Este documento descreve a primeira onda do feminismo, começando no Renascimento e se fortalecendo durante as revoluções liberais do século XVIII. Lideranças femininas como Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges defenderam os direitos das mulheres à educação e participação política. A primeira onda do feminismo lutou principalmente pelo sufrágio feminino e igualdade de direitos civis.
Este documento descreve a primeira onda do feminismo, começando no Renascimento e se fortalecendo durante as revoluções liberais do século XVIII. Lideranças femininas como Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges defenderam os direitos das mulheres à educação e participação política. A primeira onda do feminismo lutou principalmente pelo sufrágio feminino e igualdade de direitos civis.
Este documento descreve a primeira onda do feminismo, começando no Renascimento e se fortalecendo durante as revoluções liberais do século XVIII. Lideranças femininas como Mary Wollstonecraft e Olympe de Gouges defenderam os direitos das mulheres à educação e participação política. A primeira onda do feminismo lutou principalmente pelo sufrágio feminino e igualdade de direitos civis.
Dado que o feminismo não pode ser abordado como uma
ideologia unívoca, suas diversas expressões devem ser diferenciadas através de “ondas” que se vão sucedendo uma atrás da outra através da história, e que levam consigo importantes mudanças político-teóricas em relação a suas predecessoras. De tal sorte que, para fugir dos discursos reducionistas que nos levariam a generalizações perigosas, torna-se necessário repassar rapidamente as principais características destas distintas manifestações do feminismo. Com efeito, o feminismo radical, sobre o qual nós concentraremos nossas críticas aqui, nada tem a ver com outros feminismos que a história registrou e que nós, longe de criticá-los, cremos que representaram progressos sociais necessários. As origens do que podemos chamar a “primeira onda” feminista encontram-se no Renascimento (séculos XV e XVI), o período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna. Mulheres de grande inteligência começam a reclamar o direito de receber educação de maneira equitativa a recebida pelos homens, começam a perceber e a fazer percebido o papel socialmente relegado que a mulher de então possuía. Novos ares intelectuais fazem-se sentir, especialmente na Europa; os clássicos são relidos sem as lentes arquetípicas do mundo medieval. E aí, neste momento da história, são produzidas obras como A cidade das damas de Christine de Pizan, escrita em 1405, e A igualdade dos sexos do sacerdote Poulain de la Barre, publicada em 1671. Entre essas duas obras, Cornelius Agrippa publica a célebre obra Da nobreza e excelência do sexo feminino em 1529. O padre Du Boscq escreve a favor da educação aberta ao público feminino em A mulher honesta. Ao término do século XVII, o filósofo Fontenelle publica suas Conversações sobre a pluralidade dos mundos. À lista se pode acrescentar A noiva perfeita de Antoine Héroët, O discurso douto e sutil de Margarita de Valois, entre outros exemplos destes novos ares intelectuais concentrados no flamejante brado da mulher e pela mulher. Porém, a primeira onda feminista só se expressará com pleno vigor com as novas condições sociais, políticas e econômicas advindas das revoluções de inspiração liberal do século XVIII. Não é de se estranhar que tenha sido assim, considerando o quadro ideológico no qual as revoluções originaram-se e desenvolveram-se, fundado na igualdade natural entre os homens e na liberdade individual. E isto sem deixar de considerar, é claro, a importância do fator econômico: estas revoluções que consigo trouxeram ao mundo o capitalismo liberal criaram novas condições de vida para as mulheres, que passaram a ver diante de si todo um novo universo cheio de possibilidades na vida fora de lar. Este primeiro feminismo surgido das entranhas das revoluções liberais lutara, em termos gerais, pelo acesso à cidadania por parte da mulher: o direito à participação política e o direito de acesso à educação que, até então, estivera reservado aos homens; estas são as demandas que estruturam o discurso do nascente feminismo de caráter liberal. As idéias filosóficas difundidas então são essenciais para este discurso. Voltaire postula a igualdade de mulheres e homens, e chama às primeiras de “o belo sexo”. Diderot disse às mulheres “compadeço-me de vós” e denuncia que ao largo da história “foram tratadas como imbecis”. Montesquieu determina que a mulher tem tudo o que é necessário para poder tomar parte na vida política. Condorcet publica em 1790 o texto Sobre a admissão das mulheres ao direito de cidadania, no qual conclui que os princípios democráticos que foram inaugurados cabem a todos por igual independentemente do sexo. “Por que alguns seres expostos a gravidez e a indisposições passageiras não poderiam exercer direitos que nunca se pensou privar àqueles que têm gota todos os invernos ou que se resfriam facilmente?”, ironiza. É neste contexto que nasceram estas novas demandas, ao compasso das novas idéias, em especial no epicentro das revoluções de inspiração liberal: Inglaterra, França e EUA. Costuma-se tomar como obra fundamental da primeira onda feminista o livro Reivindicação dos direitos da mulher, da inglesa Mary Wollstonecraft, centrado na igualdade de inteligência entre homens e mulheres e em uma reivindicação da educação feminina. Nascida em 1759 e falecida em 1797, Wollstonecraft se destaca como uma das importantes escritoras de seu tempo, apesar de não ter recebido uma educação maior do que a de qualquer criado. Sua carreira como escritora nasce quando é encarregada de escrever Pensamentos acerca da educação das meninas, onde já começa a formar suas idéias em defesa de uma educação que incluísse o sexo feminino, e chega ao auge com o citado Reivindicação dos direitos da mulher, redigido em apenas seis semanas de 1792, no qual advoga pela participação política da mulher, o acesso a cidadania, a independência econômica e a inclusão no sistema educativo. Quem reconhecerá o legado de Wollstonecraft durante boa parte do século XIX na Inglaterra não será, no entanto, uma mulher, mas um homem: John Stuart Mill. Seu livro A sujeição das mulheres, publicado em 1869, é sua obra mais importante nesta matéria, editada não somente em seu país de origem, mas também nos EUA, Austrália, Nova Zelândia, Alemanha, Áustria, Suécia, Itália, Polônia, Rússia, Dinamarca, entre outros países. Neste livro, Mill dá uma forte ênfase na desigualdade perante a lei entre homens e mulheres, criticando especialmente o regime marital de sua época, o qual concedia direitos legais sobre os filhos somente ao pai (nem com a morte do marido a mãe gozava de custódia legal dos filhos), alienava qualquer propriedade que por acaso a esposa tivesse em favor de seu marido, e fazia dela praticamente uma propriedade dele: “A mulher não pode adquirir bens senão para ele; desde o instante em que obtém alguma propriedade, ainda que seja por herança, é para ele ipso facto”[66] escreve John Stuart Mill. Não obstante – é justo sublinhá-lo – o seu trabalho não foi meramente intelectual. Também levou, como deputado da Câmara dos Comuns, estas demandas ao debate político. Assim, propôs (sem êxito) que, no quadro de uma reforma eleitoral que se trabalhava naqueles dias, trocassem a a palavra “homem” por “pessoa”, de modo que pudesse habilitar o voto feminino. Neste cenário, em 1869, a Inglaterra vê nascer a Sociedade Nacional do Sufrágio Feminino, e, em 1903, a União Social e Política Feminina,[67] cujo lema “Voto para as mulheres” – nome também de seu jornal semanal – pressiona o Parlamento para que inclua politicamente as mulheres. O objetivo seria alcançado em 1918, depois de vários anos de muita tensão política e social. Por sua vez, em França, a primeira onda feminista tem sua origem na polêmica revolução de 1789, época em que surge uma manifestação do feminismo da qual pouco se conhece, quando um grupo de mulheres entende que ficaram excluídas da Assembléia Geral criada após a Revolução, e então fazem ouvir suas vozes no chamado “Caderno de Queixas”. Com o avançar da Revolução, a exclusão das mulheres se acentua: em 1793 os revolucionários dissolvem os clubes femininos e estabelecem um norma segundo a qual, por exemplo, não podem reunir-se na rua mais do que cinco mulheres. Em 1795 se proíbe expressamente às mulheres assistirem assembléias políticas. Nas chamadas “codificações napoleônicas” se consagra, entre outras coisas, a perpétua menoridade das mulheres. O sistema educacional estatal nascente exclui a mulher do nível médio e superior, mesmo que sua educação primária se declare desejável. Um dado dá cor a toda a época: um dos grupos mais radicais da Revolução Francesa, “Os Iguais”, traz a lume um panfleto intitulado Projeto de lei que proíba às mulheres de aprenderem a ler. O mesmíssimo Jean-Jacques Rousseau, cujo pensamento influenciou de maneira determinante a Revolução Francesa, escreve contra a inclusão educacional e política da mulher no Emílio (é precisamente a este livro que Wollstonecraft responde em seu Reivindicação...). Muitas mulheres acabam sendo guilhotinadas pelos revolucionários, como Olympe de Gouges, autora da Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, texto publicado em 1791, que buscava equiparar mulheres e homens juridicamente. Como um corolário da sua obra, de Gouges escreveu: “A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em direitos. As distinções sociais somente podem estar fundadas na utilidade comum”; e segue: “As leis devem ser a expressão da vontade geral; todas as cidadãs e cidadãos devem participar da sua elaboração pessoalmente ou por meio de seus representantes”. É toda uma reivindicação de direitos civis e políticos para seu sexo. Anos mais tarde quem tomará a bandeira da mulher, como na Inglaterra fizera Mill, será um homem: León Richier, fundador do jornal Os direitos da mulher, em 1869, e organizador do Congresso Internacional dos Diretos da Mulher, em 1878. Em 1909 se fundará a União Francesa para o Sufrágio Feminista, porém o direito de votar será conquistado somente em 1945. Nos EUA, o ano que se costuma tomar como referência do surgimento da primeira onda de feminismo é 1848, ano em que se redige a Declaração de Seneca Falls, o texto fundacional do sufrágio americano. Este é o resultado de uma reunião que Elizabeth Cady Stanton, uma ativista do abolicionismo da escravidão, convoca em uma capela metodista de Nova York, com a finalidade de “estudar as condições e direitos sociais, civis e religiosos da mulher”, tal como pregavam os anúncios que foram distribuídos. Assim como Olympe de Gouges baseou sua Declaração dos Direitos da Mulher na Declaração dos Direitos dos Homens, a Declaração de Seneca Falls se baseia na Declaração de Independência dos EUA. A filósofa Amelia Valcarcel explica que o documento surgiu sob “postulados jusnaturalistas e lockeanos, acompanhados da idéia de que os seres humanos nascem livres e iguais”.[68] Entre outras coisas, nota-se ali que “todos os homens e mulheres são criados iguais; que estão dotados pelo criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais figura a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Há especial ênfase na reivindicação dos direitos de participação política para a mulher e contra as restrições de caráter econômico imperantes na época, tais como a proibição de possuir propriedades e dedicar-se a uma atividade comercial. Importantes políticos e pensadores americanos como Abraham Lincoln e Ralph Emerson apóiam a causa das mulheres. Em 1866, o Partido Republicano apresenta a décima-quarta Emenda à Constituição, na qual se concede o voto aos escravos, porém a mulher continua excluída. Dois anos mais tarde, em 1868, os EUA vêem nascer a Associação Nacional para o Sufrágio Feminino, e no ano seguinte a Associação Americana para o Sufrágio Feminino. Nesse mesmo ano de 1869 o primeiro estado americano concede o voto para as mulheres: Wyoming. Porém, apenas em 1918, graças a um Congresso Republicano, seria aprovada a décima-nona Emenda, que tornou possível voto feminino, setenta anos depois da Declaração de Seneca Falls. Vimos, da forma mais sintética que nos foi possível expor, que em seus princípios as revoluções liberais trouxeram igualdade e liberdade; porém, somente para os homens. A lei continuava sendo díspare, e as mulheres permaneciam um conjunto humano pré- cívico, à margem do sistema educativo. Contudo, o novo quadro filosófico e as novas realidades econômicas que as revoluções liberais trouxeram a tona, começaram a transformar a moral da época, fazendo com que a preocupação pela situação da mulher surgisse com grande força. A primeira onda do feminismo, de caráter liberal, também conhecida como “sufragismo”, caracterizou- se fundamentalmente pelo acento na igualdade perante a lei, reivindicando direitos cívicos e políticos para o sexo feminino, fato que, longe de representar um mal social, foi um grande feito em favor da justiça. O fim desta história é bem conhecido. Em muitos países industrializados as mulheres conquistaram os direitos políticos antes do fim da Segunda Guerra Mundial. No pós-Guerra, o voto feminino era universalmente reconhecido em todos os países de regime democrático. No entanto, o feminismo não tinha, de maneira alguma, esgotado a sua razão de ser, mas, pelo contrário, estava chamado a reinventar-se. Não outro senão Ludwig von Mises, um dos referenciais máximos da Escola Austríaca de Economia, advertiu, em 1922, que o feminismo começava a se desviar, e prenunciou por quais caminhos seguiria o seu desenvolvimento; deixou tal aviso plasmado num parágrafo que vale a pena reproduzir, uma interessante leitura para muitos libertários de hoje, os quais, culturalmente, mais parecem funcionários do neo-marxismo e, por isso, deveriam ter em consideração essas palavras: “Enquanto o movimento feminista se limite a buscar igualar os direitos jurídicos de mulheres e homens, dar segurança quanto às possibilidades legais e econômicas de desenvolver suas faculdades e de manifestá-las mediante atos que correspondam a seus gostos, a seus desejos e a sua situação financeira, serão somente um ramo do grande movimento liberal que encarna a idéia de uma evolução livre e tranqüila. Se, ao ir além destas reivindicações, o movimento feminista crê que deve combater instituições da vida social com a esperança de remover, por este meio, certas limitações que a natureza impôs ao destino humano, então já é um filho espiritual do socialismo. Porque é característica própria do socialismo buscar nas instituições sociais as raízes das condições dadas pela natureza, e, portanto, independentes da ação do homem, e pretender, ao reformá-las, reformar a natureza humana mesma”.[69] Não se equivocava Mises; e foi exatamente assim que as subseqüentes ondas do feminismo não somente se despojaram do discurso liberal, mas, sobretudo, postaram-se numa outra frente de batalha.
A segunda onda do feminismo
Se a primeira onda do feminismo pode ser entendida como a
preocupação pelo lugar que a mulher ocupa numa sociedade iluminada pelo quadro conceptual do liberalismo, a segunda onda feminista manifesta a mesma preocupação, porém, vista com as lentes da ideologia marxista e do socialismo. Aqui devemos fazer um esclarecimento importante: muitos estudiosos do feminismo costumam dar um salto da onda sufragista, que acabamos de ver, diretamente para a “onda contemporânea” (chamadas por eles de “segunda onda”) que tem seu ponto de partida em 1968, ano do “Maio Francês”. Ignoramos a razão disto, pois, neste esquema, o feminismo de viés marxista acaba marginalizado na história do feminismo. De tal modo que decidimos recuperá-lo, pondo-o em lugar de destaque, e designando-o como a “segunda onda” do feminismo, pela razão de que seu ataque à propriedade privada e ao capitalismo são elementos que perpassarão as diversas ondas até chegar ao feminismo de nossos tempos, constituindo a parte central do seu discurso. As raízes mais profundas do feminismo marxista encontram-se nos socialistas utópicos como Saint-Simon e Fournier. Com efeito, em seu projeto utópico contrário ao capitalismo eles pensaram com afinco na emancipação da mulher através da emancipação total da sociedade, através do “amor fraterno” e da inclusão feminina na vida econômica-produtiva. As utopias socialistas, além de se voltarem contra a propriedade privada, projetaram também o desaparecimento do matrimônio como instituição social. No entanto, o verdadeiro ponto de partida do feminismo marxista será dado, descartando-se o método utópico, por Friedrich Engels. Depois que Karl Marx, seu sócio intelectual, estava morto, ele aprofundou no materialismo dialético a questão da mulher e da família, em sua obra A origem da família, a propriedade privada e o Estado, publicada em 1884. Ali, Engels apresenta um trabalho de base antropológica (fundamentado principalmente nos estudos do célebre antropólogo Lewis Morgan) através do qual vai seguindo um presumido esquema de evolução do homem e da sociedade, desde o selvagem até a civilização, focando nas mudanças acontecidas na instituição familiar. Seu interesse final é mostrar que a família monogâmica é apenas um tipo de família, nascida como reflexo do advento e desenvolvimento da propriedade privada. Anteriormente a ela, teriam existido esquemas familiares muito diferentes dos de hoje: “o estudo da história primitiva nos revela um estado de coisas em que os homens praticavam a poligamia e suas mulheres a poliandria e em que, por conseguinte, os filhos de uns e outros se consideravam comuns”.[70] Engels, assumindo que essa afirmação era válida, para dar sentido a sua teoria, recorre, como a forma mais antiga de ligação entre os sexos, ao chamado “matrimônio por grupos”, no qual cada homem teria muitas mulheres e, supostamente, cada mulher teria muitos homens. No estado selvagem, nem mesmo o incesto encontra limites morais, e Engels cita notas de Marx a respeito: “Nos tempos primitivos, a irmã era a esposa, e isto era moral”.[71] De tal sorte que a primeira exclusão moral foi feita à relação sexual entre pais e filhos; a segunda, entre irmãos. Como veremos mais tarde, o feminismo da terceira onda e o feminismo queer outorgaram ao incesto e à pedofilia o lugar de uma das suas reivindicações mais desprezíveis. Porém, voltando ao texto que nos compete, subsiste um problema-chave no sistema de parentesco sob esta estrutura familiar proposta por Engels em uma suposta idade dourada: a descendência se estabelece exclusivamente por linha materna, posto que nos “matrimônios por grupo” só se tem segurança do vínculo materno. Desta forma Engels nos mostra uma comunidade primitiva e virtualmente selvagem na qual prevalece a mulher: “a economia doméstica comunista significa o predomínio da mulher na casa, que é o mesmo que o reconhecimento exclusivo da própria mãe, na impossibilidade de conhecer com certeza o verdadeiro pai; significa uma profunda estima pelas mulheres[...]. Habitualmente, as mulheres governavam a casa; os mantimentos eram comuns, porém, desgraçado era o pobre do marido ou amante, preguiçoso demais ou inábil em trazer seu quinhão para o fundo de mantimentos da comunidade!”.[72] Neste aparente sistema de comunismo primitivo imperava, como vemos, um regime matriarcal. A Engels não ocorre pensar em questões tão elementares como a diferença física existente entre homens e mulheres, e o que isto significou para a dominação dos primeiros sobre as segundas em épocas passadas quando, como é conhecido, o poder estava intimamente ligado à força física. Engels chega a defender o paraíso misândrico que descreve arguindo (e fantasiando) que as mulheres de então estavam em melhor posição em relação às mulheres das épocas modernas: “a senhora da civilização, rodeada de aparentes homenagens, desconhece todo trabalho efetivo, tem uma posição social muito inferior a da mulher bárbara, que trabalha firmemente, vê-se em seu povoado reconhecida como uma verdadeira dama (lady, frowa, frau = senhora) e de fato o é por sua própria posição.[73] Como bom materialista dialético, Engels descobrirá que o desenvolvimento das formas de instituição familiar constitui um reflexo do desenvolvimento das condições econômicas. A acumulação de riquezas deu início, mais cedo ou mais tarde, ao surgimento da propriedade privada. Com efeito, a divisão do trabalho familiar colocou sobre o homem a função de procurar alimentos e ferramentas, e assim ele foi aos poucos se apropriando destas coisas. O problema subsistente era que, dado que a descendência se estabelecia por linha materna, os filhos herdavam da mãe e não do pai. Assim, o homem tomava preeminência sobre a mulher na medida em que aumentava a riqueza, e isso o permitirá começar a modificar também a forma em que se estabelecia a linha de descendência e, portanto, o direito de herança. Nasce aqui no discurso marxista um regime cujo nome estrutura o discurso do feminismo contemporâneo: “Resultou daí uma espantosa confusão, a qual somente se poderia remediar e foi em parte remediada com a transição para o patriarcado[74]”, conclui o sócio de Marx. O que nos diz Engels em resumo? Que é a aparição da propriedade privada que destrói o “paraíso comunista matriarcal” e nos traz o regime de dominação masculina. A propriedade privada, causa da exploração entre as classes, é causa também da exploração entre os sexos. “A deposição do direito materno foi a grande derrota histórica do sexo feminino em todo o mundo. O homem empunhou também as rédeas na casa; a mulher se viu degradada, convertida em servidora, em escrava da luxúria do homem, em um simples instrumento de reprodução”[75], escrevia Engels. Chama a atenção o paralelo linguístico que se faz com o conflito de classes.[76] Parece, com efeito, que se estava falando exatamente da mesma coisa, e de fato teriam, segundo a teoria marxista, a mesma origem na existência da propriedade privada. Mas se coincidem na origem não deveriam também coincidir nas formas de se provocar o desfecho? Se algo faltava para determinar um tal paralelo, Engels cunha uma frase determinante: “O homem é na família o burguês; a mulher representa nela o proletariado”[77]. A operação hegemônica não pode ser mais clara: luta de sexos e luta de classes têm a mesma origem e por isso deve se unir para acabar com o sistema que reproduz a dominação das partes subalternas claramente identificadas: trabalhadores e mulheres. É importante ressaltar também o mito que se esconde por trás destas idéias, que não é outro senão o do “bom selvagem”, mito banal que permitiu a Thomas More compor a sua Utopia, a Montaigne idealizar o índio americano nos Ensaios, a Rousseau fantasiar com seu “homem em estado de natureza” (obviamente, cada um com suas grandes diferenças), e à esquerda de nossos tempos delirar com seu culto ao indigenismo. O mito funciona da maneira mais simples: constrói-se uma antropologia de ficção na qual as condições de existência são um reflexo do nosso desejo de um mundo perfeito, em seguida busca-se um bode expiatório que tenha provocado a “queda”, e se apresentam os meios através dos quais é factível voltar atrás, embora seguindo-se supostamente adiante (daí que, paradoxalmente, digam-se “progressistas”). Esses meios não costumam ser outros senão as revoluções sangrentas – como se faz explícito na proposta de Montaigne, ou do próprio Engels – cujos sofrimentos são curados pela construção, ou melhor, a devolução do paraíso à Terra. De modo que nos encontramos diante de um mito messiânico, diante de uma secularização do movimento milenarista sob o qual estiveram alguns cristãos dos primeiros tempos, cuja convicção indicava que Cristo traria o seu reino à Terra durante mil anos. Assim, mediante uma transformação repentina, a Terra se faz Paraíso; retorna-se ao estado anterior a queda, no caso dos milenaristas, por obra e graça de Deus; no caso dos esquerdistas, por obra e graça da abolição da propriedade privada. Vale notar, portanto, o caráter de religião política que encerra o marxismo. Quais são então as consequências estratégicas e práticas que derivam deste feminismo marxista em comparação com o feminismo liberal explicado anteriormente? O feminismo liberal entendia que era possível resolver os problemas que ele mesmo apresentava introduzindo-se reformas eleitorais e educativas[78] (foi de fato o que John Stuart Mill tentou fazer pessoalmente), mas para o marxista a questão só pode ser solucionada por meio de uma revolução violenta que acabe com a propriedade privada e com a família como instituição social, pois é nestas coisas que se encontra o germe do mal: “A liberação da mulher exige, como condição primeira, a reincorporação de todo o sexo feminino à indústria social, o que por sua vez requer que se suprima a família individual como unidade econômica da sociedade”[79], conclui Engels[80]. Isto é o que será tentado, precisamente, na União Soviética após o triunfo revolucionário do bolchevismo, como logo veremos com mais profundidade. Leon Trotsky, pai do Exército Vermelho[81], já declarava nos Escritos sobre a questão feminina, em clara sintonia com Engels, que “mudar a fundo a situação da mulher não será possível enquanto não forem mudadas todas as condições de vida social e doméstica”. O que significa “mudar a fundo”? Trata-se de um eufemismo para dizer de outra forma o que Marx apontou claramente em suas Teses sobre Feuerbach (tese 4): “Se a origem da família celestial não é mais que a pré-figuração da mesma família terrena humana, é esta que deve ser destruída”. O certo é que a estratégia de hegemonizar as demandas femininas por parte dos movimentos do proletariado, estabelecida pelo próprio Engels, foi posta em prática antes mesmo da revolução. Em Minhas lembranças de Lênin, a marxista alemã Clara Zetkin conta que “o camarada Lênin falou comigo repetidas vezes sobre a questão feminina. Efetivamente, atribuía ao movimento feminino uma grande importância, como parte essencial do movimento de massas, do qual, em determinadas condições, pode ser uma parte decisiva”. O panfleto Às trabalhadoras de Kiev, lançado dois anos antes da revolução de outubro pelos bolcheviques, vincula o problema da mulher ao problema operário: “Na fábrica, na oficina, ela trabalha para um empresário capitalista, em casa trabalha para a família. Milhares de mulheres vendem sua força de trabalho ao capital; milhares de escravos alugam seu trabalho; milhares e centenas de milhares sofrem o jugo da família e a opressão social (...) Camaradas trabalhadoras! Os companheiros trabalham duro junto a nós. Seu destino e o nosso destino é o mesmo”. Poderia ser mais clara a estratégia hegemônica? Aleksandra Mijaylovna Kollontay foi uma das feministas soviéticas mais reconhecidas. Um de seus escritos mais famosos é O comunismo e a família, publicado em 1921, no qual retoma o mito engelsiano do paraíso matriarcal original que acaba dizimado pelo aparecimento da propriedade privada e que, com o desenvolvimento do capitalismo, as mulheres passam a ser duplamente oprimidas: como trabalhadoras fora do lar e como donas de casa dentro dele. “O capitalismo impôs sobre os ombros da mulher trabalhadora um peso esmagador; ela foi convertida em operária, sem aliviá-la dos seus cuidados de dona de casa e mãe”.[82] Kollontay entende que o dever do comunismo não consiste em devolver a mulher ao seu lar, mas em despojá-las das obrigações domésticas. Neste sentido, a feminista soviética prediz: “Na sociedade comunista de amanhã, estes trabalhos [domésticos] serão realizados por uma categoria especial de mulher trabalhadora dedicada unicamente a estas ocupações”[83]. Um sistema de planejamento central é, obviamente, a forma para se implementar este esquema; isto é, uma sociedade na qual não é a ordem espontânea gerada pelo mercado, mas a ordem deliberada imposta por uma autoridade totalizadora que regerá a vida das pessoas até nos minúsculos detalhes. É interessante analisar as promessas que Kollontay faz em seu escrito a respeito do que a sociedade comunista pode brindar às mulheres. Vejamos algumas delas: “Em uma sociedade comunista a mulher não terá que passar suas escassas horas de descanso na cozinha, porque na sociedade comunista existirão restaurantes públicos”;[84] “A mulher trabalhadora não terá que se afogar em um oceano de sujeira tampouco arrebentar a sua vista remendando e cosendo a roupa durante as noites. Não precisará fazer mais nada além de levá-la todas as semanas até a lavanderia central para buscá-la depois lavada e passada”[85]. “A Pátria comunista alimentará, criará e educará a criança”;[86] etcetera. O curioso do caso é que muitas das profecias de Kollontay se cumpriram, não sob o comunismo mas sob o tão odiado capitalismo. Foi com o triunfo deste sobre aquele, no final do século XX, com a revolução tecnológica que aconteceu e o barateamento dos eletrodomésticos que a mulher se emancipou de um sem-número de tarefas: hoje ela pode lavar e secar a sua roupa sem nem molhar as mãos; pode cozinhar diversos pratos apenas adicionando água a alimentos industrializados; e em seguida pode lavar a louça suja em uma máquina de lavar automática somente apertando alguns botões; pode limpar o carpete da sua casa com um aspirador elétrico e remover as manchas mais difíceis da superfície simplesmente aplicando um pouco do produto adequado. E o melhor de tudo é que todas essas tarefas deixaram, com o transcorrer do capitalismo, de ser automaticamente atribuídas às mulheres, pois também os homens começaram a se encarregar das tarefas domésticas. Com efeito, é cada vez menos estranho ver um homem cozinhar para a sua família, ou limpar o banheiro do seu lar, o que é por si um importante avanço moral que se pode obter, entre outras razões, graças ao avanço tecnológico que afrouxou a rigidez da divisão do trabalho no interior da família e que, ao mesmo tempo, permitiu à mulher aceder a vários postos de trabalho que antes estavam reservados para o físico masculino. Do mesmo modo, a competição do mercado fez os produtos domésticos baratearem rapidamente e se massificarem, deixando de ser privilégio das classes mais abastadas. Voltaremos a isto mais adiante. Mas há algo sobre o qual eu gostaria agora de me deter para demonstrar que o de Kollontay em particular, e o do comunismo em geral, não é um projeto inocente que busque apenas aliviar o fardo que se impõe sobre as mulheres. O que se busca é muito mais que isso: é a geração de uma ordem planejada centralmente que, pondo o Estado no centro da vida social, totalize todas as relações sociais absorvendo-as e controlando-as ao seu desejo. De modo que sob o comunismo seja previsto de forma clara a destruição da instituição familiar, que será fagocitada pela intervenção estatal. Kollontay o diz com total clareza: “o Estado dos trabalhadores acudirá em auxílio a família, substituindo-a; gradualmente, a sociedade irá se encarregar de todas as obrigações que antes recaíam sobre os pais”[87]. Curiosa concepção de “auxílio”, que longe de garantir a sobrevivência conduz a destruição daquilo que se pretende ajudar. Em última instância, portanto, o que a sociedade comunista exige é a coletivização de tudo o que o homem possa ter, inclusive seus próprios filhos. Por isso o projeto totalizante não pode negligenciar aquilo que permite a sobrevivência de qualquer tipo de totalitarismo: a doutrinação massiva, especialmente das novas gerações. É assim que Kollontay determina: “O novo homem, da nossa nova sociedade, será moldados pelas organizações socialistas, jardins de infância, creches, etc., e muitas outras instituições deste tipo nas quais a criança passará a maior parte do seu dia e nas quais as educadoras inteligentes a converterão em um comunista consciente da magnitude deste inviolável lema: solidariedade, camaradagem, ajuda mútua e devoção a vida coletiva”.[88] Em resumo, a realização do feminismo marxista é a destruição da família e a sua substituição pelo Estado totalitário e pelo partido. O feminismo do socialismo real
