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Capítulo 6 – Conclusão: “After life”

Nota explicativa: nas páginas que se seguem apresento o resumo e o capítulo 6


(conclusão) da minha tese de Livre-Docência, defendida junto à área de Populaçãoes
Africanas e Afro-Brasileiras (DA/FFLCH/USP), intitulada Des braves gens qui s’aiment
de détester ensemble. Inclui o resumo para que quem for ler, possa ter uma ideia da
discussão tecida na introdução e nos cinco (05) capítulos que antecedem a conclusão.
Neste texto, reflito sobre alguns dos dilemas experimentandos no trabalho de campo que
realizei junto à extrema-direita que apoiava a manutenção e, posteriormente, o retorno do
regime do apartheid.

MOUTINHO, Laura. Capítulo 6 – Conclusão: “After life”In: Des braves gens qui
s’aiment de détester ensemble, Tese de Livre-Docência, Departamento de
Antropologia FFLCH/USP, 2018.

RESUMO
O objetivo desta tese é interpelar de modo crítico a ordem moral humanista, intrínseca à
construção e à afirmação de regimes democráticos recentes, através de diferentes
perspectivas. O foco da análise, que tem como cenário a África do Sul, atém-se ao que
ficou enquistado, a despeito de toda uma tecnologia social que foi construída no sentido
de forjar uma ordem social não mais marcada pela raça e pelo racismo. Neste trabalho,
percorre-se o clima de verdades e rumores que se seguiu ao assassinato de Eugène
Terre’Blanche, líder da extrema direita racista sul-afriana, tal como apareceu na mídia e
repercutiu na Cidade do Cabo e, em especial, na cidade onde ele residia e foi assassinado,
Ventersdorp. Em seguida, o foco é ajustado para a teologia racial que sustenta a
segregação e contaminou uma sociologia a serviço do regime do apartheid. A biografia
de um líder que ser quer a voz de seu povo é analisada como uma forma de se acessar
suas ideias e valores por outra perspectiva. Neste ponto, demonstro como o sentido laico
do perdão mobilizado pelo processo de reconciliação do pós-apartheid esbarra em
significados religiosos que essa noção passa a assumir para os nacionalistas cristãos da
extrema-direita. A escatologia racial, que implanta a sociedade do escrutínio, é
perscrutada através do processo de construção do processo legal que levou à
implementação da Mixed Marriage Act, entre os anos 30 e 40. Um caso jurídico é
analisado com o objetivo de tornar audível as vozes e os danos que sofreram aqueles
submetidos à legislação que visava conter a miscigenação. Ao fim, o foco incide sobre
parte da produção clássica antropológica que aborda a segregação e inquire-se sobre os
1
dilemas de se realizar pesquisa nesse cenário. Ao longo de toda a análise, interpela-se o
processo de desenvolvimento de uma concepção militarizada, racial, religiosa e
generificada de cidadania.

2
Capítulo 6 – Conclusão: “After life”

It’s dangerous to open old wounds. Is it really necessary? [após


um momento de silêncio inquisitivo ele perguntou:] Tell me: why
do I need Laura to come as a reminder of that terrible past?
– Conversa com um amigo na África do Sul

Naquele universo tão estranho não foi simples entender os extremistas


africânderes como parte de um intercâmbio cultural e humano, para pensar nos termos de
Johannes Fabian. Minha reação inconsciente inicial, foi empurrá-los para longe do meu
universo de referência (em termos de tempo, espaço e maneiras de pensar), de tão
incômoda que foi a aquela experiência. A palavra que me permitiu criar uma distância
espaço-temporal foi loucos. Sei que não fui a única a pensar assim. Há toda uma literatura
voltada ao entendimento (ou a falta dele) a respeito do apartheid como loucura.
Mesmo negando a esfera intersubjetiva do trabalho que eu realizava, a
humanidade deles se impôs e não tardou a me desafiar em termos morais, éticos, culturais
e etnográficos. Entretanto, a própria temporalidade se transformou, modificando
concomitantemente a experiência etnográfica. Transformá-los em humanos e permitir que
um processo de intersubjetividade acontecesse implicou repensar, junto com o
movimento de empatia que caracteriza as pesquisas, meu próprio racismo e as redes de
interações e parcerias com quem pesquiso há cerca de 20 anos no Brasil, África do Sul,
mas igualmente nos Estados Unidos (especialmente, Princeton e Nova York) e
Moçambique, mais recentemente.
Encontrei amparo na reflexão de Guita Debert que argumenta em favor do
“abandono da ideia de que uma identificação empática com os nossos informantes é
necessária para apreender as categorias através das quais eles operam” (2004: 50).
Na teologia racial pesquisada, a ordem divina justifica a distribuição injusta das
condições de vida. O sofrimento aparece em duas grandes acepções: aquele infligido por
Deus, pois os fiéis não seguiram sua orientação para a desigualdade – como disse o
Dominee: “Deus nos abandonou, pois os blacks estão no poder” –; e o sofrimento
derivado das guerras e lutas necessárias para implantar a ordem racial divina, o reino de
Deus na terra.
Nessa escatologia racial, o sofrimento impingido aos blacks é sustentado como
legítimo, pois reflete a aprovação divina. Chama atenção a ausência dessa linguagem nos
processos criminais: a escatologia racial entranhada na lei produz ao operador uma auto-

