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Atitude médica e autonomia do doente vulnerável

Leonor Duarte Almeida


Maria do Céu Machado

Resumo Este artigo apresenta os resultados de pesquisa envolvendo amostra de 42 médicos de


um serviço de oftalmologia de hospital terciário em Portugal. Foi aplicado um questionário com
dez perguntas, destinado a avaliar as atitudes de três grupos de médicos com idades e formação
pedagógica distintas, em face da autonomia do doente glaucomatoso. Os dados foram analisados
indicando a correlação descritiva por meio do teste de Pearson χ2. Resultam três atitudes
diferentes com significado estatístico (valor de p<0,05) permitindo considerar a existência de três
padrões de comportamento médico, adequados ao grupo etário. A formalização da prática
médica à medida que a idade diminui (medicina defensiva) caracterizou o Grupo 1. O respeito
pelo doente dominou o Grupo 2. No Grupo 3 prevaleceu a tendência para a medicina paternalista,
onde o esclarecimento depende da educação e caráter do médico. Conclui que a conduta dos
médicos remonta ao momento em que iniciaram a atividade profissional, à cultura médica
predominante no período e à formação bioética.

Palavras-chave: Autonomia profissional. Autonomia pessoal. Bioética. Oftalmologia.


Glaucoma.

A discussão aqui apresentada decorre da necessidade de


refletir sobre a profissão médica, especialmente no caso dos
profissionais cujo cotidiano laboral os envolve no tratamen-
to de patologias incapacitantes, com caráter estigmatizante
no imaginário social, como é o caso do glaucoma. Nessa
circunstância ele se confronta com a necessidade de respon-
Leonor Duarte Almeida der a questões como valores, prioridades e necessidades cul-
Médica oftalmologista graduada turais desses pacientes, considerados individualmente.
no Hospital de Santa Maria,
Lisboa, docente em Oftalmologia
da Faculdade de Medicina de
Lisboa (FM/ Lisboa), mestre em Dentre as que se apresentam podem-se enumerar alguns
Bioética pelo Centro de Bioética da vetores orientadores da reflexão, quais sejam: a) o papel do
FM/Lisboa e doutoranda em
Bioética no Instituto de Bioética da médico na relação médico-paciente, que poderá originar ou
Universidade Católica Portuguesa não um binômio relacional assimétrico; b) a impessoalidade
(UCP), Lisboa, Portugal
das estruturas hospitalares que limitam a relação médico-
paciente, influenciando as decisões éticas que coloquem em
questão a própria dignidade da pessoa doente; c) as condi-
ções em que se processa ou pratica o consentimento infor-
mado ou, como é conhecido no Brasil, consentimento livre
e esclarecido como paradigma da autonomia do doente.

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Qualquer profissão, inclusive a médica, tem para com a
sociedade um compromisso permanente de altruísmo, que, em
si mesmo, é um valor moral. Um segundo valor reconheci-
do como fundamental e que exerce vigilância constante
sobre o saber médico é o conhecimento científico, princípio
ético e técnico que norteia o bom exercício de qualquer pro-
Maria do Céu Machado fissão. A avaliação das competências profissionais é exigên-
Médica pediatra, professora cia atual, expressa pela certificação de qualidade dos membros
auxiliar de Pediatria da FM/ Lisboa,
docente no doutoramento em e pela conformação destes a códigos de conduta 1.
Bioética no Instituto de Bioética da
UCP e alta comissária para a saúde
em Portugal É um aspecto dessa certificação, respeitante ao comportamen-
to ético dos médicos, que nos propomos analisar neste artigo.
Avaliar a sua predisposição para o paternalismo clássico, em
que o médico tem poder absoluto sobre o doente, ou para o
respeito por sua autonomia, a qual se consubstancia com a
informação e entendimento adequados, por meio dos quais o
paciente poderá dar o seu consentimento sobre os procedi-
mentos que sobre ele poderão ser realizados: essa capacidade
de escolher, preferir e excluir é o que a educação cívica deveria
tentar conseguir nos futuros cidadãos 2. A educação é o funda-
mento que permite a qualquer pessoa constituir-se como um
ser de pensamento, palavra e comunicação. Assim, um dos
direitos fundamentais de qualquer indivíduo que se pretende
autônomo, juntamente com a liberdade, é ter os meios inte-
lectuais necessários para usufruir dessa mesma liberdade 3.

Subjacente à compreensão do comportamento médico na


instituição onde decorre seu trabalho será também anali-
sada a dinâmica do hospital enquanto organismo público,
com as peculiaridades e constrangimentos que lhe são pró-
prios no que tange ao respeito pela autonomia do doente e
o seu bem-estar como fim último. Para tanto, será consi-
derada a Carta dos Direitos e Deveres dos Doentes 4, apro-
vada pelo Ministério da Saúde português em 1997, como
parte do esforço de humanização dos serviços de saúde
hospitalares no país. Ressalte-se que o direito à proteção
da saúde está consagrado na Constituição da República
Portuguesa e assenta num conjunto de valores fundamentais

