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DOI: 10.22478/ufpb.2525-5584.2020v5n3.54816
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Este artigo foi publicado originalmente em inglês sob o título “Racism and Black Activism in Brazil: a
Literary and Historical Review” na Brasiliana Journal of Brazilian Staudies como RAMOS, P. C.;
TOMESANI, A.M. Racism and Black Activism in Brazil: a Literary and Historical Review. Brasiliana:
Journal for Bazilian Studies, v. 8, p. 3-31, 2019 (https://doi.org/10.25160/bjbs.v8i1-2.106209;
https://tidsskrift.dk/bras/article/view/106209), periódico do Centro de Estudos Brasileiros do King’s
College London, que autorizou a republicação do artigo traduzido para português. Contudo, é preciso
esclarecer que este trabalho que segue não corresponde à tradução ipsis literis do original porque algumas
alterações foram feitas para atender aos pareceristas da versão em português. Agradecemos à Maria Julia
Venâncio Ananias pela colaboração no trabalho de tradução da versão original em inglês para esta versão
em português.
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Universidade de São Paulo (USP) – E-mail: pc.ramos@usp.br.
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Universidade de São Paulo (USP) – E-mail: anamaura@gmail.com.
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ideas hace de este texto un material de introducción para aquellos que puedan estar
interesados en el activismo negro en Brasil y/o solo quieren tener referencias sobre el
debate racial, dentro de los límites de lo ya consolidado en Brasil y en su diálogo con las
tesis brasilianistas. Además de revisar la literatura consolidada sobre el tema de las
relaciones raciales en Brasil, pasamos por casos emblemáticos de la protesta negra contra
la violencia racial.
1. Introdução
Logo após a Abolição da Escravidão, em 1888, e a Proclamação da República,
em 1889, as teorias racialistas pró-embranquecimento e a anti-hibridização começaram a
se espalhar no Brasil. Essas teorias foram a base do novo estado em desenvolvimento -
estado este que via o Brasil como um país branco (Duarte, 1946, 6; apud 1999b, Maio) -
e contribuíram para a ação racista do Estado. Tal processo contou com a importação de
trabalhadores europeus no lugar de políticas de integração para os afrodescendentes
recém-libertos no novo sistema de produção e na sociedade em geral. Segundo alguns
autores, essas ações demonstram flagrantemente o estado de racismo em vigor no início
da República (Silvério 2002; Guimarães 2012), que acabou determinando o lugar que os
afrodescendentes ocupariam na estratificação social brasileira até os dias atuais.
O debate intelectual que acompanhou esse processo no Brasil foi fortemente
influenciado pelo trabalho seminal de Gilberto Freyre, Casa Grande e Senzala (1993).
Antes deste trabalho, o debate racial era travado por jornalistas influentes e membros de
instituições científicas criadas recentemente no país, como museus etnográficos,
institutos históricos e geográficos e faculdades de direito e medicina, conforme relatado
por Lilia Moritz Schwarcz em O espetáculo das raças: cientistas, instituições e questão
racial no Brasil, 1870-1930 (1993). A maioria dessas instituições científicas defendia
ideias pró-embranquecimento e olhavam para as organizações negras da época com
desconfiança e medo. Freyre revolucionou essas ideias com sua tese de que a
miscigenação era o resultado e a base de uma convivência pacífica entre negros e brancos
no Brasil, e que por isso deveria ser incentivada. O trabalho de Freyre forjou o mito da
democracia racial – que serviu e serve até hoje como um escudo para o racismo, como
veremos adiante.
Esses debates intelectuais ocorreram paralelamente ao desenvolvimento de
organizações negras com diferentes propósitos. O ativismo negro no Brasil passou por
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várias fases – uma fase de criação de associações para ajuda mútua, outra de valorização
cultural dos afrodescendentes, uma terceira fase que denunciou radicalmente o racismo e
a fase final e atual, mais propositiva, na qual os ativistas ocupam espaços públicos para
afirmar suas vozes e começar a exigir políticas de reparação. Além disso, essas fases
parecem ter sido acompanhadas por debates semelhantes sendo conduzidos na academia
sobre racismo versus racialismo, democracia racial e, mais tarde, a desconstrução do mito
da democracia racial.
