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Elizabeth Silvia de Sousa

Lesbianidade à margem:
A perspectiva das lésbicas negras sobre os conflitos raciais dentro do
movimento lésbico e feminista da cidade de São Paulo

Trabalho de Conclusão de Curso da


Graduação em Ciências Sociais na
Universidade Federal de São Paulo
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Valéria Macedo

GUARULHOS

2018
Elizabeth Silvia de Sousa

Lesbianidade à margem:
A perspectiva das lésbicas negras sobre os conflitos raciais dentro do
movimento lésbico e feminista da cidade de São Paulo

Trabalho de Conclusão de Curso da


Graduação em Ciências Sociais na
Universidade Federal de São Paulo
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Valéria Macedo

Apresentado em __/__/____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________

Profº Orientador

________________________________________________

Profº Orientador

_________________________________________________

Profº Orientador

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tesão pela pele branka é violenta tranka kolonial tensão só kom
ela o amor é ideal desleal kontra as de kor é a real embrankecer
tocando o branko seio tecer imaginário de humanidade feito
otário eskecer atrocidades ke impuseram para os da
ancestralidade o auto ódio kerendo o pódio da brankura buska
pela kura kura kura de se sentir inferior tendo ke mentir pra o
eu interior e nas ruas kontinua a perseguição das viatura e noiz
atura atura mas tem neguin ke não dura dura dura aos pente
deskarregado em cima dos preto e pardo nas pistas os baile
black tomado pelos privilegiado atrás da muro os jack é
tombado eu kero meu nome na lista a brankinha a vista a
gatinha erotiza mas exotiza butch bonitão no pé kaminhão
xavoso assim ke é o fitar sapatão minucioso na madrugada tá
afim de fikar só ker kurtir enfim pra kasar nem vou me iludir vai
ser kom a brankela boyzona igual ela belas meninas chega
junto pra pedir kokaína acha ke to ali pa te servir ker um lance
uns beijo um lança uma dança mas nada de romance kom o
ponta de lança é lógiko é lógiko é lógioko nenhuma aguanta os
problema psikologiko mas ker eskema ker dedada pra gozar
pede a linguada mas não leva pra kasa nem apresenta pra
família memo assim vou ke vou seguindo minha trilha sem us
litros kom os livro ke me deixa longe dos tiro não dos tira estudo
komo eskudo ke mira o alvo falo poetizando não me kalo solto
um urro ao ver meu pigmento tipo burro kuando foge em
sofrimento desando vê se pode branko sujo bando cujo se
nomeia pardo é um fardo também sem os ouro kem tem kouro
bem klaro enkardido meu karo ta fudido kuando me vê mas
esteriotipa signifika ke me invizibiliza eu lamento lamento
lamento meu preterimento por pertencimento não branko não
boy não feminilizado brado muito bravo eskurecendo agravos
desenkantos do amor romantiko eurocêtriko tirano falocêtriko
tá me tirando kom a mikropolítika do desprezo sem seu apreço
adoeço mas aí fi anoiteço kuando o projeto polítiko é deixar de

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ser objeto ter senso kritiko ó desejar fazer amor só kom as de
kor tipo ativa o ke ke há para sapatão reparação afetiva já

(Formiga, Intertextualidade, 2017)

Dedicatória

Esse trabalho é dedicado a todas as mulheres pretas, pardas, indígenas e não


brancas que de alguma forma já vivenciaram o racismo seja através da violência
direta, simbólica, ou através de seus estilhaços. Também é dedicado à toda
resistência negra, que constrói melhores espaços e alternativas de vida para as
pessoas negras dentro e fora do meio LGBT.

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SUMÁRIO

Empoderamento e autodefinição ................................................ 6

Feminismo negro: o “outro” feminismo ....................................... 8

Racismo, militância negra e feminismo ...................................... 9

Heterossexualidade Compulsória e Lesbianidade ..................... 13

(In)visibilidade lésbica no movimento LGBT............................... 16

Contextualização das entrevistas ............................................... 18

Análise das entrevistas .............................................................. 22

A antítese da branquitude: A negação


a uma estética historicamente louvada ....................................... 40

Análise de Imagens .................................................................... 52

Conclusão ................................................................................... 57

Gráficos ....................................................................................... 58

Referências ................................................................................. 62

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Empoderamento e autodefinição

Nos últimos anos, os debates feminista, LGBT e racial têm se popularizado no


Brasil, ganhando certa visibilidade na mídia por um lado e incomodando os setores
mais conservadores da sociedade por outro. Embora ainda não se possa avaliar os
resultados da sutil popularização desses debates, é possível observar os reflexos
dessas mudanças no crescimento da difusão de ideias de empoderamento entre
essas minorias de direitos.

Por meio de um diálogo com a produção de autoras negras feministas, bem


como de entrevistas com ativistas lésbicas do movimento feminista negro e a
experiência de campo em festas produzidas e frequentadas por mulheres lésbicas
negras, este trabalho pretende abordar a perspectiva de mulheres negras sobre
lesbianidade e racismo dentro do movimento lésbico-feminista de São Paulo. A ideia
é situar como se dá a prática do feminismo hoje entre essas mulheres e como a
história do feminismo negro reflete nessa prática. Para isto, se faz necessário
desvendar como os caminhos das intersecções entre gênero, sexualidade e raça
influenciam na constituição do feminismo lésbico e negro, e como este feminismo se
relaciona com as concepções do feminismo lésbico branco, que é portador da maior
parte da teoria feminista traduzida atualmente no Brasil. É importante ressaltar que,
mais do que o conteúdo teórico, que também será abordado, um dos principais focos
desse estudo se refere ao conteúdo prático, centrando foco na autonomia da mulher
negra e lésbica na construção de seus próprios discursos sobre sua existência.

Nas sociedades ocidentais todo conhecimento é pautado dentro da normativa


constituída pelo homem branco. Este consegue se reconhecer na maior parte da
literatura política, científica, antropológica, histórica e sociológica, e para além disso,
constrói um “outro” de acordo com sua própria visão de mundo. Falar sobre a
produção do saber da mulher lésbica e negra é falar também sobre um determinado
discurso que parte da autodefinição. Concordo com a ideia de Patricia Hill Collins
(1986), sobre a importância de que as mulheres negras produzam discursos que
rompam com os estereótipos brancos, tanto negativos quanto supostamente
positivos, do que é a mulher negra. Só a produção dessa autodefinição e
autoavaliação é capaz de romper algumas amarras do poder do homem branco

6
sobre a imagem subjetiva da mulher negra, construída sob a base de uma ideia de
inferioridade.

Uma afirmação da importância da autodefinição e da autoavaliação das


mulheres negras é o primeiro tema chave que permeia declarações
históricas e contemporâneas do pensamento feminista negro. Autodefinição
envolve desafiar o processo de validação do conhecimento político que
resultou em imagens estereotipadas externamente da condição feminina
afro-americana. Em contrapartida, a autoavaliação enfatiza o conteúdo
específico das autodefinições das mulheres negras, substituindo imagens
externamente definidas com imagens autênticas de mulheres negras.
(COLLINS,1986, p.102)

Pensando em um contexto de autodefinição da mulher negra, conduzi um conjunto


de entrevistas com a intenção descobrir, nesses discursos, como se constroem as
imagens físicas e subjetivas dessas mulheres sobre si mesmas. Tive receio de que
perguntar diretamente sobre essa imagem pudesse contaminá-la com ideias,
construções sociais, etc. Então optei por buscar essas imagens de uma forma mais
ampla, analisando respostas amplas sobre o contexto do feminismo negro, os
lugares de onde vieram essas mulheres, seus espaços de socialização, sua relação
com mulheres brancas, etc.

Dito isso, é importante ressaltar que esse trabalho, escrito por uma mulher
negra e lésbica, pretende colaborar para a construção da identidade desse sujeito,
respeitando obviamente as limitações antropológicas que demarcam e separam o
lugar da pesquisadora, e o lugar do seu objeto. Ainda assim pretendo expor o que
minha memória tem a oferecer enquanto conteúdo sobre lesbianidade negra. O
saber na cultura negra é preservado e transmitido pela memória e pela oralidade,
diferente do saber ocidental, documentado, argumentado e contestado através da
escrita. Aqui pretendo interligar essas duas formas de produção de conhecimento
através da antropologia, que acredito ser a ciência mais apta no cruzamento desses
dois caminhos. A maior dificuldade dessa pesquisa foi encontrar uma bibliografia
específica para o tema, já que a produção dos saberes de mulheres negras, e
mulheres negras e lésbicas, é frequentemente mais documentada na literatura e nas
artes. Por isso encontrei a necessidade de pesquisar através de linguagens variadas,
como etnografia, entrevistas, análise de imagens e, pensando em perspectivas mais
contemporâneas, comentários e discussões das redes sociais. Dentro dessas
possibilidades, tentarei introduzir o que será apenas um recorte fotográfico de uma
história muito mais ampla, sobre o que acontece hoje no pensamento e nas vivências
7
das feministas lésbicas e negras não acadêmicas, organizadas na Grande São
Paulo.

Feminismo negro: o “outro” feminismo

No âmbito acadêmico, a grosso modo, grande parte da teoria feminista


discutida no Brasil ainda é importada, principalmente dos Estados Unidos e da
Europa e produzida por mulheres brancas, como Simone de Beauvoir, Judith Butler,
Iris Young, Nancy Fraser, etc. Em qualquer curso acadêmico sobre teoria feminista
é difícil encontrar nos currículos ou ementas até mesmo os nomes mais consagrados
do feminismo negro, como Angela Davis, Audre Lorde e Bell Hooks, porque as obras
teóricas do feminismo branco permanecem hegemônicas, enquanto as teorias do
feminismo negro ainda fazem parte de um gueto, um outro feminismo, demarcado
pela raça. Já a teoria feminista branca aparece desracializada, como se fosse
neutra e representasse todas as mulheres. Se há no Brasil dificuldades para acessar
até mesmo os textos de feministas negras norte-americanas, o caminho é ainda mais
complicado quando se tenta encontrar traduções de uma feminista negra e lésbica,
como Audre Lorde, por exemplo. Para além do apagamento de teóricos negros no
âmbito acadêmico em geral e nos cursos sobre feminismo, há o apagamento lésbico,
pois as teorias feministas mais difundidas ainda são hegemonicamente produzidas
por e para mulheres heterossexuais.

A marcação do lugar outro, marginalizado, se dá concomitantemente ao


apagamento das marcas do lugar que vai ser hegemonizado. Não é só
porque a própria Audre Lorde se definia uma negra lésbica mãe guerreira
poeta que ela é citada como uma grande pensadora feminista negra (muitas
vezes os outros termos depois desse são deixados de lado), mas porque o
custo de nunca se mencionar Judith Butler como “a grande filósofa branca”
(a despeito de ela ser judia) é que as não-brancas sejam marcadas, por ser
a branquitude é o lugar de desmarcação, o espaço hegemônico, o referente,
a norma – e, portanto, invisível. A diferença, aqui, entre invisível e
invisibilizado é que enquanto o invisível é dominante, constantemente
presente, o invisibilizado é apagado. E quando a produção teórica feminista
depende tanto da tradução como uma de suas garantidoras, se não surgem
questionamentos sobre quem tem sido mais traduzida e quem tem sido
menos, e as relações que isso tem com o racismo, bom, então tudo fica
mais ou menos o mesmo. Branco. (NASCIMENTO, 2014, p. 38 - 39)

As barreiras com as quais nos deparamos ao tentar acessar a teoria feminista negra
são mantidas pelo racismo institucional dentro das universidades, que demonstram

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apatia ao não proporem currículos e pesquisas que possibilitem sanar essa imensa
lacuna teórica da produção acadêmica negra. Em parte, a política de cotas nas
universidades colabora para amenizar essa lacuna, mas, ainda assim, a grosso
modo, a academia continua priorizando a perspectiva de autores ocidentais ao
mesmo tempo em que negligencia as perspectivas históricas da população negra.
Um exemplo disso, quando se trata de feminismo, é o que se conta sobre a luta das
mulheres pelo direito ao voto e ao trabalho, pelo direito ao aborto e a métodos
contraceptivos. Grande parte dessa história do feminismo difunde principalmente a
perspectiva de mulheres brancas. Fala-se muito pouco sobre o quanto as mulheres
negras estavam longe de ser incluídas no sufrágio feminino, sobre o fato de elas
nunca terem que exigir o direito ao trabalho já que sempre trabalharam da mesma
forma que homens negros e muito mais do que homens brancos, e também como
tinham acessos mais precários à contraceptivos e ao aborto do que as mulheres
brancas, sendo que, para além disso, antes de lutarem pelo direito de abortar tiveram
que lutar pelo direito de ter filhos, enfrentando políticas de controle de natalidade que
miravam somente à populações negras e pobres. São essas perspectivas que
pretendo aprofundar a seguir, para contextualizar o lugar da mulher negra dentro da
história do feminismo.

Racismo, militância negra e feminismo

O primeiro registro do contato de uma mulher negra com o que viria a tornar-se o
feminismo surge no pronunciamento de Sojourner Truth na Women’s Rights
Convention em Ohio, Estados Unidos, em 1851. Enquanto se discutia os direitos da
mulher em uma reunião de clérigos, os pastores presentes afirmaram que mulheres
não deveriam ter os mesmos direitos que os homens por serem frágeis e
intelectualmente débeis. Então Sojourner, uma mulher negra que havia inclusive
passado pela experiência da escravidão, levantou-se e proferiu o seguinte discurso:

Bem, crianças, atrevo-me a dizer algo sobre este assunto. Eu acho que quer
os negros do Sul e as mulheres do Norte estão a falar sobre direitos, os
homens brancos estarão em dificuldade em breve. Mas o que é isto que
estão a falar? Esse homem aí há pouco disse que as mulheres precisam de
ajuda para subir às carruagens e levantadas sobre as poças, e de me
cederem os melhores lugares … e não sou eu uma mulher? Olhem para
mim! Olhem para os meus braços! (ela arregaçou a manga direita da
camisa) … Eu lavrei, plantei e colhi para os celeiros e nenhum homem podia
ajudar-me – e não sou eu uma mulher? Eu posso trabalhar tanto quanto
9
qualquer homem (quando eu puder fazê-lo) e ser chicoteada também – e
não sou eu uma mulher? Eu dei à luz cinco crianças e vi todas serem
vendidas para a escravatura e quando chorei a minha dor de mãe, ninguém
senão jesus ouviu – e não sou eu uma mulher? (SOJOURNER
TRUTH,1851)

O relato de Sojourner retrata muito bem o que vivia a mulher negra daquele período,
pois mostra o quanto o racismo colocava a mulher negra em uma condição que a
desconectava de qualquer ideia de fragilidade, ou seja, a mulher negra era capaz de
trabalhar e aguentar a tortura “como um homem”. O discurso de Soujourner desarma
a justificativa dos pastores, já que ela mostra através do relato de sua própria
realidade que a mulher é sim capaz de exercer as mesmas funções que um homem.
A maioria das mulheres brancas daquele período, jamais teriam como utilizar a sua
própria experiência de vida como justificativa para a defesa de seus direitos. Isso
mostra também em que lugar estava cada mulher na sociedade. As mulheres
brancas, por exemplo, precisaram lutar pelo direito ao trabalho porque eram
associadas à esfera do lar, da propriedade privada masculina, à fragilidade e cuidado
dos filhos, que nem sempre eram realizados totalmente por elas. Enquanto isso as
mulheres negras não precisaram lutar por esse direito pois sempre trabalharam,
inclusive na casa de mulheres brancas, ajudando a criar seus filhos. A mulher negra
também nunca foi associada à propriedade privada masculina, pois o homem negro
sequer tinha acesso à propriedade. Dentro dessas condições não havia como
associá-las a uma ideia de dependência e fragilidade, muito pelo contrário,
estimulou-se na mentalidade da sociedade, a ideia de que a mulher negra era bruta,
agressiva e masculinizada.

