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AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE COMO FACILITADORAS DA


MEDICINA HUMANIZADA EM PACIENTES ONCOLÓGICOS SOB CUIDADOS
PALIATIVOS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A TERMINALIDADE DA VIDA

Adriele Mota de Oliveira Santos1


Orientadora: Jessica Hind Ribeiro Costa2

RESUMO
Este trabalho analisa a legitimidade das diretivas antecipadas de vontade como facilitadoras da
medicina humanizada em pacientes oncológicos sob cuidados paliativos. Por meio de uma
pesquisa bibliográfica e qualitativa, observa-se como o princípio da autonomia pode ser
aplicado ao âmbito da terminalidade da vida. Para investigação da realidade foram consultados
o Código de Ética Médica, as Resoluções do CFM 1.805/2006 e 1.995/2012, bem como a
aplicação dos cuidados paliativos em pacientes com câncer no Hospital Aristides Maltez. A
análise concentrou-se em verificar como os procedimentos médicos que prolongam a vida dos
pacientes com base nos cuidados paliativos podem contribuir para a disseminação das suas
funcionalidades em pacientes oncológicos, a fim de promover no processo de humanização da
medicina. Os resultados indicam que os cuidados paliativos ainda estão em fase de
amadurecimento na sociedade, de forma que as diretivas antecipadas podem auxiliar no
processo de conscientização das pessoas sobre o fim da vida, bem como na aplicabilidade do
princípio da autonomia do paciente.

Palavras-chave: Diretivas Antecipadas de Vontade; Cuidados Paliativos; Medicina


Humanizada em Pacientes Oncológicos.

ABSTRACT
This article analyzes the legitimacy of advance directives of will as facilitators of humanized
medicine in cancer patients under palliative care. Through a bibliographical and qualitative
research, it is observed how the principle of autonomy can be applied to the scope of the
terminality of life. To investigate the reality, the Code of Medical Ethics, CFM Resolutions
1805/2006 and 1995/2012 were consulted, as well as the application of palliative care in cancer
patients at Hospital Aristides Maltez. The analysis focused on verifying how medical
procedures that prolong the lives of patients based on palliative care can contribute to the
dissemination of their features in cancer patients, in order to promote the process of
humanization of medicine. The results indicate that palliative care is still maturing in society,
so that advance directives can help in the process of making people aware of the end of life, as
well as in the applicability of the principle of patient autonomy.

1
Advogada. Bacharela em Direito pela Universidade Católica do Salvador. Especializanda em Direito Médico,
Biomedicina e Direito Médico pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) |
adrielemotaadvocacia@gmail.com
2
Advogada. Professora. Doutora e Mestra em Direito das Relações Sociais e Novos Direitos pela Universidade
Federal da Bahia (UFBA). Pós-Doutora em Direito e Novas Tecnologias pela Mediterranea International Centre
for Human Rights Research. | jessicahindribeiro@gmail.com.
2

Keywords: Advance Directives of Will; Palliative care; Humanized Medicine in Oncology


Patients.

Sumário: 1 INTRODUÇÃO. 2 AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO


ÂMBITO MÉDICO COMO FORMAS DE EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DO
PACIENTE. 2.1 O princípio da autonomia da vontade aplicada à terminalidade da vida. 2.2 A
competência normativa das diretivas antecipadas de vontade no Código de Ética Médica. 2.3 O
registro da diretiva antecipada de vontade na ficha médica ou no prontuário do paciente –
Resolução CFM 1.995/2012 e Resolução CFM 1.806/2006. 3 A IMPORTÂNCIA DOS
CUIDADOS PALIATIVOS E DA DISSEMINAÇÃO DAS SUAS FUNCIONALIDADES
EM PACIENTES ONCOLÓGICOS 3.1 O processo de humanização da medicina em
pacientes com câncer a partir dos cuidados paliativos – O caso do Hospital Aristides Maltez.
3.2 Fim de vida – Os procedimentos médicos que prolongam a vida são legítimos? 4 POR QUE
AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE AUXILIARIAM NO PROCESSO DE
AMADURECIMENTO SOCIAL DOS CUIDADOS PALIATIVOS? 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS. 6 REFERÊNCIAS.

