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O evangelho, a desumanização e o direito á humanidade

Profa. Dra. Jacqueline Moraes Teixeira

Igreja e direitos humanos combinam? É possível falar sobre essa


temática num contexto social como o nosso? Para demonstrar o quanto
este livro representa muitos dos anseios e responde as indagações
apresentadas acima, vou seguir apresentando uma breve história que
inicio aqui trazendo o trecho de um sermão:

“Há outras nações, pelo contrário - e estas são as do Brasil -, que recebem tudo o que lhes
ensinam com grande docilidade e facilidade, sem argumentar, sem replicar, sem duvidar,
sem resistir; mas são estátuas de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jardineiro,
logo perdem a nova figura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como antes
eram. É necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes
corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que lhes cerceie o
que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de seus antepassados; outra
vez, que lhes decepe o que vicejam os pés, para que se abstenham das ações e costumes
bárbaros da gentilidade. E só desta maneira, trabalhando sempre contra a natureza do
tronco e humor das raízes, se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e
compostura dos ramos.”

(António Vieira, Sermão do Espírito Santo, § III [ 1657])

Esse é o trecho de um sermão do Padre Antônio Vieira e compõe


uma série de sermões intitulados “Sermão do Espírito Santo” e que pode
ser considerado um dos primeiros exercícios epistêmicos e descritivos de
pessoas que não partilhavam do mesmo perfil étnico racial, das mesmas
perspectivas culturais ou d mesmo repertório social da população branca
europeia responsável pelo empreendimento colonial. No sermão, Pe.
Vieira relata os desafios da evangelização jesuíta junto aos Tupinambas,
etnia numerosa que habitava o território litorâneo do país. Segundo ele,
evangelizar populações indígenas era lidar com a dicotomia mármore
versus murta, o mármore entra no seu sermão como uma figura de
linguagem que representa a população branca do continente europeu,
que que diante do contato direto com o evangelho se deixava moldar,
adquiria uma forma que jamais seria alterada. Aos tupinambás restou a
comparação com a murta, planta de fácil cultivo, encontrada com
frequência nas regiões litorâneas do país. Nas palavras de Pe. Vieira, era
preciso reconhecer a facilidade de um escultor dar alguma forma a uma
escultura de murta, o problema é que no dia seguinte a planta recuperaria
sua forma anterior, exigindo do escultor um trabalho diário de poda e de
cuidados.
Nas conclusões do seu sermão, Pe. Vieira recupera que o caminho
para a evangelização entre as populações entendidas pelo colonialismo
como selvagens é o trabalho missionário contínuo, necessidade que,
segundo ele, ocorre devido as característica da alma ameríndia. Seu
sermão integra um dos primeiros textos que reconhece a existência de
uma alma no corpo Tupinambá, mas sua alma não era composta pelos
mesmos atributos encontrados na alma europeia e branca, pois, ao
contrário de ser marcada pela estabilidade e pela imutabilidade, a alma
selvagem seria determinada, sobretudo, por sua inconstância.
A imagem teológica da alma selvagem passou a ser recorrente em
correspondências e nos documentos oficiais da Igreja Católica para se
referir a qualquer população originária de um território fora do continente
europeu e se tornou um dispositivo para pensar, dentro da tecnologia
colonial ibérica, as políticas de escravização e de morte, isso porque a
alma selvagem correspondia a um estágio anterior a humanidade, que
para qualquer pessoa nascida fora do continente europeu só poderia ser
alcançada mediante a conversão a religião cristã. Sem poder usufruir do
estatuto de humanidade, as populações ameríndias foram foco de um
genocídio sem precedentes, provocando algumas tensões relacionadas a
interpretação de mandamentos e passagens bíblicas que pudessem
desaprovar tais necropolíticas. O dispositivo teológico da alma selvagem
permitiu pensar que o “Não matarás” só deveria ser obedecido perante
corpos cuja humanidade havia sido reconhecida. Não havia qualquer lei
divina capaz de proteger um corpo totalmente desprotegido de sua
humanidade, algo que para esses povos só se tornaria possível por meio
da profissão de fé. Essa ética da conversão como possibilidade de
humanidade também permitiu o sequestro, o tráfico e a escravização da
população do continente africano.
Como pensar direitos humanos em meio a um contexto religioso
cuja história colonial promoveu uma aliança entre religião e políticas de
desumanização? Não tenho dúvidas que este livro nos ajuda a responder
essa proposição!
Afirmando que o reino de Deus é justiça, paz e alegria, Jesus e os
direitos humanos em sua segunda edição propõe a ressignificação da
teologia desumanizadora que marca a experiência religiosa colonial ao
olhar o reconhecimento do princípio de humanidade como um princípio
ontológico, universal e participativo. Fruto de um trabalho coletivo, o livro
traz uma série de reflexões atuais sobre a necessidade de se pensar
estratégias para a garantia e manutenção dos princípios que constituem a
carta universal dos direitos humanos, entendendo que há uma razão
estruturante para tais princípios que pode ser pensada pelos sentidos
bíblicos para o Reino de Deus, que pode ser pensado como um lugar de
reconhecimento da humanidade de corpos que foram violentados e
colocados a margem pelo colonialismo.

Os capítulos são escritos por autoras e autores que buscam


desenvolver um senso prático apresentando perspectivas variadas sobre o
significado que o debate sobre os direitos humanos, para além do seu
conteúdo jurídico, pode representar para a vivência coletiva e sobre qual é
a contribuição bíblica para uma experiência de fé que tenha como
gramática central a igualdade de direitos. O senso prático se desdobra em
cada um dos capítulos numa linguagem acolhedora capaz de apresentar
proposições chaves para o entendimento e transformação da nossa atual
conjuntura sem perder de vista os caminhos possíveis para a construção
de um diálogo sobre os direitos humanos.
Se considerarmos que vivemos num território pós colonial marcado
por uma colonialidade que foi capaz de constituir a religião como uma
instituição promotora de desumanizações, os direitos humanos se
estabelecem como possibilidade de reconhecimento de humanidade para
quem teve esse seu direito mais substancial negado. Um processo de luta
e resistência que esse livro propõe enfrentar.
Assim, pensar a relação entre direitos humanos e religião e, mais
fundamentalmente, pensar a necessidade de se ressignificar, dentro das
experiências religiosas cristãs, a humanidade plena e irrestrita concedida a
qualquer corpo é construir formas de reaproximação com evangelho
pregado por Jesus Cristo, que reconheceu a integridade e a humanidade
em qualquer contexto ou circunstância. Este livro é para você que como
eu partilha da necessidade de recuperar, inspirada no evangelho de Cristo,
a produção de um espaço para o reconhecimento e o acolhimento de todo
corpo que teve sua humanidade roubada. Se você não partilha dessa
perspectiva, esse livro é um convite para caminha junto por mais uma
milha.

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