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como a dignidade humana, a equidade, a ética dade pessoal que reduza ou mesmo impeça o
e a solidariedade 4. São esses os princípios poder de decisão 5. Em termos etimológicos
orientadores que servem de base à formula- autonomia é uma palavra de origem grega, com-
ção dos direitos e deveres dos pacientes, posta pelo adjetivo autos, que significa o mesmo,
detalhados na referida Carta. ele mesmo e por si mesmo, e o substantivo nomos,
que quer dizer compartilha, instituição, lei, norma,
O recorte de pesquisa intenta saber como se convenção ou uso. O sentido geral da palavra
posicionarão três grupos de médicos de diferen- indica a capacidade do ser humano em dar-se às
tes faixas etárias em face da autonomia do suas próprias leis e compartilhá-las com seus
doente com glaucoma, enquanto sujeito de semelhantes ou a condição de uma pessoa ou
direitos e deveres, cuja vulnerabilidade é fator coletividade, capaz de determinar por ela mesma
importante a ser considerado. Tal compreensão a lei à qual se submeter 6.
pareceu-nos constituir por si só um desafio.
Perante uma cultura de prestador de serviços, Historicamente, tal conceito terá tido a sua
eventualmente diferentes, procuramos investi- origem na ruptura com a tradição pagã, carac-
gar as atitudes dos profissionais considerando terizada por explicações da esfera suprassensí-
vários itens, dentre os quais se destacam o tipo vel para os acidentes fenomenológicos na
de formação pedagógica e cognitiva, a experiên- natureza. A emergência da ideia de autono-
cia clínica e a formação bioética, atinentes às mia estaria, assim, relacionada à transição de
diversas problemáticas propostas para reflexão. um universo mítico para um conhecimento
racional, constituindo-se, em si mesma, uma
A relação médica num contexto de colaboração autonomização 7. A autonomia adquire o seu
médico-paciente, como pilar do respeito pela verdadeiro significado quando o homem tenta
autonomia enquanto princípio bioético voltado controlar o mundo pela técnica e ciência e
a promover o melhor interesse do doente, bem submetê-lo às finalidades humanas.
como o consentimento livre e esclarecido,
tomado como paradigma legal do respeito por Segundo a ideia de autonomia, todo ser huma-
esse princípio, são outros aspectos éticos da no poderá decidir sobre si mesmo, pareça justa
relação médica – encarada neste estudo sob a ou não a sua conduta, salvaguardando-se que
perspectiva do envolvimento interpares. do pensar ou agir diferentes não resultem
danos para outras pessoas, ainda que possa
Princípio da autonomia e o seu haver prejuízo para a própria 6, desde que não
enquadramento teórico coloque a pessoa em risco iminente de morte.
Kant, na sua Fundamentação da metafísica dos
O termo autonomia significa autodetermina- costumes, considera que a liberdade é a base do
ção, regulação dos interesses próprios e indepen- direito e da ética 8. A autonomia recebe diferen-
dência, excluindo a influência de fatores exterio- tes denominações consoante os vários autores,
res, coação psíquica ou física, e, ainda, incapaci- desde o respeito à pessoa até o consentimento.

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Portanto, não pode ser entendida exclusiva- os pudesse orientar em situações concretas,
mente como a autodeterminação de um indi- que funcionaria como uma metodologia capaz
víduo, pois a inclusão obrigatória do outro na de lidar com situações dilemáticas no campo
questão da autonomia traz uma nova entidade da bioética. Esse paradigma, constituído pela
para a discussão que alia a ação individual ao formulação dos referidos princípios interpreta-
componente social. Ser autônomo é ter o dos à luz de duas teorias – o utilitarismo e a
direito de se autodeterminar, mas igualmente deontologia prima facie – admite exceções em
de respeitar o mesmo direito nos outros. determinadas circunstâncias 10.

Uma das razões para que o princípio da auto- Desde o Código de Nuremberg que o conceito
nomia ganhasse o destaque que atualmente lhe de dignidade e respeito pelo homem se encon-
é concedido decorre da importância da obra tra ligado à ideia de autonomia do sujeito. As
Principles of bioemedical ethics 9, na qual Tom contribuições filosóficas que mais concorre-
Beauchamp e James Childress delineiam quatro ram para a reflexão ética nasceram justamen-
princípios para orientar a ação ética na prática te dos movimentos de defesa dos direitos
profissional: a beneficência, a não maleficência, a humanos e, assim, foram tomando forma os
autonomia e a justiça. Tais princípios encontram princípios fundamentais da ética contemporâ-
suas raízes na história da filosofia ou na tradi- nea: beneficência, não maleficência, autono-
ção da ética médica, a partir das quais ganham mia, justiça e equidade, aos quais hodierna-
a sua justificação. Segundo o delineado por mente se acrescentou o da vulnerabilidade.
esses autores, os quatro princípios não obede-
cem a qualquer disposição hierárquica e são A consagração da dignidade do ser humano e
válidos igualmente em situação de conflito, do seu direito à liberdade inscrevem o concei-
embora o da autonomia pareça ter a preferência to de autonomia na práxis diária das socieda-
dos defensores da teoria principialista. des contemporâneas. Por isso, o princípio da
autonomia, denominação pela qual é conheci-
A par dos outros princípios norteadores da do o princípio de respeito às pessoas, exige
ação que se quer boa, o princípio da autono- que se aceite que elas se autogovernem, isto é,
mia tornou-se nas últimas décadas um dos sejam autônomas nas suas escolhas e atos,
principais esteios conceituais da ética aplicada, embora dentro do respeito integral à ideia
sendo utilizado em oposição ao paternalismo autonomista, apreendida como conceito de
médico inerente à prática clínica clássica, e respeito pelo outro 11.
propõe nova dinâmica na relação médico-pa-
ciente, até então de caráter paternalista. Com A doutrina da dignidade humana está subja-
o principialismo, Beauchamp e Childress ela- cente ao princípio da autonomia da pessoa,
boraram uma espécie de paradigma ético dirigi- que é capaz de deliberar sobre os seus objeti-
do aos profissionais da área da saúde, visando vos pessoais e agir de tal modo que será tanto
fornecer um referencial prático-conceitual que mais autônoma quanto mais e melhor for