1 INTRODUÇÃO

Com os crescentes avanços na tecnologia se tornou possível observar o aumento da


longevidade da população. No entanto, com a expectativa de vida das pessoas, também é
necessário lidar com as doenças inerentes às faixas etárias mais avançadas, dentre elas o câncer.

De acordo com o IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), há projeções que


indicam a aceleração do envelhecimento dos brasileiros até 2100. Nesse ínterim, durante a
comemoração do Dia Mundial do Câncer, o INCA – Instituto Nacional de Câncer, publicou
estimativa de 625 mil novos casos oncológicos no Brasil a cada ano no triênio de 2020 a 2022.
Isso porque, “quanto mais a população se desenvolve [...] aumenta o número de casos de câncer
ligados ao envelhecimento, à urbanização e à industrialização”.

Nesse sentido, o artigo analisa como as diretivas antecipadas de vontade podem facilitar
na aplicação de cuidados paliativos pacientes oncológicos, de modo a lançar um novo olhar
sobre a terminalidade da vida e suas possibilidades.

A importância da pesquisa sobre as diretivas antecipadas em pacientes oncológicos se


dá porque os cuidados paliativos podem ocorrer mesmo antes do fim da vida, inosbtante existir
grandes debates sobre a capacidade prognóstica, abordagem de más notícias e aceitação do
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paciente/família e suas implicações. Assim, verifica-se a necessidade de uma construção social


que venha a facilitar a aplicabilidade da medicina humanizada e o direito de morrer dignamente.

Além desta introdução, nos capítulos que se seguem discute-se sobre a relevância das
diretivas antecipadas para a autonomia da vontade dos pacientes, com considerações acerca da
terminalidade da vida, observando a competência normativa no Código de Ética Médica e nas
Resoluções do Conselho Federal de Medicina. Aborda-se no tópico seguinte a importância dos
cuidados paliativos e da disseminação dessas funcionalidades em pacientes oncológicos no
processo de humanização da medicina. Por fim, discute-se sobre porque as diretivas antecipadas
de vontade podem auxiliar no processo de amadurecimento das pessoas quando se trata dos
cuidados paliativos que fundamenta a conclusão.

2 AS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE NO ÂMBITO MÉDICO COMO


FORMAS DE EXERCÍCIO DA AUTONOMIA DO PACIENTE

A palavra autonomia não possui significado único e literal, devendo ser entendido de
acordo com a acepção que é adotada. “Em linhas iniciais, a palavra autonomia deriva do grego
autos (próprio) e nomos (regra, governo ou lei), era empregada como sinônimo de autogoverno
e autogestão” (MOREIRA, 2015). Para Kant, autonomia é a:

capacidade da vontade humana de se autodeterminar segundo uma legislação


moral por ela mesma estabelecida, livre de qualquer fator estranho ou exógeno
com uma influência subjugante, tal como uma paixão ou uma inclinação
afetiva incoercível.

Modernamente, conforme GAMA (2014), na literatura existem diversas maneiras de se


conceituar as diretivas antecipadas de vontade, tais como, testamento vital, manifestação
explícita de vontade, biotestamento e vontades avançadas.

No entanto, os estudos mais recentes sintetizam que as diretivas antecipadas de vontade


(DAV) são o gênero da qual descendem o testamento vital e o mandato duradouro (DADALTO,
2013). Estes podem ser entendidos como documentos que possibilitam aos doentes com
incapacidade – transitória ou permanente – decorrentes de doenças graves, condições de saúde
irreversíveis ou terminais expressarem previamente a sua vontade.

