagens menores, equivalentes a nossos tigres ou serpentes venenosas, são
caçados e destruídos pelos mais jovens; pois de acordo com os Ana, para tal
28

empreitada requere-se não ter piedade e os garotos quanto mais jovens mais
sem piedade destroem.
Existe outra classe de animais para cuja destruição há que se aplicar
certo discernimento e para o qual elegem-se os garotos de idade intermediária.
São os animais que não ameaçam a vida do homem, mas que destroem o
produto de seu trabalho; variedades do alce ou cervo e de um animal de menor
tamanho muito parecido ao nosso coelho, ainda que infinitamente mais
destrutivo para as colheitas e mais sagaz em suas depredações. O primeiro
dever dos meninos, eleitos para este caso, é procurar domesticar aos mais
inteligentes de tais animais, ensinando-lhes a respeitar os limites demarcados,
da mesma maneira que se ensina aos cachorros a respeitar a despensa ou a
cuidar da propriedade de seu dono. Unicamente destroem-se os animais desta
classe que se mostram indomáveis. Nunca se matam animais para alimento ou
por esporte; mas tampouco se salvam aos que sejam indomáveis ou perigosos
para os Ana. Simultaneamente com estes serviços e tarefas físicas, segue a
educação mental dos jovens, até o término da idade juvenil. É costume geral
que depois sigam um curso de instrução no Colégio dos Sábios; no qual, além
dos estudos mais gerais, o pupilo receba lições mais específicas, segundo sua
vocação ou direção de seu intelecto, que ele mesmo elege. Alguns, não
obstante, preferem inverter este período de prova, viajando, e emigram ou
estabelecem-se logo depois no campo ou no comércio. Não se colocam
restrições às inclinações individuais.

CAPÍTULO X

No idioma dos Vril-ya a palavra Ana (largamente pronunciada Arna)


corresponde ao nosso plural para homens; An (pronunciado Arn), ao singular
homem. A palavra para mulher é Gy (que se pronuncia secamente Guy), que
para formar o plural transforma-se em Gy-ei, com a pronuncia mais suave Jy-
ei. Possuem um provérbio, segundo o qual esta diferença de pronunciação é
simbólica, no sentido de que o sexo feminino, coletivamente, é mais maleável;
mas individualmente é difícil de manejar. As Gy-ei usufruem de todos os
direitos de igualdade com os homens, ao qual se opõem alguns filósofos da
superfície da Terra.
Durante a infância, as meninas desempenham as funções de trabalho de
forma indistinta com os meninos. Tais como estes, dedicam-se em seus
primeiros anos à destruição de animais daninhos; sendo que para tal mister
29

prefere-se com freqüência às meninas, pela razão de serem por natureza mais
implacáveis sob a influência do medo ou de rancor. No período intermediário
entre a infância e a idade matrimonial, suspende-se a relação familiar entre os
sexos, à qual se restabelece ao chegar a Gy na idade própria para casar-se, sem
que esta relação chegue, de forma alguma, a dar lugar ao que nós mesmos
chamamos de faltas contra a moral. As artes e as ocupações próprias de um
sexo estão também abertas ao outro sexo; não obstante, as Gy-ei atribuem-se
certa superioridade nos estudos abstratos e místicos, para os quais, dizem elas,
não serem os Ana aptos por causa de sua embotada inteligência, mais
adaptada à rotina das ocupações de índole prática; da mesma maneira que
algumas mulheres de nosso mundo se consideram peritas nos ramos da ciência
e da filosofia mais abstrusas, às quais muito pouco homens dedicados aos
negócios tem interesse, por faltar-lhes os conhecimentos e a agudez intelectual
que a elas se atribuem.
Ainda, seja devido a prematuro treinamento em exercícios de ginástica,
ou à sua constituição física, as Gy-ei são ordinariamente superiores aos Ana
em força física (elemento importante para a manutenção dos direitos
femininos). São de maior estatura, e sob suas silhuetas proporcionais ocultam-
se músculos e tendões tão resistentes quanto os do sexo oposto. De fato,
afirmam que, de acordo com as leis originais da natureza, as fêmeas devem ser
maiores que os machos e apóiam este princípio na vida primária dos insetos e
nas mais antigas famílias de vertebrados; como os peixes, nos quais as fêmeas
são grandes o suficiente como para alimentar-se dos machos, se assim as
agradar.
Sobretudo, as Gy-ei possuem um mais pronto e concentrado domínio
sobre o misterioso fluído ou agente que contêm os elementos destrutivos; os
quais aplicam com muito maior sagacidade, acentuado pelo dissimulo. De
maneira que não apenas podem defender-se a si mesmas contra toda agressão
dos homens, senão que podem, em qualquer momento e ante o menor perigo,
dar fim à existência do esposo ofensor. Há que ser dito, para crédito das Gy-ei,
que não há registro, desde fazem muitas gerações, que tenham abusado nesta
terrível arte de destruição.
No último caso desta natureza, ocorrido na comunidade a que me refiro,
aconteceu (de acordo com sua cronologia), uns dois mil anos antes. Conta-se
que uma Gy, em um arrebatamento de ciúmes, matou seu marido. Este ato
abominável inspirou tal terror aos homens, que estes emigraram em massa e
deixaram às Gy-ei abandonadas a si mesmas. Parece que isto desesperou as
Gy-ei, as quais, caíram sobre a assassina enquanto dormia (e por tanto
desarmada) e a mataram, e então juraram solenemente renunciar para sempre
do exercício de seus extremos poderes maritais, e incutir as mesmas
30

obrigações a suas filhas. Com tal espírito conciliador, enviaram uma


delegação aos consortes fugitivos e persuadiram a muitos deles para que
voltassem; porem os que haviam voltado, na maior parte, foram os velhos. Os
jovens sejam porque não tiveram confiança suficiente em suas esposas, ou
porque estimaram em demasia seus próprios méritos, rejeitaram o convite e
permaneceram nas comunidades onde haviam se instalado e ali encontraram
outras companheiras, no qual provavelmente não ganharam grande coisa.
Porém uma perda tão grande de juventude masculina serviu de saudável
advertência às Gy-ei, o que as afirmou de forma mais forte em seu juramento.
De fato, é crença popular que, devido ao desuso hereditário, as Gy-ei hão de
ter perdido a superioridade ofensiva e defensiva que tinham sobre os Ana, de
maneira similar a alguns animais inferiores da superfície da Terra hajam
perdido muitas peculiaridades de sua formação primitiva, de que a natureza os
havia dotado para sua proteção, as quais foram desaparecendo gradualmente,
ou foram ficando atrofiadas sob as novas circunstâncias. De qualquer maneira,
seria perigoso que um Ana, que tratasse de induzir a uma Gy, a provar qual
dos dois é o mais forte.
O incidente relatado foi a origem de certas modificações nos costumes
matrimoniais, com a tendência a manifestar alguma vantagem as homens.
Agora, unem-se unicamente por três anos; ao término dos quais, marido ou
mulher pode pedir o divórcio e estão livres para casar-se novamente. Ao
completar dez anos, o Na tem o direito de tomar uma segunda esposa,
deixando livre a primeira para que esta se retire, se lhe aprouver. Estas regras
são em sua maior parte, letra morta; os divórcios e a poligamia e o matrimônio
parece ser agora, um estado feliz e tranqüilo no meio deste surpreendente
povo. As Gy-ei, não obstante sua notória superioridade em força física e
habilidade intelectual, inclinam-se a conceder um tratamento gentil por temor
da separação ou a uma segunda esposa; mas os Ana são escravos de seus
hábitos e, salvo em casos extremos, não são muito inclinados a mudar o
conhecido, rostos e maneiras, a que se tenham acostumado, por duvidosas
novidades.
Mas há um privilégio que as Gy retêm com afinco, o qual constitui,
talvez, o motivo oculto de muitos que defendem o direito da mulher sobre a
Terra. As Gy reclamam o direito, usurpado pelos homens entre nós mesmos,
de declarar seu amor; em outras palavras, de fazer a corte ao invés de ser
cortejada. Um tal fenômeno como as solteironas não existe entre as Gy-ei. Em
realidade, é muito raro que uma Gy não obtenha o An em quem haja posto seu
coração, caso o afeto deste não esteja posto em outra. Não obstante, por mais
tímido, retraído e mal disposto que se mostre o homem a princípio, ela, co sua
perseverança, ardor e poder persuasivo, somados ao seu domínio sobre os
31

místicos agentes de Vril, certamente possuem grande possibilidade de


conseguir que ele submeta seu pescoço à “coleira”. Os argumentos em que
apóiam esta inversão de tal relação entre os sexos, que a cega tirania dos
homens tem estabelecido na superfície da Terra, parecem convincentes e
apresentam-se com tal franqueza, que bem que merece uma consideração
imparcial. Dizem que, por natureza, é a mulher de disposição mais amorosa
que o homem; que o amor ocupa uma grande porção de seus pensamentos e é
mais essencial para sua felicidade e, portanto, ela deve ser a parte cortejante;
que por outro lado o homem é indiferente e vacilante; que as vezes sente
egoísta predileção pelo celibato; que freqüentemente pretende não dar-se
conta ante meigos olhares e delicadas insinuações; que, em outras palavras,
tem de ser resolutamente perseguido e capturado.
Ao dito anteriormente afirmam que, se a Gy não consegue o An que
tenha escolhido e tem de aceitar a outro que não escolheria, não só seria
menos feliz, senão que demonstraria que suas qualidades emotivas estão
pouco desenvolvidas. Em troca, o An é uma criatura menos perseverante e não
concentra suas afeições por muito tempo em um mesmo objeto; se não pode
conseguir a Gy que ele prefira, facilmente conforma-se com outra; e,
finalmente que, no pior dos casos, com tanto que seja amado e cuidado, lhe é
menos necessário para o bem-estar de sua existência a que ame com a mesma
intensidade que é amado; ele contenta-se com as comodidades e com as
muitas ocupações intelectuais que ele mesmo se entretém.
Qualquer que seja o critério com que receba este raciocínio, o sistema
funciona bem para o homem; pois, estando certo que é amado verdadeira e
ardentemente e que quanto mais tímido e pouco disposto se mostre, com
maior determinação será pretendido, geralmente procura fazer depender seu
consentimento de certas condições que ele calcula que o assegurariam a vida,
senão santificada, pelo menos tranqüila.
Cada An individualmente tem seus interesses, sua própria maneira de
ser, suas predileções; sejam estas as que queiram, demanda a promessa de que
serão respeitados plenamente e sem restrições. Isto, perseguindo seu objetivo,
a Gy o promete de boa vontade e como a característica deste povo
extraordinário é uma implícita veneração à verdade, e a palavra, uma vez dada,
nunca é quebrada pela mais volúvel das Gy-ei, sendo as condições estipuladas
religiosamente observadas. De fato, apesar de todos os seus abstratos direitos
e poderes, as Gy-ei são as esposas mais amáveis, conciliadoras e submissas
que tive visto até mesmo nos lugares mais felizes sobre a Terra. Há um
aforismo entre elas que “quando uma Gy ama, se compraz em obedecer”.
32

Observa-se-á que ao falar da relação entre os sexos referi-me


unicamente ao matrimônio; porque é tal a perfeição moral que tem alcançado
esta comunidade, que toda relação ilícita é impossível entre eles.

CAPÍTULO XI

Ao tratar de reconciliar meus conhecimentos com a existência de amplas


regiões abaixo da superfície da Terra, habitadas por seres que, se bem
diferentes em certos aspectos, são similares a nós mesmos no fundamental do
organismo, nada me deixava mais perplexo que a contradição que tal
existência estabelecia em relação com a tese na qual, segundo penso, muitos
filósofos e geólogos concordam, de que, não obstante ser o Sol para nós a
grande fonte de calor, à medida em que penetramos mais e mais na crosta
terrestre, maior é a temperatura. Pois, de acordo com o que se diz, esta
aumenta à razão de um grau por pé, começando a cinqüenta pés de
profundidade.
Sem embargo, por serem os domínios da tribo da qual me refiro em
terrenos elevados, tão comparativamente próximos à superfície, me justificava
que houvesse uma temperatura adequada para a vida orgânica, e, ainda mesmo,
os vales e ravinas daquela região eram muito menos quentes do que filósofos
houvessem considerado possível a tal profundidade; certamente não mais
calor que o sul da Itália ou da França. Segundo muitos me contaram, havia
vastas extensões imensamente muito mais profundas, nas quais alguém
haveria de acreditar que unicamente as salamandras poderiam viver e, não
obstante, estavam habitadas por inumeráveis raças organizadas como nós
mesmos.
Não pude, de maneira alguma, explicar um fato tão em contradição com
as leis de nossa ciência, nem tampouco pode Zee ajudar-me a resolver o
problema. Esta unicamente conjeturou que os filósofos não haviam levado em
conta a grande porosidade do interior da Terra; a imensidão das cavidades e
irregularidades, as quais serviam para criar correntes livres de ar e freqüentes
ventos e os diversos modos em que o calor se evapora e se dissipa. Ela
consentiu, sem embargo, que havia uma profundidade em que o calor tornava-
se intolerável para a vida organizada como conhecida da experiência dos Vril-
ya, ainda que seus filósofos acreditassem que também em tais regiões se
encontraria vida de alguma forma, vida sensciente, vida intelectual, ativa e
abundante, caso os filósofos pudessem ali penetrar. “Em qualquer lugar que o
Supremo Bem edifica” - dizia ela – “ali certamente coloca habitantes. Ele não
ama as habitações vazias”. Também acrescentou que muitas das mudanças de
33

temperatura e de clima deviam-se à habilidade dos Vril-ya, para cujas


modificações haviam utilizado com êxito o agente Vril.
Zee descreveu-me um sutil método vivificador chamado Lai, que se me
apresenta idêntico ao oxigênio etéreo do dr. Lewins, no qual atuam todas as
forças correlativas compreendidas sob o nome de Vril; e afirmava que em
qualquer lugar tal método pudesse expandir-se o suficiente para que todas as
modalidades de Vril pudessem atuar amplamente, podia-se obter uma
temperatura adequada para as mais elevadas formas de vida.
Disse também que seus naturalistas criam que, mediante a ação da Luz,
constantemente aplicada, e o gradual aprimoramento do cultivo, obtiveram-se
originalmente flores e vegetações, seja de sementes trazidas da superfície da
Terra nas primeiras convulsões da natureza, ou importadas pelos primeiros
que buscaram refúgio nas cavernas das profundezas.
Acrescentou ainda que, desde que a luz de Vril havia se incorporado a
todos os corpos luminosos, as cores das folhas e das folhagens haviam-se
tornado mais brilhantes e a vegetação haviam adquirido maiores proporções.
Deixando tais questões para a consideração de pessoas mais
competentes para delas tratar, vou dedicar algumas páginas a as muito
interessantes questões relacionadas com a linguagem dos Vril-ya.

CAPÍTULO XII

A linguagem dos Vril-ya é particularmente interessante porque, na minha


concepção, parece exibir claramente os traços de três transições principais
através de que o idioma passa até alcançar sua forma perfeita.
Um dos filólogos modernos mais ilustres, Max Muller, ao tratar da
analogia entre os níveis da linguagem e as camadas da Terra, estabelece o
seguinte como dogma absoluto: “nenhum idioma pode, de maneira alguma
chegar a ser inflexivo, sem haver passado pelo nível aglutinante e separador.
Nenhuma linguagem pode ser aglutinante sem aderir-se, com suas raízes ao
nível monossilábico”.(Da Estratificação da Linguagem, pág. 20).
Tomando a língua chinesa como o melhor exemplo existente do nível
monossilábico “como o fiel retrato do homem em andadores, ensaiando sua
força mental e buscando seu caminho às cegas, tão satisfeito de seus primeiros
resultados bem sucedidos, que os repete mais e mais”, teremos uma idéia do
idioma dos Vril-ya, todavia “atado com suas raízes ao nível subjacente”.
Repleta de monossílabos, que são os fundamentos do idioma.
34

A transição à forma aglutinante, marca uma época que deve ter-se


dilatado durante idades, cuja literatura escrita apenas tem sobrevivido em
alguns fragmentos de mitologia simbólica e em certas frases expressivas que
se tenham convertido em provérbios populares. O estrato inflexivo começa
com a literatura existente dos Vril-ya.
Sem dúvida, naquela época, deve ter ocorrido como causa concorrente, a fusão
de raças com algum povo dominante e o ressurgimento de algum fenômeno
literário pelo qual a forma de linguagem ficou detida e fixada. À medida que a
etapa inflexiva prevaleceu sobre a aglutinante, é surpreendente ver como as
raízes originais da linguagem iam destacando-se sobre as superfícies que as
ocultavam. Nos fragmentos antigos e provérbios da etapa anterior, os
monossílabos que compunham tais raízes desaparecem entre palavras de
enorme longitude, compreendendo sentenças inteiras, das quais nenhuma de
suas partes podia separar-se, e nem ser empregada separadamente. Porém,
uma vez que a forma inflexiva do idioma progrediu, a ponto de conta com
seus gramáticos, parece que estes se uniram para extinguir tais monstros
polissindéticos e polissilábicos, como invasores devoradores das formas
aborígenes. Foram prescritas por bárbaras todas as palavras de mais de três
sílabas e, à medida que se foi simplificando o idioma, este ganhou força,
elegância e doçura. Ainda que muito pobre em quanto aos sons, isto tem
contribuído à sua claridade. Com uma letra apenas, segundo seja sua posição,
tem conseguido expressar o que nas nações civilizadas, sobre a Terra,
necessitam às vezes sílabas, às vezes frases inteiras.
Permita-me apresentar um ou dois exemplos: An (que significa homem);
Ana (homens). No idioma dos Vril-ya, o “s” implica multitude, de acordo com
onde está colocado; Assim, Sana significa humanidade; Ansa significa uma
multitude de homens. O prefixo de certas letras de seu alfabeto
invariavelmente denota significados compostos. Por exemplo: Gl (que para
eles é uma só letra como th o é para os gregos) no início de uma palavra
indica um conjunto ou união de coisas às vezes da mesma classe, às vezes
similares como: Oon, uma casa; Gloon, uma população (ou conjunto de casas).
Ata, tristeza; Glata, uma calamidade pública. Aur-na é saúde ou bem-estar de
um homem: Glauran, o bem-estar do Estado, o bem da comunidade. Assim,
constantemente possuem em suas falas a palavra A-glauran, que proclama seu
credo político, a saber: “O primeiro príncipio de uma comunidade é o bem de
todos”. Aub, é invenção; Sila, um tom musical. Claubsila, que une as idéias de
invenção e entonação musical, é a palavra clássica para poesia, a qual se
abrevia quando na conversação familiar para Glaubs. Na, que para eles é uma
só letra como Gl, quando é prefixo, sempre implica algo antagônico à vida, o
gozo ou a comodidade, sendo nisto semelhante à raiz ária Nak, expressiva de
35

perecer, destruição. Nax, obscuridade e mal; corrupção. Na escrita,


consideram uma irreverência dar ao Ser Supremo um nome determinado. O
simboliza por meio do que poderíamos chamar o hieróglifo de uma pirâmide
∆. Em oração, se dirigem a Ele dando-lhe um nome ao qual consideram
demasiado sagrado para comunicarem a um estranho; por tanto, o desconheço.
Em conversação, o designam por meio de uma perífrase, tal como: Supremo
Bem. A letra V, simbólica da pirâmide invertida, quando empregada como
inicial, quase sempre se denota excelência e poder; como em Vril, a qual
referi-me muitas vezes. Assim Veed, um espírito imortal; Veedya,
imortalidade. Koom, pronunciado Kum, denota a idéia de vazio. Koom
mesmo é um vazio profundo; metaforicamente uma caverna; Koom-in, um
buraco; Zi-koom, um vale; Koom-zi, vago ou vazio; Boadh-koom, ignorância
(vazio de conhecimento literário). Koom-posh, é o nome para o governo dos
muitos ou o predomínio dos mais ignorantes ou vazios. Posh é um modismo
quase intraduzível, implicando como verá o leitor mais adiante, desprezo. O
termo que mais se aproxima é bobagem*; assim, Koom-bush se poderia
traduzir “estúpida bobagem”. Mas quando a “estúpida bobagem” da
ignorância popular se degenera em paixão popular ou, a ferocidade, como
(para citar exemplos do mundo superior) durante o reinado de terror da
revolução francesa ou durante os cinqüenta anos da república romana que
precederam à ascensão de Augusto, o termo que expressa tal estado de coisas
é: Glek-Nas. Ek é luta: Glek sendo luta universal. Nas, como disse antes,
corrupção ou podridão; para tanto, Glek-Nas pode traduzir-se por “corrompida
luta universal”. Suas palavras compostas são muito expressivas. Assim, Bodh,
que é conhecimento e Too, uma partícula que implica a ação de aproximar-se
cautelosamente, formam a palavra Tood-Bodh, que significa Filosofia; Pah é
uma exclamação depreciativa equivalente ao nosso “sem sentido”. Assim Pah-
Bodh (literalmente, conhecimento sem sentido) é o termo que empregam para
a filosofia fútil ou falsa e aplica-se a uma espécie de raciocínio metafísico ou
especulativo que havia estado anteriormente muito em voga e que consistia
em formular questões que não podiam ser contestadas, ou que não valia a pena
fazê-las, como, por exemplo: Por que um An tem cinco dedos nos pés e não
quatro ou seis? Tinha o primeiro An, criado pelo Supremo Bem, o mesmo
número de dedos que seus descendentes? Na forma pela qual será um An
reconhecido por seus amigos num estado futuro do ser, manteria este os dedos
dos pés e, em caso afirmativo, seriam dedos materiais ou espirituais?
Menciono estes exemplos não por ironia ou gracejo, senão porque as
perguntas mencionadas formam o tema de controvérsia dos cultivadores da
ciência 4000 anos antes.
36

Na declinação dos substantivos, segundo me informaram, havia


antigamente oito casos (um a mais que na gramática sânscrita), porém com o
tempo foram-se reduzindo tais casos e multiplicaram-se ao invés, as
preposições explicativas. Na época a que me refiro, na gramática que me
deram para meu estudo, os substantivos tinham quatro ocorrências, das quais
três tinham terminações variáveis, e a quarta, um prefixo distintivo.
SINGULAR
Nominativo: An (homem)
Dativo: Ane (para o homem)
Acusativo: Anam (ao homem)
Vocativo: Hil-An (Oh homem)

PLURAL
Nominativo: Ana (homens)
Dativo: Anoi (para os homens)
Acusativo: Ananda (aos homens)
Vocativo: Hil-Ananda (Oh homens)

Na antiga literatura inflexiva tinham a forma dupla, mas faz tempo que
está em desuso.
O genitivo também o tem em desuso, substituído pelo dativo. Dizem
eles: A casa para o homem, em vez de a casa do homem. Quando se emprega
o genitivo (em poesia, alguma vez) a terminação é a mesma do nominativo; o
mesmo ocorre com o ablativo, e a preposição que o define sendo, por opção,
um prefixo ou sufixo, e geralmente decidido pelo efeito auditivo, de acordo
com o som do substantivo.
Observar-se-á, ainda, que o prefixo Hil indica o vocativo. O qual
sempre se emprega ao dirigir-se ao outro, salvo nas relações domésticas mais
íntimas; omitir o prefixo pode ser considerado descortesia; da mesma maneira
que em nossas antigas formas de falar, ao nos dirigirmos a um Rei, teria sido
uma falta de respeito chamá-lo Rei, secamente, quando mais respeitoso seria
dizer Oh Rei. De fato, como eles não possuem títulos honoríficos, a
exclamação vocativa supre ao título e se dá indistintamente a todos. O prefixo
Hil entre na composição das palavras que implicam comunicação à distância,
como: Hil-ya, viajar.
Na conjunção dos verbos, o qual é um tema demasiado extenso para
explaná-lo aqui, o verbo auxiliar Ya, “ir”, que toma uma parte tão importante
no sânscrito, parece carregar uma função similar, como se fosse um radical de
um idioma de que ambos procedem.
37

Mas outro auxiliar de significado oposto o acompanha e participa da


função, a saber: Zi, permanecer ou repousar. Assim, Ya entra no tempo futuro
e Zi, no pretérito de todos os verbos que pretende auxiliar.
Yan, eu vou; Yiam, talvez vá – Yani-ya, devo ir (literalmente, tenho de
ir) Zam-poo-yan, fui (literalmente: repouso de ir). Ya, como terminação,
implica por analogia, progresso, movimento, florescência. Zi, como terminal,
denota fixidez; as vezes em bom sentido, as vezes em mau sentido; sempre de
acordo com a palavra a que esteja unida. Iva-zi, eterna bondade; Nan-zi,
maldade eterna. Poo (de ou desde), entra como prefixo em palavras que
denotam repugnância, ou coisas em que havemos de sentir aversão. Poo-pra,
disgosto; Poo-naria, falsidade ou a classe mais vil de maldade. Poosh ou Posh,
já disse que é intraduzível literalmente. É uma expressão de desprezo não
isenta de compaixão. Este radical parece ter sua origem na simpatia inerente
entre o esforço labial e o sentimento que o impeliu, sendo Poo uma expressão
em que o alento explode nos lábios com maior ou menor veemência. Por outro
lado a letra Z, como inicial, a pronunciam inspirando o ar (para dentro) e
assim, Zu (que em seu idioma é uma letra) é o prefixo corrente para palavras
que denotam algo que atrae, agrada, toca o coração, como: Zummer, amante;
Zutze, amor; Zuzulia, delícia. Estes sons aspirantes da letra Z, sendo, de fato,
real e naturalmente adequado para expressar ternura. Ainda, mesmo em nosso
idioma, dizem as mães para seus bebês, em desafio à gramática, “Zoo darling”,
e escutei um sabido professor em Boston chamar sua esposa (ao qual tinha
permanecido casado por apenas um mês) de “Zoo little pet”.
Antes de abandonar o tema do idioma, não pude menos de fazer
observar a facilidade com que ligeiras modificações nos dialetos de diferentes
tribos da mesma raça, fizeram perder o significado e beleza originais dos sons.
Zee dizia-me, com grande desgosto, que a palavra Z*mmer (amante), a qual
tal como ela mesma a pronunciava, parecia sair do fundo do coração mesmo,
em regiões não muito distantes dos Vril-ya, a pronunciavam com uma
sonoridade inteiramente desagradável, meio sibilante, meio nasal: S*bber.
Pensei comigo mesmo que apenas requeria a introdução de N antes de U para
traduzir em uma língua inglesa significante da última qualidade que uma
amorosa Gy poderia desejar em seu Zummer.
Mencionarei uma peculiaridade a mais neste idioma, à qual dá força e
brevidade a suas formas de expressão. A letra “A” é para eles, como para nós
mesmos a primeira letra do alfabeto, e empregam-na com freqüência como
prefixo para dar uma complexa idéia de soberania, liderança ou princípio
diretor. Por exemplo: Ivã, significa bondade; Diva, bondade e soberania
unidas; A-diva, significa inequívoca e absoluta verdade. Já fiz observar o
38

valor da letra “A” em A-glauran, e como prefixo de Vril (a cujas propriedades


atribuem seu grau atual de civilização); A-vril denota a civilização mesma.
Os filólogos poderão observarem por alto, no que antecede, a íntima
relação que existe entre o idioma dos Vril-ya e a língua ária ou indo-
germânica; porém, como todos os idiomas aquele contêm palavras e formas
procedentes de origens muito opostas. O título mesmo de Tur, que eles dão ao
Supremo Magistrado, indica a procedência de um idioma assemelhado ao
turaniano. Segundo afirmam, é uma palavra estrangeira; é o título que, de
acordo com seus arquivos, portava o chefe de uma nação, com a qual os
antepassados dos Vril-ya, em tempos remotos, estavam em relações amistosas;
mas que se extinguiram há muito tempo. Acrescentam que, quando após o
descobrimento de Vril, remodelaram suas instituições políticas, elegeram
deliberadamente um título extraído de uma raça extinta e de um idioma morto
para aquele de seu Chefe Magistrado, em ordem de evitar todas nomeações
que tivessem, com aquele cargo, prévias associações.
Se, conforme espero, saio com vida desta aventura, é possível que
ordene de forma sistemática os conhecimentos do idioma que eu consegui
adquirir durante minha estada com os Vril-ya. Ainda, talvez, o exposto seja
suficiente para demonstrar aos verdadeiros estudantes da filologia que, um
idioma, que conserva tantas raízes originais e que tenha eliminado tantos
entraves da imediata, porém transitória, etapa polissintética e tenha alcançado
tal combinação de simplicidade e ritmo em suas finais formas inflexivas, deve
ter sido obra gradual de incontáveis eras e de mentes muito diversas; que
contêm traços da fusão entre raças congêneres e tenha necessitado, para
chegar às formas das quais tenho mostrado exemplos, a constante cultura de
um povo de pensamento muito variado. Que, não obstante, a literatura deste
idioma pertence ao passado; que o atual estado de florescimento alcançado
pelos Ana, impede o progressivo cultivo da literatura, especialmente em duas
ramificações principais, novela e história, como terei condições de mostrar
mais tarde.

CAPÍTULO XIII

Este povo tem uma religião. Diga-se o que for contra esta, aos menos
tem as seguintes peculiaridades pouco comuns: em primeiro lugar, os Ana tem
fé no credo em que professam; em segundo lugar, todos eles praticam os
preceitos que este credo os inculca. Unem-se no culto ao divino Criador e
39

Mantenedor do Universo. Crêem que é uma das propriedades do todo


permeante agente de Vril é transmitir ao manancial de vida e inteligência todo
pensamento que uma criatura vivente possa conceber; e, ainda que não
discutam que a idéia da Deidade é inerente, afirmam, não obstante, que, até
onde eles puderam discernir na natureza, o An (homem) é a única criatura a
qual tem capacidade de conceber tal idéia, com toda a cadeia de pensamentos
que da mesma se origina. Sustentam que tal capacidade é um privilégio que
não pode ter sido concedido em vão e dessa forma, a oração e a ação de graças
são aceitáveis para o divino Criador, e necessárias para o desenvolvimento
completo da criatura humana. Praticam sua devoção em público e privado.
Como não era considerado de sua espécie, não fui admitido ao edifício ou
templo em que o culto público era realizado; porém estava a par que o serviço
é extraordinariamente curto e isento de toda pompa e cerimônia.
Segundo a doutrina dos Vril-ya, a mente humana é incapaz de manter
por longo tempo uma veemente devoção, ou completa abstração do mundo
que a rodeia, que para ela seja benéfica, especialmente em público, e que, para
tanto, toda intenção em tal sentido conduz ao fanatismo e à hipocrisia. Quando
rezam em privado, é quando estão sozinhos ou com suas crianças.
Disseram-me que na antiguidade tinham um grande número de livros
escritos sobre especulações acerca da natureza da Deidade; e sobre as formas e
crenças ou cultos supostos de serem os mais de acordo para com Ele. Mas tais
obras deram margem a acaloradas e odiosas controvérsias, que não somente
colocou em perigo a paz da comunidade e dividindo às famílias antes mais
unidas, senão que no curso das discussões chegava-se a por em
questionamento os atributos e a existência mesma da Deidade e, o que é pior,
chegaram a atribuir a ela as mesmas paixões e fraquezas dos contestadores
humanos. “Porque”, - dizia meu hóspede -, “um ser finito como o An
(homem), não pode em maneira alguma definir o Infinito”. Assim, quando
trata de realizar a idéia da Divindade, não faz mais que rebaixar Esta ao nível
mesmo do An (homem). Durante as últimas épocas, por conseguinte, todas as
especulações teológicas, ainda que não proibidas, foram tão desencorajadas
que posteriormente caíram em desuso.
Os Vril-ya coincidem na convicção de uma existência futura, mais feliz
e perfeita que a presente. Ainda, conservam uma muito vaga noção da idéia de
recompensa e castigo, pois entre eles não existe tal idéia de recompensa e
castigo, pois não há mais crimes que castigar. Seu nível moral é tão parelho
que, em conjunto, nenhum se considera nem é considerado mais virtuoso que
os demais. Se um sobressai-se em uma virtude, outro se sobressai em alguma
outra; se um possui uma falha proeminente ou enfermidade, também outro tem
a sua. Em efeito, dado seu modo extraordinário de viver, existem tão poucas
40

tentações para fazer o errado, que são bons (de acordo com sua noção de
bondade) tão somente pelo fato de estarem vivos. Possuem algumas idéias
fantásticas sobre a continuação da vida, quando uma vez concedida, mesmo
no reino vegetal, como o leitor irá ver no capítulo seguinte.

