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XIV REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL

01 A 04 DE AGOSTO DE 2023, NITERÓI (RJ)

GT 44: Cultura e Educação: escolas, práticas pedagógicas e articulação

comunitária no contexto da educação intercultural.

A LEI 10.639 E OS CAMINHOS DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

Hermana D’Ògún1.

Mãe Stella quando criança na Escola Prof. Anfrisia Santiago. Observa-se na fotografia que a mulher que
se tornaria Iyalorixá era a única criança negra de sua turma. Fonte: Memorial Mãe Stella de Oxóssi.

1
Hermana Cecília Oliveira Ferreira. Doutoranda em Sociologia (PPGS/UFPB).
E-mail: hermanacof@gmail.com .
A LEI 10.639 E OS CAMINHOS DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA

NO BRASIL CONTEMPORÂNEO

RESUMO

Em 9 de janeiro de 2023 a Lei nº 10.639/2003 completou vinte anos no Brasil.

Esta legislação estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e inclui

no currículo oficial da rede básica de ensino a obrigatoriedade da temática

"História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”. Diante deste fato, e o tomando

enquanto pressuposto analítico, o presente trabalho visa analisar e discutir

alguns dos resultados primordiais produzidos a partir da tese de doutorado em

andamento que discute: processos de elaboração de pedagogias decoloniais em

suas relações com as demandas democráticas articuladas entre sociedade civil

e políticas públicas para a educação. Assim, na interface com os saberes

produzidos pelas comunidades tradicionais a partir do Brasil, serão discutidos

alguns dos meandros relacionados à: produção e reconhecimento epistêmico

específicos, bem como, sobre os modos de incorporação de saberes tradicionais

no repertório dos parâmetros curriculares oficiais da educação institucional

formal brasileira.

PALAVRAS-CHAVE

GEOPOLÍTICA DO CONHECIMENTO – MOVIMENTOS SOCIAIS - RACISMO

EPISTÊMICO - CRÍTICA FEMINISTA NEGRA - EDUCAÇÃO AFROCENTRADA.

1
LARÓYÈ!

ENCRUZILHADAS E ESPAÇOS DE INSERÇÃO

A discussão que proponho neste trabalho é o resultado de alguns resultados


preliminares da pesquisa de doutorado em desenvolvimento. Os fatos
observados, selecionados e escritos para a elaboração do presente texto fazem
parte da minha experiência enquanto pesquisadora, mas, sobretudo, enquanto
sujeita inserida e formada pelo campo delimitado – os terreiros de candomblé.

Deste modo, o objeto escolhido se perfaz junto com minha trajetória de vida,
condição de gênero, socioeconômica, e racial, bem como, pela possibilidade, a
partir do meu lugar de fala1 (RIBEIRO, 2017), de escrever sobre trajetórias de
vida e ações políticas de lideranças comunitárias que a mim e a tantos circundam
e cuidam – as mulheres negras.

Os fatos que permeiam a narrativa dos acontecimentos analisados, a partir da


observação participante, foi possível por minha atuação junto ao objeto da
pesquisa, o tornou possível a sistematização dos dados aqui apresentados.

Dito isto, este texto se pretende enquanto um ebó arriado na encruzilhada, um


agrado para Exú, que, atravessado pela polifonia de vozes possíveis de minha
inscrição enquanto sujeita neste território, e no diálogo entre o tempo colonial e
um tempo-espiralar, (GILROY, 2001; RUFINO, 2019; MARTINS, 2021), discute
algumas nuances existentes nos caminhos e possibilidades epistemológicas,
metodológicas e políticas inerentes à construção de uma educação antirracista
no Brasil contemporâneo.

ÒGÚN YÈ!
O PANO DE CABEÇA VERSUS O VÉU DA COLONIALIDADE

1
Segundo Djamila Ribeiro (2017) o conceito ‘lugar de fala’ se ancora no movimento ‘feminist stand point’,
um feminismo que articula teoria racial crítica e pensamento decolonial ao recuperar as conquistas do
feminismo do ponto de vista discursivo de corpos subalternizados que reivindicam sua existência tendo
como destaque, as mulheres negras.