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justificação e um idioma para infligir o sofrimento. Na cosmologia africânder, o estar no
mundo é imbuído de uma missão belicosa, sofrida, porém divina.
Ao produzir e permitir a coetaneidade, precisei reinscrevê-los nesse mundo como
parte importante de uma dinâmica de relações. Sei que um dos principais biógrafos de
Hitler optou por não produzir um olhar humanizador sobre a sua figura1: aquele que foi
responsável pelo Holocausto não tinha o direito de ser visto como alguém que apreciava
pintura, cinema, literatura, que passeava com seu cachorro ou ainda que pudesse se
apaixonar. O trabalho etnográfico e o mergulho na história sul-africana não me
permitiram negar a humanidade dos extremistas de direita que partilham um
fundamentalismo religioso de base racial e racista.
Teria eu esse direito? Foi a primeira pergunta que me ocorreu ao término do
funeral de Eugène Terre’Blanche. Sufocada, refleti: por que trazer à luz do dia figuras
que pareciam enterradas pela história? Que tipo de interesse a antropologia brasileira –
marcada por um viés fortemente humanista – poderia ter em relação a um grupo distante
em termos geográficos e morais? Por este motivo, ao longo dos anos em que realizei esta
pesquisa não publiquei muitos artigos diretamente a respeito do tema. Passei um bom
tempo digerindo leituras. Nesse sentido, incluo a realização do pós-doutorado na
Universidade de Princeton e os cursos ministrados por Didier Fassin e João Biehl que
pude acompanhar na ocasião. Também foram oportunidades de reflexão e
experimentação as apresentações de papers em variados encontros, seminários e
palestras, além dos encontros anuais da Anpocs, que foram excelentes espaços de
interlocução. Destaco ainda o paper apresentado na American Ethnological Society
Spring Meeting, em Boston, em 2014, e a palestra ministrada sobre a etnografia do funeral
de Eugène Terre’Blanche no Departamento de Antropologia da Universidade de
Stellenbosch – o berço do nacionalismo africânder. Trata-se de uma universidade que
retém, apesar de todas as pressões, um espaço de celebração da cultura africânder. Essa
foi a primeira vez que apresentei a pesquisa a um público sul-africano, majoritária mas
não exclusivamente, white.
Raça e racismo são categorias que, embora possuam uma dimensão analítica, são,
em verdade, frequentemente utilizadas de modo descritivo, prescindindo de definições e
referidas a uma “realidade social objetiva”, marcada pela exclusão desumana e delineada
por fronteiras fortemente morais. Racismo – um dos operadores ou definidores da ideia

1
Sobre biografias, ver Silva (2013).

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de raça – agencia sentidos valorativos e morais que respondem a constatações. A força
está na sua literalidade. Constata-se a selvageria, a sensualidade exacerbada, a tendência
à criminalidade. Constata-se no comportamento e no corpo. Constata-se nas inúmeras
imagens nas quais grupos étnicos africanos exuberantes são misturados a uma natureza
igualmente exuberante2.
Esta literalidade (pensada aqui em termos de Crapanzano, 1986) produz um modo
de subjetivação marcado pela subalternidade e confirmado na África do Sul
cotidianamente: seja através de situações em que a raça está presente mesmo quando não
mencionada, mas associada aqui a um território especifico (por exemplo, em programas
de TV ou reportagens sobre os townships), ou quando está literalmente presente (por
exemplo, articulada a rumores associados aos homens blacks como estupradores); seja na
dinâmica de subalternização cotidiana (como em rituais arrogantes visíveis no mundo do
trabalho ou em âmbito escolar).
Em realidade, os sentidos do racismo, do rape e da subalternização estão em
disputa e negociação. Em meu trabalho de campo, fui aprendendo de que modo
velocidade e distância articulavam raça, gênero e medo. Vejamos estes registros de
diálogos aparentemente simples que presenciei:

Situação 1
- Onde você mora? Em Muizenberg (região de praia da Cidade do Cabo)
- Nossa! É longe!
- Depende. Para os whites, sim. Mas os blacks estão acostumados a esta distância.
Situação 2
- Está tarde para sair?
- Para uma mulher white, sim. Somente homens blacks andam nas ruas a essa hora.
Situação 3
Como cidades sitiadas pela desigualdade social com inequívocos cortes raciais, a
vida noturna é frequentemente evitada. Certo dia, eu chegava em casa, no Sea Point,
bairro nobre da Cidade do Cabo, às 2 horas da manhã, vindo da biblioteca da University
of Cape Town (UCT), que funciona 24 horas. Cansada, notei através dos sentidos que um
dos dispositivos do Estado mostrava sua força: um farol alto foi jogado sobre mim e Paulo

2
Ver, como exemplo, um recente ensaio fotográfico sobre o grupo dinka no Sudão:
http://www.hypeness.com.br/2014/02/fotos-extraordinarias-da-tribo-dinkas-no-sudao/, acesso em agosto
de 2017.

