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Panorama do antigo testamento – Unidade 3 – Livros de sabedoria e de poesia bíblicas

Panorama do
antigo testamento

Unidade 3 – Livros de sabedoria e de


poesias bíblicas

Autor: Wallace de Góis Silva


Revisor técnico: Kassio Lopes
Panorama do antigo testamento – Unidade 3 – Livros de sabedoria e de poesia bíblicas

Introdução

Talvez, por serem tão imanentes, os textos de sabedoria tendem a não ser os
mais procurados, com exceção dos Salmos, que são bastante populares em
abordagens devocionais e até exotéricas. Os estudos teológicos também não os têm
apreciado com a atenção merecida. Mas, a proximidade dos provérbios bíblicos com
a vida vivida, com o chão da experiência humana e suas possibilidades e limitações,
oportuniza entendermos como os antigos judeus liam o mundo, e agora, podem
contribuir com o debate atual, em torno de questões filosóficas, mesmo as de nosso
tempo.
O homo sapiens, desde as épocas mais remotas, tenta estabelecer um sentido
para a existência. O povo bíblico – assim como todos os outros que vieram antes,
durante e depois de sua passagem pelo mundo –, também fez perguntas
elementares, expressou sua angústia e maravilhamento, diante da Criação e da vida
cotidiana, e refletiu sobre o que lhes cercava, a partir da sabedoria que acumulavam.
Cobrindo o trabalho na terra e com animais, a partilha comunitária e a relação com
o sagrado, os escritos sapienciais representam uma coletânea do conhecimento
popular e dos sábios da corte.
O espaço da literatura de sabedoria e poética no Tanakh é estabelecido entre
os Escritos (Ketubim). São, entretanto, de diferentes tipos: um dos grupos é de
natureza poética: Tehillim (Salmos), Mishlei (Provérbios) e Iyov (Jó); outro, de uso
litúrgico, os “cinco rolos”: Shir Hashirim (Cântico dos Cânticos), Rute, Eikhah
(Lamentações), Qohelet (Eclesiastes) e Ester; e três de caráter histórico: Daniel, Ezra-
Nehemiahu (Esdras-Neemias) e Divrei Hayamim (Crônicas).
Na seleção canônica protestante, os livros de sabedoria são Provérbios, Jó e
Eclesiastes. Na versão católica, em adição, entram nessa categoria os
deuterocanônicos: Eclesiástico; e Sabedoria ou Sirácida. Em ambas as tradições,
todavia, a literatura poética é composta pelos Salmos e por Cantares.

1. A sabedoria dos antigos: provérbios e poesias

A pesquisa histórica da literatura de sabedoria nos deixa saber que, muito


antes da redação do Antigo Testamento, na região da Mesopotâmia, a escrita no
estilo sapiencial já era utilizada, como metodologia na formação dos escribas que
trabalhavam tanto nas fileiras políticas do poder estatal, quanto nas tarefas do culto
oficial. A mesma prática seria adotada pelos judeus do pós-exílio.
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Os textos de sabedoria das escrituras são agrupamentos de provérbios e


conhecimentos populares tradicionais, artísticos e teológicos que expressam a
relação entre ações, crenças e valores, diante das demandas do cotidiano. Ao lado
das máximas do povo, simples e objetivas, foram escritas frases de sabedoria mais
elaboradas, para provocar a reflexão sobre o conhecimento popular, frente aos
ensinos dos grandes mestres da cultura e da religião.
Característica inerente à maioria dos provérbios bíblicos é o paralelismo: duas
sentenças sobrepostas, em que a segunda interpela a primeira ou a complementa.
A frase de cima, mais simples, é o provérbio popular, tal como dito nas ruas; a linha
de baixo consiste numa sentença-adendo, das elites culturais representadas pelos
escribas. Temos, assim, uma dialética entre o conhecimento originado do povo
comum e a direção que os copistas deram no momento da compilação.
Efetivamente, os escribas judeus estavam ao lado das autoridades palacianas
e do Templo, instruindo e auxiliando seus afazeres. Essa proximidade pode ser
elucidada, em Pv 25 e 26: especialistas, da corte do rei Ezequias, acrescentaram à
literatura sapiencial diretrizes para a vida em sociedade.
O formato e a disposição dos textos têm inspiração nos documentos
produzidos por povos de origem muito anterior, mas, em se tratando de conteúdo,
tanto os provérbios, quanto às sentenças agregadas pelos escribas estão num
mundo mais tardio, já inundado pelo pensamento helenista; nele, elementos como
o Templo e a monarquia davídica já não são referência valorativa importante. Mesmo
que partilhassem uma cosmovisão acentuadamente parecida com as das outras
culturas, os judeus a recebiam e reinterpretavam, nos moldes de sua teologia.
Notadamente, a experiência proverbial judaíta perpassa, muito mais pela
lógica de uma nova criação, de reconstrução do sentido, da fé e da vida cotidiana no
pós-exílio; está mais preocupada em recuperar o senso de responsabilidade no
mundo e de pertença comunitária.