Antes de abordar a terceira onda do feminismo, queremos
dedicar uma parte deste capítulo à implementação das idéias feministas engendradas pelo marxismo, e postas em prática com a experiência da União Soviética a partir de 1917. Com efeito, se a propriedade privada foi a origem do patriarcado, a progressiva abolição do regime econômico de propriedades deveria ter produzido a tão anunciada “libertação da mulher”, como de fato a propaganda soviética quis que o mundo livre acreditasse estar realmente acontecendo. Com o tempo, viríamos a saber que tal libertação não foi senão mais uma mentira entre tantas outras que o comunismo nos contara. E quem melhor expôs essa mentira foram um pai e um filho soviéticos, médicos especializados em sexologia, ex-membros do Partido Comunista, que levaram adiante um amplo trabalho sociológico-sexológico que lhes valeu vários anos no campo de concentração, trabalhos forçados e posterior exílio. Nos referimos aos doutores Mikhail e August Stern. O que ocorreu na URSS pode dividir-se em duas etapas: uma de abertura e niilismo, que ganha força na década de 1920, pouco depois do triunfo da Revolução; e uma outra etapa de puritanismo e reação, na qual, mediante todos os meios existentes e por existir, tentou-se reverter os efeitos sociais nocivos vistos após o período de relaxamento moral. A etapa de abertura foi, entre outras coisas, o resultado de fazer do amor algo puramente “fisiológico”. Em uma palavra, buscou-se tirar do amor qualquer traço espiritual e moral. Kollontai, por exemplo, em um ensaio intitulado Um lugar para o Eros alado instigava a realização dos atos sexuais “como um ato similar a qualquer outro, a fim de satisfazer necessidades biológicas que só são um estorvo, e que temos que suprimir tendo em vista o essencial: que tais atos não interfiram na atividade revolucionária”. [89] A protagonista do romance O amor de três gerações, de Kollontai, esboçava: “Ao meu juízo, a atividade sexual é uma simples necessidade física. Mudo de amante conforme meu humor. Neste momento, estou grávida, porém não sei quem é o pai de meu futuro filho, mas isto dá na mesma”. Existe um “decreto” da época, da cidade de Vladmir (houve outro similar em Saratov), que propunha uma “socialização das mulheres”, e que ilustra bem o tipo de mentalidade que o socialismo gerou: “A partir dos dezoito anos de idade, fica declarado que toda mulher é propriedade estatal. Toda mulher que alcance a idade de dezoito anos e que não seja casada está obrigada, sob pena de denúncias e castigos severos, a inscrever-se em um centro de ‘amor livre’. Uma vez inscrita, a mulher tem direito de escolher um marido entre dezenove e cinqüenta anos. Os homens também têm direito de escolher uma mulher que tenha chegado à idade de dezoito anos, supondo que tenham provas que confirmem sua condição de proletário. Para aqueles que quiserem, a escolha do marido ou da esposa pode dar-se uma vez ao mês. Por interesse do Estado, os homens entre dezenove e cinqüenta anos têm direito a escolher mulheres inscritas no centro, sem que precisem do assentimento destas. Os filhos que sejam fruto desse tipo de convivência tornar- se-ão propriedade da república”.[90] Estes delírios de “comunismo sexual” incluíam marchas de nudez, ligas de amor livre, projetos de instalação de cabines públicas reservadas para o ato sexual, entre outras idéias cujo pano de fundo era o mais sórdido materialismo, que reduzia a experiência do amor a uma necessidade fisiológica e por isso, como tal, o Estado deveria atender e planejar. Tanto era assim que o célebre periódico soviético Pravda publicou em sua edição de 7 de maio de 1925 um artigo que, entre outras coisas, dizia: “Os estudantes desconfiam das jovens comunistas que se negam a ter relações sexuais com eles. Consideram-nas pequeno-burguesas atrasadas que não souberam libertar-se dos preconceitos da antiga sociedade. Existe uma opinião segundo a qual não somente a abstinência, mas também a maternidade provêm de uma mentalidade burguesa”. A “mulher livre” soviética não era, pois, outra coisa que o canal através do qual o homem satisfazia suas necessidades materiais. E quando a mulher não se prestava a tal degradação, sua rejeição era vista, e não podia ser de outra maneira, em termos de “luta de classes”. Em uma carta publicada na mesma edição do Pravda, uma mulher soviética escrevia: “Outro comunista, marido de minha amiga, propôs que eu dormisse com ele uma só noite, somente porque sua mulher estava indisposta, e por isso não podia satisfazê-lo no momento. Quando me neguei, tratou-me como burguesa estúpida, incapaz de elevar-me à altura da mentalidade comunista”. Toda a vida sexual estava reduzida aos ditames do materialismo dialético e, por outro lado, completamente ideologizada. O sexo, algo tão íntimo e pessoal, se coletivizava e passava a depender das leituras classistas que se constituíram como uma espécie de religião oficial. Um folheto da época, editado pelo Instituto Comunista Yákov Svérdlov em 1924, intitulado A revolução e a juventude, baseado no trabalho teórico dos pedagogos soviéticos Macárenco y Zálkind, dizia coisas como as que seguem: “A única vida sexual tolerável é aquela que leva a plenitude dos sentimentos coletivistas. [...] A escolha sexual deve obedecer a critérios de classe, deve ajustar-se aos objetivos revolucionários e proletários [...]. A classe tem direito de intervir na vida sexual de seus membros. [...] Sentir atração sexual por um ser que pertença a uma classe diferente, hostil e moralmente alheia, é uma perversão de índole similar à atração sexual que se pode sentir por um crocodilo ou um orangotango”. Algo similar pensava Lenin, que em uma carta a sua amiga platônica Inessa Armand declarava: “No que tange ao amor, todo o problema reside na lógica objetiva das relações de classe”. O classismo e o racismo são primos-irmãos. Ambos guardam a mesma lógica de criar, em um plano abstrato, coletivos de pessoas em função de determinados caracteres; pretendem o confronto incondicional e, posteriormente, um ódio visceral. O citado folheto dos pedagogos soviéticos dá conta disto quando sentencia que o Partido tem “o direito total e incondicional [...] de intervir na vida sexual da população com o objetivo de melhorar a raça praticando uma seleção sexual artificial”. Preobrajenski, importante dirigente do Partido, dizia algo similar quando afirmava que o sexo é um “problema social, ainda que o tomemos meramente do ponto de vista da saúde física da raça [...]. [O sexo deve estar orientado a uma] melhor combinação das qualidades físicas das pessoas que se relacionarão”.[91] Cabe recordar que o tirano Stalin acabou proibindo o casamento de russos com estrangeiros. Freqüentemente a esquerda, ainda nostálgica do genocídio do século passado, por mais que lhe pese e trate de ocultá-lo, reivindica a experiência soviética destacando os “grandes avanços” para a mulher que teria sido incorporada ao mundo produtivo e social. Porém, estes admiradores disfarçados do regime soviético não notam o fato de que seus primos-irmãos, os nacional- socialistas, fizeram o mesmo; algo que se fosse usado como argumento para reivindicar o nazismo geraria as mais ásperas críticas e indignações, o que jamais vemos se produzir quando o mesmo argumento é usado para exaltação do comunismo. Com efeito, é notório que as políticas centralizadas de obras públicas e econômicas do nazismo, com Hjalmar Schacht como ministro da economia e presidente do Reichsbank, deram à mulher um relevante papel laboral no setor da indústria de serviços, em atividades de tipo agrícola e na burocracia estatal: “até 1940, as mulheres eram mais de 3,5 milhões no setor industrial e de serviços, e mais de 5,6 milhões na silvicultura e na produção agrícola de alta qualidade (aquela que requer qualificação técnica avançada), e tão somente 1,5 milhões no setor de baixa remuneração como o serviço doméstico”.[92] Do mesmo modo, a alegada participação política das mulheres soviéticas é muitas vezes exaltada (diremos mais sobre isso no final desta parte), e com isto se poderia concluir que o comunismo é algo muito parecido com o regime nacional-socialista, embora, novamente, isso seria motivo de escândalo: “A NSF Nationalsozialistische Frauenschaft agrupava 800 mil mulheres no começo, chagando a 3,5 milhões de mulheres em pouco tempo. Havia um grande número de empregadas domésticas, assim como mulheres da alta sociedade, nas filas da NS, e o objetivo era aproximar a mulher do Welfare State idealizado por Hjalmar Schacht e sua equipe técnica”.[93] Por fim, podemos falar sobre a atenção que muitas “políticas sociais” soviéticas tiveram com as mulheres, o que, outra vez, poderia equiparar-se ao experimento nazista, responsável por subsidiar a maternidade e o desemprego feminino, conceder empréstimos especiais para as mulheres, além de haver fundado o Instituto Lebensborn, onde se provia albergues para mulheres em situação de rua, etc. Não deveria ser necessário esclarecer que estes exemplos não desculpam o genocídio nacional-socialista, ainda que pareça cada vez mais necessário esclarecer o outro exemplo: tais benefícios tampouco desculpam o genocídio comunista, causa de homicídios em massa em quantidades muito maiores do que as do mesmíssimo hitlerismo, ainda que seja pecado dizer isso.[94] Bem, voltemos à URSS: a legislação e os esforços do Estado soviético em matéria sexual durante o período leninista, especialmente durante a década de 20, resumem-se à destruição da família. Como vimos, estas intenções já estavam impressas no primeiro mestre, Karl Marx, e em seu sócio Freidrich Engels. Mas por que o comunismo empenha-se em conseguir tal coisa? Por uma razão: a instituição familiar representa uma salvaguarda do indivíduo e de suas relações mais próximas diante da intromissão do Estado. Trata-se, pois, de um espaço com amplos graus de autonomia perante a esfera política. Vale recordar a esse respeito que a dicotomia da esfera doméstica/esfera pública já estruturava o pensamento social e político dos filósofos da Antigüidade (o pensamento platônico e seu comunismo rudimentar explicitava a intenção de abolir a instituição familiar em favor da organização totalitária da polis). Com efeito, a família educa os filhos, reproduz tradições, mantém crenças e valores à margem do dirigismo dos mandatários da vez. A família é, em uma palavra, o núcleo da sociedade civil, e a sociedade civil constitui a dimensão que será absorvida pela política nos regimes totalitários, que invadirão todos os aspectos da vida. De tal modo que é natural ao Partido Comunista o interesse em anular estes espaços onde sua intromissão não está assegurada e que, contrariamente, podem chegar até a bloqueá-la. Já dizia Lunacharski, ministro da Educação e Cultura em 1918, que “este pequeno centro educativo que é a família, esta pequena fábrica [...] toda essa maldição [...] chegue a ser um passado caduco”.[95] A Internacional Comunista reclamava o “reconhecimento da maternidade como função social. Os cuidados e a educação das crianças e dos adolescentes serão por conta da sociedade”,[96] o que equivale a dizer por conta do Partido. Bem, no período stalinista foi preciso dar um giro de cento e oitenta graus criando o conhecido mito da “família soviética” – quando propagou-se uma imagem distorcida da realidade familiar do regime, apresentando-a imbuída de valores morais superiores aos da família ocidental – por razões claras: a Rússia perdera uma parcela considerável de sua população por conta da Primeira Guerra Mundial, da guerra civil, da fome de 1921, da fome de 1928- 1932, dos variados expurgos, e das matanças em massa perpetradas pelo próprio Estado. A isto devemos somar as perdas da Segunda Guerra Mundial e das fomes subseqüentes. Para piorar, a política de “sexualidade livre”, que além de minar a instituição familiar havia legalizado o aborto em 1920, produziu um impressionante decréscimo na taxa de natalidade: em 1913 ela era de 45,5%, ao passo que em 1950 havia baixado para 26,7%.[97] O caso das conseqüências sociais advindas da legalização do aborto na URSS é digno de ser sublinhado. Com efeito, este converteu-se em “o primeiro de todos os meios contraceptivos”,[98] segundo os dados recolhidos pelo doutor Stern. Os números documentados são determinantes: de 1922 a 1926 quadruplicou-se o número de abortos na URSS, e em 1934 “registra-se em Moscou um nascimento para cada três abortos; e na zona rural, no mesmo ano, três abortos para cada dois nascimentos”.[99] Em 1963, em Moscou, Leningrado e outras cidades centrais, 80% das mulheres grávidas submetiam-se a abortos, o que demonstra que foi utilizado como método contraceptivo.[100] Os doutores relataram que “ao cabo de um certo número de abortos, [às mulheres] bastam-lhes beber um copo de vodca, tomar um banho muito quente e dar saltinhos até expulsar o feto. Tive que cuidar de uma mulher que havia sofrido vinte e dois abortos. Nestas mulheres, os reiterados abortos debilitam os músculos do útero de tal forma que correm o risco de perder o feto somente com o caminhar”.[101] A verdade é que a propaganda comunista sobre a virtude da família russa, criada pelo stalinismo, nunca deixou de ser isso: pura propaganda. A instituição da família foi destruída, o “chefe da família” nada mais era do que uma caricatura do homem soviético, e a esposa, que se pretendia uma valente heroína socialista na história do regime, não passava de uma mulher indefesa que tinha de tolerar os agravos e espancamentos de seu marido. Uma edição da revista soviética A revista literária, de 1977, reunia artigos de mulheres comentando sua relação conjugal: “A própria idéia de ‘homem em casa’ perdeu seu significado mais elevado. O homem em casa é uma criança caprichosa que nunca é feliz, ou ele é um ‘leão que ruge’, que maltrata sua esposa por minúcias”.[102] Um levantamento realizado em 1970 mostra que 74% das famílias estudadas haviam se acostumado com as querelas e os conflitos sistemáticos.[103] É possível lembrar que de acordo com os postulados teóricos do feminismo baseado no marxismo todos os problemas das mulheres reduziam-se a uma variável claramente identificada: a existência da propriedade privada. Uma vez anulada, caberia esperar a “libertação da mulher”, promessa sistematicamente alardeada pela União Soviética. Mas é difícil encontrar a dita libertação entre os dados que mencionamos até agora. O mito do bom selvagem mostrou-se como de fato é: uma falácia. Enfim, para acrescentar algo, caso algo ainda falte, é necessário dizer que os casos de estupro e violência contra as mulheres também foram constantes durante o extenso período comunista. Os médicos de Stern documentaram muitos deles, o que acabou lhes custando, como dissemos, vários anos de campo de concentração. Um desses casos, que chama a atenção pela brutalidade, é o seguinte: “A mãe do meu paciente era camponesa de Bachkiria. Durante os anos de fome, chegaram à aldeia de Ufa para conseguir pão. Na plataforma da estação, um guarda armado aproximou-se dela e levou-a consigo. Pouco experiente no amor, a camponesa esperava receber um pedaço de pão em troca de seu corpo. Mas quando chegaram à casa do guarda, ele ordenou que ela tirasse suas roupas e entregou-a ao seu cão. Tanto foi a fome da camponesa que ela não se opôs, assumindo que ela iria comer mais tarde. Quando o cachorro soltou todo o espermatozóide, o guarda jogou-a na rua sem dinheiro e nem comida.”[104] Os médicos Stern contam que o estupro de mulheres também era uma prática comum na própria família. É, segundo a leitura de seus dados, uma conseqüência esperada do culto à força que o regime disseminou nas relações sociais: “Conheci uma paciente que não queria se divorciar por causa dos filhos, mas que tampouco queria continuar a manter relações sexuais com o marido. O homem a estuprou regularmente, sem medo de conflitos legais, porque não havia um tribunal que levasse o caso a sério.”[105] Foi célebre o escândalo do famoso cineasta soviético Roman Karmen, que foi condecorado como Artista do Povo da URSS (a mais alta distinção concedida no mundo do entretenimento), acusado de entrar em seu carro com garotas de treze e quatorze anos e depois estuprá-las. Mas, como ocorria com os donos do poder e os seus amigos, o caso Karmen permaneceu em total impunidade: lá estava o Estado para esconder a roupa suja. Além das violações individuais, as violações coletivas também foram frequentes, como pode ser visto nas crônicas da época. O Diário do Professor, de 26 de junho de 1926, relatou, por exemplo, um estupro sofrido por uma estudante nas mãos de um grupo de colegas de classe. Outro caso em que um grupo de sete homens estuprou duas mulheres, conhecido como “hábito de Chubarov” (nome de uma rua de Leningrado), foi coberto pelo Pravda em 17 de dezembro de 1926. Os doutores Stern acrescentam vários outros casos em seu livro, que assustam pelo nível de violência. Poderíamos continuar citando as notícias da época, mas isso já é suficiente para determinar que a tal “libertação das mulheres”, que supostamente se seguiu à implantação do socialismo, não passava de uma mentira grosseira. Além de tudo isso, as surras contra as mulheres também eram algo corrente na Rússia comunista. A eliminação do capitalismo e as “condições materiais da existência” não eliminaram a dominação violenta do homem sobre a mulher, como os marxistas esperavam com suas teorias ilusórias de uma suposta idade de ouro do matriarcado. De fato, os espancamentos na URSS estavam diretamente ligados ao sexo entre marido e mulher, e daquela época vem o triste ditado russo que diz: “o único que não espanca sua esposa é aquele que não a ama”. Inclusive chegou-se a utilizar uma expressão para descrever a relação sexual que se originava de uma surra: trajnut. Novamente, os doutores Stern nos permitem ilustrar tudo isso com um fato concreto: “Em Moscou, um torneiro chamado Merzliskov espancava regularmente sua esposa Nedejda. Espancar é pouco, batia metodicamente primeiro com socos e chutes e depois usava uma chave de fenda ou um martelo. Quando a mulher desmaiava, o marido a submergia num banho de água fria e recomeçava. A mulher morreu durante uma dessas sessões.”[106] Nesta rápida revisão da vida das mulheres sob o socialismo real, não podemos deixar de abordar o problema da prostituição. De fato, o feminismo socialista sempre buscou fazer da “profissão mais antiga da história” uma conseqüência do — qual a novidade — regime econômico baseado na propriedade privada. Lembre-se de que Marx e Engels já disseram no Manifesto Comunista que “com o desaparecimento do capital também a prostituição desaparecerá”. Kollontay afirmou que “esta vergonha [a prostituição] é devida ao sistema econômico ora em vigor, a existência de propriedade privada. Uma vez que a propriedade privada tenha desaparecido, o comércio da mulher desaparecerá automaticamente”.[107] Foram as promessas comunistas cumpridas? Por si só, não. As prostitutas soviéticas continuaram a existir, e seus serviços, como na atual Cuba, eram especialmente orientados para a satisfação de estrangeiros. A repressão do regime, que perseguiu as atividades meretrícias enviando as prostitutas para os campos de concentração, não impediu a exploração do negócio sexual. As prostitutas continuavam a se esconder: costumavam oferecer seus serviços a bordo de táxis ou em ferrovias. Deste modo, as promessas marxistas foram enterradas por uma ironia da história: as prostitutas de Moscou eram conhecidas como “as marxistas”, não por recitarem de memória os postulados do materialismo dialético, mas por esperar por seus clientes sexuais em frente ao monumento a Karl Marx.[108] A verdade é que os teóricos marxistas acreditavam que a derrubada do “poder econômico” e a destruição do sistema de propriedade privada removeria a razão para as mulheres se prostituírem. Mas o reducionismo econômico marxista negligenciou, além da natureza complexa da ação humana, outra forma de poder: o poder político. E assim, no socialismo real, a prostituição era um dos muitos privilégios da classe política soviética. Na época, era sabido por muitas mulheres que, se quisessem ter certos privilégios ou certas posições na burocracia estatal, deveriam antes oferecer seus serviços sexuais àqueles que manejavam os fios do poder.[109] Os doutores Stern testemunharam sobre as formas de prostituição soviética: “Às vezes, a fellatio alternava-se com jogos de cartas: há prostitutas de treze, catorze anos, quase meninas, atuando sob a mesa, enquanto quatro homens jogam os duraki; o perdedor paga por todos”.[110] E também contam que as prostitutas nem sempre determinavam os seus pagamentos em dinheiro: “Há mulheres que usam seu corpo como pagamento quando pegam um táxi ou compram algo no açougue [...]. Há muitas alcoólatras que se prostituem precisamente para obter mais vodca”.[111] Este, e nenhum outro, era o paraíso feminino prometido pelo marxismo. Finalmente, há ainda um mito a ser derrubado. É aquele que diz que sob o comunismo as mulheres adquiriram o pleno gozo dos direitos políticos. A primeira coisa a ser dita sobre isso é que naquele sistema de partido único os direitos políticos eram, para todos, homens e mulheres comuns, uma fantasia impossível de ser alcançada, devido à própria natureza do regime. Alegar a existência de “liberdade política” sob as condições de uma ditadura totalitária é uma contradição em seus termos. E se não é, caberia perguntar-se sobre o lugar político de homens e mulheres não-comunistas: os campos de concentração. Mas, por outro lado, e mesmo aceitando a suposta extensão dos direitos políticos para as mulheres sob o comunismo soviético, seria interessante perguntar, então, sobre o envolvimento efetivo delas no poder real, nas decisões políticas e na estrutura hierárquica da URSS. É aqui que terminamos de verificar que a participação política feminina no socialismo real foi completamente virtual. Façamos uma breve revisão da estrutura do poder soviético. O Soviete da União ou o Soviete dos Deputados do Povo era uma das duas câmaras do Soviete Supremo da União Soviética. Ao longo da história desse corpo legislativo, uma mulher jamais pôde presidi-lo. [112] Tampouco se viu qualquer mulher presidir uma outra câmara de
representação territorial, chamada Soviete das Nacionalidades.[113]
E, é claro, nenhuma mulher jamais ocupou o cargo de Chefe de Estado da URSS,[114] nem o de vice-chefe de Estado. Também não havia nenhuma mulher presidindo o Conselho dos Comissários do Povo, a mais alta autoridade governamental do Poder Executivo Soviético[115]. Diante desses dados, pode-se argumentar que, na época, embora os direitos políticos das mulheres estivessem se tornando efetivos no mundo, as mulheres ainda não ascendiam a espaços de poder. No entanto, tal argumento ignoraria o fato de que enquanto na URSS a estrutura política era virtualmente inteiramente dominada por homens, em 1979, na Inglaterra, Margaret Thatcher foi eleita Primeira-Ministra, e ocuparia o cargo até 1990, enfrentando precisamente o comunismo, e, de alguma maneira, derrotando-o. Permita-nos fechar esta seção com uma última reflexão. Mencionamos que a política sexual do comunismo soviético tinha dois estágios distintos: o leninista e o stalinista. O movimento de recuo que Stalin teve de dar foi precisamente por causa da desintegração social que o niilismo provocara e que oportunamente descrevemos. Essa volta atrás foi, portanto, um redirecionamento pragmático. Mas a experiência da “libertação sexual” e a desintegração dos laços familiares que impulsionaram o leninismo deixou para o regime soviético algo de fundamental importância: o conhecimento sobre as conseqüências e o modo de implementação dessa “arma cultural” para ser usada contra os inimigos do comunismo. Na verdade, existem casos notáveis de ex-agentes da KGB que confessaram ser uma parte fundamental da estratégia da URSS contra o Ocidente a promoção da corrupção cultural. Caso notável é o de Yuri Bezmenov, aliás Thomas Schuman, que em 1983 declarou publicamente: “Apenas 15% do dinheiro, do tempo e da mão-de- obra [da KGB] é dedicado à espionagem como tal. Os outros 85% servem a um processo lento que melhor chamamos ‘Subversão Ideológica’, ou ‘Medidas Ativas’, ou ‘Guerra Psicológica’, o que basicamente significa: mudar a percepção da realidade de cada um dos americanos. Basta um pouco desse esforço para que, apesar da abundância de informações, ninguém seja capaz de chegar a conclusões sensatas, pensar no interesse de defender a si mesmo, a sua família, a sua comunidade ou o seu país”. Bezmenov acrescenta que é “um grande processo de lavagem cerebral”, que consiste de uma série de etapas, iniciando com o que a KGB chamava de “A desmoralização”, que leva de 15 a 20 anos, “porque este é o número mínimo de anos necessários para educar uma geração de estudantes no país inimigo expostos à ideologia subversiva [...] a ideologia marxista-leninista está sendo bombardeada nas jovens mentes de pelo menos três gerações de estudantes americanos [...] O resultado? O resultado que você pode ver. Muitos dos que se formaram nos anos 60, estudantes fracassados ou sub-intelectuais, agora estão ocupando posições de poder no governo, na administração pública, nos negócios, na mídia, no sistema educacional [...] estão contaminados, eles são programados para pensar e reagir a certos estímulos [...] não podem mudar suas mentes, mesmo se você provar-lhes que o branco é branco e preto é preto. O processo de desmoralização nos Estados Unidos já foi basicamente concluído [...] a desmoralização atingiu áreas onde previamente nem mesmo o camarada Andropov e todos os seus especialistas haviam sonhado, houve um sucesso tão tremendo que a maior parte da desmoralização é feita por americanos mesmo, e isso graças a falta de padrões morais”.[116] Após a desmoralização, abre-se o caminho para a etapa da “desestabilização”, onde já começam as mudanças nas instituições políticas e econômicas em favor da ideologia marxista-leninista, fim primordial da etapa de desestabilização. À luz de informações como essas, é interessante notar que depois da virada copernicana feita pelo stalinismo, não vimos surgir nenhuma outra teoria importante para o feminismo advinda dessas fontes. Pelo contrário, a terceira onda, iniciada nos anos 60 — período coincidentemente destacado por Bezmenov — será engendrada por teóricos ocidentais, residentes em países capitalistas, principalmente nos Estados Unidos e na França, enquanto na URSS as revistas feministas eram fechadas e os ativistas eram deportados.[117] A terceira onda do feminismo
Como foi dito anteriormente, não há acordo unânime sobre o
