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LÁ VEM O NEGÃO: DISCURSOS E ESTEREÓTIPOS SEXUAIS SOBRE OS HOMENS

NEGROS.

Henrique Restier da Costa Souza1

Resumo: Esse artigo tem como principal objetivo a análise de conteúdo dos estereótipos sexuais
sobre os homens negros, contidos na letra de uma canção chamada Lá vem o negão do grupo Cravo
e Canela, sua escolha se dá não só pela fartura de representações sobre as masculinidades negras
como o grande sucesso e apelo popular que a música obteve nos anos 90 tendo inclusive recebido
em 1994 o Troféu Imprensa de "Melhor Música", bem como discos de ouro e platina. Entende-se
que um “controle representativo” se impõe ao corpo do homem negro, segundo Frantz Fanon
(2008) o homem negro não seria um homem, mas um negro, no caso aqui o negão. Segundo o
antropólogo Rolf de Souza, a profunda desconfiança e medo da figura do negro pela masculinidade
hegemônica teria como base a sexualidade. A produção pelo discurso hegemônico de
representações negativas sobre a masculinidade negra tem como aparato fundamental a fixação e
repetição incessante do estereótipo que desde o período escravocrata cria e recria o homem negro
como: libidinoso, grotesco, hipererótico, violento, degenerado, rebaixando e inferiorizando o negro
a uma “anatomia e corporeidade zoomórfica” (Santos, 2014). Nesse sentido o conceito de
Falomaquia, cunhado por Rolf de Souza, será de grande contribuição para entender essa disputa por
prestígio, poder e mulheres. Logo, a dinâmica de como se dá esse embate entre masculinidades
hegemônicas e não-hegemônicas no campo das representações sociais, no caso, entre homens
brancos e homens negros, é o centro dos questionamentos e das análises aqui propostas.

Palavras-chave: Homens Negros. Estereótipos. Discursos.

Contextualização e embates

Esse artigo está dividido em duas seções: a primeira visa contextualizar a discussão sobre
masculinidade, trazendo conceitos e autores que se debruçam sobre essas questões; a segunda parte
compreende a análise da letra da música propriamente dita, utilizando aquele arcabouço teórico-
metodológico. Têm-se como tema central do presente artigo a análise sobre as representações
sociais2 de masculinidades negras, no caso aqui proposto, essa investigação recairá sobre as
representações contidas na música Lá vem o negão, do grupo Cravo e Canela, sua escolha se dá não
só pela fartura de representações sobre as masculinidades negras como pelo grande sucesso e apelo
popular que a música obteve nos anos 90, tendo inclusive recebido o Troféu Imprensa de "Melhor
Música" em 1994, bem como discos de ouro e platina. De certa forma, esse êxito de mercado

1
Doutorando em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ), Rio de Janeiro, Brasil.
2
Conjunto de saberes, valores da memória social, conhecimentos socialmente elaborados e partilhados resultantes da interação social
e sustentados tanto por conhecimentos oriundos da experiência cotidiana como pelas reapropriações de significados historicamente
consolidados em uma determinada sociedade e contexto histórico. (MOSCOVICH, 1978)