CAPÍTULO XIV

Ainda, como já tinha dito, os Vril-ya desprezam toda especulação sobre a


natureza do Supremo Ser, e parecem coincidir em uma crença, com a qual
supõem que resolveram o grande problema da existência do mal, que tão
perplexa deixa a filosofia de nosso mundo. Sustentam a idéia de que uma vez
que o Supremo Ser há por dar a vida, com as percepções de tal vida, por
imperceptíveis que sejam, como na planta, tal vida jamais é destruída; passa a
novas e melhoradas formas, ainda que não neste planeta (diferenciando-se
nisto da corrente doutrina da metempsicose): e que as coisas viventes retêm o
sentido de identidade; a qual enlaça sua vida passada com a futura e é
consciente de seu melhoramento progressivo na escala da felicidade. Pois eles
dizem que, sem este postulado, não alcançam descobrir, de acordo com a
razão humana, a perfeita justiça que tem de ser qualidade constituinte da
Suprema Sabedoria e do Supremo Bem.
A injustiça, afirmam, somente pode emanar de três causas, a saber:
falta de sabedoria para perceber o que é justo; falta de benevolência para tal
desejar e falta de poder para satisfazê-lo; e que cada uma destas três faltas é
incompatível na Suprema Sabedoria, no Supremo Bem, no Onipotente. Mas
que, por mais que a sabedoria, a benevolência e o poder do Supremo Ser estão
manifestos nesta vida o suficiente para que as reconheçamos, a justiça
necessária resultante de tais atributos, requer absolutamente outra vida, não
para o homem unicamente, senão também para todo ser vivente das ordens
inferiores. Tanto no mundo animal como no vegetal, dizem, vemos que um
indivíduo, por circunstâncias que não pode controlar, é excessivamente
desgraçado, em comparação com quantos o rodeiam (um só existe como presa
do outro), e até a planta sofre enfermidades a ponto de perecer
prematuramente, enquanto outra a seu lado goza de vida exuberante e vive
felizmente sem nenhum problema. Os Vril-ya consideram errônea a analogia
de tal condição com as fraquezas humanas, que implica da afirmação de que o
Supremo Ser apenas atua por meio de leis gerais; para tanto, faz as próprias
causas secundárias tão potentes que anulam a bondade essencial da Causa
41

Primeira. Todavia, pior e mais ignorante é o conceito, segundo o qual, o


Supremo Bem rechaça depreciativamente toda consideração de justiça para as
miríades de forma nas quais Ele tem infundido sua vida e supõem que a justiça
é meramente para o produto “An”. Ante os olhos do divino Dispensador de
Vida, não existe nem pequeno nem grande. Se admitirmos que nada que sente,
vive, sofre, por mais humilde que seja, pode perecer no transcurso das eras;
que o sofrimento, por mais que dure desde o momento do nascimento até à
passagem à outra forma do ser (o qual, em comparação com a eternidade, é
mais curto que o grito de um recém-nascido, comparado com a vida de um
homem), e na suposição que tal ser vivente retêm o sentido de identidade
(posto que sem tal não se daria conta do ser futuro) e não obstante, que o
cumprimento da divina justiça está fora do alcance de nossa compreensão,
temos de supor que tal justiça é uniforme e universal, não variável e parcial,
como o seria se atuasse apenas de acordo com leis gerais secundárias; porque
a perfeita justiça flui, necessariamente, da perfeição do conhecimento para
conceber; da perfeição em querer e da perfeição no poder de completar o que
se deseja.
Por muito fantástica que pareça esta crença dos Vril-ya, ela tende talvez
a dar solidez política aos sistemas de governo que, admitindo diferentes graus
de riqueza, estabelecem perfeita equidade em nível social, formosa suavidade
nas relações e intercâmbios e benevolência para todas as coisas criadas, a qual
o bem da comunidade não exija que sejam destruídas. Ainda que sua idéia de
compensação a um inseto torturado ou a uma flor enferma possa parecer a
alguns de nós uma louca fantasia, ainda, ao menos, tal não é prejudicial e não
pode dar motivo para qualquer reflexão crítica a um povo que, não obstante
viver nos abismos da Terra, jamais alumiado por um raio dos Céus material, lá
tenha penetrado tão luminosa concepção da inefável bondade do Criador – tão
arraigada idéia de que as leis gerais pelas quais Ele atua, não admitam
nenhuma injustiça ou mal parcial e, para tanto, não podem ser compreendidas
sem raciociná-las em sua ação sobre todo o espaço e através de todo o tempo.
E posto que, como terei ocasião de fazer ver mais adiante, as condições
intelectuais e os sistemas sociais desta raça subterrânea compreendem e
harmonizam as mais diversas e aparentemente antagônicas doutrinas
filosóficas e especulações que de tempos em tempos tenham aparecido,
tenham sido discutidas, rechaçadas e tenham reaparecido entre os pensadores
e sonhadores de nosso mundo de acima, então posso apropriadamente assentar
a seguinte conclusão com respeito à crença dos Vril-ya, de que a vida
consciente e autoconsciente, uma vez dada, é indestrutível nas criaturas
inferiores, bem como no homem, através de uma eloqüente citação do trabalho
daquele eminente zoólogo, Luis Agassiz, que li recentemente, muitos anos
42

depois de haver transportado ao papel as lembranças da vida dos Vril-ya, que


agora reduzo em algo com ordem e forma. Diz Agassiz: “As relações que
animais individuais tem para com outros são de tal caráter, que devem ter sido
a muito tempo atrás consideradas como evidência suficiente de que nenhum
ser organizado pôde ser chamado à existência por forma alguma, senão pela
direta intervenção de uma mente reflexiva. Este é um forte argumento em
favor da existência em cada animal de um princípio imaterial similar ao que,
por sua excelência e dotes superiores, põe o ser humano muito acima dos
animais; apesar do princípio inquestionavelmente existir, e quer seja este
chamado percepção, razão, ou instinto, este se apresenta na totalidade dos
seres organizados como uma série de fenômenos estritamente entrelaçados, e
sobre tal se baseia não apenas as mais elevadas manifestações da mente, senão
a permanência mesma das diferenças específicas que caracterizam a todo
organismo. A maioria dos argumentos a favor da imortalidade do homem
refere-se igualmente para a permanência deste princípio em outros seres
viventes. E, talvez eu possa acrescentar, que, uma vida futura, em que o ser
humano se veja privado dessa grande fonte de felicidade e de melhoramento
intelectual e moral resultante da contemplação das harmonias em um mundo
orgânico, pudesse representar uma lamentável perda? E talvez não
devêssemos olhar para um concerto espiritual dos mundos combinados, e de
todos seus habitantes na presença de seu Criador, como a mais alta concepção
do Paraíso?” – ‘Ensaio sobre Classificação’, seç. xvii, pág. 97-99.

CAPÍTULO XV
Todos naquele lugar foram muito bondosos comigo, porém a jovem
filha de meu anfitrião foi a que mais se destacou por sua consideração e
bondade. À indicação da mesma, troquei meu traje com que havia descido
desde acima da Terra e adotei o vestido dos Vril-ya, com exceção das
magníficas asas artificiais, que a eles serviam de graciosos manto quando iam
a pé. Mas como muitos deles tampouco levavam as asas ao desempenharem
ocupações urbanas, não me diferenciava muito daqueles da raça a qual
mantinha estada, o qual permitiu-me visitar a povoação sem despertar danosa
curiosidade. Fora da casa, ninguém suspeitava que havia vindo do mundo
sobre a Terra, e consideravam-me um membro de alguma raça inferior, que
Aph-lin tinha como hóspede.
A cidade era grande em proporção ao território rural que a cercava, o
qual não era de maior extensão que a propriedade de numerosos nobres
ingleses ou húngaros; porém todo ele, até as rochas que constituíam seus
43

limites, estavam intensa e cuidadosamente trabalhado; exceto em porções de


montanhas e pradarias, mantidas expressamente para o sustento dos animais
que haviam conseguido amansar, ainda que não para seu serviço doméstico.
Tão grande era sua bondade para com tais humildes criaturas, que dedicavam
uma quantidade do Tesouro público com o objeto de transportá-las a outras
comunidades dispostas a recebê-las (principalmente em colônias novas)
quando os animais faziam-se demasiados numerosos para os pastos que para
eles havia reservados. Contudo, eles não eram multiplicados na proporção em
que são multiplicados em nosso mundo os animais criados para matadouro.
Parece uma lei da natureza que animais não úteis ao homem, gradualmente
diminuam nos domínios em que estes ocupem e que até mesmo cheguem a
extinguir-se.
É uma antiga tradição nos diversos estados soberanos entre os quais
divide-se a raça dos Vril-ya, deixar entre cada estado uma porção de terra
fronteiriça neutra e sem cultivo. No caso da comunidade a que me refiro, esta
área, por ser uma cordilheira de rochas agrestes era intransitável a pé; porém
era facilmente transponível seja pelos habitantes alados ou por embarcações
aéreas, das quais falaremos mais adiante. Além disso, haviam sido abertas
estradas através desta para o trânsito de veículos impulsionados por Vril. Estas
áreas de intercomunicação eram mantidas sempre iluminadas, e os gastos para
tal eram supridos com um imposto especial, ao qual contribuíam em justa
proporção todas as comunidades compreendidas na denominação dos Vril-ya.
Por tais meios, havia considerável tráfego comercial com outros estados,
próximos ou distantes. O excesso de riqueza da comunidade que nos detemos
provinha principalmente da agricultura. A comunidade distinguia-se de forma
eminente também por sua habilidade para construir implementos de plantio.
Com o intercâmbio destes produtos obtinham outros, mais de luxo que de
necessidade. Poucas das coisas importadas eram pagas a tão alto preço quanto
os pássaros aos quais ensinavam a cantar em concerto. Eram trazidos de
distantes regiões e eram maravilhosos pela beleza de suas cantorias e sua
plumagem. Tenho compreendido que os criadores e adestradores de tais
pássaros punham grande cuidado na seleção dos mesmos e a espécie havia
melhorado notavelmente durante os últimos anos.
Não vi outra classe de animais domésticos naquela comunidade, exceto
uns muito brincalhões e divertidos da espécie dos batráquios, que pareciam-se
com sapos; porém muito inteligentes; agradavam muito aos meninos e estes os
mantinham nos jardins particulares.
Parece que não possuem animais como nossos cães ou cavalos, apesar
de que a sábia naturalista Zee, ter me dito que esta classe de animais havia
existido naquelas paragens e encontravam-se os ainda em regiões ocupadas
44

por raças distintas dos Vril-ya. Segundo me disse, haviam gradualmente


desaparecido de um mundo mais civilizado desde o descobrimento de Vril, e
como resultado pertinente a tal descoberta, a utilidade de tais animais havia
conseqüentemente sido dispensada. A maquinaria e a invenção das asas
haviam substituído ao cavalo, como besta de carga, e o cão já não mais se
necessitava, nem como guardião nem como caçador, na forma que este havia
sido quando os Vril-ya temiam o ataque de seus semelhantes ou caçavam
animais menores para sua alimentação. Realmente, quanto ao cavalo, a região
era tão rochosa que este animal resultava pouco utilizável, tanto para carga
quanto para passeio. O único animal que eles empregam para carga é uma
espécie de cabra grande, que utilizam muito nas granjas.
A natureza do solo naqueles distritos pode-se dizer que foi o que impôs
a necessidade de inventar asas e embarcações aéreas. A extensão do espaço
ocupado pela cidade, comparado com a área rural, devia-se ao costume de
rodear cada casa com um jardim independente. A ampla rua principal, em que
habitava Aph-Lin, se alargava em uma imensa praça na qual estavam situados
o Colégio dos Sábios e todos os edifícios públicos, em cujo centro havia uma
magnífica fonte de fluído luminoso, que eu chamo nafta, mas de cuja
verdadeira natureza ignoro. Todos estes edifícios públicos são de solidez e
grandiosidade uniforme. Recordavam-me os desenhos arquitetônicos de
Martin. Ao largo dos pisos superiores corria uma varanda ou, melhor dito, um
jardim suspenso suportado por colunas e repleto de plantas e flores e alegrado
por uma infinidade de aves amestradas. Da praça destacavam-se várias ruas,
todas amplas e brilhantemente iluminadas, que ascendiam nas encostas
circundantes. Em minhas excursões pela cidade, nunca me foi permitido ir
sozinho; Aph-Lin ou sua filha eram meus acompanhantes habituais. Naquela
comunidade, a Gy adulta saia acompanhada com qualquer joven An, como se
não houvesse diferença entre os sexos.
As lojas, pelo menos, não são muito numerosas; as pessoas que atendem
aos clientes são todas crianças de várias idades, e extraordinariamente
inteligentes e corteses. O proprietário poderá estar ou não visível, e, caso
esteja, rara vez se o vê ocupado em assuntos relacionados com o negócio em
si, não obstante que o tenha empreendido por predileção ao mesmo e seja
bastante independente quanto à sua fonte geral de fortuna.
Alguns dos cidadãos mais ricos daquela comunidade possuem tais lojas
(lojinhas, vendas). Como tenho já dito, não se reconhece diferença alguma em
nível social e, portanto, todos os trabalhos carregam a mesma igualdade em
importância na sociedade. Um An de quem comprei minhas sandálias, era
irmão do Tur, o Supremo Magistrado; e ainda que sua lojinha não fosse maior
que a de qualquer sapateiro em Bond Street ou Broadway*, se dizia que era
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duas vezes mais rico que o Tur, o qual residia em um Palácio. Não há dúvida,
contudo, que possuía alguma residência no campo.
Os Ana da comunidade, em conjunto, são uma coleção de seres
indolentes, uma vez que tenham passado do período ativo da infância. Seja por
temperamento ou filosofia, eles classificam o repouso como uma das maiores
bênçãos da vida. De fato, consideram que quando são retirados do ser humano
o incentivo à ação, nascido da ambição e da concupiscência, não é de
estranhar que este tenha predileção à quietude.
Em seus movimentos usuais preferem o uso dos pés às asas. Para suas
atividades esportivas (com perdão ao uso inapropriado do termo) e atos
públicos, empregam as últimas, o mesmo que para as danças aéreas que
descrevi anteriormente, bem como para visitar suas residências no campo, às
quais estão correntemente situadas em grandes alturas e, quando ainda jovens,
preferem suas asas para viajar para outras regiões, ao invés da preferência por
outros meios de transporte.
Os acostumados ao vôo, podem voar, ainda que com menos rapidez que
as aves, e alcançar velocidades de quarenta a cinqüenta quilômetros por hora,
podendo sustentar-se nos ar em tal ritmo durante umas cinco a seis horas.
Porém, ao chegar à idade madura, o An geralmente não gosta muito de
movimentos rápidos, que exijam exercício violento. Talvez por esta razão,
posto que aceitam a doutrina (a qual nossos próprios fisiologistas irão com
certeza aprovar) de que a transpiração regular pelos poros da pele é essencial
para uma boa saúde, habitualmente tomam os banhos de vapor que nós
chamamos turcos ou romanos, seguidos de duchas de águas perfumadas.
Depositam grande fé nas qualidades salutíferas de certos perfumes.
É também seu costume, em determinados porém raros períodos, talvez
umas quatro vezes ao ano, quando gozam de boa saúde, tomar um banho
carregado de Vril. Uma vez provei o efeito do banho de Vril. Foi muito
similar, pela revigoração, aos banhos de Gastein, as virtudes dos quais são
atribuídas por muitos médicos à eletricidade; porém ainda que similares os
efeitos de Vril são muitos mais duradouros. Eles consideram que dito fluido,
empregado em pequena escala, é grande sustentador da vida; mas que, usado
em excesso, quando se goza de boa saúde, mais tende a desestabilizar e
desvitalizar. Contudo, recorrem a ele em todas as suas enfermidades, para
ajudar a natureza a restabelecer-se.
Em sua própria maneira, são as mais exuberantes das pessoas, porém
todos seus luxos são inocentes. Pode ser dito que vivem em uma atmosfera de
música e fragrância. Cada habitação tem seus dispositivos mecânicos para
sons melodiosos, usualmente ajustados em tons amenos que dão a impressão
de suaves murmúrios de espíritos invisíveis. Estão tão acostumados a estes
46

sons suaves, como para não achá-los impeditivo à conversação, nem, quando
sozinhos, à reflexão. Porém, afirmam que respirar uma atmosfera carregada de
contínua melodia e perfume, necessariamente produz um efeito a uma vez
calmante e eleva o caráter e o modo de pensar.
Apesar de tão sóbrios, e com total abstinência de qualquer outra comida
animal exceto o leite, e de todas bebidas alcoólicas, contudo, são eles
refinados e delicados ao extremo em comida e bebida. Em todos seus esportes,
até mesmo os velhos exibem uma alegria infantil. A felicidade é o que eles
anelam, não como alegria fugaz, senão como condição dominante de sua
existência; a mesma consideração pela felicidade dos demais se manifesta na
agradável amenidade de suas maneiras.
A conformação do crânio dos Vril-ya tem marcadas diferenças com os
de todas as raças conhecidas de nosso mundo. Não pude menos que pensar
que tal conformação é um desenvolvimento, o qual tem requerido incontáveis
eras, do tipo braquicéfalo da Idade da Pedra, descrito no “Elemento de
Geologia”, de Lyell, cap. X, pág. 113, quando comparado com o tipo
dolicocéfalo do princípio da Idade do Ferro, que corresponde ao hoje tão
predominante entre nós mesmo conhecido como o tipo Celta. Possuem,
comparativamente, o mesmo volume massivo de fronte, não recuada como no
Celta—a mesma curvatura uniforme dos órgãos frontais; porém mais elevada
no topo e muito menos pronunciada no hemisfério cranial posterior, no qual os
frenólogos colocam os órgãos animais. Para expressar-me como um frenólogo,
direi que o crânio dos Vril-ya possuem os órgãos de peso, número, vigor,
forma, ordem, casualidade, muito largamente desenvolvidos e de conformação
muito mais pronunciada que o ideal. Os órgãos chamados morais, tais como a
consciência e a benevolência, são extraordinariamente perfeitos; os de
amorosidade e combatividade muito pequenos; os de lealdade são grandes; o
órgão da destrutividade (por dizer, a determinada eliminação de obstáculos
interpostos) imensos, mas menores que aqueles da benevolência; e sua
filoprogenitura*(descendência?), toma mais a característica de compaixão e
ternura às coisas que necessitem de ajuda ou proteção ao invés de amor animal
pela cria. Nunca encontrei pessoa alguma deformada ou com malformação
física. A beleza de sua expressão facial é não apenas na simetria das
proporções, senão à suavidade de sua pele, que se mantém sem uma ruga ou
vinco até a mais avançada idade, e uma serena expressão de doçura,
combinada com aquela majestade que parece provir da consciência de poder e
da liberdade de todo terror, físico ou moral. É aquela mesma mansidão
combinada com majestade, que inspirava em um observador como eu mesmo,
acostumado a lidar com as paixões da humanidade, um sentimento de
humilhação, de temor, de respeito. É uma tal expressão que um pintor poderia
47

dar a um semideus, um gênio, ou mesmo a um anjo. Os homens dos Vril-ya


são totalmente sem barba; as Gy-ei às vezes, em idade avançada, desenvolvem
um pequeno bigode.
Fiquei surpreso ao notar que a coloração da pele não era uniformemente
àquela que eu tinha reparado naqueles indivíduos com quem eu tinha primeiro
me encontrado, --alguns sendo mais formosos, e mesmo com olhos azuis, um
cabelo de um profundo ruivo dourado, apesar de ainda com compleição mais
amena ou rica em tonalidade que as pessoas do norte da Europa.
Informaram-me que essas diferenças de coloração tinham sua origem
em casamentos com outras tribos mais distantes dos Vril-ya, as quais, seja por
acidente do clima ou por primitivas distinções de raça, eram mais ruivas que
as tribos a que pertencia àquela comunidade. Considerava-se que a pele
vermelho-escura indicava a mais ancestral Família dos Ana; porém, eles não
sentiam orgulho algum por tal antiguidade; pelo contrário, acreditavam que a
excelência atual de sua raça devia-se aos freqüentes cruzamentos com outras
famílias, de mesma procedência, mas distintas; e encorajavam tais casamentos
inter-raciais, sempre concedidos com tal que fossem com outras nações Vril-
ya. As nações que não se adequavam a seus costumes e instituições aqueles
dos Vril-ya e nem eram capazes de adquirir poder sobre os agentes de Vril,
que eles havia demorado muitas gerações em conseguir e transmitir, eram
consideradas pelos Vril-ya com maior desdém que os cidadãos de New York
sentem pelos negros.
Aprendi de Zee, que possuía mais conhecimento em todas as matérias
que qualquer homem com quem travei conversação familiar, que a
superioridade dos Vril-Ya era, segundo se supunha, a conseqüência de suas
intensas lutas, que primitivamente tiveram que desenvolver, contra os
obstáculos da natureza nos lugares em que de início precisamente se
estabeleceram.
“Sempre” - dizia-me Zee, com um tom moralizador – “onde quer que se
tenha desenvolvido este processo prematuro na história da civilização, em que
a vida é uma luta na qual o indivíduo tem de por a disposição todos os seus
poderes para competir com seus semelhantes, invariavelmente temos este
resultado, a saber: tendo em vista que na competição um grande número tem
de perecer, a natureza seleciona apenas os mais aptos espécimes. Em nossa
raça, por tal razão, mesmo antes do descobrimento de Vril, apenas as mais
elevadas organizações foram preservadas; e há em nossos antigos livros uma
lenda, que em seu tempo foi por todos acreditada, segundo a qual fomos
guiados de uma região que parece ser o mundo de que você provêm, a fim de
aperfeiçoar nossa condição e alcançar o mais puro refinamento de nossa
espécie, por meio das terríveis lutas que nossos antepassados tiveram que
48

passar e que, uma vez que nossa educação se tenha completado, estamos
destinados a voltar ao mundo superior e suplantar todas as raças inferiores que
hoje o povoam”.
Aph-lin e Zee amiúde conversaram comigo em privado sobre as
condições políticas e sociais do mundo superior, cujos habitantes, segundo
Zee supôs tão filosoficamente, haviam de ser exterminados um dia ou outro
pelo advento dos Vril-ya. Eles encontraram em meus relatos, nos quais
esforcei-me tudo que podia (sem cair em falsidades tão claras que teriam sido
facilmente descobertas pela sagacidade de meus ouvintes) em apresentar-lhes
nossos poderes e nós mesmos desde o ponto de vista mais favorável,
perpetuamente sujeitos de comparação entre nossas mais civilizadas
populações e as ignóbeis raças subterrâneas, as quais eles consideravam
desperançosamente imersas em barbárie e condenadas a gradual, senão certa,
extinção.
Porém ambos coincidiam no desejo de ocultar à sua comunidade toda
indicação prematura do caminho até as regiões alumiadas pelo Sol; ambos,
como eram compassivos, tratavam de encolher-se ante a idéia de aniquilar a
tantos milhões de criaturas; mas o quadro que os desenhei de nossa vida,
apesar do brilho de minhas cores, os entristecia. Em vão lhes citava a nossos
grandes homens; poetas, filósofos, oradores, generais, e desafiava aos Vril-ya
a que apresentassem seus semelhantes. “Alas!” – exclamou Zee, com seu belo
rosto adocicado por uma compaixão angelical – “precisamente este
predomínio dos poucos sobre os muitos é a indicação mais clara e fatal de uma
raça incorrigivelmente selvagem. Não percebe você que a primeira condição
para a felicidade humana consiste na eliminação da luta e competição entre os
indivíduos, a qual, qualquer que seja a forma de governo que adotem, tende a
subordinar a maioria a uns poucos, destrói a verdadeira liberdade do indivíduo,
qualquer que seja a liberdade nominal do Estado, e impede a tranqüilidade da
existência, sem a qual, a faculdade mental ou corporal não pode ser atingida”?
“Nosso conceito é” – prosseguiu Zee – “que, quanto mais possamos assimilar
a vida à existência em que nossos mais nobres pensamentos possam conceber
ser aquela dos espíritos do outro lado da tumba, ora, mais nos aproximaremos
a uma divina felicidade aqui, e de forma mais fácil passamos gradativamente
às condições do ser da vida futura”.
“Visto que, seguramente, tudo que podemos imaginar da vida dos
deuses, ou de benditos imortais, supõe a ausência de desejos em benefício
próprio ou contenciosas paixões, tais como a avareza e a ambição, assim,
parece-nos que tal tem de ser uma vida de serena tranqüilidade, não
precisamente sem ocupações ativas para as faculdades intelectuais e poderes
espirituais, senão ocupações que, de qualquer natureza que sejam, estejam
49

estas congenitamente adaptadas à idiossincrasia de cada um, não impostas ou


desagradáveis – uma vida alegrada pelo intercâmbio sem travas de gentis
afetos, em que o ambiente moral afasta completamente todo sentimento de
ódio e vingança, luta e rivalidade. Tal é o estado político que todas as tribos e
famílias dos Vril-ya tratam de alcançar, e, direcionadas para tal objetivo todas
nossas teorias de governo são moldadas. Percebe você, quão completamente
oposto é tal progresso aos das nações incivilizadas de onde você vem, e que
miram em uma sistemática perpetuidade de dificuldades, e preocupações, e
paixões em luta, condição que agravam mais e mais enquanto seu progresso
segue de forma tormentosa seu caminho inverso. A mais poderosa de todas as
raças de nosso mundo, fora da égide dos Vril-ya, estima-se a si mesma como a
melhor governada de todas as sociedades políticas e como a que tem
alcançado o máximo de sabedoria política que é possível alcançar; de maneira
que crêem que as demais nações devam imitá-la. Se estrutura sobre a mais
ampla base do Koom-Posh, quer dizer, o governo dos ignorantes sobre o
princípio de serem a maioria. Fundamentam o Supremo bem-estar na disputa
de uns com os outros em tudo, de maneira que as más paixões nunca
descansam; disputa pelo poder, pela riqueza, pelo predomínio de qualquer
maneira, e, nesta rivalidade, é horrível ouvir os vitupérios, as calúnias e as
acusações que, mesmo os melhores e mais nobres entre eles, lançam uns
contra os outros, sem remorso nem vergonha”.
“Faz alguns anos” – disse Aph-Lin – “visitei dito povo. Sua miséria e
degradação resultavam mais espantosa por causa de que constantemente se
jactavam de sua felicidade e grandeza, em comparação com o resto de sua
espécie. E não há esperança que este povo (o qual evidentemente se parece
com o seu) possa melhorar, porque todas suas idéias tendem à maior
deterioração. Desejam estender mais e mais seus domínios; em direta
contradição com a verdade de que, mais além de certos limites, é impossível
assegurar a uma comunidade a felicidade própria a uma família bem ordenada;
e quanto mais aperfeiçoam o sistema baseado no predomínio de uns poucos
ricos e poderosos sobre a vastidão de famintos e desvalidos, mais se louvam
dizendo: “Veja co que poucas exceções à ordinária insignificância de nossa
raça, provamos a magnificência de nosso sistema!””
“De fato” – replicou Zee –, “se a sabedoria da vida humana consiste em
aproximarmos-nos à serena equidade dos imortais, não pode haver queda mais
direta em direção oposta que um sistema que aspira a levar ao extremo as
desigualdades e turbulências dos mortais. Nem tampouco alcanço a ver como,
baseado em qualquer crença religiosa, os mortais que assim obram, podem
aspirar às alegrias dos imortais, as quais esperam alcançar pelo mero ato de
morrer. Pelo contrário, as mentes acostumadas a colocar sua felicidade em
50

coisas tão contrárias à divindade, achariam muito aborrecida tal felicidade, e


anelariam voltar ao mundo em que poderiam estar em disputa uns com os
outros.”