que deve ser considerado pertencente à primeira, segunda ou terceira onda do feminismo. Comecemos por destacar esta advertência: alguns autores consideram que o feminismo surgido nos anos 60 do século XX é na verdade uma segunda onda de feminismo, enquanto outros, como nós, consideram que é uma terceira onda feminista, sendo o sufragismo a segunda onda. Seja como for, preferimos seguir uma abordagem diferente e considerar o feminismo ilustrado, liberal e sufragista como uma primeira onda; o feminismo marxista como a segunda onda; e o “feminismo culturalista”, “radical” e/ou “neomarxista” como a terceira onda, responsável pela germinação da chamada “ideologia de gênero”. Esclarecido isso, o feminismo que passsamos a descrever sucintamente tem a peculiaridade de não se mover no terreno de reformas políticas formais, como as liberais, ou no campo quase exclusivo da economia como o marxista, mas em um campo muito mais vasto e, portanto, mais complexo: o da cultura. A filósofa espanhola Amelia Valcárcel entende que o surgimento da terceira onda feminista foi precedido pelo que ela chama de “interregno”, que é definido pelos escritos da americana Betty Friedan e seu livro A mística da feminidade publicado em 1963, um trabalho chave para o feminismo dos anos 70. Nele, Friedan, em resumo, entende que as vitórias feministas no campo dos direitos civis e políticos não alcaçaram a libertação feminina. O que seguiria “oprimindo” as mulheres, então? Ela responde: os aspectos culturais do “papel feminino”, isto é, as regras informais associadas às mulheres, entre elas, a de ser esposa e mãe, por exemplo. Friedan não considera que as netas das sufragistas feministas continuaram a luta de suas avós em planos renovados da vida; ao contrário, aponta que elas simplesmente se acomodaram ao papel de esposa e mães de filhos. Isso se deveu, segundo Friedan, a uma superestrutura cultural que havia desenvolvido uma “mística da feminilidade” opressora. Nas palavras da autora: “Segundo a mística da feminilidade, as mulheres não têm outra maneira de criar e sonhar o futuro. Elas não podem considerarem-se a si mesmas sob qualquer aspecto que não seja o de mãe de seus filhos ou de esposa de seu marido”[118]. Com toda honestidade, não podemos dizer que o livro de Friedan é profundamente comprometido com idéias esquerdistas. Daí que digamos, seguindo Valcárcel, que é um “interregno”, um prólogo para o que será a terceira onda feminista. De fato, o poderoso em Friedan é sua crítica culturalista, que excede em muito o que é estritamente político, legal e econômico, e que vai para as profundezas do lar, alcançando até mesmo dimensões estéticas que serão tão típicas da terceira onda. Já a ativista e escritora americana Mary Inman, em seu livro Em defesa da mulher (1940), um dos quais precisamente inspiram Friedan, concluiu que “a feminilidade elaborada” e a “ênfase excessiva na beleza” mantêm as mulheres como vassalas.[119] Essas são as sementes do culto da fealdade e do mau-gosto que caracterizam nossas feministas radicais de hoje. No entanto, os fatos que são geralmente identificados como originadores da terceira onda feminista são, como não poderia ser de outra forma, aqueles do maio de 1968 francês. E o livro que está localizado como o fundamento dessa onda é O Segundo sexo, da escritora existencialista Simone de Beauvoir, publicado em 1949, quatro anos após o voto feminino na França se tornar realidade. A ideologia de Beauvoir é bem conhecida: ela era uma marxista convicta. Seu livro A Longa marcha, por exemplo, é uma defesa da Revolução Cultural Chinesa, campanha liderada pelo genocida Mao Tse Tung com o objetivo de impedir que a China abandonasse o comunismo ortodoxo e que consistiu em assassinatos em massa, tortura de todos os tipos, campos de concentração, destruição cultural, fome e perseguições. Na cidade de Shantou pode-se visitar hoje um museu que lembra muito de todos esses horrores que Simone de Beauvoir celebrou. Com efeito, a ideologia de gênero tem sua origem e desenvolvimento dentro da ultra-esquerda, como veremos ao longo deste subcapítulo; não se trata de um fenômeno ideológico separado de qualquer corrente moderada ou centrista, apesar de a correção política de nossos tempos ter adotado a maioria de seus postulados. Ao escrever seu livro O Segundo sexo, Beauvoir está advertindo que as concepções ortodoxas do marxismo, aquelas repassadas em seção anterior, não têm sucesso em sua aplicação real encarnada na União Soviética com promessas de libertação das mulheres. O ideal maternal do stalinismo não iria entregar as idéias de uma detratora da maternidade como De Beauvoir.[120] O problema econômico é certamente determinante ao ponto de ser condição necessária; mas claramente não é suficiente aos olhos da nossa escritora. E é aí que ela dá um grande passo, colocando a necessidade de uma profunda mudança cultural em primeiro plano: nos costumes, nas crenças, na moral. Seus esforços para explicar o conflito através de uma mistura entre marxismo e psicanálise encontra antecedentes nada menos do que nas propostas teóricas da Escola de Frankfurt, instituição intelectual tão importante e até decisiva na construção teórica do que chamamos de “neomarxismo” ou “marxismo cultural”. No entanto, é necessário não se enganar. De Beauvoir aparenta ter críticas apenas contra a sociedade ocidental e capitalista. Ao longo das mil páginas de seu trabalho, dificilmente se pode ler críticas à opressão das mulheres no bloco comunista. Pelo contrário, lemos passagens apologéticas como a seguinte: “É na URSS onde o movimento feminista adquire a máxima amplitude”. [121] E chega até mesmo prever, sem sucesso, é claro, que sob o
regime comunista a libertação das mulheres estava assegurada: “O
futuro não pode deixar de conduzir a uma assimilação cada vez mais profunda das mulheres dentro de uma sociedade outrora masculina”.[122] Até mente ou ignora flagrantemente quando anota que “exceto na URSS, em todos as partes é permitido às mulheres modernas considerarem o seu corpo como um capital para explorá- lo”.[123] De fato, pretende fazer crer o leitor que o comunismo, condizente com a promessa de Engels, terminou com a prostituição, quando, a rigor, isso nunca aconteceu, como já vimos anteriormente. A pergunta que surge imediatamente é: De Beauvoir foi maliciosa ou foi, simples e tristemente, o que Lênin chamou de “idiota útil”? Seja o que for, vamos direto ao conteúdo de O Segundo sexo, a obra mais importante do feminismo do século XX. A tese central é que “mulher” é um conceito socialmente construído, ou seja, carente de essência, artificial, sempre definido pelo seu opressor: o homem. A famosa frase que resume a proposta teórica de De Beauvoir é: “Ninguém nasce mulher: torna-se”. A tarefa das mulheres como gênero que busca se libertar é, nesse sentido, romper com o conceito cultural das mulheres e recuperar uma suposta “identidade perdida”. O primeiro princípio do existencialismo, uma corrente filosófica a qual De Beauvoir pertence e que possui como célebre referência o seu parceiro, Jean-Paul Sartre, é a afirmação de que a existência precede a essência do ser-humano. Isto significa, em poucas palavras, que o ser humano nada mais é do que o que ele faz de si mesmo. Não existe nada como uma “natureza humana”; tudo o que diz respeito ao ser humano é o resultado dos processos históricos que envolvem a evolução das sociedades. Este não é o momento para fazermos uma crítica extensiva desta visão filosófica. Mas consideremos agora o perigo de abolir em nossa consciência qualquer determinação natural no ser humano: teríamos como resultado a imagem de uma pessoa humana suspensa no nada, alienada de toda realidade externa, incapaz de orientar seus padrões culturais de acordo com o que, por razões obviamente naturais, resulta auspicioso para sua manutenção e crescimento. Uma sociedade poderia moralizar como guia cultural a ingestão de gasolina, por exemplo, mas as pessoas que se conformam a esse comportamento não poderiam evitar as conseqüências mortais de tal prática. Da mesma forma, outra sociedade poderia legislar sobre a abolição da maternidade, como pareceria agradável a mais de uma feminista, embora essa sociedade não pudesse escapar do destino que, devido à natureza finita do ser humano, a aguarda: a extinção total. Escusado será dizer que isso não significa que a história e a cultura não moldem um número incontável de caracteres do ser humano. De maneira alguma pretenderíamos negar tamanha verdade. O homem é cultura, mas também é natureza. Ou melhor dito, o homem é a natureza, mas também é cultura: nessa ordem. Tão verdadeiro quanto isso é também o fato de que sua cultura triunfa quando não vai contra sua natureza. Pode ser concebido o desenvolvimento de uma sociedade humana, por exemplo, que estabeleça o ritual cultural de castrar todos os varões recém- nascidos? E o que dizer de uma sociedade cujos membros determinam, como no experimento social de Alan Sokal,[124] que a lei da gravidade é também uma “construção discursiva” e, além disso, decidem que podem se atirar do arranha-céu mais alto sem esperar conseqüências desastrosas? Voltando ao cerne do nosso assunto, para explicar a gênese da opressão, De Beauvoir vai oferecer uma explicação histórica e antropológica da mulher, que retroage às primeiras e remotas formas de comunidade do seres humanos: os grupos nômades que precederam a agricultura, possivelmente localizado cronologicamente na Idade do Bronze. A raiz da opressão feminina, segundo sua tese, seria encontrada no fato de as mulheres primitivas não poderem participar de atividades presumivelmente valorizadas pelo grupo: fundamentalmente, a caça e a guerra. É o perigo conatural dessas atividades que lhes dá toda a sua importância social. Sob uma visão que anula os dados naturais, a exclusão feminina deve ser procurada, através de um movimento circular, novamente na cultura, e assim sucessivamente até o infinito. Mas a verdade é que a natureza explica muito claramente o fato de as mulheres terem sido protegidas pelo grupo dos perigos da guerra e da caça: as condições naturais de reprodução e maternidade, por um lado, e as características físicas dos seus corpos por outro, estruturaram a divisão elementar de tarefas de nossos ancestrais mais distantes. E isso parece ter sido necessário para a conservação e reprodução da espécie. Surpreendentemente, De Beauvoir reconhece esse fato, que, por si só, seria suficiente para derrubar sua tese fundamental de que nas mulheres nada mais há do que a cultura. “A gravidez, o parto e a menstruação diminuíram sua capacidade de trabalho e as condenaram a longos períodos de impotência; para defender-se contra os inimigos, assegurar seu sustento e o de sua prole, precisavam da proteção dos guerreiros e dos produtos da caça e da pesca, aos quais se dedicavam os homens”,[125] anota a escritora. Mas se ela aceita que a força física e a reprodução explicam a exclusão primitiva das mulheres das tarefas que seriam relevantes, a lógica mais elementar anuncia que a natureza teve um papel na formação cultural e não pode ser, portanto, descuidada em uma análise sobre a mulher e sua condição. Se foi o corpo feminino que, de acordo com suas condições e funções biológicas, fez da mulher uma mulher, então não parece assim tão convincente — e, inclusive, parece até contraditória — a famosa frase “ninguém nasce mulher: torna-se”. As contradições da esposa de Sartre em muitas passagens são impressionantes. O prestígio do homem é derivado, nos diz ela, de que as atividades que lhes são próprias encontraram sua transcendência no perigo: “para aumentar o prestígio da horda, o clã a que pertence, o guerreiro põe em jogo sua própria existência. [...] A pior maldição sobre as mulheres é encontrarem-se excluídas destas expedições guerreiras: não dando a vida, mas arriscando-a, que o homem se eleva acima do animal”.[126] Aqui a autora esquece os perigos inerentes da maternidade, acentuada em tempos passados, em que o parto, com elevadíssima freqüência, era a causa da morte. De fato, se o risco oferecido ao grupo é o que dá sentido ao prestígio do homem, não há elevados riscos também na atividade mais especificamente feminina de todas: o parto? O problema, talvez, é que Simone de Beauvoir não considera que nada biologicamente próprio da mulher possa ser considerado atividade de um projeto vital. Parece haver misoginia por trás de seus argumentos quando decreta que “engendrar, amamentar, não constituem atividades, são funções naturais; nenhum projeto os afeta; por isso a mulher não encontra nessas atividades a razão de uma afirmação altiva de sua existência; sofre passivamente seu destino biológico.”[127] É impressionante que quem que nunca concebeu ou amamentou faça semelhante afirmação. De onde é que a escritora francesa tira que o fato de trazer uma nova vida ao mundo e se esforçar por sua proteção e desenvolvimento não afeta em nada qualquer projeto? Nada fica claro. Parece que sua própria biografia influencia seus argumentos: ela nunca quis ter filhos e, em vez disso, escolheu matá-los em seu ventre.[128] É paradoxal que, para De Beauvoir, dar vida não seja um “projeto”, enquanto matar o é. E ainda mais: o autoritarismo de Beauvoir nesta matéria ficou claro em um diálogo de 1975, quando ela argumentou que “não deve ser permitido a nenhuma mulher ficar em casa para criar seus filhos. A sociedade teria que ser completamente diferente. As mulheres não devem ter essa escolha, precisamente porque se existe tal escolha, muitas mulheres irão toma-la”.[129] Deveriam, então, as mulheres fazer suas próprias escolhas, ou seguir as ordens de De Beauvoir? Seja como for, a parte mais importante do trabalho de Simone de Beauvoir é ter pincelado os primeiros esboços significativos da ideologia de gênero. A distinção entre sexo e gênero aparece, portanto, muito clara em seu trabalho: o sexo, como fato natural, não tem nenhuma relevância; gênero é tudo. Homem e mulher nos são apresentados como corpos cuja especificidade natural não guarda a menor importância em relação ao que eles mesmos podem ser; eles são como uma página em branco, uma tabula rasa, pronta para ser escrita pelo peso supostamente autônomo da cultura. Com efeito: “Ninguém nasce mulher: torna-se”. Em outras palavras, não importa o que o corpo naturalmente traz; importa exclusivamente como o indivíduo é socializado. E, como é evidente, tudo isso implica importantes mudanças estratégicas. A estratégia que o feminismo deve elaborar agora tem um caráter cultural predominante: a liberação não só tem que ser concretizada com a incorporação das mulheres no mundo econômico do trabalho e da produtividade, como os marxistas ortodoxos pensavam seguindo Engels, mas também, e tão importante quanto, com a destruição da superestrutura — moral, religiosa, ideológica, legal, familiar — em vigor. A conclusão que De Beauvoir oferece de toda a sua obra vai nessa direção: “Não devemos acreditar que basta modificar sua situação econômica para que a mulher se transforme; esse fator foi e continua a ser o principal fator em sua evolução, mas desde que não tenha as conseqüências morais, sociais, culturais etc. que anuncia e exige, a nova mulher não poderá aparecer”.[130] Quando o feminismo assume uma estratégia cultural e se choca com o marxismo em sua cruzada contra a sociedade capitalista, o resultado é uma das diversas mãos que sustentam o que temos aqui chamado de “neomarxismo” ou “marxismo cultural”. Simone de Beauvoir será seguida na década de 70 por uma corrente de feministas radicais que levará os argumentos e pretensões um passo adiante. Uma delas será a americana Kate Millet, que vai enfatizar o conceito de “gênero” para rejeitar os dados da biologia, e defenderá “o caráter cultural do gênero, definido como a estrutura da personalidade de acordo com a categoria sexual”.[131] Outra feminista especialmente controversa é a canadense Shulamith Firestone, que declarará que “as feministas têm que questionar, não apenas toda a cultura ocidental, mas também a organização da própria cultura, e até mesmo a própria organização da natureza”.[132] (O leitor lembra o que Ludwig von Mises havia avisado já na década de 1920?). Para o feminismo radical que nasce nos anos 70, o problema da opressão das mulheres está em toda parte; as esferas pública e privada são escrutinadas de igual maneira, já que a cultura é o objetivo chave. Millet imortaliza em sua obra Política Sexual (1969) uma frase que se encarnará como slogan de grupos feministas de ontem e de hoje: “O pessoal é político”.[133] A noção de “patriarcado” encontra significado especial neste contexto, como regime político de sexo masculino que vai muito além das dimensões públicas. A família é então considerada como a principal instituição social que reproduz a “estrutura patriarcal”, e toda a munição feminista é usada principalmente contra ela e o casamento: “A principal instituição do patriarcado é a família”,[134] observa Millet. O objetivo marxista da abolição da família e da propriedade privada é mantido; o que muda é o sujeito da revolução e a análise das contradições. É interessante mencionar um pouco mais sobre as idéias da já citada Firestone, porque elas ilustram muito bem o pensamento feminista radical-socialista da terceira onda. Sua obra A Dialética do Sexo (1970) causou furor em seu tempo. Misturando o marxismo e o freudismo, Firestone, desde o início, supera o reducionismo economicista que impediu Engels de enxergar um pouco mais longe: “Há um nível de realidade que não provém diretamente da economia”,[135] sentencia ela. Esse nível vem da cultura, que é onde Firestone tentará penetrar. Firestone entende que a raiz do problema da mulher está em sua função reprodutiva e traça um paralelo com os problemas produtivos do proletariado, a ponto de nomear as mulheres como “classe sexual”. Assim como o proletário — de acordo com as teorias marxistas — faz sua revolução expropriando os meios privados de produção, as mulheres devem realizar sua própria revolução colocando a reprodução sob seu controle. E assim como Engels entendeu que a partir de uma revolução socialista se derivava a libertação das mulheres, Firestone entende o oposto: a partir de uma revolução feminista, pode se esperar a abolição das classes.[136] Deste modo, Firestone proporá um tipo de programa mínimo para a revolução feminista, composto por quatro pontos que, resumidamente, são os seguintes: 1) Abolir a função reprodutiva das mulheres de acordo com as tecnologias de reprodução artificial e a legalização do aborto; 2) Conseguir a absoluta independência econômica de mulheres e crianças, o que significa abandonar a economia capitalista e adotar um sistema socialista (“É por isso que devemos falar sobre o feminismo socialista”,[137] afirma Firestone); 3) Incluir mulheres e crianças em todos os aspectos da sociedade, destruindo tudo o que protege a individualidade e destruindo as “distinções culturais entre homens/mulheres e adultos/crianças”;[138] 4) Alcançar “a liberdade de todas as mulheres e crianças para fazer o que quiserem sexualmente”.[139] O propósito expresso de tudo isso é a destruição da família, já que isso seria “a fonte da repressão psicológica, econômica e política”.[140] A terceira onda do feminismo, como vemos, torna as relações entre os casais uma área de luta e ódio permanentes. Se se pode considerar que a revolução da URSS foi uma “revolução falida” foi precisamente por ter revolucionado apenas no que concerne à esfera econômica e não ter implementado completamente e sustentado esta revolução no campo das relações interpessoais e familiares.[141] Firestone está preocupada primordialmente, além da questão feminina, com a questão das crianças. E ela entende que o socialismo não pode ser construído se não for possível cortar os laços de uma geração com a anterior, de modo que o Estado possa formá-la até a raiz.[142] “Legalmente, as crianças permanecem sob a jurisdição dos pais que podem fazer com eles o que eles quiserem”,[143] reclama Firestone curiosamente. Sob qual jurisdição, então, eles deveriam estar? Bem, é claro, sob o Estado socialista. O processo de destruição da família não pode acontecer a qualquer momento, mas envolve mudanças graduais, que incluem até pedofilia. Firestone os descreve da seguinte maneira: “No início, no período de transição, as relações sexuais provavelmente seriam monogâmicas, mesmo que o casal decidisse viver com os outros. [...] No entanto, depois de muitas gerações de vida não-familiar, nossas estruturas psicossexuais podem ser tão radicalmente alteradas que o casal monogâmico se tornaria obsoleto. Podemos apenas imaginar o que poderia substituí-lo: talvez casamentos por grupos, grupos conjugais transexuais que também envolvam crianças mais velhas? Nós não sabemos”.[144] O projeto de Firestone é alcançar uma sociedade socialista onde a família é substituída pela household, uma espécie de casa composta de pessoas que não têm uma ligação de sangue. Aqui, depois de “algumas gerações”, será possível que “as relações entre pessoas de idades muito diferentes se tornem comuns”.[145] Assim, “o conceito de infância foi abolido, as crianças têm plenos direitos legais, sexual e econômico, suas atividades educacionais/laborais não diferem da dos adultos. Durante os poucos anos da infância, substituiríamos a “paternidade” psicologicamente destrutiva de um ou dois adultos arbitrários, distribuindo a responsabilidade do cuidado físico por um grande número de pessoas. A criança ainda pode formar relacionamentos amorosos íntimos, mas, em vez de desenvolver um relacionamento próximo com uma ‘mãe’ e ‘pai’ decretados, a criança pode agora formar laços com pessoas de sua própria escolha, de qualquer idade ou sexo. Portanto, todas as relações entre adultos e crianças serão escolhidas mutuamente”. [146] E logo depois sentencia: “Se a criança pode escolher se
relacionar sexualmente com adultos, inclusive se ela deve escolher
a sua própria mãe genética, não haveria nenhuma razão a priori para que ela rejeitasse os avanços sexuais, porque o tabu do incesto teria perdido sua função. [...] As relações com crianças incluem tanto sexo genital tal como a criança é capaz de receber — e, provavelmente, é muito maior do que agora cremos — porque o sexo genital já não seria o foco central da relação, porque a falta de orgasmo não apresentaria um problema sério. O tabu das relações adulto/criança e homossexual desapareceria”.[147] Mas as relações pedófilas tem dois limites, diz-nos a boa Firestone, pretendendo moderar-se: o limite do consentimento da criança por um lado e, por outro, o limite biológico. De modo que, se um homem adulto quer ter relações sexuais com uma menina ou um menino de quatro anos, por exemplo, deve somente assegurar-se que as dimensões de seu ânus ou vagina são penetráveis. O truque que Firestone usa para legitimar a pedofilia é muito claro: pôr par a par a capacidade de discernimento e de escolha de uma criança com a de um adulto, como se ambos dispusessem de igual poder físico, manipulação psicológica e maturidade emocional. Como fica claro, Firestone atribui grande significado à legitimidade da pedofilia como parte da revolução socialista. Mas a sua não é uma opinião isolada dentro do feminismo dos anos 70: também a mencionada Millet escreveu que as crianças devem “se expressar sexualmente, provavelmente de início apenas entre elas, mas, posteriormente, também com os adultos”.[148] Além disso, a própria de Beauvoir, quatro meses antes do surgimento da Frente de Libertação dos Pedófilos, em França, assinava uma solicitação no jornal Le Monde (26 de janeiro 1977) em favor da libertação de três pedófilos que estavam comparecendo diante do tribunal por manter relações sexuais com crianças e produzir pornografia infantil — “Três anos de prisão por algumas carícias e beijos, é o suficiente!”, minimizava o assunto. E para a questão da pedofilia, as teóricas feministas assomam também a reivindicação do incesto. Firestone, por exemplo, recomenda que, para que as crianças não cresçam “sexualmente reprimidas”, são os pais que devem inicia-las em sua vida sexual. De fato, ela recomenda que a primeira felação da criança seja praticada por sua própria mãe. Mas existe uma maneira mais determinante de romper todos os laços familiares do que promover relações sexuais entre adultos e crianças, e entre pais e filhos? Ela sabe, a partir de Freud, da importância que tem para a cultura a repressão do erotismo que a criança presumivelmente sentiria por sua mãe; e provavelmente também sabe, a partir de Claude Lévi-Strauss, do papel que a proibição do incesto desempenha na cultura de toda sociedade humana. Com efeito, não há maneira mais eficaz de destruir a cultura e a família do que tornar condutas aceitáveis comportamentos como a pedofilia e o incesto; da década de 1970 em diante, então, o feminismo radical trará, às vezes mais explicitamente, outras vezes mais implicitamente, essas afirmações horripilantes dentro de seu programa. Já entrando na década de 1980, outra americana, Zillah Eisenstein, desenvolverá com mais precisão essa síntese entre o feminismo radical e o marxismo. O objetivo do feminismo seria, em uma palavra, estourar tanto o “regime patriarcal” quanto o sistema capitalista, uma vez que haveria uma relação de coexistência e dependência mútua entre eles. A destruição do primeiro é assegurada pela destruição da família e do casamento; a destruição do segundo vem por meio de uma gradual abolição da propriedade privada. Ambas as coisas devem ocorrer em uníssono. O que Eisenstein oferece é principalmente um refinamento da teoria de Firestone na tentativa de determinar, mais especificamente, a relação entre o suposto “patriarcado” e o capitalismo, o que lançaria luz sobre a necessidade de que o feminismo seja socialista, e o socialismo seja feminista.[149] Igualmente, tenta superar as propostas teóricas de Millet, em especial o argumento de que “devemos fazer perguntas feministas, mas tentando chegar a respostas marxistas”; para Eisenstein, isso implicaria numa dicotomia entre marxismo e feminismo que deve ser apagada em favor de uma síntese harmoniosa entre as duas ideologias. Assim, seu principal argumento é que a instituição familiar funciona para a manutenção do capitalismo, e explica nos seguintes termos: “A família sob o capitalismo reforça a opressão das mulheres. A família apóia o capitalismo, proporcionando uma maneira de manter a calma, o que é uma parte muito importante do capitalismo. A família apóia economicamente o capitalismo, fornecendo uma força de trabalho produtiva e o suprimento de um mercado consumidor de massa. A família também desempenha um papel ideológico ao cultivar a crença na liberdade, no individualismo e na igualdade básica da estrutura de crenças da sociedade.”[150] Por essas razões, os inimigos do capitalismo e da sociedade aberta deveriam se concentrar em destruir a família: destruir a ordem e a calma que ela proporciona; destruir a força de trabalho que ela gera para o mercado; interromper a socialização que ela atinge em valores como liberdade e respeito pelo valor dos indivíduos. Em uma sociedade socialista, o que, na ordem capitalista, é gerado pela família e pelo mercado por ordem espontânea, torna-se uma responsabilidade do Estado: socialização em certos valores escolhidos pela direção política; a direção da atividade econômica (consumo e produção) e a manutenção da ordem tornam-se funções do Estado e, portanto, totalitárias. O resultado nunca pode ser libertação, mas, pelo contrário, a opressão inescrutável e a exploração, de cuja realidade deram conta as experiências comunistas do século XX, seus genocídios, fomes e campos de concentração. Mais tarde veremos como o capitalismo, ao contrário do que dizem estas teóricas que servem menos às mulheres do que ao socialismo,[151] gerou as condições econômicas, tecnológicas e sociais profundamente libertadoras (no sentido saudável do termo) para a mulher. É importante enfatizar que, além de melhorar a conjunção de feminismo e marxismo tentada por Firestone e Millet, não menos importante é o fato de que Eisenstein vai mais além na relativização do dado natural em favor da teoria de gênero.[152] Ao contrário de Firestone, que encontrava no dado biológico da reprodução a raiz da opressão da mulher, Eisenstein concluirá, aproximando-se um pouco mais de De Beauvoir, ainda que com um marxismo mais explícito, que “a classe sexual não é oprimida biologicamente, mas é culturalmente oprimida”.[153] E acrescentará como um alvo do feminismo o modo de relação sexual que as feministas, desde então até hoje, mais desprezam e que com maior afinco procuram destruir: a heterossexualidade. “O agente da opressão é a definição cultural e política da sexualidade humana como ‘heterossexual’. A instituição da família e do casamento e os sistemas de proteção legal e cultural que reforçam a heterossexualidade são as bases da opressão política das mulheres”,[154] sentencia Eisenstein. A verdade é que não fica claro o porquê a heterossexualidade é opressiva para as mulheres; o que deve ser deduzido, em todo caso, é que sendo a heterossexualidade a base e a gênese da unidade familiar, ela deve ser destruída como forma indireta de destruir a esta última, e como modo indireto, por sua vez, de derrubar um dos pilares da ordem capitalista. Essa é a razão pela qual tanto lesbianismo abunda nos movimentos feministas, derivado em muitos casos de um forte componente ideológico. O homem tornou-se alvo de desprezo absoluto, e o simples ato de conceber um relacionamento amoroso com ele é equivalente a “dormir com o inimigo”. Impossível, nesse sentido, não mencionar a teórica feminista Andrea Dworkin (Universidade de Minnesota), também pertencente ao feminismo dos anos 70, cujas teses mais eloqüentes afirmam que toda a relação heterossexual é um estupro contra as mulheres e que o casamento é uma “licença legal para o estupro”;[155] ou a feminista australiana Sheila Jeffreys (Universidade de Melbourne), para quem a relação heterossexual é o fundamento que sustenta o “sistema patriarcal”.[156] Ou como esquecer francesa Monique Wittig — que aprofundaremos no próximo capítulo —, que entendia que ser lésbica “é a rejeição do poder econômico, ideológico e político de um homem”[157] porque “o lesbianismo oferece, no momento, a única forma social na qual podemos viver livremente”![158] Vimos até aqui como a terceira onda do feminismo mantém seus laços com o socialismo, como ocorria já na segunda, embora favorecendo uma estratégia de batalha cultural em vez do antigo economicismo que supunha que a modificação das relações de produção traria conseqüências lineares na modificação das formas de vida. Agora é a modificação das formas de vida que implica em modificações estruturais dos sistemas políticos e econômicos (marxismo cultural). E nós vimos também o modo o qual a idéia de gênero como algo independente do dado natural é exacerbada como uma estratégia para destruir as instituições sociais que seriam funcionais ao capitalismo: a família monogâmica, a proibição do incesto e da pedofilia, a heterossexualidade, etc. A partir daqui, surge a ponte entre essa terceira onda feminista, desconstrutiva e culturalista, e que nos anos 90 passou a ser conhecida como “teoria queer”, à qual dedicaremos a seção seguinte.