1.1 A sabedoria que vem do povo

Uma prática comum, na antiguidade, era atribuir obras a autores e tradições


reconhecidamente prestigiados. Se, nessa lógica, Moisés escreveu a Torá, os livros
sapienciais e poéticos eram obra dos grandes reis judaítas Davi (maioria dos Salmos)
e Salomão (Provérbios, Cantares, Eclesiastes e alguns salmos).
Enquanto Moisés era o grande legislador e fundador da religião judaica, Davi
era a referência de monarquia e mobilizador da adoração no Templo, para cujo
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serviço convergem numerosa parte dos salmos. Seu herdeiro, Salomão, foi aquele
que recebeu sabedoria do próprio Deus, tornando-o paraninfo da obra sapiencial.
Acertadamente, tanto no cânon hebraico, quanto nas bíblias cristãs, Salmos e
Cânticos estão agrupados entre os sapienciais. Tal se dá porque, nos livros poéticos
há características como a expressão de sentimentos humanos, de contemplação e
de experimentação do mundo criado e daquilo que lhe é próprio: as paisagens, os
animais, os sentidos, os elementos naturais, as relações interpessoais. A poesia
exalta os feitos do Criador, suplica por sua ajuda, expõe crises profundas,
sentimentos e emoções comuns à todas as pessoas.
Para fins didáticos, porém, deixaremos registrada a classificação aceita pela
maioria dos estudiosos, na qual os livros sapienciais são Jó, Provérbios, Eclesiastes,
Eclesiástico e Sabedoria; sendo, portanto, Salmos e Cânticos escritos poéticos.
No latim, a palavra que originou a nossa sabedoria é sapientia. Os livros
sapienciais reúnem, num estilo literário próprio, a síntese da sabedoria do antigo
povo judeu, refletida na forma com que se organizavam social, cultural e
religiosamente. É, de fato, da vivência cotidiana que emergem os provérbios, as
poesias e as canções. O assunto principal é o existir humano, é o viver no mundo
criado por Deus e as impressões da comunidade hebraica sobre o Criador, mais do
que sobre o que Deus teria a dizer, como era o caso da Torá.
Com relação ao conteúdo, além de permitir ao leitor uma compreensão
cultural daquele mundo, seus versos propiciam acessar uma amostra da
espiritualidade do dos antigos hebreus, para quem o todo, a integralidade, chamada
vida é o ponto no qual convergem, sem uma distinção muito clara, as crenças, as
técnicas e os sentimentos.
A razão bíblica se constrói a partir da vida concreta e prática; objetiva oferecer
ferramentas para aplicar o shalom à experiência cotidiana da existência. É um saber
que deve ser passado adiante, dos mais velhos para os mais jovens, por meio da
memorização, uma vez que a leitura e a escrita eram exclusivas para escribas e
alguns poucos religiosos. Não somente nos livros escritos em forma de poesia ou
provérbio, é possível afirmar, que todos os Escritos (Ketubim) têm algo de sapiencial:
são conselhos, opiniões, conclusões que sábios anônimos ou ilustres dão à
comunidade, através de diferentes gêneros literários.

1.2 A teologia por trás dos escritos de sabedoria


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Considerando suas características históricas e teológicas, a redação final é


posterior ao exílio, já no século 2 a.C. Nesse meio tempo, adquiriu contornos de
sabedoria babilônica, persa e grega, e as diversas tradições rabínicas e escolas
interpretativas, que surgiram no período das diásporas, fizeram da religião hebraica
afeita de uma leitura cada vez mais erudita dos textos sagrados. Os escribas,
integrantes dessas escolas, ao interpelarem os provérbios populares produziam
sentenças condizentes com as suas tendências.
Enquanto nas profecias e na Torá predominam a voz ativa de Javé revelando
sua vontade e sua glória, os textos sapienciais estão impregnados de conhecimento
formulado pela inteligência humana, produto da observação e da apreciação do
mundo criado por Deus. A propósito, Deus é pressuposto o tempo todo, a despeito
dele, mais observar e julgar do que ordenar ou intervir.
Sob juízo e vigilância constantes do Criador – ao mesmo tempo em que sugere
liberdade e responsabilidade humanas quase independentes – a literatura de
sabedoria servia como um código de conduta, uma tradução da Torá em conselhos
práticos e princípios.
A Sabedoria é atributo intrínseco de Javé, mas que dele se descola, ganha vida
própria e caminha pelas ruas, clamando e apelando aos insensatos que mudem seu
proceder (p.e, Pv 1.20 ss). Ali, a Sabedoria, palavra hebraica feminina Hokhmah, e a
Sofia dos gregos, são a expressão de Deus como mulher; são a materialização da
diligência, do discernimento, da inteligência, da razoabilidade e da astúcia. Como um
profeta, personifica a palavra de Deus que ganha voz, corpo, gestos e estilo de vida.
Da leitura também se depreenderá que os textos dos sábios conservam
noções da teologia da Torá e da literatura deuteronomista. Por mais que a ação de
Deus seja timidamente mencionada, perpassa toda a obra sapiencial a discussão da
ideia de causa e efeito, o questionamento sobre se há retribuição justa aos atos bons
e ruins, e quais são os alcances e limites da sentença administrada pelo grande Juiz.
Sendo assim, a pessoa que é “sábia”, ou que busca sabedoria, será “justa” no
seu modo de proceder. Quem de tal modo vive, desfrutará do shalom, isto é, de
prosperidade, saúde, paz e felicidade, que são dons inerentes a Deus. O contrário
também é verdadeiro: se o indivíduo despreza a sabedoria é um “insensato”, e sua
conduta é de “injustiça”. O fruto que colherá será, portanto, maldição, pobreza,
doença e infelicidade.
O curioso é que os autores bíblicos discutem a validade dessa “lei do retorno”,
e o cânon preservou certa diversidade de concepções teológicas, que vão desde o
questionamento total da lógica da retribuição até o estabelecimento de nuances e
variantes para que ela se torne plausível.
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Nos livros de Provérbios e de Eclesiástico (de Sirac), a dinâmica da retribuição


fiel ao que foi plantado, acontece de forma inexorável e nisto repousa o sentido da
vida: fazer o bem é garantia de bênçãos; praticar o mal é atrair, sobre si, maldições.
Em Jó e no Eclesiastes (Qohelet), a lei da colheita tem fatores que podem
colocar em risco a coerência da regra: mesmo que alguém seja justo e irrepreensível,
a vida pode se revelar uma saga de desventuras sem sentido (Jó); ou pode resultar
em nada, além do mesmo destino dos ímpios debaixo do sol: a indiferente sepultura
(Eclesiastes).
O texto tardio de Sabedoria, por sua vez, está imerso num universo cultural
que nutre expectativas pela vida após a morte. Nele, a justa compensação pela
sabedoria ou pela estultice virá no porvir.

