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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Marcas transgeracionais e o poder do lugar de fala

As marcas transgeracionais, conforme discutido por Stephen Frosh (2018), referem-se aos traumas que
são intensamente vivenciados por uma geração e continuam a ter efeitos nas gerações seguintes. A partir deste
contexto, é possível identificar a influência de uma voz interna que não cessa de se fazer presente, impedindo-
nos de prosseguir tranquilamente em nossas trajetórias. Tais vozes perturbadoras nos assombram e exercem
forte influência sobre nós, tornando-se elementos indeléveis em nossa psique.
Posto isso, nascida no Brasil em uma década em que a discussão sobre as assombrações transgeracionais
se intensifica, torna-se possível identificar minha posição dentro das estruturas de poder, que refletem como a
sociedade está organizada em termos de poder e influência, levando em consideração fatores como minha raça,
classe, gênero e religião. Identificada como uma pessoa branca, ao longo de minha vida, pude constatar a
presença de lógicas raciais e coloniais em nossa sociedade, o que ilustra o conceito de transmissões
transgeracionais, conforme discutido por Frosh (2018). Esse conceito nos alerta para o retorno de eventos ou
figuras do passado que ressurgem para perpetuar a violência social reprimida e gerar injustiças, refletindo a
presença constante dessas assombrações em nosso cotidiano.
Com base nisso, torna-se possível observar que, em razão da minha cor, tive e continuo tendo privilégios
diversos em relação às pessoas negras. Todas as histórias que aprendi na escola, por exemplo, têm os brancos
como protagonistas; os padrões de beleza sempre enaltecem características que correspondem à minha
aparência; quando conquisto um emprego de qualidade, não preciso me preocupar com a possibilidade de ser
questionada se obtive a posição apenas para cumprir cotas; não sofro a preocupação de que eu ou minha família
possam ser vítimas dos alarmantes índices de homicídios que afetam, em sua maioria, pessoas negras no Brasil;
e tenho a certeza de receber um salário igual ao da minha colega branca, sem a possibilidade de ser remunerada
com metade do que ela ganha. Esses são apenas alguns exemplos que evidenciam como, em função de minhas
assombrações, ocupo uma posição privilegiada, decorrente das raízes do colonialismo e da escravidão que
perpetuaram a ideia de superioridade dos brancos, proprietários dos engenhos, em relação aos negros,
escravizados.
Além disso, a partir do que foi apresentado anteriormente, constata-se como os olhares alheios afetam
as pessoas de maneiras distintas, com base em sua etnia. Conforme exposto por Frosh, sabemos que algo é
transmitido entre as pessoas e que herdamos material inconsciente de outros, sendo necessário encontrar nossas
próprias formas de lidar com isso. No caso dos negros, experimentam um processo de despossessão no qual o
olhar do branco se revela opressivo e tem como finalidade subjugá-los, de modo a retirá-los de sua própria
corporeidade, para fazê-los coincidir com a fantasia agressiva que a cultura elabora acerca deles. A título de
exemplo, presenciei uma afirmação proferida por uma mulher branca que, ao referir-se a um casal formado por
um homem branco e uma mulher negra, declarou: "Além de ser esquisito, ele está casado com uma negra".
Nessa expressão, pode-se observar como seu olhar se fundamenta em uma transmissão de ódio, dominação e
destrutividade, retirando a humanidade da mulher negra e considerando-a como um objeto agressivo que se
insere em nossa sociedade.
Com base no exposto, é notável que, diante da posição social de privilégio que ocupo, tenho a
responsabilidade de assumir ações não apenas do meu grupo no passado, mas também no presente, a fim de
promover a transformação social. É essencial que ouçamos e discutamos as diferentes formas de fantasmas que
assombram cada um de nós e como elas afetam positiva ou negativamente a vida de cada indivíduo, para que
possamos seguir em frente de forma consciente e evitar que a repetição ocorra no futuro. Conforme Djamila
Ribeiro aborda em seu livro "O que é lugar de Fala" (2017), como mulher branca, tenho a obrigação de falar da
posição do opressor, deixando de lado a neutralidade e retirando o branco do universal. Isso implica em
desconstruir minha própria branquitude e encontrar formas ativas de responsabilizar aqueles que são
responsáveis por essa opressão.
Considerando as reflexões apresentadas por Djamila Ribeiro (2017), é fundamental não confundir
representatividade com lugar de fala. O opressor, representado pelo homem branco cisgênero, não deve se
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apropriar do discurso das pessoas negras para falar em seu nome ou determinar a posição que elas ocupam na
sociedade. Em vez disso, deve assumir uma postura ética de transformação e mudança a partir de seu próprio
lugar de fala, reconhecendo seus privilégios e trabalhando ativamente para desmantelar as estruturas de poder
que perpetuam a desigualdade e a injustiça. Dessa forma, as relações sociais podem se tornar espaços críticos
em que o universal se engaja de forma consciente e responsável na luta contra a opressão.