O último conjunto de estudos sobre a questão da raça no Brasil já não trata mais
de provar a existência de racismo (com raras exceções). Em vez disso, preocupa-se com
a relevância das políticas de ação afirmativa, o debate sobre políticas públicas
universalistas versus particularistas ou evidenciando os esforços do ativismo negro para
estabelecer uma agenda de ação governamental. Alguns poucos estudos se concentram
nesta fase mais recente do ativismo negro apontando para uma tendência à denúncia da
violência, particularmente a violência policial, fazendo uso do termo "genocídio" para se
referir ao problema.
Nós não pretendemos explorar a correlação direta entre as descobertas no debate
acadêmico e o surgimento de lutas específicas na agenda dos ativistas negros. Para tal
tarefa, variáveis intervenientes deveriam ser controladas, como fatos referentes ao
momento político e histórico no Brasil (abolição da escravidão e ausência de políticas
inclusivas, políticas para embranquecimento da população trabalhadora, governos
autoritários, o papel da imprensa e, especialmente, a imprensa negra incipiente, mas
importante, desenvolvida em várias instâncias) bem como em nível internacional
(Primeira Guerra Mundial, ascensão do fascismo, Segunda Guerra Mundial, pós-Guerra,
Guerra Fria, desenvolvimento de ativismo negro nos Estados Unidos e em todo o mundo,
Conferências da ONU etc.). Em vez disso, nos limitamos a observar que é possível notar
a existência de uma relação entre o conhecimento produzido na academia e o
desenvolvimento paralelo de ideias propagadas pelo ativismo negro em todas as suas
fases, com exceção da última. Aqui argumentamos que a denúncia de um genocídio da
população negra pelo homicídio de jovens negros parece ter surgido primeiro entre os
militantes negros e depois nas universidades.
O objetivo deste trabalho é, portanto, contribuir para a compreensão de marcos
importantes no debate sobre racismo no Brasil e seu efeito no ativismo negro, enfatizando
a última fase, que trata de violência policial. A forma como organizamos as ideias faz
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na biologia (que passou a usar o termo "população") quanto nas ciências sociais (que
deram preferência ao termo "etnia").
O lançamento de Casa Grande & Senzala em 1933, por Gilberto Freyre, teve o
efeito interessante de desafiar essas doutrinas racialistas, pois valorizava a miscigenação
e as relações inter-étnicas, exaltando - de uma maneira romântica para alguns - as
contribuições dos africanos e seus descendentes para a cultura nacional brasileira. O livro
também destacou a convivência harmoniosa entre brancos, afrodescendentes e mestiços
no Brasil, supostamente o resultado de uma maior tolerância do catolicismo português
em relação a outras manifestações religiosas e um modelo de escravidão "mais
humanizado" do que aquele observado em outros países escravocratas (Maio, 1999).
Portanto, Freyre (1993) e seus apoiadores desafiaram a crescente elite intelectual –
particularmente de São Paulo e Rio – que, ainda fortemente influenciada pelas teorias
racialistas, via na obra de Freyre uma ameaça à construção da nação que desejavam, que
era predominantemente branca e seguidora dos padrões culturais e intelectuais europeus.