É dentro nesse contexto que surgem as primeiras reivindicações das mulheres


brancas por seus direitos: um contexto de uma recente abolição da escravatura, que
ocorreria em 1863, onde o racismo é hegemônico e permeia a mentalidade de todo
cidadão americano branco. Obviamente, o racismo iria dar suas caras também
dentro das lutas por igualdade entre os sexos.

Uma série de conflitos históricos provocaram uma cisão entre o feminismo negro e
o feminismo branco, deixando cicatrizes profundas até hoje. Para aprofundar melhor
estas questões, farei um breve apanhado histórico do que foi o movimento sufragista
nos EUA, no século XIX, a segregação racial.

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O racismo marcou diversas ações e estratégias do movimento sufragista
americano. As mulheres brancas de classe média e alta, que protagonizavam as
reivindicações por direto ao voto, não só ignoraram o sufrágio negro em sua pauta,
como também moveram esforços para que as mulheres brancas conseguissem o
sufrágio antes de homens negros utilizando o argumento de que os negros eram
ignorantes, não estando portanto aptos para o voto e que por isso seria mais
interessante conceder o sufrágio a mulheres brancas, que tiveram acesso a
educação e que portanto fariam melhores escolhas. Até mesmo parte do movimento
que se posicionava como abolicionista tinha dificuldade de enxergar as reais
necessidades e vivência da população negra, o profundo racismo apagava
completamente qualquer noção mais profunda de empatia que os brancos pudessem
ter pelos negros, pois a abolição não foi capaz de apagar o sentimento de
superioridade dos brancos.

Para as sufragistas, a abolição da escravatura (1865) igualava homens e mulheres


negros à uma condição semelhante à das mulheres brancas: cidadãos livres sem
direito ao voto. Com o sufrágio do homem negro elas temiam que estes elevassem
seu status, tornando superiores em direitos, em relação às mulheres brancas. O que
elas não percebiam é que na prática essa liberdade não existia para a população
negra, que ainda era refém da miséria, da precariedade no trabalho e do ódio racial,
que potencializava todas essas mazelas já que colocava a população negra em
constante risco de sofrer violências. Na prática, após a abolição a condição da
população negra permanecia no mais baixo degrau da escala social, e o negro
estava muito distante de ser visto como um ser humano, ou como uma mulher
branca.

O sufrágio feminino nos EUA só viria a acontecer em 1920, quase um século


após o surgimento da primeira leva de sufragistas. Mas essa base das sufragistas,
era formada por uma elite apoiada em ideologias limitadas, que não se sustentavam
em mais nenhuma pauta após a conquista do direito ao voto. Não havia por parte
dessa base interesse em se aprofundar em questões sociais, econômicas e raciais,
pois essas questões não as atingiam. Com a conquista do direito ao voto, a maioria
das mulheres brancas limitaram-se a apoiar o voto de seus maridos, o que não
abalava em nada as estruturas do patriarcado e muito menos do racismo.

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É importante lembrar que a segregação racial nos EUA, reforçava a indiferença das
mulheres brancas em relação aos direitos das mulheres negras. O processo de
rompimento da segregação só passou a ocorrer por volta dos anos 70. Durante a
década de 50, período de forte resistência negra contra a segregação, para a maioria
das mulheres negras a luta para combater o sexismo não era prioridade, pois o ódio
racial estava em seu auge. Homens e mulheres negros eram violentados, linchados
e enforcados em árvores por organizações de ódio racial como a Ku Klux Klan. A
mulher negra sequer era vista como um ser humano, como iria se enxergar como
uma mulher que precisa lutar contra a desigualdade de gênero se nem ao menos
estava livre da violência racista? Nesse momento o principal recado das líderes do
movimento negro era de que a luta contra a desigualdade de gênero poderia colocar
a mulher negra contra o homem negro, o que naquele momento poderia abalar a
união na luta contra o racismo. O problema é que esse afastamento da mulher negra
no debate sobre gênero fez com que, ao final do movimento negro pelos Direitos
Civis somente figuras masculinas fossem lembradas.

Embora as mulheres líderes negras apelassem às mulheres negras que


assumissem um papel ativo como os homens negros na luta para acabar
com o racismo, implicitamente ao seu apelo pela ação estava a assunção
que a igualdade social dos sexos era uma questão secundária. (HOOKS,
1981, p.126)

Já as mulheres brancas não tinham como preocupação incluir as mulheres negras


no feminismo, porque o maior foco de seus objetivos após a conquista do voto
passou a ser alcançar o mesmo status do homem branco e não necessariamente
construir uma sociedade mais igualitária. Muitas argumentavam que através da
emancipação feminina poderiam colaborar para o crescimento dos Estados Unidos.
Só que apoiar o crescimento do país nesse contexto implicaria diretamente em
apoiar o imperialismo racial. Ou seja, combater o racismo não estava entra as
prioridades das mulheres brancas. Já as mulheres negras, até mesmo as mais
conservadoras, não tinham outra escolha senão confrontar a política racista do
Estado. Era difícil apoiar o crescimento do país dentro desse contexto, já que esse
crescimento não incluía a população negra, muito pelo contrário.

Mais adiante farei uma análise de como alguns resquícios dessa perspectiva
histórica da mulher negra em relação ao feminismo perdura até hoje, mesmo se
tratando de um contexto de outro país. Aqui, resumo apenas o que é mais importante

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para essa análise, embora os fenômenos ocorridos durante esse período guardam
muito mais complexidades.

Heterossexualidade compulsória e lesbianidade

A lesbianidade carrega consigo uma história de proibição e perseguição. Essa


perseguição desperta culpa e autonegação, pois a mulher lésbica se vê
impossibilitada de viver não só a sua própria sexualidade mas também uma cultura
que possibilite e fortaleça a experiência lésbica. O armário aprisiona a existência e a
experiência lésbica em um ciclo de rompimento de conexões e falta de acesso à uma
autodefinição livre. A homossexualidade já foi considerada doença, tratada em
manicômios e até hoje carrega o estigma de perversão sexual. Quando uma
sexualidade considerada perversa é praticada por uma mulher, a quem a
sexualidade sempre foi sistematicamente negada e subjugada, a experiência desse
corpo se configura como uma afronta ao patriarcado e à sua principal estrutura, a
heterossexualidade compulsória. O termo heterossexualidade compulsória foi
popularizado por Adrienne Rich em 1980 no seu artigo Heterossexualidade
Compulsória e Existência Lésbica. Neste artigo Rich propõe a ideia da
heterossexualidade como uma instituição política que retira o poder das mulheres,
ao mesmo tempo em que trabalha para a manutenção da dominação masculina.
Assim, a heterossexualidade compulsória teria como consequência inevitável o
apagamento da sexualidade e identidade lésbica nos âmbitos da vida social, familiar,
do trabalho e consequentemente da produção cultural e intelectual.

A existência lésbica inclui tanto a ruptura de um tabu quanto a


rejeição de um modo compulsório de vida. É também um ataque
direto e indireto ao direito masculino de ter acesso às mulheres. Mas
é muito mais do que isso, de fato, embora possamos começar a
percebê-la como uma forma de exprimir uma recusa ao patriarcado,
um ato de resistência. Ela inclui, certamente, isolamento, ódio
pessoal, colapso, alcoolismo, suicídio e violência entre mulheres. Ao
nosso próprio risco, romantizamos o que significa amar e agir contra
a corrente sob a ameaça de pesadas penalidades. E a existência
lésbica tem sido vivida (diferentemente, digamos, da existência
judaica e católica) sem acesso a qualquer conhecimento de tradição,
continuidade e esteio social. A destruição de registros, memória e
cartas documentando as realidades da existência lésbica deve ser
tomada seriamente como um meio de manter a heterossexualidade
compulsória para as mulheres, afinal o que tem sido colocado à parte
de nosso conhecimento é a alegria, a sensualidade, a coragem e a
comunidade, bem como a culpa, a autonegação e a dor. (RICH, 1980,
p.36)
13
A heterossexualidade compulsória, portanto, seria responsável não só por
invisibilizar a identidade e a sexualidade lésbica mas também por ignorar e dominar
a sexualidade de todas mulheres, impossibilitando-as de imaginar qualquer forma de
sexualidade que não envolva o desejo sexual masculino.
Sobre as lésbicas – quando parte da dominação sexual desaparece, já que há a
negação em satisfazer o desejo masculino – uma outra faceta de dominação pode
surgir na forma de uma reprodução dos modelos de relação heterossexual nas
relações lésbicas. Diante das várias formas complexas da dominação masculina,
Rich acredita que carece ao feminismo pensar na heterossexualidade para além de
uma preferência sexual já que ela seria imposta, o que anularia automaticamente a
possibilidade de uma existência lésbica, ou seja, a heterossexualidade compulsória
seria a chave fundamental utilizada para aprisionar lésbicas no armário. Sendo
assim, nem mesmo a lesbianidade estaria no lugar vago de preferência sexual, pois
se posicionar como lésbica implica também em um posicionamento político, que
mesmo de maneira inconsciente confronta a dominação masculina.

A suposição de que “a maioria das mulheres são heterossexuais de modo


inato” coloca-se como um obstáculo teórico e político para o feminismo.
Permanece como uma suposição defensável, em parte porque a existência
lésbica tem sido apagada da história ou catalogada como doença, em parte
porque tem sido tratada como algo excepcional, mais do que intrínseco.
Mas, isso também se dá, em parte, porque ao reconhecer que para muitas
mulheres a heterossexualidade pode não ser uma “preferência”, mas algo
que tem sido imposto, administrado, organizado, propagandeado e mantido
por força, o que é um passo imenso a tomar se você se considera livremente
heterossexual “de modo inato”. No entanto, o fracasso de examinar a
heterossexualidade como uma instituição é o mesmo que fracassar ao
admitir que o sistema econômico conhecido como capitalista ou o sistema
de casta do racismo são mantidos por uma variedade de forças, incluindo
tanto a violência física como a falsa consciência. Tomar passo a favor do
questionamento da heterossexualidade como uma “preferência” ou
“escolha” das mulheres – e, assim, fazer o trabalho intelectual e emocional
que vem a seguir – irá exigir coragem de uma qualidade especial das
feministas que se definem como heterossexuais, mas acho que a
recompensa será grande: uma libertação do pensamento, a exploração de
novos caminhos, a dissolução de outro grande silêncio, uma nova claridade
nas relações interpessoais. (RICH, 1980, p. 35)

Adrienne Rich também argumenta que ser lésbica na sociedade é ser um


sujeito sem história. É ter todo seus registros apagados e não ter nenhuma forma de
construir ou reconstruir sua própria cultura Neste aspecto, acredito que a
lesbianidade se assemelha à questão racial. Claro que não pretendo aqui comparar
os estigmas que essas experiências carregam de maneira genérica, cada uma delas

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tem suas próprias peculiaridades históricas e são atravessadas por estigmas
específicos, mas entendo que há entre essas diferentes vivências uma aproximação
quanto a restrição à acessos histórico e culturais.
A negritude carrega o estigma do etnocídio, que imprime aos povos negros
um não lugar na sociedade ocidental branca e embranquecedora. O povo negro tem
seu passado apagado, esquecido e contado pelos brancos. Consequentemente tem
seu presente apagado e, na falta de referências, está vulnerável a investir em
tentativas de adequação à sociedade através dos processos de embranquecimento.
Quanto às mulheres lésbicas, por falta de referências de lesbianidade, ou se isolam
no armário por medo, forçando-se por muitas vezes a viver relações heterossexuais,
ou, quando conseguem se assumir, tentam adequar-se às formas de vida
heterossexual, reproduzindo os valores hétero-patriarcais, como por exemplo a
instituição do casamento e o romantismo e as ideias hierárquicas e heteronormativas
que a ele se associam. Nenhum desses fenômenos é proposital, mas simplesmente
reflexos da falta de acesso à uma cultura e tradição próprias. Assim como a pessoa
negra está vulnerável a se embranquecer alisando o cabelo por falta de referências
positivas relativas a negritude, a mulher lésbica está vulnerável a reproduzir valores
heterossexuais em suas relações, por falta de referências positivas sobre a
lesbianidade. Consequentemente, a mulher negra e lésbica sofrerá duplamente as
consequências dessas ausências históricas e culturais, encontrando dificuldades ao
tentar enquadrar-se em algum lugar social, tendo que tecer, por fim, sua própria
cultura com base no que o mundo lhe oferece.
Mencionei anteriormente a importância que Patricia Hill Collins deposita na
autodefinição da mulher negra. Acredito que em um contexto onde lesbianidade e
negritude ocupam o mesmo corpo, a necessidade da autodefinição é duplicada,
assim como a ausência da autodefinição pode trazer consequências duplamente
prejudiciais. Ao meu ver, a questão da autodefinição também se atrela de alguma
forma à representatividade. Quando as mulheres que vivem a lesbianidade, a
negritude ou ambos, conquistam o acesso à uma autodefinição, passam a construir
também repertório para a construção de referências positivas de representatividade.
Essas referências fortalecem culturalmente existências estigmatizadas, fazendo com

15
que as pessoas atingidas por esses estigmas formem ideias de autovalor e
reivindiquem essas diversas representatividades. 1

(In)visibilidade lésbica no movimento LGBT


A lesbianidade é, para o senso comum, a versão feminina da
homossexualidade masculina. Essa ideia destitui as lésbicas de uma existência
política independente e que respeite suas especificidades. Para Adrienne Rich a
lesbianidade está intrinsicamente ligada à feminilidade, assim como à maternidade
e consequentemente à opressão de gênero. Resumi-la a uma versão feminina do
gay é reduzir sua história e seu estigma. A militância do homem gay, em razão do
privilégio masculino, sempre foi hegemônica, formando um abismo entre visibilidade
do movimento gay e a visibilidade do movimento lésbico. A Caminhada Lésbica de
São Paulo por exemplo, organizada por mulheres e que sempre acontece um dia
antes da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, reúne em média de mil a duas mil
pessoas. Já a Parada “LGBT” de São Paulo, popularmente conhecida como Parada
Gay (o que já mostra quem é mais visível), é organizada majoritariamente por
homens, dominada por trios elétricos de boates frequentadas principalmente pelo
público masculino, além de ser conhecida como uma das maiores paradas gays do
mundo, chegando a reunir 2,5 milhões de pessoas. Ou seja, muitas lésbicas sequer
têm conhecimento da existência da Caminhada Lésbica, que possui um viés mais
político e é mais frequentada por lésbicas feministas e LGBT´s mais assíduos na
militância da esquerda. A Parada Gay de São Paulo já atraiu a atenção de diversas
empresas, sedentas pelo “pink money”** que é gerado durante o evento. Em 2015,
por exemplo, uma grife famosa de joias anunciou na parada gay uma propaganda
de alianças com um casal de homens. Durante a parada os hotéis das imediações
do Jardins ficam lotados de turistas, os bares e boates “LGBT” têm um lucro
excepcional, assim como as lojas de roupas da Oscar Freire. Obviamente a maior
parte desse público homossexual consumidor é masculino, branco e cisgênero. É

1 Me refiro nesse caso somente à sexualidade lésbica porque os gays, embora também sofram com o estigma
da homossexualidade, por serem homens sempre tiveram mais acesso para documentar sua história, já que
sempre possuíram mais acesso econômico e acesso a própria vida sexual do que as mulheres lésbicas. Claro
que é necessário nesse caso fazer um recorte e lembrar que o mesmo nem sempre vai valer para homens negros
em relação a mulheres brancas, então nesse caso falo principalmente dos homens gays brancos. É importante
lembrar também que nem sempre essa pequena vantagem do gay em relação a lésbica significou liberdade
plena. Ainda assim o privilégio masculino imprime aos homens homossexuais outra história e um acesso à sua
construção histórica muito diferente.