CAPÍTULO XVI

Tenho mencionado muitas vezes sobre a Varinha mágica Vril e meus leitores,
naturalmente, esperam que a descreva. Tal não posso fazer com exatidão,
porque nunca foi-me permitido manipulá-la, por temor de algum terrível
acidente, por causa de minha ignorância acerca de sua utilização. É oca, e leva
no cabo uma série de regulagens, chaves ou interruptores, por meio dos quais
a força pode ser alterada, modificada ou dirigida, segundo queira-se utilizá-la
para destruir ou curar; para quebrar rocha; por um lado para dissipar vapores –
por outro para afetar os corpos, por outro para exercer alguma influência sobre
as mentes. É usualmente portada no conveniente tamanho de um bastão, mas é
extensível e pode-se aumentar ou diminuí-la à vontade.
Ao usar a Varinha, apóia-se o cabo na palma da mão com os dedos
indicador e médio esticados. Asseguram-me que, contudo, que o poder da
Varinha não é igual para todos os que a manejam, senão que certas
propriedades de Vril dependem de quem a maneja, em afinidade ou harmonia
com o fim a que se propõe ou deseja. Uns tem mais poder para destruir, outros
para curar, etc; muito depende da calma e força de vontade do manipulador.
Eles afirmam que o pleno poder de Vril somente podem exercê-lo aqueles que
possuam certo temperamento constitucional, que é hereditário em certas
organizações. Em tais condições, uma menina de quatro anos de idade
pertencente às raças dos Vril-ya pode fazer, com a varinha posta pela primeira
vez em suas mãos, coisas que não poderia fazer o mais forte e hábil mecânico
que não tenha nascido sob a égide dos Vril-ya, ainda que se dedique toda sua
vida à pratica. Umas varinhas são mais complicadas que outras; as confiadas
aos meninos são mais simples que as empregadas pelos sábios de ambos os
sexos, e são construídas para o objetivo especial ao que os mesmos dediquem-
se, o qual, como disse antes, é, para os mais pequenos, o de destruir. Nas
Varinhas de esposas e mães, o poder destrutivo está anulado e, em troca, estão
carregadas com pleno poder curativo. Gostaria de poder dizer algo mais sobre
este singular condutor de fluido Vril; mas somente posso dizer que o
mecanismo do mesmo é tão delicado, quanto maravilhosos são seus efeitos.
51

Devo dizer, contudo, que este povo tem inventado uns tubos, por meio
dos quais pode-se fazer chegar o fluido de Vril aos objetos que tenham que
destruir a uma distância quase indefinida. Digo que tem um alcance de, pelo
menos, uns 800 a 1000 quilômetros. Ainda, sua ciência matemática, como é
aplicada para tal finalidade, é tão exatamente precisa que, seguindo as
indicações de um observador em uma embarcação aérea, qualquer membro do
departamento de Vril pode calcular, inequivocamente, a característica dos
obstáculos intermediários, a altura que o instrumento de disparo tem de ser
elevado e a carga necessária para ser amuniciado, para como que reduzir a
cinzas, em um período de tempo extraordinariamente curto para eu ousar
especificar, uma cidade duas vezes maior que Londres.
Em realidade, os Ana são mecânicos maravilhosos – maravilhosos na
aplicação de suas faculdades inventivas para usos práticos.
Em certa ocasião, visitei acompanhado de meu anfitrião e de sua filha
Zee, o grande Museu Público que ocupa uma ala do Colégio dos Sábios, no
qual estão guardados, como curiosos modelos dos torpes e primitivos
experimentos de seus primeiros tempos, muitos dispositivos dos quais
orgulhamo-nos hoje em dia como conquistas modernas. Em uma seção,
abandonados como ferro-velho estavam uns tubos para destruir a vida por
meio de bolas metálicas e pó inflamável, construídos conforme o princípio de
nossas catapultas e canhões, e até mesmo, muito mais mortíferos que nossos
mais modernos instrumentos.
Meu anfitrião referiu-se a eles com sorriso de desdém, algo assim como
um oficial de artilharia olharia aos arcos e flechas dos chineses. Em outra
seção havia maquetes de veículos e embarcações a vapor e de um balão
inflável que bem poderia ter sido construído por Montgolfier. “Tais foram” –
disse Zee, com um ar de sabedoria meditativa – “os débeis esforços para
dominar a natureza, desenvolvidos por nossos selvagens antepassados, antes
que possuíssem um mero vislumbre das propriedades da força de Vril!”
Esta jovem Gy era um magnífico espécime da força muscular que as
mulheres daquele país alcançam. Suas feições eram formosas, igual a todos de
sua raça: nunca em nosso mundo de acima havia eu visto um rosto tão divino
e perfeito, porém, sua devoção aos estudos mais sérios tinham dado a seu
semblante uma expressão de mentalidade abstrata, que a fazia parecer severa
em momentos de repouso. E tal severidade tornava-se impressionante quando
observada conjuntamente com seu amplo busto e alta estatura. Era alta mesmo
para uma Gy, e a vi erguer um canhão tão facilmente quanto eu podia levantar
uma pistola. Zee inspirava-me com um terror secreto, um terror que aumentou
quando adentramos na seção do museu em que se guardam os dispositivos
manipulados pela ação de Vril; pois ali, a um mero movimento de sua Varinha
52

Vril, ela mesma estando à distância, colocava em movimento enormes e


pesadas substâncias. Parecia que as dotava de inteligência, como se as fizesse
entender e obedecer às suas ordens. Ela colocou em ação complicados
mecanismos de maquinaria, os colocava em marcha e os parava, até que, em
um período de tempo muito curto, converteu diversas classes de matéria prima
em simétricas obras de arte, completas e perfeitas. Qualquer que sejam os
efeitos que o mesmerismo, ou a eletrobiologia produzam nos nervos e
músculos dos objetos animados, esta jovem Gy os produzia, com os
movimentos de sua delgada Varinha sobre as regulagens e rodas de
mecanismos inanimados.
Ao manifestar a meus acompanhantes meu espanto perante a influência
que Zee parecia exercer sobre a matéria inanimada, posto que em nosso
mundo, tinha eu testemunhado fenômenos que mostravam que sobre certas
organizações vivas, determinadas outras organizações vivas podiam
estabelecer uma influência em si mesma genuína, porém, geralmente
exagerada pela credulidade ou artimanha – Zee, a quem tais questões
interessavam-na mais que a seu pai, fez-me estender a mão e, colocando a sua
ao lado, me fez notar certas distinções de tipo e caráter. Em primeiro lugar, o
polegar da Gy (e como mais tarde observei, era assim igual para todos de
aquela raça, homens ou mulheres) era muito muito mais largo, e mais longo e
mais robusto que o encontrado em nossa espécie sobre a Terra. A diferença
era quase tanto quanto o polegar de um homem e de um gorila. Em segundo
lugar, a palma da mão era proporcionalmente mais grossa que a nossa; a
textura da pele infinitamente mais fina e suave e com mais calor maior. Mais
notável que tudo isto, é um nervo visível, perceptível sobre a pele, que parte
do pulso, rodeia a junta do polegar e se ramifica em forquilha na raiz dos
dedos indicador e médio. “Com vossa débil formação do polegar” disse a
filosófica jovem Gy, “e com a falta do nervo, que terá você visto mais ou
menos desenvolvido nas mãos dos de nossa raça, nunca podereis alcançar
mais que um poder imperfeito e superficial sobre o agente de Vril; mas, em
quanto concerne ao nervo, tal não se encontra nas mãos de nossos primitivos
progenitores, nem tampouco naquelas rudes tribos que não pertençam à raça
dos Vril-ya. Este nervo tem sido desenvolvido paulatinamente no decorrer de
gerações, originando-se nas primitivas descobertas e fortalecendo-se com o
contínuo exercício do poder de Vril; conseqüentemente, no curso de mil ou
dois mil anos, pode ser que este nervo apareça nos mais avançados seres de
vossa raça, que se dediquem àquela ciência superior, graças à qual se alcança
o domínio de todas as forças sutis da natureza impregnados por Vril. Porém,
quando você fala da matéria como alguma coisa em si mesma inerte e imóvel,
seus pais e tutores certamente não puderam ter-lhe deixado tão ignorante
53

quanto para não saber que nenhuma forma de matéria é imóvel e inerte: toda
partícula está em constante movimento e eternamente dirigida por agentes, da
qual o calor é o mais aparente e rápido, mas Vril o mais sutil e, quando
dirigido com habilidade, o mais poderoso. Sendo assim, de fato, a corrente
lançada por minha mão e guiada por minha vontade, não faz mais que
submeter, com mais rapidez e potência, à ação que está eternamente
trabalhando sobre cada partícula de matéria, por mais inerte e resistente que
pareça. Se uma massa de metal não é capaz de originar um pensamento
próprio, ainda assim, em virtude de sua suscetibilidade interna ao movimento,
tal obtém o poder de receber o pensamento do agente intelectual que opera
sobre esta; e que, quando carregada com suficiente carga de poder Vril, esta é
tanto mais compelida a obedecer quanto se fosse deslocada por uma força
corporal perceptível. Esta é, de momento, animada pela alma que de tal
maneira se lhe infunde, tanto que uma pessoa quase pode afirmar que a mesma
vive e raciocina. Sem isto nós não poderíamos fazer com que nossos
autômatos substituíssem as funções dos criados”.
Eu estava por demais espantado dos músculos e dos conhecimentos da
jovem Gy para correr o risco de argumentar com ela. Recordava-me haver lido
em algum lugar, em meus dias de escola, que um sábio, disputando com um
Imperador romano, repentinamente abaixou sua crista; e quando o Imperador
perguntou-lhe se já não tinha mais nada a dizer de seu ponto de vista, o sábio
contestou: “Não, César, não há maneira de argumentar contra um raciocinador
que comanda vinte e cinco legiões”.
Apesar de eu ter uma íntima convicção de que quaisquer que fossem os
efeitos verdadeiros de Vril sobre a matéria, o Sr. Faraday poderia ter-se
mostrado um muito superficial filósofo para ela, tanto em extensão quanto em
relação às causas do fenômeno, tinha eu absoluta certeza que Zee poderia ter
rachado a cabeça de todos os membros da Royal Society*, um após o outro,
com um golpe de seu punho. Todo homem sensível sabe que é inútil discutir
com uma mulher comum sobre assuntos que ela domina; porém, discutir com
uma Gy de dois metros de estatura, sobre os mistérios de Vril – é o mesmo
que discutir em um deserto contra uma tempestade Simoom*!
Entre as diversas seções que tomavam parte do vasto edifício do
Colégio dos Sábios, a que mais me interessou foi a dedicada à arqueologia dos
Vril-ya, à qual compreendia uma muito antiga coleção desses retratos. Nestes,
os pigmentos e a base de fundo* empregados era de natureza tão durável que,
até mesmo pinturas ditas terem sido feitas em datas tão remotas quanto
aquelas dos mais ancestrais anais do povo chinês, mantinham muito do frescor
de suas cores. Ao examinar esta coleção, duas coisas me chamaram
especialmente a atenção: -- primeiramente, que as imagens ditas datarem entre
54

6000 a 7000 anos de idade, eram de um muito maior grau de arte que qualquer
outra produzida dentre os últimos 3000 ou 4000 anos; e, em segundo lugar,
que os retratos do período antigo assemelhavam-se muito mais com nosso
mundo da superfície e tipos de expressões européias. Alguns deles, de fato,
recordavam-me as cabeças italianas que pareciam-se as dos quadros de
Ticiano; expressavam ambição e astúcia, preocupação ou dor, com sulcos
onde as paixões foram aradas a ferro. Estes eram os semblantes de homens
que tinham vivido em luta e conflito, antes que o descobrimento das forças
latentes de Vril mudara o caráter da sociedade – homens que disputaram o
poder e a fama, uns com os outros, igual nós mesmos fazemos em nosso
mundo da superfície.
O tipo de rosto começou a revelar marcada mudança mil anos depois da
Revolução originada por Vril, tornando-se assim, com cada geração, mais
serenos e, dessa forma, mais terrivelmente distinto das faces dos
desafortunados e perversos antepassados; enquanto que em proporção, tanto a
beleza quanto a magnificência da expressão em si mesma tornou-se muito
mais aprimorada; já a arte do pintor fez-se mais simplória e monótona.
Porém a maior curiosidade naquela coleção eram três retratos
pertencentes à época pré-histórica, os quais, segundo a tradição mítica, foram
feitos por ordem de um filósofo, cuja origem e atributos estavam tão
mesclados às fábulas simbólicas quanto às de um Buddha hindu ou de um
Prometeu grego.
Deste misterioso personagem, ao mesmo tempo sábio e herói, todas as
principais linhagens dos Vril-ya fazem remontar sua origem.
Os retratos são: o do filósofo mesmo, o de seu avô e o de seu bisavô.
São feitos em tamanho natural. O filósofo está vestido com uma longa túnica,
que parece conformar-se e uma vestimenta de folgada armadura escamosa,
tomada, talvez, de algum peixe ou réptil, mas as mãos e os pés estão visíveis:
os dedos de ambos são extremadamente longos e espalmados; tem quase ou
nenhum pescoço, a garganta é imperceptível e a testa é baixa e achatada; de
maneira alguma a testa ideal par um sábio. Os olhos são brilhantes, pardos e
proeminentes, a boca muito larga, as maças do rosto salientes e uma cútis
turva. De acordo com a tradição, este filósofo viveu na idade patriarcal,
estendendo-se por muitos séculos, e ele distintamente assemelhava-se, na meia
idade, a seu avô enquanto era vivo, e na infância a seu bisavô. O retrato do
primeiro foi feito, ou fez com que o fizessem, enquanto ainda era vivo – e o do
segundo, foi feito de sua efígie mumificada. O retrato do avô tinha aas
características e aspecto como as do filósofo, só que muito mais exagerada.
Não estava vestido e a coloração de sua pele era singular: o peito e o estômago
amarelos, os ombros e pernas de um matiz bronze fosco; o bisavô era um
55

magnífico espécime do gênero batráquio*, um Sapo gigante, pura e


simplesmente.
Entre os expressivos provérbios os quais, de acordo com a Tradição,
legou este filósofo em forma rítmica e de concisa brevidade, se registra o
seguinte: “Sejam humildes, meus descendentes; o pai de vossa raça foi um
Twat (Girino); Enalteçam-se, meus descendentes, pois foi o mesmo Divino
Pensamento que criou vosso pai, que se desenvolve em vós mesmos em vossa
honra”.
Aph-Lin relatou-me esta fábula enquanto eu observava os três retratos
dos batráquios. Respondi-o em réplica: Você se aproveita de minha suposta
ignorância e credulidade como a de um Tish sem cultura; mas ainda que estas
horríveis pinturas grosseiras possam ser de grande antiguidade, e tenham sido
feitas, intencionalmente, talvez, como alguma rude caricatura, suponho que
ninguém de vossa raça, mesmo nas épocas menos esclarecidas, tenha alguma
vez acreditado que o bisneto de um Sapo chegara a ser um judicioso filósofo;
ou que linhagem alguma, e não direi dos grandiosos Vril-ya, porém sequer
mesmo das mais degradadas raças humanas, tenha tido sua origem em um
Girino.”
“Perdoe-me,” – replicou Aph-Lin – “no que chamamos ‘Período de
Discussão ou Filosófico da História’, o qual teve seu apogeu a uns sete mil
anos, existiu um naturalista muito distinto, que demonstrou à exaustão para
numerosos discípulos tais analogias e semelhanças anatômicas estruturais
entre um An e um Sapo, como para mostrar que de um deve ter-se
desenvolvido o outro. Ambos tinham algumas doenças em comum; e estavam
ambos sujeitos aos mesmos micróbios parasitas nos intestinos; e, por se dizer
estranho, o An possui, em sua estrutura uma bexiga natatória, que já não lhe
serve para mais nada, mas que é um rudimento que prova claramente sua
descendência de um Sapo. Tampouco existe qualquer argumento contra esta
teoria que possa ser achado no que se refere à relativa diferença de tamanho;
pois ainda existem em nosso mundo sapos de dimensões e estatura não
inferior à nossa mesma e contudo, aparentavam serem ainda maiores milhares
de anos atrás.
“Entendo” – complementei – “porque sapos assim tão enormes, de
acordo com nossos eminentes geólogos, que talvez os tenham visto em seus
sonhos, são ditos terem sido distintos habitantes do mundo superior antes do
Dilúvio, e tais Sapos são as criaturas que exatamente, de forma aparente,
tenham florescido nos lagos e pântanos de vossas regiões subterrâneas. Mas
lhe rogo que prossiga”.
“No Período de Discussões da História, qualquer coisa que um sábio
dissesse, havia outro para sábio para contradizê-la. De fato, esta era a máxima
56

naqueles tempos, qual seja, de que a razão humana somente podia manter-se
na devida magnitude, exercitando-a a favor e contra no movimento de
perpétua contradição. E, conseqüentemente, uma outra escola filosófica
sustentava a doutrina de que o An não era um descendente do Sapo, mas que o
Sapo era, claramente, a forma de desenvolvimento melhorado do An. Que a
forma do Sapo, tomada em sua totalidade, era muito mais simétrica que aquela
do An. Além da bela conformação dos membros inferiores, os flancos e
ombros da maioria dos Ana daqueles tempos eram quase que totalmente
deformados e, certamente, mal proporcionados. Ademais, o Sapo tem a
capacidade de viver tanto na terra quanto na água – um grandioso privilégio,
tomando parte de uma essência espiritual negada ao An, claramente
evidenciada pelo desuso de sua bexiga natatória, o que prova sua degeneração
de um mais alto desenvolvimento das espécies. Ainda, as raças primitivas dos
Ana até uma época relativamente recente, estavam, segundo me parece,
cobertas de pêlos e barbas hirsutas deformavam os rostos de nossos
antepassados, as quais estendiam-se selvagemente por suas faces e queixo,
sendo similares, meu pobre Tish, aos pêlos como os que estão esparramados
por seu rosto. Porém, o intuito das raças superiores dos Ana, durante
incontáveis gerações, tem sido a de apagar todo vestígio de conexão com os
vertebrados peludos; e conseguiram eliminar gradualmente tais degradantes
excessos capilares através da lei de seleção sexual. As Gy-ei, naturalmente,
preferindo a juventude de rostos belos e suaves. Pois, o grau do Sapo nesta
ordem dos vertebrados poe-se de forma em que este carece totalmente de
pêlos; nem sequer os têm na cabeça. Ele nasce já sem pêlos, com aquela
perfeição descapilarizada que o mais bem apanhado dos Ana, apesar de
incontáveis eras de cultura, ainda não conseguiu atingir. A Escola à qual me
refiro, colocou em manifesto a maravilhosa complicação e delicadeza do
sistema nervoso e da circulação arterial do Sapo, os quais fazem-no ser mais
suscetível de se alegrar do que nossa estrutura inferior, ou ao menos, simplória
constituição física, nos permite. O exame da mão de um Sapo, se posso usar
tal expressão, explica a maior suscetibilidade deste ao amor e à vida social em
geral. Com efeito, gregários e afetuosos como são os Ana, muito mais o são os
Sapos. Em resumo, estas duas escolas filosóficas tencionaram-se uma contra a
outra; uma afirmava que o An era o tipo aperfeiçoado do Sapo; enquanto a
outra sustentava que o Sapo era um desenvolvimento mais elevado do An. A
opinião dos moralistas divergia da dos naturalistas, mas a grande maioria deles
estava alinhada com a escola que dava preferência ao Sapo. Afirmavam, muito
plausivelmente, que em conduta moral (ou seja, a aderência às regras melhor
adaptadas à saúde e bem-estar do indivíduo e da comunidade), não cabia
dúvida em quanto à vasta superioridade do Sapo. A história inteira daquela
57

época punha de manifesto a imoralidade geral da raça humana, o absoluto


desprezo que, mesmo aqueles mais famosos ou renomados entre eles mesmos,
demonstravam pelas leis aceitas como essenciais para a felicidade e bem-estar
geral deles mesmos. Em troca, nem o crítico mais severo da raça batráquia foi
capaz de descobrir nas maneiras desta, o mais ligeiro desvio da lei moral
tacitamente aceita por eles mesmos. E qual, depois de tudo, pode ser a
vantagem da civilização se o objetivo que esta persegue não é a superioridade
em conduta moral; sendo tal a pedra de toque pelo qual se há de julgar o
progresso da mesma?”
“Em tempo, os partidários desta teoria supunham que, em algum
período remoto, a raça batráquia havia sido o desenvolvimento melhorado da
Humana; mas que, por causas impossíveis de conjeturar de forma racional,
não conseguiram conservar sua posição original na escala da natureza;
enquanto que os Ana, apesar de sua organização inferior, tinham, menos por
suas virtudes que vícios, tais como ferocidade e astúcia, gradualmente
adquiriram ascendência; muito como entre na raça humana em si mesma
tribos totalmente bárbaras, por superioridade em similares vícios,
completamente destruíram ou reduziram à insignificância tribos originalmente
de maiores dotes intelectuais e culturais. Desafortunadamente, tais disputas
mesclaram-se com as questões religiosas daquela época e, como a sociedade
estava até então administrada por um governo dos Koom-Posh, que, sendo o
governo dos mais ignorantes, eram com certeza da classe dos mais inflamáveis
-- a questão começou a ser discutida pela população, ao invés de somente
pelos filósofos. Os líderes políticos perceberam então que a disputa dos Sapos,
dessa forma tomada pela população, podia converter-se em um instrumento
para satisfazer suas ambições. E, por não menos de mil anos, guerras e
massacres prevaleceram e, durante este período, filósofos de ambos os lados
foram assassinados, e o governo dos Koom-Posh em si foi felizmente levado a
um fim pela ascendência de uma família que claramente estabeleceu sua
descendência do Girino aborígene, e forneceu legisladores despóticos às várias
nações dos Ana. Tais déspotas desapareceram finalmente, ao menos de nossas
comunidades, assim que a descoberta de Vril guiou-nos às instituições
pacíficas sob as quais têm prosperado todas as raças dos Vril-ya”.
“E agora, já não mais existem discutidores ou filósofos que reacendam a
disputa? Ou é que todos eles aceitam que a origem de vossa raça provenha do
Girino?”
“Não, tais disputas” – contestou Zee, com um desdenhoso sorriso –
“pertencem ao Pah-bodh das eras negras, e agora servem somente para a
diversão dos infantes. Quando conhecemos os elementos de que estão
compostos nossos corpos, elementos comuns ao mais humilde dos vegetais,
58

pode isto significar que o Onisciente tenha combinado tais elementos em uma
forma, de uma maneira mais que em outra, a fim de criar aquele ao qual Ele
tenha colocado a capacidade para receber a idéia Dele Mesmo, junto com
todas as diversas grandiosidades do intelecto a que tal idéia dá origem? O An
começou a viver como An, em realidade, ao receber o dom de tal capacidade e,
com ela, a faculdade de confirmar que, conquanto muitas gerações
transcorram para que sua raça possa crescer em sabedoria, nunca poderá
combinar os elementos, a seu dispor, para obter a forma de um Girino.”
“Dizes muito bem, Zee” – disse Aph-Lin – “e é suficiente para nós,
mortais de vida curta, sentir a razoável certeza que, se a origem do An fora de
um Girino ou não, e ele não é mais provável que volte a ser um Girino
novamente, tanto quanto as instituições dos Vril-ya são improváveis que
recaiam no certeiro lodaçal de opressão e luta de um Koom-Posh.”

CAPÍTULO XVII

Os Vril-ya, estando excluídos de toda contemplação dos corpos celestes, e


tendo nenhuma outra diferença entre noite e dia, aparte da que eles
estabeleciam como convenientes para si próprios ---- não seguiam,
naturalmente, o mesmo processo que nós para a divisão de seu tempo; ainda
assim, com a ajuda de meu relógio, que afortunadamente conservava comigo,
foi-me fácil marcar seu tempo com grande precisão. Deixo para uma obra
futura escrever sobre a ciência e a literatura dos Vril-Ya, isso se eu viver o
suficiente para completá-la, bem como todos os detalhes sobre a maneira que
eles chegaram à sua marcação de tempo: me contentarei de fato em dizer que
no que concerne a duração, o ano deles difere muito pouco do nosso, porém,
as divisões do ano de nenhuma maneira são as mesmas. Seu dia (incluindo o
que chamamos noite), consiste de vinte horas do nosso, ao invés de nossas
vinte e quatro, e, é claro, seu ano compreende o número adicional de dias
correspondentes. Eles dividem as vinte horas de seu dia da seguinte maneira:
oito horas, chamadas “horas de silêncio”, para o repouso; oito horas,
chamadas “horas ativas”, para as ocupações e atividades da vida; e quatro
horas, chamadas “tempo fácil” (com a qual posso dizer que encerram o dia),
destinadas a festividades, esportes, recreações, conversas familiares; de acordo
com os muito variados gostos e inclinações de cada um.* Porém, em realidade,
não se conhecia noite ao ar livre. Eles mantêm em todas horas, tanto nas ruas
59

quanto nos campos de alderedores, até o limite de seus territórios, a mesma


intensidade de luz.

*nota (autor): por bem da conveniência, adoto as palavras horas,


dias, anos, etc., em qualquer referência geral às subdivisões de
tempo entre os Vril-ya, tais termos, contudo, correspondendo
muito vagamente a tais subdivisões.

Apenas, dentro de casa, amortizam a luz ao nível de um suave crepúsculo


durante as horas de silêncio. Possuem grande horror à escuridão plena e suas
luzes nunca se extinguem por completo. Em ocasião de festividades, eles
prosseguem com intensidade de luz plena, mas igualmente conservam o
registro da distinção entre dia e noite, por meio de dispositivos mecânicos que
servem ao mesmo propósito de nossos relógios. Os Ana são deveras amantes
de música, e é pela música que seus cronômetros avisam as principais divisões
de tempo. No início de cada hora, durante o dia, os sons provenientes de todos
os relógios de todas as repartições de seus prédios públicos, mesclados,
conforme acontecia, com os das casas e vilarejos espalhadas pelos campos
alderedores, fora da cidade, tinha um efeito singularmente agradável, apesar
de estranhamente solene. Porém, durante as Horas de Silêncio, tais sons eram
muito suavizados, de maneira que somente fossem debilmente audíveis para
um ouvido atento.
Não possuem mudança de estações; e, ao menos no território da tribo em que
me alojava, a atmosfera pareceu-me muito uniforme e temperada, semelhante
a de um verão italiano; e mais úmida que seca; ao entardecer era
ordinariamente muito calmo, porém, às vezes, invadidas por fortes rajadas de
vento vindas das rochas que constituíam as bordas de seus domínios. Há que
se dizer, o tempo para eles é igual para semear ou colher, como nas Ilhas
Douradas dos antigos poetas. Ao mesmo tempo vê-se a jovem vegetação em
verdejar ou florescer, e as mais antigas em espiga ou fruto. Toda planta
carregada, contudo, após produzir seus frutos, perde ou modifica a coloração
de suas folhas. Porém, aquilo que mais me interessou na contagem de suas
divisões de tempo foi a verificação da média de duração da vida entre eles.
Em minuciosa investigação, encontrei que esta muito consideravelmente
excedia o período médio para nós da superfície da terra. O que setenta anos
são para nós, cem anos são para eles. Tampouco é esta a única vantagem que
eles possuem sobre nós em longevidade, pelo que poucos dentre nós atingem a
idade de setenta anos, assim, ao contrário, poucos dentre eles morrem antes da
idade de cem anos; e gozam de um certo grau geral de saúde e vigor que torna
a vida em si mesma uma benção mesmo para os mais longevos. Várias causas
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contribuem para tal resultado: a abstinência de qualquer bebida alcoólica;


moderação na alimentação; talvez, mais especialmente, uma serenidade de
mente imperturbada por ansiosas ocupações ou ávidas paixões. Não são eles
atormentados por nossa avareza ou ambição; parecem perfeitamente
indiferentes mesmo ao desejo ou à fama; são capazes de grande afeição, mas
seu amor mostra-se em si mesmo em uma carinhosa e alegre afabilidade,
enquanto sua felicidade raramente, para tanto, tende a ser, razão de infortúnio.
As Gy-ei tem a certeza de apenas casar-se onde ela por escolha própria
encontra seu escolhido, e aqui, não menos que acima da terra, é da fêmea que
depende a felicidade do lar; assim, a Gy, tendo escolhido o par que ela prefere
a todos os outros, é tolerante com suas faltas atende seus humores, e faz o
melhor para assegurar seu compromisso.
A morte de um ente querido é, com certeza, assim como para conosco, causa
de tristeza. Porém, tal é muito raro entre eles de acontecer, antes daquela idade
em que a morte se torna uma libertação. Por outro lado o cônjuge e os
familiares do morto se consolam mais facilmente que nós, por terem a
convicção de reunirem-se com o ausente em outra, ainda mais feliz existência,
algo que entre nós não é corrente.
Dessa forma, todas estas causas estão de acordo com sua sã e gozosa
longevidade, embora, indubitavelmente, muito se deva à sua organização
hereditária. De acordo com seus arquivos, contudo, naqueles remotos estágios
de sua sociedade quando viviam em comunidades semelhantes às nossas,
tumultuada por feroz competição, suas vidas eram consideravelmente mais
curtas e suas enfermidades mais numerosas e mais graves. Eles mesmos
asseguram que a duração da vida, ademais, tem aumentado, e continua
aumentando, graças à descoberta das revigorantes e medicinais propriedades
de Vril, aplicado para fins medicinais. Possuem poucos práticos regulares e
profissionais de medicina, e mesmo tais são principalmente Gy-ei, as quais,
especialmente se viúvas ou sem filhos, encontram grande prazer na arte da
cura, e mesmo comprometem-se a fazer operações cirúrgicas naqueles casos
requeridos por acidente ou, mais raramente, enfermidade.
Os Ana tem suas distrações e divertimentos, e, durante o “Tempo Fácil” de
seu dia, costumam reunirem-se em grande número a fim de praticarem aqueles
esportes aéreos que anteriormente descrevi. Possuem também salões públicos
para música, e mesmo teatros, nos quais representam obras, que a mim
pareceram-se de alguma maneira com as peças chinesas – dramas que
remontam a tempos distantes por seus acontecimentos e personagens, nas
quais toda unidade cenográfica clássica está extravagantemente violada, e o
herói, é e uma cena uma criança, na seguinte um ancião, e assim por diante.
Estas obras são de composição muito antiga. Aparentaram-me, no conjunto,
61

serem extremamente monótonas, ainda que entremeadas de surpreendentes


efeitos mecânicos, de um tipo de humor de pantomima, e passagens isoladas
de grande vigor e força expressas em linguagem altamente poética, mas de
certa forma sobrecarregada de metáfora de linguagem figurativa. Em resumo,
as obras teatrais parecem-me algo como as obras de Shakespeare deveram
parecer a um inglês do reinado de Carlos II.
A platéia, as quais as Gi-ey constituíam a maior parte, aparentava divertir-se
grandemente com a representação de tais dramas, o que, para uma tão
comedida e majestosa raça de fêmeas, surpreendeu-me, até que reparei que
todos os atores não haviam alcançado a idade da adolescência, e conjeturei
que, realmente, as mães e irmãs tinham comparecido à representação para
agradar seus filhos e irmãos.
Ao que parecia, nenhuma peça nova, de fato,tais estas, nenhum trabalho
imaginativo suficientemente importante para subsistir em seus dias atuais,
parece ter sido criado por várias gerações. Na realidade, ainda que não
houvesse carência de novas publicações, e eles tinham mesmo que se poderia
chamar de jornais, tais eram majoritariamente devotados às ciências
mecânicas, notícias de novas invenções, anúncios a respeito de diversos
detalhes de negócios – em resumo, a questões práticas. Às vezes uma criança
escreve um pequeno relato de aventuras, ou uma jovem Gy dá vazão a suas
esperanças amorosas ou temores em um poema; mas tais efusões eram de
muito pouca valia, e eram raramente lidos, com exceção de crianças ou Gy-ei
solteiras. Os trabalhos mais interessantes de característica puramente literária
são aqueles de viagens e explorações em outras regiões deste mundo
subterrâneo, os quais são geralmente escritos por jovens imigrantes, e são
lidos com grande interesse por parentes e amigos que haviam deixado para
trás.
Não pude conter-me em expressar a Aph-Lin minha surpresa que uma
comunidade em que a ciência mecânica havia feito um progresso tão
maravilhoso, e em que a capacidade intelectual tinha se posto manifesta ao
realizar de forma tão completa a obra de dar bem estar ao povo, algo que os
filósofos políticos sobre a Terra, após eras de contenda, de forma muito geral
concordam em considerar ideais inatingíveis, podia, no entanto, estar
totalmente sem nenhuma literatura contemporânea recente, apesar da
excelência à qual a cultura tinha dado ao idioma, o qual era, por sua vez, rico e
simples, vigoroso e musical.
A isto meu anfitrião replicou-me: “Não compreende você que uma literatura,
tal como a qual se refere, seria inteiramente incompatível com a perfeição do
bem estar político e social que você nos honra em crer que temos alcançado?
Nós, finalmente, após séculos de luta, temos nos estabelecidos em uma forma
62

de governo ao qual estamos satisfeitos, e em que, desde que não permitimos


diferenças em posição, nem rendemos aos administradores honras que os
distingam dos demais, não há estímulo à ambição pessoal. Ninguém leria
obras defensoras de teorias que implicassem mudanças políticas e sociais, e
pela mesma razão ninguém se as escreve. Se alguma vez aparece um An que
não esta satisfeito com nosso tranqüilo modo de viver, ele não o ataca,
simplesmente vai embora. Conseqüentemente, toda esta literatura (que ao
julgar pelos livros antigos em nossa biblioteca, era muito abundante)
relacionadas com teorias especulativas sobre a sociedade, tornou-se
completamente extinta. Por outro lado, antigamente houve uma vasta quantia
escrita a respeito dos atributos e essência do Supremo Bem, e argumentos a
favor e contra do Estado Futuro, mas agora todos nós admitimos dois fatos
que são: há um Ser Divino, e há um Estado Futuro. Ainda, todos nós
concordamos de forma equânime que se escrevêssemos até gastar a carne de
nossos dedos até o osso, não poderíamos jogar qualquer luz sobre a natureza e
condições do Estado Futuro; muito menos clarear nossa compreensão dos
atributos e essência de tal Ser Divino. De maneira que esta outra porção de
nossa literatura tornou-se também felizmente extinta para nossa raça. E isto
para os tempos em que muito era escrito sobre questões que pouco ou quase
nada se poderia dizer de forma definitiva, e que as pessoas viviam em um
estado de constante controvérsia e dissensão. Ainda, também, grande parte de
nossa antiga literatura consiste de registros históricos de guerras e revoluções
durante o período em que os Ana viviam e grandes e turbulentas sociedades,
cada qual buscando engrandecer-se às custas do próximo. Você percebe nosso
sereno modo de vida atualmente; assim tem sido por eras. Não temos
acontecimentos para registrar. O que poderia mais ser dito de nós além do que:
‘nasceram, foram felizes, morreram?’
Agora, com respeito àquela literatura mais imaginativa tal como a que
chamamos ‘Glaubsila’ ou coloquialmente ‘Glaubs’ e que você chama de
poesia, a razão de sua decadência entre nós é mais que óbvia.
Achamos, nos referindo às grandes obras-primas neste departamento da
literatura, que todos nós ainda lemos com prazer, mas que nenhum de nós
toleraria reproduções, que estes constituem-se do retrato de paixões que a
muito tempo não experimentamos – ambição, vingança, amor superficial e
passageiro, ânsia de renome guerreiro, e outras semelhantes. Os antigos poetas
viviam em atmosferas impregnadas com tais paixões, de maneira que sentiam
de forma vívida o que expressavam brilhantemente. Ninguém pode expressar
tais paixões agora, pelo fato de que ninguém é capaz de senti-las; e muito
menos encontraria simpatia de seus leitores, se o fizesse. Por outro lado, a
velha poesia possui seu elemento central na dissecação dos complexos
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mistérios do caráter humano, que arrastam a vícios anormais e à criminalidade,


