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AKOTIRENE, Carla.

Entrevista “O que é interseccionalidade”

 
https://www.geledes.org.br/o-que-e-interseccionalidade/​. Acessado em 13-08-2020

 
A coluna Mulheres em Movimento 
entrevistou Carla Akotirene, bacharela 
em serviço social, mestra e doutoranda 
em estudos sobre mulheres, gênero e 
feminismo pela Universidade Federal da 
Bahia (UFBA) sobre o livro O que é 
Interseccionalidade? 
Por: ​Carla Batista no ​Folha Pe 

Livro O que é InterseccionalidadeFoto- divulgação


 
A coluna Mulheres em Movimento entrevistou ​Carla Akotirene​, bacharela em 
serviço social, mestra e doutoranda em estudos sobre mulheres, gênero e 
feminismo pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) sobre o livro ​O que é
Interseccionalidade?​ A publicação será lançada nos próximos meses com a 
sua presença, em diversas cidades do país. O livro se encontra em pré venda, 
através do site da Editora Letramento: ​Grupo Letramento​. 
 
Carla Akotirene​ foi a primeira pessoa da sua família a chegar à universidade 
graças a conquistas que, nem bem se concretizaram amplamente, se 
encontram ameaçadas. O livro pode nos ajudar a assimilar a dimensão dessas 
conquistas e ameaças. É também uma das mulheres negras que “rompeu com 
a passividade das leituras e buscou o movimento da escrita”. Compartilhei 
esta frase da colunista do Nexo Giovana Xavier, quando ela se referiu a 
Conceição Evaristo, nossa eleita para a Academia Brasileira de Letras. Carla 
Akotirene é uma das pessoas que produzem conhecimentos que precisam ser 
compartilhados, compreendidos e assimilados para que o mundo fique 
melhor. Boa leitura. Comente. Compartilhe. E leia o livro! 
CB: Nos fale um pouco sobre a sua trajetória. 
Akotirene: ​Sou cria do Instituto Steve Biko. Tanto do Cursinho pré vestibular 
quanto do Projeto POMPA/CEAFRO. O primeiro é uma ação afirmativa com 
objetivo de inserir negras/os oriundos de escola pública e de baixa renda 
familiar nas Universidades, mediante conteúdo sobre cidadania e consciência 
negra, disciplina obrigatória no Steve Biko. O POMPA foi uma ação pioneira no 
Brasil, em 2004, resultante de parceria das fundações Fulbright/Loreley 
Williams e CEAFRO (Programa de Educação Racial e de Gênero do Centro de 
Estudos Afro Orientais da UFBA) na qual 21 jovens negros/as selecionados/as 
passaram por uma escola de formação que incluía estágio supervisionado 
com figuras públicas negras, intelectuais negras e parlamentares negros, 
sobre em quais condições estruturais podemos ingressar na administração 
pública, universidades e governanças, sem corromper princípios de militância 
antirracista e em prol da comunidade negra. Tais organizações me 
proporcionaram densa e aprimorada formação política para a ocupação de 
espaços estratégicos, a fim de abrir portas para outras pessoas negras. 
A própria formação intelectual acadêmica é consequência desses 
investimentos formativos. Luiza Bairros e Vilma Reis – com quem trabalhei – 
Matilde Ribeiro, Nazaré Mota, Makota Valdina, Valdecir Nascimento, Silvio 
Humberto, Hélio Santos, Joaquim Barbosa, Valdo Lumumba, foram/são os 
intelectuais responsáveis pelo delineamento ético-político que me 
impulsionam para a academia. Sou pouco destinada à credencial de mestra ou 
doutoranda em estudos feministas, estou mais comprometida com 
descolonização epistêmica. 