2. Jó, provérbios e eclesiastes: excertos da sabedoria


hebraica
A teologia proverbial não é das mais abstratas, embora faça significativos
acenos à filosofia grega. Muito embora a famosa frase bíblica “o temor do Senhor é
o princípio da sabedoria” (Pv 1,7), associando a sabedoria com uma relação mais
religiosa com o divino, ganhe espaço na discussão, esta apreensão parece ser
tendência apenas entre os redatores finais, mais do que representar o todo da
literatura poética.
Mesmo que esta seja a ideia central da sabedoria hebraica, o sentido
predominante vai mais na direção de que conhecer e temer a Deus está ligado a uma
experiência prática de aprendizado, de aplicação de sua Lei, na concretude da vida.
Mesmo em nossos dias, vale um conceito muito repetido: aprende-se fazendo. Ao
que tudo indica, isso também era verdade nos Escritos.
A tendência deuteronomista de associar a sabedoria a um processo de
salvação dos inimigos não se encaixa, plenamente, na teologia sapiencial. Nesta, a
aceitação da ética bíblica está mais para recebê-la em si mesma, fazer o bem pelo
puro e simples comprometimento com ele, ainda que, eventualmente, a piedade
possa redundar em bênçãos. Aliás, se as atitudes resultam em recompensas ou não,
é uma das grandes discussões dessa literatura. A seguir, veremos como essa
dinâmica se estabelece nos livros canônicos de Jó, Provérbios e Eclesiastes.

2.1 Jó: escrito da paciência ou revolta?


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Iyov, no cânon hebraico vem na sequência de Salmos, sugerindo


deslocamento da poesia musical como expressão de fé para uma reflexão, que
confronta a teologia emergente com dimensões mais complexas do drama humano.
O escrito é preponderantemente do gênero sapiencial; assemelha-se, entretanto, à
poesia salmista de lamúria e revolta contra as incoerências de um mundo, em que a
retribuição divina parece não funcionar como se supunha.
Mas, atenção: a obra cujo eu-lírico se tornou sinônimo de “paciência”
incomum, não deve ser reduzida ao desabafo comovente de um homem piedoso e
acometido por toda sorte de mazelas. Por mais que isso seja contemplado nos
versos, sobrepõe-se no protagonista um temperamento de revolta e contestação da
justeza do mundo e até do próprio Deus, considerando que as pessoas que se
identificam com as dores de Jó por terem perdido coisas importantes na vida, se
vejam numa aposta da qual jamais quiseram ter participado, e que sequer tomaram
conhecimento: do alto de seus desígnios, Deus e o diabo resolverem testar a
fidelidade de um pobre mortal.
Se é verdade que Jó se tornou uma literatura de exaltação da fé incondicional,
seu pessimismo também não se reduz a um exagero retórico. Grosso modo, a vida
permanecerá intransigente e a pobreza inexorável. Mesmo o “final feliz” da triste
história parece não apresentar respostas cabais, nem explicar a razão, pela qual uma
disputa entre seres superiores e impassíveis, implicam na fome, na doença, no luto,
na pobreza e no desalento sobre a vida humana.
Não obstante, a tragédia suscita importantes questões teológicas: o lugar de
um novo elemento no imaginário judaico, Satanás, herdado das mitologias persas;
reafirma a importância de tomar conselhos sábios; incentiva a solidariedade aos que
sofrem; sugere um caráter incontestável aos desígnios de Deus; dá voz aos pobres e
desvalidos, que se rebelam contra a naturalidade imposta às situações de injustiça.
Sendo assim, o conto de Jó é, talvez, o escrito com maior abrangência dos
elementos comuns aos textos de sabedoria e poesia bíblicas: constituído de
narrativa, provérbios, sentenças, traços de salmos e de lamentações, se utiliza
também de versos e prosas. Entretanto, faz-se predominantemente um livro de
sabedoria, e mostra diálogo profícuo com a tradição filosófica grega, no sentido de
deixar aporias insolúveis e de abrir contestações críticas.
Não é apenas um texto sobre a paciência ou que pretenda explicar o
sofrimento humano, muito menos resolver o problema do mal. Ele se opõe a uma
parte das teologias hebraicas da época, uma que entendia haver uma rivalidade pari
passu entre Deus e Satã, outra que defendia a exata recompensa pelos feitos do
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ímpio ou do justo, ambas resultado de influências dos povos egípcios e da filosofia


grega.
Sua conclusão dataria da época pós-exílica, 400 a.C. Mas, os trechos iniciais
(Jó 1 e 2) e finais (cap. 42), são bem anteriores e seriam um único texto, uma espécie
de conto folclórico popular da região. A lenda teria sido dividida em duas partes e
utilizada como “moldura” do livro. O Jó desta prosa é bastante afeito à teologia em
que fidelidade e perseverança garantem a recompensa divina, e recomendam uma
aceitação passiva do sofrimento.
Já o “miolo” do texto (a parte principal), que divide a antiga narrativa médio-
oriental, foi sendo formado em um período longo, e finalizado, na volta à Jerusalém,
pós-cativeiro babilônico. Nesse trecho, predomina, em versos, diálogos que
questionam a perspectiva retributiva e afirmam a graciosidade de Deus e a
importância da amizade e das relações próximas, na superação do sofrimento. No
centro do livro de Jó, está a voz inquieta e revoltosa, diferente daquele Jó paciente e
condescendente das perícopes de abertura e fechamento do livro.