16
fácil encontrar diversas ruas, bares e boates em São Paulo povoados por homens
gays. Um exemplo é a esquina na Rua Frei Caneca com a Rua Peixoto Gomide,
onde há diversos bares frequentados em sua maioria por homens. Lá também é
possível encontrar a boate Alôca, que funciona há 23 anos e é frequentada também,
majoritariamente, por homens gays. Assim como a Alôca, há várias outras boates
gays famosas, como a BuBu e a The Week por exemplo, que atraem principalmente
homens com alto poder aquisitivo. Das festas lésbicas que pesquisei, a única
frequentada por lésbicas com maior poder aquisitivo é a Girls, ainda assim, a festa
não é realizada na propriedade de sua promoter, diferente da The Week, que é uma
boate fixa para gays, feita por um homem gay, em sua propriedade. A Bubu, Alôca
e a Blue Space (que não cheguei a mencionar antes) também são boates com
proprietários homens. A Bubu tem o valor mais acessível que a The Week e realiza
a festa Bubu Só pra Elas.
A única boate que encontrei em que a proprietária é uma mulher lésbica é a
The L Club, que possui o valor de entrada bem mais acessível do que a Girls.
Também encontrei na pesquisa o bar Farol Madalena, que era frequentado por
lésbicas, principalmente as mais velhas, e que era de uma proprietária lésbica mas
o bar fechou. Não consegui descobrir o gênero dos proprietários das boates LGBT
Freedom Club, frequentada principalmente por pessoas de baixa renda e Tunnel,
frequentada por pessoas de média e baixa renda. Já a festa Sarrada no Brejo é a
única feita por mulheres negras e ocorre mensalmente em um espaço alugado. Não
tive conhecimento até agora de nenhuma festa feita por e para homens gays negros,
mas sei que eles estão muito presentes na festa Batekoo, que é aberta a todos os
públicos e organizada por pessoas negras. Sendo assim, não é mera impressão que
a letra com maior visibilidade dentro do movimento LGBT seja a letra G,
principalmente quando esse “G” representa homens brancos.
Essa visibilidade tão bem consolidada por homens gays nos espaços públicos
e privados em contraste com a presença mais reduzidas de lésbicas, ao meu ver são
os reflexos da feminização da pobreza. O termo surgiu nos anos 70 para nomear a
desigualdade econômica entre os gêneros. Se não há igualdade econômica, poucos
estabelecimentos atenderão a um grande público feminino, pois nem todas as
mulheres lésbicas que poderiam frequentar esses espaços terão renda para fazê-lo.

17
Por serem homens, os gays, principalmente os gays brancos mais
heteronormativos, recebem salários maiores e concentram maiores recursos.
Consequentemente, pouquíssimas mulheres possuem renda para investir em
estabelecimentos comerciais para lésbicas. Logo, haverá uma frequência menor de
lésbicas também no espaço público como as ruas, que muitas vezes estão lotadas
por causa dos estabelecimentos, o que é o caso da Peixoto Gomide e da Vieira de
Carvalho, com mais força há mais ou menos cinco anos atrás. A frequência de
lésbicas no espaço público e privado acaba sendo fragmentada, auto-organizada e
formada por diversas bolhas de socialização inseridas em diferentes tribos. A difusão
de todos esses diferentes espaços acaba sendo restrita, pois a maioria dessas
mulheres lésbicas, ou não terão renda para divulgar determinados espaços e
atividades em larga escala, ou não poderão frequentar determinados espaços por
não terem renda para tal.
Além disso é importante ressaltar que o feminismo constrói mais uma fronteira
entre esses diferentes grupos de mulheres lésbicas. Há os espaços de discussão
política, sarais e eventos musicais, assim como há os espaços de diversão noturna,
que é o que domina a maior parte da atenção do público LGBT jovem, assim como
de todos os jovens em geral. Como esses dois universos dificilmente se cruzam, é
um desafio para o feminismo lésbico cativar diferentes mulheres à participar da
Caminhada Lésbica, que têm um viés mais político que a Parada LGBT, que é um
evento mais festivo.

Contextualização das entrevistas

Abordar a questão racial entre lésbicas me surgiu após conhecer a festa


Sarrada no Brejo. A festa acontece mensalmente e se iniciou como um evento
integrado ao dia da visibilidade lésbica, tornando-se posteriormente uma festa fixa e
uma das festas lésbicas mais conhecidas entre mulheres negras que se entendem
ou não como feministas. A Sarrada é organizada pela Coletiva Luana Basbosa, uma
coletiva de mulheres lésbicas e bissexuais, negras e periféricas de São Paulo. Luana
Barbosa dos Reis, que dá nome a coletiva, foi uma mulher negra, mãe, lésbica e
periférica, morta em 13 de abril de 2016, após ter sido brutalmente espancada pela
polícia militar no dia anterior.

18
Ao ser abordada Luana foi confundida com um homem pelos policiais, que tentaram
revista-la. Ao se depararem com a resistência da vítima, que se recusava à ser
tocada pelos policiais e pedia para que uma policial feminina realizasse sua revista,
os policiais reagiram com violência. Luana tinha passagem pela polícia, mas já havia
cumprido sua pena e no momento da abordagem não havia nenhuma acusação
contra ela e nenhum indício de que ela houvesse cometido algum crime.

É importante relatar esse pequeno histórico sobre Luana, para entender por quem e
para quem é feita a Coletiva Luana Barbosa e a festa Sarrada no Brejo: mulheres
negras e periféricas, de classe baixa e também mulheres gordas, ou seja, todas as
mulheres que estão em um lugar social mais vulnerável, seja pela pobreza, pelo
racismo, ou por não se enquadrarem aos padrões de beleza impostos socialmente.
Consequentemente esse é o público predominante da festa, assim como o gênero
musical mais tocado na festa, o funk, demarca e reforça as características desse
grupo. A Sarrada é uma festa feita somente por mulheres e para mulheres, proibindo
a entrada de homens. É um dos poucos eventos noturnos de São Paulo sem fins
comerciais já que o dinheiro arrecadado serve para auxiliar mulheres negras que
necessitam de ajuda financeira. Como muitas das organizadoras e frequentadoras
são mães solo, a festa organiza um espaço para que essas mulheres deixem seus
filhos enquanto estão na festa. O que me despertou espanto, curiosidade e fascínio
pela festa foi o fato de eu, mulher lésbica e negra, jamais ter encontrado uma festa
para lésbicas tomada por tanta representatividade negra e periférica, organizada e
direcionada à mulheres negras e com declarado apelo político, mesmo tendo sido
frequentadora assídua da noite LGBT de São Paulo durante cerca de 10 anos.
Durante esse período frequentei todas as festas e clubes lésbicos do centro de São
Paulo que chegavam ao meu conhecimento, dentre elas o Téte a Téte, a Festa
Valentina, o Só pra Elas (da Bubu Lounge), o The L Club, a Tunnel aos domingos,
que era o dia mais lésbico e o Clube Z. Nenhuma dessas festas era exclusiva para
mulheres, ou seja, homens também podiam entrar, embora a maior parte do público
se mantivesse feminino. Além disso, a maioria parte dessas festas era organizada e
frequentada majoritariamente ou quase que exclusivamente por mulheres brancas.

A primeira festa que conheci frequentada pelo público LGBT, por pessoas
negras e gordas, destoando completamente do público padrão desses ambientes,
foi a Dont’Touch My Hair, em sintonia com o que é relatado por Fernanda Gomes,
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uma das entrevistadas. A Dont’Touch My Hair ocorreu esporadicamente em meados
de 2015 e era muito frequentada por pessoas negras e LGBT. Posteriormente
conheci a Batekoo, que surgiu na Bahia, continua acontecendo até hoje e é uma das
festas negras mais movimentadas e fortes de São Paulo, e que também atrai
bastante o público LGBT. Portanto, a Don’t Touch My Hair e a Batekoo, mostram que
a história da vida noturna LGBT ainda de São Paulo ainda é muito recente. Ainda
assim, nenhuma dessas festas foram exclusivamente para mulheres. A Sarrada no
Brejo só veio surgir uns dois anos depois, exclusiva para mulheres, criada e
organizada por mulheres de periferia, negras e gordas, atraindo um público com as
mesmas características e onde homem não entra, aliás, é uma das poucas festas
lésbicas de São Paulo em que homem não entra. Portanto, a primeira vez que fui a
uma Sarrada tive a sensação de que aquilo que acontecia lá era um movimento
histórico de resistência.

Um ponto muito forte entre essas três festas citadas além do cruzamento de
gêneros musicais é a dança, mas não a dança apenas como a performance de um
gênero musical, e sim a dança como empoderamento. São festas em que as pessoas
dançam de maneira espontânea sem medo dos olhares ou julgamentos. Para
elucidar melhor esse ponto, será necessário que eu entre em um contexto mais
pessoal. Apesar de ser negra, por ter nascido em um bairro de classe média e ser
lésbica eu sempre procurei frequentar os espaços lésbicos que me eram mais
acessíveis, e ao longo de anos eu simplesmente não encontrei nenhum espaço
como a Sarrada, pois os espaços brancos tem características completamente
diferentes. Nas festas lésbicas brancas é muito comum encontrar o “carão”, que é
uma gíria LGBT muito usada pra definir um comportamento blasé, indiferente e
pouco sociável, há pouca espontaneidade nas danças e as pessoas parecem não
se sentir tão livres para dançar. Vale lembrar, que nos últimos anos não tenho
frequentado muitas festas lésbicas brancas, por isso é possível que esse quadro
tenha mudado um pouco. Também é importante ressaltar que um corpo negro,
quando transita em um espaço dominado por brancos, pode ter sua espontaneidade
atrofiada, ou até mesmo encontrar reações hostis à sua permanência dentro daquele
espaço.

Sabendo que minha perspectiva é insuficiente para situar o contexto atual dos
espaços de socialização de mulheres lésbicas negras em relação ao que foram os
20
espaços de socialização lésbica nos últimos dez anos, procurei mulheres que
poderiam compartilhar outras perspectivas. Embora eu seja uma mulher negra,
lésbica e de classe baixa, filha de uma empregada doméstica e de um pedreiro, nasci
e vivi durante muitos anos na Vila Mariana, um bairro de classe média e próximo ao
centro. Meu contato com o espaços LGBT ocorreu no centro da cidade, que sempre
me pareceu ser o território onde a vida LGBT começava primeiro e com mais força,
embora esse território sempre tenha sido predominado por homens gays e brancos.
Lésbicas e pessoas trans e bi permaneciam, de diferentes formas, invisíveis, e sendo
um LGBT negro a invisibilidade era ainda maior. Mulheres lésbicas negras, durante
esse período entre cinco e dez anos atrás nunca se situaram ou se apropriaram dos
espaços de socialização do centro, já que a maioria desses espaços eram
frequentados majoritariamente por mulheres brancas, que também preferiam se
relacionar entre si. Fora do circuito central, acontecia todas as segundas-feiras, há
mais ou menos dez anos, o encontro LGBT do Shopping Metrô Tatuapé, frequentado
principalmente por LGBT’s periféricos e negros, embora a branquitude ainda
prevalecesse. Há dez anos atrás a visibilidade era hegemonicamente gay e branca,
e hoje ainda é. Mas ainda assim algumas discussões avançaram, a militância de
lésbicas negras ascendeu nos últimos anos e se expandiu para além dos espaços
feministas, certamente a festa Sarrada no Brejo é uma prova disso. A “sopa de
letrinhas” do LGBT tem se atentado mais à questão da visibilidade, e há
declaradamente um consenso de que é necessário equilibrar os protagonismos
dentro da luta. Ainda assim, atualmente o protagonismo gay parece estar dando
espaço a um transativismo que foca no protagonismo de mulheres trans, que por sua
vez ofusca a visibilidade de homens trans. Ou seja, parece que sempre há um
protagonista e um coadjuvante na militância LGBT. Apesar dos diversos conflitos
entre as diferentes vertentes das minorias, podemos dizer que há uma maior
demanda e reivindicação por representatividade de mulheres, pessoas negras e
pessoas trans.

A seguir, transcrevo as entrevistas que realizei com mulheres lésbicas negras


da periferia de São Paulo, sobre outras perspectivas dos espaços de socialização
lésbica (muitas vezes inexistente nas periferias), além de perspectivas sobre o
panorama atual sobre feminismo, lesbianidade e racismo.

21
No questionário, a segunda pergunta indaga às entrevistadas se elas já se
identificavam como lésbicas ou bissexuais há dez anos atrás. Isso porque muitas
mulheres lésbicas, por causa da heterossexualidade compulsória e do estigma em
se assumirem lésbicas, nomeiam-se como bissexuais antes de assumirem de fato a
lesbianidade.

Análise das entrevistas

As entrevistas aqui analisadas foram realizadas de duas formas diferentes.


No primeiro método realizei entrevistas mais aprofundadas com três feministas
lésbicas e negras mais ativas dentro do movimento feminista, através da participação
ou histórico de participação em coletivos e também da inserção em alguma vertente
específica do feminismo, que é o caso somente da Formiga, que é feminista radical.
No segundo método realizei uma pesquisa online que questionava o conhecimento
das entrevistadas sobre espaços de socialização lésbica de mulheres brancas e
negras, suas percepções em relação ao feminismo negro e como elas enxergam a
branquitude dentro do meio lésbico. A pesquisa foi respondida por 45 mulheres, de
18 a 32 anos, moradoras principalmente de bairros periféricos, sendo 60% dessas
mulheres pertencentes à classe C, 36,5% às classe D e E e apenas 4,4% à classe
B. A maioria das mulheres que responderam o questionário, 73,3% são negras de
pele mais clara, 22,2% são retintas e 4,4% se consideram não brancas ou indígenas.