O trabalho de Freyre teve um papel importante em desacreditar as doutrinas
racialistas que governavam o Brasil durante a Primeira República (1889 - 1930), além de
valorizar o patrimônio cultural africano. No entanto, seu trabalho encorajou a ideia de que
existiria uma espécie de "paraíso racial" no Brasil, uma rara e pacífica convivência entre
brancos e afro-descendentes, o que poderia ser comprovado pelo alto grau de
miscigenação. Mais tarde, essa abordagem seria objeto de fortes críticas de
pesquisadora(e)s e ativistas, que argumentaram que a tese de Freyre sobre a democracia
racial ignorava e perpetuava o racismo estrutural e invisível herdado da escravidão e
traduzido em desigualdades raciais (Bastide & Fernandes (1955); Fernandes (1962);
Nascimento (1978); do Vale Silva (1978), Hasenbalg (1979), Haselbalg & Do Vale Silva
(1988)). Ironicamente, as primeiras e mais afiadas críticas vieram de pesquisas
desenvolvidas dentro de um projeto da UNESCO, implementado no Brasil para explorar
a suposta paz racial propagandeada pelas obras de Freyre.
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Fonte: Ministério da Saúde, 2017 (http://portalarquivos.saude.gov.br/campanhas/saude-da-populacao-
negra/divulgacao.html#:~:text=O%20%C3%ADndice%20de%20incid%C3%AAncia%20de,do%20que%
20as%20mulheres%20brancas).
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pois perceberam que as desigualdades não podiam ser resolvidas apenas pela integração
social e pela miscigenação racial. Palavras como “resistência” e “revolta” foram sendo
gradualmente incorporadas ao discurso de Abdias do Nascimento (Macedo, 2006;
Guimarães, 2006), figura importante que reuniu ativistas negros ao seu redor e em torno
do TEN (Silva, 2010).
Abdias do Nascimento foi para os Estados Unidos em 1968, durante o que
chamou de auto-exílio, e lá ficou até 1981. Custódio (2011) explica que esse período foi
intenso em termos de ativismo negro e cultural e que Nascimento deixou o Brasil como
artista e voltou como ator político. Isso não significa que a criação do TEN não deva ser
considerada um ato político. O que o autor explora é que a experiência de Nascimento
nos EUA - incluindo os eventos de que participou e os contatos que ele desenvolveu no
ativismo negro americano - alteraram definitivamente seu discurso, algo visível dentro de
sua produção na época (Custódio, 2011).
Alguns dos desenvolvimentos visíveis no discurso pós-exílio de Nascimento
incluem uma radicalização contra o mito da democracia racial e a incorporação de
elementos do pan-africanismo (Macedo, 2006; Custódio 2011). Curiosamente,
Nascimento foi o primeiro autor a tematizar a tentativa do Brasil de eliminar fisicamente
os afro-descendentes de seu território em sua obra O Genocídio do Negro Brasileiro
(1978), escrita durante o exílio. Neste trabalho, o autor destaca o processo de
miscigenação incentivado pelo governo como forma de embranquecer o país e eliminar
completamente a população negra de seu território. Essa ideia de um "genocídio"
perpetrado pelo Estado contra a população negra seria posteriormente reformulada pelo
ativismo negro dos anos 2000 (Ramos, 2014), como veremos abaixo. Não por acaso, a
obra de Abdias do Nascimento foi reeditada em 2002.
Nascimento também iniciou uma carreira política ao retornar dos Estados
Unidos. Filiado ao Partido Democrático do Trabalhador (PDT), um partido brasileiro de
centro-esquerda, ele ajudou a construir uma agenda para o Movimento Negro dentro do
partido, executou um mandato como deputado federal (1983-1987) e foi eleito senador
pelo estado do Rio de Janeiro em 1991. Ele também assumiu posições políticas no
governo do Estado do Rio de Janeiro, particularmente durante o mandato de Leonel
Brizola. Faleceu em 2011 depois de receber vários prêmios e homenagens por sua
contribuição à luta contra a discriminação racial.
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torturados. O tiroteio foi filmado por um cinegrafista amador que gravou esta e outras
cenas bárbaras de abuso de autoridade. As imagens foram divulgadas no noticiário
brasileiro em março de 1997. A polêmica conquistou o mundo e o movimento negro
denunciou a morte de Mário José Josino como um caso de violência racial.