ou conduzem a evidentes e extraordinárias virtudes. Porém, nossa sociedade,
tendo se livrado de inclinações a qualquer vício ou crime proeminente, houve
necessariamente por atingir uma moral tão uniforme, que da mesma maneira
não existem virtudes destacadas. Sem seu ancestral alimento de violentas
paixões, grandes crimes, virtudes heróicas, a poesia está, por conseguinte,
senão de fato reservada à miséria, reduzida a uma escassa dieta. Há ainda a
poesia descritiva – descrição de rochas, àrvores, águas e vida doméstica
comum; e nossas jovens Gy-ei entretêm-se muito deste insípido tipo de
composição em seus versos de amor.”
“Tal poesia”, repliquei, “há de ser encantadora. Entre nós temos críticos que a
consideram muito superior às que descrevem crimes, ou analisam as paixões
do homem. De qualquer forma, a poesia que você qualifica de insípida, é a
poesia que, nos dias atuais, atrae mais leitores que qualquer outra, entre as
pessoas que deixei sobre a terra.”
“Possivelmente”, disse meu interlocutor, “mas em tal caso, suponho que os
escritores esmeram-se em demasia com a linguagem que empregam; e
devotam a si mesmos à cultura e aperfeiçoamento das letras e palavras e do
ritmo tal qual uma arte?”
“Certamente”, respondi. “Todos os grandes poetas tem de fazer isso mesmo.
Ainda que o dom da poesia possa ser inato, tal dom requer empenho e cultivo
para se fazer apreciável por outras pessoas, tanto quanto um pedaço de metal
necessita para transformar-se em uma de suas maquinarias.”
“E indubitavelmente vossos poetas hão de ter algum incentivo para elaborar
tais belezas verbais?”
“Bem, diria que por instinto cantariam como os pássaros; mas para cultivar a
sonoridade em verbal e artificial beleza, necessitam de um estímulo do
exterior, e nossos poetas o encontram no amor à fama – talvez, aqui e acolá,
no desejo de fortuna, para não dizer, na necessidade de comer, outros.”
“Certamente assim é de fato”. Replicou Aph-Lin. “Mas em nossa sociedade
não damos fama a nada que o homem possa fazer no período que chamamos
“vida”. Nós logo perderíamos a igualdade que constitui a feliz essência de
nossa comunidade se selecionássemos algum indivíduo para dar-lhe destaque
em louvores. Tal proeminência poderia conferir-lhe certo poder, e do
momento que tal acontecesse, as más paixões, agora dormentes, poderiam
despertar; outros homens ambicionariam a tais louvores, o que poderia
suscitar inveja, e com a inveja ódio, e com o ódio calúnia e perseguições.
Nossa história conta que a maioria dos poetas e a maior parte dos escritores os
quais, em tempos antigos, foram agraciados com os maiores louvores, foram
da mesma maneira atacados pelas maiores críticas; em geral foram muito
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desgraçados, e parte por causa do ciúme dos seus rivais, em parte devido à
constituição mental enfermiça, conseqüência da sensibilidade a elogios e às
críticas. E, quanto ao estímulo da necessidade, em primeiro lugar, nenhum
homem, em nossa comunidade, conhece a provação da pobreza; e, em
segundo lugar, se fosse pobre, qualquer outra ocupação lhe resultaria mais
lucrativa que a de escrever.
Nossas bibliotecas públicas contêm todos os livros do passado, que o tempo
têm preservado; tais livros, pelas razões antes expressas, são infinitamente
melhores que qualquer um poderia escrever atualmente, e estão disponíveis
para serem lidos por todos sem qualquer custo. Não somos assim tão tolos
para pagar para ler livros de classe inferior, quando podemos ler os melhores
sem custo.”
“Entre nós”, disse eu, “a novidade tem atrativos; tanto que um livro novo,
ainda que ruim, é lido, enquanto que um livro velho, apesar de bom, é deixado
de lado”.
“Novidade, para estados bárbaros da sociedade, em constante luta desesperada
por algo melhor, terá, sem dúvida, seus atrativos, algo que nós mesmos
renegamos, por não percebermos valor algum nessas novidades; mas, afinal,
como foi observado por um de nossos grandes autores a quatro mil anos atrás:
aquele que estuda livros antigos sempre neles encontrará algo de novo; e quem
lê livros novos sempre encontrará algo velho neles. Mas voltando à questão
que suscitastes, não existe, entre nós estímulo a trabalhos assíduos, seja em
busca de fama ou em razão da necessidade. Então, aqueles com o
temperamento poético, e que, sem dúvida, expressam-se por uma forma
similar ao canto, segundo você diz, como cantam os pássaros, nesta atividade,
se por falta de criações elaboradas, não conquistam a audiência e, assim, por
falta de audiência, sua poesia desvanece-se, em meio às ocupações ordinárias
da vida”.
“Mas como é que estes desencorajamentos ao cultivo da literatura não opera
contra a ciência?”
“Sua pergunta me surpreende. A motivação à ciência é o amor à verdade,
aparte de todas as considerações de fama, ademais, o cultivo da ciência entre
nós se dedica quase inteiramente a fins práticos, essenciais à nossa
manutenção social e aos confortos de nossa vida ordinária. Fama alguma é
solicitada pelo inventor, e nenhuma, de fato, se lhe é dada; ele desfruta de uma
ocupação congênere com suas inclinações, e não necessita do desgaste das
paixões. O homem necessita ter exercício para sua mente tanto quanto para o
corpo; e exercício contínuo, ao invés de violento, é o melhor para ambos.
Nossos mais geniais cultivadores da ciência são, em regra geral, os mais
longevos e os mais livres de doenças. Também a pintura é uma distração para
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muitos, mas não é a mesma arte que era em tempos passados, quando os
grandes pintores, de nossas várias comunidades, competiam uns com os outros
pelo prêmio de uma coroa de ouro, o qual dava a eles um nível social igual ao
dos reis, sob cujo cetro viviam. Seguramente haverá você notado, em nosso
departamento arqueológico, quão superiores em termos de arte eram os
quadros de vários milhares de anos atrás. Possivelmente, devido a que a
música está, em realidade, mais aliada à ciência que a poesia é que, dentre
todas as belas artes, a música, é aquela que mais floresce entre nós. Ainda,
mesmo na música, a ausência de estímulos de louvores ou fama tem servido
para prevenir qualquer destacada superioridade de um compositor sobre outro;
e é realmente excelente nossa música coral, com o auxílio de nossos vastos
instrumentos mecânicos, nos quais fazemos grande utilização da ação da água,
ao invés de apresentações solo. E, por algumas épocas, mal temos tido
qualquer compositor original. Nossas composições são muito antigas em
essência, porém temos admitido diversas variações complexas feitas por
músicos, apesar de engenhosos, inferiores.”

“E não existem, entre os Ana, comunidades que sejam animadas por tais
paixões, propensas ao crime, e que admitiram tais diferenças em condição, em
intelecto e em moralidade, que o estado de sua tribo e os Vril-ya em geral
houveram por transcender em seu progresso até a perfeição? E, se assim fosse,
entre tais comunidades, talvez, a poesia e suas artes irmãs, ainda continuassem
a serem honradas e aperfeiçoadas?”
“Existem tais comunidades em regiões remotas, mas nós não as admitimos
dentro dos limites de comunidades civilizadas; nós até raramente os
concedemos o nome de Ana, mas de maneira alguma o de Vril-ya. São
bárbaros, vivendo principalmente naquele estado inferior de ser, Koom-Posh,
o qual tende necessariamente à horrível dissolução em Glek-Nas. Passam sua
miserável existência em perpétuo conflito e em constante mudança. Quando
não lutam com seus vizinhos, lutam entre eles mesmos. Estão divididos em
seções, que se insultam, roubam, e às vezes, assassinam-se uns aos outros, e
isto nos mais ínfimos pontos de disputa, que poderiam ser ininteligíveis a nós
se não lêssemos a história, e víssemos que nós também passamos pelo mesmo
estado primitivo de ignorância e barbárie. Qualquer ninharia é suficiente para
colocá-los em contenda. Pretendem serem todos em igualdade e, quanto mais
se esforçam para tal, para eliminar todas as antigas distinções e começar do
zero, mais ofuscantes e intoleráveis se tornam as disparidades, pela razão de
não lhes restar nenhum dos afetos ou vínculos hereditários que façam mais
suportável a diferença de condição entre os muitos que nada possuem e os
poucos que tem muito. Naturalmente os muitos odeiam os poucos, mas sem os
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poucos não poderiam viver. Os muitos sempre atacam aos poucos e, algumas
vezes, os exterminam; mas, então, logo em seguida, novos poucos surgem dos
muitos, e são mais difíceis de abater que os antigos. Pois onde em sociedades
numerosas, em que a competição é a febre dominante, deve haver sempre
muitos perdedores e poucos ganhadores. Em resumo, as pessoas às quais me
refiro são selvagens, tateando às cegas seu caminho na escuridão em direção a
algum vislumbre de luz, os quais mereceriam nossa comiseração por suas
fraquezas se, como todos os selvagens, não provocassem sua própria
destruição por sua arrogância e crueldade.
Conseguiria você imaginar que tais criaturas, armadas apenas com as
miseráveis armas que você viu em nosso museu de antiguidades, desajeitados
tubos de aço carregados com sal grosso, tiveram mais de uma vez ameaçado
de destruir uma tribo dos Vril-ya, a qual estabelecia-se próximo a eles, porque
diziam possuir uma população de trinta milhões de indivíduos – e a dita tribo
teria algo em torno de cinqüenta mil – caso os últimos não aceitassem suas
idéias de Soc-Sec (métodos financeiros) em determinados princípios de
comércio, os quais tem a petulância de chamarem ‘Lei de civilização’?”
“Mas trinta milhões em população são uma formidável proporção contra
cinqüenta mil! Exclamei”.
Meu anfitrião fixou-me com espanto o olhar. “Forasteiro”, disse ele, você não
deve ter-me ouvido dizer que a tribo ameaçada pertence aos Vril-ya, e só
espera tais selvagens declararem guerra, para encarregar uma meia dúzia de
crianças para varrer do mapa toda sua população.”
Perante tais palavras senti um calafrio de horror, reconhecendo-me muito mais
em afinidade com os ‘selvagens’, que com os Vril-Ya, enquanto relembrava-
me de tudo que tinha dito em exaltação às gloriosas Instituições Americanas,
às quais Aph-Lin, estigmatizou como Koom-posh. Recuperando meu
autocontrole, perguntei se havia meios pelos quais poderia, de maneira segura,
visitar tão temerário e longínquo povo.
“Você pode viajar com segurança, por meio da agência de Vril, seja pela terra
ou pelo ar, através de toda a extensão de comunidades com as quais somos
aliados ou semelhantes, porém não posso garantir sua segurança em nações
bárbaras governadas por leis diferentes das nossas; nações, de fato, tão
ignorantes, que há entre eles grande quantidade que na verdade vive do roubo
dentre eles mesmos e onde, durante as ‘Horas de Silêncio’, uma pessoa não
pode sequer deixar aberta a porta de sua casa.”
Nisto, nossa conversação foi interrompida pela chegada de Taë, que veio para
nos dizer que ele, que havia sido encarregado de encontrar e destruir o enorme
réptil que eu havia visto em minha primeira aparição e que tinha estado à
espreita dele sempre desde a visita ultima que me fizera, e que, tendo
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começado a suspeitar que meus olhos tinham me enganado, ou que besta


tinha feito seu caminho por entre as cavidades dentre as rochas, para as
selvagens regiões habitadas por sua raça --, quando este mostrou evidências de
sua localização por uma grande devastação da vegetação às margens de um
dos lagos. “E”, disse Taë, “tenho a certeza de que dentro do lago ele está agora
se escondendo. Então”,(dirigindo-se a mim) “pensei que se divertiria vendo a
maneira como destruímos visitantes tão desagradáveis.” Enquanto olhava a
face da jovem criança, e retornava à minha mente o gigantesco tamanho da
criatura que ele se propunha a exterminar, senti-me com medo por ele, e talvez
até por mim mesmo, se o acompanhasse em tal caçada. Porém, dada minha
curiosidade em presenciar os efeitos destrutivos do exultado Vril, e perante
minha relutância a me encolher frente ao olhar de um infante, por revelar
minhas apreensões de segurança pessoal, prevaleceu-me meu primeiro
impulso. Em acordo, agradeci a Taë por sua cortês consideração em convidar-
me, e professei-lhe minha disposição em acompanhar-lhe em tão divertida
expedição.”

CAPÍTULO XVIII

Ao sair da cidade, Taë e eu, seguindo para a esquerda da avenida principal que
se estendia, adentrando-nos nos campos, a estranha e solene beleza da
paisagem, iluminada por incontáveis lâmpadas, até as raias do horizonte,
fascinaram meus olhos, e fizeram com que, por algum tempo, tornasse-me um
ouvinte desatento às falas de meu companheiro.
Ao longo de nosso trajeto, vários trabalhos de agricultura eram
desempenhados por maquinarias, por meios que eram inteiramente novos para
mim, e em grande parte muito graciosos. Pois entre aquelas pessoas a arte era
cultivada por bem da utilidade, exibindo-se a si mesma em adornar ou refinar
as formas dos objetos úteis. Gemas e metais preciosos são tão abundantes
entre eles, que são prodigamente utilizados em coisas devotadas às atividades
mais triviais; e o seu amor por coisas úteis leva-os a embelezar suas
ferramentas, avivando sua imaginação em direções desconhecidas para s
próprios.
Em qualquer serviço, seja dentro ou fora das casas, utilizam em larga escala
seres autômatos, que são tão engenhosos e tão suscetíveis as operações de Vril,
que eles de fato parecem dotados com razão. Eu mal podia distinguir as
figuras que contemplava, aparentemente guiando ou supervisionando a rápida
movimentação de vasta maquinaria, formas humanas dotadas de pensamento.
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Até certo grau, enquanto prosseguíamos a avançar na jornada, minha atenção


foi despertada pelos vivos e agudos comentários de meu companheiro. A
inteligência das crianças dentre esta raça é maravilhosamente precoce, talvez
pelo hábito de serem a eles confiados, em idade tão prematura, os afazeres e
responsabilidades daqueles de meia idade. De fato, ao conversar com Taë,
senti como se falando com algum homem observante e superior de minha
própria idade. Perguntei-lhe se ele poderia formar uma estimativa do número
de comunidades nas quais a raça dos Vril-ya era subdividida.
“Não exatamente”, respondeu, “por que estas se multiplicam, é claro,
anualmente, à medida que o excedente de cada comunidade emigra. Porém eu
ouvi meu pai dizer que, conforme o último relatório, havia um milhão e meio
de comunidades falando nosso idioma, adotando nossas instituições e formas
de vida e governo; mas, acredito eu, com algumas diferenças entre elas, sobre
as quais acho melhor você perguntar a Zee. Ela conhece mais que a maioria
dos Ana conhece. Um An importa-se menos com coisas que não o dizem
respeito que uma Gy; as Gy-ei são criaturas inquisitivas”.
“Por acaso cada comunidade tece restrições quanto ao número de famílias ou
ao total da população como vocês o fazem?”
“Não, algumas tem populações bem reduzidas, algumas são maiores;
dependendo da extensão de terra que se apropriam, ou do grau de excelência a
que tem alcançado na utilização de sua maquinaria. Cada comunidade fixa
seus próprios limites, conforme as circunstâncias; tomando sempre o cuidado
de que nunca haja pobres em decorrência do aumento da população sobre as
capacidades produtivas do domínio; e que nenhum estado há de ser tão grande
conquanto não se assemelhe a uma família bem ordenada. Imagino que
nenhuma comunidade Vril exceda a trinta mil lares. Porém, como regra geral,
quanto menor uma comunidade, com tal que disponha de mão de obra
necessária para produzir de forma plena no território que ocupa, conquanto
mais rico seja cada membro da mesma e, quanto maior seja a soma
contribuída ao Tesouro Público, -- sobretudo, mais feliz e mais tranqüila será a
totalidade do corpo político, e mais aperfeiçoada a produção de sua indústria.
O estado que todas as tribos dos Vril-ya concordam em ser o mais avançado
em civilização, e que conseguiu trazer a força de Vril a seu mais elevado
domínio, é, porventura, o menor. Limita-se a si mesmo em quatro mil famílias,
mas cada palmo de suas terras é cultivado à máxima perfeição. Sua
maquinaria sobressai-se àquelas de todas as outras tribos, e não há produtos de
suas indústrias, em qualquer departamento, que não tenha procura, a preços
extraordinários, por cada comunidade de nossa raça. Todas as tribos têm por
este estado seu modelo, levando em conta que devêssemos buscar atingir o
mais elevado estado de civilização permitido aos mortais se pudéssemos unir
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o mais alto grau de felicidade com o mais alto grau de realização intelectual; e
fica claro que, quanto menos numerosa fosse a sociedade, menos complexa
esta seria. A nossa é muito numerosa para tanto.”
Esta resposta me deu o que pensar. Veio a minha memória o pequeno estado
de Atenas, o qual, com apenas vinte mil cidadãos livres, é considerado, até a
atualidade, pelas nações mais poderosas, como o guia supremo e modelo em
todos os departamentos do intelecto. Mas, em seguida, Atenas permitiu feroz
rivalidade e mudanças constantes e, decididamente, não foi feliz. Despertando
de minhas divagações, a que tais divagações me levaram, trouxe novamente à
tona de nossa conversação o assunto concernente à emigração.

“Mas”, disse, “supondo que quando, a cada ano, um certo número dentre vós
decidam por abandonar seus lares e fundar uma nova comunidade em outra
região, estes devem ser necessariamente, presumo eu, poucos, e meramente
suficientes, mesmo com a ajuda de máquinas que venham a levar consigo,
para limpar o terreno, construir cidades e constituir um estado civilizado com
os luxos e confortos a que estavam previamente acostumados”.

“Engano seu. Todas as tribos Vril-Ya estão em constante comunicação umas


com as outras e a cada ano entram em acordo quanto ao número que, de cada
comunidade, unem-se aos emigrantes de outra, a fim de criar um estado de
capacidade suficiente; e o local para a emigração é aprovado com ao menos
um ano de antecedência, e então pioneiros são enviados de cada estado para
nivelar as rochas, para represar as águas, construir casas; de forma que,
quando os emigrantes, enfim, tomam caminho, encontram uma cidade já
construída e o campo ao seu redor parcialmente preparado. Nossa dura vida
enquanto crianças, faz com que aceitemos com toda disposição a oportunidade
de viajar e passar por aventuras. Eu mesmo penso em emigrar quando com
idade certa”.

“Elegem os emigrantes sempre terrenos desabitados e improdutivos?”


Perguntei.

“Até agora quase sempre, porque é nossa regra nunca destruir exceto quando
necessário para nossa sobrevivência. Naturalmente, não podemos estabelecer-
nos em terras já ocupadas pelos Vril-Ya; e se acaso nos apropriássemos de
terras já cultivadas por outras raças dos Ana, teríamos que destruir
completamente aos habitantes que ali houvesse. As vezes, como de fato
acontece, tomamos regiões inabitadas, e lá encontramos uma problemática e
briguenta raça dos Ana, especialmente quando sob a administração de Koom-
70

Posh ou Glek-Nas, que se ressente com nossa proximidade e compra briga


conosco. Então, é claro, sendo uma ameaça ao nosso bem-estar, a destruímos:
não há maneira de se fazer acordo com uma raça tão idiota, que muda
constantemente a forma de governo que a representa. O regime Koom-Posh”,
disse a criança, enfaticamente, “é suficientemente ruim, ainda que tenha
alguma inteligência, apesar de na parte de trás da cabeça, e não lhes falta
coração; porém, quando em Glek-Nas, o cérebro e o coração das criaturas não
mais existe, e convertem-se em tão somente garras mandíbulas e ventre”.

“Te expressas com muita vivacidade. Permita-me dizer que eu mesmo sou um
cidadão de um Koom-Posh; do que muito me orgulho!”

“Já não me maravilha”, redargüiu Taë, “de ver aqui, tão distante de seu país.
Qual era a condição de sua comunidade nativa antes de se tornar um Koom-
Posh?”

“Era um povoado de imigrantes -- similares àqueles que sua tribo envia -- mas,
diferentemente de seus imigrantes, ainda era dependente do estado do qual
provinha. Mais tarde libertaram-se do jugo e, coroados de glória eterna, foram
desde então um Koom-Posh”.

“Glória eterna! Quanto tempo tem durado este Koom-Posh?”

“Uns cem anos”.

“A duração de vida de um An -- uma comunidade de fato jovem. Em muito


menos de outros 10 anos seu Koom-Posh será um Glek-Nas”.

“Não conte com isso, pois os mais antigos estados do mundo do qual venho
tem tanta fé na solidez de nosso regime, que vão, gradualmente, adaptando
suas instituições ás nossas; e os políticos mais sérios de tais estados dizem que,
gostem ou não, a tendência inevitável dos velhos regimes é em direção à
Koom-Posh-ia* (nota rodapé: adaptação lingüística que assemelhe-se ao
sufixo ia, de democracia, etc.)

“Velhos regimes?”

“Sim, velhos regimes”.

“Com população muito reduzida em proporção à área de terra produtiva?”


71

“Ao contrário, com população muito grande em proporção à sua área”.

“Agora percebo. Velhos regimes, de fato! Tanto a ponto de tornarem-se


decadentes se não fizerem emigrar a população excedente, como nós fazemos
-- regimes muito velhos, você diz. Muito, muito velhos! Diga-me, Tish, acaso
lhe pareceria sensato para homens de idade avançada tratarem de caminhar
com as mãos, e com os pés ao alto, como fazem as crianças muito pequenas?
E, se lhes perguntassem, porque fazem tais travessuras, não seria para você
hilário se lhe respondessem que esperam voltar à infância imitando aos
infantes? A história antiga é abundante com casos de tal natureza fazem
muitos milhares de anos; em cada caso, o estado que julgou ser um Koom-
Posh, logo caiu em Glek-Nas. Então, em horror a si mesmo, implorou por um
senhor, como um velho em sua decrepitude chora por uma enfermeira. Após
uma sucessão de senhores e enfermeiras, mais ou menos longa, este mesmo
estado desapareceu na história. Um estado na tentativa de estabelecer-se em
Koom-posh, parece-se com um velho que derruba a casa em que tenha vivido;
fica tão exausto, todo seu vigor perdido no esforço de pô-la abaixo, que, após,
tudo que pode fazer no sentido de reconstruí-la é fazer uma cabana, em que
ele e seus sucessores reclamam: como sopra o vento! Como tremem as
paredes!”

“Meu caro Taë, perdôo suas palavras com tão pouca iluminada parcialidade, a
qual qualquer criança em idade escolar educada em um Koom-Posh poderia
facilmente rebater, ainda que talvez não fosse tão precocemente instruído em
história antiga quanto você demonstra ser.”

“Eu aprendi. E não foi um pouco somente. Mas poderia uma tal criança,
educada em seu Koom-posh, pedir a sua bisavó ou seu bisavô para equilibrar-
se sobre as mãos, com os pés para cima? E porventura o pobre idoso hesitasse,
dizer, ‘ei, temem o quê? Vejam como eu faço!’”

“Taë, desdenho argumentar com uma criança de sua idade. Repito, sou
tolerante com você, pois compreendo que lhe falta a cultura, que só um
Koom-posh pode dar.”

“Eu, por minha vez”, constestou Taë, com uma expressão de suave mas
altaneira boa educação, característica de sua raça, “compreendo que não tenha
sido educado entre os Vril-ya, mas lhe peço a condescendência de perdoar-me
72

por minha pouca considerações pelos hábitos e opiniões de um tão amável


Tish”.
Deveria eu ter feito antes a observação de que eu era freqüentemente chamado
Tish por meu anfitrião e sua família, como sendo um cortês nome de
animalzinho de estimação, de fato, metaforicamente com o sentido de pequeno
bárbaro, literalmente, sapinho; as crianças dão este nome às espécies de rãs
domésticas, que guardam em seus jardins.
Enquanto isso, tínhamos chegado às margens de um lago, e Taë então parou
para mostrar-me a devastação feita nos campos que o rodeavam. “o inimigo
certamente esconde-se dentro destas águas”, disse Taë. “Observe os cardumes
de peixes amontoados às margens. Mesmo os grandes peixes junto aos
pequenos, que são, habitualmente, suas presas e que geralmente fogem destes,
todos esquecem seus instintos na presença de um inimigo comum. Este réptil
certamente deve pertencer à classe dos Krek-a, uma classe mais devoradora
que qualquer outra. Segundo dizem, é uma das poucas espécies que restam dos
mais terríveis habitantes da terra, que existiam antes de que os Ana fossem
criados. A voracidade de um Krek é insaciável -- alimenta-se tanto de vegetais
quanto de animais; porém para as ágeis criaturas da espécie dos cervos, as
únicas que escapam de suas garras, os movimentos dos Krek-a são muito
lentos. Seu prato favorito é um An, quando pode surpreendê-lo desprevenido,
por isso, os Ana os destroem implacavelmente, quando adentram-se em seus
domínios. Ouvi dizer que, quando nossos antepassados cultivaram, em
primeira vez, estes campos, tais monstros, e outros iguais a este, eram
abundantes, e, por ainda não haver sido descoberto o Vril, muitos de nossa
raça foram devorados. Era impossível exterminá-los em sua totalidade, até
esta descoberta que constitui-se no poder e sustentáculo da civilização de
nossa raça. Porém, depois que o uso de Vril tornou-se familiar a nós, todas as
criaturas hostis a nós foram rapidamente aniquiladas. Não obstante, de quando
em quando, alguns destes enormes répteis saem nos arredores dos distritos não
explorados e selvagens, e tenho em minha memória que uma vez devoraram
uma jovem Gy, que banhava-se neste lago mesmo. Caso estivesse em terra e
armada de sua varinha, este não teria nem mesmo se atrevido a deixar-se ver;
pois como todas as criaturas selvagens, o réptil possui um maravilhoso instinto,
que o adverte da presença de qualquer um que porte a varinha Vril. A forma
que ensinam suas crias de maneira a evitar o portador da varinha Vril, ainda
que seja quando são vistos pela primeira vez, é um daqueles mistérios que
você talvez possa pedir para que Zee o explique, pois eu não o entendo.
Enquanto eu estiver aqui o monstro não irá mover-se de seu esconderijo, de
modo que, de agora eu diante devemos atraí-lo para fora.”
“Isso não será muito difícil?”
73

“De maneira alguma. Vá para lá e sente-se naquele rochedo (mais ou menos a


umas cem jardas* da margem), enquanto eu tomo uma certa distância. Em
pouco tempo o réptil irá avistar ou farejá-lo, e, percebendo não ser você um
portador de Vril, virá em sua direção para devorá-lo. Tão logo quanto esteja
fora da água, será minha presa.”

“Você esta tentando me dizer que eu tenho que ser a isca para aquele horrível
monstro, que pode me triturar com suas mandíbulas em um segundo perdoe-
me se não aceitar.”

A criança riu. “Nada tema”, disse; “apenas sente-se imóvel”.

Ao invés de obedecer tal comando, dei um salto, e estava quase a começar a


correr, quando Taë tocou-me levemente no ombro, e, com seus olhos fixos nos
meus, no mesmo instante fiquei como se estivesse cravado no solo. Toda
minha vontade abandonou-me. Submisso como estava ao gesto da criança,
segui-o ao rochedo que indicara-me e sentei-me em silêncio. A maioria dos
leitores haverão de ter visto alguma coisa dos efeitos da eletrobiologia, seja
genuínos ou falsos. Professor algum desta duvidosa arte vez alguma foi sequer
capaz de influenciar um pensamento ou movimento meu, porém eu era um
mero autômato perante a vontade desta terrível criança. Enquanto isso, ele
abriu suas asas, disparou para o alto, e pousou no meio de um matagal no topo
de uma colina a alguma distância.
Eu estava sozinho; e, voltando minha vista com uma indescritível sensação de
horror em direção ao lago, a mantive fixa em suas águas, enfeitiçado. Devem
ter-se passado dez ou quinze minutos, pois a mim pareceu-me uma eternidade,
antes que a imóvel superfície, cintilando sob a luz das lâmpadas, começou a
agitar-se em seu centro. Ao mesmo tempo, os cardumes de peixes próximos às
margens, e demonstração de seu sentido da aproximação do inimigo,
começaram a saltar, borbulhar e nadar em círculos. Pude perceber como
fugiam de um lado para o outro, alguns mesmo jogando-se para fora da água.
Um grande, negro, ondulante espinhaço vinha movendo-se ao longo das águas,
aproximando-se cada vez mais, até que a enorme cabeça do réptil emergiu --
suas mandíbulas cheias de presas, e seus olhos sombrios fixando-se
esfomeadamente no lugar onde eu encontrava-me imóvel. E, primeiro suas
patas dianteiras estavam na margem -- e seguida, seu enorme peito, cheio de
escamas por todos os lados, como uma armadura, e no centro, mostrando uma
pele enrugada, de um amarelo-esverdeado cinzento. E agora toda sua carcaça
estava sobre a terra, uns cem pés ou mais da bocarra até a cauda. Uma outra
74

passada e aqueles assustadores pés o teriam trazido até o lugar onde eu estava.
Havia apenas um instante entre mim e este horrível espectro da morte, quando
o que pareceu-me o disparo de um relâmpago cruzou o ar, repentinamente, em
um instante de tempo mais curto que aquele em que um homem pode encher
os pulmões, que envolveu a fera; e então, ao desvanecer-se o clarão, jazia ali
em minha frente uma massa enegrecida, carbonizada e fumegante; algo
gigantesco, do qual não restavam nem os detalhes, pois tudo ardia e
rapidamente convertia-se em pó e cinzas. Permaneci sentado imóvel, sem
articular palavra, gelado e com uma nova sensação de pavor. O que antes era
horror era agora pavor.
Senti a mão da criança tocar minha cabeça -- o medo sumiu -- como se o
encanto tivesse sido quebrado -- levantei-me. “Agora você vê com que
facilidade os Vril-ya destroem seus inimigos”, disse Taë, e então, movendo-se
rumo a margem do lago, contemplou os fumegantes restos do monstro e disse,
tranqüilamente, “já tinha destruído criaturas de maior tamanho. Mas nenhuma
com tanto prazer como a esta. Efetivamente é um Krek. Quantos sofrimentos
deve ter causado enquanto estava vivo.” Então, em seguida, pegou os pobres
peixes, que haviam saltado para a margem, e amorosamente recolocou-os na
água.