Você quer ver


Nesta palestra, o filósofo Luiz Felipe Pondé comenta o livro "Jó - Ou a tortura pelos
amigos" (Ed. É Realizações), de Fabrice Hadjadj, que traz uma perspectiva
contemporânea sobre o livro sapiencial. Para assistir ao vídeo, acesse o link:
https://www.youtube.com/watch?v=6EqnN0IG4iA .

2.2 Provérbios: a sabedoria das ruas e dos palácios

O terceiro livro entre os Escritos hebraicos – e terceiro dos livros de sabedoria


do cânon cristão –, o Mishlei (Provérbios), tem muitas similaridades com Jó, no
sentido de que os desajustes da vida geram indagações (e indignações), ante o
sofrimento que acomete o justo, em claro disparate com a teologia da retribuição
tão apregoada pela Torá, especialmente, no Deuteronômio (cap. 28, por exemplo).
Entretanto, sua noção de recompensa dos atos de sabedoria é mais otimista que em
Jó.
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Provérbios, como temos explicado, são máximas e conselhos que nascem da


própria vida do povo, selecionados pelos intelectuais palacianos de Jerusalém, os
escribas. Ao registrar a sabedoria popular, a elite cultural judaíta acrescenta, em
paralelo, reflexões e ponderações sobre as afirmativas proverbiais, provocando, com
isso, uma abordagem dialética e instrutiva delas. Houve um esforço de reunir o
conhecimento próprio do povo, para assim aceder às diretrizes que julgaram
necessárias. O mesmo método ocorre nos demais livros sapienciais.
Pode-se dizer que Provérbios foi uma das formas de expressão do cerne da
vida do povo e de sua relação com o divino; é resultado do esforço pedagógico de
registrar, para o presente e para a posteridade, orientações para a relação com as
outras pessoas e com Deus.
Em um cenário de constantes crises internas e externas, o povo do pós-exílio
se via, frequentemente, açoitado pelos problemas sociais da época, que se traduziam
em fome, exploração e desigualdades. A existência se constitui injusta e
desesperadora, e a tentação de abandonar a justiça como prática de vida está
sempre à porta: até que ponto vale a pena dar ouvidos à sabedoria, se o que mais
se vê é o fruto da irracionalidade? Daí a insistência de Provérbios por, ainda que
modestamente, trazer lampejos de esperança e de reafirmação da obediência à
Torá, de promover a convivência pacífica e misericordiosa, trazer para a realidade
cotidiana a orientação divina.
Àqueles que oprimem o pobre e praticam a impiedade, a justiça de Javé fará
evidente sua insensatez, e tudo que acharam construir com base na ganância e na
torpeza, verão murchar como os frutos de uma árvore podre. Por outro lado, os
textos proverbiais aconselham às gentes pequenas e frágeis: a apegar-se à própria
família e à sua comunidade próxima, manter boas relações com servos e
companheiros de trabalho. Aproximar-se e tomar como inspiração a vida de pessoas
justas, afastando-se do exemplo dos poderosos e de quem se conduz levianamente.
Viver a vida em sua simplicidade e tomar conta de seus afazeres, animais, plantações
e filhos é o contraponto aos cruéis, que só pensam em fazer o mal.
Nos provérbios e sentenças deste Escrito, não há grandes pretensões ou
manifestações ousadas de um futuro estrondoso e refulgente. Há, por outro lado,
um caminho que se trilha com pequenas coisas, aquelas do dia-a-dia, que fazem com
que a vida se torne menos insuportável e que o sentido da vida esteja mais além do
que puramente sofrer. Nessa direção, a proposta do Sábio parece um tanto quanto
despretensiosa, mas, ainda assim, as atitudes humanas são capazes de girar
engrenagens de leis universais, que podem atrair o juízo de Deus ou sua
prosperidade.
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Uma inserção tardia, já pelos idos de 300 a.C, causa uma importante mudança
no tom das expectativas sobre a justiça de Deus, em favor dos sábios que temem ao
Senhor. Trata-se daqueles que se tornaram os primeiros nove capítulos de
Provérbios na versão final. Do lado de fora do texto, as dinastias dos reis gregos
Seleuco (região da Síria) e Ptolomeu (do Egito) apertavam o cerco da opressão e da
exploração sobre tudo que se produzia e vivia na Palestina. Para além das
exorbitantes taxas, interviam constantemente na liberdade religiosa e nas
expressões culturais dos povos dominados.
Encontramos expressões paralelas de protesto na profecia de Joel, que
denuncia, com ares de apocalipsismo, a praga dos gafanhotos que devoram tudo
que é plantado. De semelhante modo, nos Salmos que pediam a Deus um basta
sobre a atuação dos inimigos contra a dignidade da vida do povo judeu. Nesse
sentido, a ética vai tomando contornos para além da trivialidade, abraçando uma
teologia de resistência, de viver sob a ótica da esperança transformadora depositada
na prudência. A mesma inconformidade dos de 1 a 9, aparece na tradição
revolucionária dos macabeus e encontrará ecos na época de Jesus, cujo discurso
messiânico, também confrontará a dominação imperialista romana.
Aliás, parte da pesquisa histórica vê um processo longo de composição do
livro até chegar na versão que chegaria até nós. O ponto inicial remontaria aos
tempos do rei Salomão, por volta de 970 a 930 a.C, e a conclusão em meados do
século 3 a.C. De acordo com a crítica, a parte mais antiga é 22.17 a 24.22, datando
do período salomônico. O segundo trecho, a ser redigido, são os capítulos 25 a 29,
que se insere já nos anos finais do reinado de Ezequias (730-700 a.C). Pouco mais
tarde, os traços deuteronomistas, em Pv 10.1 até 22.16, fazem crer que tenham sido
compilados, durante o governo de Josias (640-610 a.C). A última parte a ser
elaborada, os capítulos de 1-9 e 30-31, respectivamente a abertura e o fechamento,
são uma aparente finalização dos editores, na altura do século 3 a.C.
Pela atual orientação dos textos, podemos seccionar os capítulos de
Provérbios em cinco partes, de acordo com os assuntos e ênfases. Nos capítulos 1-
9, os últimos a serem escritos, e em 22.17 a 24.34, o compilador inclui um breve
preâmbulo e seleciona provérbios de ensinamentos sucintos por parte dos sábios
para a geração mais jovem.
O nome do rei, tradicionalmente reconhecido como sábio, empresta
credibilidade à segunda parte, que vai de 10.1 a 22.16 e a quarta parte, 25.1 a 29,27.
Ela é uma coleção de adágios de Salomão, acumulados ao longo de um período
significativo, e pinçados de contextos variados e sob diferentes perspectivas.
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Por fim, os capítulos finais, isto é, 30 e 31, parecem retomar as menções a