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capaz de se autodeterminar em termos inte- biomédicas em geral e em particular sobre os
lectuais e afetivos, de modo voluntário. Em direitos da pessoa humana, permitindo que
1948, a Declaração Universal dos Direitos pessoas com motivações ideológicas diferentes
Humanos (Organização das Nações Unidas e de diferentes instruções de seus governos
– ONU), na sequência do Código de Nurem- chegassem a um juízo ético comum acerca de
berg (1947), inclui os vários direitos que situações concretas. A Lei 12/2005 confere
visam à autonomia e liberdade da pessoa aos médicos papel de maior destaque nas várias
humana, e sua elaboração é decorrente do etapas do processo de informação em saúde e
conhecimento das experiências realizadas considera o consentimento informado (ou, no
em seres humanos vulneráveis durante a Brasil, livre e esclarecido) como a expressão do
Segunda Guerra Mundial. Sucederam-lhe direito de autodeterminação do indivíduo, dei-
vários outros códigos, com vistas a uma xando lugar para o direito a o não ser.
maior adequação prática, dadas as demasia-
do rígidas disposições legais do Código de Esse conjunto de pressupostos éticos e nor-
Nuremberg, mal adaptadas à realidade da mativas legais requer que, em Portugal, o
investigação. A respeito, a Declaração de médico respeite a vontade do doente ou de seu
Helsinque (Associação Médica Mundial – representante legal, seus valores morais e
AMM, 1964) contribuiu para que a experi- crenças religiosas, reconhecendo o domínio
mentação em seres humanos viesse a obede- do mesmo sobre a própria vida, exemplificado
cer a regras e critérios éticos específicos, que pelas Testemunhas de Jeová, bem como o res-
partiam do pressuposto da autonomia das peito à sua intimidade, limitando a intromis-
pessoas investigadas. são de outros no mundo da pessoa que estiver
em tratamento. Tal como concebe a legislação
A Declaração Universal sobre Bioética e Direi- portuguesa, a intervenção do médico sobre o
tos Humanos 12 (Unesco, 2005) veio reforçar doente só pode ser admitida se esse último a
a importância do respeito ao princípio da solicitar, seja intervenção médica ou cirúrgi-
autonomia e responsabilidade individual. No ca, mesmo que tal decisão lhe ponha em risco
artigo 5º, reafirma a proteção dos indivíduos a vida. Contudo, naturalmente, nesses pres-
vulneráveis ou incapazes, reconhecendo no supostos se exclui o risco iminente de morte e
artigo 6º o papel do consentimento livre e a autorização para o suicídio. Esse modelo,
esclarecido, como expressão prática do princí- com grande aplicação clínica nos países onde
pio da autonomia. a bioética mais se tem desenvolvido e resulta-
dos positivos no referente ao respeito pela dig-
Em Portugal foi adotada uma legislação refe- nidade da pessoa individual, parece legitimar
rente à prática da biomedicina, de acordo com quase que exclusivamente a prática desejada
a Convenção do Conselho da Europa (CCE), pelo doente, o que pode criar situações incoe-
estabelecendo mediante normas específicas os rentes tanto do ponto de vista moral quanto
procedimentos adequados às principais áreas da prática médica.

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Patrão-Neves afirma que (...) uma doutrina cen- pilar estrutural da dignidade da pessoa doente
trada na hegemonia do princípio da autonomia e do seu direito à autorrealização individual.
não salvaguarda espaço para a emergência de Assim, o princípio da autonomia passou a ser
outros valores indispensáveis para a realização atribuído de modo geral ao doente e o da
pessoal do homem (...) como são os de relação beneficência ao médico, sendo o da justiça
entre o profissional de saúde e o seu paciente, postulado por terceiros para além dos direta-
sendo principalmente nesse âmbito temático mente interessados (doente, médico ou outros
que outras teorias morais virão a se desenvol- profissionais de saúde) – a exemplo das socie-
ver 13. Em paralelo, o tipo clássico da relação dades criadas para a defesa dos direitos dos
médico-paciente assentou durante longos anos doentes, cujas atividades e reclamações exer-
no modelo paternalista cujas raízes se funda- cem influência notável na opinião pública 15.
mentam na medicina hipocrática, representan-
do-se por meio do princípio da beneficência Apesar da reivindicação da autonomia do
como o suporte e privilégio da virtude médica. doente ser mais presente nos países cuja tradi-
ção bioética é prática comum, o paternalismo
O respeito pelo princípio da autonomia pas- médico parece manter-se institucionalizado em
sou a conferir ao doente o direito de compar- Portugal, principalmente nas consultas dos ser-
tilhar com o seu médico a responsabilidade na viços hospitalares de certas especialidades mais
tomada das decisões clínicas, superando-se a demandadas, nas quais a relação procura/oferta
visão paternalista do médico na sua relação é desequilibrada. Esses serviços, muito solicita-
com o doente. Para Callahan, citado por Cas- dos pela população, dos quais a oftalmologia é
cais 14, o movimento da autonomia terá corres- exemplo, revelam-se aqueles nos quais o aspec-
pondido à necessidade de proteger os vulnerá- to educativo, de que a informação clínica deve-
veis, dando poder aos competentes, criando se revestir, nem sempre está presente.
maior equilíbrio entre médico e doente.
Adicionalmente, considerando-se as profun-
O desenvolvimento da investigação biomédica das injustiças sociais que se aprofundam na
e tecnológica, bem como a aplicação de bio- nossa sociedade, onde diferenças culturais,
tecnologias ao homem no domínio das ciên- econômicas e até linguísticas resultantes da
cias médicas, permitiram a transformação de imigração crescente em Portugal são uma rea-
doenças fatais em crônicas, o que também lidade, a prática do respeito pela autonomia
alterou o relacionamento classicamente pater- torna-se por vezes antagônica da própria
nalista do médico com o seu doente. Esse beneficência, podendo por si só influenciar as
binômio relacional para o qual contribuíram decisões éticas que coloquem em questão a
igualmente a divulgação científica e a opinião dignidade da pessoa humana, a qual deverá
pública tomou novas características, aceitando ser preservada como valor bioético essencial.
o médico como corolário da autonomia o con- O próprio ambiente hospitalar torna restrito
sentimento informado (ou livre e esclarecido), o entendimento das indicações médicas na