Nesse ínterim, necessário destacar que a expressão da vontade é importante ferramenta


na aplicabilidade da autonomia do paciente. À vista disso, no âmbito médico, costuma-se
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invocar o princípio bioético introduzido por BEAUCHAMP e CHILDRESS (1989) como o


direito de que os indivíduos têm de decidir por suas escolhas pessoais e ser tratados dignamente
pela sua capacidade de decisão.

Pode-se compreender o testamento vital, nesse sentido, como o registro documental,


realizado por uma pessoa civilmente capaz, de quais procedimentos, cuidados e tratamentos
gostaria de ser submetida em casos de doenças que impossibilitem a sua livre manifestação, a
exemplo dos cuidados paliativos em tratamentos de câncer.

Por outro lado, no mandato duradouro, o paciente nomeia um ou mais procuradores que
o representará perante o médico em casos de incapacidade, assumindo assim, a decisão sobre
os cuidados médicos quando o outorgante não puder manifestar a sua vontade. No entanto, essa
decisão dever-se-á sempre considerar a vontade do paciente.

No âmbito médico, há discussões sobre a limitação da autonomia frente ao princípio da


dignidade humana quando o exercício da “liberdade” coloque em risco a vida e o exercício da
medicina. No entanto, o objetivo das diretivas antecipadas de vontade é delimitar a aceitação
aos recursos terapêuticos e curativos do paciente, de forma que a decisão não lhe seja tolhida,
nem fique a cargo de familiares e dos profissionais de saúde.

Assim, as diretivas antecipadas de vontade são ferramentas que podem ajudar a


desmistificar a ideia de preservação da vida como princípio maior na medicina, traçando-as
como concretizadoras do direito à autonomia da vontade.

2.1. O PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE APLICADA À TERMINALIDADE


DE VIDA

O princípio da autonomia da vontade vai de encontro com questões morais incutidas na


sociedade que colocam a proteção à vida como um paradigma social. Outrossim, o juramento
de Hipócrates “traz uma visão da medicina sacerdócio” sendo o médico aquele que busca o
bem-estar (TORRES, 1999).

Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca
para causar dano ou mal a alguém. [...] Em toda casa, aí entrarei para o bem dos doentes [...]
Juramento de Hipócrates (Grifo nosso).
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Não obstante, diferentemente do que se convencionou, não é papel do médico decidir a


quem cabe viver ou morrer e nem mesmo até quando se deve prolongar a vida, segundo o seu
entendimento; mas sim, respeitar o direito a que cabe ao seu paciente de ser informado e de
decidir acerca do seu tratamento.

Conforme Ugardi (2014),

O médico não deve, de modo algum, persuadir o paciente a aceitar um


tratamento com o qual não concorde, através de ameaças. Do mesmo modo, o
profissional não deve tirar proveito de situações nas quais o paciente não esteja
em condições de decidir, para convencê-lo, como no caso de indivíduos sob
sedação, por exemplo. O exercício da autonomia do paciente só é possível caso
o médico cumpra com o dever de informar com clareza e com o dever de
auxiliar no processo de tomada de decisão. Perguntas devem ser encorajadas
quando necessário

Por conseguinte, a medicina humana, mesmo tendo avançado, tem limitações à arte do
cuidar e, inevitavelmente, um dia a finitude se insurge, de forma que prolongar a vida por
mecanismos artificiais não prolonga de forma real a vida de quem está biologicamente morto-
sem chance alguma de viver dignamente.

Assim, nos casos que tratam de pacientes terminais, é importante o reconhecimento das
vulnerabilidades humanas, o respeito à autonomia e consentimento livre esclarecido do paciente
em sua relação de simetria com o médico, a fim de enfrentar as dores diversas decorrentes de
tratamentos e procedimentos médicos forçados, que prolongam a vida mesmo que sem chance
de cura (futilidade médica).

2.2 A COMPETÊNCIA NORMATIVA DAS DIRETIVAS ANTECIPADAS DE VONTADE


NO CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA
Não há no Código de Ética Médica uma regulamentação das diretivas antecipadas de
vontade. Apesar disso, é perceptível a preocupação em preservar o direito de decisão do
paciente.