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Antes de continuar com nossa análise da ideologia queer,
permita-nos ter um breve espaço para fazer essa digressão: o que a esquerda começa a fazer com o feminismo a partir da segunda onda, e depois se reforça com a terceira onda, é gerar uma ideologia segundo a qual homens e mulheres constituem sujeitos irreconciliáveis, cujos interesses objetivos e subjetivos não podem ser harmonizados senão através de uma luta política, muitas vezes até violenta. Não há melhor maneira de demonstrar o caráter falacioso dessa ideologia do que recorrendo ao seu oposto. De fato, pode-se demonstrar que é possível chegar às mesmas conclusões pondo no lugar da opressão das mulheres uma suposta opressão do homem. Poderíamos concluir que estamos diante de algo não muito mais profundo do que um panfleto maniqueísta do bem contra o mal facilmente invertível. Para nossa surpresa, este trabalho foi realizado, não por um homem, mas por uma mulher argentino-alemã, uma médica, psicóloga e socióloga de formação, que em seu ódio contra as mulheres escreveu um livro em que queria mostrar ao mundo que, na verdade, o homem foi “explorado”. A reminiscência do pensamento marxista foi tão evidente em seu trabalho que o jornal alemão Kölner Stadtanzeiger qualificou-a de “o Karl Marx dos homens”. Referimo-nos a Esther Vilar e seu livro El Varón Domado, publicado em 1973. Em uma palavra, Vilar nos diz que o mundo pertence às mulheres, uma vez que elas exercem uma dominação sobre o homem cujo efeito mais importante é o fato de ele ter trabalhado para ela ao longo de toda a história. Vilar acredita que o homem é vítima das mulheres e não o contrário. E assim é que “as mulheres são constantemente enriquecidas por um sistema primitivo mas eficaz de exploração direta: casamento, divórcio, herança, pensão de viúva, aposentadoria por velhice e seguro de vida”.[159] Sua teoria é tão maniqueísta quanto a feminista quando nos diz que “a menina é educada para exploradora e o menino para ser objeto de exploração”.[160] Parece incrivelmente similar a todas as teorias que estamos revendo, embora invertendo a posição dos atores. Mas a exploração do homem seria sustentada, por acaso, por uma superestrutura cultural que, do berço, o programaria para sustentar a vida da mulher que trabalhava para ela. (Essa história toda ainda é familiar?) Assim, Vilar nos dá como exemplo até os jogos infantis: “O menino é aplaudido por tudo que faz, a não ser que brinque com homens em miniatura. Constrói modelos de escolas, de pontes, de canais, desmonta carros de brinquedo por curiosidade, dispara armas de brinquedo e se exercita em tudo o que precisará mais tarde para manter a mulher”.[161] Lamentamos insistir, mas o paralelismo com as feministas que rangem os dentes contra as formas “sexistas” dos jogos infantis é óbvio demais. “O pessoal é político”, para parafrasear Millet, também poderia ser o slogan de uma cruzada misógina. Também é interessante notar que esta socióloga usa as mesmas armas que as feministas para mostrar o oposto, e usa um léxico que é muito similar. Em seu trabalho pode-se ler frases como: “a mulher não atribui ao homem mais valor do que sua função alimentícia”;[162] para a mulher “o homem é um tipo de máquina que produz valores materiais”;[163] a propriedade privada é “útil apenas para mulheres”,[164] entre outras de calibre semelhante. Como a história feminista, a história misógina de Vilar visa “desconstruir” esquemas culturais e, conseqüentemente, atribui grande importância à questão de conceitos e palavras, como o caso da “honra viril”, do “sexo belo”. “Dar a vida pela mulher”, entre outras, seriam criações femininas para subjugar o homem e mantê-lo sob seu jugo. O mais surpreendente é que, invertendo o lugar dos opressores e dos oprimidos, Vilar acaba nos dando as mesmas conclusões que o feminismo radical: que a instituição familiar é opressiva; que a propriedade privada é a base da dominação de um dos sexos; que o casamento é um desvalor; que ter filhos é supérfluo e só aumenta a opressão; que o homem é, em uma palavra, irreconciliável e incompatível com as mulheres. Chegar à mesma conclusão a partir de uma hipótese exatamente inversa nos fala do caráter imaginativo de todos esses panfletos, feministas e misóginos, igualmente. A ideologia queer
Não poderíamos começar esta seção sem primeiro responder a
uma pergunta que surge da própria legenda: o que chamamos de queer? A palavra queer é de origem inglesa; apareceu no século XVII, em seguida, emergiu como um insulto para se referir àqueles que corrompiam a ordem social: o bêbado, o mentiroso, o ladrão. Mas logo a palavra também começou a ser usada para se referir àqueles que não se encaixavam bem na caracterização de mulheres ou homens. Como a filósofa queer Beatriz Preciado diz, “eram queer os invertidos, o bicha e a lésbica, o travesti, o fetichista, o sadomasoquista e os zoófilos”.[165] Mas o que no início era um insulto, desde meados dos anos 80 do século XX foi reapropriado politicamente pelos mesmos que se pretendia ofender. Grupos homossexuais como Act Up, Radical Furies ou Lesbian Avangers, começaram a usar a palavra queer como autodenominação, e logo o rótulo causou furor dentro de tais grupos. O insulto tomava com "orgulho" o insulto e o aplicava, desafiadoramente, a si mesmo, neutralizando e logo invertendo a sua carga valorativa. Diz-se que queer faz parte de um movimento "pós-identidade", isto é, de um movimento que coloca em questão todos os tipos de identidade. Assim, o queer seria inclassificável nas categorias de "homem", "mulher", "gay", "lésbica". Pelo contrário: o queer rejeita abertamente a existência de algo como um homem, uma mulher, um gay ou uma lésbica. Desse ponto, Preciado citou afirmações de que "ser gay não é o suficiente para ser queer: é necessário apresentar a sua própria revisão de identidade".[166] No entanto, o queer não é apenas um movimento político; tornou-se também uma corrente teórica que entrou com força total na vida acadêmica, tomando universidades e centros de estudo ao redor do mundo. Nos Estados Unidos, a primeira universidade que contribuiu para o desenvolvimento dessa teoria foi a Universidade de Columbia, seguida pelo Centro de Estudos Lésbicos e Gays da Universidade da Cidade de Nova York. Hoje esta instituição possui o Centro de Estudantes Lésbicas, Gays, Transgêneros e Queer. Também encontramos neste país revistas acadêmicas que promoveram o tema, como The Journal of Sex Research, The Journal of Homosexuality, The Journal of the History of Sexuality, A Journal of Lesbian and Gay Studies. (Lembra-se o leitor das confissões do ex-agente da KGB, Yuri Bezmenov, sobre a importância de invadir o mundo acadêmico do Ocidente como forma de desmoralizar e alienar gerações inteiras?) No Canadá também é muito forte a presença do queer nas universidades; a Universidade de Toronto, por exemplo, tem um programa chamado “Orientação Queer”, dependente do “Escritório de Diversidade Sexual e de Gênero”. Neste país, podemos encontrar revistas como o Journal of Queer Studies in Education. Na Europa, entretanto, o pioneira nesses estudos foi a Universidade de Utrecht, localizada na Holanda, com seu Departamento de Estudos Interdisciplinar de Gays e Lésbicas, que também edita o Forum Homosexualität und Literatur. Na América Latina, a Universidade Nacional Autônoma do México tem o Programa Universitário de Estudos de Gênero, onde a atenção foi dada ao assunto. E na Argentina, podemos encontrar outras instituições da vida acadêmica, como o Grupo de Estudos de Sexualidade da Universidade de Buenos Aires, ou o Centro de Estudos Queer da Universidade Nacional de Río Cuarto (Córdoba). Há uma expressão em inglês que os movimentos queer adotaram para se referir a tudo isso: queering the academy, que seria algo como “desestabilizar” ou “subverter” a academia. Se bem que normalmente assinale-se a filósofa lésbica Judith Butler como a referência intelectual por excelência da ideologia queer, no pensamento da filósofa feminista (também uma lésbica) Monique Wittig encontramos sólidos antecedentes que nos obrigam a mencioná-la, mesmo que brevemente. De fato, sua produção intelectual, temporalmente localizada nos anos 80, começa a questionar a existência do sexo e gera uma ponte muito sólida entre feminismo e movimentos que, sem incluir as mulheres, têm seu eixo na questão de gênero. Uma de suas idéias fundamentais é que a “opressão das mulheres” e a “opressão da homossexualidade” são efeitos da mesma causa: um regime político de “heterossexualidade compulsória”. Assim, em seu ensaio A Categoria do Sexo nos dirá que “a categoria sexo é o produto da sociedade heterossexual que impõe às mulheres a obrigação absoluta de reproduzir ‘a espécie’, ou seja, reproduzir a sociedade heterossexual.”[167] Falácia curiosa da escritora francesa: nenhuma sociedade ocidental legislou qualquer obrigação reprodutiva ao sexo feminino e não pode sequer afirmar seriamente que existe uma norma cultural “absoluta” sobre ela; a própria Wittig, que nunca foi mãe pode dar conta com o seu próprio exemplo de vida e suas decisões pessoais que nenhuma obrigação reprodutiva existe em nossas sociedades, que não poderiam ser encontrados em sistemas comunistas (afins à ideologia de Wittig)[168] como o maoísmo chinês, que regulamentou questões relacionadas à reprodução sexual, mas não parece perturbar a francesa em questão. Em todo caso, é a biologia que dita as condições sob as quais a humanidade enquanto tal pode ser reproduzida, e daí deriva a categoria de sexo que Wittig falsamente impõe à política. Mas o que nos interessa sobre Wittig são, acima de tudo, suas idéias sobre como subverter a ordem estabelecida; e aqui nós rastreamos o queer de seu pensamento. Em resumo, sua proposta é destruir o homem e a mulher como tais. Como? O lesbianismo terá aqui um papel central: “por sua própria existência, uma sociedade lésbica destrói o fato artificial (social) constituindo as mulheres como um ‘grupo natural’.”[169] Tal como Wittig nos diz, a lésbica não é uma mulher, é uma subjetividade que quebra o binarismo, o que mostraria que não há nem mesmo um sexo feminino. Com efeito, Wittig entende que “recusar-se a tornar-se heterossexual (ou permanecer como tal) sempre significou, conscientemente ou não, recusar-se a tornar-se mulher ou homem. Para uma lésbica isso vai além da mera rejeição do papel da ‘mulher’. É a rejeição do poder econômico, ideológico e político do homem”.[170] O giro de Wittig é impressionante: representa um feminismo cujo objeto é, paradoxalmente, destruir a mulher, como ela mesma reconhece explicitamente: “nossa sobrevivência exige que nos dediquemos com todas as nossas forças para destruir essa classe — as mulheres — com a qual os homens se apropriam das mulheres. E isso só pode ser alcançado com a destruição da heterossexualidade como um sistema social baseado na opressão das mulheres pelos homens”.[171] Embora Wittig fale constantemente sobre a luta de classes entre homens e mulheres, o que pode remeter para o economicismo do marxismo clássico, ela é uma expoente fiel do marxismo cultural, uma vez que favorece a subversão da linguagem e da moral. Em seu ensaio Pensamento heterossexual, ela nos diz que “a transformação das relações econômicas não é suficiente. Devemos realizar uma transformação política dos conceitos-chave, isto é, dos conceitos que são estratégicos para nós. Porque existe uma outra ordem de materialidade que é a da linguagem (...) essa ordem, por sua vez, está diretamente ligada ao campo político”.[172] Seu romance O Corpo Lésbico[173] é um exemplo de subversão da linguagem, e dessas propostas práticas como as que vemos atualmente, mesmo em textos supostamente acadêmicos ensinados em universidades ao redor do mundo, de escrever eliminando o gênero ao modificar as letras ‘a’, ‘e’ e ‘o’ pela letra ‘x’. É que o maldito “patriarcado” estaria presente mesmo em ... nossa maneira de escrever. Deixando Wittig de lado, a teoria queer mais importante é a da já mencionada Judith Butler, cujo trabalho O Gênero em Disputa (1990) é considerado fundamental[174] desta nova tendência que visa “desconstruir” ainda mais incisiva e absolutamente (se possível) a noção de gênero e sexualidade, para torná-las peças de museu, categorias inutilizáveis, espaços politicamente fechados pela ideologia de gênero. Essa etapa, da terceira onda ao chamado queer, é de alguma forma assumida por Butler quando, em seu prólogo à edição de 1999 do citado texto, observa que “enquanto escrevia compreendi que eu mesma mantinha uma relação de combate e antagonismo ante certas formas de feminismo, embora eu também tenha entendido que o texto pertencia ao próprio feminismo”.[175] Ou seja, Butler consegue gerar um novo ponto de inflexão no feminismo, mas não deixa de estar dentro dele. Butler é uma feminista, mas de um novo tipo de feminismo que trata de apontar os “limites” que a teoria feminista em geral atribuiu ao gênero, descobrindo que eles sofrem de uma “pressuposto heterossexual dominante” que estabeleceu um número limitado de gêneros a definir. O que Butler procura, portanto, é “facilitar uma concordância política do feminismo, das visões gays e lésbicas sobre o gênero”[176] e as outras “modalidades” sexuais; em outras palavras, esticar tanto o conceito de gênero até que nele caibam as mais estranhas formas e gostos sexuais. Hegemonia, em outras palavras. O livro de Butler, como uma boa pós-estruturalista, é extremamente complicado de ler, e provavelmente mais complicado de explicar em alguns parágrafos como propomos aqui.[177] Pode-se dizer que todos os seus esforços visam modificar o “sujeito” político do feminismo, recriar uma área de representação muito mais extensa, capaz de conter todos aqueles que, além de serem potencialmente incorporados na luta contra o homem, podem somar-se à luta contra a sociedade heterossexual e a instituição familiar. Mas, para isso, a filósofa deve demonstrar, em conseqüência, que não há nada que possa ser chamado de “mulher”. Assim, ela nos diz que as mulheres devem “entender que as mesmas estruturas de poder através das quais se pretende a emancipação criam e limitam a categoria de ‘as mulheres’, o sujeito do feminismo”.[178] Conseqüentemente, ela acrescenta: “em vez de um significante estável que exige a aprovação daqueles que pretende descrever e representar, as mulheres (mesmo que plurais) se tornaram um termo problemático, um lugar de refutação, uma fonte de angústia.”[179] Seria bom perguntar: de angústia e refutação para quem? Talvez para essa minoria conflituosa que integra o movimento feminista e queer, mas não muito mais. Vimos que, para as feministas da terceira onda como De Beavouir, o gênero constituía o lado cultural do dado natural que representava o sexo. Havia, portanto, ainda que pequena, a aceitação das condições biológicas do corpo humano (não havia sido a “origem” da opressão as condições de reprodução e a fraqueza do corpo feminino? E o que dizer de Firestone, para quem a função reprodutiva define a “classe social” das mulheres? Para Butler, o sexo “sempre foi um gênero, com o resultado de que a distinção entre sexo e gênero não existe como tal”.[180] Isto é, o sexo é verdadeiramente inexistente; essa também é uma construção do discurso, e o fato de atribuirmos certo significado a certas características biológicas é um fato arbitrário que, em todo caso, serve a interesses políticos. Mas a distinção dos sexos parece realmente arbitrária à luz das diferenças anatômicas, fisiológicas e funcionais-reprodutivas que ambos apresentam? De nenhuma forma, como se verá com mais profundidade depois; com efeito, a diferença dos corpos e suas funções constituem um conjunto de dados primários para a categorização do binômio homem-mulher, que tem sido utilizado em todas as sociedades humanas que este mundo tem visto, em primeiro lugar, quando da divisão social do trabalho.[181] (Butler pretende rebater essa realidade postulando o caso dos hermafroditas, mas eles são, gostem ou não, um caso anômalo dentro da configuração prototípica humana). O importante para Butler é quebrar o binarismo que, segundo ela, a sociedade heterossexual gerou:[182] “a regulação binária da sexualidade elimina a multiplicidade subversiva de uma sexualidade que perturba as hegemonias heterossexuais, reprodutivas e médico- legais”[183] observa a filósofa seguindo seu colega Michel Foucault — sobre quem Nicolás Márquez aprofundará mais tarde —, introduzindo-nos ao cerne da questão: temos de conseguir uma multiplicidade de gêneros que subverte o suposto “regime heterossexual”, para desmantelar algumas instituições sociais que, como vimos, feministas anteriores vincularam à sustentabilidade e reprodução do capitalismo. Então, Butler diz-nos que: “se a sexualidade é culturalmente construída dentro de relações de poder existentes, em seguida, a alegação de uma sexualidade normativa que esteja ‘antes’, ‘fora’ ou ‘além’ do poder é uma impossibilidade cultural e um desejo politicamente impraticável, que adia a tarefa concreta e contemporânea de propor alternativas subversivas de sexualidade e identidade dentro dos próprios termos de poder”.[184] Tudo isso deriva, como é claro, da falácia de que nosso sexo não é a natureza, senão também, tal qual o “gênero”, cultura. Mas por que a filósofa queer levanta essa necessidade de “desconstruir” (desarmar) até mesmo a categoria “mulher”, tão cara ao feminismo? Para as próprias necessidades da batalha cultural que ela explicitamente reconhece: “Se o que aparece como meta normativa da teoria feminista é a vida do corpo além da lei ou a recuperação do corpo perante a lei [isto significa: mulher como natureza], tal norma realmente distancia o foco da teoria feminista dos termos específicos da batalha cultural contemporânea”.[185] Uma batalha cultural, para Butler, é então aquela que procura aniquilar qualquer consideração de uma natureza propriamente humana. (Mais uma vez: você se lembra do que Mises alertou na década de 1920 sobre o socialismo e a desconstrução da natureza?) Butler pretende, então, o surgimento de vários gêneros para quebrar a coerência existente entre sexo, gênero e desejo. Eles seriam os sujeitos queer, aqueles cujo corpo não tem a ver com ambos os sexos, nem com o seu desejo. Poderíamos colocar como exemplo o caso de um homem que pensa ser mulher, e que deseja ter relações sexuais com menores de idade. Sexo, gênero e desejo correriam dessa maneira por faixas diferentes. E as “ficções reguladoras que reforçam e naturalizam regimes de poder convergentes de opressão masculina e heterossexista”.[186] Entre essa “multiplicidade” de desejos, o caso do incesto também tem lugar. Na verdade, estas alegações também são evidentes no trabalho de Butler: “Já descrevemos os tabus do incesto e o tabu anterior contra a homossexualidade como os momentos generativos da identidade de gênero, proibições gerando a identidade das grades culturalmente inteligível de uma heterossexualidade idealizada e obrigatória”.[187] Então, voltamos aos mesmos objetivos que a esquerda pretendeu para o feminismo nas duas ondas anteriores — a destruição da família e do casamento como uma maneira de derrubar a superestrutura que sustenta o capitalismo — mas agora, com outra reviravolta: aniquilar a mesma concepção de “mulher”. Mas para aniquilar o sexo, é preciso também aniquilar até mesmo a idéia de uma “identidade de gênero”, porque isso proporcionaria ao sexo uma aura de naturalidade, precisamente como sua contrapartida cultural. De tal maneira que Butler colocará em primeiro plano a importância dos travestis, dos transexuais, das diferentes modalidades de lesbianismo e de homossexuais, entre outras companhias. Ela entende que, na “atuação” que esses sujeitos fazem para se assemelhar a certos sexos ou gêneros, existem as pistas que os levam a declarar que o gênero se reproduz sob uma estrutura “imitativa”. De modo que na paródia que esses sujeitos provocam onde se há de encontrar a tão aguardada “subversão” do sistema: “a multiplicação paródica impede a cultura hegemônica e sua crítica confirma a existência de identidades de gênero essencialista ou naturalizadas”[188] diz Butler, ao que caberia perguntar se não é exatamente a paródia e a percepção de uma imitação o fato que corrobora que há originais, e a diferença existente entre, por exemplo, uma mulher e um travesti não corrobora precisamente a natureza de uma e a artificialidade de outro. Mas Butler insiste em dizer-nos que o travesti “zomba do modelo que expressa o gênero, bem como a idéia de uma verdadeira identidade de gênero”,[189] o qual poderia ser novamente lido em termos exatamente opostos: a natureza é realmente a que zomba do travesti, que apesar de sua insistência em “ser” ou pelo menos “parecer” como uma mulher, deve conduzir uma luta exaustiva e interminável contra suas próprias condições biológicas, que ele jamais conseguirá superar. O fim ao qual a estratégia butleriana leva fica plasmado na conclusão do livro: “A perda de regras de gênero multiplicaria várias configurações de gênero, desestabilizaria a identidade substantiva e privaria as narrativas naturalizantes da heterossexualidade compulsória de seus protagonistas essenciais: “homem” e “mulher”. [190] Em outras palavras, o objetivo é a destruição sexual de homens
e mulheres como produtos da heterossexualidade, o que é,
curiosamente, a forma de vínculo sexual que permite a conservação de nossa espécie. Não é verdadeiramente autodestrutiva do sujeito, mas da humanidade como tal, a proposta teórica do feminismo queer? Antes de continuar com a evolução deste pensamento por parte dos ideólogos mais tardios e seu equivalente na prática, vamos parar um momento para pensar sobre os fundamentos da proposta teórica de Butler, isto é, a idéia de que o sexo “foi sempre gênero”. Nesse sentido, o pesquisador do Centro de Estudos Livres, Fernando Romero, escreveu um brilhante ensaio em que responde a esse argumento. Em Butler há uma evasão total, como já dissemos, das condições biológicas da existência; somos apresentados ao sujeito suspenso no nada, como um semideus que se faz a si mesmo, que é portador das condições que nada têm a ver com um ambiente natural distinto do que a sua própria cultura impõe. Romero acusou os argumentos butlerianos de “monistas” precisamente por esse reducionismo manifesto e, assim, explica: “Sexo na biologia corresponde à capacidade das entidades biológicas para gerar gametas através dos quais são combinados caracteres genéticos mediante a reprodução sexual. Essa forma de reprodução ocorre no reino animal, mas também nos reinos plantae (vegetal), fungi (fungos) e inclusive em alguns protozoários (bactérias). Em algumas espécies, a capacidade de produzir gametas é dada dentro de um mesmo espécime que possui simultaneamente órgãos “femininos” e “masculinos” ou um único gameta (meiose monogâmica). Essa condição se aplica tanto ao hermafroditismo quanto à partenogênese. No entanto, na maioria dos animais e na maioria das plantas, órgãos produtores de gametas são distribuídos em espécimes separados, resultando numa alteração morfológica distinta de corpos sexuados, chamado dimorfismo sexual.”[191] Assim, as diferenças estruturais, anatômicas e fisiológicas das espécies que são caracterizadas pelo dimorfismo sexual são sempre verificáveis e, em alguns casos, realmente impressionantes. No reino animal, diferenças funcionais podem ser observadas, como na produção de veneno, enzimas, hormônios, pigmentos e sons diversos; e anatômicas, como as diferenças encontradas na constituição dos próprios órgãos, incluindo órgãos não-sexuais. Nessas espécies, dentro das quais podemos localizar o próprio homem, os dois sexos produzem diferentes componentes químicos e têm órgãos sexuais anatomicamente e fisiologicamente diferenciados, desenhados para que, quando se complementam, possam gerar uma nova vida. Muitas espécies animais não- humanas desenvolveram diferenças etológicas, isto é, formas diferenciadas de comportamento entre os sexos, que conduzem e possibilitam o acasalamento: sons, modos de andar, danças, performances, etc.[192] À luz dessa realidade, e considerando que para Butler o sexo é outro produto do “discurso heteronormativo”, pergunta Romero: “como se explicaria desde uma postura linguística as diferenças sexuais em organismos carentes de linguagem?”.[193] Pode-se responder que o problema é que a realidade biológica não pode ser abordada senão discursivamente; que a ciência cria suas próprias categorias de identificação de seus próprios objetos de estudo e, assim, os perverte. Em outras palavras, a realidade biológica não seria a realidade, mas também uma contaminação discursiva de nossa cultura. Mas tal argumento não levaria em conta as lógicas das ciências naturais e, de fato, suporia a abolição de qualquer possibilidade de conhecimento humano próximo da objetividade, que curiosamente é o que as ciências naturais, dado seu objeto particular de estudo, têm alcançado em muito maior medida do que as ciências sociais de onde este tipo de crítica provem.[194] Poderíamos fechar perguntando: se tão impossível, fictício e até absurdo é o conhecimento para as ciências biológicas e médicas, a humanidade teria perdido algo se o ser humano nunca tivesse tido uma ciência da natureza e do corpo humano? A resposta que o leitor dá a essa pergunta deve ser contrastada com a que é oferecida a essa outra pergunta: a humanidade teria perdido alguma coisa se o ser humano nunca tivesse contado com as teorias de Judith Butler? ***