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– eu ainda estava no carro ajeitando alguns pertences, ele já saíra para dar conta de outros.
Cega e incomodada com a luz abri imediatamente do carro, preocupada com o fato de
que Paulo, que é visto como coloured na África do Sul, poderia ser acossado para a
polícia. Ao me deslocar, caminhei para a traseira do carro, perguntando se tinha
acontecido alguma coisa. Paulo fez o mesmo movimento. O policial respondeu: “you tell
me”. Enquanto, desconfiados, pegávamos nossas bolsas e nos encaminhávamos para casa,
ele continuou jogando o farol. Foi então que percebi que eles estavam garantindo nossa
segurança: não se supõe que moradores do Sea Point estivessem nas ruas àquela hora.
Diante das situações e experiências vividas, foi impossível não refletir e tentar
colocar em perspectiva a legitimidade, bem como as consequências morais e éticas, de se
mergulhar com viés antropológico em temas controversos. Precisei tecer reflexões a
respeito da posição e dos dilemas do etnógrafo – ou da etnógrafa – em situações limites.
O que se deve esperar que se faça em cenários desse tipo? O que é moralmente aceitável?
Essa é uma pergunta que devemos no colocar?
Como argumenta Lévi-Strauss em Tristes Trópicos (1996), uma viagem
representa um deslocamento no espaço e na hierarquia social. De um modo geral,
entretanto, os antropólogos estão numa situação de poder em seus deslocamentos: a
empatia pelo outro e sua constante defesa estão articuladas a uma rede diferenciada de
prestígio e status.
No entanto, esta posição não implica, de um modo geral, ter poder de ação.
Lembro da angústia que sentia nos sábados de chuva em 2002, quando pesquisava em
Rio das Pedras, uma comunidade situada na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro.
Erámos uma equipe de três professores e alunos das ciências sociais da PUC-RJ. Eu sabia
que a Ana, que tinha um bebê de poucos meses, a Maria e a Dona Solange teriam suas
casas inundadas pelo rio, que era na verdade um esgoto e iria encher e transbordar a cada
temporal, prejudicando particularmente os favelados da favela – a classe média local
estava protegida. Elas me demandavam ações rápidas do governo e eu precisava explicar
sempre, com enorme sentimento de impotência, que nossa equipe não tinha esse poder.
Concomitantemente, além de produzir um livro, conversamos com a Associação de
Moradores e os políticos locais. Por fim, recebemos, em 2005, uma moção honrosa com
pompa e cerimônia da Câmara Municipal da cidade do Rio de Janeiro. No texto, destacou-
se “a responsabilidade de uma Escola transformadora, capaz de levar o conhecimento
produzido na universidade para a sociedade, contribuindo para despertar uma maior
consciência da realidade social da nossa cidade (...). O resultado desses trabalhos há de

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se transformar em uma eficaz ferramenta na condução da política municipal”. O texto
traduzia nossos ideais. Rio das Pedras tem uma dinâmica que nos ultrapassa. Muitos
daqueles com quem negociamos a pesquisa e apresentamos os resultados estão mortos,
inclusive o vereador que propôs a moção: todos assassinados por supostos envolvimento
com as milícias.
A indignação com a desigualdade social foi um dos motivos que me aproximaram
dessa comunidade da zona oeste carioca, onde observei a valorização de uma certa
morenidade articulada a um padrão de masculinidade não arrogante como os das favelas
com tráfico – Rio da Pedras era conhecida por ser “boa pra criar filho”, pois o tráfico de
drogas havia sido coibido. Foi, entretanto, um sentimento similar que me manteve
pesquisando um grupo como o sul-africano pelo qual eu não nutria simpatia, embora
jamais tenha sido maltratada. Diferentemente de outras pesquisas, na África do Sul
precisei me mover entre fragmentos em um processo etnográfico que articulou as
dificuldades de entrada no cenário investigado com o problema da frequente desconexão
entre os fluxos institucionais e intelectuais para obtenção de licença e longos
afastamentos.
Como afirma Guita Debert

A definição dos temas de pesquisa não pode, assim, prender-se à


possibilidade de delimitação de um lugar em que a observação
participante poderá ser realizada de acordo com os cânones tradicionais
do fazer etnográfico. Quando o interesse é a interlocução entre os
fragmentos, é preciso buscar acessos privilegiados para a pesquisa e
nem sempre esses acessos são aqueles que possibilitam a realização do
trabalho de campo nos moldes tradicionalmente propostos pela
pesquisa antropológica. Além disso, nosso acesso às instituições
governamentais, agências de publicidade, laboratórios de
medicamentos e cosméticos, clínicas e consultórios fica prejudicado se
dissermos com clareza quais são os objetivos e as hipóteses que
organizam nossa pesquisa (2004:50).

Em interessante reflexão a respeito de dois ensaios escritos, respectivamente, por


John Borneman e Veena Das, Michael Herzfeld argumenta que ambos colocam, apesar
das diferenças, um problema similar: as regras e políticas, que incidem sobre corpos e
pessoas (o saber antropológico, portanto, não estaria restrito ao estudo de sistemas, nem
seria apenas uma ciência normativa que “recapitula os sentidos da ordem”), demandam
da antropologia uma resposta crítica (2014: 274). Herzfeld caminha por um pantanoso
terreno ao se arriscar a elaborar uma posição ética para a antropologia, que na sua
percepção deveria se mover com considerável distância de dois extremos