CAPÍTULO XIX

Enquanto retornávamos em direção à cidade, Taë levou-me por um novo


caminho, dando voltas, de maneira que me mostrasse o que, para usar um
termo familiar, chamarei de estação, lugar do qual os emigrantes ou viajantes
para outras comunidades iniciam suas jornadas. Em outra ocasião havia
manifestado meu desejo de ver os veículos que utilizavam. Estes eram de duas
classes: um para viagens por terra e outro para viagens pelo ar os primeiros
eram de todos os tamanhos e formas; alguns não maiores que nossas
ordinárias carruagens; outros eram casas móveis de um piso e com vários
cômodos mobiliados, de acordo com as idéias de luxo e conforto apreciadas
pelos Vril-ya. Os veículos aéreos estavam construídos com substancias leves,
e nem ao menos lembravam nossos balões*, senão que eram mais semelhantes
à nossos barcos e veleiros, com leme e timão, com grandes asas no lugar dos
remos, e um motor central acionado por Vril. Todos os veículos, tanto os de
terra quanto os de ar eram, de fato, acionados por este potente e misterioso
elemento.
Encontramos um comboio preparado para viagem, porém neste havia poucos
passageiros, e em maior parte, continha artigos de comércio, destinados a uma
75

comunidade vizinha. Pois, entre todas as tribos dos Vril-ya existe um


considerável intercâmbio comercial. Talvez deva aqui observar, que sua
moeda corrente não se constitui de metais preciosos, que são muito comuns
entre eles para tal propósito. As pequenas moedas de uso corrente são feitas a
partir de um peculiar fóssil de concha, relativamente escasso, remanescente de
um dilúvio muito antigo, ou alguma outra convulsão da natureza, pela qual a
espécie tenha-se tornado extinta.
São de reduzido tamanho, achatada como uma ostra e admite um polimento de
jóia. Estas moedas circulam entre todas as tribos dos Vril-ya. As transações de
maior importância são feitas por métodos muito parecidos aos nossos, por
meio de letras de câmbio e finas placas metálicas, que correspondem ao
propósito de nossas notas bancárias.
Agora, permita-se me aproveitar esta ocasião para acrescentar que a tributação
paga ao erário público entre os habitantes da tribo com que eu estava
familiarizado era muito grande, em comparação com a população. Porém, vez
alguma ouvi qualquer pessoa fazer uma queixa sequer, pois tal destinava-se a
propósitos de utilidade geral, e de fato necessários para a civilização da tribo.
Os custos para iluminar um país de tão grande extensão, de financiamento de
emigrações, de manutenção dos prédios públicos, em que as várias atividades
da inteligência nacional eram desenvolvidas, desde a educação primária de um
infante, ao financiamento do departamento em que o Colégio dos Sábios
estavam ininterruptamente testando novos experimentos em ciência mecânica:
tudo o qual envolvia a necessidade de consideráveis somas do Fundo Público.
Quanto a isto, particularmente, devo mencionar algo que me pareceu muito
singular. Tenho dito que todo labor humano requerido pelo Estado é
executado por crianças e jovens até a idade matrimonial. O Estado paga este
trabalho; e numa escala incomensuravelmente mais alta que nossa
remuneração em país algum sobre a terra, inclusive os Estados Unidos. De
acordo com sua teoria, toda criança, macho ou fêmea, ao atingir a idade
matrimonial, e dar por terminado o período de trabalho, há de ter acumulado o
suficiente para ser capaz de levar uma vida independente. Dessa maneira,
qualquer que seja a fortuna dos pais, todas as crianças devem servir
igualmente ao Estado, de maneira que todas sejam eqüitativamente pagas em
proporção à idade e à natureza de seu trabalho.
Se os pais ou amigos decidem reter uma criança, a seu próprio serviço, estes
devem pagar ao Fundo Público a mesma soma que o Estado paga às crianças
que emprega. E esta quantia é entregue à criança, ao terminar seu período de
serviço. Esta prática serve, sem dúvida, para inculcar a noção de igualdade
social enquanto agradável família. E se bem deva-se dizer que todas as
crianças daquela raça formam juntas uma democracia, não menos verdadeira
76

pode ser dito que todos os adultos formam uma aristocracia. O refinado
comportamento de cortesia e requinte entre os Vril-ya, a generosidade de seus
sentimentos, a absoluta liberdade que gozam para se dedicarem em busca de
seus próprios interesses, as amenidades de suas relações interpessoais e
domésticas, em que assemelham-se a membros de uma Ordem de Nobreza em
que não é possível haver desconfiança na palavra ou promessa de qualquer
integrante; tudo contribui para fazer dos Vril-ya a sociedade mais perfeita, que
um discípulo de Platão ou de Sidney pudera sequer conceber como ideal de
uma república aristocrática.

CAPÍTULO XX

Desde a data da expedição, que fiz com Taë, e que narrei no capítulo anterior,
a criança fez-me freqüentes visitas. Havia ele tomado simpatia por mim, que
eu retribuía cordialmente. De fato, como não havia ainda cumprido doze anos
e não havia ainda começado os estudos científicos, com os quais se encerrava
o período da infância naquele país, meu intelecto não era tão inferior ao dele,
quanto em comparação a outros membros de sua raça, especialmente as Gy-ei
e, em particular, da consagrada Zee. As crianças dos Vril-ya, tendo sobre suas
mentes o peso de manterem-se ocupadas com tantos deveres e graves
responsabilidades, em geral não são alegres. Mas Taë, com toda sua sabedoria,
tinha muito do bom humor brincalhão que alguém poderia atribuir como
característica dos anciãos de gênio. Em minha companhia, experimentava Taë
algo parecido ao prazer que um garoto de mesma idade sente em nosso mundo
em companhia de um cachorro ou macaquinho de estimação. Divertia-se
mostrando e ensinando-me os costumes de seu povo, tanto quanto divertia um
sobrinho meu fazer seu cachorrinho poodle caminhar sobre as patas traseiras
ou saltar por um aro.
Eu me prestava, de bom grado, a tais experimentos, porém nunca alcancei o
sucesso do poodle. Primeiramente, estava eu muito interessado em aprender a
usar as asas, as quais os mais jovens dos Vril-ya usam com tanta destreza e
facilidade, quanto nós mesmo fazemos com nossos braços e pernas. Porém,
meus esforços não me deram outro resultado que contusões sérias o bastante
para fazer-me abandonar a idéia desesperadamente.
As asas, como citei anteriormente, são muito grandes, chegando até ao joelho.
Recolhidas, envolvem o corpo, formando um manto muito gracioso. Elas são
feitas com as penas de um gigantesco pássaro abundantemente encontrado nas
altitudes rochosas da região -- sua cor predominantemente branca, as vezes
com traços de vermelho. As asas são colocadas ao redor e sobre os ombros,
77

por meio de molas de aço, leves porém fortes;e, são abertas com os braços;
estes deslizam por entre alças, para este propósito, formando uma forte
membrana central. Ao levantar os braços, estes atuam como um dispositivo
mecânico, que infla com ar um forro de construção tubular que levam como
vestimenta ou túnica e que pode ser aumentada ou diminuída a quantidade de
ar conforme a vontade, por um movimento dos braços, e serve para sustentar o
corpo no ar, semelhantemente a bexigas natatórias. As asas e o forro tubular
pneumático são altamente carregadas de Vril, e quando o corpo flutua dessa
maneira suspenso, parece tornar-se singularmente aliviado de seu peso. Achei
suficientemente fácil erguer-me do chão; de fato, quando as asas eram
expandidas era meramente impossível não elevar-se, e aí estava a dificuldade
e o perigo. Não consegui aprender a mover e direcionar as asas, apesar de eu
ser considerado entre os de minha própria raça excepcionalmente alerta e
disposto em exercícios físicos, e um muito experiente nadador. Pude apenas
fazer movimentos confusos e desordenados em esforço dos braços ao voar. Eu
era um mero servo das asas; e não o contrário, e de forma alguma conseguia
dominá-las. E nos momentos em que, por violentos movimentos musculares,
(e devo admitir, graças a força anormal que nos dá um grande medo) refreava
eu as braçadas e trazia as asas para junto do corpo, pareciam então como se
essas perdessem a capacidade de sustentação armazenados nelas e nos sistema
conectado ao forro tubular, o mesmo que acontece quando o ar escapa de um
balão, e via a mim mesmo precipitar-me de encontro ao solo. Salvavam-me,
de fato, algumas batidas espasmódicas das asas, de acabar-me em pedaços,
porém, não me salvavam das contusões e do forte golpe da caída. Deveria,
contudo, ter perseverado em minhas tentativas, porém desisti por sugestão ou
comando da científica Zee, a qual, bondosamente, tinha acompanhado-me em
meus vôos. E de fato, na última ocasião, voando por debaixo de mim, acolheu
meu corpo assim que este caiu sobre suas próprias asas, dessa maneira
preservando-me de quebrar minha cabeça no teto de uma pirâmide que
tínhamos sobrevoado.
“Vejo”, disse ela, “que suas tentativas são vãs, não por causa das asas, nem
dos seus dispositivos, nem por qualquer imperfeição ou malformação de seu
próprio sistema corporal. É, mais bem, um irremediável, de causa orgânica,
defeito no seu poder de volição. Precisa compreender que, a percepção da
conexão entre a vontade e os elementos do fluído, sujeito ao domínio dos Vril-
ya, não conseguiram os primeiros descobridores de Vril, em uma única
geração. Tal vem se desenvolvendo em conjunto com outras faculdades, no
transcurso do tempo, transmitidas de pais a filhos, até tornarem-se, finalmente,
instintivas; ao ponto em que, uma criança de nossa raça queira voar, tão
instintiva e inconscientemente, quanto quer caminhar; de maneira que abre,
78

move e bate suas asas inventadas ou artificiais, com tanta segurança quanto
um pássaro o faz com suas asas, com as quais nasceu. Não pensei nisto
quando consenti que intentasse um experimento que me encantava, pela razão
que me agrada lhe ter como companheiro. É melhor abandonarmos o
experimento agora. Sua vida vem sendo preciosa para mim.”
A esta menção, a voz e o semblante da Gy suavizaram-se, o que alarmou-me
mais seriamente que meus prévios vôos.
Agora que meu assunto são as asas, devo comentar um costume das Gy-ei que
pareceu a mim de muita ternura e simpatia, pelo sentimento que implica. A Gy
usa as asas habitualmente enquanto ainda é solteira -- quando participa
juntamente com os Ana e seus esportes aéreos -- quando se aventura
adentrando-se sozinha nas distantes e selvagens regiões do mundo sem sol; na
ousadia e altura de seus vôos e nisto, não menos que na graciosidade de seus
movimentos, sobressai-se aos do sexo oposto; porém, desde o dia em que se
casa, já não leva mais as asas; as coloca, por vontade própria, sobre a
cabeceira do leito nupcial, para não mais usá-las, a menos que o laço do
matrimônio se desfaça por divórcio ou morte.
Porém, voltando à conversação entre eu e Zee, quando a voz e os olhos de Zee
então suavizaram-se -- e como mencionei, ante tal suavidade eu
providencialmente retraí-me com estranheza -- Taë, que havia nos
acompanhado em nossos vôos, mas que, como uma criança pequena, se
divertia muito mais com minha falta de jeito do que simpatizava com meus
temores ou perigos pelos quais passava, e, estando suspenso acima de nós,
naquele instante, pousado em meio de um tranqüilo ar radiante, sereno e
imóvel em suas asas extendidas, ao ouvir tão carinhosas palavras da jovem Gy,
soltou uma gargalhada. Disse ele: “ora, se o Tish não consegue aprender o uso
de suas asas, ainda pode ser sua companhia, Zee, desde que abandone as suas
próprias”.

Adendo: Aph-lin – lê-se Apa-Lin


Gy-ei – lê-se Djai-ei
Taë – lê-se Taii
Gy – lê-se Dji
Onde está lê-se, entenda-se pronuncie-se.

CAPÍTULO XXI

Já a algum tempo, vinha eu observando, na altamente instruída e


poderosamente proporcionada filha de meu anfitrião, aquele sentimento
79

amável e protetor que, seja acima da terra ou abaixo desta, uma providência
onisciente tem colocado sobre o gênero feminino da raça humana. Mas até
muito recentemente, tinha atribuído isto semelhantemente à aquela afeição por
animais de estimação que as mulheres de todas as idades compartilham com as
crianças. Apenas então dava-me conta de que, terrivelmente, o sentimento
com que Zee se dignava em me considerar era diferente daquele que eu
inspirava em Taë. Contudo, tal convicção não me trouxe de maneira nenhuma
aquela grata satisfação que a vaidade masculina ordinariamente sente quando
recebe uma lisonjeira apreciação de seus méritos pessoais por parte de alguém
do sexo frágil; ao contrário, tal fato inspirou-me temor. De toda maneira,
dentre todas as Gy-ei da comunidade, se talvez Zee fosse a mais forte e
inteligente, também era, na opinião geral, a mais gentil, e era ela, certamente,
a mais popular e a mais querida. A vontade de ajudar, socorrer, confortar,
proteger, bendizer, pareciam provir de seu ser em sua totalidade.
Considerando que, no regime social dos Vril-ya eram desconhecidas as
múltiplas misérias, resultantes da penúria e do mal viver, e que, até então,
sábio algum havia descoberto em Vril, forma alguma que pudesse eliminar a
tristeza da vida; qualquer que fosse o lugar dentre seu povo que a tristeza se
instalasse, lá estava Zee em sua missão de confortar.
Alguma irmã Gy não conseguia despertar o interesse no pretendente pelo qual
suspirava? Zee ia a seu encontro, e punha à disposição todos os recursos e
todo consolo de sua simpatia, de maneira a ajudar a suportar o pesar que,
nessas horas, necessita do conforto de um confidente nos raríssimos casos em
que uma grave enfermidade abatia-se sobre crianças ou jovens, e, nos casos
mais freqüentes em que, durante os árduos e aventurosos períodos de provas
dos infantes, algum acidente, com ferimentos, ocorria, Zee abandonava seu
estudo e esporte, e convertia-se em médico e enfermeira. Seus vôos favoritos
eram em direção aos limites das fronteiras onde ficavam crianças montadas
em guarda contra o ataque de radicais forças da natureza, ou a invasão dos
domínios por animais devoradores, de maneira que ela pudesse preveni-los de
qualquer ameaça que seu conhecimento a fizesse detectar ou prever, ou
mesmo, estar a postos se qualquer problema viesse a ocorrer.
Mesmo no decorrer de suas investigações científicas havia uma benevolência
simultânea de propósito e determinação.
Se no decorrer de seus estudos, descobria alguma novidade em invenção que
fosse suscetível de ser utilizada em algum ofício, arte, ou indústria, se
apressava em trazê-la a conhecimento geral e explicá-la. Se observava em
alguma sábio ancião do Colégio algum sinal de perplexidade e cansaço
resultante de um estudo excessivamente árduo, dedicava-se pacientemente em
ajudá-lo, encarregando-se pessoalmente dos detalhes; animando-o com seu
80

simpático sorriso; avivando-lhe a imaginação com luminosas sugestões, sendo


para ele, enfim, como se fosse algum bom gênio feito tangível para fortalecê-
lo e inspirá-lo. Exibia ela a mesma ternura para com as criaturas inferiores.
Pude por diversas vezes vê-la chegar trazendo nos braços algum animal ferido
ou enfermo, ao qual tratava como uma mãe que houvesse por atender e cuidar
de seu filho aflito. Diversas vezes quando me debruçava na sacada, ou jardim
suspenso, a qual dava minha janela, pude observá-la erguendo-se no ar com
suas radiantes asas e, em poucos instantes, grupos de crianças logo abaixo, ao
avistá-la, elevavam-se em direção a ela com gritos de alegria, juntando-se e
divertindo-se ao seu redor, ficando ela cercada por tais grupos de crianças.
Em nossos passeios por entre as rochas e pelos vales, nos arredores da cidade,
os cervos que a avistavam à distância ou a ouviam, vinham pressurosos buscar
a carícia de suas mãos, ou então a seguiam, até que fossem mandados embora
por meio de sons que a criatura havia aprendido a entender. Era moda entre as
Gy-eis virgens levar na fronte uma diadema ou coroa, com gemas semelhantes
a opalas, dispostas em quatro direções o como os raios de uma estrela. Em uso
ordinário, tais pedras careciam de brilho mas, ao tocá-las com a varinha Vril,
estas adquiriam uma brilhante chama ondulante que iluminava sem queimar.
Servia como um ornamento em suas festividades, e como lâmpada se, quando
em suas saídas, mais além das suas luzes artificiais, tinha que atravessar
lugares escuros. Às vezes, quando contemplando a pensativa majestade do
rosto de Zee, iluminada por este halo, era a mim difícil crer que fosse criatura
mortal; nestas horas inclinava minha cabeça, como ante um ser que
pertencesse às hostes celestiais. Mas, em momento algum senti qualquer
sentimento em meu coração parecido ao amor humano, por aquele exaltado
modelo da mais nobre feminilidade. Não seria que, entre o povo a qual
pertenço, o orgulho de um homem influenciaria tanto suas paixões que
perderia para ele seu encanto especial para com uma mulher caso ele sentisse
ela ser, em todas as coisas, eminentemente superior a ele mesmo? De qualquer
maneira, como conseguir encontrar uma explicação de por que estranho
capricho pude eu ser objeto das preferências daquela incomparável filha de
uma raça que, pela supremacia de seus poderes e pela felicidade de sua
condição, considerava a todas as demais raças na categoria de bárbaros? Ainda
que eu granjeasse a fama de ser bem-afeiçoado entre as pessoas de meu
mundo, o mais galante de meus concidadãos talvez teria parecido
insignificante e simplório ao lado do grandioso e sereno tipo de beleza
característico dos Vril-ya.
A diferença, por ser novidade, entre meu tipo e daqueles a que Zee estava
acostumada, foi talvez suficiente para ter sugestionado sua fantasia. Como o
leitor verá mais adiante, tal causa poderá ser suficiente para explicar a
81

predileção com que me distinguiu uma outra Gy que acabava de sair da


infância e, contudo, muito menos notável quando em comparação com Zee.
Porém, quem quer que leve em consideração tais ternas características que
acabei de descrever da filha de Aph-Lin, poderá de pronto crer que a principal
causa de minha atração por ela fosse seu instintivo desejo de cuidar, confortar,
proteger e, ao proteger, sustentar e exaltar os débeis. De maneira que, ao
relembrar aqueles dias, contabilizo ser esta a única fraqueza indigna de sua
perfeita natureza, que inclinava uma integrante dos Vril-ya a um sentimento
de afeição por alguém tão inferior a ela mesma, como era este hóspede de seu
pai. Mas por qualquer causa que fosse, a idéia de que eu pudesse despertar tais
sentimentos assombrava-me de temor - - um temor moral de suas perfeições,
de seus poderes misteriosos e pelas bem marcadas diferenças entre sua raça e
a minha; e com este temor, que para minha vergonha devo confessar, juntava-
se o mais ignóbil dos medos, advindos dos perigos a que sua escolha poderia
me expor.
Poderia supor, por um momento, que os parentes e amigos deste exaltado ser
pudessem aceitar, sem qualquer indignação e desaprovação, a possibilidade de
uma união entre ela e um Tish? A ela, eles não poderiam punir, nem aplicar
sanções ou restrições. Nem na vida doméstica nem na vida política utilizam-se
eles de qualquer lei de repressão entre os de sua raça; porém, podiam por
eficazmente fim ao capricho da Gy, reduzindo-me a cinzas com uma descarga
de Vril.
Em tão pressurosas circunstâncias, minha consciência e meu sentido de honra
estavam, afortunadamente, livres de qualquer reprovação. Ficou claro para
mim meu dever que, caso as investidas de Zee continuassem, devia levá-las ao
conhecimento de meu anfitrião, com toda a delicadeza com deva utilizar-se
todo homem bem educado, ao confiar a outro qualquer nível de favor com que
o sexo frágil o distinga. Desta maneira, em todo caso, deveria eu considerar-
me livre de toda responsabilidade ou suspeita de compartilhar dos sentimentos
de Zee, e confiava que a sabedoria mais profunda de meu anfitrião poderia
sugerir alguma solução que me livrasse de meu perigoso dilema. Com esta
determinação obedeci a este impulso presente em todo homem moral e
civilizado, quem, por equivocado que esteja, prefere o curso mais correto,
ainda que pareça obviamente contra suas inclinações, interesses e segurança,
que arriscar-se a eleger a pessoa errada.
82

CAPÍTULO XXII

Como o leitor pode perceber, Aph-lin não favorecia meu contato geral e sem
restrições com seus concidadãos. Ainda que confiante em minha promessa de
abster-me de dar qualquer informação com relação ao mundo de que eu
provinha, confiava contudo mais na promessa daqueles a quem havia pedido
não fazerem-me perguntas. Zee havia exigido de Taë a mesma promessa. Por
tanto, Aph-lin temia que, se me permitisse entrosar com estranhos, em que
minha presença haveria de despertar curiosidade, talvez não conseguisse
suficientemente resguardar a mim mesmo de perguntas e questionamentos.
Dessa forma, nunca saia desacompanhado. Quando saía, me acompanhava
sempre um dos membros da família de meu anfitrião, ou meu amigo, o
menino Taë. Bra, esposa de Aph-Lin, raramente saia mais além dos jardins
que rodeavam a casa; e era aficionada em ler literatura antiga, em que
encontrava romances e aventuras que já não se encontravam em escritos mais
recentes, e que apresentavam quadros de vidas com as quais não estava
familiarizada e que estimulavam sua imaginação; quadros, em verdade, de
vidas mais assemelhadas aquelas que vivemos todos os dias acima da
superfície, colorida por nossas tristezas, defeitos e paixões, sendo para ela o
que os contos de fadas ou as mil e uma noites seriam para nós. Mas sua paixão
pela literatura não impedia que Bra desempenhasse seus deveres como dona-
de-casa do lar mais numeroso da cidade. Recorria diariamente às diversas
salas e quartos, inspecionando de que os autômatos e outros dispositivos
mecânicos estivessem em ordem, que as numerosas crianças empregadas por
Aph-Lin, tanto em suas funções públicas e privadas, estivessem
cuidadosamente atendidas. Bra tomava conta também de toda contabilidade da
propriedade, e era com grande prazer que assessorava seu esposo nos deveres
ligados com seu cargo como administrador chefe do Departamento de
Iluminação, de maneira que suas tarefas de fato a mantinham muito tempo
ocupada dentro de casa. Seus dois filhos estavam ambos em vias de completar
sua educação no Colégio dos Sábios. O mais velho, que tinha uma forte
inclinação para a mecânica, especialmente a relacionada com trabalhos com
autômatos e relojoaria, tinha se decidido firmemente a tal propósito, e estava,
por este momento, ocupado na construção de uma loja, ou pequena fábrica,
em pudesse exibir e vender suas invenções. O filho mais novo tinha predileção
pela agricultura e atividades rurais; e quando não ocupado como Colégio,
onde principalmente dedicava-se ao estudo de teorias sobre agricultura,
colocava-se a por em prática as muitas aplicações desta ciência nas
propriedades de seu pai. Ver-se-á, pelo que acontece, quão uniforme era a
83

igualdade social entre aquele povo, -- um comerciante lojista possuindo


exatamente o mesmo nível social em proporção a um proprietário de grandes
extensões de terra, por exemplo. Aph-Lin era o mais rico de toda a
comunidade; e seu filho mais velho preferia manter uma lojinha a qualquer
outra ocupação, sem que, por tal escolha se considerasse ao filho menos digno
que o pai da estima de seus concidadãos.
Este jovem se interessou muito em examinar meu relógio, cujo mecanismo
estudou com grande atenção, pois para ele era uma completa novidade e ficou
muito contente quando lhe dei de presente. Pouco tempo depois, presenteou-
me de volta, com muito entusiasmo, com um relógio de sua própria construção,
com a marcação de ambos os horários, do meu relógio e do tempo tal qual era
marcado entre os Vril-ya. Ainda tenho tal relógio, o qual tem sido muito
admirado pelos mais eminentes relojoeiros de Londres e Paris. É de ouro com
ponteiros e engastes de diamantes; e ao dar as horas, toca uma melodia
favorita entre os Vril-ya. Tem corda para dez meses, e nunca se atrasou desde
então. Como os filhos de Aph-Lin estavam sempre ocupados, quando saia,
acompanhavam-me meu anfitrião ou sua filha. Em conseqüência da honorável
determinação, que havia tomado a respeito de Zee, comecei a escusar-me cada
vez mais quando esta me convidava a sair sozinho com ela. Em uma ocasião
em que a jovem dava uma conferência no Colégio dos Sábios, aproveitei a
oportunidade para pedir a Aph-Lin que mostrasse-me sua casa de campo.
Como esta situava-se a alguma distância e a Aph-Lin não lhe agradava a idéia
de caminhar e, por minha parte, havia eu discretamente abandonado meus
intentos de voar, fomos até lá em umas das naves aéreas, de propriedade de
meu anfitrião. Uma criança de oito anos de idade era o condutor, em seu
emprego. Meu anfitrião e eu recostamo-nos em poltronas, e achei a viagem
muito cômoda e agradável.
Dirigindo-se a meu acompanhante, disse-lhe: “Aph-Lin, suponho eu que você
não se desagradará se lhe peço permissão para viajar durante algum tempo e
visitar outras tribos e comunidades de sua ilustre raça. Também tenho grande
desejo de conhecer as nações que não tem adotado vossas instituições e que
vós considerais como selvagens. Interessa-me grandemente observar quais são
as diferenças entre eles e as raças as quais consideramos civilizadas no mundo
que deixei.”
“É absolutamente impossível que possa ir para tais lugares sozinho”, disse
Aph-Lin. “Mesmo entre os Vril-ya você poderia se expor a grandes perigos.
Certas peculiaridades de formação e coloração, o extraordinário fenômeno das
barbas e pêlos em seu rosto, fazem de você uma espécie de An distinto, tanto
de nossa raça quanto de qualquer outra raça conhecida de bárbaros todavia
existente, o que, naturalmente, chamaria a atenção, especialmente do Colégio
84

dos Sábios das comunidades que porventura viesse a visitar; dependeria do


estado de espírito individual de alguns sábios se você seria recebido,
igualmente como foi entre nós, com hospitalidade, ou se seria posto para
dissecação, com fins científicos. É preciso que saiba que, quando o Tur
primeiramente lhe levou para sua casa, e enquanto ali você foi posto a dormir
por Taë, de maneira que se recuperasse de seu anterior cansaço e dor, os
sábios, convocados pelo Tur, estavam divididos em suas opiniões sobre se
você era um animal inofensivo ou perigoso. Enquanto estavas inconsciente,
examinaram seus dentes e estes claramente mostravam que você era não
apenas granívoro, mas também carnívoro. Animais carnívoros de seu tamanho
sempre são destruídos, como sendo perigosos e selvagens por natureza.
Nossos dentes, como pôde sem dúvida observar, não são aqueles de criaturas
que devoram carne. Zee e outros filósofos sustentam que, como os Ana, em
épocas remotas, alimentavam-se de seres viventes do reino animal, os dentes
dos mesmos deviam ser apropriados para tal finalidade. Porém, ainda que
assim fosse, os dentes foram modificando-se por transmissão hereditária e
adaptando-se ao alimento com que nos sustentamos agora. Nem sequer os
bárbaros, que tem adotado as instituições turbulentas e ferozes dos Glek-Nas,
devoram carne, como as bestas de presas.
“No curso de tal discussão, alguém propôs que lhe dissecassem; mas Taë
colocou-se em sua defesa. Por outra parte, foi o Tur quem, em virtude de seu
cargo, é contrário a todo experimento novo, em que não se respeite o costume
de não destruir vidas, salvo em casos provados para o bem da comunidade, te
enviou a mim quem, tenho por obrigação, como homem mais rico da cidade,
oferecer hospitalidade a forasteiros a quem se podem admitir sem perigo. Caso
houvesse-me negado a receber-te, haveria sido entregue ao Colégio dos Sábios
e não se sabe o que haveria de ter ocorrido. Ademais de tal perigo, poderias
depararte com alguma criança de quatro anos de idade, recém tomada posse de
sua varinha de Vril, e que, alarmada ante sua estranha aparência, no impulso
do momento poderia ter lhe reduzido a cinzas. Taë mesmo esteve a ponto de
tomar tal atitude quando da primeira vez que deparou-se com você, se seu pai
não o tivesse detido. Por conseguinte, lhe digo que não pode viajar sozinho,
mas com Zee você poderia estar seguro; e não tenho dúvida de que ela lhe
acompanharia em uma pequena viagem ao redor das comunidades vizinhas
dos Vril-ya (aos estados selvagens, não!): Pedirei isto a ela.”
Neste instante, como meu principal objetivo ao propor esta viagem era o de
afastar-me de Zee, rapidamente manifestei-me: “não, peço que não! Abandono
destarte meu propósito. Tens me dito o suficiente sobre os perigos a que me
exponho para dissuadir-me de tal. Para tanto, não considero direito que uma
moça de qualidades pessoais tão atraentes como vossa filha, viaje por outras
85

regiões, sem um protetor melhor que um Tish, com minha insignificante força
e estatura.”
Ao responder, Aph-Lin emitiu um som sibilante que parecia ser o mais
próximo de uma gargalhada a que um An adulto se permite: “perdoe-me
minha descortês, ainda que momentânea indulgência, de rir-me ante tal
observação tão séria feita por um hóspede meu. Não poderia senão divertir-me
a idéia de Zee, a quem tanto gosta de proteger a outras pessoas, em que as
crianças a chamam de ‘guardiã’, precisando de um protetor para ela contra
quaisquer dos perigos que possam advir da audaz admiração dos homens.
Saiba que nossas Gy-Ei, enquanto solteiras, estão acostumadas a viajar
sozinhas por entre outras tribos, para ver se ali encontram algum An que possa
agradá-las mais que os Ana de sua tribo. Zee já fez três dessas viagens; mas,
até agora, seu coração está intocado.”
Aqui ofereceu-se-me a oportunidade que eu buscava e, olhando para baixo,
disse, com uma voz hesitante, “iria você, meu bom anfitrião, prometer-me em
perdoar-me se, o que eu vier a dizer lhe ofender?”
“Diga apenas a verdade, e não poderia eu ofender-me; ou, se assim fosse, não
seria para mim, mas para você mesmo perdoar-se.”
“Muito bem, então, ajude-me a abandonar-lhes; ainda que eu deseje conhecer
mais de vossas maravilhas e desfrutar mais da felicidade pertencente ao vosso
povo, peço que permita que eu retorne ao meu país de origem.”
“Temo que haja razões que não autorizem que eu faça isso. De qualquer forma,
nada posso fazer sem a permissão do Tur, e ele mesmo, provavelmente não
concordaria com tal demanda. Você não é destituído de inteligência; você
talvez (apesar de eu acreditar que não) pode ter ocultado o grau de poder
destrutivo que vosso povo possui. Em questão de pouco você poderia trazer-
nos algum perigo e, caso o Tur vislumbrasse tal possibilidade, seu dever seria
destruir-te ou encerrar-lhe em uma jaula pelo resto de sua existência. Mas, por
que razão desejaria você abandonar um estado de sociedade que, tão
apropriadamente houve por concordar em ser mais feliz que o seu?”
“Oh, Aph-Lin! Respondo-lhe francamente. É que receio, por qualquer razão, e
contra minha vontade, trair vossa hospitalidade. Quero evitar que, por um
capricho da liberdade proverbial de vosso mundo, entre os do sexo posto, do
qual nem sequer uma Gy está livre, vossa adorável filha porventura viesse a
considerar-me, apesar de ser um Tish, como se eu fosse um An civilizado,
e...e...e...”
“Cortejar-te, como seu prometido” acrescentou Aph-Lin, gravemente, e sem
expressar qualquer sinal visível de surpresa ou desagrado.
“Você que o disse.”
86

“Isto seria uma desgraça”, continuou meu anfitrião, após uma pausa, “e sinto
que você agiu da forma devida em alertar-me. Como você disse, não esta fora
do comum que uma jovem tenha gostos, quanto ao objeto que deseja, ainda
que pareçam caprichosos aos olhos dos outros; porém, da mesma maneira, não
há poder capaz de forçar uma jovem Gy a seguir um curso oposto ao que ela
mesma decida por seguir. Tudo que podemos fazer é trazê-la à razão, e a
experiência nos ensina que nem mesmo todo o Colégio dos Sábios seria capaz
de dissuadir uma jovem em questões concernentes à sua escolha amorosa.
Sinto por você; porque tal casamento seria contra a Aglauram, ou bem da
comunidade, pois os filhos de tal união poderiam adulterar a raça: eles
poderiam até mesmo vir a este mundo com dentes de animais carnívoros; e
isto não seria permitido. Zee, como uma Gy, não pode ser controlada; mas
você, como um Tish, pode ser destruído. Te aconselho, para tanto, que resista
à suas investidas; diga claramente que não pode retribuir seu amor. Isto ocorre
com freqüência; mais de um An, ardentemente perseguido por uma Gy, a
rejeita, e coloca um fim a suas investidas casando-se com outra. O mesmo
caminho está aberto a você.”
“Não”, contestei, “pois que não posso casar-me com nenhuma outra Gy sem
igualmente prejudicar a comunidade, ao expô-la à possibilidade de criar
crianças carnívoras.”
“Isto é verdade. Tudo quanto posso dizer, e digo com toda consideração
devida a um Tish, e o respeito devido a um hóspede, é francamente isto: se
cederes às investidas, será reduzido a cinzas. Devo deixar que sigas o melhor
caminho que possa para defender. Quem sabe seja melhor que diga a Zee que
ela é feia. Esta afirmação, vinda dos lábios de quem ela se interessa,
geralmente é suficiente para arrefecer o entusiasmo da mais ardente Gy. Veja,
aqui estamos em minha casa de campo.”