Logo no Capítulo I, inciso XXI, o códex declara a necessidade de o profissional respeitar


a decisão do seu paciente quando diante de situações que demandem tomada de decisões:

No processo de tomada de decisões profissionais, de acordo com seus ditames


de consciência e as previsões legais, o médico aceitará as escolhas de seus
pacientes, relativas aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos por eles
expressos, desde que adequadas ao caso e cientificamente reconhecidas.
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Ademais, o artigo 31 prevê a vedação ao desrespeito ao direito do paciente ou do seu


representante legal de decidir sobre os procedimentos médicos:

Desrespeitar o direito do paciente ou de seu representante legal de decidir livremente


sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente risco de
morte”.

Não obstante, não existir a normativa do mandato duradouro, infere-se na descrição


supramencionada, a possibilidade de se nomear procurador que represente os desejos do
paciente. No entanto, observa-se que na iminência de morte, medidas que prolonguem a vida
são resguardadas aos médicos. Assim, o direito à autonomia da vontade não é absoluto,
sofrendo limitação no artigo em análise,

Outrossim, o artigo 34 também proíbe que o profissional médico prive de informações


e esclarecimentos o seu paciente de diagnósticos, prognósticos, riscos e objetivos dos
tratamentos:

Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do


tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso,
fazer a comunicação a seu representante legal. (Grifo nosso).

Em que pese a determinação do dever de informação, verifica-se novamente uma


restrição ao direito. Nesse sentido, importante salientar que as possibilidades de danos são no
caso concreto subjetivas, o que enseja um juízo de valor por parte do médico que não deveria
estar em pauta.

Além disso, malgrado o artigo 34 frisar a comunicação a representante legal quando a


informação direta puder provocar danos ao paciente, nada foi esclarecido sobre o estado de
capacidade do indivíduo no momento da ponderação. Então, como avaliar as possibilidades de
danos?

A partir da leitura dos artigos subentende-se que o Código de Ética Médica pondera
situações de emergência em que a pessoa não consiga manifestar a sua vontade e, assim sendo,
dar o seu consentimento. Por esse motivo, tratará com o representante legal do doente ou agirá
conforme a ética que o Código lhe impõe, resguardando a vida do paciente.

O CEM claramente tem avançado no debate do respeito à autonomia do paciente,


abandonando aos poucos o paternalismo que buscava realizar o bem de acordo com as
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concepções do médico responsável, e dando margem para que o paciente seja o ativo na tomada
de decisões e na capacidade de outorgar poderes decisórios a um terceiro.

2.2 O REGISTRO DA DIRETIVA ANTECIPADA DE VONTADE NA FICHA MÉDICA OU


NO PRONTUÁRIO DO PACIENTE - RESOLUÇÃO CFM RESOLUÇÃO CFM 1.995/2012
E 1.805/2006
Levando em consideração a falta de lei ou regulamentação que tratem dos limites
terapêuticos aplicáveis aos pacientes, o Conselho Federal de Medicina – CFM publicou a
Resolução nº 1.995 de 2012, estabelecendo “os critérios para que qualquer pessoa – desde que
maior de idade e plenamente consciente – possa definir junto ao seu médico quais os limites
terapêuticos na fase terminal”.

Logo no artigo 1º, a resolução define o conceito das diretivas antecipadas de vontade:

Art. 1º. [...] o conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre
cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de
expressar, livre e autonomamente, sua vontade.

Ao longo do documento também é assegurado o direito do paciente quando determina


que “as diretivas antecipadas do paciente prevalecerão sobre qualquer outro parecer não
médico, inclusive sobre os desejos dos familiares”, devendo ser registrados no prontuário todas
as diretivas que forem diretamente comunicadas pelo paciente.

Além disso, em caso de desconhecimento da vontade do paciente e, quando ele não


houver designado representante, nem familiares – ou quando entre esses não houver consenso
–, o médico pode recorrer ao Comitê de Bioética da instituição, à Comissão de Ética Médica do
Hospital ou ao Conselho Regional Federal para fundamentar a sua decisão sobre os conflitos
éticos.