A seguir, farei a análise e o cruzamento dessas entrevistas – que foram realizadas


separadamente – a partir de cada questão. Aqui transcrevo as entrevistas realizadas
com Renata, Aline e Fernanda. É importante ressaltar que para essas entrevistas fiz
um recorte de contexto social e de idade para ter uma avaliação de como se deu a
socialização dessas mulheres durante os últimos 10 anos. Renata Alves tem 28
anos, é estudante de pedagogia, integra a Coletiva Luana Barbosa e participa da
organização da festa Sarrada no Brejo. Mora no Jd. Ibirapuera, região do extremo
sul de São Paulo. Aline do Nascimento, mais conhecida como Formiga, tem 27 anos,
é poeta e estudante de História e integra o Coletivo Fala Guerreira. Hoje mora na
cidade de Franca, onde cursa universidade, mas nasceu na região do Jd. Ângela, no
extremo sul de São Paulo. Fernanda Gomes de Almeida tem 29 anos, cursa
Assistência Social, integra a Coletiva Luana Barbosa, o Samba das Negras em
22
Marcha e a organização da festa Sarrada no Brejo. Mora no Jardim Rebouças, no
extremo sul de São Paulo.

Do que você se recorda dos eventos e festas lésbicas a cinco ou dez anos
atrás?

Renata: Eu não me recordo muito de eventos de lésbicas e bi, só ouvia falar que
tinha um tal de Clube Z (ou A não sei), a festa na Bubu, Só pra Elas e o Vermont,
nenhum desses eram exclusivos, não que eu lembre e eu nunca fui em nenhum
desses eventos.

Formiga: Há dez anos atrás dava rolês que tinham lésbicas nas quebradas da zona
sul. Fazia uns “rolezinhos” de quebradinha, ia numas praças, na porta da escola pra
chamar as sapas pra cabular aula, ia numas festas de candomblé também lá tinha
várias sapas e depois da festa rolava de pegar alguém. Eu também colava num pico
chamado Baladinha que tocava uns sons pop toda quarta feira na estrada de
Itapecerica perto do mercado Lopes no Capão Redondo. Não era rolê só de sapatão
era rolê com muitos gays também. Como era um rolê na quebrada tinha gente negra
e era um rolê que as pessoas iam pra dançar beijar e chapar. Há 5 anos atrás dava
rolês no centrão que tinha mais sapatão, só que não era festa tipo balada que toca
pop eram rolês voltados a contracultura punk feminista e rap. Os rolês de hard core
punk feminista eram e ainda são muito brancos, tem gente preta mas é minoria são
poucas sapas pretas que tão resistindo em uma cena tão branca e tão boy (playboy).

Fernanda: Há dez anos atrás eu ainda não me reconhecia enquanto uma mulher
lésbica. Agora de cinco anos pra cá, não me recordo de nenhuma balada exclusiva
para mulheres. Tanto que eu não colava nesses rolês de balada tipo BUBU, essas
baladas LGBT´s, porque tinha muito homem, muito homem e eles me incomodam
por demais. E aí a primeira festa que eu fui, que eu falei, mano, que louco, de ter um
monte de mulher, negra, gorda e que se relaciona com mulheres, que fica sem roupa,
era a Dont´Touch My Hair, há três anos e meio atrás, é a única de que me recordo.
De cinco anos pra cá e agora a Sarrada no Brejo. E aí depois da Sarrada veio a
Fancha, tinha uma na Vila Madalena, que eu esqueci o nome, que era umas minas
galegas que faziam, mas tipo, homem podia entrar, levava o nome de uma festa
lésbica, mas homem podia entrar.

23
Você já se entendia como lésbica ou bissexual nessa época?2

Renata: Com 20 anos eu me entendia sim como lésbica e eu já estava no meu


primeiro namoro que durou 4 anos. Mas só fui conseguir assumir a lesbianidade com
quase 19, até os 18 eu não conseguia me aceitar lésbica e me forçava a beijar
rapazes nas festinhas.

Formiga: Há quase 12 anos me nomeio como lésbica.

Fernanda: Então, eu nunca me entendi enquanto bissexual, estive casada durante


nove anos com o pai do meu filho, uma relação abusiva, enfim, o que toda mulher
sabe. E aí eu ainda estava casada quando conheci a minha primeira companheira,
e aí desde então eu me assumi enquanto lésbica, vai fazer sete anos. Então eu
nunca passei por essa fase de bissexualidade não. Foi de hétero (compulsoriamente
né...), para lésbica, graças à “Jah”, não que eu tenha nada contra, mas eu entendi
que eu nunca quis me relacionar com homem, nunca foi prazeroso pra mim se
relacionar com homem, sempre foi algo muito forçado, eu nunca fui bissexual.

Quais espaços que você frequentava, como eram esses espaços? Havia
representatividade lésbica e negra? Você tinha algum contato com o
feminismo? Como se estabelecia esse contato e quem protagonizava o
movimento?

Renata: Eu frequentava baladas GLS (na época era a sigla rs) que tinham muitos
homens gays e poucas sapatas, eu sempre andei mais com os viados e era a única
mulher na roda², eu não lembro se percebia isso, mas não me lembro de lésbicas
negras nessa época, era eu e a minha namorada da época. Eu não sabia o que era
feminismo não nessa época, mas depois descobri que sempre fui feminista (risos).3

2
Aqui pergunto também sobre bissexualidade porque é comum entre mulheres lésbicas passar por um período
em que se nomeiam como bissexuais antes de assumir a lesbianidade, tanto por conta da heterossexualidade
compulsória, quanto pelo sentimento de que a bissexualidade pode ser considerada uma sexualidade menos
“perversa” por não romper totalmente o acesso de homens aos corpos dessas mulheres.
3
É comum entre mulheres lésbicas dentro do feminismo, relatar uma história passada de convívio assíduo com
homens gays, onde frequentemente eram as únicas, ou uma das poucas mulheres lésbicas do grupo. Eu mesma
durante muitos anos andava somente com homens gays. Muitas de nós acreditamos que isso acontece por causa
da rivalidade feminina, porque a estrutura patriarcal faz com que nos enxerguemos como inimigas, mesmo
sabendo que é com outras mulheres que queremos compartilhar nossa afetividade e desejo.

24
Formiga: Frequentava o Lady Fest, o Ladyfestinha, o Emancipar Fest, Queens and
Queers, Vulva La Vida, Liga Juvenil Anti-Sexo, Distúrbio Feminino Fest, Hard Grrrls,
Maria Bonita Fest, Verdurada, Caminhada Lésbika. e outros rolês com bandas
femininas e feministas. Tinha muita sapatona na cena mais voltada pra mulheres no
punk hard core Dominatrix, Santa Klaus, Bertha Lutz, Siete Armas, Team Dresh, Anti-
Corpos, bandas mais novas como Bioma, Sapataria, Charlotte Matou Um Cara, tudo
banda ou de sapatão ou que tem sapatão na formação. Raramente tinha sapatão
preta no rolê, mas lembro de que quando comecei colar na cena a Dominatrix tocava
com uma guitarrista negra que tinha naipe de sapatão não sei se era mas foi
fortalecedor ver ela no rolê. Nesse dia tinha umas mina do rap que colou pra fazer
show também . Uma das poucas referências de sapatão preta no rolê é a Bah vocal
da Banda Bertha Lutz, na hora que vi o som das minas me identifiquei e quando
conheci a Bah pessoalmente foi a primeira vez que me senti parte do rolê e de fato
me vi com potencial pra contribuir na cena. Desde moleca desde que comecei a curtir
o som punk com 12 anos estou ciente de que o feminismo existe mas comecei a me
aprofundar nos debates e a fazer parte do movimento feminista com 18 anos que foi
quando comecei a dar rolê com as mina do punk hard core feminista e com as
feminista lésbica de são paulo. Comecei a ser feminista pelo discurso das bandas
que eu ouvia curtia muito L7, Bikini Kill, Bulimia, Dominatrix e outras bandas que
tinha mulher nos vocais ou na formação tipo Janis Joplin, Yeah Yeah Yes, Siouxie
and the Banshees, No Doubt. Com 12 anos já tava ligada que tinha muita banda de
homem na tv e as minas não apareciam, raramente lembro que passava na MTV uns
poucos clipes do Hole, tocava bastante Alanis Morissete mas não lembro de outras
mulheres no rock nesse momento da minha vida. Nessa época tinha uma programa
de rádio na extinta Brasil 2000 chamado Banheiro de Meninas, nesse programa
tocava uns sons tipo Lava, Biônica uns sons mais undergroud e também fortalecia
imagens de mulheres na música pop como a da Madonna. E com o som chamado
"punk rock não é só pro seu namorado" da banda Bulimia que fui sentir a força das
minas pela revolta contida no som que me emocionava parece até que acordou em
minhas ancestrais e elas me guiaram no caminho das mulheres que hoje caminho
com mil trutas e mil tretas mas tô firme e forte querendo aprender a usar a sabedoria
das velhas pelo bem viver. O contato com o feminismo se dava com os sons punk
hard core feminista, se dava nos show, pegava uns fanzine e tentava entender as

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ideias das minas. Mas comecei a aprender mesmo nas letras das músicas de punk
feminista em português e quando comecei a colar nos protestos e a entrar em
coletivos aprendi muito mais. Tinha minas pretas no 8 de março lembro que no meu
primeiro 8 de março tinha uma sapatão preta candomblecista pautando questão de
mulheres negras e contra a intolerância religiosa mas tinha muito mais mina que
parece que tinha saído da malhação (de tão brancas) também eram a maioria
inclusive. Nos coletivos que fiz parte no começo ou que colava nos projetos de
coletivos feministas, a esmagadora maioria das minas eram brancas as ações e
reuniões eram sempre no centro pra mim tava suave porque eu trampava no centro
então comecei a ter uma vida social e cultural no centrão colando nos sons punk
hard core e feminista mas também em rolês voltados para literatura marginal. As
minas brancas eram maioria e sentia sim que a fala delas tinha mais peso que a
minha, mas achava que era porque elas tinham mais experiência e que eu tava
aprendendo. Se pá era isso eu tava aprendendo aprendi com essas minas a
importância de fortalecer espaços só com minas aprendi que sororidade é algo que
pode ser construído entre minas mas dependo do nosso esforço pra criar uma nova
ética. Sério, eu me sentia numa gang grrrl no meu primeiro coletivo, achava super
radical poder ter saberes que homens não podiam acessar e ter segredos feministas
com mulheres. Sempre tive afeto de minhas amigas na rua na escola na família, mas
pela primeira vez senti afeto e a confiança políticos em um grupo de mulheres. Como
diria uma grande mana lésbica, escura e lésbica que é minha parsa, eu sempre tive
minhas brancas de estimação. Na época já me via como negra as minas também me
viam como negra, mas não enxergava desigualdades raciais na organização, achava
que as minas tinham mais acesso a questões de raça que eu, mas percebia que elas
eram boy, elas eram muito diferentes de mim, mesmo também usando all star e calça
jeans igual, eu percebia que elas tinham maior visão de mundo se pá pelo acesso à
informação e cultura que o dinheiro podia pagar se pá por fazerem faculdade pública
sei lá.

Fernanda: Então, aqui na quebrada principalmente, eu sempre tive muito contato


com mulheres lésbicas. As meninas não se assumiam porque o território é muito
violento em relação³ a isso, mas eu sempre tive contato. Os espaços culturais que
eu sempre frequentei e que até hoje frequento são sambas de quebrada, os pagodes
de quebrada, que eu amo muito, eu nunca fui muito de balada, e esses espaços são
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completamente hétero, machistas, é um rolê muito pesado, muito pesado mesmo.
Nunca me senti representada mas colava, sempre achei que o espaço era nosso,
até que eu conheci o Samba das Negras em Marcha, que é majoritariamente preto,
lésbico, e aí foi um espaço em que eu me senti completamente representada e
acolhida. Os pagodes da quebrada, os espaços da quebrada, eu não me sentia
representada porque eram espaços de homem, mas ao mesmo tempo essas
pessoas que estavam na quebrada tocando esses pagodes, eram meus amigos,
meus irmãos, meus pais, enfim, e aí a gente acaba se acostumando com o espaço,
mas sempre foi um espaço completamente lesbofóbico, homofóbico, enfim, acho que
talvez menos racista, mas é um espaço bem perigoso né, bem ruim pra nós
mulheres, e aí hoje eu prefiro estar mais próxima do samba (Negras em Marcha).

Entre as entrevistadas, Renata conseguiu assumir sua lesbianidade no início


da juventude, mas ainda em um contexto limitado ao convívio com homens gays.
Acredito que essa socialização com vários homens gays e quase nenhuma mulher
lésbica, comum na vivência de muitas lésbicas, pode ser efeito da construção cultural
da lesbianidade como uma versão feminina da homossexualidade masculina, como
aborda Adrienne Rich. Como as lésbicas encontram mais dificuldades do que os
gays em tornarem-se visíveis e têm de enfrentar o obstáculo de uma cultura que
fomenta a rivalidade feminina, fazendo com que toda mulher em alguma medida
enxergue a outra como inimiga, mesmo dentro da lesbianidade, os homens gays
aparecem como uma alternativa viável de socialização não hétero, o que atrasa
ainda mais uma socialização entre lésbicas que possa acarretar em um aumento da
visibilidade.

Fernanda, antes de conseguir assumir sua lesbianidade, passou pela


heterossexualidade compulsória. Certamente, dentre os contextos apresentados, o
contexto de Fernanda foi o mais limitado e violentado pela heteronorma, pois dentro
de uma relação compulsória com um homem a lesbianidade sequer aparece como
uma vivência possível. Coincidentemente, ou não, Fernanda é a mais retinta das
entrevistadas.

Formiga é a única das entrevistadas que conseguiu, dentro de um contexto


periférico vivenciar sua lesbianidade até mesmo para além espaços de socialização
lésbica. O candomblé por exemplo, não aparece por acaso. É um refúgio comum dos

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LGBT’s pois faz parte da minoria religiosa que aceita a homossexualidade. As
religiões de matriz africana são em si uma minoria que enfrenta o racismo desde o
período colonial, o que de alguma forma parece aguçar a capacidade de empatia
dessas religiões com todos que são desprezados pela sociedade. Formiga também
fala do contato com o movimento feminista durante os últimos dez anos, parecendo
expressar uma compreensão de que é importante encontrar unidade entre mulheres,
acessar lésbicas visíveis e discutir sobre feminismo, mas ainda assim deixando claro
que tudo isso vem acompanhado de um sentimento de não pertencimento dentro de
um feminismo e de uma cena cultural em que a branquitude é predominante,
relatando por diversas vezes um incomodo nesses espaços, mesmo tendo suas
“brancas de estimação”. Certamente porque a identificação com as mulheres
brancas no âmbito do ser mulher coexiste com a experiência de ser o outro, por ser
negra e periférica. Existe o choque de classe, por não ter condições de ter o mesmo
estilo de vida que a maioria dessas mulheres brancas, a insegurança intelectual e
cultural por não ter tido os mesmos acessos em relação a educação e cultura, os
mesmos valores, a mesma segurança para verbalizar em espaços majoritariamente
brancos e para além disso, existe a permanência de um ciclo de solidão afetiva. A
solidão e o preterimento vividos pela mulher negra se acentuam ainda mais em
espaços brancos, afinal, como demonstra Angela Davis, ser feminista não isenta
mulheres brancas de serem racistas logo, essas mulheres também serão sujeitos
agentes em relação ao preterimento mulheres negras. A maioria dos espaços
lésbicos sempre foram e ainda são majoritariamente brancos, porque a lésbica
branca encontra melhores condições econômicas e sociais de assumir sua
sexualidade, enquanto as lésbicas negras, têm de enfrentar diversos obstáculos
estruturados pelo racismo e pela lesbofobia simultaneamente, que impedem ou
atrasam seus processos de saída do armário.