CAPÍTULO XXIII

Devo confessar que minha conversação com Aph-Lin e a extrema frieza com
que declarou sua incapacidade para dominar o perigoso capricho de sua filha,
e ademais a idéia de ser reduzido a um monte de cinzas a que dito amor
poderia expor minha tão sedutora pessoa, desvaneceu-me, por um instante,
todo o prazer que outrora teria tido na visita da casa de campo de meu
anfitrião, e da observação da impressionante perfeição da complexa
maquinaria com o qual suas operações agrícolas eram executadas. A casa era
diferente em aparência do monumental e sombrio edifício que Aph-Lin
87

habitava na cidade, o qual se parecia muito à uma das rochas das quais a
cidade mesma havia sido formada. As paredes da casa de campo eram de
árvores plantadas a poucos passos umas das outras; e o espaço entre elas havia
sido preenchido por uma substância metálica transparente a qual os Ana
utilizam como vidro. Tais árvores estavam todas floridas, e o efeito era muito
agradável, se não de bom gosto. Fomos recebidos no pórtico por um autômata,
semelhante a um ser vivente, quem conduziu-nos a uma câmara, de um estilo
ao qual nunca havia antes visto, mas que havia em diversos dias de verão
fantasiosamente imaginado. Era uma espécie de jardim recluso -- metade
quarto, metade jardim. As paredes eram uma cortina de flores trepadeiras. Os
espaços abertos, que nós chamamos janelas, e nos quais neste lugar, as
superfícies metálicas transparentes eram corrediças, davam vista a diversas
paisagens; umas com vastas paisagens com lagos e rochas; em outras, espaços
mais limitados em extensão, ao estilo de jardins de inverno, repletos de flores
em fileiras. Ao largo das paredes do aposento, havia canteiros de flores,
intervalados de divãs para repouso. Na região central do piso havia um
reservatório e uma fonte daquele líquido luminoso o qual presumi ser nafta.
Emitia um brilho luminoso e de um fulgor rosáceo. Tal bastava sem quaisquer
outras lâmpadas para iluminar o aposento com uma luz suave. O chão ao redor
da fonte estava carpetado com uma fina camada de líquen, não verde (nunca vi
esta cor na vegetação deste país), mas de um marrom suave, o qual dava
repouso aos olhos com a mesma sensação se alívio quanto a que se sente em
nosso mundo quando nos deparamos com a cor verde. Nos entremeios sobre
as flores (que comparei a nossos jardins de inverno) havia inumeráveis
pássaros cantantes, os quais, enquanto estiveram no aposento, cantaram
naquelas harmonias musicais para as quais são habilmente treinados. Não
havia teto. O cenário todo tinha encantos para todos os sentidos -- música dos
pássaros, fragrância das flores e beleza em variadas formas para os olhos.
Sobretudo havia um ambiente de repouso voluptuoso. Que lugar, pensava eu,
para uma lua de mel com uma Gy, se uma noiva Gy fosse menos
formidavelmente armada não apenas com os direitos da mulher, mas com os
poderes semelhantes ao dos homens! Mas quando se pensa em uma Gy tão
instruída, tão esbelta, tão imponente, e tão muito acima do padrão normal das
criaturas que chamamos mulheres como era Zee...não! Mesmo que eu não
viesse a sentir temor de ser reduzido a um punhado de cinzas, pouco seria com
ela que eu deveria sonhar naquele jardinário tão belamente construído para
sonhos de amor poético.
O autômata reapareceu, servindo um daqueles deliciosos líquidos, que
constituem os inocentes vinhos dos Vril-Ya.
88

“De fato”, disse, “esta é uma encantadora residência, e mal posso entender
porque não reside aqui, ao invés das sombrias moradas da cidade.”
“Como responsável perante a comunidade pela Administração da Luz, me
vejo obrigado a residir a maior parte do tempo na cidade e somente posso vir
aqui durante muito curtas temporadas”, respondeu Aph-Lin.
“Contudo, posto que, segundo entendi, seu cargo não lhe oferece vantagens
especiais, e ainda envolve algum risco, porque o aceita?”
“Cada um de nós obedece, sem questionar, os comandos do Tur. Este disse:
‘peça-se a Aph-Lin que seja o Comissionado da Luz’; não tive escolha. Como
ocupo o cargo desde há muito tempo, os cuidados, que a princípio não me
agradavam, tem chegado, se não a eu gostar, ao menos, não tem me
sobrecarregado e tenho-me acostumado a eles. Somos todos formados pelo
costume -- mesmo a diferença entre a nossa raça para com os selvagens não é
nada mais que a transmissão continuada dos costumes, o qual tornam-se,
através da descendência hereditária, parte e porção de nossa natureza. Podes
saber que existem Ana que até mesmo resignam-se a si próprios ao cargo de
Magistrado Chefe, porém nenhum assim o faria, se os deveres inerentes ao
cargo não resultassem leves, ou caso houvesse quaisquer dúvidas quanto a
seguir em conformidades com suas exigências.”
“Nem mesmo se qualquer um crer que o requerimento é injusto ou
inconveniente?”
“Não nos permitimos pensar assim; e, de fato, tudo marcha como se cada um e
todos estivéssemos governados de acordo com costumes ancestrais.”
“Quando o Magistrado Chefe morre ou retira-se do cargo, como vocês elegem
seu sucessor?”
“O An que se desincumbe de suas obrigações de Magistrado Chefe tidas por
muitos anos é a pessoa mais indicada para escolher aquele para o qual tais
obrigações deverão ser compreendidas, e normalmente, nomeia seu sucessor.”
“Seu filho, talvez?”
“Raramente; pois este não é um cargo ao qual qualquer pessoa deseja ou busca,
e um pai, naturalmente, hesita em impô-lo a seu filho. No caso de o Tur, ele
próprio, negar-se a fazer tal escolha, por temor que possam supor que faz a
indicação por antipatia à pessoa que elegeu, três dos membros do Colégio dos
Sábios se sorteiam entre si mesmos quem terá o poder para eleger o chefe.
Nós consideramos que o julgamento de um An de ordinária capacidade é
melhor que o julgamento de três ou mais, conquanto sábios que possam ser;
pois entre três provavelmente poderia haver disputas; e onde existe disputa as
paixões cegam o entendimento. A pior escolha feita por um que não possui
motivos em escolher errado, é mais aceitável que a melhor escolha feita por
muitos que possuem muitos motivos para não escolher direito.”
89

“Você inverte, em sua política, as máximas adotadas em meu país.”


“Estão todos vocês, em seu país, satisfeitos com seus governantes?”
“Todos...certamente que não; os governantes que mais agradam a uns são,
com certeza, aqueles mais desprezíveis a outros.”
“Então seu sistema é melhor que o nosso.”
“Para você talvez seja; contudo, de acordo com nosso sistema um Tish não
corre o risco de ser reduzido a cinzas se uma fêmea o obrigar a casar-se com
ela; e é como um Tish que pretendo retornar a meu mundo nativo.”
“Seja corajoso, meu caríssimo hóspede. Zee não pode obrigá-lo a casar-se
com ela. Apenas pode lhe seduzir. Não se deixe seduzir. Acompanhe-me e
vamos conhecer meus domínios.”
Seguimos em direção a um cercado semelhante a um barracão; pois apesar dos
Ana não manterem grandes estoques de comida, tem alguns animais, que
criam para leite e outros para tosquia. Os primeiros não se assemelham em
nada a nossas vacas, nem as últimas às nossas ovelhas, e acredito que estas
espécies nem mesmo existam entre eles. Utilizam o leite de três variedades de
diferentes animais; um se parece ao antílope, porém é muito maior e tão alto
quanto o camelo; os outros dois são menores, e, apesar de diferirem alguma
coisa um do outro, não se parecem com qualquer criatura que tenha visto
sobre a terra. Tem uma pele lisa e de proporções arredondadas; a cor
assemelha-se aquela do cervo malhado, de aspecto agradável e belos olhos
negros. O leite de cada uma dessas criaturas difere em riqueza e sabor.
Usualmente o diluem com água e o misturam com o suco de uma fruta muito
peculiar e perfumada, sendo um alimento muito nutritivo e saboroso. O animal
cuja lã lhes serve para confecção de roupas e diversas outras finalidades,
lembra mais a ovelha italiana que qualquer outra criatura, porém
consideravelmente maior, não possui chifres, e não possui o insuportável odor
que estas exalam. Sua lã não é grossa, mas muito comprida e fina; ela varia
em coloração, mas nunca é branca totalmente, mas geralmente numa cor tipo
telha ou parecida à lavanda. Para confecção é sempre tingida de maneira que
esteja de acordo com o gosto do usuário. Tais animais eram muito dóceis, e
eram tratados com extraordinária atenção e afeto pelas crianças (em maioria
fêmeas) que os pastoreavam.
Logo passamos a vastos depósitos, cheios de grãos e frutas. Devo observar
que a base principal da alimentação dessas comunidades consiste --
primeiramente, de um tipo de cereal de muito maior espiga que o nosso trigo,
e que pelo cultivo é perpetuamente aprimorado em novas variedades de sabor;
e, em segundo lugar, de um fruto, como uma pequena laranja; o qual, quando
colhidos, são duros e amargos. Este é, então, estocado durante muitos meses
em seus armazéns, e então se torna macio e suculento. Seu suco, que é de uma
90

coloração vermelho-escura, o utilizam na maioria de seus molhos e


condimentos. Possuem muitas variedades de frutos da classe das azeitonas,
das quais extraem deliciosos azeites. Tem uma planta algo parecida à cana de
açúcar; mas de suco não tão doce e com um delicado aroma. Não conhecem as
abelhas, nem inseto algum que produza mel; mas fazem muito uso de uma
goma adocicada transpirada de uma espécie de conífera, parecida à araucária.
O solo daquela terra está cheio de raízes e vegetais comestíveis, os quais
cultivam com o máximo de empenho para melhorar e diversificá-los em
qualidade. E eu não me lembro de haver participado de nenhuma refeição
entre aquele povo, que não se apresentasse qualquer novidade nesta área. Em
resumo, como anteriormente exprimi, sua cozinha é algo refinada, tão diversa
e rica que qualquer pessoa não sentiria falta de alimento animal; e suas
próprias compleições físicas são suficientes para demonstrar que, ao menos
para eles, carne não é necessária para a produção superior de fibras
musculares. Não possuem uvas -- as bebidas feitas a partir das frutas que
cultivam são inocentes e refrescantes. Sua principal bebida, contudo, é a água,
a qual, ao utilizá-la, são muito exigentes e sabem distinguir no ato as mais
imperceptíveis impurezas.
“Meu filho mais jovem encontra grande prazer em multiplicar nossa
produção”, disse Aph-Lin assim que passamos pelos armazéns, “e portanto,
irá herdar estas terras, que constituem a maior parte de minha riqueza. Para
meu filho mais velho tal porção da herança poderia ser um grande problema e
estorvo.”
“Existem muitos filhos entre vós que consideram a possibilidade que herdar
vasta fortuna poderia ser um grande problema e estorvo?”
“Certamente; de fato, existem muito poucos dos Vril-Ya que não consideram
que uma fortuna muito acima do comum seja um pesado fardo. Nós somos um
povo um tanto preguiçoso depois da fase da infância, e não apreciamos ter de
lidar com mais preocupações que podemos resolver, e grandes fortunas
sempre trazem grandes cuidados. Tal, de pronto nos qualifica para assumirmos
cargos públicos, os quais nenhum de nós gosta porém nenhum de nós pode
recusar. Temos a necessidade de sempre tomarmos continuado interesse nos
assuntos de qualquer de nossos concidadãos pobres, de maneira que possamos
nos antecipar à suas necessidades e evitar que os mesmos fiquem pobres. Há
um antigo provérbio entre nós que vaticina, ‘a necessidade do pobre é a
vergonha do rico---.’”
“Perdoe-me, se lhe interrompo. Vocês permitem que aconteça que alguns,
mesmo entre os Vril-Ya, passem por necessidades, e precisem de ajuda?”
“Se por dificuldades queres dizer a pobreza que prevalece em um Koom-Posh,
tal é impossível entre nós, a menos que um An tenha, por alguma
91

extraordinária maneira, se desprendido de todos seus meios de vida, não possa


ou não queira emigrar e tenha chegado a cansar seus parentes ou amigos
pessoais ou que se negue a receber ajuda.”
“Certo, então, em tal caso, não toma o lugar de uma criança, ou de um
autômata, e torna-se um trabalhador, um servidor?”
“Não. Sendo assim o consideramos como uma pessoa desafortunada de razão
irrefletida, e o colocamos, às expensas do Estado, em um edifício público em
que possa desfrutar de todas as comodidades e luxos que possam mitigar seus
sofrimentos. Contudo, um An não se agrada nem um pouco ser considerado
fora de sua razão, então conseqüentemente, tais casos ocorrem tão raramente
que o edifício público ao qual me refiro está agora deserto, sem habitantes, e o
último interno ali era um An que me recordo de ter conhecido em minha
infância. Ele não parecia consciente de ter perdido a razão, e escreva Glaubs
(poesia). Quando me refiro a necessidades, quero dizer aquelas necessidades
que um An com desejos maiores que suas condições possa às vezes cogitar --
por pássaros cantores muito caros, ou grandes casas, ou casas de campo
maiores; e a única maneira de ajudar-lhe a satisfazer tais necessidades é
comprar-lhe algo que venda. Assim, há os que, como eu, que sou muito rico,
estão obrigados a comprar muitas diversas coisas que talvez não precise, e
vivem em grande estilo quando talvez preferissem viver de maneira mais
modesta. Por exemplo, as grandes dimensões de minha casa na cidade dão
muito trabalho a minha esposa e mesmo a mim; e estou mesmo obrigado a
mantê-la incomodamente grande, pela razão que, sendo o mais rico da
comunidade, sou indicado para receber os estrangeiros de outras comunidades,
quando nos visitam. Isto ocorre duas vezes ao ano, em que se celebram festas
muito populosas, em que determinadas comemorações são conduzidas e em
que conhecidos espalhados por todas as regiões dos Vril-Ya alegremente se
reúnem por um tempo. Tal hospitalidade, em escala freqüente, é pouco de meu
agrado, e por conseguinte poderia ter sido mais feliz fosse eu menos rico. Mas
todos nós devemos suportar o fardo a nós devido nesta curta passagem pelo
tempo a que chamamos vida. Afinal de contas, o que são uma centena de anos,
mais ou menos, em comparação com as eras que temos de passar depois do
desenlace? Afortunadamente, tenho um filho que gosta de grandes riquezas. É
uma rara exceção à regra geral e tenho de confessar que não o entendo.”
Após esta conversação procurei retornar ao assunto que tanto me preocupava
-- qual seja, as chances de escapar de Zee. Porém meu anfitrião cortesmente
negou-se a falar sobre este assunto e deu ordens para que preparassem nossa
embarcação aérea. Durante nosso trajeto de volta, encontramo-nos com Zee,
quem, não nos tendo encontrado, quando de seu retorno do Colégio dos Sábios,
tinha, fazendo uso de suas asas, partido à nossa procura.
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Seu radiante, mas para mim pouco atraente semblante, como que se iluminou
ao ver-me, e, pondo-se ao lado de nossa embarcação, com suas largas asas
extendidas, disse a Aph-Lin, em tom de reprovação -- “Oh pai, é correto que
arrisque a vida de nosso hóspede em um veículo ao qual não está acostumado?
Ele poderia, com um movimento descuidado, cair por uma das bordas, e Ha!
ele não é como nós, pois não tem asas. se caísse seria para ele fatal.” “Meu
querido”, (continuou ela, dirigindo-se a mim com uma voz suave), “por acaso
não pensou em mim ao colocar sua vida em perigo desta maneira? Pois tens
mesmo quase chegado a fazer parte da minha própria? Nunca mais faça tal
atrevimento, a menos que eu esteja em sua companhia. Que grande apreensão
que você causou-me.”
Neste instante, olhei de soslaio para Aph-Lin, na expectativa que, ao menos,
ele poderia, indignadamente, repreender sua filha por tais expressões de
ansiedade e afeição, as quais, sob quaisquer circunstâncias, poderiam, no
mundo acima da terra, ser considerada como imodesta, nos lábios de uma
jovem mulher, dirigidas a um homem não comprometido com ela, ainda que
de seu mesmo nível social.
Mas, tão confirmados são os direitos das mulheres naquelas regiões e tão
primeiramente entre estes direitos defendem elas o direito de cortejarem, que
Aph-Lin nem mesmo poderia ter pensado em reprovar sua virgem filha, tanto
quanto ele poderia haver ter desobedecido ao Tur. Em verdade, naquele país, o
costume, como havia havia dito, é tudo. Aph-Lin respondeu docemente, “Zee,
o Tish não estava em perigo, e tenho certeza que consiga tomar conta de si
mesmo.”
A isto, Zee respondeu: “eu queria que deixassem que eu cuidasse de você. Oh
coração de meu coração! O pensamento de que corria perigo fez-me
compreender o quanto lhe amo.”
Nunca homem algum se viu em posição tão falsa, como eu naquele momento.
Zee exprimiu-se em voz alta, sendo ouvida por seu pai, bem como pela
criança que manejava a embarcação. Enrubesci de vergonha, por eles e por ela,
e não pude evitar de responder, asperamente: “Zee, você zomba de mim, o que,
por ser hóspede de seu pai, é pouco correto; o que dizes é impróprio de que
uma donzela se dirija a um An de sua própria raça, que não a corteje com o
consentimento de seus pais; mas muito mais impróprias são se dirigidas a um
Tish, que nunca houve por pretender solicitar seu afeto, e que não pode
contemplar-lhe com outros sentimentos que respeito e admiração!”
Aph-Lin fez-me discretamente um sinal de aprovação, porém nada disse.
“Não seja cruel”, exclamou Zee, ainda exprimindo-se sonoramente. “Pode o
amor dominar-se, quando verdadeiramente sentido? Acaso supões que uma
93

donzela Gy oculta um sentimento que a arrebata? Mas de que tipo de país


você vêm?”
Aqui Aph-Lin interpôs-se, gentilmente, dizendo: “Entre os Tish-a, os direitos
do teu sexo parecem não estarem estabelecidos; e, sobre todos os aspectos,
meu hóspede poderia conversar com você mais a vontade se não se sentisse
constrangido pela presença de outras pessoas.”
Ante esta observação, Zee não apresentou resposta, mas, fixando-me com um
suave olhar de reprovação, agitou suas asas e voou em direção de sua casa.
“Eu esperava, ao menos, alguma ajuda de meu anfitrião”, disse eu,
amargamente, “dos perigos a que sua própria filha me expõe.”
“Fiz o melhor que podia para ajudar-lhe. Contradizer uma Gy em seus
assuntos amorosos, é afirmá-la em seus propósitos. Não permite ela que
conselho algum seja posto entre si mesma e o objeto de seus amores.”

CAPÍTULO XXIV

Ao desembarcarmos da embarcação aérea, uma criança aproximou-se de Aph-


Lin, enquanto cruzávamos o hall, pedindo-lhe que assistisse ao funeral de um
parente que tinha a pouco deixado aquele mundo.
Destarte, não tinha eu ainda visto um cemitério ou local onde enterram seus
mortos entre aquele povo e, satisfeito em poder aproveitar tal ocasião, apesar
de triste, para demorar o momento de encontrar-me novamente com Zee,
perguntei a Aph-Lin se eu teria permissão de presenciar com ele o enterro de
seu parente; a menos que, de fato, fosse essa uma das cerimônias sagradas em
que não eram admitidos estranhos à sua raça.
“A partida de um An a um mundo mais feliz”, respondeu meu anfitrião,
“quando, como no caso desta cerimônia de meu parente, que houve por viver
tanto tempo que já não sentia mais prazer nesta vida, é uma cerimônia alegre,
ainda que tranqüila, mais do que uma cerimônia sagrada; de maneira que se
quiser podes acompanhar-me.”
Precedidos pela criança-mensageira, caminhamos pela rua principal até uma
casa, situada a curta distância, e adentrando-nos em um salão, fomos
conduzidos ao andar inferior da casa, onde nos deparamos com várias pessoas
reunidas ao redor da cama onde jazia o defunto. Era um homem velho, quem
tinha, como foi dito, vivido além dos cento e trinta anos. Ao julgar pelo
tranqüilo sorriso em seu rosto, tinha falecido sem nenhum sofrimento. Um dos
filhos, que agora era o chefe da família, e que aparentava estar no vigor da
meia idade, apesar de estar com mais de setenta anos, tomou a frente com uma
94

expressão alegre e disse a Aph-Lin: “que seu pai havia morrido no dia anterior;
que havia visto em um sonho sua filha morta e disse que ansiava com ela
reunir-se e voltar à sua juventude, mais próximos do Supremo Bem.”
Enquanto eles conversavam, atraiu minha atenção uma espécie de câmara de
cor metálica escura, que se via no extremo mais distante da sala. Tinha
aproximadamente vinte pés de comprimento, e de proporção estreita, e toda
fechada ao redor, salvo perto da parte de cima, onde havia pequenos orifícios
pelos quais podia-se ver uma luz avermelhada. Do interior da câmara emanava
uma fragrância rica e perfumada; e enquanto eu conjeturava comigo mesmo
para que propósito servia aquela máquina, todos os relógios da cidade deram a
hora, com suas campainhas musicais e solenes. Em seguida, com o cessar dos
sons, uma música de caráter mais festivo, mas anda de uma alegria suave e
tranqüila, ressoou no ambiente em que estávamos, fazendo vibrar as paredes.
Em tom com a melodia, os presentes elevaram suas vozes em coro. As
palavras do hino eram simples. Não exprimiam lamentações, nem despedidas,
senão uma saudação ao novo mundo, que o defunto precedia aos viventes. Em
efeito, na linguagem dos Vril-Ya o hino funerário chama-se “Canto do
Nascimento.” Então, o cadáver, coberto por uma longa mortalha de aparência
encerada, foi amorosamente levantado por seis dos mais próximos presentes e
conduzido em direção à estranha máquina metálica escura que descrevi.
Apressei em adiantar-me para ver o que acontecia. Uma porta corrediça ou
painel foi levantada em um dos extremos -- o corpo foi depositado no interior
e este ficou sobre uma armação -- a portinhola foi fechada -- o chefe da
família apertou um botão, disposto em uma das laterais -- de pronto fez-se
ouvir um ruído sibilante saindo do interior da máquina; um momento depois
se abriu outra portinhola no outro extremo da máquina que largou uma porção
de um punhado de pó fumegante, em uma espécie de prato, ali colocado para
esta finalidade. O filho maior tomou o prato e disse (e no que eu entendi logo
após, estas eram as palavras usualmente ditas), “contemplem quão grande é o
Criador! A este pó Ele deu forma e vida e alma! Para Ele não é necessário
mais que este pó para que renove a forma, a vida e a alma o ser querido a
quem logo voltaremos a ver.”
Cada presente inclinou sua cabeça e levou a mão ao coração. Em seguida, uma
menina abriu uma pequena porta em uma parede, e pude perceber, no recesso,
prateleiras, nas quais eram depositados muitos pratos iguais àqueles levados
pelo filho, porém todos estavam com uma tampa. Com uma dessas tampas,
aproximou-se uma Gy do filho, e colocou-a sobre o prato fixando-a com uma
trinca. Na tampa havia gravado o nome do defunto, e estes dizeres: --
“Concedido a nós (data do nascimento). Tomado de nós (data da morte).
A porta fechou-se com um som musical e a cerimônia havia terminado.
95

CAPÍTULO XXV

“E tal é”, disse, com minha atenção totalmente impressionada com o que tinha
testemunhado -- “tal, presumo, é a forma usual de cerimônia fúnebre entre
vocês?”
“Nossa forma invariável”, respondeu Aph-Lin. “Qual é entre seu povo?”
“Nós depositamos o corpo no interior da terra.”
“O que!? Degradar a forma que houve por amar e honrar, a esposa em cujo
seio houve por dormir, a tal horrível processo de corrupção?”
“Mas, se alma vive novamente, que importa se o corpo se degrada no interior
da terra ou é reduzido a um punhado de cinzas por meio de um terrível
mecanismo, que funciona, sem dúvida, por meio da ação de Vril?”
“Você responde bem”, disse meu anfitrião, “e não há o que argumentar em
questões de opinião; mas para mim seu costume é horrível e repulsivo, e
apenas serve para dar à morte associações de aspecto sombrio e repugnante.
Além do que, a meu ponto de vista, tal feito tem o valor de conservar uma
recordação do que houve por ser nosso parente ou amigo na mesma morada
em que vivemos. Nós, dessa maneira, podemos sentir mais sensivelmente que
ainda vive, ainda que não mais visivelmente para nós. Mas nosso sentimento
neste tocante, bem como em todas as coisas, são criados por costume. E o
costume não existe para ser alterado por um An sensato, mais do que há de ser
alterado por uma sensata comunidade; não sem as mais graves deliberações,
sustentadas pelas mais graves convicções. É apenas desta maneira que as
alterações deixam de ser feitas apenas por capricho, e, uma vez feitas, são
feitas para sempre”.
Quando voltamos a casa, Aph-Lin convocou algumas das crianças a seu
serviço e enviou-as a vários de seus amigos, requerendo que comparecessem
aquele dia, durante as horas livres, a uma festividade em honra da partida de
seu conhecido para o Supremo Bem. Esta foi a maior e mais alegre reunião
que tive por testemunhar durante minha estada entre os Ana, e esta se
prolongou para além das horas de descanso. O banquete foi servido em um
amplo salão, especialmente reservado para grandes ocasiões. Era uma
comemoração que se diferenciava das nossas, porém não deixava de
assemelhar-se àquelas celebrações que sabíamos haver na época do Império
Romano. Em vez de uma grande mesa para todos, havia pequenas mesas para
oito pessoas. Consideravam que, além deste número de pessoas, a conversação
diminuía e a amizade esmorecia. Os Ana nunca riem ruidosamente, como
observei anteriormente, contudo o alegre rum-rum de suas vozes vindas das
96

várias mesas denunciava que as conversações eram prazerosas. Como não


tinham bebidas estimulantes e eram moderados na alimentação não obstante
serem seus pratos refinados e saborosos, o banquete, propriamente, durou
pouco. As mesas foram recolhidas por meio de aberturas no chão, e logo em
seguida deu-se início a uma sessão musical para aqueles que quiseram
permanecer. Muitos, contudo, retiraram-se: -- alguns dos mais jovens
ascenderam em suas asas, pois o salão carecia de teto, formando danças aéreas;
outros se dirigiram rumo aos diversos apartamentos, examinando as
curiosidades que havia em cada um, ou dividiam-se para formar diversos
grupos para vários jogos de salão, na qual o favorito era um complicado tipo
de xadrez jogado por oito pessoas. Eu misturei-me à multidão, mas era-me
impedido de tomar parte nas conversações pela constante companhia de um ou
de outro dos filhos de meu anfitrião, encarregados de manterem-me longe de
qualquer pergunta comprometedora. Os convidados, contudo, prestaram pouca
atenção à minha pessoa; já estavam deveras acostumados com a minha
presença, pois me viam com freqüência nas ruas, de maneira que havia
deixado de excitar muito sua curiosidade.
Para minha grande satisfação Zee tratava de evitar-me, e evidentemente
buscava despertar ciúmes em mim dando destacada atenção a um jovem An
que (ainda, como é costume entre os Ana, contestava as insinuações de Zee,
com os olhos baixos e corando-se, parecendo demonstrar confusão e timidez
igual a das senhoritas ingênuas de nosso mundo nos mais civilizados países,
com exceção das Inglesas e Americanas) estava evidentemente muito
encantado pela alta Gy, e pronto para saltar um vacilante “sim”, caso ela
fizesse uma proposição. Eu, de minha parte, ardentemente desejava que tal
coisa ocorresse, pois me sentia cada vez mais contrário à idéia de ser reduzido
à cinzas, após ter presenciado quão rapidamente o corpo humano podia
converter-se em um punhado de poeira. Enquanto isso, me divertia
observando as maneiras dos jovens de ambos os sexos. Tive a satisfação de
observar que Zee não era uma muito decidida sustentadora dos mais valorosos
direitos femininos. Para qualquer direção que eu dirigisse os olhos ou fixasse
minha audição, pareceu-me ser a Gy a parte cortejante e o An o cortejado,
mostrando-se tímido e reservado. A impressão de inocência que o An dava a si
mesmo ao ser cortejado, a destreza com que se evadia de perguntas diretas a
palavras de carinho, ou fazia pouco caso dos galanteios que se lhe dirigiam,
teria feito jus a mais consumada namoradeira de nosso mundo. Ambos meus
jovens acompanhantes estiveram constantemente sujeitos a tais influências
sedutoras, e ambos desobrigaram-se com distinguível honra em seu tato e
autocontrole.
97