Para mais, ainda no âmbito racial, é importante ressaltar que sou praticante de uma religião de matriz
africana, a Umbanda. Recordo-me de que, durante a minha infância, algumas vezes sentia vergonha de falar
sobre a minha religião, e quando questionada, costumava responder que era espírita ou católica. Na época, eu
não compreendia a razão desse sentimento, mas à medida que cresci e comecei a estudar sobre o assunto, percebi
que ele vinha do preconceito arraigado na sociedade brasileira em relação a qualquer religião de origem africana.
É como se fosse quase um crime escolher uma religião com raízes africanas, enquanto a opção pelas religiões
de origem europeia, como o catolicismo e o evangelismo, é socialmente aceitável. Hoje, tenho muito orgulho
da minha religião e não hesito em afirmar que ela não se trata de "magia negra" ou "macumba", como muitos
acreditam e julgam erroneamente. Desse modo, podemos considerar um exemplo da segunda forma de
transmissão mencionada por Frosh (2018) em seu texto, que vai além da transmissão intergeracional e ocorre
no presente. Essa transmissão se dá por meio dos preconceitos e estereótipos enraizados na sociedade, os quais
nos impedem de sermos livres para sermos nós mesmos. Mesmo que eu admita publicamente a minha religião,
ainda é necessário enfrentar os preconceitos existentes nos outros, os quais tentam deslegitimar a minha escolha
religiosa.
Apesar do exposto, devo salientar que ocupo uma posição social de privilégio, em que não sou vítima
de violência física ou moral devido à minha escolha religiosa, ao contrário das pessoas negras que
frequentemente enfrentam tais ataques. Lembro-me vividamente de um incidente em 2015, em que uma menina
foi agredida com uma pedra após sair de um local de culto do Candomblé. Embora tenha sentido vergonha pelo
preconceito presente na sociedade, nunca sofri uma violência semelhante devido à minha cor de pele. Esse
pensamento ilustra como as assombrações podem ser consideradas um fenômeno social que afeta a identidade
pessoal e cultural, além de causar danos psicológicos, como explicado por Frosh (2018). As narrativas políticas
frequentemente se tornam assombrações coletivas que agravam a opressão.
Outra marca transgeracional que ainda permeia o sistema atual é a questão de gênero. Durante séculos,
as mulheres foram consideradas como tendo apenas uma função: a de mãe e cuidadora do lar, sendo, portanto,
excluídas de muitos direitos básicos. Ao longo dos anos, muitas mulheres lutaram para alcançar suas liberdades
fundamentais, mas, apesar disso, ainda sofremos violências diárias. Como mulher, eu mesma já vivenciei muitos
episódios de assédio moral ou atos obscenos em espaços públicos, como ônibus ou metrô, simplesmente por ser
mulher. No entanto, é importante ressaltar, como exposto por Djamila (2017), que as questões de raça e gênero
se entrecruzam, surgindo diferentes formas de experimentar as opressões. Assim sendo, como mulher branca,
minha experiência com o patriarcado é diferente daquela vivenciada por mulheres negras.
Enquanto as mulheres brancas eram percebidas como frágeis e dependentes dos homens para
sobreviver, as mulheres negras eram escravizadas e submetidas a todo tipo de trabalho manual para garantir sua
sobrevivência. É importante ressaltar o conceito de "mulhereS", discutido por Djamila (2017), que destaca a
existência de diversos grupos femininos com demandas distintas, o que implica olharmos para além das lutas
gerais e buscar solidariedade com outras lutas. Nesse sentido, é fundamental reconhecer o lugar de fala e não
falar pelas mulheres negras, mas sim trazer suas realidades a partir do lugar que ocupamos para juntas, lutarmos
por uma quebra do silêncio imposto pelo sistema às mulheres e, especialmente, às mulheres negras.
Por fim, ao considerar as obras de Stephen Frosh (2008) e Djamila Ribeiro (2017), bem como minha
própria vivência, fica claro a importância de levar em conta as assombrações que assombram cada um de nós.
Afinal, somente assim poderemos permitir que tais assombrações descansem e, ao mesmo tempo, manter acesa
a memória delas, a fim de evitar sua repetição no futuro. Ademais, é crucial que sejamos capazes de
compreender nossa posição na estrutura de poder, bem como o nosso local de fala, de modo a romper com as
formas de silenciamento que permeiam nosso sistema atual. Dessa forma, podemos desfazer-nos do conceito
equivocado de universalidade do homem branco e cis.

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