Essa determinação é muito importante, quando se leva em consideração que nem todas
as pessoas têm familiares próximos, com uma boa relação e, principalmente, têm a o
conhecimento do que é uma diretiva antecipada de vontade. Ademais, por um olhar social,
existem ainda as pessoas vulneráveis, excluídas da sociedade que, além de tudo isso, também
não tem noção do poder de escolha sobre o próprio corpo e vida.

Para além disso, tem-se também a Resolução CFM nº 1.805/2006, a qual decidiu que é
permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos de prolongamento da
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vida, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal, garantindo, ainda, o direito
ao esclarecimento e outras opiniões médicas:

Art. 1º. É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e


tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de
enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu
representante legal.
§ 1º O médico tem a obrigação de esclarecer ao doente ou a seu representante
legal as
Modalidades terapêuticas adequadas para cada situação.
§ 2º A decisão referida no caput deve ser fundamentada e registrada no
prontuário.
§ 3º É assegurado ao doente ou a seu representante legal o direito de solicitar
uma segunda opinião médica.

Mas não é só, a resolução mais antiga também previne possíveis abandonos e/ou
retaliações que a decisão do paciente possa provocar, garantindo a manutenção de todos os
cuidados necessários ao alívio do sofrimento:

Art. 2º. O doente continuará a receber todos os cuidados necessários para aliviar os sintomas
que levam ao sofrimento, assegurada a assistência integral, o conforto físico, psíquico, social e
espiritual, inclusive assegurando-lhe o direito da alta hospitalar.

A soma dessas medidas representa uma vitória para os defensores do direito à autonomia
da vontade, pois, a partir desse marco regulamentar, os brasileiros poderão registrar
expressamente no prontuário a sua diretiva antecipada, permitindo que a equipe médica tenha
o amparo legal e ético para cumprimento do desejo de quem está sendo cuidado, sem deixá-los
desamparados.

Em visto disso, o que era apenas princípio deixa a narrativa ideal e dá espaço à narrativa
factual, porque o registro no prontuário em consonância da definição das diretivas antecipadas
de vontade consubstancia um testamento vital e contribui para a adoção de limites médicos de
terapia, bem como para a normatização da escolha de viver ou de morrer com dignidade.

Ademais, a chancela médica para interrupção de tratamentos invasivos ou dolorosos em


casos clínicos que não existam a possibilidade de cura ou recuperação, podem ajudar no sentido
de que o doente não encare o processo da diretiva como uma fuga à dor e, nem a morte como
uma escolha ruim. Mesmo porque, conforme DADALTO (2018), a consciência da morte nos
faz humanos.

Assim, ressignificar a concepção de morte do fim em si mesmo para aquilo que


fundamenta a própria dignidade humana, importa a abertura ao diálogo e ao espaço decisório
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do indivíduo como fundamento da própria dignidade humana conferida pela Constituição


Federal.

3 A IMPORTÂNCIA DOS CUIDADOS PALIATIVOS E DA DISSEMINAÇÃO DAS


SUAS FUNCIONALIDADES EM PACIENTES ONCOLÓGICOS
Os cuidados paliativos surgiram originariamente em Londres, na década de 60,
objetivando a promoção da medicina humanizada que oferecesse um suporte digno as pacientes
de doenças terminais, nessa época, a preocupação era direcionada, sobretudo, a melhorar o final
de vida dos pacientes com câncer (MACÊDO, 2015).

Ainda conforme MACÊDO (2015), o termo tem origem no vocábulo latino pallium, que
significa cobertor, trazendo uma conotação de proteção e cuidado. Desse modo, após uma
gradativa construção o termo “cuidados paliativos” consolidou o significado de hospitalidade,
estendendo-se às mais diversas doenças.