Disse eu ao filho mais velho, que tinha preferência pelos afazeres mecânicos a
administrar uma grande propriedade, e quem, por demais, possuía um
temperamento eminentemente filosófico, -- “É difícil para mim compreender
como, com sua idade, e com todos os embriagantes efeitos sobre os sentidos,
de música, luzes e perfumes, podes manter-te tão frio ante a tão fervorosa Gy,
que acaba de te deixar, com lágrimas nos olhos, por causa de sua crueldade.”
O jovem An respondeu com um suspiro, “gentil Tish, a maior desgraça na
vida é casar-se com uma Gy quando se está apaixonado por outra.”
“Oh, está você apaixonado por outra?”
“Ha! Sim.”
“E ela não retribui seu amor?”
“Não sei. Às vezes uma olhadela, um sinal, me dá esperança; porém nunca me
disse claramente que me ama.”
“Não sussurrou alguma vez em seu ouvido que você a ama?”
“Oh não! O que você está pensando? De que mundo você vêm? Poderia eu,
dessa maneira, trair a dignidade de meu sexo? Poderia ser eu tão anti-An, tão
perdido em vergonha a minha própria raça, quanto a declarar meu amor a uma
Gy que primeiramente não declarou o seu por mim?”
“Perdoe-me: não havia me dado conta de que levasse a modéstia de seu sexo a
tal ponto. Por acaso um An nunca diz a uma Gy que a ama, até que ela o diga
primeiro?”
“Não me atrevo a dizer que nenhum An o tenha feito; mas quem o faça, ficaria
desonrado aos olhos dos demais Ana e seria secretamente desprezado pelas
Gy-Ei. Nenhuma Gy bem educada o escutaria; consideraria que tal audácia
haveria de ter infringido os direitos de seu sexo, tanto quanto que ultrajado a
modéstia que dignifica seu próprio. Meu próprio caso é irritante”, contestou o
An, “porque a Gy a quem eu amo, não cortejou a ninguém mais; pelo que não
posso menos que pensar que a agrado. As vezes suspeito que não me corteje
porque teme que lhe exija algo insensato em quanto a que renuncie a seus
direitos. Mas, se é dessa maneira, demonstra que não me ama realmente;
porque, quando uma Gy ama verdadeiramente, renuncia a todo direito.”
“Está presente aqui esta jovem Gy?”
“Oh sim. Está sentada ali conversando com minha mãe.”
Olhei na direção que me indicava e vi uma Gy vestida com uma túnica de cor
vermelho brilhante, cor esta que, entre aquele povo, indica que a pessoa que a
usa prefere ficar solteira. Empregam a cor cinza, ou um tom neutro, para
indicar que estão buscando por um esposo. Púrpuras escuras se desejam dar a
conhecer que já fizeram um eleito; azul claro quando se divorciam ou
enviúvam e querem casar-se outra vez. Azul claro, contudo, é muito raramente
visto.
98

Entre aquele povo, cujo tipo de beleza era tão elevado, era muito difícil
destacar uma única pessoa como peculiarmente bela. A eleita de meu jovem
amigo me pareceu de beleza média; mas havia em seu rosto uma expressão
que me agradou muito mais que os semblantes das outras jovens Gy-Ei, em
geral, porque me pareceu menos atrevida -- menos consciente de seus direitos
femininos. Notei que ela, enquanto falava com Bra, olhava de quando em
quando, de soslaio, a meu jovem amigo.
“Ânimo”, lhe disse, “aquela jovem Gy lhe ama.”
“Ay; mas, se ela não me diz, como saber se sirvo para seu amor?”
“Sua mãe sabe de sua intenção?”
“Talvez saiba. Eu nunca lhe disse coisa alguma. Seria contra nosso costume
confiar tal preocupação a uma mãe. Contei a meu pai, quem sabe ele tenha
contado a ela.”
“Permitirias-me que o deixasse, por um momento, e me aproximasse por
detrás de sua mãe e de tua amada? Tenho certeza que estão falando de você.
Não vacile! Prometo que não permitirei que me façam qualquer pergunta até
que retorne a seu lado.”
O jovem An colocou sua mão contra seu coração, tocou-me levemente na
cabeça e permitiu que me afastasse. Sem que me percebessem, esgueirei-me
por detrás das duas mulheres e pude ouvir o que conversavam.
Bra estava falando; dizia ela: “disso não tenho dúvida: ou meu filho, que está
agora em idade de se casar, será arrastado ao matrimônio por alguma das
muitas que o galanteiam, ou se juntará a outros que emigram para algum lugar
distante e não o veremos mais. Se realmente o queres, minha querida Loo,
deves declarar-se.”
“Interesso-me realmente por ele, Bra; porém realmente duvido se poderia
ganhar seu afeto. Ele está muito entretido com seus relógios e invenções; e
não me pareço nem um pouco a Zee, pois sou tão tonta que temo não poder
participar com ele de suas afeições favoritas; se cansará de mim e, ao término
de três anos, se divorciará e então não poderia casar-me novamente com outro,
-- nunca!”
“Não é necessário saber de relógios para fazer a felicidade de um An, que
gosta de tais mecanismos, e que talvez preferisse mesmo abandoná-los do que
divorciar-se de sua Gy. Veja minha querida Loo”, continuou Bra,
“precisamente por sermos o sexo mais forte, dominas ao outro com tal que não
façamos alarde de nossa força. Ainda que superasses à meu filho na
construção de relógios e autômatas, você deveria, como esposa, sempre fazer-
lhe supor, que crê ser ele superior a vós nesta arte. O An tacitamente aceita o
predomínio da Gy em todos os aspectos, menos em sua própria especialidade;
mas se também nisto ela o sobrepõe, ou não manifesta sua admiração pelas
99

habilidades de seu companheiro, talvez ele não a ame por muito tempo. Até
pode ser que dela se divorcie. Mas, quando uma Gy ama verdadeiramente,
prontamente aprende a amar tudo que seu An ama.”
A jovem Gy a isto não apresentou resposta; baixou a cabeça pensativa, então,
de repente, um sorriso brotou de seus lábios; levantou-se, sem dizer nada, e,
cruzando a multidão, chegou onde estava o jovem An que a amava. Segui
atrás dela, mas mantive-me discretamente a alguma distância enquanto os
observava. Algo para minha surpresa, enquanto tentava me lembrar das táticas
de timidez entre os Ana, vi que o pretendido a recebia com um ar de
indiferença. Até mesmo chegou a afastar-se, porém ela o perseguiu e, pouco
tempo depois, ambos estenderam suas asas e se perderam no luminoso espaço
acima.
Neste exato momento aproximou-se de mim o Chefe de Estado, que se
misturava com a multidão, sem sinal algum que o diferenciasse. Acontecia
que não via este grande dignitário desde o dia que me adentrei em seus
domínios, e, lembrando-me das palavras de Aph-Lin sobre as dúvidas deste
sobre se eu devia ou não ser dissecado, um calafrio percorreu todo meu corpo
ao ver o sereno semblante daquele homem.
“Fala-me muito de você, estrangeiro, meu filho Taë”, disse o Tur, pondo
cortesmente sua mão sobre minha cabeça inclinada. “Ele gosta muito de sua
companhia e tenho certeza de que a você não desagrada os costumes de nosso
povo.”
Balbuciei uma resposta, com a qual esperava poder expressar minha gratidão,
pela bondade que tive por receber do Tur e por minha admiração por seus
concidadãos, porém a imagem da lâmina de dissecação brilhou ante minha
imaginação e travou minhas palavras. Uma voz mais suave disse: “O amigo de
meu irmão deve ser querido para mim.” Levantei a cabeça e vi uma jovem Gy,
de uns dezesseis anos, parada ao lado do Magistrado e mirando-me com uma
bela expressão. Ainda não tinha atingido seu pleno desenvolvimento e não era
muito mais alta que eu mesmo (aproximadamente cinco pés e 10 polegadas), e,
devida a esta comparativamente diminuta estatura, a considerei ser a mais
encantadoramente bela Gy que tinha até então visto. Supus que alguma coisa
em minha expressão revelou minha impressão pois, ato contínuo, sua face
tornou-se ainda mais benigna.
“Taë disse-me que”, disse ela, “que até agora você não havia aprendido a
utilizar as asas. Acho uma pena, pois haveria de ter gostado que houvéssemos
voado juntos.”
“Oh”, respondi eu, “nunca poderei eu desfrutar de tal felicidade. Porém, Zee
me garantiu que o poder de usar as asas, sem perigo, é um dom hereditário e
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que hão de passar gerações, antes que um de minha raça possa suster-se no ar
como fazem as aves.”
“Não se preocupe tanto com isso”, replicou a bondosa Princesa, “pois, de
qualquer maneira, há de chegar um dia em que mesmo Zee e eu, todas
devamos nos resignar a não utilizar nunca mais nossas asas. Quem sabe,
quando chegue tal dia nos agrade se o An que escolhemos tampouco as
utilize.”
Nisto o Tur nos deixou e perdeu-se na multidão. Começava a sentir-me a
vontade com a encantadora irmã de Taë; e de certa maneira a surpreendi pelo
atrevimento de meus galanteios, ao lhe dar a resposta “que nenhum An que ela
escolhesse poderia usar suas asas para dela se afastar. Está tão fora dos
costumes dos Ana dizerem tais gentilezas à uma Gy ate que ela declare sua
paixão por ele, e conseqüentemente o aceite como seu prometido, que a jovem
donzela pareceu ficar bem confusa por alguns instantes. Contudo, não pareceu
desagradar-se. Ao sair de sua surpresa, ela convidou-me para ir junto com ela
a um dos quartos menos concorridos, onde podíamos apreciar o canto de
pássaros. Segui-a, pois ela partiu sem me esperar, conduzindo-me a ma
câmara quase deserta, onde, na parte central, uma fonte de nafta fazia seu
espetáculo; ao redor desta estavam dispostos diversos confortáveis divãs e as
paredes do quarto abriam-se à um aviário em que pássaros cantavam suas
harmoniosas melodias. A Gy sentou-se em um dos divãs, e eu sentei-me a seu
lado. “Taë contou-me”, disse ela, “que Aph-Lin estabeleceu uma lei em sua
casa que você não deveria ser questionado sobre o país donde vêm ou mesmo
as razões porque nos visita. É isso mesmo?”
“De fato.”
“Posso eu, ao menos, sem infringir esta lei, perguntar-lhe se as Gy-Ei de seu
país têm a mesma cor pálida de sua pele e não são de maior estatura que você?
“Não penso, Oh bela Gy, que eu infringiria a lei de Aph-Lin, que me obriga a
mim muito mais que qualquer outra pessoa, se lhe respondesse a esta pergunta
tão inocente. As Gy-Ei de meu país são de cor de pele muito mais bela do que
a minha, e são de média estatura, e de ao menos uma cabeça mais baixas que
minha altura.”
“Mas, dessa forma, como podem elas serem mais fortes que os Ana dentre
vocês. Então, suponho que sua superioridade na força Vril compense tal
desvantagem em estatura?”
“Lá não se conhece a energia Vril como entre vocês. Mas, ainda assim, têm
elas muito poder em meu país, e um An têm poucas chances de ser feliz em
sua vida, se não se deixar, em certa medida, governar-se por sua Gy.”
“Você fala de maneira muito sentimental”, disse a irmã de Taë, com um tom
de voz meio triste, meio petulante. “Então você é casado, sem dúvida?”
101

“Não, -- certamente que não.”


“Nem comprometido?”
“Tampouco comprometido.”
“Seria porque nenhuma Gy tenha se declarado a você?”
“Em meu país, a Gy não se declara, o An o faz primeiro.”
“Que estranha perversão das leis da natureza!” disse a donzela, “e que falta de
modéstia de seu sexo. E nunca houve de declarar-se ou de amar a uma Gy
mais que a outra?”
A isto, senti-me um tanto embaraçado ante tão ingênuas perguntas, e disse:
“Perdoe-me, mas acho que estamos começando a faltar ao mandado de Aph-
Lin. Tal lhe responderei, mas lhe peço que não faça mais perguntas. Uma vez
tive tal preferência e declarei-me, porém, ainda que a Gy tivesse me aceitado
de bom grado, seus pais negaram consentir-me sua permissão.”
“Os pais! Quer dizer que, de fato, podem os pais interferirem na escolha de
suas filhas?”
“De fato podem, e o fazem com muita freqüência.”
“Não me agradaria viver em tal país”, disse a Gy, solenemente; “e espero que
você nunca retorne para lá.”
“Baixei minha cabeça em silêncio. Gentilmente a Gy ergueu-a com sua mão
direita, e olhou-me com ternura. “Fique conosco”, disse; “fique conosco e
serás feliz.”
O que eu poderia ter, naquele instante, respondido, ou quais perigos de eu ser
reduzido a cinzas eu poderia ter me exposto, eu ainda tremo ao pensar, quando
percebi que a luz da fonte de nafta obscureceu-se pela sombra de asas, e Zee,
voando pelo teto aberto, pousou ao nosso lado. Ela não disse nada, mas,
tomando-me pelo braço com sua poderosa mão, levou-me com ela, como faria
uma mãe com uma criança travessa e levou-me pelo salão a um dos corredores,
em que, pelo mecanismo que eles geralmente preferem às escadas, ergueu-nos
até meu próprio quarto. Isto feito, Zee soprou em minha fronte, tocou em meu
peito com sua varinha, e instantaneamente mergulhei em um sono profundo.
Ao despertar, horas mais tarde, e ouvir o canto dos pássaros na passarinheira
contígua, vivamente veio a meu pensamento a lembrança da irmã de Taë, de
seu olhar gentil e suas carinhosas palavras. E é tão impossível para um nascido
e criado em nosso mundo e sociedade desprender-se das idéias inspiradas pela
vaidade e ambição que comecei, instintivamente, a fazer incríveis devaneios
mentais.
“Ainda que fosse um Tish”, tais eram minhas meditações -- “estava claro que
Zee não era a única Gy a quem minha aparência podia cativar. Evidentemente
sou cortejado por uma Princesa, donzela real daquele povo, a filha do monarca
absoluto, cuja autocracia tão disfarçadamente eles tentam disfarçar usando o
102

título republicano de Magistrado Chefe. Se não fosse pelo repentino


aparecimento daquela horrível Zee, esta dama real teria se declarado a mim
naquele instante formalmente; e, ainda que estivesse muito bem para Aph-Lin,
quem é apenas um Ministro subordinado, um mero Comissário da luz, que me
ameaçasse de destruir-me caso aceitasse a mão de sua filha, o Soberano, cuja
palavra é lei, poderia obrigar a comunidade a abolir todo costume que
proibisse o matrimônio com alguém de uma raça estranha, o que, em si
mesmo, é uma contradição à sua pretendida igualdade de nível social.
Não há razão para supor que sua filha, que se exprimiu com tanto assombro da
interferência dos pais, não tivesse influência suficiente sobre seu Pai Real para
salvar-me da combustão a que Aph-Lin poderia me infligir. E, se fosse eu
exaltado por tal aliança, quem sabe o Monarca não me elegesse como seu
sucessor? Por que não? Poucos dentre esta raça de indolentes filósofos
agradam-se da carga de tal responsabilidade. De toda maneira, até poderiam
sentir-se satisfeitos de ver o supremo poder colocado em mãos de um total
estranho que tivesse experiência de outras e mais ativas formas de existência;
e, uma vez eleito, que reformas instituiria eu! Que adições a esta realmente
prazerosa, porém tão monótona comunidade meu conhecimento dos costumes
das nações civilizadas da superfície poderia fazer! Realmente me agradam
muito os esportes coletivos de campo. E quanto à competição, não são as
caçadas passatempo de reis? Quantas variedades de estranhos passatempos
este mundo poderia oferecer! Quanto excitante seria abater criaturas que eram
sabidas viverem na superfície antes mesmo do Dilúvio! E de que maneira? Por
aquele terrível Vril, em que, por falta de transmissão hereditária, eu nunca
poderia utilizar de forma competente? Não, mas poderia usar um carregador
manual, que estes engenhosos mecânicos poderiam não somente construir,
mas, com certeza, aperfeiçoar; não, precisamente acho que vi um destes no
museu. Com certeza, como rei absoluto, poderia proibir o uso de Vril, salvo
em caso de guerra. A propósito da guerra; é tão perfeitamente um absurdo
limitar um povo tão inteligente, tão rico, e tão bem armado nos estreitos
limites de um território somente suficiente para dez ou doze mil famílias. Não
é esta restrição uma mera extravagância filosófica contrária a aspiração inata
na natureza humana, e que foi intentada, porém não bem sucedida, na
superfície, pelo já falecido Sr, Robert Owen*. Obviamente que ninguém iria
declarar guerra a nações vizinhas tão bem armadas como nós mesmos. Mas
então, o que seriam daquelas regiões habitadas por raças que não conhecem o
Vril e que, aparentemente, assemelham-se, em suas instituições democráticas,
a meus concidadãos norte-americanos? Tais regiões poderiam ser invadidas,
sem perturbar as nações Vril, nossas aliadas; apropriar-mo-nos de seus
territórios e extender nossos domínios às regiões mais distantes desta terra
103

interior, e dessa maneira, reger um Império em que o sol nunca se punha (em
meu entusiasmo, me esquecia que, naquela região não havia sol a se pôr). Em
quanto à fantástica idéia de não conceder fama ou renome a algum indivíduo
eminente, pela razão, de que tais concessões de honrarias suscitariam
competição na busca das mesmas, estimularia ferozes paixões e dificultaria a
felicidade da paz -- tal opinião opõe-se aos elementos mesmos, não apenas
humanos, mas até mesmo dos animais inferiores, em que todos se bem
tratados, correspondem com estímulo e louvores. Que renome seria dado a um
rei quem dessa forma estendesse seu Império! Chegariam a considerar-me um
semideus.
Nesta ordem de idéias, veio-me à mente outra das fantásticas noções daquele
povo, que era regular a vida pelo Deus Único, de uma maneira que, claro,
ainda que nós cristãos firmemente acreditamos, mas nunca levamos em
consideração, resolveria que uma tão iluminada filosofia me impeliria a abolir
uma religião pagã tão supersticiosa e contraditória com o pensamento
moderno e a ação prática.
Refletindo sobre estes vários projetos, pensei quanto me agradaria naquele
momento aguçar minha percepção com um bom copo de whisky com gelo.
Trata-se pouco que habitualmente tivesse eu o costume de beber, mas
certamente há momentos em que um pouco estimulante alcoólico,
acompanhado de um bom cigarro, ativa a imaginação. Sim! Certamente entre
suas diversas ervas e frutas haveria alguma que se pudesse extrair algum
agradável álcool vínico* e que, junto com um filé de carne de cervo (que
ofensa à ciência rejeitar alimento de origem animal, que nossos médicos
recomendam para a estimulação dos sucos gástricos da humanidade), seria
certamente suficiente para uma muito prazerosa refeição. Também, ao invés
daqueles antiquados dramas representados por crianças amadoras, com certeza,
quando fosse eu rei, haveria de introduzir nossa moderna ópera e grupos de
dança, pois certamente conseguiria encontrar, dentre as nações que viesse a
conquistar, jovens fêmeas de menos estatura e capacidade que estas Gy-Ei -- e
que não portassem Vril, e ainda, que não obrigassem alguém a casar-se com
elas.
Encontrava-me tão completamente entretido nestas e outras reformas políticas,
sociais e morais, destinadas a trazer entre estes povos das regiões inferiores as
bendições da civilização como é conhecida no mundo superior, que não tinha
me dado conta que Zee havia entrado no quarto, até que escutei um profundo
suspiro e, levantando meu olhar, vi que estava parada próximo a meu divã.
Não preciso dizer que, de acordo com os costumes daquela gente, uma Gy
pode, sem faltar o decoro,visitar um An e seu quarto; contudo, seria
considerado de atrevido e imodesto, ao último grau, se um An entrasse no
104

quarto de uma Gy, sem permissão prévia. Afortunadamente, ainda estava com
as roupas de quando Zee me colocou para dormir. Não obstante, me irritou
muito e mais me surpreendeu sua visita, que fez-me perguntar-lhe com rudeza
o que queria.
“Peço-lhe, meu amado, que não se irrite.” Disse ela, “pois estou muito sentida.
Não consegui dormir desde que nos separamos.”
“É suficiente que tenha se dado conta de sua vergonhosa conduta para comigo,
como hóspede de seu pai, para que percas o sono. Onde estava a afeição que
pretendia ter por mim, ou mesmo a polidez que os Vril-Ya tanto se orgulham,
quando, tomando por vantagem a superioridade física característica do seu
sexo, e dos detestáveis e inadvertidos poderes que as forças de Vril colocam
em seus olhos e mãos, fez por humilhar-me ante os convidados reunidos, ante
sua Alteza Real, -- quero dizer, a filha de seu Magistrado Chefe, -- levando-
me para a cama como se fosse eu uma criança travessa e, pondo-me a dormir
sem pedir minha permissão?”
“Seu mal agradecido. Você me repreende por demonstra-lhe provas de meu
amor? Chega você a pensar que, mesmo que não me afetasse qualquer ciúme,
o qual quem ama sente pela pessoa cortejada até que tem a certeza que esta já
lhe pertence, seria eu indiferente aos perigos que as audaciosas investidas
daquela estúpida menina pudessem expor-lhe?”
“Espere aí! Já que trouxe à tona a questão dos perigos, talvez não seja preciso
dizer que os mais iminentes perigos a mim mesmo, provêm de você mesma,
ou ao menos se acreditasse eu em seu amor e aceitasse as investidas que dirige
para mim. Seu pai bem me disse que, neste caso, seria certamente convertido
em um punhado de cinzas, com tanta compaixão quanto a que recebeu o réptil
que Taë pulverizou com um disparo de sua varinha.”
“Não permita que o medo esfrie seu coração para comigo”, exclamou Zee,
pondo-se de joelhos, e segurando minha mão direita em suas largas mãos.
“Certamente, é verdade que não possamos nos casar como fazer aqueles que
são de uma mesma raça; é certo que nosso amor teria de ser de um tipo puro,
igual aquele que, em nossa crença, existe entre amantes que se reúnem em
outra vida além dos limites da existência material, quando a vida acaba. Mas
não seria felicidade suficiente estarmos unidos em pensamento e coração?
Escute: Acabei de falar com meu pai. Ele consente com nossa união nestes
termos. Tenho eu suficiente influência com o Colégio dos Sábios para
assegurar que qualquer pedido do Tur não interferisse na livre escolha de uma
Gy, contra o casamento desta com um indivíduo de outra raça, mas garantindo
o casamento das almas. Oh, acaso pensa que o amor necessita de imodesta
união? Não se trata apenas de eu querer estar a seu lado nesta vida, de estar
105

com você e repartir nossas alegrias e tristezas? Veja: o que lhe peço é um laço
que nos unirá para sempre no mundo dos imortais. Você me rejeitaria?
Enquanto ela assim me falava, de joelhos, a expressão de seu rosto havia
mudado; não havia mais a rigidez de seu porte, mas sim dela emanava uma
divina luz, como a de um imortal brilhando em sua forma humana. Tal
assombrou-me como se um anjo tivesse tomado a forma de uma mulher, e
após algum tempo neste estado, balbuciei algumas palavras evasivas de
gratidão e busquei, tão delicadamente quanto possível, mostrar-lhe quão
humilhante seria minha posição, entre os da sua raça, como um marido que
nunca teria o direito de ser chamado de pai.
“Ainda”, disse Zee, “esta comunidade não constitui o mundo todo. Nem
tampouco estão todas as populações compreendidas na liga dos Vril-Ya. Por
você renuncio a meu país e meu povo. Voaremos para algum lugar onde
estejas seguro. Sou bastante forte para levá-lo em minhas asas cruzando
desertos. Sou bastante hábil para abrir caminho por entre as rochas, e criar
vales onde possamos construir nosso lar. Solitude e uma cabana contigo
seriam para mim a sociedade e o universo. Ou seria que preferisse retornar a
seu próprio mundo, sobre a superfície da terra, exposto a estações instáveis, e
regido pela mudança dos orbes, que constituem, por sua descrição, a
característica instável destas regiões selvagens? Se for desta maneira, me diga,
e abrirei caminho para seu retorno, de maneira que eu seja sua companhia
nesta região, companheira de sua alma; companheira de viagem a um mundo
onde não há separação ou morte.”
Não pude menos que sentir-me tocado por tão pura e delicada ternura, no
instante que ela se exprimia. Sua doce entonação poderia ter convertido em
musicais os sons mais rudes da língua mais áspera. Repentinamente, me
ocorreu que poderia utilizar-me da disposição de Zee, para efetuar um retorno
rápido e imediato ao mundo superior. Porem, bastou um breve momento de
reflexão para dar-me conta de quão desonroso e baixo seria tal atitude, que
afastaria à Zee de seus familiares e de um lar onde havia sido eu tratado tão
cortesmente, para levá-la a nosso mundo, onde não poderia ser feliz. Por outra
parte, não podia reconciliar-me a um amor tão espiritual e renunciar aos afetos
humanos. Com este sentimento de dever ante a Gy, misturava-se outro
sentimento de dever para com a raça a que pertenço. Poderia eu introduzir ao
mundo superior um ser tão formidavelmente dotado, um ser que, com a ação
de sua varinha, podia, em menos de uma hora reduzir a um punhado de cinzas
a New York e sua gloriosa Koom-Posh? Ainda que se tomasse sua varinha,
poderia, graças à sua ciência, construir facilmente outra, conquanto todo seu
corpo estava carregado com os mortais relâmpagos que colocavam aquele
delicado mecanismo e funcionamento. Se perigosa era para as cidades e
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populações da terra, não menos perigosa podia chegar a ser para mim, em
quanto a que seus afetos esfriassem ou fossem alterados por ciúmes. Tais
idéias, que tanto custam expressar, rapidamente passaram por meu
pensamento e decidiram minha resposta.
“Zee”, disse, com o tom de voz mais doce que pude exprimir-me, e,
encostando meus lábios em sua mão que segurava a minha, “não encontro
palavras para expressar quão profundamente sinto e quão honrado me
considero por um amor tão desinteressado e abnegado, minha melhor maneira
de lhe retribuir é que lhe fale com total franqueza. Cada nação tem seus
costumes. Os costumes da sua não permitem que eu me case com você. Os
costumes da minha também se opõem igualmente à união entre pessoas de
raças tão amplamente diferentes. Por outro lado, ainda que não seja
considerado de pouca coragem entre meu povo, ou lidando com situações de
perigo com as quais estou familiarizado, não posso deixar de cogitar, sem um
calafrio de horror, a possibilidade de construir um lar conjunto a você nas
entranhas de alguma caótica região, em conflito com todos os elementos da
natureza, fogo, água e gases venenosos, e ainda com a probabilidade que, a
qualquer momento, enquanto que você estivesse desbastando rochedos ou
canalizando Vril para lâmpadas, eu pudesse ser devorado por um Krek,
perturbado em seu esconderijo por nossos afazeres. Eu, um mero Tish, não
mereço o amor de uma Gy tão brilhante, tão instruída, tão poderosa como
você. De fato, não mereço tal amor, por não poder corresponder-lhe.”
Nisto, Zee soltou minha mão, ergueu-se e escondeu seu rosto para ocultar sua
emoção; em seguida dirigiu-se em silêncio até a porta, ao que nesta
repentinamente se deteve, como se impelida por uma nova inspiração.
Retornou para perto de mim e disse-me, em tom de confidencia: --
“Disse você que falaria com total franqueza. Então, com total franqueza,
responda-me esta pergunta. Se não podes me amar, acaso ama outra?”
“Certamente lhe digo que não.”
“Acaso não ama a irmã de Taë?”
“Nunca a havia visto antes da noite passada.”
“Isto não é resposta. O amor é mais rápido que Vril. Você hesita ao responder-
me. Não pense ser apenas por motivos de ciúmes que me prontifico a alertar-
lhe. Caso a filha do Tur chegasse a declarar seu amor por você -- ou se, em
sua ignorância confiasse a seu pai a predileção que sente por ti – não teria ele
outra atitude senão ordenar automaticamente sua destruição, conquanto é ele
especialmente encarregado do dever de zelar pelo bem da comunidade, e que
não poderia permitir uma herdeira dos Vril-Ya desposar o filho de um Tish-A,
em um tipo de união que não restringisse-se à mera união de almas. Há! Então,
para você não haveria escapatória. Não possui ela suficiente força em suas
107

asas para suster-lhe no ar, nem mesmo a ciência para fazer-lhe uma habitação
em regiões ermas. Acredite, pois neste momento fala com você minha
amizade, e meu ciúmes está silente.”
Após estas palavras, Zee deixou-me. E, ao refletir sobre o que acabava de
dizer-me, já não pensava mais em ascender ao trono dos Vril-Ya, ou de
reformas políticas, sociais ou morais que pudesse eu ter instituído na
qualidade de Soberano Absoluto.