Quando uma lésbica negra consegue derrubar as portas do armário, muitas


vezes se vê em um espaço onde a maioria das mulheres com as quais socializa são
brancas e dentro desse espaço, a possibilidade de uma mulher negra viver sua
sexualidade, é tão restrita quanto estar isolada a um convívio com homens gays ou
presa a uma relação compulsoriamente heterossexual. O racismo causa solidão para
todas as mulheres negras independente da sexualidade. A solidão da mulher negra
é estatisticamente comprovada pelo IBGE: mais da metade das mulheres negras do
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Brasil, 52,2% não vivem em união, independente do estado civil. Essa solidão é
resultado de séculos de inferiorização de todo e qualquer traço da estética negra
como o cabelo, o nariz, os lábios, a cor da pele, assim como a inferiorização da
personalidade psíquica do negro a partir de estereótipos como agressividade, apetite
sexual descontrolado, inferioridade intelectual, etc.

Em contraposição, tudo o que a sociedade exalta como o belo, o leve, o puro


está associado à branquitude. Esse desprezo pela mulher negra, é em grande parte
praticado também por homens negros, no caso heterossexual, já que é comum o
homem negro reproduzir os ideais e valores do machismo branco, almejando a
relação com mulheres brancas por elas se enquadrarem no padrão de beleza
hegemônico. Nesse caso a mulher branca aparece como um troféu de exaltação à
masculinidade negra, como se esta agregasse valor e provocasse a elevação de um
status masculino “rebaixado” pela negritude. Obviamente em alguma medida, esse
tipo de relação pode ser reproduzido entre mulheres lésbicas sem o aspecto da
masculinidade, como um processo inconsciente de embranquecimento e
“melhoramento da raça”.

Na pesquisa online, 23 das 45 entrevistadas afirmaram sempre se relacionar


afetivamente com mulheres negras, 7 afirmaram relacionar-se sempre com mulheres
brancas e apenas 4 afirmaram se relacionar com mulheres indígenas ou não
brancas. Além disso, nas respostas qualitativas sobre afetividade negra, era
frequente a expressão da ideia de que o relacionamento entre mulheres negras seria
mais seguro afetivamente para a mulher negra, do que os relacionamentos inter-
raciais, mas aprofundarei essa análise mais adiante.

Em comparação com a realidade atual, os espaços de socialização lésbica


ampliaram e muito. Primeiro porque não existia nenhum espaço exclusivo para
lésbicas há dez anos, mas apenas espaços “GLS” onde grande parte do público era
de lésbicas, em uma frequência que variava entre a metade ou uma maioria de
frequentadoras lésbicas. Entre esses espaços estavam o Café Vermont e o Clube Z
citados por Renata, o Bar Du Bocage que era muito frequentado por adolescentes
LGB que mais frequentavam a calçada do que o bar e a matinê de domingo da
Tunnel, conhecida por ter uma alta a frequência de mulheres. Posteriormente foram
aparecendo festas direcionadas ao público feminino como a extinta Téte a Téte, além

29
da Festa Valentina e da Bubu Só Para Elas que existem até hoje. Nenhuma dessas
festas eram ou são exclusivas para mulheres, pois era comum as frequentadoras
levarem seus amigos gays, e todas essas festas eram frequentadas principalmente
por pessoas brancas. Hoje temos como festas não exclusivas a Girls, a Desculpa
Qualquer Coisa, a Festa Valentina e a Bubu Só Para Elas, citadas anteriormente, e
como festas exclusivas a Fancha e a Sarrada no Brejo. Dentre as festas menos
conhecidas pelas entrevistadas da pesquisa online, a Girls festa frequentada
principalmente por mulheres brancas de maior poder aquisitivo, ficou em primeiro
lugar, sendo desconhecida entre 34 das 45 entrevistadas, enquanto a Sarrada
apareceu como a festa mais conhecida entre as entrevistadas, tendo apenas uma
entrevistada que a desconhecia. Paralelamente a isso, todas as festas com o público
majoritariamente branco aparecem frequentemente na pesquisa como
desconhecidas ou não frequentadas por mulheres negras. Há também, um elevado
conhecimento e frequência das entrevistadas em relação à espaços, eventos,
coletivos e festas não necessariamente voltados ao público lésbico, mas promovidos
pela militância negra como Batekoo, Aparelha Luzia, Samba das Negras em Marcha,
Ilu Obá de Min, Coletiva Luana Barbosa.

Como você entrou na Coletiva Luana Barbosa e na organização da festa


Sarrada no Brejo? (Somente para Renata)

Renata: Em 2016 a convite da Fernanda, comecei a participar das reuniões da


Caminhada Lésbica. Nas reuniões havia o GT (grupo) de mulheres negras, que era
o GT que fez tudo na caminhada (diversas atividades). Então a gente foi se
conhecendo, se apegando, e nesse meio tempo teve a morte da Luana. A gente ficou
muito chocada, foi um choque coletivo. Então no dia da Caminhada a gente teve a
ideia. Quando a gente conheceu a irmã da Luana, a gente decretou que a gente ia
continuar juntas como uma coletiva que se chamaria Luana Barbosa dos Reis. A
gente até informou para a irmã da Luana e ela ficou muito feliz. Um tempo depois da
caminhada a gente começou com a Sarrada porque nesse GT das pretas, a gente
que cuidou da festa da caminhada e nós que demos o nome, que era Sarrada no
Brejo. Depois que a gente deu o nome a festa acabou não acontecendo por causa
de imprevistos, mas como a gente que criou a festa depois que criamos a coletiva,
decidimos continuar com a festa. Assim conseguimos e estamos na luta até hoje pra
botar essa festa pra funcionar.
30
Você tinha algum contato com o feminismo? Como se estabelecia esse contato
e quem protagonizava o movimento? (Somente para Fernanda)

Fernanda: Nunca tive contato com o feminismo antes de me entender enquanto


lésbica na real, mas agora pensando na trajetória da minha mãe e da minha avó,
acho que eu sempre tive contato, a gente só não usava essa palavra, feminismo,
mas contato eu sempre tive. Minha vó sempre foi uma mulher guerreira, que sempre
teve medo de homem, que sempre falava pra gente que homem era perigoso, que
homem estuprava, matava, violentava, esses tipos de coisa.

Como você enxerga o feminismo hoje? O que você sente de diferente do


feminismo feito por mulheres brancas em relação ao feminismo feito por
mulheres negras, entre lésbicas?

Renata: A forma que vejo hoje é bem diferente da forma que eu via quando comecei
a entrar. Acho que eu era bem deslumbrada com o feminismo, queria entender
algumas teorias, etc. Só que hoje em dia sabendo de algumas coisas já, tendo
estudado, presenciado e vivido tantas coisas, eu vejo como algo que a gente vai
levando naturalmente. Eu acho que ele independe de teorias. Óbvio que teorias são
importantes para discussões e visões, mas eu acredito que as nossas vivências e o
elo que a gente faz como parceiras, principalmente as minas pretas e periféricas, é
feminismo sabe? Isso que a gente tem de muito respeito, de coletividade, de uma
ajudar a outra, pra mim essa é minha visão de feminismo hoje, pra mim não importa
muito a teoria, eu gosto mais de prática hoje em dia.

Eu acho que meio que respondi a pergunta sobre a diferença do feminismo branco
para o feminismo negro. O feminismo branco é muito... as feministas brancas são
muito teóricas, elas querem falar bonito, querem isso querem aquilo. São as minas
que a gente mais tem problema dentro dos locais, das coisas do nosso jeito de militar.
Sempre temos problemas com essas minas porque parece que elas vivem dentro de
uma bolha que não é a nossa realidade. A gente é muito do corre, a gente vai falar
besteira, a gente cresceu em periferias, a gente sabe como é e entende a vivencia
das pessoas, das pessoas mais velhas principalmente é um respeito que se tem, é
um respeito que a gente tem uma pelas outras que eu acho que talvez não exista
tanto no feminismo branco, que querendo ou não é bem excludente. As minas
(brancas) não conseguem entender muito bem nosso jeito, porque não tem essa
31
vivência, é totalmente diferente. Então acho que elas são muito mais teóricas e a
empatia delas é limitada pra elas mesmas.

É importante ressaltar aqui, que tanto Renata quanto Fernanda não se


posicionam enquanto feministas de alguma vertente específica. Como a própria
teoria feminista é em grande parte branca, e como a própria tendência em teorizar a
sociedade é algo caracteristicamente ocidental, parece não fazer muito sentido, para
grande parte das mulheres negras adaptar um feminismo teórico que nasceu branco,
à perspectiva da mulher negra. Além disso, como Renata diz, se referindo a
militância negra “a gente é muito do corre”. Em uma vida onde as coisas estão
acontecendo rápido, onde os problemas são muitos, onde suportar o racismo, o
preconceito de classe e a misoginia já faz parte do cotidiano, não existe muito tempo
para teorizar, é necessária a ação para além do trabalho intelectual, é necessário o
trabalho físico para além da reflexão, ou seja, existe a necessidade de um maior
movimento. Parafraseando Audre Lorde, “as ferramentas do sinhô nunca vão
derrubar a casa-grande”, dessa forma, por mais que exista também a importância do
feminismo negro como reflexão teórica, ele não pode ser limitado a uma versão
negra do feminismo branco, onde mais se teoriza do que se pratica.

Aquelas de nós que estão fora do círculo do que essa sociedade define
como mulheres aceitáveis, aquelas de nós que foram forjadas nos
caldeirões da diferença – aquelas de nós que somos pobres, que somos
lésbicas, que somos negras, que somos velhas – sabemos que a
sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. É aprender a estar sozinha,
ser impopular e às vezes insultada, e a juntar forças com aquelas outras
marginalizadas pelas estruturas, para definir e buscar um mundo no qual
todas nós possamos florescer. É aprender a retomar nossas diferenças e
transformá-las em força. Pois as ferramentas do sinhô nunca vão derrubar
a casa-grande. Elas podem nos permitir vencê-lo temporariamente no seu
próprio jogo, mas nunca nos permitirão realizar a verdadeira mudança. E
esse fato só é uma ameaça àquelas mulheres que ainda definem a casa-
grande como sua única fonte de suporte. (LORDE,1984, p.110-114)

Nas entrevistas qualitativas da pesquisa online, encontrei com alguma frequência


também um desencanto com o feminismo de maneira geral, tanto o feminismo
pautado por mulheres brancas, quanto o feminismo pautado por mulheres negras,
embora em relação à este último, no geral, a maioria das críticas e apontamentos
apareceram de maneira sutil. Abaixo transcrevo alguns trechos das entrevistas.

“No momento eu ando dividida sobre este assunto. Não sei se considero importante,
porque uma luta através do feminismo ou feminismo negro não dá certo, porque o
feminismo é coisa de brancos e brancos não estão nem aí para nós, mulheres
32
negras. Inviabilizam toda a luta das mulheres negras o quanto podem, sempre que
dá.”

“Acho que o feminismo em si é branco e liberal demais, não vejo muito jeito de
mulheres negras estarem 100% inseridas nele e não o acho tão efetivo assim.”

“Posso estar falando besteira. Mas me não me sinto parte de ambos os grupos
feministas (negras e brancas). Me sinto sem coragem de me manifestar,
principalmente pelo fato de que não sei exatamente meu lugar de fala. Sou negra de
pele clara, isso me trouxe, e ainda me traz, muita passabilidade. Sou privilegiada em
detrimento das minhas irmãs de pele escura então acho que não está certo ‘requerer’
um espaço que talvez não seja meu. Gostaria de aprender melhor sobre isso pra ser
justa.”

“É uma vertente que estou conhecendo a pouco, mas ainda vejo muita defasagem
de informação além disso atualmente estão fragmentando o movimento com retintas
e não retintas acaba criando uma dificuldade de adaptação ao movimento.”

“Acho extremamente importante, mas confesso que por um bom tempo eu não estive
presente em rodas, reuniões etc por em algum momento ter sido categoricamente
apontada como uma pessoa que não é negra. Isso mexeu um pouco comigo e acabei
não frequentando os espaços, então meu conhecimento tanto teórico quanto nas
trocas de vivências acho que ainda é pouco. Agora estou me sentindo mais a
vontade de me colocar nesses espaços e compreender minha negritude (ou me
entender enquanto não-branca/parda) por conta de aspectos e fichas que caíram
recentemente. Não consigo dizer, no entanto, como é colocado a lesbiandade
negra/não-branca dentro no movimento feminista negro com predominância de
mulheres héteras.”

“Gosto por me fornecer informações sobre grandes mulheres negras feministas da


história. Porém ainda acho que muitos espaços invisibilizam a mulher lésbica.”

“Não me enxergo, nem me enxergam. Nesse meio somos invisíveis.”

33
“Pra mim a relação que o feminismo tem com a academia é zoado pra quem tá na
periferia.”

“Devia ser uma saída para as mulheres negras. Mas como em qualquer espécie de
militância... Se torna um espaço adoecedor. Se você é menos ou mais negra. Se é
palmiteira ou não. Esses grandes encontros só têm me adoecido. Faço o trampo na
minha quebrada com os meus... Isso que é militância pra mim.”

Esses trechos revelam tanto uma desconfiança dessas mulheres em relação ao


feminismo por ser uma ferramenta de luta hegemonicamente branca, quanto a
insatisfação com o feminismo negro em relação ao seu vínculo com a academia (o
que pode ser o receio de um processo de embranquecimento) e à aceitação ou não
dos negros de pele clara (conflito que também ocorre dentro do movimento negro).
Além disso uma das entrevistadas apresenta um desconforto em relação à
perspectiva da mulher heterossexual dentro do feminismo negro, que
consequentemente deve reforçar a perspectiva do homem heterossexual negro,
acarretando no apagamento de mulheres lésbicas e em um aprofundamento dessas
diferenças. Dessa forma é possível entender porque há grupos de mulheres negras
que preferiram de alguma reforçar a luta entre lésbicas mesmo estando muitas vezes
imersas no feminismo branco, como vemos no histórico relatado por Formiga. Em
contrapartida surgem novas alternativas para além de uma militância lésbica e
branca com o passar dos anos, como a Coletiva Luana Barbosa, por exemplo.
Houveram também, no questionário online, muitas respostas que qualificavam
o feminismo negro como importante e necessário para fazer os recortes de classe e
raça que não costumam ser feitos em outras vertentes. Abaixo transcrevo as
respostas que mais expressaram ao meu ver, múltiplas perspectivas e significados
atribuídos ao feminismo negro.