São, portanto, o conjunto de técnicas e cuidados de saúde ativos e integrais prestados à


pessoa com doença grave, progressiva e que ameaça a continuidade de sua vida, tendo o objeto
de promover a qualidade de vida do paciente e de seus familiares através da prevenção e alívio
do sofrimento, da identificação precoce de situações possíveis de serem tratadas, da avaliação
cuidadosa e minuciosa e do tratamento da dor e de outros sintomas físicos, sociais, psicológicos
e espirituais. (INCA, 2022).

De acordo com o Instituto Nacional de Câncer, o ideal é que os cuidados paliativos


iniciem o mais precocemente possível, o que importa dizer que esses cuidados são tão
imprescindíveis quanto o estabelecimento das diretivas antecipadas que garantem o respeito à
vontade, porque fazem parte do processo de esclarecimento e tomada de decisão do doente.

Os Cuidados podem vir associados às medidas curativas a fim de amenizar os sintomas


e melhorar as condições clínicas. Isso porque à medida que a doença avança, mesmo que já se
esteja aplicando o tratamento com intenção de cura, a abordagem deve ser ampliada para cuidar
também dos aspectos psicológicos, sociais e espirituais. Não obstante, na fase terminal, os
cuidados paliativos tornam-se prioridade à garantia da “qualidade de vida, conforto e
dignidade”.

Dessa maneira, a disseminação das funcionalidades dos cuidados paliativos para


pacientes oncológicos é muito importante, uma vez que não se trata apenas de uma preocupação
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quando a doença atinge o estágio avançado, em que o paciente tem pouco tempo de vida, mas
sim de uma dinâmica que se amolda a cada cuidando em seus aspectos psicossociais, inclusive,
com inclusão e preparação dos familiares para entender cada fase.

3.1 O PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO DA MEDICINA EM PACIENTES COM CÂNCER


A PARTIR DOS CUIDADOS PALIATIVOS – O CASO DO HOSPITAL ARISTIDES
MALTEZ
Foi a partir de Hipócrates que surgiu a associação da ética com a prática médica.
Conforme pensamento de Santos (2014), “os princípios da empatia, da confidencialidade, da
justiça, o respeito perante o sofrimento e o dever do conhecimento universal se introduzem
como campo próprio da arte médica, no exercício efetivo do ofício de cuidar sempre e curar
quando possível.”.

É na aplicação desses princípios que se instaura o processo de humanização da medicina.


Afinal, de nada importa as melhores técnicas e instrumentos modernos sem lembrar do dever
maior que é compreender a essência do ser humano e toda história que o construiu.

Nessa linha de raciocínio, torna-se esperado que na relação paciente-médico deve haver
confiança, compromisso e responsabilidade. Segundo SANTOS (2014), o entendimento das
limitações de um modelo paternalista da medicina, restrito aos aspectos biopatológicos das
enfermidades e com ênfase na cura, deve dar lugar a uma atuação mais abrangente e
humanística, que objetive a ética do cuidado e a responsabilidade técnica, política e social.

Esse movimento traz em evidência o paciente enquanto figura ativa da ação com
vontades e sentimentos, passando a ser portador de dignidade e de uma efetiva autonomia
(NILO, 2019). Nesse sentido, o Hospital Aristides Maltez em Salvador/Bahia, que atua desde
agosto de 1997 na linha de frente do tratamento de câncer a partir da assistência com cuidados
paliativos é um excelente exemplo da “Medicina Hipocrática”, relembrando o pensamento ético
contemporâneo da importância da relação paciente-médico.

Isso em razão da instituição não só contar com um setor para os Cuidados Paliativos,
mas pelo trabalho de apoio que oferece. Em vista disso, o sítio do Aristides Maltez divulgou
em 09/10/2021 o lançamento de um livro nos corredores da unidade hospitalar intitulado de
“Pedaços de mim. Minha vida”.