CAPÍTULO XXVI

Após relembrar esta conversação com Zee, adquiri uma profunda melancolia.
Desvaneceu-se o curioso interesse com que, até então, tinha observado a vida
e os costumes daquela maravilhosa comunidade. Não podia desfazer de minha
mente a consciência que eu estava em meio a um povo que, apesar de sua
bondade e cortesia podiam, a qualquer momento, destruir-me, sem escrúpulos
nem compaixão. A vida virtuosa e pacífica deste povo que, ainda que nova
para mim, tinha me parecido tão grandemente contrastante com as discussões,
as paixões e vícios do mundo superior, neste momento começava a oprimir-
me, com uma sensação de aborrecimento e monotonia até mesmo a serena
tranqüilidade do ar resplandecente pesava em meu estado de espírito. Ansiava
por alguma mudança; que fosse o frio do inverno, ou uma tempestade ou
mesmo completa escuridão. Comecei a desconfiar que, quaisquer que fossem
nossos sonhos de perfeição, nossas incansáveis aspirações rumo a uma melhor,
mais elevada e calma forma de conduzir a vida, nós, mortais da superfície, não
estaríamos treinados ou mesmo preparados para aproveitar por muito tempo a
felicidade a que sonhamos ou mesmo aspiramos.
Agora, conquanto ao estado social dos Vril-Ya, é fato único a ressaltar como
eles conseguiram unificar e colocar em harmonia um sistema onde
aproximadamente todos os objetivos que os diversos filósofos do mundo
superior houveram por colocar ante a humanidade, como sendo os ideais de
um Futuro Utópico. Este era um sistema em que a guerra, com todas as suas
calamidades, era considerada algo impossível de acontecer, -- um sistema em
que a liberdade individual e coletiva era garantida em um grau máximo, sem
nenhuma das animosidades que fazem a liberdade, no mundo superior,
depender da perpétua luta entre partidos opostos. Neste povo, a corrupção, que
corroia as democracias, era tão desconhecida tanto quanto os descontentes que
minavam os tronos das monarquias. A igualdade não era um nome,
meramente; senão uma realidade. Os ricos não eram perseguidos, pela razão
108

que não havia quem os invejasse. Os problemas relacionados com a classe


trabalhadora, até então sem solução na terra da superfície, causa de tanto
antagonismo e ressentimento entre as classes, foram resolvidos pelo simples
processo -- de fazer desaparecer completamente a distinção e separação dos
trabalhadores como classe. Todos tinham trabalho e trabalhavam no que lhes
aprazia. Seus inventos mecânicos, construídos sobre princípios que não pude
averiguar, eram movidos por um agente infinitamente mais poderoso e
infinitamente mais fácil de controlar do que até hoje pudemos manejar da
eletricidade ou vapor, e operados por crianças cuja vontade nunca podia ser
superada, mas que ao contrário, divertiam-se com seus empregos, como se
para eles fosse um esporte e diversão, de maneira suficiente para que criassem
uma Riqueza Pública, tão inteiramente devotada ao bem-estar geral da
comunidade que nunca uma reclamação sequer foi ouvida. Os vícios que
corroíam nossas cidades, eram ali desconhecidos. As formas de passatempo
eram abundantes, ainda que todas muito inocentes. Diversão alguma dava
lugar à embriaguez, a desordens ou enfermidades. O amor existia, ardente em
sua persecução; e fiel, uma vez conseguido seu objeto. O adúltero, o viciado, a
mulher de vida fácil, eram fenômenos tão desconhecidos naquela comunidade,
que as palavras para designá-los tinham de ser buscadas na literatura antiga,
escrita milhares de anos antes. Todos aqueles que tenham estudado as teorias
filosóficas da terra, sabem que todos estes estranhos caracteres da vida
civilizada fazem não mais que trazer à tona idéias que já houveram por terem
sido abordadas, delineadas, ridicularizadas, contestadas; algumas vezes,
parcialmente tentadas, e até mesmo postas em livros fantásticos; porém nunca
deram resultado prático. Nem foram todos estes os passos dados em direção a
perfectibilidade teórica que esta comunidade teve que fazer. Era uma firme
crença de Descartes, de que a vida do homem podia ser prolongada, não, de
fato, nesta terra, à duração eterna, mas sim ao que ele costumava denominar
de ‘idade patriarcal’, e que modestamente definia ser de 100 a 150 anos como
duração média. Pois bem, mesmo este sonho dos sábios foi alcançado pelos
Vril-Ya -- não, mais que atingido; pois o vigor da meia idade mantinha-se
mesmo depois que o período de um século já havia passado. Com a
longevidade combinava-se outra grande bendição -- tinham saúde constante.
As enfermidades daquela raça eram eliminadas com facilidade por meio de
científicas aplicações do elemento, tanto vitalizante quanto destruidor, que
chamam de Vril. Mesmo este conceito não é desconhecido sobre a terra, ainda
que geralmente, houve por ser limitado a entusiastas e charlatões, e divaga por
entre confusas noções de mesmerismo, força ódica, etc. passando por alto por
tais dispositivos como as asas, que qualquer garoto de escola sabe que foram
tentadas e fracassaram desde o período da mitologia ou período pré-histórico,
109

ocupar-me-ei de questão mais delicada, ultimamente proclamada como


essencial para a perfeita felicidade de nossa espécie humana, por duas das
influências mais perturbadoras e potentes da sociedade da superfície do
planeta, -- o Feminismo e a Filosofia. Refiro-me aos Direitos da Mulher.
Os juristas estão de acordo que é irrelevante falar de direitos quando não
existem poderes correspondentes para os aplicarem; e acima da terra, por uma
ou outra razão, o homem, seja por sua força física, seja no manejo de armas
ofensivas e defensivas, ou quando há questões de disputa pessoal, pode, via de
regra, dominar a mulher. Porém, no seio deste povo, não há dúvida alguma a
respeito dos direitos da mulher, pela razão, como disse anteriormente, de ser a
Gy, quanto ao porte físico, maior e mais forte que o An; bem como sua força
de vontade muito mais resoluta que aquele, e, como a vontade é fator essencial
para a direção da energia Vril, por tal razão, pode ela opor sobre ele de
maneira muito mais potente do que ele sobre ela este elemento místico, que a
arte pode extrair das propriedades ocultas da natureza. De conseguinte, todas
aquelas questões que nossas feministas da superfície lutam como sendo
direitos das mulheres, são considerados fatos resolvidos nesta alegre
comunidade. Além dos poderes físicos, as Gy-Ei têm (ao menos na juventude)
desejo de aprender e realizar muito mais que os Ana; por tal razão são elas os
eruditos de academias, professores -- em resumo, constituem a porção
intelectual da comunidade.
É claro, em tal estado social a mulher estabelece, como tive explicado, seu
mais valioso privilégio, qual seja, aquele de poder escolher e cortejar seu
parceiro conjugal. E, sem tal privilégio, talvez todos os outros não teriam
utilidade. Agora, de fato, sobre a terra, nós poderíamos considerar a insensatez
que talvez tal mulher, assim tão poderosa e privilegiada, e que, tendo feito sua
escolha e nos desposado, talvez fosse excessivamente imperiosa e tirânica.
Porém isto não com as Gy-Ei: A Gy, uma vez casada, abandona suas asas e se
converte na mais doce das companheiras. Não há poeta capaz de conceber em
suas obras visões de tal beatitude conjugal, com tanta docilidade,
complacência e simpatia como as que punham as Gy em descobrir e satisfazer
os gostos e caprichos mais insignificantes de seus esposos. Por último, entre as
características mais importantes dos Vril-Ya, em comparação com nossa
humanidade -- por último, e mais importante para a condução de seus afazeres
da vida cotidiana e manutenção da paz de sua comunidade, é a crença
universal de todos na existência de uma Deidade benéfica e misericordiosa e
de um mundo futuro, em comparação com o qual, um século ou dois são
momentos demasiado fugazes para desperdiçar em busca de fama, poder ou
riqueza. Com esta combinavam outra crença geral, a saber: que como não
podiam saber nada sobre a natureza de tal deidade, salvo o feito de sua
110

Bondade Suprema, nem sobre o mundo futuro, além do fato de uma existência
feliz neste lugar, sua razão os proibia de toda discussão sobre questões tão
insolúveis. Dessa maneira eles haviam alcançado, nas entranhas da terra, o que
nenhuma comunidade sob a luz das estrelas houve por alcançar -- todas as
bendições e consolações de uma religião sem qualquer dos males e
calamidades que ocorrem pelo conflito entre uma religião e outra.
Dessa maneira, então, poderia ser de todo impossível negar que o estado de
existência entre os Vril-Ya, em seu conjunto, fosse imensamente mais feliz
que o das raças supraterrestres, e que, materializando os sonhos de nossos
filósofos mais entusiastas, quase aproximar-se-ia do conceito poético de
algum tipo de Ordem Angelical. E ainda, se pegássemos um milhar de nossos
melhores e mais filosóficos seres humanos que pudéssemos encontrar em
Londres, Paris, Berlim, Nova York, ou mesmo em Boston, e os colocássemos
como cidadãos desta beatífica comunidade, acredito que, em menos de um ano
talvez morressem de tédio, ou tentariam engendrar alguma revolução pela qual
tentariam militar contra o bem da comunidade, e seriam convertidos em cinzas
por ordem do Tur.
Contudo, de maneira alguma, tenho a intenção de, por meio desta narrativa,
insinuar qualquer ignorante contrariedade à raça a qual pertenço. Tenho, ao
contrário, esforçado-me para deixar claro que os princípios que regulam o
Estado Social dos Vril-Ya impedem que sejam produzidos em seu seio
aqueles exemplos individuais de grandeza humana, que adornam os anais do
mundo superior. Onde não houvesse guerras, não poderia haver um Hannibal,
um Washington, um Jackson, um Sheridan; -- em estados tão felizes que, nem
temem perigo algum, nem desejam mudanças de espécie alguma, não podiam
nascer homens como Demosthenes, Webster, Sumner, um Wendel Holmes, ou
um Butler; e, onde uma sociedade atinge um tal nível de moral, em que não
existem crimes e tristeza e tragédias que possam dar alimento à indulgência e
pesar, em que não existam vícios manifestos ou tolices, sobre os quais a
comédia pudesse exercitar sua divertida sátira, não haveria oportunidade de
produzir um Shakespeare, ou um Moliére, ou uma Sra. Beecher Stowe. Se
bem não desejo falar mal de meus compatriotas sobre a terra, fazendo ver até
que ponto os motivos que impulsionam as energias e ambições dos indivíduos,
em uma sociedade de contenda e de conflito, se amortizam e se anulam numa
sociedade que aspira a assegurar, para todos, a calma e a felicidade, que
supomos ser dotes dos imortais, tampouco pretendo apresentar as
comunidades dos Vril-Ya como forma ideal de sociedade política, em direção
ao qual nossos esforços de reforma devessem ser dirigidos. Pelo contrário,
pela razão mesma de termos confundido, no transcurso das eras, os elementos
que compõem o caráter do ser humano, que nos seria de todo impossível
111

adotar o modo de viver dos Vril-Ya ou de reconciliar nossas paixões com a


maneira de pensar daquela raça; -- é minha convicção que aquele povo, apesar
de, originalmente, não apenas ser de nossa raça humana, mas, como a mim
ficou claro pelas raízes de sua linguagem, provinda das mesmas raízes
ancestrais da grande família ária, a qual, em diversificadas correntes tem-se
desenvolvido como a forma dominante de civilização do mundo; e que, tendo,
de acordo com seus mitos e tradições, passado por etapas de sociedade
familiar a nós mesmos, -- tenha, se desenvolvido em uma espécie distinta em
que seria impossível que qualquer comunidade do mundo superior pudesse
amalgamar-se: e ainda, que se chegassem a sair daquelas regiões profundas
para a luz do dia, iriam eles, em acordo com suas próprias formas de tradição
de suas crenças em seu Supremo Destino, destruir e substituir as raças de
homens agora existentes no planeta.
Diria alguém, quem sabe, que haveria mais de uma Gy a quem agradaria um
tipo tão ordinário de nossa raça supraterrestre como eu; e que, mesmo que os
Vril-Ya surgissem sobre a Terra, talvez pudéssemos ser salvos de sermos
exterminados por meio da mistura de raças.
Mas esta é uma opinião demasiadamente extraordinária. Os casos de tais
misturas seriam tão raros quanto seria a miscigenação entre os imigrantes
Anglo-Saxões e os Índios pele-vermelha. Nem mesmo haveria tempo para tais
misturas entre povos. Os Vril-Ya, ao surgirem na terra, induzidos pelo encanto
de um céu iluminado pela luz do sol a formarem suas povoações sobre a terra,
iniciariam de imediato sua obra de destruição, se apoderariam dos territórios já
cultivados, e sem qualquer tipo de escrúpulo, aniquilariam a todos os
habitantes que resistissem a tal invasão. Tendo em conta o desprezo que
sentem por instituições tais como o Governo Popular ou Koom-Posh e pelos
valorosos habitantes de meu querido país, acredito eu que, se os Vril-Ya
aparecessem em primeiro lugar na Livre América, como é a porção eleita da
terra, com certeza total seriam induzidos a se porem em ação, -- e afirmar:
“esta é a parte do globo que tomamos. Cidadãos deste Koom-Posh, abram
caminho para o desenvolvimento da raça dos Vril-Ya.” Naturalmente, meus
bravos compatriotas decidiriam lutar e opor-se e, em menos de uma semana
não restaria um único homem com vida, para disputar a bandeira de listras e
estrelas.
Eu agora via Zee muito pouco, com exceção das refeições, quando a família se
reunia, momento em que era muito reservada e silenciosa. Desta maneira,
desvaneciam-se meus temores quanto ao perigo que eu corria, ao me expor a
um afeto que eu não havia encorajado, nem merecido; porém, persistia e
crescia minha depressão de ânimo e cada vez ansiava mais e mais escapar-me
para o mundo superior, e, por mais que arrebentasse meus miolos de tanto
112

pensar uma forma de colocar tal em prática, sempre foi em vão. Nunca me era
permitido andar desacompanhado; de modo que não tive, sem sequer uma
oportunidade de retornar ao lugar por onde havia descido, para ver se
conseguia encontrar algum modo de ascender até a mina. Nem mesmo durante
as Horas de Descanso, quando a casa era mantida trancada durante o sono,
pude eu dirigir-me ao andar inferior da residência onde estava minha
habitação, pois não sabia como ordenar o autômata que ficava ridiculamente
parado, próximo a certa distância, encostado junto à parede, e nem sabia como
funcionar os controles mediante os quais se punham em movimento as
plataformas que faziam as funções de escada. Propositalmente, haviam-me
negado o conhecimento de como funcionavam tais mecanismos. Oh, se ao
menos eu tivesse sido capaz de ter apreendido como usar as asas, que tão
livremente até mesmo os infantes sabiam usar; talvez tivesse tido a chance de
escapar pela janela, chegar até o rochedo e projetar-me para cima através da
abertura do precipício, cujas bordas perpendiculares não ofereciam apoio
algum aos pés para qualquer tipo de escalada!

CAPÍTULO XXVII

Um dia, enquanto me recostava sozinho e ruminava alguns pensamentos em


meu quarto, Taë, repentinamente, apareceu voando por uma janela aberta e
sentou-se em um divã perto de onde eu estava. Sempre me alegrava a visita
daquele menino, em cuja companhia, ainda que humilhado, me sentia menos
eclipsado que na presença de outras pessoas maiores que haviam completado
sua educação e maturado o entendimento. Impulsionado por minha idéia fixa e
tendo em consideração que a mim era permitido ir a qualquer lugar
acompanhado por ele e, em minha ânsia de voltar ao ponto pelo qual havia
penetrado naquele mundo subterrâneo, apressei-me em perguntar se estava ele
disposto para um passeio mais além das ruas da cidade. A expressão de seu
rosto pareceu-me mais grave que o ordinário ao responder-me: “Vim aqui com
o objetivo de propor-lhe exatamente isso.”
Sem demora fomos para a rua e, não havíamos nos afastado muito da casa
quando nos encontramos com cinco ou seis jovens Gy-Ei, que retornavam dos
campos com cestas repletas de flores, e cantando uma música em coro
enquanto caminhavam. Uma jovem Gy geralmente canta mais do que fala.
Pararam de cantar ao ver-nos, aproximando-se de Taë com uma doçura
familiar e de mim com um galanteio cortês que era a marca registrada das Gy-
Ei em sua maneira de agir com o sexo oposto.
113

Tenho de observar aqui que, apesar de ser a Gy solteira tão franca ao cortejar
o indivíduo que ela favorece, sua atitude em nada se parece com a maneira
despreocupada e ruidosa das jovens da raça anglo-saxã, às quais o distinguido
epíteto de “modernas” é aplicável, ao exibirem-se aos jovens e galantes
pretendentes pelos quais não sentem amor algum. Não. O comportamento da
Gy para com os homens, se parece muito ao do homem bem educado das
galantes sociedades do mundo superior em direção às mulheres, que respeitam
mas não se enamoram; com deferência, lisonjeiro, refinadamente sutil; o que
poderiam chamar “cavalheiresco.”
De fato, me senti um pouco confuso pelos galanteios que me dirigiam aquelas
jovens ao meu ‘amour propre’ e que eu não sabia como responder. Em nosso
mundo um homem se consideraria agravado, tratado com ironia, enfadada (se
posso usar uma tão vulgar expressão, usada tão livremente em criações de
novelistas populares) ao ouvir uma formosa jovem refestelar-se da frescura de
minha cútis; a outra sobre a combinação das cores de meu vestido; uma
terceira, com um sorriso dissimulado, comentar sobre as conquistas que fiz na
festa de Aph-Lin. Porém, contudo, sabia eu que, toda aquela linguagem era
aquilo que os franceses chamam banalidades e, ditas por bocas femininas,
expressava simplesmente, abaixo da terra, o mero desejo de passar um
agradável tempinho com o sexo oposto. Expressões que, sobre a terra, uma
senhorita bem educada, acostumada a tais galanteios, sabe que não pode, sem
que falte às regras da impropriedade, devolvê-las nem demonstrar excessiva
satisfação ao recebê-las, e eu, que havia aprendido os corteses costumes
daquela raça, na casa de tão rico e exaltado Ministro da Nação, procurei sorrir
e parecer modesto, fazendo pouco caso dos elogios que dirigiam a mim.
Enquanto falávamos dessa maneira, a irmã de Taë, que, ao que parece, tendo
nos visto juntos desde os altos andares do Palácio Real, na entrada da cidade e,
precipitando-se com suas asas, pousou no meio de nós, juntando-se ao grupo.
Dirigindo-se a mim, falou-me, apesar da inimitável deferência em exprimir-se,
que chamei ‘cavalheiresca’, mas que ainda, não sem uma certa rudeza de tom
a que, dirigida ao sexo mais fraco, Sir Philip Sidney poderia classificar com o
termo ‘rústico’, “porque você nunca vêm ver-nos?”
Enquanto estava pensando qual seria a adequada resposta a tão inesperada
pergunta, Taë atalhou, seca e prontamente: “irmã, você se esquece que o
estrangeiro é de meu sexo. E não corresponde a pessoas de meu sexo, que
guardam sua reputação e modéstia, rebaixar-se correndo atrás de companhias
do vosso sexo.”
Estas palavras foram recebidas com evidente aprovação por parte das jovens
Gy-ei, em geral; porém a irmã de Taë parecia estar grandemente
envergonhada. Pobre menina! E isso que ainda era uma Princesa!
114

Naquele momento, uma sombra se projetou no espaço que me separava do


restante do grupo e, assim que virei-me, contemplei ser o Magistrado Chefe
que se aproximava de nós, com o passo silencioso e firme, peculiar aos Vril-
Ya. Ao ver-lo, apoderou-se de mim o mesmo terror que sobreveio-me quando
da primeira vez que o vi. Naquela expressão, aqueles olhos, havia todavia
aquele algo indefinível de uma raça fatal para a nossa. A estranha expressão
de serena tranqüilidade, de quem se vê livre de nossos cuidados e paixões,
consciente de seu poder superior, compassivo, e inflexível, como ao juiz que
pronuncia uma sentença. Senti um calafrio e inclinando-me, apertei o braço de
meu jovem amigo e movi-me em silêncio. O Tur se interpôs em nosso
caminho; mirou-me por um momento, sem falar; em seguida, dirigiu os olhos
tranquilamente para sua filha, com um grave aceno de cabeça para ela e suas
companheiras; passou pelo meio do grupo e afastou-se, sem exprimir qualquer
palavra.

CAPÍTULO XXVIII

Ao ficarmos sozinhos, Taë e eu, enquanto seguíamos a ampla avenida que se


estendia desde a cidade até o vão pelo qual tinha descendido nesta região
subterrânea, privada da luz das estrelas e do sol, lhe disse em voz baixa,
“criança e amigo, havia na face de seu pai uma expressão que me atemorizou.
Sinto como se, em sua terrível tranqüilidade, contemplasse minha morte.”
Taë não respondeu de imediato. Parecia agitado, como se pensasse consigo
mesmo, que palavras dizer para suavizar uma notícia desagradável. Por fim,
disse: “nenhum dos Vril-Ya teme morrer. E você?”
“O temor da morte é inato nos seres da raça a que pertenço. Podemos dominá-
lo com o chamado do dever, da honra, do amor. Podemos morrer por uma
verdade, por uma terra natal, por aqueles a quem amamos mais que a nós
mesmos. Mas se a morte realmente me ameaça, aqui e agora, onde estão os
fatos que agem contra o instinto natural que nos enche de espanto e terror ao
pensar no momento em que a alma e o corpo devem separar-se?”
Taë pareceu surpreso, porém quando respondeu havia uma grande ternura em
sua voz, “direi a meu pai o que acabou de dizer. Pedirei a ele que poupe sua
vida.”
“Então, ele já decretou minha destruição?”
“A culpa ou inconseqüência, é de minha irmã”, respondeu Taë, com alguma
petulância. “Ela falou esta manhã com meu pai, e depois desta conversa, este
requisitou minha presença, em meu caráter de chefe dos jovens comissionados
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em destruir as vidas que tragam ameaça à comunidade, e disse-me: toma tua


varinha de Vril e vai em busca do estrangeiro a quem fizeste amizade. Que seu
fim seja rápido e indolor.”
Ao ouvir isto, senti-me fraquejar, afastando-me da criança -- “é para isto,
então, para assassinar-me, que você traiçoeiramente convidou-me? Não, não
podia crer. Não posso crer que seja responsável por tal crime.”
“Não é crime matar aqueles que ameaçam o bem da comunidade; porém seria
crime matar ao inseto mais insignificante, que não nos pode fazer mal.”
“Se acredita que sou um perigo para a comunidade, pela razão que sua irmã
me honra com uma espécie de preferência, como a que uma criança sente por
um brinquedo raro, não é necessário que me matem. Deixa-me voltar ao país
de onde eu vim, pela abertura por qual descendi. Com uma pequena ajuda sua,
posso ir-me agora neste momento. Você, com a ajuda de suas asas, poderia
amarrar na borda do rochedo a corda que encontrastes, e que seguramente tem
guardado. Apenas isto lhe peço; ajude-me a chegar ao ponto desde que
descendi a estas regiões e desaparecerei de seu mundo para sempre, tão
seguramente como se me encontrasse entre os mortos.”
“O vão pelo qual descestes! Olhe ao seu redor, estamos agora no mesmo lugar
em que ele se abria. O que você vê? Apenas rocha maciça. A abertura foi
fechada, por ordem de Aph-Lin, tão logo quando pode comunicar-se consigo,
durante seu estado de transe, e soube, de seus próprios lábios, o tipo de mundo
de que você vinha. Não se recorda que Zee me exigiu que não lhe perguntasse
nada acerca de ti ou de tua raça? Ao deixar-te aquele dia, Aph-Lin foi atrás de
mim e me disse: não deves deixar aberta passagem alguma entre o mundo do
estrangeiro e o nosso; do contrário, o mau e as agruras de seu mundo podem
chegar ao nosso. Leve com você as crianças de sua companhia, e atacai, com
suas varinhas de Vril, as paredes da caverna, até que ela desmorone e os
fragmentos de pedra encham todas as fendas, de maneira que não se possa ver
do outro lado o resplendor de nossas lâmpadas.”
Enquanto a criança falava, minha vista estava fixa nas rochas fechadas perante
mim. Enormes e irregulares, as massas de granito deixavam ver a superfície
chamuscada pela força Vril; nem uma brecha sequer restava.
“Então toda esperança está perdida”, murmurei, deixando-me cair nas bordas
escarpadas do caminho, “nunca mais verei o sol.” Neste instante, cobri meu
rosto com as mãos e roguei a Ele, cuja presença tinha tão freqüentemente
esquecido, conquanto o firmamento nos mostra a obra de suas mãos. Senti Sua
presença nas profundidades daquela terra sombria, entre aquele mundo
retumbante. Olhei para o alto, fortalecido em conforto e coragem por minhas
preces e, dirigindo meus olhos e fixando firmemente meu olhar com tranqüilo
sorriso, disse ao garoto: “Agora, se tens de matar-me, dispara.”
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Taë moveu a cabeça gentilmente. “Não”, disse, “o pedido de meu pai não é
tão formal quanto a não me deixar escolha. Vou falar com ele e pode ser que
possa salvá-lo. Estranho que o medo da morte o domine, que para nós cremos
ser um instinto apenas pertencente às criaturas inferiores, às quais não tenha
sido inculcada a convicção de uma outra vida. Entre nós mesmos, nem os
infantes conhecem tal temor.”
“Diga-me caro Tish”, após uma breve pausa, continuou, “não te reconciliaria
mais facilmente a idéia de abandonar esta forma de vida por aquela que o
espera mais a frente do momento chamado morte, se eu lhe acompanhasse? Se
assim fosse, pediria a meu pai se seria permitido para mim ir com você. Sou
de uma nossa geração destinado a emigrar, quando tiver idade para tanto, a
alguma região desconhecida dentro deste mundo. Para mim, seria igual
emigrar agora a regiões desconhecidas do outro mundo. O Supremo Bem não
está menos lá do que aqui. Onde Ele não está?”
“Garoto”, respondi-lhe, percebendo por sua expressão que Taë falava
seriamente, “seria um crime que você me matasse; e seria igualmente um
crime dizer-lhe: mate-se a si próprio. O Supremo Bem tem Seu próprio tempo
para dar-nos vida; e Seu próprio tempo para levá-la embora. Vamos voltar. Se,
ao falar com seu pai, ele decidir por minha morte, dê-me todo tempo que
puder, para que eu possa preparar-me.”
Voltamos à cidade, conversando por intervalos. Não podíamos compreender
as razões um do outro; sentia por aquele honrado garoto, de voz suave e
formoso rosto, um sentimento muito parecido ao que o réu deve sentir pelo
executor que caminha a seu lado rumo ao lugar da execução.

CAPÍTULO XXIX

Durante aquelas horas reservadas pelos Vril-Ya para repouso e que


constituíam sua noite, fui acordado, de um perturbador sono leve que a pouco
tinha caído, por uma mão que tocava meu ombro. Despertei bruscamente, e ao
abrir os olhos, vi Zee de pé ao meu lado.
“Apresse-se”, disse ela, em tom de sussurro; “não deixem que nos ouçam. Por
acaso pensou você que deixei de velar por sua segurança por causa que não
pude conquistar seu amor? Encontrei-me com Taë. Ele não conseguiu
convencer seu pai, que foi, entretanto, reunir-se em conferência com os três
sábios quem, em questões mais delicadas, procura para aconselhar-se, e, por
seus conselhos, ordenou ele que você perecesse quando o mundo despertasse
para a vida. Irei salvá-lo. Levante-se e vista-se.”
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Zee apontou para uma mesa, ao lado de um sofá, na qual vi minhas roupas que
usava quando deixei o mundo da superfície, e que tinha subseqüentemente
trocado pelas tão exóticas vestimentas dos Vril-Ya.
A jovem Gy, então, saiu pela janela em direção ao terraço, enquanto eu
rapidamente e sem perder meu espanto vestia-me com minhas roupas.
Ao juntar-me a ela no terraço, sua expressão era dura e fria. Tomando-me pela
mão, disse contudo, com uma voz doce, “veja, quão brilhantemente a arte dos
Vril-Ya houve por iluminar o mundo que habitam. Amanhã, este mundo estará
em trevas para mim.” Puxou-me de volta para o quarto, sem aguardar minha
resposta, foi para o corredor, pelo qual descemos ao hall de entrada. Saímos às
ruas desertas e em direção à larga avenida que se estendia por sob os rochedos.
Neste lugar, onde não existia diferenciação entre dia e noite, as Horas de
Descanso são indizivelmente solenes, -- toda esta vasta região iluminada pela
perícia dos mortais ficava totalmente sem nenhum indicio de qualquer sinal de
vida.
Suaves eram nossos passos, porém seu ruído molestava o ouvido, como em
desarmonia com o repouso universal. Estava convencido, ainda que Zee nada
me houvesse dito, que esta havia resolvido ajudar-me a voltar ao mundo da
superfície, e que nos dirigíamos ao lugar por onde havia eu descido. Seu
silêncio tomou conta de mim e se impôs a meu ser. E nos aproximávamos do
precipício. Havia sido reaberto; ainda que, de fato, não apresentasse o mesmo
aspecto de quando passei por ele, por entre aquela maciça parede de rochas
que momentos antes tinha visitado com Taë, vi que uma nova abertura havia
sido feita, cujas bordas graníticas ainda faiscavam e ardiam.
Minha vista, contudo, não podia avançar mais que alguns poucos metros na
escuridão daquele profundo vazio, e fiquei desalentado, imaginando de que
maneira poderia ascender por ali.
Zee imaginou minhas dúvidas. “Não temas”, disse, com um triste sorriso; “seu
retorno esta garantido. Iniciei esta obra quando as Horas de Descanso
começaram, quando todos dormiam: acredite que não parei até vislumbrar que
a passagem para seu mundo estivesse pronta. Permanecerei com você, ainda,
contudo, por pouco tempo. Não nos separaremos até que digas: ‘agora podes ir,
pois já não mais preciso de você’”.
Meu coração apertou-se de remorso a estas palavras. “Oh!” exclamei,
“pudesse que você fosse de minha raça ou eu da sua, jamais diria: já não mais
preciso de você”.
“Lhe bendigo por estas palavras, e irei lembrar-me delas quando já tiver
partido”, respondeu a Gy, carinhosamente.
Durante este breve intercâmbio de palavras, Zee virou-se e afastou-se de mim,
inclinou seu corpo, com sua cabeça apoiada em seu peito. De repente, ergueu-
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se em toda sua estatura e colocou-se frente a mim. Enquanto seu rosto esteve
fora de meu campo de visão, tinha ela acionado a diadema que levava em sua
fronte, de maneira que esta brilhava como se fosse uma coroa de estrelas. Não
somente seu rosto e seu corpo, mas toda a atmosfera e tudo nos arredores
iluminaram-se pelo resplendor de seu diadema.
“Agora”, disse ela, “ponha seus braços em volta de mim pela primeira e
última vez. Pronto, agora; coragem e segure-se”.
Tão logo terminou de falar, sua vestimenta dilatou-se e suas asas expandiram-
se. Agarrado a ela alçamos vôo por aquela terrível passagem. A luminosidade
estrelada que partia de sua fronte avançava e iluminava os arredores da
escuridão. Brilhante, gracioso e veloz, como um anjo poderia erguer-se em
direção aos céus com uma alma que salvou da tumba, foi o vôo da Gy, que
continuou até que ouvi, à distância, o murmúrio de vozes humanas; sons de
trabalhos humanos. Nos detivemos no assoalho de uma das galerias da mina.
Mais além, muito à distância, ardiam as fracas, poucas e débeis lâmpadas dos
mineradores. Soltei-me de meu abraço. A Gy beijou-me em minha testa
apaixonadamente, como uma mãe faria, e disse, enquanto as lágrimas vertiam
de seus olhos: “Adeus para sempre. Você não deve deixar-me ir a seu mundo,
-- você nunca poderá retornar ao meu. Antes que meus familiares despertem,
as rochas da passagem serão novamente fechadas, para não serem novamente
reabertas, nem por mim, nem por outras pessoas, por incontáveis eras. Pensem
em mim de vez em quando, com ternura. Quando eu alcançar a vida além
desta partícula de tempo, irei a sua procura. Contudo, pode ser que este mundo
dedicado a você e seu povo tenha rochas e precipícios que o separem daquele
ao qual devo juntar-me aos de minha raça que partiram antes de mim, e talvez
não tenha eu condições de abrir caminho para reencontrar-lhe como pude abrir
caminho para deixá-lo partir”.
Sua voz cessou. Fiquei a ouvir o barulho de suas asas, como o voar de um
cisne, vendo o brilho de seu diadema estrelado desvanecer-se conforme se
distanciava na escuridão.
Sentei-me em uma rocha, durante algum tempo, em triste reflexão; então,
levantei-me e segui o caminho, a passos lentos, em direção ao lugar em que
ouvi haver vozes humanas. Os mineradores que encontrei eram para mim
desconhecidos, de outra nação que minha própria. Eles pararam para olhar-me,
surpreendidos, mas, ao constatarem que eu não era capaz de responder
quaisquer de suas perguntas em seu idioma, retornaram ao trabalho e
permitiram-me passar sem me incomodar. Logo, cheguei à entrada da mina,
apenas perturbado por outros poucos breves questionamentos; -- com exceção
de um oficial amigo, que me conhecia, mas que providencialmente estava
muito ocupado para conversar comigo. Tive o cuidado de não voltar a meu
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antigo alojamento. Sem perder tempo, afastei-me naquele mesmo dia para
uma vizinhança onde não podia ser incomodado por perguntas, às quais não
podia responder satisfatoriamente. Retornei a meu país em segurança, onde
estive, durante um longo tempo tranqüilamente estabelecido em negócios
comerciais, até que me aposentei, com uma considerável fortuna, há apenas
três anos. Raras vezes tive por ser convidado a fazer relatos sobre as andanças
e aventuras que tive na juventude. Algo desapontado, e digo que a maioria dos
homens o são, em assuntos ligados à vida doméstica e familiar,
freqüentemente penso naquela jovem Gy, quando me sento sozinho à noite, e
penso como pude eu rejeitar tal amor, sem importar os perigos que corria, ou
que condições o impediam. Apenas, quanto mais penso naquele povo que, em
regiões excluídas de nossa percepção e consideradas inabitáveis por nossos
sábios, calmamente desenvolvem poderes que vão além de nossos mais
disciplinados sistemas de vida, e virtudes, às quais, para nossa vida, social e
política, são antagônicos à proporção que nossa civilização avança, -- mais
devotadamente rezo para que eras incontáveis ainda passem antes que
emerjam à luz do sol nossos inevitáveis destruidores.
Sendo, contanto, francamente assegurado por meu médico pessoal que estou
afligido por uma enfermidade que, apesar de me causar pouca dor e não
demonstrar perceptíveis sintomas de seu avanço, entretanto, a qualquer
momento pode ser-me fatal, acreditei ser meu dever para com meus
concidadãos, fazer este registro para preveni-los da Raça Futura.

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