As experiências políticas foram inúmeras. Não posso deixar de citar a 


coordenação nacional da Campanha Contra o Genocídio da Juventude 
Negra/Bahia, resultante do Encontro Nacional de Juventude Negra (Enjune) e 
seu Fórum Nacional. Ainda politicamente atuei como articuladora do primeiro 
Encontro Nacional de Negras Jovens Feministas e do Congresso Nacional de 
Negras e Negros, numa proposta de criar um partido negro. Sem dúvidas, sem 
este percurso de militância não seria hoje uma escritora da Coleção 
Feminismos Plurais, coordenada pela filósofa Djamila Ribeiro. Tais 
experiências desestabilizaram a tendência intelectual reducionista de antes, 
quando o olhar sobre o marcador de raça estava isolado de outras tecnologias 
de opressão. 
Durante a graduação na Universidade Católica de Salvador, aonde ingressei 
com a nota do Enem e fui contemplada com bolsa integral no terceiro 
semestre, idealizei o Núcleo Matilde Ribeiro (Numar). O objetivo do Numar, ao 
lado do Núcleo Makota Valdina, era combater o racismo na Universidade, 
propor políticas de assistência aos estudantes negros/as e disputar conteúdos 
curriculares do ponto de vista racial. Naquela época a ex-ministra de igualdade 
racial compôs este processo no qual procuramos mostrar metodologicamente 
como o foco teórico na produção marxista inviabilizava as abordagens 
profissionais para negros e mulheres, usuários/as majoritários /as dos serviços 
prestados pelas assistentes sociais. 

No mestrado em Estudos Feministas (PPGNEIM/UFBA) vivenciei um período 


de exaustivo racismo epistêmico, anulação intelectual e disputas de narrativas 
que motivaram no doutorado criarmos a Opará Saberes, iniciativa de 
instrumentalização das candidaturas negras, especialmente de mulheres 
negras, nos processos teóricos e metodológicos do mestrado e doutorado, 
apoiada por pensadoras negras como Zelinda Barros e Lívia Vaz, parceiras de 
longa data. 

Carla Akotirene – Foto: divulgação / Folha Pe


CB: O que é interseccionalidade, tema do seu livro que estará sendo
lançado?
Akotirene:​ Interseccionalidade é uma ferramenta metodológica disputada na 
encruzilhada acadêmica. Trata-se de oferenda analítica preparada pelas 
feministas negras. Conceitualmente ela foi cunhada pela jurista estadunidense, 
a professora da teoria crítica de raça Kimberlé Crenshaw, no âmbito das leis 
antidiscriminação. Sensibilidade analítica, a interseccionalidade completa no 
próximo semestre 30 anos, quando a sua proponente teorizou a sugestão 
histórica pensada pelo movimento de mulheres negras. É uma ferramenta 
teórica e metodológica usada para pensar a inseparabilidade estrutural do 
racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado, e as articulações decorrentes daí, 
que imbricadas repetidas vezes colocam as mulheres negras mais expostas e 
vulneráveis aos trânsitos destas estruturas. Infelizmente agora sofre os perigos 
do esvaziamento, pois caiu no gosto acadêmico das branquitudes. Fala-se 
muito de feminismo interseccional sem trabalhar o paradigma afrocêntrico, de 
forma desconexa da origem, fundamento e propostas epistemológicas das 
feministas negras. 
CB: Como isso se relaciona com os seus estudos acadêmicos?
Akotirene:​ No mestrado eu estudei interseccionalidade no Conjunto Penal 
Feminino de Salvador. Lá, comprovei que a prisão é um microcosmo de 
violências amplas, subscrita de conflito entre Lei de Execução Penal de 1984 e 
Lei Maria da Penha de 2006. Há excesso de mulheres negras encarceradas 
que não conseguiram negociar com a policia a impunidade quando se 
opuseram às violências de gênero praticadas contra elas. Há outra parcela 
presa porque seus maridos as obrigaram a levar drogas ou celulares na vagina 
para que eles preservassem masculinidades hegemônicas no tocante à 
sexualidade ou fossem os administradores das galerias e circulação dos bens 
e serviços. A violência de gênero é sempre o pano de fundo, principalmente 
quando estamos falando de homicidas de agressores. Defender a prisão não 
dá conta de perceber toda a variedade de intersecção de classe, raça e 
território. 
Os religiosos do candomblé, no papel de assistência religiosa às internas, 
diferente dos de outras religiões, são tratados como perigosos, elegíveis às 
revistas vexatórias do tipo que inspeciona o ânus em busca de entorpecentes, 
enquanto neopentecostais e católicos incorrem na reprodução do racismo 
religioso. Nas penitenciárias, como a semântica penitência sugere, as lésbicas 
e trans hegemônicas estupram as mulheres ladys, sem que estas últimas 
possam dar queixa usando o recuso da Lei Maria da Penha. Afinal, 
agressores/agressoras já estão privados de liberdade. Mulheres negras não 
recebem quaisquer benefício de remissão da pena e indulto sem antes 
passarem pela seletividade racial nas funções de trabalho. As brancas 
destinadas ao administrativo, enquanto as negras são mantidas nos trabalhos 
pesados. 