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aponta a grande capilaridade dos estereótipos sexuais sobre os homens negros que compõem o
imaginário social no Brasil. O levantamento bibliográfico indica um amplo campo investigativo
ainda a ser explorado sobre as masculinidades negras, suas construções e particularidades,
principalmente no Brasil, indicando a necessidade do debate sobre os estereótipos sexuais que
recaem sobre os homens negros, as motivações e implicações no jogo social das relações de poder.
Essa problemática se insere no campo das relações raciais e de gênero com potencialidade de
fornecer uma série de perspectivas produtivas para a compreensão das dinâmicas de poder, a
produção de hierarquias, desigualdades e conflitos, dentre outros fenômenos sociais.
A principal pergunta que norteia este artigo é: qual o papel dos estereótipos sobre as
masculinidades negras, principalmente os de cunho sexual, para a manutenção dos lugares e papéis
sociais estabelecidos pelo discurso hegemônico? A hipótese é de que esses papéis e lugares são
intensamente e constantemente negociados e disputados entre as masculinidades hegemônicas e
subalternizadas e que os discursos proferidos pelos diversos grupos sociais que compõem a
sociedade brasileira se insere dentro dessa dinâmica, enriquecendo o debate sobre as relações
raciais, ao trazerem para a cena pública olhares e interpretações sobre si mesmos e outros grupos
sociais. A música aparece aqui como um lugar privilegiado para fazer tais reflexões críticas, não só
pela sua forma sintética de apresentar questões complexas como através de seu apelo e alcance.
Essas considerações possuem como eixo central um embate, uma disputa narrativa em que
um “controle representativo” se impõe ao corpo do homem negro, pois, segundo Frantz Fanon
(2008), o homem negro não seria um homem, mas um negro. Por sua vez, este utiliza as
ferramentas, recursos e estratégias disponíveis em constante (re)elaboração para adentrar esse
“campo de batalha” discursivo e político. Como aponta o antropólogo Waldemir Rosa em seu artigo
Observando uma Masculinidade Subalterna: Homens negros em uma “democracia racial”:

“Parece-nos que o que se encontra em disputa no caso da masculinidade negra é a posição


de fala sobre si e sobre a sociedade, a possibilidade de construir um discurso sobre sua
condição subalterna na sociedade racista e sexista” (ROSA, 2006, p.4, grifo nosso).

Esse controle seria perpetrado por um discurso de valorização social de uma determinada
masculinidade3, ou dito de outra forma, por uma masculinidade hegemônica4 que, no Brasil, em

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“... a masculinidade é uma experiência coletiva em que um homem busca reconhecimento através de práticas com as quais
conquistará visibilidade e status social perante seu grupo... passível de variação conforme região, classe, origem étnica, religião, etc.”
(SOUZA, 2013, p.36).
4
“Carrigan, Connel e Lee afirmam que a masculinidade hegemônica representa a estrutura de poder das relações sexuais buscando
excluir qualquer variação de comportamento masculino que não se adeque a seus preceitos.” (OLIVEIRA, 1998, p.4).

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linhas gerais, é racializada, classista e heteronormativa5. As representações sociais produzem
estratagemas de endosso, contestação e ressignificação dos estereótipos e mitos, pois como afirma o
antropólogo Osmundo Pinho:

“... hegemônicos e subalternos não estão definidos essencialmente, mas sim como sujeitos
políticos engajados em jogos de poder e dominação que ocorrem em contextos sociais
estruturados, porém abertos à inovação” (PINHO, 2004, p.65, grifo nosso).

Usualmente as abordagens que relacionam as categorias de raça e gênero recaem sobre o


feminino. Nada mais razoável, uma vez que as interrogações sobre gênero, seus papéis e funções
tiveram seu marco teórico no Ocidente com o feminismo, que fomentou a desnaturalização dos
gêneros e, portanto, sua historicização e questionamento, inserindo a discussão nas relações sociais.
Consequentemente, o objeto de suas maiores preocupações incide sobre a mulher branca, enquanto
o feminismo negro na mulher negra. Dessa forma, os homens negros e brancos aparecem em
segundo plano nesses arcabouços teóricos, geralmente em posições de opressores do sexo feminino.
Bell Hooks é uma das feministas negras interseccionais que mais se debruçou em estudar o
homem negro, no livro “Talking Back, Thinking Feminist, Thinking Black”, de 1984, já apontava a
pouca produção intelectual do feminismo negro interseccional sobre masculinidades negras. O
antropólogo Waldemir Rosa (2006, p.5) corrobora com essa ideia, afirmando que “o conhecimento
sobre o homem negro brasileiro ainda é incipiente e novas pesquisas se fazem necessárias para
esclarecer o dilema”. Segundo Kimmel e Messner “os mecanismos de diferenciação e de prestígio
confere ao grupo hegemônico o benefício da invisibilidade retirando desses a possibilidade de
serem identificados em termos de classe, gênero e raça” (Rosa, 2006, p.1), e assim podem continuar
exercendo suas prerrogativas e privilégios sem serem percebidos. Como aponta o sociólogo Pedro
Paulo de Oliveira no seu artigo Discursos sobre a masculinidade:

“... costuma-se tratar os homens como se eles não tivessem gênero... Assim os homens
brancos de classe média quando se olham no espelho se vêem como um ser humano
universalmente generalizável... Não é o que ocorre com os negros, pobres, mulheres, gays e
todos os que de uma forma ou de outra vêem-se como diferentes” (OLIVEIRA, 1998, p. 1).

E complementa:
“Trata-se aqui de discutir a problemática masculina com todas as suas questões específicas
e que na pena feminista só apareciam quando esclareciam aspectos da condição da mulher”
(OLIVEIRA, 1998, p.10).

Se para os grupos dirigentes a invisibilidade é uma eficiente estratégia para a manutenção de


sua posição na sociedade, isso não é verdade no que se refere aos grupos subalternizados. O

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As discussões sobre a homoafetividade e variações não serão abordadas neste artigo, no caso a pesquisa recairá sobre
masculinidades negras heterossexuais.

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exemplo dos homens negros é bastante elucidativo, pois se supostamente recebem dividendos
patriarcais, esses são continuamente bloqueados pelo racismo e sexismo6 sofrendo uma espécie de
“violência de gênero racializada” (Hooks, 2004), ou seja, os homens negros são submetidos a
determinados processos de precarização econômica, social, política e psicológica, devido
justamente à sua condição de raça e gênero. Para a cientista social australiana R.W. Connel,
conhecida pelos seus trabalhos no campo da sociologia, educação e estudos de gênero, a produção
de um modelo particular de masculinidade exemplar requer uma luta política e a derrota de outras
alternativas (Connel, 1995). Logo, o estudo de como se dá esse embate entre masculinidades
hegemônicas e não-hegemônicas no campo das representações sociais é o centro dessa
problemática. Para tanto, o conceito de falomaquia, cunhado pelo antropólogo Rolf Ribeiro de
Souza, é primordial para este artigo, uma vez que define de forma precisa o enfrentamento dessas
masculinidades por reconhecimento e distinção, uma vez que “[e]sta disputa (maquia) pelo poder
(phallus) e prestígio conferidos pela masculinidade entre homens negros e brancos é o que chamo
de falomaquia” (Souza, 2013, p.40). Falo não aludindo obrigatoriamente ao pênis, mas sim ao falo
simbolicamente, como signo de poder. Nesse caso, é necessário verificar o quanto a dinâmica das
relações raciais, e consequentemente o racismo, influenciam e delimitam tal embate, entendendo o
racismo como:

“... um arranjo sistêmico de grande profundidade histórica e abrangência geográfico-


cultural. Na sua gênese, ele se apresenta como uma forma de consciência grupal
historicamente constituída (e não ideologicamente instituída). A sua função central, desde
o início, seria regular os modos de acesso aos recursos da sociedade de maneira
racialmente seletiva em função do fenótipo. Ele teria se desenvolvido primeiro com a
finalidade de garantir o afastamento automático de um segmento humano específico do
usufruto dos seus próprios recursos. No interior de uma sociedade já multirracial e
miscigenada, ele serviria ao propósito de preservar o monopólio sobre os recursos do
segmento fenotípico dominante. Tratar-se-ia de um sistema total, raciológico, que se
articularia desde o início através de três instâncias operativas entrelaçadas, porém
diferentes: a) as estruturas políticas, econômicas e jurídicas de comando da sociedade, b) o
imaginário social total que rege a sociedade e c) os códigos de comportamento que regem a
vida inter-pessoal dos indivíduos que compõem a sociedade.” (MOORE, 2008, p.11, grifo
nosso)