Quanto à ideologia queer, no caso argentino, destaca-se a
filósofa Leonor Silvestri, militante que, além de escrever livros e ensaios, tem presença considerável no mundo acadêmico e oferece cursos queer desde sua casa, muitos dos quais podem ser vistos no YouTube. Também integra “coletivos” chamados “Ludditas Sexxxuales” e “Manada de Lobxs”, autores de um livro que não podemos deixar de mencionar: Foucault para Encapuchadas (2014). Este texto começa com uma pergunta-chave que, em sua própria formulação, revela as intenções da ideologia que representam: “Agora que entendemos que não há sujeitos da revolução, quem combate o heterocapitalismo?”.[195] E a resposta está na própria declaração, porque o que deve ser feito é destruir toda a identidade como tal, “apagar as categorias de ‘masculino’ e ‘feminino’ de acordo com as categorias de atribuição biopolítica ‘homem/mulher’. Os códigos de masculinidade são susceptíveis de abrir-se para que operemos sobre eles uma espécie do gender hacking perfo-prostésico-lexical usando jogos lingüísticos que escapem das marcas de gênero, ou pelo menos as decomponham: proliferar até o absurdo anormalidades psicossexuais”.[196] O que deve ser alcançado é “invalidar o sistema heteronormativo da produção humana e as formas de parentesco — sempre a priori heteronormais — por meio de desistir de práticas como o casamento e todos os seus substitutos”.[197] A ideologia queer tenta subverter o que ela chama de “relações sexuais heteronormativas”, o que inclui não só a relação heterossexual como tal, mas o papel em si que têm órgãos sexuais biologicamente determinados em relações sexuais (pênis e vagina). Assim, as teorias queer argentinas explicam que “a renúncia de manter relações sexuais naturalizantes heteronormais permite a ressignificação e desconstrução da centralidade do pênis e critica as categorias ‘órgãos sexuais’ (qualquer parte do corpo ou objeto pode se tornar brinquedo sexual)”.[198] De fato: “A abolição da prática da sexualidade em casal, mediante a prática de prazer em grupo com afinidades sexo-afetivas resignifica o corpo como uma barricada de insubordinação política, de desobediência sexual, de desterritorialização da sexualidade heteronormativa, seus regimes disciplinares naturalizados e sua formas de subjetivação para a posterior criação de espaços de afinidade anti-gênero e anti- humanos: destruir até as fundações a heterossexualidade como regime político. Esse é o nosso destino.”[199] Tudo isso merece uma tradução: o que se quer dizer entre tanto palavreado é que renunciar às relações heterossexuais evitaria a “naturalização” desta relação, ou seja, evitaria que, dada a sua reiteração, apareça algo próprio da ordem natural. Mas não só a relação heterossexual deve ser submetido a essa “subversão”, também o próprio uso dos órgãos sexuais no contexto do sexo, ao ponto de, também, “desnaturaliza- los” como tais. O ódio com o qual este texto é escrito é impressionante; não somente ódio aos heterossexuais, mas ao homem e à humanidade em termos gerais. As doses de violência que são incorporadas nas páginas são altíssimas. Aqui estão algumas passagens que podem esclarecer o leitor: “Sem nome, sem prestígios, sem passaportes, sem famílias, experimentamos o sabor do molotov, da nafta, a fumaça da borracha queimada cortando a ponte e abrindo o caminho como quem experimenta um maracujá, uma manga, ou o fisting [prática sexual de introduzir o punho no ânus]”;[200] “O mundo pertence aos heteros que se gabam de suas liberdades em nossos rostos. Por que eles têm que vir para nossos aniversários, nossas festas, nossos rituais, nossas marchas, nossas cerimônias? Nós não queremos tolerá-los, nem desejamos sua asquerosa dádiva gay-friendy chamada ‘apoio’, ‘integração’, ‘respeito’, ‘diversidade’ ... Não queremos suas leis anti-discriminação. Nós não os queremos. O mundo pertence aos heteros e estamos em guerra contra o seu regime. (...) Isto é apologia à violência, vamos lutar, vamos lutar contra o inimigo com nossa violência (...) O mundo pertence aos heteros e não o cederão voluntariamente. Teremos que tomá-lo à força. Haveremos de forçar o cu para que o abram”;[201] “Um exército de punhos não pode ser derrotado, meta no cu tudo o que couber. E mais, jogaremos em seus rostos de heterossexuais consternados: merda e peidos, chuvas douradas de squirt [urinação feminina]. Um riso negro que soa diabólico e alegre brota de nossas entranhas promíscuas. (...) Não nos identificamos com vocês, heterossexuais, não gostamos, desprezamos, vocês são o desprezível desperdício do capitalismo que impulsionam”;[202] “Com grande alegria nós dizemos: não vamos ter filhxs, adoramos a solidão, celebramos, apoiamos e insistimos na destruição de toda relação, da monogamia, dos laços sentimentais, dos hetero- compromissos, das paixões, do amor romântico ou dos relacionamentos escondidas sob a merda do amor livre. Todos estabelecem territórios e hierarquias de opressão”.[203] Esse tipo de idéia sobre como desconstruir a sexualidade também pode ser encontrada na referida filósofa queer espanhola Beatriz Preciado (Professora da cátedra de História Política do Corpo e Teoria de Gênero na Universidade de Paris VIII), que chama para a prática da “contra-sexualidade”, estratégia inspirada por nada menos do que Foucault: “O nome de contra-sexualidade vem indiretamente de Foucault, para quem a forma mais eficaz de resistência à produção disciplinária da sexualidade em nossas sociedades liberais não é a luta contra a proibição (como a proposta pelos movimentos de libertação sexual anti-repressivos dos anos 70), mas a contra-produtividade, isto é, a produção de formas de prazer-saber alternativas à sexualidade moderna.”[204] Então, o que se busca, mais uma vez, é negar a realidade biológica do nosso corpo para inventar excentricidades que “subvertam” as funções eróticas do pênis e da vagina: “A contra-sexualidade afirma que o desejo, a excitação e o orgasmo não são mais que os produtos retrospectivos de uma certa tecnologia sexual que identifica os órgãos reprodutores como órgãos sexuais, em detrimento de uma sexualização de todo o corpo. [...] O sexo é uma tecnologia de dominação heterosocial que reduz o corpo as zonas erógenas de acordo com uma distribuição assimétrica de poder entre os sexos (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afetos com determinados órgãos, certas sensações com certas reações anatômicas”[205] Então, Preciado nos oferece um exemplo pitoresco de como resistir ao “sistema heterocapitalista”: “a prática de fist- fucking (penetração do ânus com o punho), que teve um desenvolvimento sistemático no seio da comunidade gay e lésbica dos anos 70, deve ser considerada como um exemplo de alta tecnologia contra-sexual. Os trabalhadores do ânus são os proletários de uma possível revolução contra-sexual”,[206] diz a professora, deixando ver as raízes marxistas de seu pensamento. Tudo isso pode soar como uma piada, mas é uma realidade palpável com correlatos concretos na prática. Preciado pretende inovar com respeito a “atos contra-sexuais” e, em seguida, fornecer um manual de prática chamada “dildotectônicas”, que seriam implementadas com a ajuda de um “dildo” (vibrador) e contribuiriam para outras partes do corpo serem “sexualizadas” na luta contra a “hegemonia do pênis e da vagina” estabelecida pelo “heterocapitalismo”. Uma delas é amarrar um vibrador a um bloco de agulha e colocá-lo no ânus. Mas a prática em si não é suficiente; há todo um ritual que Preciado recomenda para que a prática seja verdadeiramente “contra-sexual”: “Tire a roupa. Prepare um enema anal. Deite-se e fique nu por 2 minutos após o enema. Levante-se e repita em voz alta: ‘dedico o prazer do meu ânus a todas as pessoas com HIV’. Aqueles que já são portadores do vírus poderão dedicar o prazer de seus ânus aos seus próprios ânus e à abertura dos ânus de seus entes queridos. Coloque um par de sapatos com salto agulha e amarre dois dildos com atadores nos tornozelos e sapatos. Prepare o seu ânus para penetração com um lubrificante adequado. Deite-se em uma poltrona e tente levar para o cu cada um dos dildos. Use a mão para o dildo penetrar seu ânus. Toda vez que o dildo sai do seu ânus, grite seu contra-nome violentamente. Por exemplo: ‘Julia, Julia’. Após sete minutos de auto-penetração, emita um grito estridente para simular um orgasmo violento. (...) A simulação do orgasmo será mantida por 10 segundos. Então, a respiração se tornará mais lenta e profunda, as pernas e o ânus estarão totalmente relaxados.”[207] Notemos o seguinte: a professora universitária deve recorrer à simulação do orgasmo, porque em virtude da natureza biológica e seguindo este procedimento absurdo, é difícil obtê-lo de uma maneira real. Exatamente o mesmo deve ser prescrito quando é recomendado “empurrar seu braço com um consolo”: “A duração total deve ser controlada com a ajuda de um cronômetro indicando o fim do prazer e o pico do orgasmo. A simulação do orgasmo será mantida por 10 segundos. Depois disso, a respiração se tornará mais lenta e profunda, os braços e o pescoço ficarão totalmente relaxados”.[208] E o mesmo recurso de simulação deve repetir-se uma outra vez em cada uma das práticas propostas porque nenhuma outra ação a não ser o fingimento pode surgir de um ato que não é acompanhado pelas regras que nosso corpo natural estabelece. Note, finalmente, o patético da proposta queer em questão. Esclarecemos que esses argumentos já estavam presentes no pensamento de Butler mesma, quando argumentou que “o fato de que o pênis, a vagina, os seios e outras partes do corpo são chamados órgãos sexuais é tanto uma restrição do corpo erógeno àqueles partes como uma divisão do corpo como um todo”. [209] Embora pareça ridículo ter que parar e demonstrar que existe natureza na nomeação do pênis e da vagina como órgãos sexuais e erógenos, vejamos rapidamente os dados que nos fornecem a anatomia do corpo humano. No caso da vagina, a sensibilidade nessa área é extrema: lá, o nervo pudendo, ramo do plexo sacro, recolhe e conduz as impressões sensitivas através do nervo dorsal do clitóris e dos lábios vaginais maiores. Da mesma forma, os nervos vasomotores acompanham as artérias que, sob a excitação, irrigam as formações eréteis. Sabe-se que a vagina contém mais de oito mil terminações nervosas. Durante o orgasmo feminino, os músculos perineais contraem-se ritmicamente devido a reflexos da medula espinhal, e as intensas sensações sexuais são dirigidas para o cérebro, causando tensão muscular em todo o corpo. No pênis, a mais alta sensibilidade é encontrada na glande, tornada possível e impulsionada pelos nervos genitofemoral e ilioinguinal, ramos do plexo lombar. A ereção é viável graças aos ramos que vêm do plexo hipogástrico inferior em que os nervos esplâncnicos pélvicos participam. Outros importantes nervos que permitem funções sexuais e de excitação são aqueles ramos que emergem da folha neuro-vascular na altura da uretra membranosa. Sabe-se que o pênis tem quatro mil terminações nervosas. Ereção é o resultado de um massivo aporte de sangue para os tecidos eréteis que circundam a uretra bulbar e peniana, com a ajuda de bulboesponjosos e músculos isquiocavernosos que comprimem os plexos venosos, impedindo o retorno do sangue.[210] Podemos encontrar essas mesmas condições anatômicas, por exemplo, para continuar com a proposta de Preciado, em um braço humano? Se a resposta é obviamente negativa: não será então que a designação dos órgãos sexuais e erógenos seja uma conseqüência dos dados de nossa realidade anatômica e fisiológica desvendados pelas ciências naturais, e não de uma “conspiração heterossexual” que o capitalismo montou para nos oprimir, argüida por alguns vendedores da fumaça das ciências sociais? O psicólogo Andrés Irasuste tem seguido de perto os principais estudos sobre as perversões que realizaram psicanalistas e psiquiatras de renome como Charles Socarides, Masud Khan, Joyce McDougall, Christopher Bollas, Albert Ellis, entre outros. Irasuste entende que as práticas sexuais como as aqui mencionadas são perversões, tanto é que aqueles que as praticam se relacionam uns com os outros como objetos transicionais: “O outro não é alguém com quem se faz amor por desejo, é um objeto ao qual se impõe uma vontade sadística, ou é uma particularidade suscetível de preencher pulsões parciais: um ânus que anule o dique da sexualidade limpa e decorosa, um corpo doador de excrementos (ou comedor de excrementos), um recipiente de esperma, uma pele, superfície a qual flagelam para fazer sangrar, para ser mordida (inclusive comida), um corpo com o qual praticar masturbação letal ou o coito com enforcamento e sufocamento”.[211] Só no âmbito dos quadros ideológicos que estamos descrevendo pode ler-se o fenômeno chamado “pós-pornô”, que desembarcou em muitos países latino-americanos, cujas performances foram mesmo apresentadas em instituições acadêmicas, como a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, ante a cumplicidade ou consentimento das autoridades. As feministas militantes praticaram nessa ocasião, em julho de 2015, rituais sadomasoquistas nos pavilhões públicos da Faculdade e outras práticas que Preciado consideraria “contra-sexuais”. Como uma nota colorida, a mais ortodoxa e “retrógrada” esquerda desaprovou a suposta performance “artística”, porque eles deixaram excrementos e urina humanos em espaços públicos, como coprofílicas práticas incluídas no “show” acima referido. Os meios de comunicação analisaram e discutiram o fato por dois dias inteiros, com pusilanimidade, expressão arquetípica da ditadura de gênero e do politicamente correto, que caracterizou as reflexões dos jornalistas “bem- pensantes”, com medo de serem “antiquados” em suas considerações. Mas em que consiste concretamente uma performance “pós- pornô”? Onde elas apareceram? Qual é o seu objeto? Muitas vezes são oferecidos espetáculos “pós-pornô” em lugares freqüentados por um punhado de pessoas, que raramente excede o número de cinqüenta. Definir a performance é complicado, porque o objetivo é precisamente a falta de definição. A prática anti-sexual é anti- identidade e, portanto, difícil de caracterizar de forma determinante. Digamos, em todo caso, que o “pós-pornô” oferece práticas sexuais ao vivo que procuram envolver atos extremamente mórbidos — perversos nos termos psicanalíticos de Irasuste — ultrapassando os limites da nossa imaginação, seguindo as teorias estranhas que temos visto. O mencionado fist-fucking é a mais moderada que se pode ver por ali. O que na maioria das vezes excita o público é o envolvimento de excrementos e urina nas relações sexuais e, claro, o chamado squirting, a “ejaculação feminina”, para a qual é dada igual importância política (não só o homem ejacularia). Mas o público não é um agente passivo; normalmente recebe em seus próprios corpos os fluidos citados e até o sangue daqueles que realizam o espetáculo. Na verdade, a mutilação também desempenha um papel importante na performance: há uma particularmente chamativa que foi preciso assistir para fazer esta pesquisa, na qual a teórica queer Diana Torres (autora de Pornoterrorismo[212]), transpassava seis agulhas no seu rosto enquanto praticava atos de masturbação. Deve-se acrescentar, no entanto, que o espetáculo não se reduz ao que se desenrola no palco: enquanto a performance acontece, todos os sentidos são atacados ao mesmo tempo, por uma tela gigante que geralmente reproduz vídeos de mutilação humana e abortos,[213] pela leitura de poesia pós-moderna, e pela execução de música “atonal” (desprovida de ritmo, harmonia e melodia), a qual, por coincidência, foi considerada pelos teóricos da Escola de Frankfurt como portadora de efeitos revolucionários.[214] O grupo o qual a argentina Leonor Silvestri intrega redefiniu o "pós-pornô” como “pornoterrorismo”, seguindo Torres — pois o objetivo é aterrorizar as pessoas através de sexo —, e entende que “como anti-arte, como arma de ação direta, como ritual de mágico encantamento, como um exorcismo público, como uma máquina de guerra contra o aparato de captura da norma social hétero, como potência visual —- contra/semioses — o PornoTerrorismo é uma maneira de construir um novo uso dos prazeres e reprogramar nossos desejos [...]. Como também destruir a inveja e a propriedade privada. [...] o PornoTerrorismo é uma forma de insurgência, divergência, contra-hegemonia, subversão, uma insurreição sexual e uma objeção de gênero”.[215] E então reforça o que já explicamos acima, apresentando ao leitor uma lista daquilo que compõe um espetáculo deste tipo: “Elementos dos jogos extremos BDSM[216] como flagelação, agulhas, ou sufocamento; a superfície da pele exposta, rosto encoberto por balaclavas típicos de insurrectos [...] Fluidos e secreções de todos os tipos: squirt, vômito, sêmen, sangue humano sobretudo o menstrual, merda; próteses tais como espéculos e cadeiras ortopédicas, vibradores e arneses; justaponha- os e brinque com eles da maneira que achar melhor”.[217] Possivelmente o arquétipo humano mais fiel às praticas contra- sexuais, do pós-pornô e do pornoterrorismo não é outro senão Armin Meiwes, mais conhecido como o “canibal de Rotenburg”, que buscava através da internet pessoas do mesmo sexo que estavam dispostos a darem suas genitálias como comida. O final da história, que aconteceu na Alemanha, é bem conhecido: Meiwes encontra alguém que concorda em poder remover seu pênis para ser frito e depois devorado por ambos os participantes. Essa história do desejo “contra-sexual” destaca os limites de nossas práticas culturais com relação às nossas condições naturais: o sujeito mutilado morrerá em poucos minutos sangrando em uma banheira. A realidade pode ser negada, mas os efeitos da realidade não podem ser evitados. O inevitável é a conclusão de que a ideologia queer gera um coquetel explosivo de ódio, violência e frustração individual. A luta interminável contra a natureza que os movimentos queer realizam está perdida antecipadamente; e as frustrações dessa derrota inevitável são canalizadas para sentimentos de raiva contra a sociedade em geral e o homem heterossexual em particular. Existem, na verdade, muitos teóricos queer que clamaram à pratica de violência abertamente. Mas há também teóricos afins ao movimento queer que fizeram eles mesmos a violência, como é o caso do comunista americano Peter Gelderloose, preso pelas forças de segurança de seu país por participar precisamente em atos de violência política. Ele escreveu um livro intitulado Como a não- violência protege o Estado (2007), onde propõe ao feminismo ações como a seguinte: “Matar um policial [...] atear fogo ao escritório de uma revista que anuncia conscientemente um padrão de beleza que leva à anorexia e à bulimia ou seqüestrar o presidente de uma empresa que trafica mulheres. [...] Atacar os exemplos mais notáveis e provavelmente incorrigíveis do patriarcado é uma maneira de educar as pessoas sobre a necessidade de uma alternativa.”[218] Há também livros e publicações queer onde experiências violentas reais são relatadas como triunfos políticos contra a “heteronormatividade” e o capitalismo. Um desses livros recentes foi intitulado Espaços Perigosos. Resistência Violenta, Autodefesa e Luta Insurrecionista contra o Gênero (2013), de autoria coletiva. A dívida da ideologia queer com a esquerda é explicitada aqui: “Os movimentos da Nova Esquerda com suas declarações nos empurraram para o fato de que a luta está em muitas frentes mais do que na simples luta de classes”.[219] Sua introdução começa assim: “Há uma violência que libera. É o assassinato de um homofóbico. [...] É o incêndio e a libertação de visões. É quebrar janelas para expropriar comida. É o madero [policial] queimado e motins atrás das barricadas. É rejeitar o trabalho, ter amizades criminosas e a completa rejeição de compromissos. É o caos que não pode ser parado”.[220] Os objetivos do texto, por outro lado, são explicitados no final do mesmo prólogo: “Esperamos que esta publicação possa contribuir de alguma maneira para a greve de gênero que irá queimar totalmente este mundo”.[221] A publicação em questão contém depoimentos de queers que valem a pena citar, a fim de medir o lugar a que o feminismo e a ideologia de gênero nos conduziram: “Nunca fui muito pacíficx. O mundo me viola e eu só quero violência contra o mundo. Qualquer um que tente tirar minha paixão por sangue e fogo, vai queimar junto com o mundo ao qual se apega desesperadamente”,[222] nos adverte um queer de forma ameaçadora. Significativa da luta impossível que esses sujeitos enfrentam contra a natureza, e as frustrações que dela derivam, é a seguinte narração de outro travesti queer: “Com alguma tristeza, reconheço meu pai em meu reflexo. Tanto o meu ‘spiro’ quanto as minhas pílulas de estrogênio terminam hoje e eu estou ficando louco. Provavelmente eles iam chegar na segunda-feira, mas talvez tenham se perdido nos correios [...]. Quero gritar. Estou prestes a explodir. Eu estou controlando o desejo de me dar um tapa, então eu começo sonhos de olhos abertos no meu cubículo cinza. Eu vejo um avião de linha seqüestrado virar e apontar diretamente para minha mesa. [...] Há um clarão ofuscante, eu desapareço e tudo arde”.[223] Outro queer, num sentido semelhante, admite: “Há algo dentro de mim que às vezes quer se tornar surdo a este ritmo, mas sei que não seria suficiente para acalmar os ecos de gênero em meu corpo e em minha vida diária, que tentei silenciar incessantemente através de hormônios, álcool, drogas e da escrita de ensaios estúpidos.”[224] Outros queer usaram estas páginas para contar e celebrar atos de violência perpetrados. Um deles relata que um vizinho que ousou manifestar-se publicamente contra uma marcha queer foi atacado por membros desse movimento: “Acabara de celebrar seu quadragésimo-primeiro aniversário em 9 de junho (2009), por isso pensamos em dar-lhe alguns presentes atrasados na forma de fortes socos. O grupo o atingiu até que os maderos [policiais] apareceram e fomos para a parte de trás do parque, sem nenhuma prisão.”[225] Outro sujeito celebra o ataque preferido de todos, aquele que é perpetrado contra a Igreja Católica: “Ontem à noite fiz uma visita à Igreja Católica. Eu fechei com supercola várias de suas portas e estourei algumas janelas. Estou segurx de que todas as pessoas que cometeram um ato de sabotagem sabem como é incrível. Se você não fez isso, você realmente deveria experimentar por si mesmx.”[226] E com o espírito tolerante e democrático que caracteriza essas pessoas, ele acrescenta: “A Cristandade precisa ser presa, empalada em uma estaca”.[227] A questão é: pode-se esperar algo mais daqueles que foram politicamente formatados em ódio e ressentimento? Na verdade, temos visto como a ideologia de gênero constrói discursivamente uma guerra entre homens e mulheres em primeiro lugar, e uma guerra entre heterossexuais e homossexuais para no final de tudo desembocar na idéia de que nem mesmo existe o sexo como tal, e ainda mais, a identidade não existe como tal. Assim, aqueles que são colocados em um lugar sexual ou de “gênero” pelo “discurso heteronormativo” seriam vítimas de uma violência planejada para manter o capitalismo; e a violência deve ser respondida com maior violência. A ideologia, portanto, os fecha perfeitamente; oferece a essas pessoas conflitadas sexual e identitariamente uma explicação que promete aliviar sua frustração, e que oferece uma saída para tantos males internos. E essa saída não tem a ver com processos de auto-reflexão, de superação, de inclusão; essa saída não é individual, mas é política e, mais ainda, a saída é a violência política. Pois o queer é incapaz de problematizar sua própria situação, sua responsabilidade; para o queer, a responsabilidade é sempre do fantasmático sistema no qual os teóricos da ideologia de gênero o fizeram acreditar e odiar, chamado “falocracia”, “heteronormatividade”, “heterocapitalismo”, ou o que quer que inventem os imaginativos “acadêmicos” dessas correntes. O testemunho de uma outra queer revela até que ponto a prática é uma conseqüência da ideologia que lhes injetam: “Na quinta-feira à noite, após uma estranha palestra motivacional radical sobre como fazer motins, um bloco negro apareceu como o quarto ataque de um dia de luta nas ruas. Este bloco particularmente feroz [...] atravessou Pittsburgh destruindo inumeráveis janelas, virando lixeiras e ateando fogo. Um colega fez uma observação: onde está o queer em tudo isso? As pessoas só se vestiam de preto e queimavam as coisas na rua. Nós respondemos: a prática de usar preto e destruir tudo é o melhor e mais estranho gesto de todos. De fato, isso nos leva ao cerne da questão: queer é negação. Ao encontrarmos nossos corpos desviados, nos tornamos uma turba, transformando nossos limites corporais em um grande problema. [...] Nossos limites desapareceram completamente ante um chão coberto de vidro e uma terra repleta de lixeiras em chamas”.[228] E então recorre à teoria de Butler “gênero performativo”, da qual já expusemos algo, para dar sentido ao ato criminoso: “Se estiver correta, a idéia de que sexo é sempre performativo, então as performances que realizamos ressoaram como o gênero mais queer de todos: o da destruição total”.[229] Ante as destruições queer na cidade, um vizinho tentou detê-las, mas “antes que ele pudesse perceber seu erro, recriamos uma cena particularmente sádica e a sangue frio sobre o idiota. Ele percebeu seu erro sob uma chuva de chutes, socos e uma grande quantidade de spray de pimenta.”[230] Nosso “democrático” queer fecha sua narrativa com a seguinte conclusão: “Oferecemos um modo de vida que pode ser entendido como a conjunção de barricadas e pernas por depilar. Mas o que há de melhor do que a mistura de arneses com vibradores, martelos, perucas extravagantes, tijolos, fogo, espancamentos, fisting, e, claro, ultraviolência”.[231] Há muitas evidências como as mencionadas aqui que foram selecionadas ao acaso para esclarecer o leitor. Não pretendemos abundar nisso, porque acreditamos que o objetivo foi cumprido. Agora, é possível terminar aqui com a seguinte conclusão. Há um fio condutor que corre a partir da segunda onda feminista, através da terceira, com a ideologia queer. Esse fio é dado por um projeto comum, que tem a ver com a destruição do casamento heterossexual e da superestrutura familiar que teoricamente contribuem para a reprodução do sistema capitalista (estratégia de batalha cultural). Esse fio, no entanto, percorreu um progressivo caminho teórico que foi do materialismo dialético, passou pelo culturalismo de gênero e terminou na destruição mesma do sexo. A questão decisiva aqui, portanto, não tem nada a ver com as escolhas voluntárias individuais, mas sim com a intenção expressa de transformar, até mesmo de forma violenta, o sistema econômico e político que, paradoxalmente, permitiu que existam essas tribos (ou alguém pode provar que eles existem ou existiram em um país comunista?). A questão não é que uma mulher pense que seu corpo não tem existência natural; a questão não é que um homem acredite ser uma mulher “trancada” em um corpo masculino. De nada deveria importar-nos os delírios de cada pessoa, enquanto não afetem os nossos direitos individuais. O problema é que afetar- nos é o objetivo destas ideologias e sua conseqüente militância, como vimos amplamente. Nada deveria importar, por exemplo, que determinado sujeito considere a si mesmo, inclusive, um crocodilo ou uma macaca enclausurada em corpo humano, vítima da tirania da “construção social do discurso”; o problema é que a pressão ideológica exercida sobre o Estado leve-o a nos obrigar a compartilhar tal loucura e pagar por ela, sob a ameaça de coerção. De fato, como reconhecido pelas próprias teóricas feministas “desde o feminismo o que é exigido uma e outra vez é mais intervenção do Estado”.[232] Nada deveria importar-nos, seguimos dizendo a fim de dissipar as dúvidas, que em particular se pratique “pós-pornô” se aqueles que o praticam e aqueles que voluntariamente o observam, gozam mutilando-se ou assistindo pessoas mutilando-se; o que realmente importa é que estas práticas são realizadas em espaços públicos, de maneira invasiva e até mesmo coercivamente, e que o feminismo radical tenha chegado a promover incesto e pedofilia, como parte de uma luta política e ideológica para impor formas de sexualidade degradante. Nada importa para nós, em uma palavra, o que a cada um tange à sua personalidade e vida privada. O que é problemático em qualquer caso, parafraseando um dos slogans mais arquetípicos do feminismo radical, quando “o pessoal se faz político”. O Dr. Money, o meninos sem pênis e algumas considerações científicas
