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Compreender o racismo à brasileira para que seja possível um futuro de equidade

Resenha do livro "Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como
fundamento do ser", de Sueli Carneiro
Bianca Santana

As contribuições de Sueli Carneiro no enfrentamento ao racismo e ao sexismo são


amplamente reconhecidas no campo da inovação social, tanto no Brasil quanto
internacionalmente. A ativista, como ela se descreve, tem sido uma força motriz na
formulação de estratégias coletivas de transformação ao longo de quatro décadas. Esse
compromisso com a mudança é evidenciado em sua produção intelectual. Neste 2023, dezoito
anos desde sua defesa na Faculdade de Educação da USP, sua tese de doutorado foi
finalmente publicada sob o título "Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não
ser como fundamento do ser", pela editora Zahar. O posfácio, elaborado por Yara Frateschi,
professora do Departamento de Filosofia da Unicamp, destaca: "Temos em mãos um dos
livros mais relevantes de filosofia política escritos no Brasil." A afirmação não é exagerada.
Ao longo de décadas, o Brasil foi propagandeado globalmente como um país que
abraçava a miscigenação e supostamente não era racista, propagando o mito da democracia
racial. Entretanto, o mito foi, na verdade, uma ferramenta poderosa de perpetuação de um
racismo nosso, típico, um racismo à brasileira. Sueli Carneiro e sua geração enfrentaram
coletivamente o desafio de desmantelar o mito da democracia racial e suas consequências. Os
escritos de Sueli, desde a década de 1980, têm sido instrumentos na elaboração de estratégias
políticas. Sua tese de doutorado não é exceção. Nela, Sueli desnuda as ideias, discursos e
práticas racistas que permeiam a sociedade brasileira.
No Brasil, segundo Sueli, se produziu a forma mais sofisticada e perversa de racismo
do mundo porque nosso ordenamento jurídico assegurou uma igualdade formal, com uma
suposta igualdade de direitos e oportunidades, e liberou toda e qualquer forma de
discriminação racial. A noção de racialidade, na abordagem de Sueli, é relacional, e o Brasil
apresenta uma divisão marcante entre dois polos: negros, compreendendo a soma de pretos e
pardos, e brancos. Por construções históricas e culturais, uma série de concepções moldou e
hierarquizou esses grupos, conferindo privilégios ou impondo prejuízos. Na dinâmica das
relações raciais brasileiras, os brancos estabelecem sua superioridade ao construírem a
inferioridade dos negros. Como denota o título da tese – subtítulo do livro – a construção do
"Outro" (negro) é o fundamento da definição do "Ser" ( branco).
Para desenvolver essa abordagem, Sueli utiliza a obra de Michel Foucault como uma
caixa de ferramentas conceituais. A partir do conceito foucaultiano de "dispositivo", Sueli
Carneiro apresenta o "dispositivo de racialidade", que estabelece a branquitude como um
estatuto humano que reconfigura todas as dimensões da experiência humana e as hierarquiza
com base na proximidade ou distanciamento do padrão branco. Nesse processo, pessoas
negras são inseridas em um paradigma de inferioridade.
Empregando a abordagem genealógica de Foucault, que busca investigar origens e
finalidades, Sueli identifica uma virada histórica na origem do dispositivo de racialidade: o
"contrato racial", conceito definido pelo filósofo afro-jamaicano Charles Mills e recentemente
traduzido e publicado no Brasil também pela editora Zahar. A partir do século XV, durante a
expansão ultramarina e a violenta dominação europeia, surge uma nova tríade de poder,
conhecimento e subjetividades moldada pela racialidade, estabelecendo uma dinâmica entre
homens x nativos, brancos x não-brancos. Uma supremacia branca é solidificada por meio do
contrato racial. Respeito e justiça são pactos entre iguais, enquanto os desiguais são
subjugados por meio da violência. Nesse contexto, o Estado desempenha um papel de
preservar e perpetuar a ordem racial, mantendo privilégios para os brancos e reforçando a
subordinação dos não-brancos tanto pela lei como pelos costumes. A teoria de Mills se
sustenta no contratualismo, tão caro à filosofia política, que ignora o colonialismo, a
escravização negra, o racismo. A supremacia branca foi constituída na proliferação de
discursos associados à racialidade: bulas papais, discussões sobre colonialismo, decisões
jurídicas, debates sobre a humanidade dos não-brancos. Sueli Carneiro mostra que as
representações sobre o negro que passaram a circular neste período consolidaram a
justificativa para ser possível a existência de senhores e escravos.
Trabalhando com a noção também foucaultiana de biopoder, Sueli Carneiro mostra
como o Estado mobiliza sua estrutura para promover a vida do “Ser”, enquanto abandona à
morte – ou extermina – o “Outro”. As execuções policiais, portanto, não são “efeito colateral”
de uma política de segurança pública, mas ação intencional de controle que, apesar da
inexsistência de pena de morte no Brasil, emprega dinheiro público em balas direcionadas a
corpos negros periféricos e favelados.
Mas se há dispositivo há também resistência. E a segunda parte do livro está dedicada
a apresentar testemunhos de quatro ativistas de movimento negro: Edson Cardoso, Sônia
Maria Pereira Nascimento, Fátima Oliveira e Arnaldo Xavier. Dois homens e duas mulheres,
dois negros de pele clara e dois de pele escura, que encarnaram em suas vidas o processo de
construção da identidade, os enfrentamentos com o racismo e a discriminação, a tomada de
consciência individual e da dimensão política e coletiva desse processo, a construção da
crítica e da autonomia. Quatro testemunhos da resistência ao racismo.
Edson Cardoso, militante histórico do movimento negro dedicado à agitação e
propaganda, como gosta de dizer, atuou sempre na articulação política, formação e circulação
de informação. Foi membro do MNU, assessor parlamentar no Congresso e esteve à frente da
organização da Marcha Zumbi dos Palmares, pela Cidadania e pela Vida de 1995, e da
articulação que criou o Comitê Impulsor para Durban. Era mestre em comunicação social e
ainda não havia ingressado no doutorado em educação na USP, que defenderia em 2009.
Sônia Maria Pereira Nascimento, advogada especialista em direito de família, direitos
humanos e de mulheres. Foi presidenta de Geledés por dois mandatos, depois coordenadora
executiva, responsável pelo programa PLPs (Promotoras Legais Populares) e, naquele
momento, pelo atendimento de mulheres vítimas de violência. Fátima Oliveira era médica,
militante feminista e anti-racista, autora especialista nas áreas de direitos reprodutivos e da
saúde da população negra. Pioneira nos estudos de genética e bioética de uma perspectiva
feminista e anti-racista. Em 2017, morreu em decorrência de um câncer. Arnaldo Xavier,
poeta, publicou inúmeros poemas, em português, francês e alemão, além de peças de teatro.
Seu testemunho in memorian desde a tese.
Os regimes de verdades impostos pelo “Ser” ao denominado “Outro” são constante e
permanentemente desmentidos pela resistência negra brasileira. E aí está a grandeza do livro
de Sueli Carneiro. Além de nos permitir compreender as nuances que engendram nosso
racismo mas, é possível vislumbrar a ação coletiva como possibilidade e esperança de um
futuro de justiça social, forjado na equidade de raça, gênero e no enfrentamento às
desigualdades.

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