“Um movimento que precisa ser mais falado nas periferias já que o único que
predomina e é visto nas escolas é o feminismo branco que não contempla a luta das
mulheres negras no cotidiano.”

34
“Acima de tudo, feminismo e afetividade negra salvam vidas. Revolucionam nossa
existência. É o único feminismo que me representa e realmente acolhe. O feminismo
negro me salvou da cilada da miscigenação e me deu a oportunidade de encontrar
minha preta. O feminismo negro me ensina, me ouve, me politiza, me assegura de
que vai ficar tudo bem se a gente se unir e se apoiar.”

“Essencial. Principalmente por estar frequentemente entre pessoas brancas (seja em


relações de amizade/afetiva com minas e locais de trabalho e estudo) e ambientes
onde há sempre uma maioria branca, percebo que mesmo entre minas ainda é muito
difícil que essas me enxerguem realmente... Isso porque sou próxima, imagina as
minas que não estão tão acessíveis. Principalmente por eu ser uma mina negra de
periferia, o fato de eu estar num ambiente majoritariamente branco, faz com que até
minhas próprias relações de amizade (no caso, brancas) não consigam me enxergar
de verdade, apesar de toda a teoria/prática feminista que elas têm. O feminismo
branco ainda é muito míope, senão cego, não importa quantas amigas negras a mina
branca têm, é muito difícil uma maioria conseguir enxergar as minas negras e todas
as especificidades além de racismos velados. Sinto falta do feminismo negro,
justamente por estar exausta em relação as explicações diárias do quão aquela
fala/frase/atitude/situação feita pela amiga branca, foi desconfortável e que sei que
[talvez] não foi na maldade, mas vivo isso todos os dias. Não que eu vá me afastar,
pois tenho um projeto conjunto com minas brancas, mas que estar junto de minas
negras feministas, fazendo trocas, e até mesmo estando em projetos com essas e
para essas, me ajudaria a lidar com isso sem muita exaustão.”

Como você enxerga o feminismo hoje? O que você sente de diferente do


feminismo feito por mulheres brancas em relação ao feminismo feito por
mulheres negras, entre lésbicas?
Formiga: Acho que o feminismo ainda é uma luta importante para libertação das
mulheres mas acho difícil ter uma organização de luta porque são muitas ideias
divergentes no feminismo. Não sabemos lidar com a opinião das outras. No Brasil
temos o feminismo liberal que é o feminismo usado pelo capitalismo para vender
algo, temos o transfeminismo que é a luta contra a transmisoginia, por direitos civis
e médicos e o feminismo negro que tem uma caminhada desde década de 1980

35
pensando sobre raça e gênero. Os feminismos lésbico e radical são muito pequenos
e atuam mais pela internet. O feminismo marxista está presente em partidos de
esquerda e em organizações sindicais. Exceto o feminismo negro, todas essas
organizações são de maioria branca. Acho que todos os feminismos que eu citei,
exceto o feminismo negro são espaços de gente branca, que não pensam sobre
branquitude mesmo reconhecendo raça como algo importante. O feminismo negro
nos da um show pensando raça na história da diáspora africana na América. O
feminismo negro se mostra consequência da escravidão para a mulher negra nos
dias atuais. Pensa política, economia, intelectualidade, racismo institucional, saúde
da população negra afetividade, heterossexualidade. Só não pensa na lesbianidade
como uma forma de resistência ao patriarcado da supremacia branca. O feminismo
branco, apesar de reconhecer que racismo existe foca suas energias somente na
luta antipatriarcal e não colabora com a luta antirracista. Mesmo quando pensa
classe, pensa classe sem a dimensão de raça. O feminismo negro tem mais
mulheres negras envolvidas na luta e foca na questão de mulher, raça e classe, junto,
promovendo uma análise de imbricação das opressões.

Fernanda: O feminismo em si tem que ser discutido independente da raça, e eu vou


ser bem sincera, prefiro lidar com o feminismo negro, a ponto de não participar de
nenhuma atividade das feministas brancas, porque elas são extremamente racistas,
e o racismo é estrutural. E hoje em dia são poucas pessoas que estão abertas a
desconstruir seu privilégio branco. Então eu evito. Já tentei estar em coletivos mistos
de lésbicas, já tentei estar em coletivos LGBT e eu não consigo, o meu diálogo é só
é feito com mulheres negras lésbicas, e isso independente de vertente, nós temos
na Coletiva Luana Barbosa por exemplo, mulheres que fecham com o feminismo
radical e mulheres que fecham com o feminismo interseccional. São duas opiniões
completamente diferentes dentro de um coletivo só. E nossa luta sobressai em
relação a raça, porque a gente vê que tem várias minas interseccionais e radicais
que se degladiam, que tretam o tempo inteiro por não terem noção de espaço.
Geralmente as mulheres radicais brancas são extremamente racistas, a teoria tem
fundamento tem uma coisa antiga, oriundo de Audre Lorde só que as feministas
brancas e mais jovens, pegam o feminismo radical e distorcem. Eu não me vejo num
lugar no feminismo, então eu me adaptei ao feminismo periférico, de mulher preta,
porque elas vão entender quando eu não conseguir gritar ou quando eu não
36
concordar que as mulheres feministas gritem morte aos homens, elas vão entender
que esse meu não gritar “morte aos homens” é porque eu sou filha de um homem
preto, mãe de um homem preto e que convive numa sociedade preta onde os
homens que elas tão gritando que precisam morrer são também os nossos homens
pretos (os que mais morrem), nossos familiares, irmãos, pais, etc. Então isso me
afasta muito delas. É um feminismo completamente hierarquizado, elitizado, que não
nos cabe.
(Aqui Fernanda se refere ao grito “Morte aos Homens”, proferido durante a Marcha
da Visibilidade Lésbica do ano passado, em São Paulo.)

Como relatado por Fernanda Gomes, a postura de parte das feministas


brancas em relação à homens negros é uma questão que incomoda e muito as
feministas negras, pois muitas mulheres brancas acreditam que a opressão de
gênero que elas sofrem sobressai à questão racial, quando se trata de homens
negros. O grito “morte aos homens”, que Fernanda menciona, proferido em sua
maioria por mulheres brancas durante o ato da visibilidade lésbica, incomodou
principalmente as mulheres negras. Para as mulheres brancas, como não havia
nenhuma parte do grito que se referisse aos homens negros, não havia nada demais
pois era um grito contra a masculinidade e não contra uma raça, era um grito contra
o patriarcado. Mas ao escutar o grito “Morte aos homens”, certamente as mulheres
negras se lembraram sobre quem são os homens com os quais elas convivem e qual
é a relação desses homens com a morte. São homens negros, o principal alvo do
genocídio negro. São homens que pertencem às suas famílias, são seus amigos e
pessoas que com as quais elas convivem. As mulheres brancas talvez consigam
gritar “morte aos homens” sem levar essa frase tão a sério ou sem se sensibilizar em
nenhum momento, provavelmente porque os homens que pertencem às suas
famílias, não estão morrendo.

A crítica das mulheres negras vem de um lugar onde em alguns momentos combater
o racismo parece ser prioridade. Enquanto as mulheres brancas do movimento
lésbico feminista são altamente críticas a objetificação das letras de funk por
exemplo, as mulheres negras parecem não se importar tanto. Parece que para as
mulheres negras, o mais importante aí, é combater antes de tudo o racismo e o
preconceito de classe do qual o funk é alvo, por ser um movimento musical
predominantemente negro e periférico. E isso não é por acaso, já que toda cultura
37
associada ao negro e ao pobre é desprezada no Brasil, assim como a forma que
negros expressam sua sexualidade.

Durante a passagem do Brasil colonial para o urbano, a higienização social


também dizia respeito à ‘limpeza étnica’ da sexualidade selvagem e
substituí-la por um amor romântico e burguês, essencial à sacralização do
ritual chamado de casamento (PARKER, 1991). À vista disso, sensualidade
e libertinagem eram colocadas como más qualidades e inseparáveis da
moral sexual dos indígenas e africanos (BORRILLO, 2010) – e, nos dias de
hoje, também da má educação e das classes populares.
O ‘desejo perverso’ por eles transformou-se em um tema tabu. E,
como uma proibição, o tabu serve de coisa limítrofe da questão pública.
Entretanto, e com a exceção de certas práticas, o que é uma ‘sexualidade
saudável’ deveria pertencer ao domínio privado, por não causar dano moral
ou físico onde há consentimento. ( FERREIRA e CAMINHA, 2017, pp.168-
169)

Nesse sentido é interessante retomar o que Bell Hooks conta sobre a ideia
hegemônica dentro do movimento negro em meados das décadas de 50 e 60, de
que o feminismo (predominantemente branco) seria prejudicial ao movimento negro.
Havia o entendimento de que o feminismo era racista e avesso aos interesses do
povo negro, o que até certo ponto era verdade, mas essa ideia afastou muitas
mulheres negras das discussões sobre sexismo e desigualdade de gênero,
atrasando o aprofundamento de diversos questionamentos que culminariam no
feminismo negro. Durante esse período havia uma constante urgência em priorizar
e fortalecer o movimento negro. E de alguma forma até hoje, muitas feministas
negras parecem adotar a luta antirracista como sua primordial bandeira. O que muda
no caso da Sarrada, além do contexto histórico obviamente, é que a maioria das
mulheres negras que a organizam, já se entendem como feministas.

O importante agora é pensar até que ponto não há o risco de que as mulheres negras
que limitam maiores questionamentos à objetificação presente no funk, mesmo
sendo feministas, estarem colocando a luta racial à frente da causa feminista, a ponto
de não se darem conta do quanto a misoginia e a objetificação do homem negro as
prejudica e pode ser até mesmo uma influência de machismo nas relações lésbicas.
Por outro lado, é necessário pensar também que o funk é uma das poucas maneiras
de se atrair mulheres jovens para essas festas. Talvez aí a urgência seja em criar
um espaço seguro de representatividade negra e lésbica, dentro da realidade cultural
dessas mulheres, para posteriormente inseri-las em outros discursos e contextos
culturais. Embora o alvo das críticas das mulheres brancas à festa seja o funk, além
38
do funk sempre há apresentação de coco, um ritmo musical de influência africana e
indígena, o que demonstra que a organização da festa se preocupa em ampliar o
acesso de suas frequentadoras à diversidade cultural, sem a necessidade de podá-
las de suas influências territoriais.

Me parece que a festa, mesmo com suas contradições, tem a missão de criar pontes
entre diferentes realidades discursivas, uma ponte que começa no discurso
despolitizado presente na maior parte do funk e termina na apresentação de coco,
passando pelo funk da MC Carol, que transita entre o funk “putaria” e o funk
feminista, até chegar ao “Baile Sapatão”, um funk criado pelas próprias
frequentadoras da Sarrada, que montaram um grupo lésbico de funk, chamado
Bonde Só Vem. Assim, a Sarrada mostra caminhos e alternativas para dialogar
culturalmente com suas frequentadoras, sem julgar se elas reproduzem valores
heteronormativos ou não, entendendo que nem todas as mulheres que frequentam
a Sarrada têm o mesmo acesso, como acesso à universidade, ao feminismo ou
qualquer outro discurso politizado, e acaba construindo um espaço que contribui
com o repertório de autodefinição da mulher negra e lésbica, pois tenta acessar e
dialogar não só com lésbicas, brancas e negras inseridas no movimento feminista,
mas também com um público que está completamente fora das bolhas e discussões
feministas, principalmente as discussões mais teóricas, que sempre ocorrem mais
frequentemente em círculos de feministas brancas.

Talvez a forte crítica de algumas feministas brancas ao gênero musical que toca na
festa, venha da ausência de uma experiência que acesse realidades mais
violentadas. As vivências negras e periféricas acabam construindo uma outra noção
de sofrimento, de isolamento e de ofensa. Logo, é natural que para algumas
mulheres brancas, acostumadas a um tipo de questionamento feminista com vasta
base teórica que foca principalmente em suas próprias vivências (já que a maior
parte da tradução feminista ainda é branca), seja impossível encontrar alguma chave
de empatia que destranque a complexidade dessas contradições. A questão aqui
não é sobre racismo, mas sim sobre os abismos de empatia que o racismo constrói
entre o branco e o negro. Mesmo que haja interesse de uma pessoa branca em não
ser racista, e que ela tenha boas e genuínas intenções de desconstruir o próprio
racismo, em algumas situações, se relacionando com pessoas negras, ela irá se
deparar com esses abismos. Em contrapartida, alguns problemas de pessoas
39
brancas, jamais aparecerão como algo grave aos olhos de pessoas negras,
simplesmente porque para o olhar negro, é difícil entender como uma pessoa
privilegiada enxerga determinadas situações como um problema.

Antítese à branquitude: A negação de uma estética historicamente louvada

Apesar de ser negra, por ter nascido em um bairro de classe média e ser
lésbica, eu sempre frequentei os espaços lésbicos mais próximos ao centro e
protagonizados por mulheres brancas. Ao longo desses anos não encontrei nenhum
espaço que sequer se assemelhasse com a Sarrada, não só em relação ao público,
mas também em relação à forma que as festas acontecem. Os espaços brancos têm
características completamente diferentes. Nas festas lésbicas brancas é muito
comum encontrar o “carão”, que é uma gíria LGBT muito usada pra definir um
comportamento blasé, indiferente e pouco sociável, não há tanta espontaneidade
nas danças e as pessoas parecem não se sentir tão livres para dançar, o que faz o
ambiente parecer mais formal. As características que fazem com que a Sarrada
destoe tanto das outras festas lésbicas de São Paulo, são marcantes porque
constroem um jogo de oposição às imposições sociais que geralmente são
reproduzidas em outras festas. É uma antítese aos ideias de beleza pautados pela
branquitude. Quem fica no queijo por exemplo, um lugar de visibilidade que
geralmente se situa em um palco redondo ou alguma superfície mais alta da balada,
são as mulheres negras e gordas. Quem protagoniza os vídeos e fotos de divulgação
das festas, são as mulheres negras e gordas. Elas são as rainhas, as divas, elas são
tudo que um dia disseram que elas não poderiam ser. Por isso, no contexto da
Sarrada, as danças ganham conotação política.

40
Na Bubu Só Pra Elas por exemplo, pelo menos durante o período em que frequentei
há mais ou menos uns seis anos, as figuras de destaque do queijo eram modelos
contratadas pela casa, brancas, magras, com o corpo esculpido por academia.
Opostamente a esse padrão seguido pela maioria das festas, na Sarrada os corpos
que estão fora dos padrões de beleza, que sofrem o estigma do racismo, da
gordofobia e da lesbofobia, são os corpos escolhidos para ocupar um espaço de
destaque e protagonismo, o que pode ser interpretado como uma forma de
retratação à essas mulheres, como se aquele fosse um espaço de resgate da
autoestima de suas protagonistas, além de promover a construção de novos
repertórios de beleza.

Assim, a festa acaba criando um universo sensorial único e libertador, onde as


pessoas, principalmente as pessoas negras, gordas, ou com algum estigma que lhes
tolheu a autoestima, sentem-se à vontade, livres de julgamento em oposição ao que
ocorre na maioria dos espaços da vida noturna, onde o que é valorizado é a beleza
padrão, de mulheres brancas e magras, o que fica bem claro quando comparamos
as fotos de divulgação das festas organizadas por mulheres negras, com as fotos de
divulgação das festas organizadas por mulheres brancas.