Deus e lhe atribuir maior importância. Os versos iniciais são de autoria de um tal
Agur, que vem de fora da comunidade de Judá. O proverbista faz objeções ao estilo
e conteúdo das correntes sapienciais mais clássicas, propondo uma nova
abordagem e nova fórmula de apresentação dos ditos. Um curioso agrupamento de
provérbios numéricos antecede os provérbios atribuídos a Lamuel, que são uma
espécie de código de conduta aos servos da corte real. Por fim, os provérbios se
encerram, elegendo características da mulher valorosa, e o cânon hebraico não
deixará isto parecer uma coincidência.
No Tanakh, Provérbios precede o livro das sábias mulheres (Rute), estudado
na unidade anterior, que abrirá caminho para o livro de Cânticos. Rute faz parte dos
Ketubim e está ao lado dos livros sapienciais, o que, de acordo com o biblista Milton
Schwantes (1946-2012), lança luz sobre os elementos de literatura de sabedoria
presentes no escrito, embora com uma linguagem de menor densidade sapiencial
que nos outros. Noemi, a sogra de Rute, é figura de grande sensatez e perspicácia,
instruindo a protagonista sobre como proceder, facilitando a aproximação com Boaz,
para assim refazer sua vida, recriá-la. A personagem principal é também de notável
argúcia e humildade, traços muito elogiados, nos livros dos sábios de Israel. Na trama
entre o belemita Boaz e a moabita Rute, encontram-se indicativos enfáticos de
esperança e redenção messiânica para o povo desalentado, uma vez que, ela
integrará a linhagem de Davi, o remidor de Israel.

2.3 Eclesiastes: o livro do pregador

O Qohelet fica logo depois de Cantares, na Bíblia Hebraica, o que na tradição


implica uma conexão entre a fala protagonista feminina (Cântico) e a centralidade da
“assembleia”, palavra também feminina, no Eclesiastes. Tanto na poesia, quanto na
sabedoria, o discurso, em grande medida profético, transcende uma lógica abstrata
e se fixa em acentos concretos da vida, o que pode parecer altamente desafiador a
quem ler. Não é à toa que ambos os textos são considerados polêmicos e de difícil
apreensão. O judaísmo sugere, com isso, a sabedoria profunda e complexa que o
feminino exala, e que fala com inquietante naturalidade sobre a dureza do existir.
Enquanto voz coletiva centrada na figura do pregador (aquele que discursa
em nome da congregação), Eclesiastes é um escrito que desnuda a vida e expõe suas
incongruências, denuncia a miséria e a opressão; faz calar a hipocrisia dos poderosos
e sábios que se julgam superiores ao povo, destinando todo ser vivo debaixo do sol
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ao mesmo lugar: o sheol (sepultura, no hebraico). Nisto, também faz objeção à


teologia da recompensa, mas no sentido de que os homens maus e injustos se
interpõem e se tornam exploradores de seus servos.
A voz da assembleia hebraica, imersa na filosofia grega, critica o que está
errado na religião, a irreverência ante o sagrado, a pressa em falar sem o devido
conhecimento. Este era o discurso do sábio pregador, que fala de dentro da
comunidade, para a comunidade e pela comunidade.
Para o bem viver, Qohelet ensina a olhar o sofrimento e as incoerências da
teologia da retribuição com resiliência e apelo às prioridades. Ocupar-se em usufruir
do prazer do alimento, estar com a mulher que ama, gozar a vida que é breve e frágil,
como tudo que existe na criação, entre o céu e a terra. Ao mesmo tempo, Eclesiastes
é um livro de esperança, que anuncia a presença e olhar criterioso do Criador, que
tudo levará em conta em seu julgamento.
O escritor de Eclesiastes se apresenta como o rei Salomão, o que rendeu ao
livro a tradição de ter sido uma retratação final do filho de Davi, perante os desvios
que se permitiu cometer, como quem após viver tudo o que quis, chegou a amargas
conclusões. Dificilmente teria sido este o contexto, visto que a escrita cabe em 250
a.C, durante as dinastias gregas e, diante da realidade por ela produzida é que se
forma o discurso pessimista do pregador.
Ainda que possamos verificar similaridades importantes com elas, o autor do
livro é agudo em sua crítica ao pensamento tradicional hebraico e ao hedonismo
egocêntrico dos gregos, estabelecendo limites para a aceitação da cultura helenista
e sua visão de mundo. Seu maior conselho é talvez aquele que seria abordado por
Jesus, de modo semelhante: viva o dia de hoje, com seu prazer e suas dores. Nesse
caminho é que se pode encontrar a felicidade: a de ser capaz de usufruir da vida,
enquanto ainda se tem nela prazer, antes que a velhice chegue, e antes que a morte
a encerre.