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“insustentáveis”: o racismo e outros formatos de essencialismos e intolerâncias e, em
outro sentido, um relativismo cultural que pudesse ser usado como justificativa para
massacres e genocídios. Em resumo, os limites da antropologia cruzariam com os limites
da própria vida. Porém, como agir se nos depararmos com aqueles que fazem a gestão da
morte em plena vida?
Didier Fassin, em uma discussão sobre moral e antropologia, aborda um debate
que animou a antropologia estadunidense há alguns anos “entre o detrator dos ‘modelos
morais em antropologia’ (D’Andrade, 1995) e a campeã da ‘primazia do ético’ (Scheper-
Hughes, 1995)”. Nancy Scheper-Hughes conclama o posicionamento político dos
antropólogos extrapolando as fronteiras da antropologia e do relativismo cultural. Sua
postura é defendida de modo eloquente em vários trabalhos, mas tive oportunidade de
justamente acompanhar parte desse posicionamento em um evento, na Universidade de
Berkeley, por ocasião de uma homenagem e celebração do legado de Nelson Mandela,
em maio de 2014. Não foi sem angústia que me deparei com dois dos personagens do
texto “Violence and the politics of remorse: lessons from South Africa”. No artigo, a
autora apresenta o seu olhar acerca do trabalho da Comissão de Verdade e Reconciliação,
com especial foco no desenrolar do processo com dois assassinos da estudante
estadunidense Amy Biehl, que foram anistiados após as audiências, tendo retornado para
seus townships em uma posição de limbo social. Scheper-Hughes, no sentido de fazer
valer a justiça restaurativa e a reconciliação, interveio colocando os pais da menina
assassinada em contato com os assassinos. Ambos acabaram empregados na fundação
criada pelos pais, que levava o nome da estudante, voltada para jovens de townships na
África do Sul. Conforme afirmou Scheper-Hughes na conferência, aquele teria sido “an
extraordinary act of reconciliation between two worlds of suffering, one personal, the
other political”.
Neste ponto, gostaria de retornar à epígrafe que abre este capítulo. O espanto de
se realizar uma pesquisa sobre Eugène Terre’Blanche, “the ugly”, foi recorrente. As
reações e seus múltiplos significados evidenciaram que apenas uma pesquisadora distante
da experiência política e subjetiva do apartheid, que não traz na família, nas redes de
relações e no corpo suas marcas, poderia olhar para essa questão como um objeto passível
de ser retirado da cova da história, no exato momento em que o líder do AWB nela
sucumbiu. Não sei se a reconciliação da forma proposta pela antropóloga teria eco se os
pais de Amy não fossem estadunidenses.

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Explorações e sentidos
Outra dimensão, em sentido distinto que o tema ora em tela suscita, refere-se à
interação com o grupo num momento limite como o do funeral e do enterro. No episódio
da bandeira narrado no Capítulo 1, mencionei sem maiores detalhes as experiências
vividas por Veena Das em seu longo trabalho de campo na Índia, realizado também em
situações extremadas. Nota-se na leitura de Life and Words, bem como na de outros
artigos publicados, que a autora mantém um percurso etnográfico de décadas numa
mesma rede relações.
Para ser justa com Veena Das, que inspira profundamente e orienta inúmeras
análises contemporaneamente, entre as quais a minha própria, gostaria de tecer algumas
considerações acerca de três episódios narrados em seus escritos.
Em Life and Words, há três grandes figuras femininas: Asha, Manjit e Shanti. A
primeira delas, Asha, é descrita como uma mulher jovem que, tendo enviuvado cedo, se
envolveu com alguns episódios moralmente duvidosos na família do marido, agravados
com a partição da Índia. Asha maneja as regras e encontra um espaço para si que a obriga,
entretanto, a trabalhar árdua e constantemente para manter a rede relações com uma
família que ela amava.
Manjit tem um percurso completamente diferente. Veena Das chega a dizer que
algumas feministas poderiam inclusive ver Manjit como submissa, mas Das destaca seu
poder de agência, mesmo numa situação de extrema desigualdade. Com um marido
violento, não foram poucos os momentos que Manjit sofreu violência em casa. Em um
deles, num episódio que envolvia também a nora de Manjit, a quem seu marido odiava, a
antropóloga prontamente interveio, ameaçando o marido com a lei: se ele não parasse, ela
iria recorrer à polícia. Ele a ameaçou de volta. Um embate é sugerido de modo que Veena
Das se torna uma das personagens da cena de conflito: uma personagem ativa que apoia
um dos lados do embate (sem dúvida naquele cenário o lado mais fraco) que envolve
gênero e complexas regras patriarcais de parentesco. Quis honestamente ter agido assim
quando o rapaz colocou a bandeira do apartheid pela janela do carro. O que me impediu?
O pânico e os rumores acerca da violência que haviam sorrateiramente ocupado meu
campo de referências e meu coração.
A situação de Shanti, já no contexto da análise sobre o massacre que se seguiu ao
assassinado de Indira Gandhi, é de extrema complexidade e delicadeza. Uma vez mais, a
antropóloga é uma personagem da rede relações que analisa. O processo, entretanto, é
significativamente diferente e produz dores profundas e inúmeros danos nos envolvidos.