Isto posto, esse enfrentamento “falomáquico” se insere em uma lógica racial que para
legitimar e justificar as práticas racistas produz estigmas e estereótipos desqualificadores sobre os
homens negros, massificando esses “saberes prévios” através das três instâncias supracitadas na
citação do etnólogo Carlos Moore. Segundo Rolf de Souza, a profunda desconfiança da figura do

6
Segundo o sociólogo Alan Augusto Moraes Ribeiro: “Os estereótipos sexuais sobre homens negros são resultados do sexismo e não
apenas do racismo, mesmo que o privilégio patriarcal posicione tais masculinidades como configurações vantajosas” (RIBEIRO,
2015, p. 5).

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negro pela masculinidade hegemônica teria como base a sexualidade, estando no centro “das
interações estabelecidas entre homens negros e brancos” (Souza, 2013, p. 37). Esse medo dos
homens negros, um medo biológico, genital (Fanon, 2008) fez com que quatro milhões de
imigrantes chegassem em apenas 30 anos no Brasil (do final do século XIX ao início do século
XX), o que demorou três séculos na escravidão. Haveria uma missão civilizadora para esses
imigrantes, em sua esmagadora maioria brancos europeus: a de purificar os brasileiros de seu
sangue negro. O sociólogo Richard Miskolci indica essa dinâmica nos discursos das elites nos fins
do século XIX:
“Joaquim Nabuco, em O Abolicionismo (1883), lamentava a presença dos africanos e seus
descendentes, já que se não fosse isso, o Brasil “estaria crescendo forte e viril como o
Canadá e a Austrália”, colonizados por europeus. O sonho de nação de Nabuco, um
abolicionista monarquista, não diferia tanto dos republicanos paulistas que prefeririam a
imigração europeia ao assalariamento dos ex-escravos. Abolicionistas e imigrantistas
convergiam na visão de uma futura nação regenerada pelo “sangue caucásico”. Em comum,
partiam do pressuposto de uma sociedade escravista sem racismo e que, ao adotar o
trabalho livre e assalariado, poderia assistir a um processo de miscigenação
embranquecedora” (MISKOLCI, 2012, p.31, grifo nosso).

Um exemplo que ilustra bem essa missão se encontra no quadro “A Redenção de Cam” 7, do
pintor espanhol Modesto Brocos, no qual a avó negra agradece aos céus pela sua filha “mulata” (já
embranquecida) ter tido um filho branco, como o seu marido. Percebe-se que o sujeito branqueador
da população brasileira seria o homem branco, com isso “os homens negros se tornaram um
obstáculo ao projeto de branqueamento da nação sonhado pela elite nacional” (Souza, 2013, p.40).
Seria através do intercurso sexual dos homens brancos com as mulheres não-brancas (indígenas e
negras) que a miscibilidade sexual-racial se daria nas narrativas canônicas. Obviamente existiam
diversas interpretações sobre os efeitos da mestiçagem na população brasileira, e, assim, para a
própria nação. No entanto, quando esses contatos fossem “inevitáveis”,

“No plano das representações, a estrutura escolhida para a decantada miscigenação


brasileira é composta pelo homem “branco” com sua esposa “branca” e a amante “negra” /
“mestiça”... O casal “inter-racial”, composto pelo homem “negro” e a mulher “branca”,
ameaça a posição de classe e poder do homem “branco”. Dada a força desse modelo, que
como visto, se constitui em um modelo de dominação nacional, acaba por se configurar,
reitero, como um “tabu”: “elimina o continuum anteriormente mencionado entre o
colonizador “branco” português e seus descendentes brasileiros” (MOUTINHO, 2003, p.
167).