41
A Sarrada cria portanto um universo quase onírico, que foge tanto do senso comum,
que transporta suas frequentadoras para um lugar que não costuma ser possível em
nossa realidade cotidiana, tanto que em dado momento, atraiu até mesmo o público
dos espaços lésbicos brancos. A seguir, transcrevo um relato etnográficos sobre a
festa:

“Houve uma noite, especificamente em que reparei que a Sarrada havia lotado mais
do que nunca, mas não era uma lotação comum, porque percebi que havia um
grande número de lésbicas brancas que eu costumava encontrar em outros espaços,
como a Festa Valentina por exemplo. O que foi muito curioso pra mim, foi que nunca
imaginei encontrar essas pessoas no espaço da Sarrada, assim como nunca
encontrei as frequentadoras da Sarrada em espaços como a Valentina por exemplo,
o que me fez refletir sobre como as mulheres brancas se sentem à vontade para
frequentar o espaço de mulheres negras e até que ponto o contrário acontece. Creio
na hipótese de que as mulheres brancas se sentem mais à vontade para frequentar
um espaço voltado às mulheres negras, simplesmente porque se sentem à vontade
para frequentar qualquer espaço que seja. Após essa festa, li a postagem de uma
mulher negra e gorda no facebook, frequentadora da Sarrada, reclamando que
haviam na festa, mulheres brancas de beleza padrão, querendo “roubar a cena” no
palco, ou seja, querendo estar em evidência, apagando o protagonismo das
mulheres negras e gordas. Essa postagem me deu uma resposta mais clara do
porque durante toda a noite percebi um ar diferente na Sarrada. Não só pelo fato da
festa estar super lotada, mais que o habitual, mas também por estar repleta de
diferentes simbolismos e conflitos subjetivos. Na mesma noite percebi um certo
incomodo de algumas mulheres brancas e feministas que eu conhecia. Após aquela
noite descobri que o incomodo delas se dava por conta de algumas letras de funk,
que falavam de “pau” e “buceta” e sexo hétero no geral, elas disseram se sentir
agredidas pois entendiam que muitas daquelas letras eram lesbofóbicas e
pertencentes à cultura do estupro, então não conseguia entender porque as
organizadoras não se preocuparam em selecionar músicas que evitassem esse tipo
de gatilho. É muito comum esse posicionamento por parte de algumas feministas
brancas ser considerado racista e classista por parte das feministas negras, o que
não chega a ser um consenso absoluto.

42
Por fim, nesse dia observei que muitas das mulheres brancas pertenciam à grupos
onde só haviam mulheres brancas. Imagino que elas frequentavam o espaço pela
primeira vez, pois as mulheres brancas que habitualmente frequentam a Sarrada,
estão mais inseridas ao contexto da festa, localizando-se a maioria das vezes em
grupos mistos, formados tanto por mulheres brancas quanto negras. Além disso
muitas dessas mulheres pareciam possuir um poder aquisitivo maior do que as
mulheres brancas que costumam frequentar a Sarrada, o que podia ser percebido
nos estilos de roupa e no comportamento. É mais comum que mulheres negras
compartilhem o espaço e a socialização com mulheres brancas de menor poder
aquisitivo, pois essas estão mais próximas da realidade de classe comum à grande
maioria das mulheres negras.”

Outro acontecimento que me chamou atenção é que nessa mesma Sarrada


encontrei uma colega do Ensino Médio com a qual eu não convivia há vários anos e
que não frequentava espaços feministas. Quando ela me reconheceu, me tratou de
forma diferente. Quase como alguém "mais importante", exagerando na
demonstração de afeto, o que na minha interpretação parecia não só um sentimento
de "caridade", mas uma demonstração pública, em um espaço negro, de que ela não
era racista, pois conhecia uma negra. Embora eu tenha feito essa leitura, acredito
que a ação dela possa ter sido inconsciente. Essa cena me lembrou o que Lia
Schucman fala em relação à sua própria branquitude em sua tese:

Criada nessa condição e em uma família de tradição de democracia


de esquerda, obviamente minha constituição como branca foi
daquelas que se opunha aos negros como os “outros” de que se tem
ódio, ou então “outros” de que se tem medo. Entretanto, o racismo
em que fui criada não se dava pelo ódio aos negros, mas também
racista, foi a forma como os brancos de minhas relações sociais e eu
representávamos os “outros” negros: com pena, com dó, com
ausência. Quer dizer: nosso racismo nunca impediu que
convivêssemos com os negros ou que tivéssemos relações de
amizades e/ou amorosas com eles. No entanto muitas vezes essas
eram relações em que os brancos se sentiam quase como fazendo
“caridade” ou “favor” de relacionar-se com negros, como se com a
nossa branquitude fizéssemos um favor de agregar valor a eles,
43
porque, afinal, estávamos permitindo aos negros compartilhar o
mundo de “superioridade” branca. Ou seja, mesmo tendo crescido em
um ambiente onde a luta contra a opressão, discriminação e
desigualdades era a pauta de discussões na família, na escola e nas
relações de amizade, fui socializada e constituída como branca com
um sentimento de “superioridade” racial tão maléfico quanto o
racismo daqueles que acham que os negros são inferiores biológica
e moralmente. (SCHUCMAN, 2012, p. 12 - 13)

Lembro-me de uma situação semelhante em um bloco de carnaval, em que uma


conhecida lésbica, branca e feminista estendeu os braços para o carro de som, como
se saudasse uma dançarina que lá estava, ao mesmo tempo em que dizia "que negra
linda!", “que preta linda!”. Já pude observar muitas vezes pessoas brancas elogiando
mulheres negras dessa forma, em vez de dizer "que mulher linda", como é comum
ao se elogiar mulheres brancas, algumas pessoas têm o costume de dizer “que negra
linda” . É como se a mulher negra pertencesse a outra categoria de mulher, e como
se o elogio de uma mulher branca direcionado a uma mulher negra fosse um favor.
A seguir, para aprofundar esse tema, transcrevo algumas respostas dadas no
questionário online sobre como as entrevistadas enxergam as relações raciais entre
lésbicas brancas e negras, dentro e fora do feminismo, tanto no contexto das
relações afetivas quanto da construção política e das amizades:

“Muitas vezes sentia uma estranheza dentro de espaços predominantemente


brancos, como festas lésbicas, bares entre outros, como se a minha estética não
fosse a desejada ali. Quando mais nova saia e via que nenhuma mulher lésbica
demonstrava interesse por mim e isso mexia muito comigo por me sentir rejeitada.
Hoje convivo mais com mulheres negras, sendo algumas lésbicas e frequento
lugares nos quais me sinto mais pertencente. Mas ainda é incomodo não ver
mulheres negras em outros lugares.”

“Em relações afetivas tive menos problemas do que com amizades. Na real, sempre
fui muito sozinha (tanto relações afetivas quanto de amizades), talvez por ser de
difícil acesso e muito fechada quando se trata da minha vida. Porém, nas relações
afetivas, as minas na maioria sempre tentaram constantemente me achar, enxergar
e alcançar. Principalmente com a minha atual companheira (mais do que as minas

44
das quais tenho um projeto conjunto há 3 anos) em meses ela conseguiu me
alcançar, me compreender em vários aspectos e também me fazer enxergar muitas
coisas que nunca tinha "caído a ficha". Nas relações de amizade, as minas nunca
foram nem onde eu moro, mas sabem que não é em condomínio, muito menos em
rua asfaltada... enquanto as reuniões do projeto acontecem na casa delas (região
nobre/perto de metrô e trem), frequentemente, é sempre muito difícil estarem
dispostas a irem até a minha casa. Claro que podem ter inúmeras "boas desculpas",
como o acesso difícil, porém, não é perceptível pra nenhuma delas (do projeto ou
outras) o quanto isso é um diferencial (no sentido ruim) na relação. E uma das coisas
mais incômodas, é achar que por eu ser mina preta, lésbica, periférica e pobre, o
maior problema da minha vida é a falta de grana e por isso, oferecer um dinheiro ou
pagar coisas pra mim sempre vai resolver o problema... [Todas as relações citadas,
são com minas brancas.]”

“Muito complicada. É muito diferente você se relacionar com pessoas que não
entendem suas dores, ou se entendem nunca sentiram. São visões diferentes,
formas diferentes, por mais que eu tenha amizade com pessoas brancas eu entendo
que essa relação é construída de uma forma a qual minhas visões são
compartilhadas de forma diferente da qual me comunico com mulheres negras.”

“Acho um perigo. Primeiro por conta da síndrome do branco salvador, a ideia de que
brancas vão nos salvar e tudo vai se resolver. Fora a objetificação, a insistência em
não nos assumir, em tentar nos embranquecer, esconder nossos traços lindos e o
principal, são historicamente incapazes de ter empatia e entender nossas pautas,
nossas dores, nossas lutas.”

“As brancas têm muita dificuldade em ter empatia com a gente. Acham que sabem
tudo e não ouvem nada da nossa luta. Por mais que role uma boa intenção... Acho
que falta mais abertura, falta descer do pedestal pra reconhecer os próprios
privilégios.”

“Mulheres brancas nunca reconhecem privilégio que elas têm, seja em


relacionamento afetivo ou amizade elas sempre te oprimem de alguma forma e
muitas vezes nem percebem que aquilo é um racismo estrutural que estão

45
reproduzindo. Em relações amorosas é muito comum a mulher branca sempre achar
que tem mais voz e sempre tem a razão, nunca tem responsabilidade afetiva com as
pretas, sempre hipersexualizam nosso corpo.”

“Priorizo relacionamentos afrocentrados! Se for rolar com brancas ela tem que ser
bem firmeza.. amizade rola.”

“Em virtude da naturalização de práticas opressoras, acredito que mulheres brancas


se sentem, em algum nível, superiores, e em algum momento podem ser racistas.
Prefiro afrocentrar todas as relações, mas ainda tenho mulheres brancas em meu
círculo de amigos por, enquanto mulheres, somarem em alguns corres.”

“Vejo maior problemática quando o casal inter-racial é hétero, além de que nem
sempre conseguimos controlar nossos próprios sentimentos, logo vez ou outra é
compreensível um casal inter-racial lésbico. Porém, em casos onde uma lésbica
negra se relacione EXCLUSIVAMENTE com brancas, há sim uma necessidade de
falar sobre isso bem como uma atitude a cerca de repensar sobre suas preferências,
em relação à lésbica negra. Também é problemático quando lésbicas brancas se
relacionam exclusivamente com negras, pois uma negra que está inserida na
militância e já teve conhecimento sobre assuntos relacionados a fetiches e
objetificação da mulher negra se sentirá sexualizada e feitichizada o tempo todo.
Digo isso por experiência própria.”

“Difícil, porém nada impossível desde que se tenha consciência de não haver
necessidade em ser didática ou paciente o tempo inteiro. A mulher negra é cobrada
o tempo inteiro pra ser paciente, caso contrário é taxada de louca, histérica.”

“Acho importante, é necessário que mulheres brancas tenham contato com negras
a ponto de não mais praticarem o racismo estrutural.”

“Nossa, difícil kkk mas enfim, brancos são brancos, possuem privilégio estrutural e
são socializados numa sociedade que os leva a produzirem relações racializadas
pautadas no preconceito étnico e ações discriminatórias (definição de racismo de
BETHENCOURT se precisar de referência sobre) , ainda que nas pequenas coisas.
46
A desconstrução das brancas e a participação da luta anti-racial deve ser constante
e o mínimo para com respeito nas relações inter-raciais afetivas ou não. Mudei
frequentemente de um ambiente 90% branco pra um 100 % preto...outras
perspectivas sobre relacionamentos... o movimento lésbico é um espaço racista
como o resto da sociedade, as lésbicas brancas utilizam da pauta comum pra se
esquivar dos atos racista e passar pano, além de influenciar pesadamente no
psicológico das mina preta (esteriótipos, sexualização, fetichismo, nossa, infinidade
kkk) Mas enfim, também acho que existem relações inter-raciais saudáveis e brancas
comprometidos com a luta, abertos a reflexão e auto crítica...”

“Acho ok, não julgo uma lésbica negra que se relacione com brancas, até porque a
solidão da mulher negra existe e é real, mas eu particularmente acho que nada
melhor do que amar uma igual e fortalecer nossas raízes.”

“Difícil. Quanto pessoa negra vejo constantemente meu sentimento de inferioridade


intelectual as minhas amigas brancas. Sinto ódio as vezes das brancas por terem
facilidade de ter relacionamentos e namorar. O simples ato de falar por cima, por
exemplo, entendo como um ato de silenciamento, dando mais importância ao
pensamento próprio do que o outro tem a contribuir numa troca mútua. A consciência
de raça para mulheres brancas é algo novo ainda e ocorrem muitos deslizes por
parte delas, principalmente pela falta dessa consciência.”

“Acho sempre muito complexo uma vez que muitas coisas estão envolvidas... Dentro
na minha vivência desde a adolescência as referências de mulheres lésbicas que eu
tinha eram brancas bem como em alguns círculos de amizades. Só agora na
faculdade que fui tendo maior contato com mulheres lésbicas negras (tanto na
faculdade quanto nos espaços que conheci fora da faculdade, mas tudo ainda dentro
desse período), antes disso me lembro agora somente de uma mulher negra que
conheci e me relacionei por um tempo. Então esse é um ponto. Recentemente dentro
de uma relação afetiva com uma mulher branca eu comecei a pensar que talvez
pudesse ter sido preterida por muito tempo por conta de questões raciais. Em uma
perspectiva macro eu penso que ainda há muito o que melhorar, obviamente. Fico
pensando que uma mulher lésbica já tem um espaço reduzido mesmo no movimento

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feminista, uma mulher lésbica e negra tem menos ainda. Do que eu acompanho do
movimento negro de mulheres também vejo uma maior quantidade de mulheres
negras héteras nas falas do que mulheres lésbicas... em uma perspectiva micro das
minhas relações eu vejo que as mulheres lésbicas brancas conheço se dispõe a
pensar e se rever, mas ainda sim existem tensões e muitas, muitas questões e
racismos estruturais que precisam melhorar.”
“Sinto que as pessoas estão se fechando muito em seus nichos (negras e brancas),
minas negras afrocentradas onde além de não se relacionarem com minas brancas,
completamente as ignoram e até a atacam, mesmo as minas brancas que sabem de
seus privilégios e não as usam pra ser ‘mais superiores’."

“Meu relacionamento mais duradouro foi com uma mulher branca. Foi bom, porém,
existiram algumas situações de desconfortos ligadas à Afetividade e formas de
relacionamento.”

“Sei lá, acredito que pode ser saudável quando são discutidos pontos importantes ,
se não corre grande risco de se estabelecer relações de poder e dominância por
parte das mulheres brancas privilegiadas.”

“Na maioria das vezes abusivas e/ou racistas. Minhas amizades com mulheres
brancas houve racismo, minhas relações por mais que fossem casual com mulheres
brancas houve racismo.”