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maioria das situações. Impessoal e limitador, físicos/psíquicos, situações culturais ou eco-
o hospital suprime a presença de familiares, nômicas, mas vistas segundo uma perspectiva
os quais têm se revelado capazes de contribuir capaz de encarar o ser humano como inde-
para uma melhor recepção da comunicação/ pendente do julgamento de terceiros.
informação clínica pelos doentes que são, em
quantidade significativa, idosos e iletrados. Desse modo, qualquer um de nós poderá sen-
tir a importância de exercer algum tipo de
O desenvolvimento tecnológico pode igual- autodeterminação sobre nossa saúde. Apesar
mente distanciar o médico do seu doente, de as influências religiosas, culturais ou mesmo
levando ainda a que se estabeleçam problemas uma patologia incapacitante constituírem
de justiça na distribuição dos recursos econô- obstáculos à autonomia, a verdade é que cada
micos para a saúde, pela menor acessibilidade um de nós, em qualquer situação, obedece às
dos doentes de menores recursos ou de maior mais variadas influências sobre a própria con-
debilidade. O surgimento das equipes multi- duta e por isso, considerando a realidade indi-
disciplinares permite a dissolução da respon- vidual, a autonomia deverá ser entendida
sabilidade do médico no compromisso com o como um princípio a desenvolver – e por esse
doente, limitando a confidencialidade, o que motivo tomada como um princípio relativo.
poderá, em última análise, levar à desumani-
zação do próprio ato médico, justificando-se A rejeição da importância do princípio da
então, nessas circunstâncias, o paternalismo autonomia em termos absolutos poderá pare-
médico como forma de beneficiar o paciente. cer uma negação à cultura dos direitos huma-
nos. Não se pode esquecer, no entanto, o
A autonomia não pode ser encarada como modelo de beneficência e do paternalismo tra-
princípio absoluto de aplicação bioética, obri- dicional nas situações em que o doente, como
gando à necessidade de reflexão. Ao contrá- agente moral, se sinta incapaz de decidir qual
rio, deve ser encarada como um princípio o melhor para a sua saúde, sendo indispensá-
relativo que se procura desenvolver, conside- vel que a decisão médica reflita sempre sobre
rando a especificidade de cada caso. Entende- o seu melhor interesse.
mos que a autonomia é um princípio relativo,
exercida de maneira a contemplar o contexto Por seu turno, em face do principialismo clás-
e a situação do momento da decisão. O res- sico, também o pensamento europeu se colo-
peito associa-se à liberdade do doente e à con- ca numa posição diferente, sendo mais mar-
sideração por suas decisões, se verdadeiramen- cadamente humanista e de alcance comunita-
te autônomas e livres. Além do mais, a auto- rista, visando contribuir fundamentalmente
nomia sofre a influência da personalidade na para o bem comum e não tanto para o bem
capacidade de decisão, tanto de caráter gené- individual. De acordo com Patrão-Neves, a
tico como dependente da existência de doen- preocupação anglo-americana estará mais dirigi-
ças associadas, crônicas ou agudas, traumas da para os microproblemas que afetam os indi-

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víduos, enquanto na Europa Ocidental se aten- na essa disputa entre o médico e o doente, obje-
de preferencialmente a macroproblemas, que tivando que esse consinta ou recuse as atitudes
afetam as relações entre as pessoas e as comu- propostas pelo clínico, só pode derivar desse
nidades em que estas se inserem 16. acordo designado por autonomia, que inclui a
permissão expressa do paciente, consubstancia-
K. Danner Clouser e Bernard Gert, em A cri- da no consentimento informado (ou livre e
tique of principialism 17, apresentam grandes esclarecido). Contudo, a intervenção do médico
críticas à formulação clássica dessa teoria, sobre o doente ou, tomando-se uma perspectiva
considerando os quatro princípios profunda- mais ampla, do profissional de saúde sobre o
mente instrumentais. Estabelecem as dez paciente, em geral não pode legitimar toda a
regras de não fazer mal, para que a bioética prática médica desejada pelo doente, como no
deixe de ser um código puramente normativo, tocante ao iminente risco de morte, frente ao
devendo reger-se por formas de atuação mais qual se faz obrigatória a atuação do médico na
criativas, capazes de ultrapassar um mero tentativa de preservação da vida. O que deve
principialismo puro e cego. A obediência a sempre existir é a procura por uma decisão con-
tais regras sem violar o princípio da autono- textual, em conjunto, procurando-se respeitar
mia contribuiria para a formação do novo as convicções do paciente a partir de uma lógica
tipo de profissional de saúde. beneficente, utilitarista e ética.

A utilização do principialismo adaptado a Nossa experiência hospitalar em Lisboa levou


novas realidades serve, no entanto, de orienta- a considerar esse local como privilegiado para
ção para decisões criteriosas, sendo um mode- colocar questões dilemáticas no campo da
lo deontológico no qual a existência dos qua- bioética, haja vista que o glaucoma, uma das
tro princípios morais para aplicação no domí- principais causas de cegueira no mundo dito
nio da medicina e cuidados de saúde volta-se a civilizado 19, é patologia incapacitante que
contribuir para a promoção das relações entre desafia a prática profissional. Se precocemen-
profissionais de saúde e pacientes 16. Outro te detectada, pode ser em parte controlada,
argumento pertinente encara a inclusão da mediante terapêuticas às quais os doentes
autonomia na relação médico-paciente como deverão aderir. Para isso, torna-se indispensá-
fator de ordem técnica, afirmando que o reco- vel um esclarecimento adequado e essa comu-
nhecimento da autonomia do paciente é um coro- nicação depende da característica da relação
lário da crise do paternalismo (...) tratando-se médico-paciente e do modo como a informa-
antes de uma questão de ordem técnica 18. ção é fornecida – aqui se coloca igualmente a
questão da verdade a transmitir.
O princípio da autonomia exprime o fato de
que para resolver disputas morais numa socie- O recurso a exames complementares cada vez
dade secular e pluralista terá de haver acordo mais sofisticados permite o diagnóstico preco-
entre os participantes nas disputas. Em medici- ce, os quais, no entanto, parecem reduzir o