A interdição dos recursos vitais para a formação de masculinidades sólidas, saudáveis e


politizadas, é um dos pontos cruciais para a manutenção do status e prestígio da masculinidade

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https://pt.wikipedia.org/wiki/A_Reden%C3%A7%C3%A3o_de_Cam.

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hegemônica, o despojamento dos atributos de poder das outras masculinidades faz parte da
falomaquia, deste modo, tanto a violência física como a simbólica, se tornam ações e estratégias
indispensáveis para a manutenção dos homens negros em uma posição de subalternidade (Souza,
2013).
Destarte, a produção pelo discurso canônico de representações negativas sobre a
masculinidade negra tem como aparato fundamental a fixação e repetição incessante do estereótipo.
As formulações de Homi Bhabha em seu livro O local da cultura trazem ótimas contribuições sobre
as características do estereótipo como a ambivalência, o essencialismo sincrônico e o fetiche, além
de compreender o estereótipo como a principal estratégia discursiva do colonialismo que produz
tanto o colonizado como o colonizador (Bhabha, 2013). Coadunando com as elaborações de Bhabha
e estabelecendo vinculações instigantes com as relações de poder e com a dinâmica das
representações, Stuart Hall encaminha uma reflexão provocativa:

“Within stereotyping, then, we have established a connection between representation,


difference and power. However, we need to probe the nature of this power more fully. We
often think of power in terms of direct physical coercion or constraint. However, we have
also spoken, for example, of power in representation; power to mark, assign and classify;
of symbolic power; of ritualized expulsion. Power, it seems, has to be understood here, not
only in terms of economic exploitation and physical coercion, but also in broader cultural
or symbolic terms, including the power to represent someone or something in a certain way
- within a certain 'regime of representation'. It includes the exercise of symbolic power
through representational practices. Stereotyping is a key element in this exercise of
symbolic violence.” (HALL, 1997, p.259, grifo nosso)

Esse estratagema tem como um dos seus objetivos centrais alijar o homem negro da disputa
pelas mulheres negras, brancas, das esferas de poder e prestígio. Como se pode perceber a
estereotipia, as representações negativas e os discursos subalternizantes sobre o homem negro
guardam uma relação estreita com as disputas no campo das relações afetivo-sexuais e seus
desdobramentos nos âmbitos econômicos e políticos, formando um conjunto profícuo para as
análises que este artigo se propõe.

A música Lá vem o negão e as representações sociais

“Lá vem o negão


Cheio de paixão
Te catá, te catá, te catá
Querendo ganhar todas menininhas
Nem coroa ele perdoa não

Fungou no cangote
Da linda morena

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Te catá, te catá, te catá
Loirinha a cafungada do negão
É um problema
Loirinha a cafungada do negão
É um problema

Se ninguém soube lhe amar


Pode se preparar chegou a salvação
Só alegria, pode se arrumar
Que chegou o negão

Mas se é compromissada
É melhor não vacilar
Basta um sorriso um olhar
Para o negão te catar

Lá vem o negão
Cheio de paixão
Te catá, te catá, te catá
Querendo ganhar todas menininhas
Nem coroa ele perdoa não

Fungou no cangote
Da linda morena
Te catá, te catá, te catá
Loirinha a cafungada do negão
É um problema
Loirinha com a cafungada do negão
É um problema

Vem negão, vem depressa


É o mulherio a gritar
Vem negão, a hora é essa
Vamos deitar e rolar

Na praia, na rua, no supermercado


Na feira é a maior curtição
As garotinhas já vem requebrando
Pra ficar com esse negão.”
(ANDRIOLI, 1994)

Nessa seção será analisada a letra da canção Lá vem o negão, utilizando-se para tal, a
metodologia de análise de conteúdo, procedimento metodológico utilizado para a investigação das
representações sociais feitas pelos e sobre os homens negros. Esse método pressupõe que a leitura
se amplifica em torno dos conteúdos que não estão manifestos de forma denotativa nos textos,
requerendo do pesquisador uma técnica para desvelar as referências, ideias e conceitos inseridos
nesses textos.