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Shanti assistiu aterrorizada a um grupo colocar fogo em sua casa, onde seu marido e seu
filho (um menino) foram queimados vivos na onda de assassinatos. A história de Shanti
é, de fato, o mais pungente retrato de luto e tristeza que compõe o texto de Das. Marcada
por uma dor paralisante, sentindo que a perda do filho lhe roubara a possibilidade de
continuar sendo mãe de suas filhas, petrificada pela culpa e enredada em difíceis normas
de parentesco, Shanti acaba por cometer suicídio. Se a narrativa se inicia na primeira
pessoa (I saw, I heard), como de resto segue todo o livro, no momento da morte de Shanti,
Veena Das passa a utilizar a primeira pessoa do plural (we) e, de forma tão sensível como
dramática, se coloca, ela própria, na onda de culpa que se seguiu ao suicídio. Sigamos a
sua narrativa por um instante: “Shanti’s suicide raised devastating questions to which I
am not sure we had the answers. Since she had so often indicated her desire to find peace
in death, we repeatedly asked ourselves how we could have prevented her death” (2007:
191). Das tentou adotar as filhas de Shanti com o apoio de sua mãe (a avó), mas o avô do
lado paterno recusou. Era ele, seguindo a linhagem patriarcal de distribuição de
compensações financeiras que visavam minorar a tragédia, quem seria o responsável por
receber o benefício do governo. Ela tampouco conseguiu que as meninas fossem adotadas
por outra família sikh, nem conseguiu prover a educação de ambas.
Asha e Manjit em seus processos de luto, absorveram o veneno das relações nas
quais estavam inscritas, ao mesmo tempo em que as repararam cuidadosamente. Shanti
foi tragada por uma dor que, além de ser coletiva, mobilizava de modo complexo as
relações e as normas. Ela não podia manejar a memória, nem se desvencilhar do lugar
reservado às mulheres na lógica patriarcal, reformulando-a através das conexões
femininas como outras fizeram. Conforme Veena Das argumenta: “death and masculinity
finally broke the hold of life and feminity” (2007: 193).
Ao final do primeiro capítulo de Life and Words, que é em verdade a introdução
dessa sensível e densa análise, a antropóloga afirma, no último subitem, intitulado “The
darkness of this time”:

For me the love of anthropology has turned out to be an affair in which


when I reach bedrock I do not break through the resistance of the other,
but in this gesture of waiting I allow the knowledge of the other to mark
me. In this sense this book is also an autobiography (2007: 17).

Se entendo algo do sentido expresso neste pequeno excerto do texto, Veena Das
argumenta pela parcialidade e, penso, pela precariedade do conhecimento produzido em
situações extremas – uma parcialidade que vem das possibilidades do seu próprio olhar e

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da complexa aproximação com o “outro”. Se é um ponto de vista, o dela, o que a autora
defende que irá apresentar, surpreende que ela use knowledge e não experience ao se
remeter à autobiografia. Ao se acompanhar as passagens da análise nas quais ela não
apenas descreve e analisa, mas igualmente se coloca e, sobretudo, age em favor daqueles
que, numa certa correlação de forças, são apresentados como sendo os “mais fracos”,
vemos como ela se mostra afetada pelo conhecimento: pelo que ouve e absorve.
A Índia é seu local de origem. Gluckman e Schapera eram um sul-africanos –
apenas para citar dois dos que, como a maior parte dos antropólogos no Brasil, realizaram
ou realizam pesquisas em contextos de suas próprias sociedades. Mesmo não
enveredando pelos caminhos da auto-etnografia – como o fez brilhantemente Grace Cho
(2008) – trata-se de alguma familiaridade não presente entre aqueles que se embrenham
por contextos radicalmente distintos. Veena Das não se coloca na análise como indiana,
mas se deixa absorver – como fizeram Asha e Manjit – pelo conhecimento. Levanto esse
ponto para destacar, de todo modo, a maior possibilidade de ação e reação quando se
enfrenta uma situação na qual há um mínimo domínio dos códigos. Ao menos foi assim
que me senti ao ser dominada pelo pânico ao conversar com o rapaz que, embriagado,
exalava não álcool, mas ódio e violências raciais. Ao término da leitura de Life and
Words, vemos como Das se torna parte do cenário pesquisado, mas não como indiana,
como o faz Glukman (1955) “as a son of Africa”. Antes, o que sustenta a sua adesão é a
escuta antropológica. Se Asha e Manjit absorveram o veneno que foi impossível para
Shanti digerir, Veena Das absorve o conhecimento – mas seria também neste caso um
conhecimento venenoso?
O conhecimento nos limites da vida
Didier Fassin foi alvejado por críticas após a publicação de When Bodies
Remember: Experiences and Politics of Aids in South Africa. Em sua resposta aos
inúmeros (mais precisamente, 15 artigos, segundo Guilhermo Vega Sanabria) Fassin
argumenta que deu inteligibilidade a um processo histórico. Para outros, o controverso
livro dignifica em certo sentido a escolha do ex-presidente Thabo Mbeki, que sucedeu
Nelson Mandela em 1999, de não criar um programa nacional de combate à transmissão
do HIV-Aids pelo fato de acolher as teses dos chamados “dissidentes da Aids”, ou seja,
os cientistas californianos que proclamavam a não existência do vírus.