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Figura 5:
Marcha contra a impunidade, a violência policial, o racismo e pelo direito a vida
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de motoboys5 ocorridos na região metropolitana de São Paulo, entre abril e maio de 2010,
começa a se capilarizar o protesto contra a violência policial, sob o que se convencionou
chamar de “genocídio da juventude preta, pobre e periférica”.
Foi criado um comitê batizado por esta expressão que unia marcadores etários,
classistas, raciais e territoriais a fim de ampliar a aliança em prol do fortalecimento da
agenda. Em 2011, um dossiê de mais de 500 páginas foi entregue à Comissão de Direitos
Humanos da Assembleia Legislativa, juntamente com um pedido de criação de uma
Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar violações de direitos humanos pela
Polícia Militar do Estado de São Paulo. O documento foi assinado por mais de “70
entidades do movimento social, e especialmente do Movimento Negro”, 10 delas
organizadas em torno do Comitê de Contra o Genocídio dos Jovens Negros Pobres e
Periféricos. Tal ação resultou dos protestos contra o assassinato dos dois motoboys
citados acima (Nota 3).
A partir de 2007, “genocídio” aparecerá entre os temas do Movimento Negro de
forma recorrente e sustentada. Há uma centralidade dessa questão em espaços de
movimentos sociais, como no 1º Encontro Nacional da Juventude Negra e na Conferência
Nacional da Juventude. Em 2011, dados os episódios de violência policial que estavam
ocorrendo e ganhando visibilidade a partir desse momento, a ideia de genocídio aparece
associada ao expediente policial e à alta letalidade atribuída às forças estatais em um
panfleto focado na VIII Marcha da Consciência Negra, em 20 de novembro de 2011.
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Eduardo Luís Pinheiro dos Santos, então com 30 anos, iniciou uma discussão com outras três pessoas no
dia 9 de abril. Depois que a polícia chegou, os quatro homens foram levados para um batalhão perto da
Avenida Casa Verde. Ao chegar no batalhão, Eduardo perguntou à polícia militar por que ele não havia
sido levado a uma delegacia e, ao não receber uma resposta, se revoltou. Os outros três homens foram
liberados, enquanto Eduardo foi arbitrariamente detido e torturado por mais de 10 policiais. Seu corpo foi
encontrado ao amanhecer no dia seguinte, na esquina da Rua Voluntários da Pátria e Avenida Brás Leme.
Já o motoboy Alexandre Menezes dos Santos, de 25 anos, foi espancado até a morte por policiais na frente
de sua mãe e do irmão mais novo, na porta de sua casa, no bairro Cidade Ademar, São Paulo.
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O caso mais ilustrativo desse problema persistente e a maneira como ele está
conectado com outros talvez seja o do assassinato de Marielle Franco em 14 de março de
2018, no Rio de Janeiro6. Marielle era moradora da Favela da Maré no Rio de Janeiro,
estava no seu primeiro mandato como vereadora pelo Partido Socialismo e Liberdade
(PSOL), era negra, lésbica, socióloga e sua plataforma política era a luta pela visibilidade
das chamadas “minorias políticas” e a proteção dos direitos humanos.
Fonte: Esta imagem apareceu em uma transmissão ao vivo do Facebook pelo jornal Brasil 247 em
30 de abril de 20187.
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Segundo a polícia, o policial aposentado Ronnie Lessa disparou contra a vereadora, enquanto o ex-policial
militar Élcio Vieira de Queiroz dirigia o carro que a perseguia. Marielle e seu motorista, Anderson Pedro
Mathias Gomes, morreram no local. O caso segue sem solução, pois não foi identificado ainda o mandante
do crime.
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Ver: www.facebook.com/Brasil247/videos/2020419544677709/ (Acesso em: 10 dez. 2019).
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suas demandas e pressionar o governo por ações específicas – o que parece corroborar a
tese de Rios (2009).