Como temos insistido ao longo deste capítulo, as teorias têm
conseqüências práticas; a maneira como entendemos e interpretamos o mundo afeta o modo como nossas ações se desdobram. Assim, há um caso que nos mostra concretamente a aplicação da ideologia de gênero no campo da medicina e da psiquiatria e suas conseqüências. Em 1965 nasceram os gêmeos monozigóticos[233] Bruce e Brian Reimer. O primeiro deles, com menos de um ano de idade, por causa de fimose, foi submetido a uma circuncisão fracassada que mutilou seu pênis. Seus pais, desesperados com o acidente que seu filho sofrera, logo contactaram um famoso psicólogo chamado John Money, que ficara afamado no mundo acadêmico, precisamente porque levou para o campo médico as teorias de gênero que excluem da identidade sexual qualquer relação com uma determinação natural. Como muitas feministas contemporâneas, Money estava envolvido na militância pela despatologização de práticas de pedofilia e de práticas sexuais que Preciado consideraria “contra-sexuais” como coprofilia (arremessos e ingestão de excrementos para fins sexuais).[234] Além disso, Money era professor da Universidade John Hopkins, foi fundador do Gender Identity Institute — financiado por esta última — trabalhou no ramo de mudança de sexo, e o caso em questão apareceu diante de seus olhos como uma possibilidade excepcional de fazer um experimento social que comprovaria a teoria de que a sexualidade não tem nada a ver com a natureza, mas com a criação, isto é: que um ser humano pode ser educado como homem ou mulher, independentemente da realidade cromossômica ou gonadal ou genital que possa ter. Na verdade, o Dr. Money tinha um bebê de alguns meses que já não tinha pênis e com sua variável de controle perfeita: Brian, o irmão gêmeo. Foi assim que, aos dezessete meses de idade, Bruce se tornou “Brenda” e, quatro meses depois, foi castrado. Os pais foram encarregados da tarefa mais importante de todas: criar Bruce como “Brenda” e, sob nenhuma circunstância, revelar a verdade dos fatos aos gêmeos. As instruções eram rígidas, porque o sucesso do experimento social dependia delas. “Eu pensei que era simplesmente uma questão de pais, que eu poderia criar meu filho como mulher”,[235] lamentou posteriormente a mãe. Mas logo o plano começou a se desviar dos resultados esperados por Money. Apesar de todos os tratamentos hormonais e das características da criação, “Brenda” não parecia se adaptar à identidade feminina. O pai disse a posteriori que “era tão evidente para todos, não só para mim, que era do sexo masculino”.[236] Em um dos fragmentos dos arquivos de Money, ele reclama: “A garota tem muitas características de ‘machona”.[237] A questão estava deixando as mãos do famoso professor, e ele decidiu que era hora de intervir na criação com maior afinco a partir de seus conhecimentos psicológicos. Então começou enfatizando que “Brenda” estabeleceria sua nova identidade feminina ao entender a diferença entre os órgãos sexuais de homens e mulheres, recorrendo assim às diferenças naturais para negar... o natural. Mas como a “menina” se recusou a adotar seu novo gênero, o médico foi forçado a aplicar abordagens cada vez mais extremas. Ele pediu para ter sessões conjuntas com os gêmeos, a quem tirou as roupas, fez olharem um para o outro, ensaiar poses sexuais e passar por sessões fotográficas. As duas crianças desempenharam um papel não muito diferente do de dois ratos de laboratório. O já mencionado psicólogo Andres Irasuste refletiu sobre isso: “Nós nos perguntamos quanta distância realmente existe entre um John Money e um Josef Mengele”.[238] A última tentativa de Money foi tentar convencer “Brenda” a se submeter a uma cirurgia para aperfeiçoar sua vulva rudimentar e construir uma vagina artificial. Aos treze anos de idade, ele veio entrevistá-la com um transexual para convencê-la sobre os benefícios da cirurgia. Mas “Brenda” recusou, e pediu a seus pais para nunca mais ver o Dr. Money novamente. O experimento social não parou de ir ao contrário do que seu mentor havia previsto. “Brenda” teve várias tentativas de suicídio, e seus pais, desesperados, decidiram que era hora de voltar e contar a verdade sobre sua própria história. É assim que esta “menina” de laboratório decidiu ser o que sempre foi: uma criança. E ele se chamou “Davi”, em referência à luta de Davi contra Golias. Imediatamente, David deixou os tratamentos hormonais e fez um implante peniano, mas nunca conseguiu superar o dano psicológico criado pelo experimento de gênero. Sua família também. Brian, o irmão gêmeo, nunca pôde aceitar a verdade e acabou caindo na esquizofrenia, morrendo em 2002 duma overdose. A frustração de Davi aumentou quando ele descobriu que Money havia apresentado seu experimento social ao mundo acadêmico como um sucesso retumbante que provava a veracidade da ideologia de gênero. De fato, ele publicara um livro de grande importância que se chamava Homem e Menino, Mulher e Menina. “Seu comportamento é tão normal quanto o de qualquer menina e claramente difere do modo masculino como seu irmão gêmeo se comporta”, pode ser lido nas páginas sobre “Brenda”. Assim, o caso de Bruce, ou Brenda, ou David, foi por sua vez apresentado como um sucesso nos textos médicos e psicológicos sobre o tratamento dos hermafroditas. Prova clara de como o campo científico funciona quando a ideologia o filtra, e são os fatos que devem ser acomodados ao que é pensado, e não o que é pensado aos fatos. Em 2004, vítima de uma depressão causada por seu trauma psicológico e existencial, David Reimer tirou a própria vida com uma escopeta, tendo antes deixado, no entanto, um testemunho premonitório em um documentário sobre sua história: “Eu sou a prova viva [do fracasso da ideologia de gênero], e se você não vai aceitar minha palavra como evangelho, porque eu vivi isso, quem mais você ouvirá? Quem mais passou por isso? Eu vivi isso. Alguém tem que atirar em si mesmo na cabeça e morrer para que as pessoas possam ouvi-lo?”[239] Anos depois de que Money vendera o suposto sucesso da converção de Bruce em Brenda, outro cientista, Milton Diamond, revelará a verdade sobre o experimento de Money ao descobrir que a testosterona orienta cada ser humano antes mesmo de seu nascimento. O sexo, então, não poderia ser reduzido à variável “educação”. Felizmente, ainda existem homens e mulheres[240] de ciências que se atrevem a mostrar e provar que a sexualidade não pode ser explicada apenas recorrendo a factores culturais, mas há todo um fundo natural que, em qualquer caso, cria espaço onde a cultura pode se inscrever. O psicólogo de Harvard Steven Pinker, por exemplo, escreveu um livro revelador intitulado The Blank Slate (2002), onde se dedicou a refutar os negacionaistas da natureza humana sob as contribuições da psicobiologia e da neurociência, e mostra como a ideologia de gênero do feminismo é um obstáculo à ciência pois nega que o “gênero” possuia uma ontogênese, uma psicogênese e uma base que não dependem exclusivamente do sociocultural. É como nos explica o próprio Irasuste, “Hoje a neurociência já comprovou que o que chamamos de ‘gênero’ tem um núcleo biológico muito duro e profundo que já começa a tomar forma por várias influências hormonais intra-uterinas, responsáveis pela sexuação cerebral.”[241] Sabe-se que tanto o androgênio quanto o estrogênio, hormônios masculinos e femininos, respectivamente, têm diferentes efeitos no cérebro durante o desenvolvimento fetal. [242] O biólogo Edward Wilson disse isso muito claramente: “A
neurobiologia não pode ser aprendida aos pés de um guru. As
conseqüências de nossa história genética não podem ser escolhidas pelas legislaturas.”[243] Há uma passagem muito interessante no trabalho de Pinker, que examina um estudo que nos lembra o caso do Dr. Money e dos gêmeos Reimer. De fato, em um caso de “vinte e cinco crianças que nasceram sem um pênis (um defeito de nascença conhecido como extrofia de cloaca) e que são analisados depois de castrados e criados como meninas, todos mostravam padrões masculinos, se dedicavam a jogos bruscos e tinham atitudes e interesses tipicamente masculinos. Mais da metade deles espontaneamente declarou que eram meninos, um quando tinha apenas cinco anos.”[244] Isso jogaria fora a possibilidade de que o caso de David Reimer seja uma simples exceção ou um acidente. E a isto devemos acrescentar o fato de que a educação de meninos e meninas se difere cada vez menos se analisarmos historicamente. Há relativamente pouco tempo existe um ramo na neurociência chamado “neurobiologia do sexo”, que se concentra em duas áreas fundamentais: a estrutura do cérebro e a genética. Essa disciplina também contribuiu muito para nos fazer ver que a sexualidade é muito mais que cultura: é também natureza. Graças a cientistas como o embriologista Charles Phoenix e outros que têm realizado pesquisas sobre o assunto, sabemos, por exemplo, que o hormônio testosterona desempenha um papel inexorável na definição sexual muito antes de o bebê deixar o corpo da mãe e, portanto, muito antes de seus primeiros contatos culturais: “Se removermos os genitais de um embrião geneticamente masculino durante um momento-chave do desenvolvimento embrionário, desenvolveremos genitálias femininas. Ou seja, a testosterona atua como um diferenciador-chave no processo de individuação biológica em uma base pré-natal, onde o feminino — na ausência desse elemento — irá predominar”.[245] Algo semelhante foi encontrado pelo neurologista Simón Le Vay quando concluiu que uma diferença nos níveis hormonais androgênicos em períodos críticos de desenvolvimento — como o estágio intra-uterino — tem efeitos substantivos sobre as características sexuais.[246] Inclusive foram detectadas síndromes que afetam a sexualidade da criança, como a chamada “síndrome por deficiência de 5-alfa reductasa”, sendo esta última uma enzima que interage com a testosterona para o desenvolvimento dos genitais. De modo que aqueles que sofrem desta síndrome, nascem com genitais de aparência feminina, mas o sexo genético é masculino, se são criados como mulheres durante a infância, quando atingem a adolescência os níveis de testosterona aumentam drasticamente e essas alegadas meninas começam a ver como seus corpos estão assumindo uma forma masculina: voz grossa, face masculina, maior musculatura e seu “clitóris” aumenta de tamanho até parecerem mais ou menos com um pênis. Pode-se dizer seriamente que foi a “cultura” que causou tais modificações? No entanto, a neurociência e a genética não são o assunto deste livro; só pretendemos, nessas breves linhas, dar uma mostra ao leitor que, no que diz respeito à sexualidade, a ciência deu passos enormes que estão longe do que as ideólogas feministas reivindicam, isto é, reduzem tudo a uma explicação cultural que permite, posteriormente, a chamada “desconstrução” (ou melhor, destruição) de nossa cultura. Mas os neurocientistas, como vimos, são muito claros: o cérebro, além de manter as condições pré-natais em termos de sexualidade, realiza toda uma série de operações muito complexas cujos padrões não estão localizados em contextos culturais; nem no monismo explicativo, reduzindo tudo a questões biológicas: ao contrário, eles estão muito conscientes da relevância da cultura para os seres humanos, mas sem torná-la o fator explicativo exclusivo. O antropólogo e sociólogo Roger Bartra propôs, por exemplo, uma “antropologia do cérebro” na qual o pensamento é uma ferramenta que nos serve para reconectar com o objeto e, para isso, o cérebro deve naturalmente ter conexões com o cultural: “O cérebro depende de usos de processos simbólicos, através dos quais as redes neurais são imbuídas dos produtos da cultura: é que o cérebro, se for considerado como um espaço topológico, é tanto um interior quanto um exterior”.[247] Assim, a sexualidade no ser humano deve ser entendida como um complexo entrelaçamento de natureza e cultura; nem natureza prescindindo da cultura (porque a sexualidade seria puro instinto, desprovida de particularidade e função social); nem cultura prescindindo de natureza (porque senão seria inapreensível auniversalidade do sexo, suas regras e sua função natural) Mas, na dialética cultura- natureza, as formas culturais que triunfam são aquelas que andam de mãos dadas com as condições e limites que a natureza estabelece; caso contrário, acabaremos fingindo orgasmos masturbando braços com consolos coloridos e fingindo salvar o mundo com utopias lésbicas. A mulher e o capitalismo
Se presumimos que a vasta maioria das feministas são “de
esquerda”, isto acontece porque sua pregação geralmente está ligada a lutas contra o capitalismo, ao menos desde aquilo que definimos como a segunda onda até os nossos dias, como já vimos. Isso se torna ainda mais visível se, procurando definir o que é o capitalismo, nos voltamos para um de seus maiores intelectuais e expoentes, ganhador do Prêmio Nobel de economia, Milton Friedman, que em Capitalismo e Liberdade simplificou o assunto dizendo que devemos chamar capitalismo o modo de organizar a maior parte da atividade econômica através do setor privado operando em um mercado livre.[248] Com efeito: não havia sido o nascimento da propriedade privada a origem do “patriarcado”? Se bem que muitas feministas da terceira onda entenderam que havia um reducionismo em Engels, a verdade é que não deixaram de ver no capitalismo o pilar que suporta o “regime patriarcal” e, além disso, um dos alvos mais importantes de sua cruzada política. Não está entre os objetivos deste livro fornecer uma teoria completa sobre as ligações das mulheres e do capitalismo, mas é nosso interesse ao menos delinear uma hipótese neste curto subcapítulo, que no futuro pode (deve) ser aprofundado. Houve um tempo em que o poder derivou principalmente da força física. A opressão da mulher, pelas condições naturais de seu corpo, não deveria estar isenta de desconfortos naqueles momentos de nossa espécie. Tratada como escrava e como objeto sexual, a autonomia foi completamente negada. Ela poderia ser obtida pelo macho por concessão, rapto, compra ou troca, não importava.[249] Seu status e o de uma coisa eram o mesmo. Em muitos dos chamados “povos originais”, paradoxalmente idolatrados pela mesma esquerda que se diz feminista, as mulheres eram o objeto preferido de sacrifício aos deuses.[250] A diferença de corpos moldava os padrões e instituições culturais que simplesmente consolidavam as relações de poder existentes, dadas pela assimetria física, pela diferenciação inicial substantiva. Assim, é impossível pensar em um fator de poder anterior à própria natureza física, porque qualquer outro fator original que possamos pensar fora daquele, enquadra-se nos domínios da cultura. O problema que surge é, então, como a mulher poderia quebrar as correntes que sua condição física lhe impôs no começo (e numa parte muito importante) da história. E eu intuo que o capitalismo teve muito a contribuir para este processo. É possível, antes de tudo, e pode até se compatibilizar com as teorias de Engels, que a propriedade privada tenha nos libertado da poligamia. Mas não dessa poligamia utópica e quimérica (em termos corretos chamado de “poliandria”), que teria ocorrido sob regimes matriarcais improváveis, negados a esta altura por importantes feministas como a própria De Beauvoir e por recentes estudos antropológicos.[251] É mais provável, por outro lado, que a poligamia tenha sido não a cristalização do poder das mulheres, mas dos homens: tomar quantas mulheres sua força fosse capaz de manter ante a concorrência de outros homens foi a lógica imperante. O direito da primeira noite[252] europeu, cujos beneficiários eram os senhores feudais, vem confirmar essa hipótese. Nas cidades pré- colombianas, o pacto de los macehualtin tinha a mesma função.[253] Muitos povos indígenas, como os mapuches ou diaguitas, onde o número de esposas era limitado pela possibilidade mantê-las afastadas da ambição dos demais, para citar apenas dois exemplos, podem dar conta disto. Também é amplamente conhecido que a poligamia no povo asteca foi reservada exclusivamente para alguns homens,[254] e a bem da vedade, os exemplos não são poucos ainda que excedam o espaço naturalmente reduzido destas páginas. Mas as demandas da propriedade privada e o acúmulo de capital têm sido um fator fundamental no ser humano para atacar esse esquema relacional. As mulheres e seus pais — especialmente de níveis materialmente elevados —, zelosos de cuidar das propriedades da família nos sistemas conjugais — que eram transferidas para o marido por regra geral —, começaram a pressionar no sentido da monogamia, para assim evitar que acabassem distribuídas e fragmentadas entre muitas outras possíveis mulheres que o homem poderia tomar. E vale a pena enfatizar: tudo isso não ocorreu como resultado do valor do amor — que será vinculado ao casamento muito mais tarde, como outro resultado importante da instituição do contrato —, mas por um cálculo capitalista primitivo. A essas forças materiais devem ser acrescentadas outras espirituais, que vieram da mão do cristianismo: “não desejar a mulher do próximo”, um importante mandamento cristão, fala claramente de uma nova moralidade que sustenta a monogamia. É interessante, e do mesmo modo afirmativo do que foi dito antes, o que aconteceu com o mundo feudal. Com efeito, é o esquema da propriedade feudal e do cálculo capitalista primitivo que deriva dela, que deu lugar a novos espaços de poder e protagonismo para as mulheres (da nobreza, é claro). De fato, a lógica da acumulação foi enfrentada em muitos casos, sob esquemas de herança reservada aos filhos, e a possibilidade de perder tudo se uma família tivesse gerado apenas mulheres. Assim, a herança, para as necessidades materiais dadas pelo atual sistema de propriedade, foi estendida em alguns casos às herdeiras do sexo feminino. O mesmo aconteceu com o poder político: na ausência de crianças do sexo masculino, tornou-se necessário estender o que hoje chamaríamos de “direitos políticos” às mulheres para manter certas famílias no poder. A monarquia da casa de Trastámara de Castela é apenas um exemplo da questão. Mas o importante papel que as mulheres começaram a desempenhar nos tribunais é bem conhecido: Isabel, a católica, Elizabeth da Inglaterra, Catarina da Rússia, Cristina da Suécia, este último exemplo claro de como o esquema de sucessão masculina de poder foi transformado em um feminino a partir da ausência do filho varão. É possível acrescentar que, ao contrário do que indica o senso comum sobre a idade medieval, nesse processo se fez algum progresso se o compararmos com o mundo antigo e os povos indígenas: na Inglaterra, no sul da França e na região centro-européia, multas severas e punições (conhecidas como legerwite) foram impostas ao abuso e à violência sexual contra mulheres, por exemplo.[255] Mas de volta à situação original das mulheres, Ludwig von Mises, um dos pais da Escola Austríaca de Economia, chamaria o tipo de relações sociais baseadas na força de “princípio despótico”, [256] o qual vai desaparecendo com a introdução da mencionada
instituição do contrato nas sociedades, instituição cuja expansão