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Em realidade3, as resistências e controvérsias relativas à epidemia da Aids na
África do Sul são bem conhecidas e foram muito exploradas pela mídia internacional.
Absurdo e indignação são os sentimentos que acompanham a leitura dos “fatos”. Trata-
se de um debate dramático e trágico – visto que envolveu a morte de milhares de pessoas.
Concomitantemente, o esforço de entender os vários pontos de vistas presentes nesse
processo estimula muitas reflexões a respeito dos significados e metáforas que a Aids
mobiliza, mostrando, entre ouros fatores, que a correlação entre informação (no caso, o
uso do preservativo em qualquer relação sexual) e transformação do comportamento é
muito mais complicada que esta fórmula simples nos faz acreditar.
Vejamos duas reportagens dramáticas a respeito do tema. A primeira delas foi
publicada no jornal O Globo em 2003, a segunda no jornal Folha de São Paulo, no ano
de 2000. Vale a pena reproduzi-las:

Reportagem 1
DURBAN. Depois de indignar a comunidade científica mundial ao
retardar a distribuição de drogas anti-HIV e recomendar aos portadores
do vírus que comessem cebola, alho e batata para aprimorar seu sistema
imunológico, o governo da África do Sul voltou a chocar, ontem, ao
anunciar a inauguração de um instituto de medicina tradicional africana
como parte dos esforços para combater a Aids no país. O anúncio foi
feito pela ministra da Saúde, Mantombazana Tshabalala-Msimang.
A África do Sul é o país com o maior número absoluto de casos de Aids
no mundo: 4,7 milhões. São, pelo menos, 600 mortes por dia em
decorrência da doença, que atinge 33% da população. Segundo
especialistas, a epidemia está fora de controle no país e poderá afetar
severamente sua economia, uma vez que a maioria dos infectados
integra a parcela economicamente ativa da população. Na avaliação dos
cientistas, a distribuição de medicamentos, conjugada com campanhas
de prevenção, é a única forma de conter a doença.
Mas em palestra proferida ontem numa conferência anti-tabaco na
Finlândia a ministra sul-africana afirmou que a medicina tradicional,
que inclui práticas de curandeirismo, é eficaz e que a luta contra a Aids
em seu país não será baseada apenas na distribuição de anti-retrovirais.
Em 31 de agosto, vou inaugurar um instituto de medicina tradicional
porque acho que há espaço para isso — disse a ministra.
Governo questiona eficácia das drogas
A África do Sul é o único país do mundo que não aceita as teses
científicas sobre a Aids. O governo alega que a eficácia das drogas não
estaria inteiramente comprovada (posição amplamente combatida por
cientistas) e que o país ainda não estaria preparado para distribuí-las.
Contrariando as diretrizes governamentais, no entanto, a província de
Western Cape foi pioneira na distribuição de anti-retrovirais para
mulheres grávidas e bebês infectados. Resultados do programa

3
Parte da reflexão que se segue foi publicada em Moutinho (2015).

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apresentados ontem comprovam que a distribuição vem salvando
centenas de crianças e reduzindo a pressão sobre os hospitais. Está
claro que nenhum programa de Aids pode ser eficaz sem uma
distribuição ampla de anti-retrovirais — afirmou Fareed Abdullah,
coordenador do programa. Um representante do Ministério da Saúde
afirmou que resultados como os de Western Cape estão sendo levados
em consideração pelo governo, mas lembrou que sua aplicação deve ser
avaliada de acordo com as necessidades do combalido sistema de saúde
do país (O Globo de 06 de agosto de 2003, s/p.).

Reportagem 2
O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência vista como uma vela
no escuro
O caso da África do Sul é um exemplo concreto de o quanto o
analfabetismo científico pode ser trágico: o presidente Thako Mbeki
recusa-se a aceitar as inúmeras pesquisas que apontam o vírus HIV
como o causador da AIDS (vide a Declaração de Durban) e proibiu a
administração de medicamentos à população, inclusive às gestantes,
cujos filhos teriam muito mais chances de serem salvos se fossem
medicadas. A África do Sul é um dos países mais atingidos pela AIDS,
com cerca de 10% da população contaminada pelo HIV (Folha de S.
Paulo de 17 de dezembro de 2000, p. A25).

Vejamos alguns pontos importantes que estão nas entrelinhas destas reportagens.
Elas foram escolhidas pelo fato destas pequenas peças agregarem elementos que nos
permitem não somente entender os rumos da epidemia no cenário local como dar
inteligibilidade à algumas das questões e fronteiras que a articulam à escala global.
Na abertura da Conferência de Durban, em 2001, o então presidente da África do
Sul, Thabo Mbeki, fez um pronunciamento tão polêmico quanto chocante: defendeu que
a Aids era uma doença associada à pobreza e à desnutrição. Ele não negou a associação
com sexo, mas também não a mencionou em seu discurso, o que o colocou próximo,
conforme já assinalei, dos chamados “dissidentes da Aids” – ressalto que o grupo nega a
versão estabelecida internacionalmente pelas organizações cientificas e de cooperação
internacional, seus conceitos, indicações terapêuticas e, especialmente, o tratamento com
antirretrovirais.
De imediato, destaca-se nesse material um primeiro e fundante contraste: a
tradição e a cultura tradicional (black), protagonizada em tempos pós-apartheid pelo
ANC (no caso representadas pelo presidente e pela ministra da saúde), e a posição
diferenciada que foi assumida em Western Cape. Um personagem importante desta
região, com sede na Cidade do Cabo, é o partido Aliança Democrática, ou Democratic
Alliance, que transformou recentemente o Cabo em um grande centro de resistência ao