172 Atitude médica e autonomia do doente vulnerável


doente à condição de objeto, alvo de uma bate- lham em um hospital de nível terciário, insti-
ria de resultados analíticos. Nesse contexto, tuição pública de saúde naquela cidade. Os
revela-se importante a personalização da rela- 42 médicos que aceitaram participar foram
ção médico-paciente e o esclarecimento ade- escolhidos aleatoriamente dentre o universo
quado para que o entendimento da necessidade de 80 profissionais que compõem o quadro do
de tais exames e adesão à terapêutica (dentre serviço de oftalmologia da instituição, cujas
os quais se inclui a própria intervenção cirúr- idades variavam entre 25-70 anos. Constituí-
gica) sejam interiorizados pelo doente. Esse, ram critérios de inclusão na pesquisa a licen-
uma vez informado e esclarecido, poderá con- ciatura em Medicina, ter estado inserido
sentir numa intervenção cirúrgica destinada a numa consulta de glaucoma e a disponibilida-
preservar apenas uma visão muito restrita. de para responder ao inquérito. O período de
levantamento de dados teve a duração de três
Mas não basta assumir esses direitos como meses, durante o ano de 2004.
consignados na Constituição da República
Portuguesa e na Carta dos Direitos e Deveres Realizou-se um levantamento de tipo quantita-
dos Doentes, com repercussão legal em caso tivo, por meio de questionário contendo dez
de descumprimento, tal como prescrevem o perguntas, aplicado por entrevista presencial. O
artigo 8º: direito de aceitar ou recusar o consen- instrumento foi criado pela primeira autora
timento; o artigo 5º: direito à informação; e o deste artigo, sob orientação da segunda e vali-
artigo 6º: direito ao conhecimento sobre a sua dado por dois experts em bioética, orientadores
saúde 4. É necessário conhecê-los e assumi-los do mestrado, o professor dr. João Ribeiro da
na prática clínica. Os casos de idosos e de Silva, à época diretor do Centro de Bioética da
crianças com glaucoma congênito ou juvenil Faculdade de Medicina de Lisboa, e a professo-
sobrepõem à questão do respeito à autonomia ra dra. Heloisa Santos, geneticista e docente do
o problema da vulnerabilidade, dos incapazes mestrado em Bioética na mesma instituição.
para assumir em pleno o direito da autono-
mia, o que acrescenta mais uma perspectiva Conforme prescrito nas normas vigentes em
para reflexão no campo da bioética. Portugal, foi solicitada autorização a cada
entrevistado para a utilização de suas informa-
Método ções, garantidos o anonimato e confidenciali-
dade dos dados. Foi explicado aos participantes
A pesquisa cujos resultados são apresentados o objetivo do estudo e feito o convite para par-
neste trabalho foi empreendida para a produ- ticipação. Além disso, foi solicitada por escrito
ção de dissertação de mestrado em Bioética, – e concedida – a autorização da administra-
pelo Centro de Bioética da Faculdade de ção do hospital onde o estudo foi realizado,
Medicina de Lisboa, Portugal. Com esse obje- bem como do diretor do setor de oftalmologia,
tivo, foi realizado um estudo transversal de em documento onde constam os objetivos e
amostra representativa de médicos que traba- critérios que basearam a seleção da amostra.

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A amostra selecionada na consulta de glauco- brada, baseada na escolha aleatória dos ele-
ma foi distribuída por três grupos de acordo mentos dos grupos. Na representação das
com a idade: Grupo 1, de 25 a 39; Grupo 2, características demográficas da amostra existe
de 40 a 54; e Grupo 3, de 55 a 70 anos. Tal no Grupo 3 a predominância do sexo mascu-
estratificação visava detectar diferenças nas lino, havendo nos dois outros grupos um
concepções dos profissionais, consideradas na equilíbrio entre os sexos. A relação da média
hipótese do estudo como decorrentes da for- de idades por grupo foi de 30,7 anos para o
mação profissional e das transformações da Grupo 1; 49,1 para o Grupo 2 e 60,7 para o
prática médica durante o período compreen- Grupo 3. Ao se comparar os três grupos entre
dido pelo intervalo etário. si (χ2) constata-se haver diferença estatistica-
mente significativa (p<0,05) com o teste não
As respostas constituíram o material de aná- paramétrico realizado (frequências a %), rela-
lise, realizada por análise descritiva e compa- tivamente às seguintes indagações: 1) Como
rativa de todas as variáveis nos três grupos, recebe o doente depois desse ouvir a opinião
sendo apresentada a frequência absoluta e [de outro profissional]?; 2) Atitude no escla-
relativa para as variáveis categoriais, a média, recimento do doente; 3) Como reage em face
a mediana, o desvio padrão, bem como as da recusa terapêutica?; 4) Teve aulas de deon-
máximas e os mínimos para as variáveis tologia médica?
numéricas relativas à idade. O tratamento
estatístico dos dados foi efetuado pelo progra- No primeiro conjunto de respostas, referente
ma Statistical Package for the Social Sciences à questão III (p=0,029), os médicos perten-
(SPSS), utilizando o teste de Pearson χ2 centes ao Grupo 1 afirmam que a boa recep-
(qui-quadrado), que trabalha percentagens e tividade dependerá de o médico ser ou não
não médias. Para verificar a existência de informado. Os do Grupo 2, pelo contrário,
diferenças estatísticas entre as variáveis cate- recebem bem essa atitude e os do Grupo 3
goriais foram calculados os intervalos de con- aceitam mal o recurso à segunda opinião,
fiança a 95% para as variáveis numéricas afirmando que mesmo aceitando o doente
(idade) e ordinal (sexo), em relação às quais consideram ter havido quebra de confiança ao
foi efetuada uma análise estatística descriti- procurar uma segunda opinião profissional
va. Foi realizado um estudo estatístico não sobre o problema de saúde. O segundo con-
paramétrico, considerando-se que a distribui- junto de respostas refere-se à questão VII
ção da amostra por idades não obedeceu a (p=0,030), ou seja, à atitude no esclareci-
uma curva normal. mento do doente. Para o Grupo 1 tal atitude
faz parte de um método de trabalho como
Resultados qualquer outro; para o Grupo 2 é essencial-
mente uma questão de respeito pelo doente;
Dos inquéritos realizados verificou-se a distri- para o Grupo 3 esse procedimento é encarado
buição normal, com uma população equili- como uma questão de educação.