Em apoio ao movimento iniciado pelo ENJUNE para denunciar a violência do
Estado contra jovens negros, surgiram outros grupos, como o FONAJUNE - Fórum
Nacional de Juventude Negra, o Comitê contra o Genocídio da Juventude Negra e
Periférica, Mães de Maio, a campanha "Reaja ou Seja Morto” e outros. Várias marchas
foram organizadas e a questão da violência contra jovens negros parece estar ganhando
espaço no campo da segurança pública, tanto do ponto de vista governamental quanto
acadêmico.
O termo “genocídio” também tem sido usado com frequência na mídia, agências
governamentais, entidades da sociedade civil organizada e internacionalmente. Um
exemplo é como a ex-presidente Dilma usou o termo em vários discursos presidenciais
durante seu primeiro mandato (Ramos, 2014, 59/60). Outro exemplo é seu uso frequente
nos manifestos de várias organizações de direitos humanos, como as Mães de Maio (uma
referência às mães que perderam seus filhos, principalmente afrodescendentes, para um
massacre em maio de 2006). Embora isso possa indicar sucesso na estratégia adotada por
esses jovens negros, isso não se reflete na redução de mortes neste segmento da
população. Dito isto, os esforços foram capazes de alavancar em 2013 a criação de um
programa nacional para a prevenção de homicídios de jovens negros, o Plano Juventude
Viva, que foi descontinuado a partir de 2015.
6. Considerações Finais
Esta breve revisão da literatura sobre racismo e ativismo racial no Brasil mostra
como o debate intelectual que ocorre dentro dos muros da universidade desde o início do
século XX se reflete, em certa medida, na agenda das organizações engajadas no ativismo
negro. As teorias de embranquecimento e o amplamente difundido mito da democracia
racial impactaram as ideias e prioridades da Frente Negra Brasileira. Da mesma forma,
os novos ventos do Projeto UNESCO e seus resultados também influenciaram os
trabalhos de Abdias do Nascimento e do Teatro Experimental Negro. Curiosamente, o
TEN inicialmente flertou com o mito da democracia racial, mas nos últimos anos de
atuação sua agenda foi fortemente marcada pela denúncia das desigualdades raciais.
O Movimento Negro Unificado, organização de natureza mais política e
militante que suas antecessoras, incitou os afro-descendentes a reconhecerem suas raízes
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africanas. Nesse caso, a identidade racial também foi um fator político. Sugerimos que
esse movimento não tenha sido desconectado dos estudos de Nelson do Valle e Silva e
Carlos Hasenbalg, para os quais as desigualdades raciais entre brancos e não-brancos
(pretos e pardos) eram independentes do gradiente de cor dos não-brancos. O MNU
parece ter entendido isso quando lançou um apelo aos não-brancos que nunca tinham se
identificado como negros, mas que não conseguiam se ver ocupando posições
tradicionalmente brancas na sociedade.
O último período, caracterizado pelas organizações da sociedade civil
articuladas em função de uma agenda mais propositiva, apresenta uma característica
diferente. Aqui, o termo "genocídio" aparece com força na agenda das organizações
ativistas e é mais tarde apropriado por estudiosos que trabalham com violência e
letalidade policial. A efervescência política desses movimentos e organizações da
sociedade civil durante o governo Lula pode ter incentivado o surgimento dessa agenda,
invertendo a ordem de orientação entre ativismo e academia. Pelo menos em relação ao
tema do genocídio, as mobilizações sociais orientaram pesquisas tanto dentro das
universidades, apontando para a necessidade de investigações mais profundas da
violência policial letal com viés racial, quanto dentro dos think tanks da área, que
passaram a divulgar dados e análises de criminalidade e violência com recorte racial.
A revisão da literatura sugere, portanto, um alinhamento entre o debate
intelectual na academia e o ativismo das ruas. Contudo, no caso das três primeiras fases
do protesto negro no Brasil, parece que os movimentos redefiniram e incorporaram o
debate acadêmico, enquanto que, na mais recente, essa ordem é subvertida, tendo as
questões levantadas pelo ativismo negro sido incorporadas às agendas de pesquisa.
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