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African National Congress (Congresso Nacional Africano – ANC). Esta é a única região
da nova África do Sul onde o cenário político é dominado pelos whites. A primeira
reportagem traz inúmeras expressões que sintetizam a percepção, que em última instância
coloca não exatamente a África do Sul, mas o governo do ANC (black) no polo não da
modernidade (onde se localiza o Western Cape), mas da ignorância.
Como dito anteriormente, na África do Sul, sexo, Aids e raça aparecem de modo
combinado e informam uma das maneiras (talvez a predominante) como a epidemia é
compreendida no país. Pode-se entendê-la, em verdade, como uma herança do
pensamento racial do apartheid. Em outras palavras, é possível afirmar que o discurso
médico sobre a epidemia converge para o mesmo estereótipo white acerca da
“sexualidade black” que esteve na base do regime.
Thabo Mbeki não é ou era um “analfabeto científico”, como é descrito na segunda
reportagem. O ex-presidente nomeou uma comissão com cientistas, políticos e
pesquisadores para auxiliá-lo a elaborar respostas à epidemia. Ainda em julho de 2000,
antes da Conferência de Durban, ele se encontrou com 52 especialistas internacionais para
debater o tema (Pereira, 2011). Em seus pronunciamentos públicos, Mbeki desafiou não
apenas a ciência estabelecida, mas igualmente a indústria farmacêutica e os altos custos
dos remédios. Também não se trata aqui, de modo algum, de defendê-lo, mas de se
compreender como ele reagiu à disseminação de imagens, que no seu entendimento eram
racistas, por exemplo, aquelas que associam os altos índices de estupro e de violência
sexual aos homens blacks. De fato, para o então presidente, as estatísticas que mostravam
que a prevalência da Aids era alta sobretudo entre a população black seriam preconceito
e uma forma de racializar o debate. Sua reação foi irada. A contrarreação também: não
foram poucos os que chamaram o presidente de irresponsável e de (ele sim) politizar
dados científicos. Sua recusa em fornecer a terapia antirretroviral foi tida como a causa
das mortes, e o aumento das taxas de mortalidade foi chamado, então, de genocídio. Como
consequência, mais de 5 mil cientistas de 82 países assinaram a Declaração de Durban
(inclusive a Sociedade Sul-Africana de Medicina), afirmando que o HIV causava a Aids,
ou seja, que o vírus era responsável pela fragilização do sistema imunológico dos que
eram soropositivos, resultando no desenvolvimento de uma série de doenças que, se não
tratadas, levariam à morte. Esta declaração foi publicada em uma revista cientifica
internacional de enorme prestígio (Cameron, 2005 e Pereira, 2011) com o objetivo de
isolar o presidente e os cientistas estadunidenses e sul-africanos que seguiam as teses
sobre a não relação entre HIV e Aids. Se é possível dizer que as complexas redes das

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ações anti-Aids no mundo trouxeram em seu bojo uma “sexualidade normatizada”, ou
seja, dentro de certas regras e padrões morais, no caso da África do Sul, o pós-apartheid
e a nova constituição “tiraram o véu que cobria a sexualidade no espaço público e a
transformaram em assunto público e matéria de direito” (Posel, 2006: 49).
Desse modo, tanto a maneira como a Aids foi negada por muitos na África do Sul,
quanto a compreensão de que a epidemia estaria conectada a uma “conspiração white”
ganha certo sentido quando nosso foco se dirige para a forma como a raça e a sexualidade
foram combinadas na história do país. A ideia de uma “conspiração” black ou white e o
estigma foram e são vividos e experenciados de modo sensorial/concreto. O “perigo
black” que sustentou o apartheid reapareceu sob novo formato quando nacionalistas e
políticos conservadores whites passaram a afirmar que os militantes da luta contra o
regime estavam retornando ao país infectados e disseminando o vírus em suas
comunidade locais. Tratava-se de uma forma de desacreditar e estigmatizar a oposição
black, mas também de disseminar o terror entre os whites (Fassin, 2007). Alguns blacks
acreditavam, por sua vez, que a Aids era uma invenção dos africânderes para controlar o
aumento populacional das tribos blacks. Vale aqui lembrar, neste sentido, a frase terrível
proferida pelo Ministro da Saúde em maio de 1990 no Parlamento: “se a Aids diminuir o
crescimento da população black, seria um presente de Natal” (Fassin, 2007:155, tradução
minha).
Antes da Conferência de Durban, em abril de 2000, Thabo Mbeki enviou uma
carta aos mais proeminentes líderes mundiais, entre os quais Bill Clinton, chamando
atenção para a diferença de perfil, em relação à Europa e aos Estados Unidos, da epidemia
na África do Sul, com maior incidência entre “heterossexuais”. A partir deste ponto,
Mbeki argumenta que: “a simples imposição da experiência ocidental sobre a realidade
africana não seria apenas absurda e ilógica, seria uma traição, um crime com nosso
próprio povo” (Cameron, 2005:106, tradução minha). A epidemia teve na África do Sul
a marca de ser “heterossexual”, porém os dois primeiros casos registrados foram de
homossexuais whites. Se observarmos a legislação que criminalizou a homossexualidade
na mesma África do Sul, a partir da década de 1960, podemos notar que, também neste
caso, as fronteiras raciais e sexuais estavam definindo e tensionando os limites simbólicos
da nação.
Raça e homossexualidade se cruzam aqui em dois pontos: em primeiro lugar, os
rumores nas comunidades blacks eram de que a homossexualidade não era originária da
cultura black; em segundo lugar, do mesmo modo que o casal homem black e mulher