3. Sabedoria e eclesiástico: escritos sapienciais


deuterocanônicos

Além dos textos sapienciais que foram mantidos nos cânones judaico e
protestante, a tradição cristã católica, tanto ocidental, quanto oriental, preservou
dois livros que constaram nas bibliotecas sagradas do Antigo Testamento por muito
tempo, inclusive nas versões judaicas: Sabedoria de Salomão e Eclesiástico (ou
Sabedoria de Jesus Ben Sirac).
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Estas duas obras representam dois momentos em que a sabedoria hebraica


se encontrou de maneira ainda mais profunda com a razão grega, revelando,
inclusive, diferentes modos da recepção judaica do helenismo.
As principais questões contempladas na literatura sapiencial foram
exploradas de alguma forma nesses escritos, cujo valor para a compreensão da
teologia hebraica, no período pós-exílio, não coberto pelo cânon hebraico é
fundamental. Eles registram elementos da passagem do pensamento que
predominava o mundo antigo para o advento do contexto que dará lugar ao
cristianismo e ao judaísmo dos tempos de Roma, muito diferentes daquele das
épocas anteriores, por sinal.

3.1 Sabedoria de Salomão, para a vida na diáspora

O Livro da Sabedoria é o texto mais tardio do Antigo Testamento, finalizado


por volta do ano 30 a.C, em Alexandria, e coincide com a chegada de Roma ao Egito.
Dos deuterocanônicos, é o único que não teve uma primeira versão em hebraico ou
aramaico, sendo sua escrita original totalmente grega. A importância da Sofía
Salomóntos, como foi chamado na Septuaginta, para os estudos teológicos no
cristianismo, se dá justamente por sua composição em momento derradeiro do AT,
antecedendo em apenas algumas décadas o aparecimento de Jesus de Nazaré.
Alguns elementos do livro, ainda assim, podem fazer supor uma redação final já no
século 1 d.C, tendo em vista possíveis menções à dominação romana da época.
Neste escrito, a imortalidade dos homens, concebido sob o conceito inédito
da Bíblia de dualismo corpo-alma, recebe importante ênfase, e a expectativa pelo
destino eterno já é um elemento crucial na teologia judaica e no cristianismo, que
nascerá sessenta anos depois. Os justos fruirão da vida eterna, e os injustos
assistirão à exaltação dos sábios, antes de serem aniquilados de uma vez por todas.
A Sabedoria, especialmente, a que vem da antiga fé judaica, é elogiada e elevada
acima da sofia dos pensadores gregos; destacando, também, a superioridade do
culto judeu, ante as formas de adoração aos deuses-animais naquela sociedade,
comparada, por vezes, ao Egito dos tempos de Moisés.
A grande cidade de Alexandria, na época, contava com cerca de 600 mil
habitantes, e sua população judaica era quase 10% desse total, perfazendo a maior
comunidade de judeus fora da Cisjordânia. É neste contexto que o Livro da Sabedoria
se inscreve, fazendo referências ao povo santo e eleito, que vive sob o cuidado de
Deus, com recorrentes menções ao Êxodo e aos Patriarcas, no sentido de manter
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uma conexão com a tradição hebraica, apesar de ser um livro produzido em


ambiente helenista.
Em homenagem ao mais proeminente símbolo da sabedoria de Israel, o livro
é atribuído a Salomão, apesar de que, sabidamente, tenha sido redigido séculos
depois de sua morte. Seu autor era, de fato, um judeu bastante orgulhoso de suas
origens, ainda que as reescrevesse em frutífero encontro com a filosofia e a cultura
gregas.
Nesse sentido, o autor se dirige a três grupos em particular: aos príncipes,
exortando-os que roguem a Deus por sabedoria, como fez Salomão, para reinarem
com justiça e humildade; também aos filósofos helenistas, advogando sobre a
sublimidade da sabedoria que percorre as escrituras judaicas; e também ao público
jovem, ao estilo proverbial do ancião que aconselha as novas gerações a
permanecerem na tradição hebreia.

3.2 Eclesiástico ou sabedoria sirácida: um judaísmo helenista

Certas tradições rabínicas do Talmud e São Jerônimo, patrono da Bíblia para


o latim, mencionam a Sabedoria de Jesus Ben Sirac (Jesus, filho de Sirac), em seu
original hebraico, embora só tenha chegado até nós por meio das traduções grega,
latina e siríaca. O texto foi produzido perto do ano 180 a.C, em Jerusalém, em um
processo semelhante ao dos demais livros sapienciais. O momento histórico era de
mudanças sociais e políticas: deixava o poder a dinastia ptolemaica, centrada no
Egito, e assumia a monarquia selêucida, da Síria.
A tradução para o grego seria empreendida pelo neto de Ben Sirac, ao se
mudar para o Egito, em 136 a.C. A ideia era fazer o texto acessível e promovê-lo à
ampla comunidade judaica da diáspora. Na ocasião, o tradutor acrescentou um
prólogo à obra, apresentando seu avô como autor. Sofía Iesoû Sirách será assim
nomeado até meados do século 3 d.C, quando nas citações de São Cipriano, já em
latim, será chamado de Ecclesiasticus Liber, indicando o uso que a Igreja (do grego,
Eclesía) fazia do livro.
A crítica textual tem reconhecido no autor uma convergência com a teologia
javista pós-exílica, simpático à filosofia grega de sua época. Diferente do que proporia
o tardio Livro da Sabedoria de Salomão, em Eclesiástico o conhecimento hebraico
não estava em direta contradição com a razão grega, o que permitiria uma maior
assimilação das proposições helenistas.
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Tanto quanto os outros livros sapienciais, o Sirácida se deparou com as