vem efetivamente da mão da consolidação da propriedade privada. Com efeito, o contrato deixa a lógica da força física; estabelece um intercâmbio guiado por regras que devem ser cumpridas precisamente para evitar relacionar-se através da força. O papel reservado para a coerção é depositado em um terceiro, que monitora o cumprimento do contrato. O capitalismo, como um sistema baseado no reconhecimento e proteção da propriedade privada mais do que qualquer outro e parte da origem do nosso Estado moderno — como uma organização que garante o cumprimento de nossos contratos — é, portanto, um sistema onde o contrato se mostra como um elemento fundador das relações sociais mais importantes. Pondo de lado os relacionamentos baseados na força física, o capitalismo introduz na sociedade o que poderíamos chamar de “lógica de mercado”, baseada na possibilidade de beneficiar-se servindo aos outros.[257] Se a força física tem que ser eliminada de minhas possibilidades, a maneira de conseguir algo que eu quero não é batendo na cabeça da outra pessoa, mas oferecendo algo em troca do qual a outra parte queira mais do que o que ela possui. O “maldito mercado” que a esquerda tanto nos chama a temer, então, nada mais é do que uma abstração de nós mesmos e de nossas valorações; o mercado é simplesmente a maneira de nomear o tempo e o lugar onde nós, as pessoas de carne e osso, podemos trocar livremente com os outros em benefício próprio, ficando sujeito nosso exito na troca a nossa capacidade de beneficiar os outros. É por isso que os grandes nomes da história, com o capitalismo, passaram de guerreiros, caciques e tiranos a inventores, cientistas e empreendedores. Com o estabelecimento progressivo dessa lógica que descrevemos, a mulher estava encontrando espaços maiores na vida social. Com efeito, o mercado é cego — deve ser cego para alcançar eficiência — a dados não econômicos como raça, religião, etnia e, é claro, sexo. Não anda de mãos dadas com a lógica do mercado pagar mais por um bem simplesmente porque quem o oferece é um homem, em detrimento do mesmo bem oferecido mais barato por uma mulher. No mercado, qualquer empresa que seja estúpida o suficiente para dispensar mulheres qualificadas ou pagar a mais para homens não qualificados, mais cedo ou mais tarde será ultrapassada por outra empresa que não discrimine com base no sexo. A lógica do mercado pode entender por que as sociedades tiveram um antes e um depois, um verdadeiro ponto de viragem, com a introdução do capitalismo em todos os aspectos materiais da vida que, vale a pena esclarecer, segue nos transformando em ritmos cada vez mais acelerados. A Revolução Industrial foi filha dessa nova maneira de organizar e pensar. Com efeito, foram criados incentivos sem precedentes para que as pessoas pudessem se elevar econômica e socialmente, não oprimindo os outros, mas servindo-lhes. E assim, os imensos avanços tecnológicos que desde a consolidação do capitalismo até hoje a humanidade viveu são fundamentalmente produtos dessa lógica. Embora pareça politicamente incorreto, nosso bem-estar material parece depender fundamentalmente do egoísmo dos outros, como foi dito no século XVIII por ninguém menos que Adam Smith. Seria absurdo ignorar o fato de que a tecnologia ajudou a liberar as mulheres de várias maneiras. Em primeiro lugar, compensando sua fraqueza física. O que anteriormente eram trabalhos reservados exclusivamente ao homem por razões físicas, como a construção, graças à maquinaria cada vez mais avançada, abriu-se e continua a abrir-se para o mundo feminino, pois a tecnologia reduz as necessidades físicas no trabalho e, além disso, cria novos tipos de trabalho o tempo todo e em toda escala.[258] Hoje praticamente não há trabalho baseado exclusivamente em força física. Não mais o corpo, mas o conhecimento, tornou-se o fator mais importante na produção. Por isso, diz-se que vivemos em “sociedades do conhecimento”. A antropóloga Helen Fisher, em seu livro O Primeiro Sexo (1999),[259] apresentou uma idéia interessante: a cultura empresarial, em nossa economia globalizada capitalista e baseada no conhecimento, logo favorecerá mais às mulheres do que aos homens (daí o título da obra, que inverte o sentido de Simone de Beauvoir). Há dados fortes que parecem validar a tese de Fisher: hoje as mulheres vivem em média dez anos a mais que os homens, graduam-se em universidades 33% mais que os homens, controlam 70% dos gastos de consumo em todo o mundo e — de acordo com a revista Fortune — são proprietárias de 65% de todos os bens nada menos do que nos Estados Unidos.[260] Mas a tecnologia não só ajuda as mulheres em relação a sua relevância social e profissional, mas todos os tipos de avanços, pequenos e grandes, que desde o início do capitalismo até hoje têm sido experimentados, também têm ajudado a fazer sua vida diária uma vida muito melhor. A água potável, a higiene e a medicina moderna nos ajudaram a diminuir substancialmente a mortalidade infantil e, assim, foi reduzido o trabalho empregado na saúde e na assistência infantil. Os benefícios das máquinas também foram mudando o lugar da própria prole: antes concebida como um factor fundamental de produção, agora as mulheres podem trazer filhos ao mundo sob critérios muito diferentes. As mamadeiras e o leite de vaca pasteurizado, primeiro, e logo depois o leite em pó, os extratores de leite materno e o leite congelado, reduziram em muito a carga da mãe quanto à alimentação de seu bebê. A produção industrial de alimentos, roupas e utensílios domésticos tornou mais barato comprar do que produzir artesanalmente, e assim reduziram- se incrivelmente as tarefas domésticas das mulheres; os eletrodomésticos acabaram de libertar a mulher do que há pouco tempo haviam sido grandes cargas de trabalho doméstico. Mas esta realidade — talvez ainda mais importante que a anterior — também contribuiu para relaxar os duros esquemas de divisão sexual do trabalho de outrora, em que ao homem, por seu trabalho fora de casa, não competia fazer praticamente nada dentro do lar. Hoje a cozinha, por exemplo, também é um espaço masculino — basta ver programas e publicidades relacionadas à gastronomia —; e de modo algum o homem está eximido da limpeza, do cuidado com as crianças e outras tarefas tradicionalmente femininas. O crescimento econômico que veio das mãos do capitalismo também criou as condições materiais para que as meninas, ao invés de serem mantidas em casa com tarefas domésticas e trabalho não- qualificado, como costumava acontecer, fossem também enviadas cada vez mais, em maior número, para receber instrução nas instituições educacionais (não é por acaso que os liberais do século XIX foram os que mais lutaram por esse direito). Diferentes produtos no mercado foram criados para ajudar as mulheres durante seus ciclos menstruais, eles conseguiram que esses dias, antes dias mortos quando as mulheres tinham que se abrigar em casa, se tornassem cada vez mais semelhantes a qualquer outro momento do mês. A impressionante extensão de expectativa de vida de nossa espécie,[261] da mesma forma, assegura à mulher que sua passagem por este mundo não será reduzida à maternidade como no passado. Os exemplos nos dariam todo um outro livro. (Devemos acrescentar como uma digressão: não são por acaso as mesmíssimas condições materiais e ideológicas que trouxeram o capitalismo as que possibilitaram o nascimento nada menos que do pensamento feminista que hoje o combate?). Sabemos agora, graças a indicadores econômicos internacionais que os países onde há maior liberdade e abertura econômica — quer dizer, com maiores graus de capitalismo da maneira que definimos com Friedman — é onde as mulheres podem desfrutar de uma mais ampla margem de liberdade e igualdade com os homens. Um exemplo disso é o Índice de Liberdade Econômica no Mundo (2011), realizado pelo Fraser Institute. O Cato Institute cruzou os dados deste último com indicadores sociais relativo às mulheres, que se desprendem do Índice de Desigualdade de Gênero (IDG), do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (2010), e descobriu coisas assombrosas.[262] Entre outros, verificou-se que a desigualdade entre homens e mulheres é duas vezes menor em países com uma economia capitalista (0,34) do que aqueles que mantêm uma economia fechada e reprimida (0,67). Além disso, outros indicadores são significativos: em países economicamente mais livres, 71,7% das mulheres concluíram o ensino secundário, enquanto nos menos capitalistas, apenas 31,8% puderam passar por ele e terminá-lo; os parlamentos dos países economicamente mais livres têm uma média de 26,8% de representantes mulheres, enquanto nos países menos capitalistas essa representação é de 14,9%; a mortalidade materna em países economicamente mais livres é de 3,1 por 100.000 nascimentos, enquanto em países menos capitalistas esse número é de 73,1 mortes; a taxa de fertilidade de adolescentes em países economicamente mais livres é de 22,4 por mil mulheres entre 15 e 19 anos, enquanto em países menos capitalistas encontramos 87,7 casos. Mas, apesar de todas as evidências expostas, não devemos nos surpreender que nossas feministas radicais detestem o capitalismo; afinal, como vimos ao longo deste livro, o feminismo parece servir cada vez menos às mulheres e, cada vez mais, à revolução cultural esquerdista. Já o dizia Chantal Mouffe quando observou que “a política feminista deve ser entendida não como uma forma de política, destinada a perseguir os interesses das mulheres como mulheres, mas sim como a busca de objetivos e aspirações feministas no contexto de uma articulação mais ampla de demandas”.[263] Ou seja, o feminismo deve fazer parte do projeto do socialismo do século XXI, e deve usar essas bandeiras como uma tela para ocultar essa “articulação mais ampla” que não aparece diante dos olhos das pessoas bem-intencionadas que apóiam suas causas. Da teoria à práxis
Neste capítulo, nós nos concentramos fundamentalmente na
teoria, enfatizando, no entanto, que ela é essencial para a prática. O que queremos dizer com isso? Dizemos que as construções ideológicas, além de suas distorções da realidade, têm conseqüências muito reais em nossas sociedades; isto é, em última análise, a batalha cultural: gerar mudanças reais baseadas na mudança cultural. Por isso, consideramos apropriado fechar este capítulo coletando alguns exemplos do que a militância feminista de nossos tempos é e pode oferecer e alcançar através de sua luta política. Vamos nos concentrar especialmente no feminismo argentino, mas, uma vez que a origem do feminismo ideológico está dada muito mais em outros lugares, não economizaremos referências à organizações de outras partes do globo. Os “coletivos feministas” na Argentina são bem variados em relação a nomes e siglas, embora todos sejam adeptos, em última instância, da esquerda ideológica e política, e as mais importantes demonstrações de força agem em conjunto. Um dos mais relevantes é “Pan y Rosas”, apêndice feminista nada menos que do ultra- esquerdista Partido Socialista dos Trabalhadores (PTS). Em sua carta de apresentação esta organização define a essência ideológica que tanto temos enfatizado aqui: “Pan y Rosas acredita que a luta contra a opressão das mulheres é também uma luta anticapitalista e, portanto, somente a revolução social, dirigida por milhões de trabalhadores em aliança com os pobres e todos os setores oprimidos por este sistema, que acaba com as cadeias do capital, pode lançar as bases para a emancipação das mulheres”. [264] Este grupo promove uma série de cursos chamados de “oficinas
de gênero e marxismo”, alguns de seus módulos são intitulados “A
intersecção entre gênero e classe”, no qual estudam as referências do feminismo pedófilo de Kate Millet, e “O Marxismo e Feminismo Pós-Marxista”, onde as teorias de Laclau, Mouffe e, é claro, a teoria queer de Butler se destacam. Pan y Rosas dedica-se principalmente à militância de rua e à formação de quadros feministas. Outra organização argentina que se destaca é “La Revuelta”, em cujo site[265] pode-se ler slogans como “Abortamos irmanadas, abortados em manada”. Dedicam-se principalmente à perturbação urbana, estragando espaços públicos e privados com pichações.[266] “Insubmissas ao serviço familiar obrigatório”, “Não quero tua cantada, quero que você morra”, “Eu abortei, tua mãe também”, “O aborto não tira férias”, “Vamos atacar úteros contra o capital!” “Putas ou santas, mulheres abortam até na Semana Santa”, são alguns exemplos dos grafites preferidos. Uma das dirigentes explica por que o nome desta organização: “Alvoroço, gritaria causada por uma ou mais pessoas, sobressalto, inquietude, motim, sedição, rebelião contra a autoridade, revolta, revolução”. E, em seguida, o mesmo palavreado neomarxista de sempre: “denunciamos esta construção capitalista e patriarcal do sexo masculino hegemônico mundial, em que os corpos das nossas mulheres têm sido e é o território no qual foi construído, impondo-nos seu conhecimento androcêntrico”[267] Como não poderia ser de outra forma, a organização promove o lesbianismo como uma forma de resistir ao “heterocapitalismo” celebrando a 7 de março o dia da “visibilidade lésbica” sob o lema “não somos irmãs, nós comemos a buceta.”[268] “La Revuelta” é parte de uma rede feminista para a qual várias organizações convergem, chamadas “Salva-Vidas na Rede”.[269] O principal objetivo é promover abortos caseiros e, por isso, difundem, por exemplo, manuais sobre como matar de formas artesanais o filho que a mulher carrega em seu ventre, tal qual um deles, intitulado “Como Fazer um Aborto com Comprimidos. Instrução passo-a-passo”.[270] Além disso, deixam em seu site linhas de contato telefônico para informarem-se das modalidades existentes a fim de realizar um aborto. Em 2014, eles ajudaram 1.650 mulheres a abortarem.[271] Eles também têm um programa de rádio virtual chamado “Experiências Corpo-Aborteiras”,[272] cujo slogan é “tornar as práticas aborteiras visíveis como um gesto político”; as histórias são irreproduzíveis, mas todas são estruturadas por um discurso segundo o qual matar o feto seria uma situação de “enorme alívio” e “felicidade feminina”. Na Argentina também temos a presença da associação civil “Católicas pelo Direito de Decidir”, cujo nome contém em si duas grandes falácias: a primeira é que o chamado “direito de decidir” é incompleto sem explicitar o que decidir. Decidir matar uma pessoa em gestação não é igual a “pelo direito de decidir quem serão nossos representantes políticos” ou “decidir que tipo de educação receber”. Os direitos de um acabam onde os do outro começam; ninguém pode arrogar-se o direito de acabar com uma vida que não é sua, e o nascituro que a mulher carrega em seu ventre, como explicado no próximo capítulo de Nicolás Márquez, por razões científicas, é um ser diferente da mãe. Podemos imaginar uma gangue de seqüestradores em série que constituem uma associação civil “pelo direito de decidir... seqüestrar pessoas”, por exemplo? Algo assim parece ser o grupo “Católicas pelo Direito de Decidir”, porque estão pedindo para decidir sobre a integridade física do ser que a mulher carrega em seu ventre, como fica claro apenas olhando para seu site:[273] “Como fazer um aborto no hospital e não morrer na tentativa?”, “Direito ao aborto: Decálogo para a cobertura jornalística”, “Aborto em debate”, são algumas das publicações e livros produzidos por esse grupo que ali podem ser descarregados. A segunda falácia contida no nome é a do “católicas”. De fato, essas mulheres não apenas se opõem à doutrina católica mais elementar, mas até seus objetivos nucleares apontam diretamente para a promoção da violação de um dos mais importantes mandamentos do Deus cristão: “Não matarás”. Se precisarmos de mais razões, a Bíblia ensina que o que está no seio de uma mãe grávida é um ser humano (cf. Salmos 139: 13, 15; Jeremias 1: 5; Lucas 1:13; Mateus 1:21). Ademais, a Bíblia condena o assassinato direto dos inocentes (ver Êxodo 23: 7; Deuteronômio 27:25; Mateus 18:10 e 14). O que é mais inocente do que um menino ou menina que ainda está no útero? Mas podemos continuar a acrescentar razões: para os católicos, um filho faz parte do plano de Deus, ele é enviado por Ele para a Terra; portanto interromper a vida desse filho enviado por Deus é interromper os planos do mesmo Deus. E é tão grave pecado o do aborto, que a encíclica Evangelium Vitae do Papa João Paulo II estabeleceu a excomunhão como punição: “A excomunhão atinge todos aqueles que cometem este crime com conhecimento dele, e, portanto, inclui aqueles cúmplices sem cuja ajuda o crime não teria ocorrido”. É curioso notar que este grupo, apesar de dizer-se “católico”, não tem nenhum tipo de atividade paroquial que não seja a promoção do pecado do aborto.[274] Mas, neste ponto deve ficar claro para nós que o nome da associação “Católicas pelo Direito de Decidir” é contradição tão absurda como chamá-lo de “Católicas pelo direito de não acreditarem em Deus e ainda se dizerem católicas.” No entanto, o nome em questão não é de forma alguma inocente: o que se pretende com ele é instalar na opinião pública a idéia de que há pessoas que, pertencentes à mesma Igreja Católica que as feministas atacam, acreditam e apóiam as demandas destas últimas. Da mesma forma, trata-se de corroer a unidade discursiva da própria Igreja, dando a ilusão de que suas posições mais fundamentais não são contempladas por todos os fiéis e que há “outro caminho”, confundindo a comunidade católica. Em uma palavra, é a velha tática do “entrismo”. Voltando o nosso olhar para outro lado, um caso de organização feminista exclusivamente lésbica na Argentina é “As Fulanas”, que na carta de apresentação de seu site diz: “Ser feminista significa para nós reconhecer a existência de um sistema patriarcal heteronormativo [...]. Nós acreditamos no socialismo como um sistema de organização político-econômico, porque consideramos justa a propriedade pública dos meios de produção e administração em prol do interesse da sociedade em geral e não de determinadas classes ou grupos”.[275] Note que o tema da luta anticapitalista é uma constante que parece não ter exceção neste tipo de agrupamentos. “As Fulanas” também gostam de grafites em espaços públicos: “Como é difícil ser uma borboleta em um mundo de vermes capitalistas”[276] é uma de suas “reflexões” favoritas. É curioso notar, entretanto, que muitas dessas organizações feministas e think tanks que promovem a ideologia de gênero e o aborto são muito bem financiadas por ninguém menos que a ala esquerda do poder financeiro mundial. Por exemplo, descobrimos que muitas recebem regularmente grandes somas de dinheiro não menos que da International Planned Parenthood Federation (IPPL) uma organização que administra um orçamento anual de 125 milhões de dólares, uma soma composta em grande parte de grandes doações da Ford Foundation e da Bill & Melinda Gates Foundation. O dinheiro também vem do magnata Warren Buffett, que já doou aqui mais de 289 milhões de dólares.[277] Foi recentemente descoberto que a filial americana da IPPL, a Planned Parenthood Federation of America, possui um negócio milionário com os fetos abortados, vendendo esse “produto” para a indústria cosmética, especialmente o colágeno, e traficando órgãos. A pesquisa foi conduzida pelo Center for Medical Progress,[278] que também encontrou evidências de abortos realizados até o último trimestre da gravidez, e o uso de ferramentas que permitem aumentar as probabilidades de conseguir retirar o bebê inteiro e até mesmo vivo, com o objetivo de coletar “melhor e maiores tecidos”, como admitiu um dos altos diretores da Planned Parenthood. Em uma das câmeras escondidas, o ginecologista Deborah Nucatola, diretor de serviços médicos da quadrilha criminosa em questão reconhece o cuidado que deve ser tomado para não danificar certos órgãos que têm alto valor de mercado e acrescenta: “Temos sido muito bons em obter coração, pulmão e fígado, porque tomamos cuidado para não esmagar essas partes [...]. Para a caixa craniana, o bebê é removido das nádegas. Assim, se pode obter uma caixa craniana intacta”.[279] Bem, a IPPL tem em seu site suas informações financeiras até 2014. Revisando essas planilhas podemos encontrar que só neste ano, várias organizações argentinas receberam grandes somas de dinheiro: FUSA para a Salud Integral con Perspectiva de Género y Derechos recebeu 451.718 dólares; Católicas pelo Direito de Decidir receberam 244.320 dólares; a Anistia Internacional recebeu 44.850 dólares; o Centro de Estudos Legais e Sociais (chefiado pelo ex-montonero Horacio Verbitsky) recebeu 32.500 dólares.[280]
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As organizações feministas argentinas têm o seu grande
evento anual, chamado “Encontro Nacional de Mulheres” uma reunião de três dias (onde oficinas tais como aquelas intituladas “Estratégias para o acesso legal, seguro e livre ao aborto” ou “As mulheres e o ativismo lésbico”), que reúne as feministas do país e é caracterizado por fortes perturbações e atos de violência por elas protagonizados no final das atividades, quando participam em uma grande marcha. No final de 2015, por exemplo, a cidade escolhida para o XXX Encontro Nacional de Mulheres foi Mar del Plata, onde as feministas foram à Catedral, escoltadas por homens e mulheres do Partido Revolucionário Marxista-leninista e pelo grupo H.I.J.O.S. (que congrega filhos de guerrilheiros e terroristas de esquerda dos anos 70), com o objetivo de atacá-la e aos católicos que ali estavam, com paus, artefatos incendiários e garrafas de vidro. Aqueles que tentaram impedir as feministas de continuar a destruir o templo, disseram à imprensa que se tratou de uma “violência nunca vista. Eles quebraram as grades da Catedral e nossas mulheres e crianças tiveram que correr para dentro para orar por todos... Graças à Virgem que nos protegeu, pudemos resistir à tentativa de incendiar a Catedral. Quando eram pelo menos uns 5.000 ou 6.000 manifestantes de partidos marxistas, trotskistas, leninistas, etc., aqueles que estavam nos atacando, finalmente chegou a infantaria”. [281] Também se sabia que uma célula feminista atacou um idoso
que estava rezando dentro da Catedral, atingindo-o na cabeça com
um objeto pontudo. Na verdade, os atos de violência nesses eventos feministas não são a exceção, mas a regra. Em 2014, a cidade que viu passar por suas ruas essa marcha foi Salta, onde foram incendiadas bandeiras papais, símbolos cristãos, e foram pintados slogans em ruas e edifícios públicos, privados e religiosos. “Maria queria abortar”, “Jesus não existiu, Maria abortou”, “O aborto é dar a vida”, “Eu abortei e eu gostei”, “Aborte o macho”, “Somos más, podemos ser piores”, “Morto o homem, acabou a raiva” “Nem Deus, nem amo, nem marido, nem patrão”, “Machadada no machão”, são alguns exemplos de slogans com os quais elas sujaram toda a cidade.[282] Um grupo de católicos ficou na frente de uma igreja, de mãos dadas, rezando o terço, sendo atacados por ativistas feministas que lhes atiravam coisas, pintavam seus corpos, cuspiam-lhes e lhes insultavam, enquanto eles, sem responder aos ataques, continuavam rezando.[283] Feministas acabaram queimando uma imagem da Virgem Maria enquanto faziam sexo uma com a outra em frente ao templo.[284] Um ano atrás, esta mesma reunião tinha sido em San Juan, e as feministas foram novamente à Catedral da cidade onde encontraram os católicos a rezar o terço, e se dispuseram a pintar com aerossol suásticas em seus corpos e bigodes em seus rostos, sem que eles se perturbassem.[285] Em Córdoba, em 2007, exatamente o mesmo: pedras contra pessoas que rezavam na Catedral, pintavam-lhes e até jogavam garrafas com urina humana e outros detritos contra os católicos.[286] Em Tucumán, em 2009, novamente: eles atacaram prédios públicos, privados e religiosos e, de acordo com o que a Polícia de Tucumán disse depois à imprensa, “eles jogaram tinta; depois houve alguns que fizeram suas necessidades onde estávamos e jogaram matéria fecal no pessoal da polícia”.[287] (Como vemos, a brutalidade não seria apenas uma fonte de prazer sexual para os ideólogos de gênero, mas também de combate de rua). No encontro de 2010 no Paraná, as feministas agrediram verbal e fisicamente outras mulheres pelo simples fato de serem católicas, causando em muitas delas lesões consideráveis.[288] A mesma coisa já havia acontecido em Salta, quando em uma oficina em favor do aborto, um grupo de participantes ousou questionar essa prática e foi literalmente expulso da sala. Nessas marchas, que o leitor pode ver em inúmeros vídeos que foram carregados no YouTube, as bandeiras dos vários partidos esquerdistas e comunistas estão sempre presentes e visíveis. É que o feminismo é apenas uma nova máscara de algo muito antigo; muitas vezes são exatamente as mesmas pessoas. É curioso notar também que existem universidades que financiam as viagens de ônibus dos militantes que moram em outras partes do país para que possam inchar o evento.[289] Praticamente todo o “encontro” é baseado em reivindicar o direito de matar o nascituro e, acima de tudo, solicitar que o Estado financie esse genocídio. O símbolo da foice e do martelo é um clássico dessas manifestações. E outro clássico são as mulheres com os seios de fora, todas elas na maioria dos casos cultivadoras da repugnância estética. Aqui queremos fazer uma digressão: como em muitos casos o feminismo leva a entender o lesbianismo como uma opção sexual conforme as demandas ideológicas de suas próprias crenças políticas, o culto da fealdade é outro fenômeno que aparece com surpreendente freqüência em feministas militantes. Tanto assim é que existem muitas piadas que a sabedoria popular tem inventado sobre isso, e muitas vezes se diz que não há nada menos feminino do que uma feminista. Tudo isso, é claro, está enraizado na teoria, e não foi outra senão a feminista radical Naomi Wolf que, na década de 1990, publicou O Mito da Beleza, onde disse ao feminismo que a beleza feminina era outra das tantas opressões que o “patriarcado” onipresente e amaldiçoado havia criado. Idéias como essas ajudam a entender por que geralmente achamos que, independentemente do que cada uma traz por natureza, há um esforço para acentuar a fealdade[290] como uma maneira de construir uma identidade estética pessoal em mulheres que militam e se comprometem com a causa do feminismo radical de nossos tempos. Ocorre que o próprio feminismo acaba se apresentando como uma ideologia extremamente totalitária, na medida em que subordina as múltiplas dimensões da vida pessoal (incluindo a maneira pela qual apresentam rostos e corpos à sociedade!) a um único critério político-ideológico que ordena todo o resto. Voltando ao nosso tema central, outra questão que serviu ao feminismo argentino para se tornar visível e conseguir apelos realmente importantes é a chamada “violência de gênero”, um problema que está na boca de todos e é a causa de numerosas manifestações em todo o mundo. Foi assim que a marcha #NiUnaMenos foi convocada em 2015, na qual milhares de pessoas compareceram com a finalidade expressa e exclusiva de repudiar a violência de determinados homens contra as mulheres e pedir por uma reação do Estado (que consideramos muito louvável); mas isso, em grande medida, tornou-se a desculpa de organizações feministas para promover sua luta pelo genocídio contra o nascituro. Com efeito, a manifestação foi rapidamente invadida por cartazes em favor do aborto que diziam “Para dizer nem uma a menos é preciso legalizar o aborto”. Além disso, entre os pedidos mais destacados da manifestação foi encontrada a “regulamentação da totalidade dos artigos da Lei Nacional 26.845, de Proteção Integral da Mulher, com aprovação do orçamento acordado”. Esta lei, desconhecida pela grande maioria dos que participaram da manifestação, em seu artigo 3, parágrafo e), estabelece o direito das mulheres de “decidir sobre a vida reprodutiva, o número de gestações e quando tê-las”. O que obviamente inclui a decisão de matar ou não matar o ser que, carregando um DNA diferente do seu, eventualmente se encontre em seu ventre. Milhares de pessoas assinaram petições com esse título, sem conhecer detalhadamente o que elas estavam endossando. Mas, além dessa manifestação particular, vamos refletir brevemente sobre a chamada “violência de gênero”. Seria interessante perguntar em primeiro lugar: por que a violência deveria ter gênero? Levantar a questão sob nenhuma circunstância implica em defender a violência contra as mulheres, exercida por bestas que se chamam homens; antes do fanatismo dos slogans, é sempre bom deixar algumas coisas claras. Levantar a questão não envolve a intenção de relativizar o problema em questão; pelo contrário, o que a questão encerra é a intenção de tornar o problema mais refinado. Pois somente admitindo que a violência não tem gênero podemos começar a ver uma situação muito mais completa que aquela que apresenta uma visão que corta a realidade social pelas faixas de gênero: o problema é a violência como tal. Para começar, na Argentina, 83,6% dos assassinos são homens e 16,4% são mulheres.