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white foi fundamental para mobilizar os medos acerca da miscigenação na instalação do
apartheid em 1948, a legislação que criminalizou as práticas homossexuais mobilizou o
temor de que os jovens africânderes, sempre mais pobres que os ingleses e os judeus,
pudessem ser assediados emocional e financeiramente pelos últimos, sendo levados à
homossexualidade (Moutinho, 2004c).
Na “controvérsia da Aids”, uma figura de grande respeito nacional e internacional,
juiz da Suprema Corte da África do Sul, reagiu de modo irado aos pronunciamentos
públicos de Mbeki afirmando que a recusa do presidente em distribuir antirretrovirais era
“criminosa”. Edwin Cameron se identificou como homossexual e soropositivo ainda em
2000 e, em 2005, publicou um livro intitulado Witness to Aids, ou seja, Testemunho para
a Aids, que traz um prefácio de Nelson Mandela e frases elogiosas na capa de artistas,
intelectuais, escritores e jornalistas respeitados no mundo inteiro. Nesse livro, narrado de
modo autobiográfico e em tom de testemunho pessoal, Cameron enfrenta a articulação
entre preconceito, raça, doença, orientação sexual e pobreza. Ele diz estar vivo justamente
por poder arcar com os custos dos antirretrovirais, apresentando-se como uma prova viva
da eficácia do tratamento proposto pelos quadros dominantes da comunidade científica.
A polêmica apresentada é importante para refletirmos sobre a forma como a
epidemia da Aids também pode ser entendida como uma epidemia de significados
(Treichler, apud Pereira, 2011). Não se trata aqui de dar razão a Thabo Mbeki ou aos
“dissidentes da Aids”, mas de refletir sobre os estigmas, preconceitos e estereótipos que
a epidemia acaba por revelar. Neste cenário, posiciono-me não entre os críticos, mas junto
com Fassin quando ele afirma: “ethnography can hardly be better employed than in
making intelligible what does not seem to be understandable” (2013:125).

Olhos nos olhos, quero ver o que você diz


Na conversa da qual retirei a epígrafe que abre esse capítulo final, meu novo amigo
– somente o conheci em fevereiro de 2017 – se apresentou a mim como coloured, casado
com uma mulher white alemã. Sempre que nos víamos, ele se incomodava comigo e
falava coisas sobre o apartheid, ou dizia “você que conhece a mente africânder...”,
supondo conhecimentos que frequentemente não possuía ou se posicionava com frases
como “sendo coloured, eu acho que...”. Conversamos sobre a minha pesquisa por
iniciativa dele, que ficou, como muitos outros, intrigado quando falei sobre Eugène
Terre’Blanche.

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Aos 56 anos, ele viveu 33 sob o regime do apartheid e me disse: “I am blessed. I
saw the freedom and the process”. Eu não me assustei com a questão inicial que ele me
colocou. Eu mesma havia me perguntado algo similar algumas vezes e em outras pude
ler o questionamento nos olhos daqueles com quem conversava: se era válido abrir feridas
e cutucar o passado. São muitas as vidas fraturadas. Mesmo com todo o incentivo à
vocalização, não são muitos os que elaboraram o passado como previa Desmond Tutu e
a Comissão de Verdade e Reconciliação.
Meu amigo, possuía, entretanto, uma questão mais complexa. Ele me interpelou
contando uma história: disse que viajou de avião com Terre’Blanche e um grupo de
seguidores do AWB. Não escondeu a surpresa por ter trocado algumas palavras com
Terre’Blanche que, como seus discípulos, foi de extremada gentileza e simpatia: no bad
words, no hate. Ao final da viagem e da interação com o grupo – que ele somente criticou,
meio rindo, por vê-los beber demais e importunar as comissárias –, meu amigo estava
confuso e intrigado. E, então, ele disparou: “do you think he is a real racist or he was just
looking after his people?”.
Ao longo desses anos aprendi que muitos pensam como ele. Respondi. Procurei
não deixar pairar qualquer dúvida de que tinha consciência que estava pisando em terreno
difícil e mexendo com feridas que não podia sequer imaginar. Pedi desculpas. Disse ainda
que muitas vezes tive dúvidas se deveria continuar, mas que aos poucos também encontrei
pessoas que tinham interesse em conversar sobre o passado. Essa escuta é e foi
importante. Além disso, argumentei que olhar o passado de uma perspectiva histórica e
antropológica era uma forma de entender o processo de construção, manutenção e
propagação do apartheid para que ele não se repetisse nem no presente e nem no futuro.
Chris, estava muito concentrado na nossa conversa. Eu também estava. Defendi também
que, sim, Eugène Terre’Blanche era um verdadeiro racista! Primeiro, porque ele
acreditava na separação racial como justa; segundo, porque ao cuidar de seu povo e de
sua cultura ele agia de modo hierárquico, o que também fazia dele, por outro viés, racista.
Além disso, a ordem social defendida por Terre’Blanche o confinaria, como confinou no
passado, em espaços de segregação. Então, Chris me fitou bem fundo diretamente nos
olhos.

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