174 Atitude médica e autonomia do doente vulnerável


Tabela 1. Grupo 1 – Atitude de esclarecimento do doente na relação médico-paciente
Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
É uma questão de respeito e
2 14,3 14,3 14,3
consideração pelo doente
É um método de trabalho
11 78,6 78,6 92,9
como qualquer ato médico
Todas as anteriores 1 7,1 7,1 100,0
Total 14 100,0 100,0

Tabela 2. Grupo 2 – Atitude de esclarecimento do doente na relação médico-paciente


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Faz parte do caráter do mé-
1 6,7 6,7 6,7
dico
É uma questão de respeito e
4 26,7 26,7 33,3
consideração pelo doente
É um método de trabalho
6 40,0 40,0 73,3
como qualquer ato médico
Todas as anteriores 3 20,0 20,0 93,3
As duas primeiras hipóteses 1 6,7 6,7 100,0
Total 15 100,0 100,0

Tabela 3. Grupo 3 – Atitude de esclarecimento do doente na relação médico-paciente


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Faz parte do caráter do mé-
3 23,1 23,1 23,1
dico
É uma questão de educação 2 15,4 15,4 38,5
É uma questão de respeito e
1 7,7 7,7 46,2
consideração pelo doente
É um método de trabalho
3 23,1 23,1 69,2
como qualquer ato médico
Todas as anteriores 1 7,7 7,7 76,9
As duas primeiras hipóteses 3 23,1 23,1 100,0
Total 13 100,0 100,0

Revista Bioética 2010; 18 (1): 165 - 183 175


No tocante à questão VIII (p=0,005), que Grupo 2 reage bem, mas esclarece sobre os
diz respeito a como o médico reage frente risco da recusa; e o Grupo 3 reage mal e
à recusa do doente à terapêutica, o Grupo tenta convencer o doente a obedecer à
1 esclarece sobre os riscos da recusa; o indicação médica.

Tabela 4. Grupo 1– Como reage à recusa terapêutica pelo doente?


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Bem 4 28,6 28,6 28,6
Tenta convencê-lo de que está er-
3 21,4 21,4 50,0
rado e deve obedecer ao médico
Esclarece-o sobre os riscos da
7 50,0 50,0 100,0
recusa
Total 14 100,0 100,0

Tabela 5. Grupo 2 – Como reage à recusa terapêutica pelo doente?


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Bem 6 40,0 40,0 40,0
Mal, rejeita observá-lo 2 13,3 13,3 53,3
Tenta convencê-lo de que está
errado e deve obedecer ao mé- 2 13,3 13,3 66,7
dico
Esclarece-o sobre os riscos da
5 33,3 33,3 100,0
recusa
Total 15 100,0 100,0

Tabela 6. Grupo 3 – Como reage à recusa terapêutica pelo doente?


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Bem 1 7,7 7,7 7,7
Mal, rejeita observá-lo 7 53,8 53,8 61,5
Tenta convencê-lo de que está er-
4 30,8 30,8 92,3
rado e deve obedecer ao médico
Considera-o autônomo e
1 7,7 7,7 100,0
dono de sua decisão
Total 13 100,0 100,0

176 Atitude médica e autonomia do doente vulnerável


Por fim, no último grupo de respostas foi tude no esclarecimento do doente; VIII-
constatada uma diferença estatisticamente Como reage à recusa terapêutica?; IX-Teve
significativa na questão IX (p=0,013): o aulas de deontologia médica?
Grupo 1 afirma ter tido aulas de bioética ou
deontologia médica na sua formação durante No que tange à questão Va (p=0,034), os
o curso de medicina; o Grupo 2 refere não ter médicos do Grupo 1 consideravam que o
tido frequência ou contato com as referidas documento destinado a obter o consentimen-
aulas, mas debates sobre temas relacionados à to do doente deveria incluir uma informação
relação médico-paciente; e o Grupo 3 afirma completa, a mais completa possível, incluindo
que não teve aulas de deontologia, embora todas as complicações que pudessem advir,
tenha tido contato com o assunto nas aulas enquanto para o Grupo 3 o acordo verbal foi a
de medicina legal. Na comparação entre gru- opção selecionada. No que diz respeito à ques-
pos verificou-se diferenças estatisticamente tão Vb (p=0,025), referente ao motivo para
significativas entre os grupos 1 e 3, isto é, assinar o documento, a resposta que em ter-
respectivamente, nos médicos com até 39 mos percentuais obteve maiores resultados
anos e nos com idade superior a 55 (p<0,05), ocorreu no Grupo 1, a medicina defensiva,
relacionadas às seguintes questões: Va- Como seguida de imediato para salvaguarda de ambas
deve ser feito o consentimento informado?; as partes, enquanto que no Grupo 3 domina
Vb- Por que assinar o documento?; VII- Ati- a mera formalidade e por ser o mais correto.

Tabela 7. Grupo 1 – Por que o doente deverá assinar um documento?


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Por mera formalidade 2 14,3 14,3 14,3
Medicina defensiva e proteção
5 35,7 35,7 50,0
para o técnico
Para salvaguarda de ambas as partes 7 50,0 50,0 100,0
Total 14 100,0 100,0

Tabela 8. Grupo 3 – Por que o doente deverá assinar um documento?


Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Por mera formalidade 5 38,5 38,5 38,5
Por ser o mais correto 4 30,8 30,8 69,2
Medicina defensiva e proteção para
2 15,4 15,4 84,6
o técnico
Para salvaguarda de ambas as partes 2 15,4 15,4 100,0
Total 13 100,0 100,0

Revista Bioética 2010; 18 (1): 165 - 183 177


Quanto à questão VII (p=0,024), houve no A maneira como o médico informa o doente
Grupo 1 manifesta adesão à resposta que con- sobre sua situação clínica (questão IV) não
sidera a atitude de esclarecimento ao doente apresentou resultados estatisticamente signi-
como metodologia profissional de praxe, ficativos entre o Grupo 1 e os demais, quando
enquanto no Grupo 3 foi considerada como comparados dois a dois. Na análise da distri-
manifestação de boa educação ou relacionada buição gráfica das respostas é possível consta-
ao caráter do médico. Em resposta à questão tar uma inversão nas opções escolhidas como
VIII (p=0,002), os médicos do Grupo 1 de tipo informal choice no grupo de médicos
esclarecem o doente de modo protocolar sobre mais jovens, inexistente no Grupo 3. No
os riscos da recusa à terapêutica. Em contra- Grupo 2 existe maior percentagem de respos-
partida, a mesma atitude do doente é mal tas em que o médico apresenta a proposta que
aceita pelos médicos do Grupo 3. acha adequada, discutindo-a com o doente em
busca da melhor solução – o qual decide. Com
As aulas de deontologia médica, pertinentes à relação a essa questão, os grupos 1 e 2 apre-
questão IX (p=0,012), foram uma constante sentam uma inversão entre as respostas 1 e 6:
nos médicos do Grupo 1, contrariamente aos no Grupo 1 a opção ‘atitude informal choice’
do Grupo 3, que não as tiveram ou apenas as (resposta 6) aumenta percentualmente, mas
frequentaram em disciplinas específicas – as respostas 1 e 2 são escassas no Grupo 2,
como a medicina legal, por exemplo. O Grupo que apresenta maior percentagem de respostas
2 parece, assim, localizar-se entre os dois com proposta terapêutica feita pelo médico
outros. Mas existe, para além dos resultados (resposta 5) e discutida em conjunto com o
estatisticamente significativos na comparação doente, que finalmente decide. Numa amos-
entre os três grupos, alguns itens que conside- tra hipotética mais ampla acreditamos que
ramos dignos de nota e que podem conter um podem ser obtidos resultados estatisticamente
caráter indicativo. significativos com relação a esse item.

Tabela 9. Grupo 1 – De que maneira informa o doente ante uma situação clínica?
Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Sucintamente 1 7,1 7,1 7,1

O indispensável 2 14,3 14,3 21,4


Propõe terapêutica, informa,
7 50,0 50,0 71,4
discute e o doente decide
Atitude informal choice 4 28,6 28,6 100,0

Total 14 100,0 100,0

178 Atitude médica e autonomia do doente vulnerável


Tabela 10. Grupo 2 – De que maneira informa o doente ante uma situação clínica?
Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Sucintamente 2 13,3 13,3 13,3
O indispensável 3 20,0 20,0 33,3
Propõe terapêutica, informa,
9 60,0 60,0 93,3
discute e o doente decide
Atitude informal choice 1 6,7 6,7 100,0
Total 15 100,0 100,0

Tabela 11. Grupo 3 – De que maneira informa o doente ante uma situação clínica?
Validade Percentual
Validade Frequência %
percentual cumulativo
Sucintamente 4 30,8 30,8 30,8
O indispensável 2 15,4 15,4 46,2
Propõe terapêutica, informa,
7 53,8 53,8 100,0
discute e o doente decide
Atitude informal choice 0 0 0 100,0
Total 13 100,0 100,0

Discussão ções – período em que o médico sempre


enfrentou questões sobre o bom para os doen-
A expansão da bioética consegue abarcar os tes. Dadas as interrogações suscitadas pelas
dilemas éticos mais característicos das socie- novas tecnologias diagnósticas e modernas
dades modernas, dentre os quais se incluem intervenções terapêuticas, hoje essas pergun-
os de foro médico. A antiga ética hipocrática tas podem ameaçar a confiança da relação
em que o médico é quem sabe foi sendo subs- médico-paciente.
tituída por outras concepções, atitudes ou
normas, com mais e diferentes princípios, Os resultados deste estudo reforçam a ideia de
capazes de dar início à bioética moderna. A que as atitudes dos médicos têm acompanha-
combinação da atenção da mídia com o inte- do idêntica evolução. No âmbito da oftalmo-
resse público também fez da bioética uma logia escolhemos uma área de atividade médi-
disciplina para a política, que se sente obriga- ca de maior vulnerabilidade, como o glauco-
da a criar estatutos de defesa do doente e seus ma, doença socialmente encarada como estig-
direitos. A bioética contemporânea acompa- ma. Verificamos que os três grupos de médicos
nha a evolução da profissão médica há gera- investigados evidenciam diferentes modos de