A coletânea de poesias escrita pela sra. Terezinha de Jesus, paciente da ala, e que não
teve acesso à escola, representou para ela uma forma de superar o sofrimento causado pelo
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câncer, bem como de perceber o seu valor. Para a Dra. Patrícia Bagano, coordenadora do setor
de Cuidados Paliativo do HAM, a compreensão da realidade de cada paciente é imprescindível
para cuidar dele e do que importa para ele.

O medo da morte é um dos pensamentos que a maioria das pessoas não pode suportar
(MARINHO, 2010). Observa-se, portanto, que os cuidados médicos com uma preocupação
humanística vão além do diagnóstico e objetivo de cura, pois levam a consideração da finitude
da vida e fazem com que os pacientes vivam um dia de cada vez de forma a não somatizar
aquilo que os aflige a alma.

3.2 FIM DE VIDA - OS PROCEDIMENTOS MÉDICOS QUE PROLONGAM A VIDA SÃO


LEGÍTIMOS?
Por mais conhecido e sabido que a morte é a única certeza que todo temos, ela ainda
continua a ser encarada como um tabu: a inevitabilidade mais temida. O que é natural e certo,
então ganha um sentido do que precisa ser evitado a todo custo. Para isso, existe toda uma
ciência disposta e munida com aparatos tecnológicos e moderno que postergam o ponto final
da vida (MARINHO, 2010).

A adoção de mecanismos de suporte a vida permite que o paciente em estado grave, ou


até mesmo sem chance de cura, fiquem por longos períodos na Unidade de Tratamento
Intensivo – UTI. No entanto, isso dificulta a identificação dos limites terapêuticos porque
quando se trata de casos em que não há mais esperança de cura, a morte é evitada, muitas vezes,
por envolver o apego emocional de familiares e pessoas próximas – contribuindo para o que se
denomina de futilidade médica.

O CFM por meio de suas resoluções 1.995/2012 e 1.805/2006 já destacou a importância


de limitar os procedimentos que prolongam a vida do doente com câncer, por exemplo,
atribuindo-se ao próprio paciente, ou a quem o represente, o encargo de suspender tratamentos
invasivos e fúteis.

É por meio dos cuidados paliativos, afinal, que os pacientes em estado terminal, sem
qualquer perspectiva de melhora, podem vislumbrar o direito a uma boa morte. A abordagem
humanizada nesses casos se dá com uma assistência emocional, social e espiritual, entendendo
e respeitando o paciente com suas características e peculiaridades que o sintetiza.
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Os procedimentos médicos que prolongam a vida podem ser considerados então, como
legalizados pelo Estado de Direito, mas não como legítimos, pois, colocam o indivíduo, muitas
vezes já sem chance de volta à vida, em leitos que os condena ao sofrimento indigno e
desumano. Assim, é preciso continuar a promover o debate sobre os cuidados paliativos para
uma melhor qualidade de vida dos pacientes oncológicos desde o diagnóstico até a sua cura ou
a escolha pela boa morte.

4 POR QUE AS DIRETIVAS AUXILIARIAM NO PROCESSO DE


AMADURECIMENTO SOCIAL DOS CUIDADOS PALIATIVOS?
As diretivas antecipadas de vontade são ferramentas que auxiliam a disseminar a cultura
de cuidados. A partir do momento em que a sociedade inicia o processo de compreensão da
finitude humana sem um fim em si mesmo, mas como aquilo que dignifica a própria existência
em seu poder de escolha, não é mais cognoscível a busca incessante por evitar a sua morte ou
de seus entes queridos a qualquer custo porque isso traria dor e sofrimentos desnecessários.

A realização de um testamento vital ou de um mandato duradoura não retira do paciente


com câncer a esperança de vida, pelo contrário o coloca no controle da situação, sendo ele capaz
de decidir sobre os próprios limites.

Quando se compreende essas premissas, os cuidados paliativos ganham especial


relevância pois o objetivo maior se torna promover uma vida boa enquanto ainda há vida. A
busca pelas realizações e bem-estar do paciente se tornam maiores até mesmo do que o anseio
pela cura. Dessa maneira, é notável que os princípios éticos já não são apenas princípios, mas
se consubstanciaram em direitos, o que demonstra o potencial amadurecimento da sociedade
em relação ao conceito de morte.