questões em torno da justiça retributiva divina. Nesse escrito, é dada grande atenção
a temas deuteronomistas e da obra sacerdotal, com relação ao Templo e o ofício
religioso, por exemplo, visando diferenciar a tradição judaica dos costumes gregos.
Em seus versos, também promove um encontro entre o amor à Lei e o amor à
Sabedoria; uma remeterá à outra, e quem assim viver encontrará as bênçãos que
cabem ao justo.
Fazendo coro com a obra proverbial, em Eclesiástico, a sabedoria e o temor
ao Senhor, devem ser a principal busca do indivíduo, tal como fizeram as pessoas de
fé na história hebraica. Entretanto, a influência helênica se mostra na maneira com
que Ben Sirac descreve os heróis bíblicos: por um lado, guardando o estilo sapiencial
hebraico, e por outro, inspirado nos poemas de louvor aos heróis da mitologia grega.
A aproximação com o helenismo resultou, ainda, na aceitação de certas
formas de visão, como a superioridade do ócio filosófico sobre o trabalho braçal e
na naturalização das formas de escravidão existentes. Mesmo assim, o judaísmo aqui
apresentado é já uma forma refinada daquele judaísmo inaugurado em Esdras-
Neemias, e não se pode mais falar numa única expressão religiosa dele. Essa
fragmentação só encontraria uma proposta de unificação eficaz com o farisaísmo do
ano 70 d.C, que tomou um caráter mais padronizado após a destruição do templo e
definiu, através das sinagogas, a tradição rabínica que chegaria aos dias de hoje.
Nos capítulos 1 a 43, se assemelha ao livro de Provérbios, colecionando versos
de sabedoria popular e sentenças dos escribas. Na segunda parte (44 a 50), o livro
inaugura um gênero que, até então, não aparecia na literatura de sabedoria: uma
espécie de história-sapiencial, em que medita a respeito da obras do Criador, bem
como exalta os feitos dos antepassados, para servirem de exemplo às gerações
futuras.

4. Salmos e cântico dos cânticos: a poesia sagrada

O mais extenso livro da Bíblia, os Salmos, são os Tehillim da versão dos


hebreus que, numa tradução aproximada seria “louvores”. Na LXX, a coleção de
cânticos religiosos ganhou o título de Psalmoi, que vem do instrumento musical
psalterio, bastante utilizado na composição e execução dos salmos, que são uma
expressão musicada da sabedoria e da teologia do povo hebreu.
O outro livro, do mesmo gênero poético, é o que ficou conhecido também
como Cantares de Salomão. Ao estilo dos salmos, é também uma coleção de cantos,
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porém sua finalidade não é o uso no templo ou nas peregrinações a Jerusalém.


Foram escritos, isto sim, em louvor ao amor, explorando as várias dimensões da
experiência humana da paixão e da sexualidade.

4.1 Salmos: louvores de Israel

Alguém pode se perguntar o porquê de o livro dos Salmos ser não só o


primeiro livro sapiencial da Bíblia hebraica, como também o primeiro dos Ketubim. A
lógica parece fazer mais sentido quando, no primeiro salmo da coleção, já se tem um
cântico sobre a bem-aventurança de quem “não anda segundo o conselho dos
ímpios”, mas que se aplica em conhecer e cumprir a ética da Torá na vida diária.
Nesse sentido, o livro das orações traz à tona a função da devoção e da
meditação na lei de Deus para a vida judaica, que é conscientizar e fortalecer a
pessoa a se manter no caminho da justiça e a dar bons frutos. Muitos mais salmos
similares ao primeiro exemplificam essa conexão com a literatura sapiencial, como o
37 e o 119, entre outros. Os Salmos utilizados, durante as peregrinações à Sião (120-
134), são também permeados de sabedoria.
Na Bíblia, há 150 salmos, o que faz deste livro seu maior, em extensão. Eles
foram distribuídos em cinco partes, em alusão à Torá. Esta coleção de hinos de
alegria, súplicas, lamentos e orações tinha a dupla utilidade de nutrir a
espiritualidade do povo do AT e de tornar a reflexão sapiencial em música, que podia
ser cantada, dançada ou recitada e, portanto, mais facilmente memorizada.
A popularidade desses salmos, escolhidos a dedo, se dava, principalmente,
pela forma bela e humana com que tratavam questões próprias da existência de um
povo que vivia as delícias e dissabores dos tempos bíblicos. Os saltérios
questionavam a Deus pelas perseguições, injustiças, doenças e escassez de alimento
em tempos de guerra; denunciava as dominações imperiais e clamava por uma
resposta de Deus a estas e outras questões, inclusive nas relações dentro da própria
comunidade judaica. Mas, também celebravam a vida, a presença e o cuidado
divinos, as reuniões familiares e as festas litúrgicas da religião.
As poesias são de datas muito distintas entre si, cobrindo séculos de
perspectivas teológicas e de visões de mundo emanadas dos momentos em que
surgiram. Os mais antigos remontam ao nono século antes de Cristo,
contemporâneos ao reinado davídico. Grande parte do livro é de composições pós-
exílicas. Os últimos salmos são, provavelmente, dos tempos dos macabeus, em
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meados de 150 a.C., No entanto, datações e autorias exatas são difíceis de


estabelecer.
O peso da tradição irá atribuir grande número de salmos a Davi, descrito nos
livros históricos como músico exímio e grande entusiasta da centralidade do culto,
no templo de Jerusalém. De fato, a inegável ligação dos Salmos com a teologia javista
do Sul darão a Davi o patronato da música sacra judaica, assim como Salomão era
para os textos de sabedoria. No entanto, há indicações de outros salmistas: Asaf,
filhos de Corá, Salomão e até o grande Moisés.
Sem dúvida, o Saltério é uma fonte profícua para conhecermos a teologia
cantada pelo povo de Deus. Representam as muitas nuances da face divina, por
vezes contraditórias entre si, acumuladas ao longo de diferentes processos
históricos e de ricas experiências da espiritualidade que bebe da criação, do êxodo,
do exílio, da reconstrução, colocadas lado a lado. Destaca-se, sobretudo, o amor que
Javé tem pelo seu povo e a franqueza com que os fatos são apresentados à luz desse
vínculo.