CB: E agora no doutorado, qual o seu tema de trabalho?


Akotirene:​ No doutorado estou propondo um estudo comparativo entre as 
lógicas de racismo e sexismos institucionais nas prisões masculinas e prisões 
femininas, mais uma vez à luz da interseccionalidade, para compreender os 
fracassos da lei, das retóricas de militâncias feminista, antirracista e execução 
penal. A argumentação toda é para comprovar o engodo da ressocialização e 
dizer que formação técnica de políticas de promoção da igualdade e contra o 
racismo institucional não serve para a 
prisão, haja visto que sem racismo não existiria prisão. 
CB: Fale mais um pouco…
Akotirene: ​A ideia de​ racismo institucional​ concebe que uma instituição não 
dispõe de atendimento adequado para pessoas negras, então a instituição 
prisional teria que mudar conjunturalmente pra atender bem os/as usuários/as. 
O que eu estou afirmando é que o discurso de formação de servidores/as no 
sentido de prevenir e combater o racismo institucional é engodo, já que a 
prisão serve para legitimar o Estado Penal, regulador das discriminações 
raciais. Logo, nenhum/a usuário/a quer uma prisão sem racismo. A prisão é o 
próprio racismo. Como já nos disse Hamilton e Carmichael: é prática 
antinegros, e segundo as pesquisadoras Angela Davis, Juliana Borges e Ana 
Flauzina, o sistema penal precisa da seletividade racial e etiquetamento para 
poder funcionar bem. É por isto, por exemplo, que o negro desempregado é 
capturado para trabalhar nas prisões, numa lógica do capital da punição. 
CB: Quais são os desafios atuais que você vê para os movimentos de
mulheres?
Akotirene:​ Do meu espaço de atuação, vejo que precisamos conseguir 
engajar processos ativistas para dentro da academia, criar estratégias de 
disputa de conhecimento fora da matriz Europa Ocidental e Estados Unidos, 
bem como evitar legitimidades de academistas negras fora do lugar 
epistêmico para dentro dos movimentos sociais. Digo isso a partir de uma 
perspectiva descolonial. A Universidade precisa do racismo para investir na 
continuidade do colonialismo. Vejo pesquisadoras negras 
autorizadas/legitimadas pelo argumento da visibilidade negra na produção 
teórica, contudo elas seguem presas às correntes ocidentais. Somos nós, 
militantes descolonias, que devemos ir pra academia e não os/as 
acadêmicos/as {mesmo negros/as} usarem a interseccionalidade para 
respaldo ativista epistemicamente situado do lado Norte Global. 
CB: Para terminar, fale um pouco mais sobre o seu livro… 
Akotirene: ​No meu livro demonstro como a interseccionalidade, enquanto 
ferramenta teórica e metodológica, permite-nos enxergar na colisão das 
estruturas do racismo, do capitalismo e do cisheteropatriarcado, a interação 
simultânea das avenidas identitárias. Além do fato de feminismos brancos 
fracassarem na tentativa de socorrer as vítimas negras, tendo em vista a forma 
como empregam o racismo nas suas análises e propostas. Igualmente, o 
movimento negro falhar pelo seu caráter machista, quando apresenta 
ferramentas metodológicas pensadas para socorrer exclusivamente o homem 
negro. 
*​ Carla Gisele Batista é historiadora, pesquisadora, educadora e feminista
desde a década de 1990. Graduou-se em Licenciatura em História pela
Universidade Federal de Pernambuco (1992) e fez mestrado em Estudos
Interdisciplinares Sobre Mulheres, Gênero e Feminismo pela Universidade
Federal da Bahia (2012). Atuou profissionalmente na organização SOS Corpo
Instituto Feminista para a Democracia (1993 a 2009), como assessora da
Secretaria Estadual de Política para Mulheres do estado da Bahia (2013) e
como instrutora do Conselho dos Direitos das Mulheres de Cachoeira do
Sul/RS (2015). Como militante, integrou as coordenações do Fórum de
Mulheres de Pernambuco, da Articulação de Mulheres Brasileiras e da
Articulación Feminista Marcosur. Integrou também o Comitê Latino Americano
e do Caribe de Defesa dos Direitos das Mulheres (Cladem/Brasil). Já publicou
textos em veículos como Justificando, Correio da Bahia, O Povo (de Cachoeira
do Sul). 
Tags:​ ​Carla Akotirene​Interseccionalidade​Mulher Negr 

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