[291] Isso prova que temos que nos preocupar mais com o primeiro que com o segundo? A questão é tão ridícula quanto o próprio fato de analisar o problema da violência a partir de uma perspectiva de gênero. O problema é a violência, independentemente do sexo. Caso contrário, o que se instala é uma idéia tão falsa que foi de fato instalada em nossas sociedades: que a violência de gênero é simplesmente a agressão do homem contra a mulher, e que essa agressão é motivada em todos os casos por um ódio de gênero. De fato, desde a própria Nações Unidas, a violência de gênero foi definida como “aquela que atinge indivíduos ou grupos com base em seu gênero”,[292] embora a aplicação diária que é dada seja simples e exclusivamente a violência do homem em relação às mulheres que, independentemente dos motivos reais, aceitam o ódio ao sexo feminino como tal. Um grupo feminista, por exemplo, define violência de gênero como “violência endêmica em relações íntimas entre os dois sexos, iniciada por homens contra mulheres com o objetivo de perpetuar uma série de papéis e estereótipos criados para continuar com a situação de desigualdade entre homens e mulheres”.[293] Isso é o que foi introjetado no senso comum de nossas sociedades. Mas essa afirmação é completamente ideológica, porque não só carece de apoio empírico, mas há vários estudos que provam que as mulheres também podem iniciar a violência contra os homens e, de fato, isso acontece com freqüência. Aqui está um breve passeio por alguns deles: em um estudo longitudinal realizado nos Estados Unidos por Murray Straus e Richard Gelles com mais de 430 mulheres vítimas de maus-tratos, verificou-se que o homem deu o primeiro golpe em 42,6% dos casos, enquanto a mulher fez isso em 52,7%.[294] A Pesquisa Nacional de Violência Familiar nos Estados Unidos (1990) descobriu que homens e mulheres tinham a mesma probabilidade de atacar seu parceiro no contexto de um conflito.[295] O Departamento de Justiça dos Estados Unidos analisou os 75 maiores condados judiciais e descobriu que de 540 assassinatos entre os cônjuges, em 318 (59%) casos a vítima foi do sexo feminino, e em 222 (41%) casos quem terminou morto foi o homem.[296] Martín Fiebert, da Universidade da Califórnia Long Beach, com base em 117 estudos que reuniram 72.000 casos, concluiu que “a violência doméstica é mútua e, nos casos em que há apenas um agressor, este é um homem ou uma mulher igualmente”.[297] Na Universidade de Hampshire, estudos conduzidos pelo Laboratório de Investigações Familiares em 1975, 1985 e 1992 descobriram que “as taxas de abuso eram semelhantes entre maridos e esposas”.[298] No estudo clássico de Alice Eagly e Valerie Steffen sobre a violência, descobriu-se que os homens são pouco mais violentos do que as mulheres.[299] Em uma pesquisa realizada na Universidade de Lima, verificou-se que as mulheres atacaram psicologicamente em 93,2% dos casos, enquanto os homens em 88,3%, e fisicamente as primeiras em 39,1% dos casos, contra 28% por parte dos homens. A Universidade Nacional do México, com a ajuda de dados do Centro de Atenção à Violência Doméstica no México, descobriu que 2 em cada 50 homens são vítimas de violência física e psicológica por parte de sua parceira (algo semelhante foi encontrado na Coréia, Japão, Índia e outros países da América Latina).[300] Na Espanha, segundo dados do Ministério do Interior do ano 2000, o número de vítimas entre os cônjuges naquele ano era de 64 mulheres (59,26%) e 44 homens (40,74%),[301] embora os casos em que a pessoa acabou morrendo foi muito maior entre as mulheres (44 contra 7), no entanto, se acrescentarmos nessa análise os casais de fato e os amasiados, os números voltam a aproximarem-se (67 mulheres assassinadas contra 44 homens assassinados).[302] A socióloga Suzanne Steinmetz publicou um artigo no qual demonstrou que os homens também poderiam ser vítimas de violência doméstica, o que lhe rendeu “ameaças de morte contra ela e seus filhos”.[303] Daniel O'Leary et al. usaram uma amostra nacional representativa de jovens adultos e descobriram que 37% dos homens e 43% das mulheres relataram terem sido violentos contra seu parceiro pelo menos uma vez durante o ano anterior.[304] Em Kentucky (Estados Unidos), a Law Enforcement Asistance Administration estudou casais com problemas violentos, descobrindo que 38% dos ataques eram de mulheres contra homens. Na Inglaterra e no País de Gales, a British Crime Survey revelou que 4,2% das mulheres e 4,2% dos homens relataram ter sido agredidos fisicamente pelo parceiro.[305] Outro estudo na Inglaterra, o de Michelle Carrado et al. examinaram 1.955 pessoas e descobriram que 18% dos homens e 13% das mulheres disseram ter sido vítimas de violência física pelos seus parceiros em algum momento das suas vidas.[306] No Canadá, Reena Sommer da Universidade de Manitoba realizou uma investigação de vários anos e descobriu que 26,3% dos homens admitiram ser fisicamente violentos contra a parceira em algum momento, em comparação com 39,1% das mulheres que admitiram o mesmo com relação ao homem.[307] Na Nova Zelândia está o “estudo de Dunedin”, no qual 1.020 pessoas foram examinadas por vinte e um anos, e onde foi descoberto que 37% das mulheres relataram ter sido violentas com seus parceiros, enquanto 22% dos homens admitiram o mesmo.[308] É surpreendente que, à luz desses dados que provam que a violência não é exclusiva de um sexo, exista, no entanto, tanto desequilíbrio entre o interesse dado ao caso da violência do homem contra a mulher em comparação com a importância que se dá a violência da mulher contra o homem (na verdade, esta última é uma causa de humor em nossas sociedades). A academia não parece muito interessada quando a vítima é do sexo masculino. Os pesquisadores Ann Frodi, Jacqueline Macaulay e Pauline Thom revelaram, por exemplo, que dos 314 estudos sobre violência conduzidos ao longo de sete anos, apenas 8% estavam preocupados com a violência feminina.[309] Em outros casos, quando os números não fecham como o desejado, eles são diretamente suprimidos, como foi o caso de um estudo conduzido por Leslie Kennedy e Donald Dutton no Canadá para investigar a violência entre parceiros, que trabalhou com 707 homens e mulheres. Foram-lhes feitas perguntas para determinar quantas vezes exerceram violência contra o parceiro. Curiosamente, os dados sobre as respostas das mulheres foram omitidos do trabalho publicado no Canadian Journal of Behavioral Science, e foi então amplamente citado em um relatório da Câmara dos Comuns, chamado “A Guerra contra as Mulheres”, que foi usado para justificar onerosos programas e políticas públicas de gênero. No entanto, alguns anos depois foram obtidos os dados que deliberadamente não haviam sido publicados, sendo possível verificar que as taxas de violência eram semelhantes: 12,8% dos homens admitiram ter praticado violência contra as mulheres, enquanto 12,5% das mulheres admitiram o mesmo contra os homens.[310] Na Argentina, é interessante dar uma olhada no Manual Masculinidades, um livro produzido e distribuído pelo governo argentino no tempos de Cristina Kirchner, em que explica: “Chamamos [a violência] ‘de gênero’ porque são atos de violência perpetrados contra alguém em função de seu gênero, isto é, porque é uma mulher, ou porque é um homem efeminado, ou porque é uma pessoa transexual”.[311] Isto é, é exercido contra qualquer pessoa com exceção do homem heterossexual. Há algo mais sexista do que pedir justiça apenas para um sexo? Aquele que pede justiça para alguns e não para os outros, não está reivindicando justiça de forma alguma. Finalmente, explicamos que, enquanto a violência de gênero é definida como aquela motivada pelo ódio em relação ao outro sexo, o uso dessa categoria foi estendido a todos os casos em que uma mulher é atacada por um homem, criando a falsa impressão de que a violência que vai nessa direção é sempre determinada pelo ódio sexual e que estamos imersos em uma “guerra de homens contra mulheres”. Mas esse reducionismo não poderia explicar, por exemplo, por que nos Estados Unidos se descobriu que a violência em casais de lésbicas e homossexuais é tão ou mais freqüente do que a que ocorre em casais heterossexuais.[312] Será que aqueles que desencadeiam comportamentos violentos são movidos por algo um pouco mais complexo e variante do que a simples aversão pelo outro sexo? Assim, seria muito mais interessante mudar a palavra “violência de gênero” para uma muito menos ideológica, que não limitasse os motivos de violência somente a um, como a categoria “violência familiar” ou “violência entre o casal”. Eis a compreensão da violência como um todo, levando em conta que homens e mulheres podem ser violentos uns com os outros e por causa das mais variadas causas, podemos avançar com muito mais força na erradicação da violência como tal.
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Vimos algo aqui sobre algumas organizações locais e suas
principais bandeiras e demandas políticas e ideológicas. Elas são uma constante na maioria dos grupos feministas do mundo, embora, é claro, quando em determinado país se consegue, por exemplo, a legalização do aborto, o feminismo, longe de desaparecer com a realização do objetivo em questão, se move para uma nova fase em que a aposta é dobrada. De fato, parece que o feminismo tem, em termos gerais, uma agenda cuja realização está gradualmente ocorrendo, onde cada passo alcançado leva a uma reivindicação mais radical. Portanto, o estágio da radicalidade não é o mesmo em todos os países. Na Argentina, por exemplo, não é freqüente encontrar, pelo menos não de maneira tão visível, a articulação que o feminismo tem feito, a partir da teoria e muitas vezes desde a práxis, de práticas como a pedofilia, que em outros países onde os objetivos tais como a legalização do aborto (central para o feminismo latino-americano) já é coisa passada porque já foi cumprida. Um caso proeminente a ser mencionado a esse respeito é o da Associação Feminista Holandesa, que assinou petições públicas para obter a legalização da pedofilia. Estritamente falando, não são poucas as organizações feministas européias e americanas que têm laços estreitos com organizações pedófilas como NAMBLA (North American Man/Boy Love Association) e o IPCE (International Pedophile and Child Emancipation). Como referência do ativismo feminista que começou a expressar suas demandas com a pedofilia sobressaem os casos de Pat Califia,[313] Camille Paglia,[314] Katharina Rutschky e Gisela Bleibtreu-Ehrenberg. A questão não é menor em vista do impressionante lobby para normalizar a pedofilia que está sendo levado adiante, usando as ferramentas conceituais da ideologia de gênero que, como vimos, nos repete que tudo sobre a nossa sexualidade é uma simples “construção social” que deve ser destruída. Por que devemos nos abster de fazer sexo com crianças por causa de critérios tão “arbitrários” e “culturais” quanto a idade? Isso já se perguntavam muitas feministas radicais da terceira onda como vimos. Alguns fatos ilustram o atual estado de coisas: as principais instituições acadêmicas como a Queen’s University (Canadá) já tem “educadores” como o professor emérito de psicologia Dr. Vernon Quinsey que argumentam que a pedofilia é apenas uma “orientação sexual a mais”, comparável à heterossexualidade ou à homossexualidade; sistemas judiciais começaram a estabelecer jurisprudência em favor da pedofilia, como o caso da recente decisão do Supremo Tribunal de Apelações da Itália, que beneficiou um homem de sessenta anos que manteve numerosas relações sexuais com uma menina de onze, com base de que o ato teria sido consentido por ela (faz-nos lembrar dos argumentos hilários de Firestone); em outros países se está buscando legalmente reduzir a idade mínima do consenso sexual, como no Reino Unido, onde está sendo debatida a proposta de Barbara Hewson para abaixá-la para treze anos (idade legalizada no Irã); A Associação Psiquiátrica Americana (APA) em uma das edições recentes do seu popular “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais” (2013), desclassificou a pedofilia como um “transtorno” (note a estratégia: há dez anos foi considerada “doença”) e a colocou na categoria de “orientação sexual”, embora na edição posterior houvesse uma retificação (ainda não haviam condições para dar este passo?); o prestigiado Psychological Bulletin, publicado pela mesma APA, alguns anos antes já havia publicado o estudo intitulado A Meta- Analytic Examination of Assumed Properties of Child Sexual Abuse Using College Samples (1998), realizado por professores da Universidade de Michigan, Universidade de Temple e da Universidade da Pensilvânia, onde se encontrava que o abuso sexual de menores “não causa conseqüências negativas a longo prazo” e, portanto, concluiu que “o sexo consensual entre crianças e adultos, e entre crianças e adolescentes, deve ser descrito em termos mais positivos, como ‘sexo adulto–menor’”(observe o significado da batalha cultural no nível da linguagem); na Holanda, inclusive, foi legalizado um partido político declaradamente pedófilo (“Caridade, Liberdade e Diversidade”),[315] e há um grupo de sexólogos que pede para legalizar a pornografia infantil, entre os quais estão Erik Van Beek e Rik van Lunsen, que sugeriram que seja o Estado a controlar, produzir e distribuir o conteúdo erótico a pedófilos, argumentando que “se a pornografia infantil virtual é produzida sob estrito controle governamental, com um selo que mostra claramente que nenhuma criança foi abusada, poderiam oferecer aos pedófilos uma maneira de regular seus impulsos sexuais”;[316] o esquerdista Partido Verde da Alemanha também apoiou por um longo tempo a causa do movimento pedófilo, e descobriu que um atual euro-deputado desta facção política confessou em um livro de sua autoria (publicado em 1975) ter mantido relações sexuais com várias crianças enquanto trabalhava em uma creche; nos Estados Unidos, um grupo de pedófilos declarou o dia 23 de junho como o “Dia Internacional do Amor às Crianças”, que é todos os anos também celebrado no resto do mundo. Tudo isso está sendo levado adiante, sublinhemos, de acordo com as ferramentas da ideologia de gênero, que teve sua origem na teoria feminista. Na verdade, existem reconhecidos ativistas e ideólogos de gênero que estiveram envolvidos e até mesmo condenados por relações sexuais com menores, como o psicólogo Jorge Corsi, um ex-professor da Universidade de Palermo, que dava seminários, como o intitulado “A Construção do sexo masculino e a violência” e, além disso, foi convocado por uma comissão para elaborar um projeto de lei sobre “violência de gênero”. O fato era que Corsi acabou preso por fazer parte de uma rede de pedófilos que faziam festas sexuais com crianças; diante das acusações, defendeu-se argumentando: “muitas das coisas que estão sendo julgadas têm a ver com visões discriminatórias”; “pedofilia não é um crime”; “se estamos evoluindo para a despatologização de coisas que antes considerávamos patológicas, pode ser que isso também aconteça”.[317] Não é isto uma confissão de sua parte sobre a estratégia progressista que já explicamos? Outras excentricidades que afetam as liberdades individuais também foram inseridas no plexo das demandas políticas do feminismo nos países desenvolvidos. O Partido de Esquerda da Suécia,[318] por exemplo, apresentou um projeto de lei que obriga os homens a urinar sentados, como as mulheres têm que fazer.[319] O Partido Liberal deste mesmo país, por sua vez, propôs legalizar o incesto e a necrofilia (fazer sexo com os mortos).[320] A pressão ideológica e política sobre a empresa de brinquedos TOP-TOY tem sido tão forte que a condenaram socialmente por apresentar em seus catálogos meninos vestidos como super-heróis e meninas como princesas. No final, eles tiveram que se reacomodar às demandas hegemônicas e agora ilustram suas propagandas com meninos brincando com bonecas e garotas atirando com metralhadoras. Na Suécia, também podemos encontrar uma forte pressão para mudar a própria linguagem do Estado: recentemente, um novo artigo “neutro” foi incluído no idioma sueco, hen, que não teria o fardo de gênero como han (ele) e hon (ela). Na Alemanha, não só estão sendo feitos experimentos com a linguagem em centros de educação pré-escolar, mas também com a maneira de se vestir e, dessa forma, os meninos são encorajados a escolher roupas de meninas e as meninas a escolher roupas de meninos; ambos também não podem ser tratado como “ele” ou “ela”, para não “incutir estereótipos de gênero”.[321] No Canadá, o primeiro-ministro Justin Trudeau diz que as famílias devem “criar filhos feministas”[322] e um projeto está sendo considerado para mudar o próprio hino nacional, a fim de remover elementos “patriarcais”. Além disso, é deste país a famosa ativista feminista Anita Sarkeesian, que quer proibir os jogos de vídeo-game da Nintendo argumentando que a companhia “usou as fantasias de poder de adolescentes e homens heterossexuais para vender mais jogos de vídeo-game”; o famoso “Mario Bros” seria um dos mais “patriarcais” porque “de todos os jogos da saga Mario, a princesa aparece em 14 cenas e é seqüestrada em 13.”[323] Vale acrescentar que Sarkeesiano costuma andar pela ONU solicitando que a Internet seja censurada para lutar contra aqueles que não aderem ao feminismo.[324] Acusações similares as do patriarcal Mario Bros foram endereçadas contra o cartunista dos quadrinhos Spider-Woman (“Mulher-Aranha”) da Marvel, acusado de ser “sexista” na forma como ele retrata as mulheres; por causa da controvérsia desencadeada pela revista em questão, o artista acabou sendo substituído pela empresa.[325] Na Espanha, encontramos o partido chavista “Podemos”, em que milita a líder feminista Beatriz Gimeno (deputada autônoma), que disse que “a heterossexualidade não é a maneira natural de viver a sexualidade, mas uma ferramenta política e social com uma função muito concreta que as feministas denunciaram décadas atrás: subordinar as mulheres aos homens”; no que a deputada chama a fomentar “a não-heterossexualidade”, já que “a heterossexualidade causa danos às mulheres”.[326] Faltará muito tempo para que os esquerdistas do Podemos proponham a proibição da heterossexualidade? Não sabemos. O que se sabe é que neste país já se apresentou um projeto de lei para proibir a “cantada”, estabelecendo uma multa de prisão e até uma sanção financeira de 3.000 euros para quem se atreva a cantar uma mulher[327] — na Bélgica já existe uma lei sobre o assunto que condena as cantadas com uma multa entre 50 e 1.000 euros e penas de até um ano de prisão; na Argentina já existem alguns projetos semelhantes a caminho. A Andaluzia, por sua vez, já tem inspetores do Estado que vigiam zelosamente professores, professoras e alunos para que não usem linguagem impregnada de gênero: “alunado” deve ser usado em lugar de “alunos”; “professorado” em vez de “professores”; “a adolescência” em vez de “adolescentes”; “pessoal de investigação” em vez de “investigadores”, entre outras ocorrências desse estilo. [328] O governo autônomo do País Basco, por sua vez, quer proibir o
futebol nas escolas porque é um “jogo machista” e acabar com “a
distribuição sexista das áreas de recreação”.[329] Na França, grupos de feministas conseguiram que a população da cidade de Cesson- Sévigné proibisse a palavra “mademoiselle”, equivalente a “senhorita”, como “discriminatória” e “machista”, porque revela o estado civil sem que exista um correspondente masculino.[330] Na Inglaterra encontramos o movimento Justice for Women, cuja co- fundadora Julie Bindel (colunista do The Guardian) pensa e propõe que os homens têm de ser confinados em campos de concentração — “as mulheres que queriam ver seus filhos ou entes queridos masculinos poderiam ir visitá-los, ou retirá-los, como um livro da biblioteca, e depois trazê-los de volta” — e espera “que a heterossexualidade não sobreviva”.[331] Na América Latina, particularmente na Colômbia, as feministas estão coletando assinaturas para proibir os mariachis, já que “as letras destas canções perpetuam, celebram e reforçam padrões patriarcais de comportamento.”[332] A lista é, francamente, inesgotável. Mas esses casos servem como uma amostra de onde vem o problema. Além de tudo isso, vale a pena notar que alguns aparatos repressivos do Estado já estão sendo gradualmente postos em ação contra aqueles que ousam criticar o feminismo. Isto começa a tomar um alto grau de seriedade, porque o perigo para aqueles que não subscrevem a ideologia de gênero não mais seria dado apenas pela reação violenta de grupos e ativistas, mas pelo poder de polícia do Estado. Há um caso que se tornou emblemático: em novembro de 2012, o canadense Gregory Alan Elliott foi demitido de seu emprego e preso pela polícia de Toronto por ter discutido acaloradamente pelo Twitter contra as feministas Stephanie Guthrie e Heather Reilly. [333] Se a militância feminista radical continuar a introduzir suas proibições e perseguições, não seria exagero intuir que em breve estaremos na porta de uma verdadeira “ditadura de gênero”. Breve comentário final da primeira parte
Acreditamos que chegamos a este ponto tendo dado um
vislumbre da evolução do feminismo desde sua gênese até nossos dias, não apenas do que faz a ideologia feminista como tal, mas também das suas práticas concretas. Bem, neste caso, é necessário dar um breve comentário final. O feminismo teve uma origem nobre. Homens e mulheres lutaram pelo acesso feminino aos direitos de cidadania, e isso representou um avanço para todas as sociedades que cumpriram com essas exigências. Mas quando o marxismo tornou-se o chefe do feminismo, definiu e difundiu uma ideologia nociva de que “o homem é o burguês e a mulher o proletariado” (Engels), injetando a noção de um conflito insolúvel entre os sexos: “A guerra contra as mulheres”, parafraseando um projeto contemporâneo do Parlamento canadense. A velha esquerda havia há muito tempo encontrado na mulher um grupo social muito importante para sua revolução, mas subordinou-a à luta dos trabalhadores. Era a revolução de classe que libertava os sexos, e não a revolução dos sexos que libertava as classes. Mas isto mudou com o início da crise do quadro filosófico — produto por sua vez de crises políticas e econômicas — que alimentou o comunismo ortodoxo: surgiu em seguida uma “nova esquerda”, ansiosa por encontrar novos grupos sociais — diferentes do “proletário aburguesado” — que pudessem ser guiados na luta anticapitalista contra as superestruturas sociais e morais que supostamente sustentam o sistema. E assim vieram as feministas do gênero, dispostas a “desconstruir” até mesmo a nossa própria natureza humana no âmbito de uma batalha cultural declarada, a tal ponto que eles acabaram afirmando um paradoxo, que a mulher não existe. É impossível não se surpreender com a distância inelutável que separa os primórdios do feminismo de sua atualidade radical. A continuidade parece ser simplesmente de nome, obrigando-nos a parar e fazer a seguinte pergunta: não seria conveniente, a fim de evitar generalizações equivocadas, chamar por outro nome as mulheres que lutaram séculos atrás por causas nobres? Ou então, chamar de outra maneira nossas feministas radicais de hoje? Alguns já começaram a usar essa estratégia, tendo batizado o último grupo com o engenhoso rótulo de “feminazis”, em referência ao seu ódio político declarado baseado em critérios sexuais. Outros usam a palavra “misandria” para marcar seu caráter inverso da ideologia “machista”. Dado que é a linguagem o terreno principal de sua luta cultural, acho interessantes não só estes exemplos, mas também o inovar com formas de nomear esses grupos, e evitar a confusão que eles mesmos promovem para dar a sensação de aprovação geral para a sua causa. De fato, o “feminismo” é um rótulo que normalmente desperta simpatias quase automáticas, e nosso inconsciente coletivo automaticamente associa com objetivos nobres, como a luta para o acesso aos direitos políticos ou o combate à violência contra as mulheres. Mas temos certeza de que uma esmagadora maioria das pessoas que podem ter lido este livro e que chegaram a esse ponto em sua leitura, mesmo considerando-se “feministas”, não tinham conhecimento prévio da maioria das informações fornecidas aqui. Os únicos que podem aproveitar essa confusão gerada são as feministas radicais. Para muitos poderiam argumentar: o que foi descrito aqui não é feminismo, é um radicalismo, é um extremismo que nada tem a ver com o “feminismo real”. Mas a verdade é que este radicalismo exposto aqui não só se autodenomina “feminismo”, como, apesar daqueles que pensam que o feminismo é outra coisa, o é o feminismo mainstream no mundo político e acadêmico; ademais, sua força como um movimento ideológico nos aparece como uma curva que ascende vertiginosamente e que já impõe suas demandas em muitos pontos do planeta, sem praticamente ninguém se atrever a enfrentá-la.
FEMINISMO, HISTÓRIA E PODER Recebido em 13 de Julho de 2009. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 18, N. 36, P. 15-23, Jun. 2010 Aprovado em 10 de Dezembro de 2009. Céli Regina Jardim Pinto
1 - Hermenêutica Constitucional - A Sociedade Aberta Dos Intérpretes Da Constituição - Contribuição para A Interpretação Pluralista e - Procedimental - Da Constituição - DomTotal