“Esta técnica, no campo das ciências sociais, pretende ser um meio capaz de detectar
valores sociais, imagens, modelos ou símbolos empregues pelos emissores culturais e,
igualmente, aferir o grau de sintonização daqueles com os interesses, motivações,
aspirações da sociedade a que se destinam. Ê possível, mesmo, captar a ideologia ou
ideologias subjacentes à comunicação e averiguar da sua correlação com a (ou as) da

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sociedade, assim como ver até que ponto existe um desnível entre o que se transmite ou se
quer transmitir e o que se vive — a realidade quotidiana do todo humano a que se dirige a
comunicação (texto, filme, etc)” (JANEIRA, 1971, p.398).

Através dessa metodologia as letras de músicas se apresentam como um terreno fértil para
uma melhor compreensão sobre as influências dos valores, perspectivas, ideologias, pretensões e
interlocuções nos escritos desses indivíduos. Na primeira estrofe coloca-se que o negão está cheio
de paixão para catar todas as menininhas não poupando nem mesmo as coroas, ou seja, a libido e o
apetite sexual do negão são incomparáveis, este possui um vigor sexual insaciável, genérico e
indiscriminado, indo das menininhas (ou as novinhas na linguagem popular atual) às coroas, que a
princípio não atendem ao padrão de beleza vigente. Aqui já nota-se um estereótipo bastante
recorrente aos homens negros vistos como essencialmente falocêntricos, libidinosos e hipereróticos
(Santos, 2014), atributos vinculados à animalidade e seus instintos descontrolados. A princípio,
também não há distinção de cor/raça das mulheres, mas já na segunda estrofe é possível notar
algumas especificações de seus “alvos”, como a morena8 e a loirinha, isto é, ambas dentro das
classificações raciais e de cor brasileiras entrariam como brancas de tonalidades de peles e cabelos
diferentes, nesse contexto percebem-se a exclusão da mulher negra como objeto de interesse do
negão, indicando ou propondo a falta de prestígio social da mulher negra para os indivíduos
masculinos de seu próprio grupo sócio-racial, ratificando um padrão de beleza eurocentrado que
menospreza os atributos fenotípicos das negras brasileiras. Esse processo se insere na lógica da
“miscigenação branqueadora” para assim adquirir os privilégios e status expressos que
simbolicamente a mulher branca pode conceder, nessa acepção a miscigenação se insere em uma
hierarquia de gênero e raça, esta nunca é entendida como fusão total dos seus elementos. O que a
música aponta são como as representações e os valores sociais influenciam as escolhas afetivas e
sexuais, isto é, como “[o]s padrões de preferência marital revelam a organização social, econômica
e cultural” (Scalon, 1992, p.17).
Não é o objetivo deste artigo entrar no debate sobre as relações afetivas inter-raciais (ou
heterocrômicas) e da seletividade conjugal presente na sociedade brasileira, mas sim lançar algumas
questões e ponderações sobre a letra da canção que, em níveis diferenciados, dialoga com “a
estrutura de prestígio e status que lhe confere (e veicula) uma série de significados” (Moutinho,
2003, p.181).

8
A morena poderia ser também negra, contudo uma negra embranquecida, principalmente pelo termo que a classifica
eufemisticamente, reduzindo o seu vínculo fenotípico ao grupo social negro. Desse modo, ela será tratada aqui como
pertencente ao grupo social branco. Para Moutinho:

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Na terceira e quarta estrofes o assunto gira em torno do perigo e da salvação que pode ser o
encontro com o negão, isto é, para as solteiras, a salvação, já para as casadas, o risco da tentação e,
portanto, da sua ruína enquanto mulher “de bem” e compromissada, principalmente levando em
consideração o aspecto racial das mulheres que em tese a música opera: mulheres brancas. Na
perspectiva racial e de gênero brasileira, a mulher branca tendeu a ocupar o lugar social do lar e do
casamento, enquanto a mulher negra o lugar da mancebia, concubinato e ajuntamento, ou seja, das
ligações informais.