Revista Bioética 2010; 18 (1): 165 - 183 179


encarar a autonomia do doente glaucomato- No Grupo 1 dominou o modelo de atuação
so, constituindo três conjuntos socioprofis- de tipo escolha independente, no qual o papel
sionais distintos. do médico implica em expor ao doente todos
os fatos e alternativas de modo isento,
Hoje, com todas as pressões econômicas sofri- atuando em conformidade com as suas deci-
das pelas instituições, os médicos estão cons- sões: o esclarecimento ao doente é um méto-
cientes das expectativas dos doentes e das difi- do de trabalho.
culdades para praticar eticamente a medicina.
Grande parte da bioética contemporânea par- Os médicos do Grupo 2 incluem-se no mode-
tiu de exemplos com implicações legais, daí lo de autonomia melhorada 20, no qual o diálo-
ser necessário compreender o enquadramento go médico-paciente é encorajado, bem como
legal da bioética com respeito à prática médi- a troca de ideias e conhecimento. Não há ati-
ca, pois é a ignorância médica que leva algu- tude padronizada, mas adequação caso a caso,
mas decisões médicas aos tribunais. Uma ao encontro das expectativas do doente: o ato
nova cultura no desenvolvimento da relação de esclarecimento ao doente tem o papel de res-
clínica, exigindo maior respeito para com o peito pelo doente, fomentando a orientação e
direito das pessoas à sua autonomia, está ins- a gestão de eventuais desacordos. Favorece o
crita no atual comportamento da classe médi- direito à segunda opinião.
ca, consubstanciada no assumir o consenti-
mento informado (ou livre e esclarecido) Os profissionais do Grupo 3, ante os direitos à
como símbolo garantidor dessa autonomia informação, a pedir outra opinião, à recusa
moral do doente. Mas, mesmo assim, o res- terapêutica e ao consentimento informado (ou
peito pelo princípio da autonomia não está livre e esclarecido), revelaram fragilidade, expri-
isento de dificuldades. mindo a predominância hierárquica entre o
médico e o doente: o ato de esclarecimento ao
O novo campo de reflexão e ação da bioética doente depende do caráter do técnico, que escla-
buscará responder a essas dificuldades, consti- rece o essencial por questão de cortesia. Esse
tuindo este documento uma apreciação de modelo de informação paternalista é centrado
sensibilidades. Encaramos os resultados como no médico, conferindo-lhe o papel de guardião
uma ecografia das atitudes e da personalidade da saúde do doente, que pode dar-lhe as infor-
social de cada um dos grupos estudados, con- mações que entender serem necessárias.
forme ficou estatisticamente demonstrado. A
evolução da ética reflete-se nas três faixas etá- Considerações finais
rias dos médicos avaliados, variável que per-
mite comparar três épocas e grupos de homens Do exposto ficam algumas reflexões: o princí-
e mulheres, com formação e sob influências pio da autonomia sobrepõe-se hoje ao tradi-
diferenciadas, traduzidas em um perfil nas cional paternalismo médico, cujas virtualida-
respostas encontradas. des recomeçam a ser reconhecidas, após terem

180 Atitude médica e autonomia do doente vulnerável


sido consideradas quase um anátema moral. debate para a definição normativa do profissio-
Ele significa independência em relação a con- nalismo médico, no qual todos participem
troles externos e atuação segundo escolha apoiados em seu conhecimento específico, para
própria. O respeito pelo princípio da autono- que os interesses econômicos e políticos não se
mia é uma realidade da prática médica atual, sobreponham à prática médica ética, melhoran-
que decorre da doutrina de respeito pela dig- do, assim, a atmosfera ética nas instituições.
nidade humana, a qual recusa a utilização do Lembramos à conclusão que as contribuições
homem como simples meio. filosóficas para a reflexão ética se fundamenta-
ram nos princípios da Declaração Universal dos
Para atingir o objetivo da autonomia possível Direitos Humanos, transcritos em todas as lín-
faz-se necessária a comunicação entre médicos guas do mundo, em colunas dispersas numa
de várias formações pedagógicas e cognitivas, rua de Nuremberg, justamente para nos recor-
pois da simbiose de diversas concepções e for- dar que tais princípios resultantes dos movi-
mas de entendimento resultará, porventura, mentos de defesa dos direitos humanos deverão
uma verdadeira práxis ética. Sugerimos amplo integrar a cultura básica do ser humano.

Resumen

Actitud médica y autonomía del paciente vulnerable

Este artículo presenta los resultados de la búsqueda involucrando la muestra de 42 médicos del
sector de oftalmología de un hospital terciario en Portugal. Se realizaron cuestionarios con 10
preguntas, destinado a evaluar las actitudes de tres grupos de médicos de edades y formaciones
pedagógicas diferentes, en relación a la autonomía del paciente glaucomatoso. Los resultados
fueron analizados indicando la correlación descriptiva a través del test de Pearson χ2. Se aprecian
tres actitudes diferentes con significado estadístico (valor de p <0,05), considerando así la
existencia de tres personalidades médicas, correspondientes al grupo etario. La formalización de
la práctica médica a medida que la edad disminuye (medicina defensiva), caracterizando al grupo
1. El respeto por el enfermo dominó en el grupo 2. Ha prevalecido en el grupo tres la tendencia
para la medicina paternalista, dónde las informaciones al paciente son resultado de la educación
y el carácter del médico. Concluyendo, la conducta de los médicos evidencia el momento en que
iniciaron y desarrollaron su profesión, la cultura médica y su formación en bioética.

Palabras-clave: Autonomía profesional. Autonomía personal. Bioética. Oftalmología.


Glaucoma.

Revista Bioética 2010; 18 (1): 165 - 183 181


Abstract

Medical attitude and vulnerable patient’s autonomy

This article presents the results of a research done involving samples of 42 doctors from an
ophthalmology´s service of a tertiary Hospital in Portugal. An inquiry with ten questions was
applied, in order to evaluate three groups of doctors with different ages and pedagogical
background, regarding the autonomy of the patient with glaucoma. The information was
analyzed indicating the descriptive correlation, using the test of Pearson χ2. The results show
three different medical attitudes, with different statistical meaning (value of p<0,05), allowing
to consider the existence of three doctor’s patterns, regarding their age group. The formalization
of medical practices at younger age (defensive medicine) characterized the first Group. The
respect for the patient is a characteristic of the second Group. Paternalist medicine remains
evident in the third Group, where the elucidation depends of the doctor’s education and
character. It conclude that the attitude of the doctors is influenced by the time they started and
developed their medical activity, the predominant medical’s culture and the bioethics’
information.

Key words: Professional autonomy. Personal autonomy. Bioethics. Ophthalmology. Glaucoma.

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182 Atitude médica e autonomia do doente vulnerável


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Recebido: 25.9.2009 Aprovado: 26.3.2010 Aprovação final: 7.4.2010

Contatos

Leonor Duarte Almeida – leonorduartealmeida@gmail.com


Maria do Céu Machado – machadomariaceu@gmail.com

Leonor Duarte Almeida – Av. Manuel da Maia 42, 4º dto 1000-203. Lisboa, Portugal.

Revista Bioética 2010; 18 (1): 165 - 183 183

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