De agora em diante, mesmo que o paciente não opte por uma diretiva antecipada de
vontade, ele terá conhecimento de que pode iniciar o cuidado mesmo no seu tratamento, uma
vez que os cuidados paliativos não voltados ao fim da vida, mas sim o meio de tirar o doente
da zona de incertezas e seguranças, lhe dando esperança e tempo para viver o que realmente
tem significado.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As diretivas antecipadas de vontade têm ainda um longo caminho a percorrer na quebra
de paradigmas que existem na sociedade brasileira quando a terminalidade da vida está em
pauta. No entanto, é notável os resultados dos esforços das pesquisas que defendem o direito à
vida segundo os princípios da dignidade e do direito à autonomia do paciente.

Sob esse olhar, é importante reconhecer o passo importante que o Conselho Federal de
Medicina já deu ao permitir que os médicos anotem no prontuário ou ficha médica a vontade
do seu paciente, sem intervir com base nas suas concepções pessoais.

Além disso, a conceituação do que são as diretivas antecipadas de vontade abrem espaço
para a aplicabilidade dos cuidados paliativos que vêm ganhando espaço não só no debate
acadêmico, mas também nos hospitais, tal como foi o exemplo do Hospital Aristides Maltez
que tem uma ala só de tratamento para cuidados paliativos desde o diagnóstico médico e vem
transformando a vida dos seus pacientes, incentivando que eles vivam um dia de cada vez com
alegria e esperança.

Apesar do medo humano frente à morte, sabe-se que é a única certeza que todos temos.
E, a ausência de limites para terapias que prolongam a vida de pacientes com câncer sem chance
de cura põe em risco a própria dignidade da vida, lhe causando dores e sofrimentos
desnecessários. O que evidencia que esses tratamentos são legalizados, mas não são legítimos,
tendo em vista que deixam de considerar a essência do ser humano que é viver enquanto houver
vida.

Assim, se eleva a necessidade de disseminar as diretivas antecipadas de vontade em


comunhão com os cuidados paliativos. Aquelas garantem o direito à escolha, enquanto estas
consubstanciam a escolha, pois é quando o doente se permite enxergar a doença com mais
leveza, sendo a dor e o sofrimento meros espectadores de toda a vida, desde que digna, que se
tem a protagonizar.
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REFERÊNCIAS

Código de Ética Médica. Resolução CFM Nº 1.931/2009.


Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1.805/2006.
Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM Nº 1.995/2012.
Conselho Regional de Medicina/SP. Bioética: O princípio da autonomia e o termo de
consentimento livre e esclarecido. Disponível em: <
https://portal.cfm.org.br/artigos/bioetica-o-principio-da-autonomia-e-o-termo-de-
consentimento-livre-e-esclarecido/>.
DADALTO, Luciana. Diretivas antecipadas de vontade: um modelo brasileiro. Ver. Bioét.
(Impr.). 2013; 21 (3): 463-76.
GAMA, Cipriano Reis. Diretivas antecipadas de vontade do paciente terminal no Brasil.
Universidade Federal da Bahia. Graduação em Medicina (Faculdade de Medicina).
Hospital Aristides Maltez. Cuidados paliativos: paciente lança livro no HAM. Disponível
em: < https://www.aristidesmaltez.org.br/cuidados-paliativos-paciente-lanca-livro-no-ham/>
Instituto Nacional de Câncer. Brasil terá 625 mil novos casos de câncer cada ano do
triênio 2020-2022. Disponível em: <https://www.inca.gov.br/noticias/brasil-tera-625-mil-
novos-casos-de-cancer-cada-ano-do-trienio-2020-2022#:~:text=Portugu%C3%AAs-
,Brasil%20ter%C3%A1%20625%20mil%20novos%20casos%20de%20c%C3%A2ncer,ano%
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