“A mulher “branca” foi feita pra casar: seu útero (e sua pureza) serve para manter a
espécie (diferentemente da mulher “mestiça” que tem a função de branquear através do
contato com o macho “branco” superior) e nessa medida tal relação (a do homem “negro”
com a mulher “branca”) somente seria possível através do casamento (nunca do
concubinato), que por sua vez supõe uma rede de reciprocidade de bens e status. Algo que
ameaçaria, necessariamente, o domínio masculino “branco” e, como dito, a própria
estrutura de dominação social e econômica” (MOUTINHO, p. 170, 2003, grifo nosso).

Dessa maneira, o negão representa o signo do perigo enquanto potencial desestabilizador


desse quadro quando ameaça “a posição de classe e de poder do homem branco” (Moutinho, p.167,
2003). Nesse sentido, recorre-se às ponderações de Freyre abordando outro autor sobre as
interações e disputas masculinas no campo das relações afetivo-sexuais:

“Para Berkeley Hill parece evidente que tanto o homem como a mulher, mas especialmente
a mulher, a branca, e fina, a fêmea que ele chama de ´tipo racial superior` é ´suscetível de
tornar-se presa da mais forte atração sexual do indivíduo de tipo racialmente mais
primitivo`. Daí, furioso ciúme ou inveja sexual de macho de “raça” adiantada com relação
ao de “raça” primitiva, que explicaria, junto com motivos de ordem econômica, certos
ódios de raça. Principalmente da parte do macho negro sobre a mulher branca, o branco
civilizado teria procurado desenvolver uma aura de ridículo e grotesco em volta do preto e
da sua primitividade – pode-se acrescentar- uma aura de antipatia em torno do mulato, tão
acusado de falso ou inconstante na afeição, de incapaz de igualar-se ao branco em
verdadeiro cavalheirismo e na autêntica elegância masculina; para não falar da inteligência
(...)” (FREYRE, 1968, p. 602, grifo nosso).

A música não faz nenhuma referência direta ao homem branco, mas sim à mulher branca
e/ou mestiça (morena) compromissada e a solteira, não obstante, é razoável supor que ambas se
encontram em disputa entre esses homens, daí o sentido de falomaquia. A ambiguidade desse trecho
se apresenta a partir do momento em que ao mesmo tempo em que se enaltecem os atributos sexuais
e conquistadores do homem negro, ele é o último recurso para tais mulheres, conforme esta
passagem: “Se ninguém soube lhe amar / Pode se preparar chegou a salvação”. Em outras palavras,
só em último caso o homem negro será uma opção viável para essas mulheres, somente após muitas
tentativas e decepções amorosas e afetivo-sexuais é que o negão se torna uma alternativa possível.
Obviamente, não se descarta a possibilidade dos encantos eróticos e do poder de sedução do negão
aguçarem a curiosidade dessas mulheres uma vez que “... a cafungada do negão é um problema” e