4.2 Cântico dos cânticos: um louvor ao amor humano

A íntima ligação entre os Escritos hebraicos, mais uma vez, aparece na


proximidade canônica, entre o livro de Rute e o de Cantar dos Cantares, cuja
sequência faz sugerir continuidade entre o amor celebrado pelo casal do primeiro
no segundo.
De fato, as semelhanças entre a sábia Rute e a empoderada amada-amante
dos Cânticos são notáveis, mesmo que os textos não tenham conexões autorais.
Essa mulher, que solta sua voz no canto, se mostra dona de suas palavras e de suas
intenções, expressa o que sente e o que quer ao amado, que a corresponde e faz de
tudo para agradar seus insaciáveis desejos. Talvez, por isso, sua poesia provoque
certo temor, ao longo dos séculos, especialmente entre leitores masculinos,
acostumados a serem a primeira voz em quase tudo.
Em Shir Hashirim, há realização do tão sonhado encontro e a troca dos
mistérios que envolvem o amor humano. Ao mesmo tempo, há sofrimento e angústia
pelos desencontros, pelas barreiras sociais, pelo sofrimento que acomete o povo em
que vivem, fazendo do seu amor quase impossível. Não obstante, o amor se realiza,
por entre as árvores e a vida campestre dos amantes, e o prazer do encontro, enfim,
se concretiza, ainda que só nos “romances”.
Panorama do antigo testamento – Unidade 3 – Livros de sabedoria e de poesia bíblicas

Ela é negra, talvez estrangeira. Seria moabita? Sua pele é queimada pelo sol, o
que sugere não ser alguém que se oculta, mas que sai em busca da sobrevivência,
que trabalha, que se expõe à dura vida do antigo oriente médio. Certamente, uma
mulher como todas as outras, ainda que muito diferente das demais. Não deixa de
aludir à Sabedoria, aquela mulher-Deus que anda pelas ruas e clama por quem possa
seguir seus passos. O grito feminino pela justiça e pela vida em plenitude, a voz do
gênero oprimido num mundo que celebrava os patriarcas e tinha, nas mulheres,
nada mais que uma propriedade, noção que ainda perdurava, após a reforma de
Esdras-Neemias.
O poema central de Cantares (cap. 3) assume expectativas messiânicas, pois
fala de períodos melhores, em que sacrifícios sobre-humanos não serão mais
necessários para a realização do amor. Este é um privilégio de rei que, talvez, apenas
Salomão tenha podido viver com sua amada Sulamita, ao mesmo tempo em seu
reinado fora marcado por opressão e desigualdade.
O amor entre duas pessoas é inspirado no amor divino pelo seu povo e na
resposta recíproca: o querido se lança pelos montes em busca de encontrar sua
enamorada, o amor arde como chama que consome de zelo e anseio pelo bem.
Na verdade, foi difícil reconhecer a canonicidade de Cantares, tanto entre
judeus, quanto entre cristãos, dada a sua abordagem honesta do amor e do desejo
humanos. Parece que isso só foi possível mediante interpretações metafóricas e
espiritualizantes do amor de Cristo pela Igreja ou de Javé por Israel, que em sua
maioria nada tinham a ver com o propósito de Cânticos.
Os poemas de Shir Hashirim foram reunidos após o ano 400 a.C, encontro
entre os tempos de dominação persa e a chegada dos macedônios helenistas, e
eram utilizados em celebrações nupciais. Embora atribuídos a Salomão, em razão de
sua fama de sábio compositor, o livro expressa um contexto posterior. Possui
elementos próprios das cortes reais e, também, das comunidades pastoris e
campesinas.

Síntese

Nesta unidade, passeamos brevemente pela apaixonante escrita sapiencial e


poética. Embora tenham chegado até nós como unidades inseparáveis, a riqueza dos
textos bíblicos está justamente na diversidade com que foram construídos.
Em resumo, nesta unidade, vimos que:
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● Na escrita sapiencial e poética, é possível e necessário avalizar a


distinção entre os provérbios ou ditos populares, que são frutos da
sabedoria do povo que vive sua experiência de Deus, e as sentenças
anexadas pela elite intelectual e cortesã aos textos finais, objetivando a
formação social, política e religiosa da comunidade;
● O propósito dos Escritos, era, na verdade, ser um compilado de textos
do povo para o povo, visando servir de consolo e esperança em meio
aos mais desfavoráveis cenários;
● Há, na verdade, em todos os Ketubim um viés sapiencial. Isso nos
mostra um aspecto muito importante da transversalidade da sabedoria
judaica: ela coloca, lado a lado, textos de origens, concepções e
objetivos distintos, de modo a fomentar debates e a fugir das
unanimidades. Aliás, uma conhecida anedota judaica já dizia: para cada
três rabinos (mestres judeus), há quatro opiniões diferentes.

Até a próxima unidade!


Panorama do antigo testamento – Unidade 3 – Livros de sabedoria e de poesia bíblicas

Bibliografia

CHARPENTIER, Étienne. Para ler o Antigo Testamento. São Paulo: Paulus, 1986.

DRANE, John (org). Enciclopédia da Bíblia. São Paulo: Loyola – Paulinas, 2009.

SCHMID, Konrad. História da literatura do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,


2013.

SCHWANTES, Milton. Sentenças e provérbios: sugestões para a interpretação da


Sabedoria. São Leopoldo: Oikos, 2009.

SCHWANTES, Milton. Sabedoria: textos periféricos? In: Estudos de Religião, Ano


XXII, n. 34, p. 53-69, jan./ jun. 2008.

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