A maioria dos discursos de lésbicas negras apresentados até agora


tematizando a relação direta com mulheres brancas, seja através de associação
política, amizade ou relacionamentos afetivos, demonstram que existe uma grande
carga de desconfiança das mulheres negras em relação a mulheres brancas. Em
vários relatos aparece a priorização de relações afrocentradas e o apontamento de
mulheres negras em relação a mulheres brancas como privilegiadas, sem empatia,
feitichistas, etc, embora também haja posturas mais ponderadas. De alguma forma
isso é sintomático. Tanto a postura de “caridade” e “favor” por parte das mulheres
brancas em relação às mulheres negras, quanto as posturas abusivas dentro das
relações inter-raciais, que vão desde a feitichização até o momento em que uma

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mulher branca não tem coragem de assumir uma relação com uma mulher negra
por exemplo (como mencionado em uma das respostas), injetam essa desconfiança
nas mulheres negras. Isso tudo porque, se há um ideal de beleza branco, enaltecido
e louvado, é porque há a comparação com um “outro”, ao qual se associa o oposto,
o “perverso”, o “feio”, e o “sujo”, a sexualidade que foge ao que é “normal” e que
deve ser ocultada, para além do plano da sexualidade, que entre lésbicas, será a
mesma enquanto orientação, o preconceito também transpassa um caminho que
associa uma sexualidade degenerada a determinada raça. Assim, a mulher negra e
lésbica, além de ter sua sexualidade perseguida pelo estereótipo da “lésbica
promíscua”, sofrerá com o estereótipo racista da sexualidade negra, que pode ser
aplicado até mesmo pela lésbica branca.
E, tal qual a sexualidade exemplar, a subversão da normalidade é
construída na práxis: para que a norma exista, é necessário tornar sua
contraparte uma realidade, uma ação (BUTLER, 2012). Queremos dizer que
a proibição move a busca pela coisa interdita, dando margem ao fetiche. E
o fetichismo é um dos lados obscuros do conhecimento partilhado, está em
todos os lugares. Por sua vez, o fetiche também é reprimido, se não o tabu
tornar-se-ia uma lei em desuso. É aqui que entra em perspectiva a violência
e o aviltamento, transformando o fetichista em um subversor e o negro em
“um objeto de desejo e escárnio” (BHABHA, 2013, p. 119). Qual é a saída?
‘Não pergunte, não conte e negue. Faça às escondidas. Daí o amante de
negros pode ser um racista em potencial e, de tal sorte, o gay pode ser um
homofóbico em abstenção do conflito moral na vida social.
(FERREIRA e TIBÉRIO, 2017,pp-169)

Além disso, esse tipo de racismo é mais alimentado através do processo de


embranquecimento, que é quando a pessoa negra nega tudo o que é característico
da sua raça, tentando “melhorar-se” ao chegar o mais perto possível do que é o
branco, o que resulta muitas vezes em superestimar e supervalorizar
relacionamentos com pessoas brancas, preterindo pessoas negras. Assim, a pessoa
negra que internaliza esse tipo de racismo, acaba contribuindo com o mesmo
sistema de enaltecimento da branquitude que à vitimiza.

O problema é muito importante. Pretendemos, nada mais nada menos,


liberar o homem de cor de si próprio. Avançaremos lentamente, pois
existem dois campos: o branco e o negro.
Tenazmente, questionaremos as duas metafísicas e veremos que elas
são frequentemente muito destrutivas.
Não sentiremos nenhuma piedade dos antigos governantes, dos
antigos missionários. Para nós, aquele que adora o preto é tão “doente”
quanto aquele que o execra.
Inversamente, o negro que quer embranquecer a raça é tão infeliz
quanto aquele que prega o ódio ao branco.
Em termos absolutos, o negro não é mais amável do que o tcheco,
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na verdade trata-se de deixar o homem livre. (FANON,1952, p.26)

Segundo Fanon, a opressão colonial e o racismo da própria estrutura da


colonização passaram também a dominar subjetivamente os colonizados e
colonizadores. No caso dos negros, a consequência seria uma não
aceitação da sua autoimagem, da sua cor, o que resultaria em um “pacto”
com a ideologia do branqueamento, e, portanto, a construção do que o autor
chama de máscaras brancas começa na rejeição do negro de si próprio e
uma tentativa de fuga das características estereotipadas associadas
negativamente aos não brancos na sociedade ocidental. Fanon afirma que
o mesmo racismo subjetivado pelos negros também é apropriado pelos
brancos, embora em uma relação assimétrica, na constituição das
identidades raciais brancas. O resultado, no tocante ao funcionamento da
categoria raça, seria um sentimento de superioidade dos brancos em
relação aos não brancos. Deve-se lembrar que Frantz Fanon pensava o
racismo não apenas como manifestação individual dos sujeitos, mas sim
como cultural, o que hoje podemos nomear de racismo estrutural, isto é, a
prática racista que se encontra inscrita na estrutura social, econômica,
histórica e cultural das sociedades ocidentais (Fanon, 1980, p.83 apud
SCHUCMAN, 2012, p.20)

Entre a militância negra e feminista heterossexual, ficou famoso o termo


palmiteiro, que se refere ao homem negro que somente se relaciona com mulheres
brancas. O termo tem se difundido também entre lésbicas, para referir-se a mulheres
negras que se relacionam apenas com mulheres brancas. Ainda assim há quem diga
que o termo não se aplica a mulheres lésbicas, pois a lógica do palmiteiro se refere
principalmente ao homem hétero que busca uma mulher negra ao ascender
socialmente, e nesse sentido, mulheres negras encontram muito mais dificuldades
em ascender socialmente. Para além disso, existe também a justificativa de que,
como a mulher negra é o maior alvo do preterimento, não há porque julgá-la por suas
escolhas afetivas, já que sua afetividade é restringida pelo racismo. Esse
preterimento atinge a mulher negra por diversas vias.
As bolhas de isolamento lésbico que comentei anteriormente fazem com que
aconteça entre as lésbicas um fenômeno generalizado apelidado pelas lésbicas de
rebuceteio que é quando duas mulheres que se conhecem ficam com a mesma
mulher, ou ficam com a ex-namorada da ex-namorada, etc. Dentro dos espaços de
socialização lésbica, a maioria das mulheres negras muitas vezes estão de fora do
rebuceteio, a não ser que estejam mais enquadradas ao padrão branco, seja pelos
traços, pela textura do cabelo ou pela cor da pele. Além disso a própria formação de
redes de socialização de lésbica é algo muito mais complicado para as mulheres
negras, já que estas encontram mais dificuldades para se assumir, principalmente

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se vivem em espaços periféricos, onde a noção de comunidade é mais ampla e o
preconceito costuma ser mais expressivo, em oposição aos bairros próximos ao
centro, onde há mais individualidade e maior indiferença em relação ao âmbito
privado da vida alheia. Tanto, que os maiores índices de assassinato por lesbofobia
ocorrem nas cidades do interior do país, e nas periferias.
Assim, mesmo quando lésbicas negras conseguem um refúgio para viver e
assumir sua sexualidade, acabam se inserindo diversas vezes, em bolhas de
socialização lésbica branca, sem conseguirem ter uma vida afetiva plena já que
mulheres brancas preferem na maior parte das vezes se relacionar entre elas.
Obviamente isso é um reflexo profundo do racismo, que aparece velado, na forma
de gosto pessoal e não de preconceito. Já dentro das bolhas de socialização
lésbicase negras, que se formam em um contexto onde a diferença é menor, e onde
a resistência precisa ser mais ampla, contra a lesbofobia e contra o racismo, o
rebuceteio ocorre de maneira mais frequente para a mulher negra. Ainda assim o
rebuceteio não é necessariamente um benefício ou algo positivo para lésbicas
negras, pois até mesmo entre mulheres brancas, é algo que causa muitos conflitos
e danos emocionais. Mesmo assim ele reflete quem está de fora da “festa” branca.
É um tipo de acontecimento social que revela mais facetas do lugar de preterimento
da mulher negra. De maneira geral, tanto as situações de preterimento dentro ou fora
do rebuceteio, quanto a exaltação exagerada da caridade branca, fez com que as
lésbicas negras sentissem necessidade de promover seus próprios espaços para
não ter que lidar com esse tipo de desconforto, ainda assim, tendo que lidar com
certos desconfortos em relação à mulheres brancas até mesmo nos espaços
direcionados à elas, como demonstrado na etnografia da Sarrada.

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Análise de Imagens
A Sarrada desperta em suas frequentadoras um orgulho em exaltar
determinados elementos culturais e sociais de suas experiências, como a negritude,
o corpo fora do padrão e um gosto musical que anda na contramão do gosto e dos
ideais ocidentais de cultura e arte. Para além de um gênero musical tocado durante
a festa, o funk aparece na Sarrada como uma forma de afirmação de identidade
periférica e negra.

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Nas duas imagens abaixo, tiradas durante uma roda de coco, vemos uma
alfaia, instrumento percussivo de origem africana, muito frequente também no
maracatu, e um chocalho, instrumento presente em vários estilos musicais e também
em vertentes musicais de raízes negras como o samba e o pagode. No braço da
mulher que segura o chocalho há um contra egun, um acessório feito de palha,
utilizado em rituais do candomblé e da umbanda, que tem como função proteger o
corpo de energias negativas. Todos esses elementos são incomuns na maioria das
festas promovidas em casas noturnas de São Paulo, com exceção aos sambas,
ainda assim sem a presença da alfaia.

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O lap dance é uma dança erótica que surgiu nos EUA, em que uma pessoa
fica sentada, geralmente um homem, enquanto outra pessoa, geralmente uma
mulher, dança exclusivamente para ela. Todas as vezes em que presenciei a dança
ela era protagonizada duplas de mulheres negras (o que já mostra uma quebra com
a norma heterossexual típica desses tipos de dança), e em espaços de militância
negra e feminista, por isso acredito que a dança tem se tornado popular entre
algumas mulheres lésbicas e bissexuais da militância negra de São Paulo. O lap
dance aparece na Sarrada como mais um elemento de sensualidade além do funk.
A sensualidade negra e gorda costuma ser tolhida pela sociedade ocidental. Ao
corpo gordo, principalmente, não é permitido dançar. Corpos gordos em movimento
sempre foram motivo de chacota na grande mídia, sempre apareceram como uma
representação do ridículo. Já a sensualidade negra, é colocada em um lugar de
hipersexualização, representando o tipo de corpo feito somente para o sexo, um
corpo que não merece respeito. A dança protagonizada por duas mulheres negras,
uma delas gorda, confronta esses valores pois quebra com o elemento opressor.
Não existe na cena nenhum homem. Se não há nenhum homem, logo não há o
espaço para julgamentos misóginos e gordofóbicos. Existem espectadoras diversas,
mas também aparecem em destaque duas espectadoras que se identificam com as
protagonistas da dança: mulheres gordas e negras. Assim, a festa constrói um
espaço seguro para que essas mulheres explorem sua sensualidade sem medo de
julgamentos.

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Não é muito comum encontrar na Sarrada mulheres de cabelo alisado, o que
mostra que o corpo de quem frequenta a festa também é uma expressão política de
liberdade. Embora seja apenas o cabelo natural dessas mulheres, para a maioria
delas o processo de transição capilar não foi fácil. Assumir a própria raiz para a
mulher negra representa uma “afronta” à sociedade, essa liberdade tem como preço
olhares de julgamento no transporte público, nas ruas, bares, restaurantes, olhares
que surgem como uma incógnita partindo até mesmo de pessoas negras que alisam
o cabelo, além dos olhares que discriminam a estética negra em entrevistas de
emprego, o que traz a tona as consequências mais perversas da discriminação.
Embora haja nessa imagem o desfrute e o prazer de duas mulheres dançando
em uma festa negra e lésbica, existe também uma história complexa, que em um
primeiro olhar não é perceptível, e que se repete com diversas outras
frequentadoras. Essa recorrência traz o elemento da identificação. Ou seja, para
além de uma identificação com o tipo de música que toca na festa, ou com o tipo de
bebida que é oferecida, existe uma identificação relativa à experiência. São corpos
que se encontram para dividir suas existências em um espaço que reconhece e sabe
o significado das experiências que não aparecem nas fotos da festa.

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Além de promover a festa, as organizadoras da Sarrada também promovem
e incentivam o empreendedorismo de mulheres negras e de baixa renda. Uma das
vendedoras mostra o seu produto, um chocolate em forma de vulva. Abaixo duas
mulheres mostram uma tampa de isopor com a frase: VEM CHUPA?, um trocadilho
que relaciona o sexo oral entre mulheres ao produto vendido, o Afrogeladinho, um
geladinho de bebidas alcoólicas vendido em média por dois reais, normalmente na
porta da festa. O Afrogeladinho também é conhecido na festa Batekoo.

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Conclusão

Nos últimos anos, houve um aumento do empoderamento da comunidade


negra e lésbica, que resultou de alguma forma em um relativo aumento da
visibilidade. Ainda assim, o racismo permeia todas as esferas da sociedade, estando
presente também dentro do feminismo, como mostra a história. A própria teoria
feminista valorizada e priorizada dentro da academia ainda permanece sendo a
teoria branca e ocidental, que embora possa, com algumas ressalvas, ser aplicada
ao contexto brasileiro, é insuficiente para explicar nossas especificidades.
Os inúmeros conflitos existentes dentro do movimento LGBT, onde a maior
visibilidade sempre foi a do homem gay, e dentro do feminismo, onde as
protagonistas sempre foram mulheres brancas, mostrou a necessidade de um maior
aprofundamento nas bifurcações dessas lutas, capaz de contemplar corpos que
possuem outra história e outros estigmas. Assim, o feminismo negro se fortaleceu,
principalmente através das ferramentas do feminismo interseccional, enquanto a
comunidade lésbica, de maneira geral, tem pautado suas especificidades de luta.
Nesse contexto surgiu em São Paulo a Sarrada no Brejo, primeira festa lésbica e
bissexual exclusiva para mulheres e promovida por lésbicas e bissexuais negras,
uma alternativa dentro de um terreno lésbico dominado e protagonizado por
mulheres brancas. Nas entrevistas foi explicitado o quanto a desigualdade entre
lésbicas em relação a questão racial ainda está longe de diminuir, o que de alguma
forma tem como sintoma a desconfiança de mulheres negras em relação a mulheres
brancas, embora também haja, em parte, o entendimento de que essas
desigualdades possam ser dialogadas. De qualquer forma, é muito importante que
existam espaços de socialização lésbica como a Sarrada, onde corpos negros e fora
do padrão de mulheres lésbicas, corpos duplamente excluídos socialmente, possam
sentir-se à vontade para existir e viver suas sexualidades.

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Gráficos

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(Alternativas: 1- Já me relacionei por muitos anos; 2 - Já me relacionei por um ou dois anos;
3 - Já me relacionei por poucos meses.)
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(Alternativas: 6- Muito, mas sem nenhuma teoria, muito mais prático; 7- Muito, com alguma teoria e alguma
prática; 8- Muito, mas bastante teórico, mais teórico do que prático.)

( Alternativa 7: Priorizo me relacionar com mulheres negras, mas não exclusivamente.)

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Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. pp12-30.

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