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“As garotinhas já vem requebrando
Pra ficar com esse negão”. Ademais, como coloca a citação acima o ciúme e a inveja sexual que o
homem negro gera no homem branco, são justamente da atração sexual que o primeiro provoca nas
mulheres brancas, não à toa a música trabalha com essas categorias: homens negros e mulheres
brancas. É manifesto que essa atração gira em torno de uma representação de masculinidade
animalizada, selvática e bruta, afinal “vamos deitar e rolar” é como se essas mulheres se sentissem
atraídas justamente por aquilo que é tabu, desejando o proibido, desejando o indesejável, gerando
receio e fascinação. É necessário atentar para o espaço social em que se dá esse encontro na música:
do encontro sexual, da diversão, do prazer e da recreação. Esses são os espaços para o encontro com
o negão. Que pode ser em diversos lugares “Na praia, na rua, no supermercado / Na feira é a maior
curtição” o entretenimento e a alegria são garantidos. É o mundo da ludicidade e da festa, um lugar
que a ideologia brasileira das relações raciais contempla o homem negro (e a mulher negra
também).
Portanto, a música reitera os estereótipos sobre os homens negros ao generalizar e
essencializar representações sociais seculares, servindo-se de um tom cômico e recreativo, que é
uma estratégia discursiva muito recorrente na mídia como um todo, com piadas e brincadeiras que
buscam naturalizar e reafirmar as hierarquias sociais. Ao mesmo tempo tensiona as representações
sociais do “típico casal inter-racial” reivindicado pelo cânone, deslocando o espaço de
invizibilidade do homem negro nessa esfera, para aquele que é cobiçado pelas mulheres brancas,
ainda que dentro de certos espaços de sociabilidade previstos pela ideologia racial brasileira. Essa
ambiguidade é fundamental para compreender as imbricações entre desejos, estereótipos e
liberdade. Tão somente assenhoreando-se de suas representações e revertendo-as em seu próprio
interesse é que o homem negro poderá se afirmar enquanto agente de seu próprio corpo e
subjetividade, empreendimento que faz em movimentos sociais, coletivos, pré-vestibulares
comunitários, institutos, no cotidiano, etc.

Conclusão

O campo de investigações e debates sobre as dinâmicas de poder entre os diversos grupos


que compõem as sociedades contemporâneas é fascinante e necessário, não só para a compreensão
dos fenômenos sociais que essas relações engendram, mas também em seus desdobramentos na
manutenção de desigualdades e de possibilidades de emancipação. Assim, o entrecruzamento entre

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raça e gênero ao adotar uma perspectiva masculina, coloca questões novas e promissoras para
determinados questionamentos sobre as relações entre homens negros e brancos no Brasil,
prolongando-se em suas conexões com outros grupos sociais, como as mulheres negras e brancas,
dentre outros grupos. O aumento das abordagens pelo viés masculino nos estudos sobre raça e
gênero, podem enriquecer os debates sobre as relações sociais no Brasil, sobretudo por uma
perspectiva da afetividade, apontando, assim, para possibilidades concretas de fortalecimento da
identidade negra, do combate ao racismo, machismo e sexismo. Sem essencializações e
determinismos, respeitando a multiplicidade social com suas contradições, paradoxos e padrões.
Revigorando a potência criativa e fecunda dos grupos sociais subalternizados.

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12/07/2015.

There comes the big black: sexual sppeches and stereotypes on black men.

Astract This article has as main objective the analysis of the content of the sexual stereotypes about
the black men, contained in the lyrics of a song called "The Negro of the Cravo and Canela group",
their choice is not only due to the abundance of representations about black masculinities the great
success and popular appeal that the music obtained in the 1990s and even received in 1994 the
Trophy Press of "Best Music" as well as gold and platinum records. It is understood that a
"representative control" imposes itself on the body of the black man, according to Frantz Fanon
(2008) the black man would not be a man, but a nigger, in the case here the big nigger. According
to the anthropologist Rolf de Souza, the deep distrust and fear of the figure of the Negro by
hegemonic masculinity would be based on sexuality. The production by the hegemonic discourse of
negative representations about black masculinity has as its fundamental apparatus the fixation and
incessant repetition of the stereotype that from the slave period creates and recreates the black man
as: libidinous, grotesque, hypererótico, violent, degenerate, demoting and inferiorizing Blackness to
a "zoomorphic anatomy and corporeality" (Santos, 2014). In this sense the concept of Falomaquia,
coined by Rolf de Souza, will be of great contribution to understand this dispute for prestige, power
and women. Therefore, the dynamics of how this clash between hegemonic and non-hegemonic
masculinities in the field of social representations, in the case between white men and black men, is
the focus of the questions and analyzes proposed here.

Keywords: Black Men. Stereotypes. Speeches.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),
Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

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