2
Para Ratts e Rios (2010, p. 77) o movimento negro contemporâneo
pressupunha negros em movimento, de modo que, segundo os autores, além de
atuar diretamente na formação, consolidação e difusão do movimento negro, que
reapareceu no Brasil no final dos anos 70, em pleno regime militar, Lélia
Gonzalez analisou e interpretou sua formação. Em seus textos, ela se refere a
esse período de ditadura como os tempos de “silenciamento a ferro e fogo, dos
setores populares e de sua representação política”. (GONZALEZ, 1982, p. 11).

Considerando o pressuposto pan-africanista fornecido pela reunião de


argumentos propostos pelo pensamento da diáspora negra em todo o globo,
serão considerados alguns acontecimentos. Dentre estes estão: o encerramento
do regime de Apartheid na África do Sul; a publicação do livro ‘Black Feminist
Thought’ de Patricia Hill-Collins nos Estados Unidos e a emergência do conceito
de interseccionalidade no trabalho Kimberlé Crenshaw; a ampliação das vagas
no ensino superior gratuito em universidades públicas do Brasil e a criação da
lei de cotas2; a Lei 10.639/2003 e a obrigatoriedade do ensino sobre História e
Cultura Afro-Brasileira na educação básica; o assassinato da vereadora e
socióloga negra Marielle Franco, no centro do Rio de Janeiro em 2018; e, por
fim, a recente criação do Ministério da Igualdade Racial no Brasil, no ano de
2023, liderado pela irmã da vereadora Marielle, a Ministra Anielle Franco.

Apesar destes fatos e dos avanços relacionados à ampliação de direitos a


partir do reconhecimento de seu lugar de diferença, a população negra do Brasil,
embora se constitua enquanto maioria em termos numéricos3, ainda tem sido
tratada, desde a abolição do regime escravocrata, por governos republicanos
incluindo os democraticamente eleitos, a partir de uma literatura que mascara o
valor de sua importância.

O véu da modernidade, colonialidade e racionalidade, perpetrado pelo


racismo estrutural (2019:27), sobredetermina as relações a partir do marcador:
negro, ramificando-se, inclusive, na produção da engendrada geopolítica do

2
https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/02/lei-de-cotas-tem-ano-decisivo-no-
congresso

3
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/07/cresce-proporcao-de-pretos-e-pardos-na-populacao-
brasileira.shtml

3
conhecimento. Segundo o autor, e atual Ministro dos Direitos Humanos e da
Cidadania do Brasil, o racismo institucional se pratica pelo fato de que as
instituições: enquanto o somatório de normas, padrões e técnicas de controle,
condicionam o comportamento dos indivíduos, resultam em conflitos e lutas pelo
monopólio do poder social; enquanto parte da sociedade, as instituições também
carregam em si os conflitos existentes na sociedade. Em outras palavras, as
instituições também são atravessadas internamente por lutas entre indivíduos e
grupos.

Há mais de uma década minha relação com os terreiros de matriz africana na


cidade de João Pessoa, que se estabeleceu através de uma pesquisa acadêmica
sobre a formação do campo afro-religioso na cidade, nos últimos anos se tornou
o ambiente ao qual atualmente dedico maior atenção. Desde a colaboração na
escrita do livro4 autobiográfico de Mãe Marinalva, observo que a agência das
Iyálorixás não se restringe aos cuidados com os orís5 de seus filhos, e demais
pessoas que buscam acolhimento e orientação em suas casas.

Com um perfil majoritariamente comunitário, e na contracorrente daquilo que


as imagens de controle, (BUENO, 2019) estatísticas da necropolítica, (MBEMBE,
2011), indicadores de feminicídios, e desigualdade salarial apontam sobre as
condições sociais às quais as mulheres negras no país6 estão submetidas,
observo, a partir do território onde estou inserida, um transbordante, permanente
e histórico, ativismo político protagonizado por lideranças específicas.

A partir da observação acerca da atuação das Iyálorixás, que são, em sua


maioria, mulheres negras, residentes e oriundas das periferias brasileiras,
encontro, através do estudo de suas trajetórias, uma série de práticas e ações
ora de orientação espiritual e acolhimento, ora de gerenciamento e
administração de muitas coisas, e que vão além dos cuidados dedicados a seus

4
“Umbanda: Missão do Bem” de Marinalva Amélia da Silva é um livro lançado em 2012 que traz relatos
sobre a trajetória de vida e permanente luta pelo reconhecimento da cultura e das religiões de matriz
africana na Paraíba. A partir do exercício mnemônico de umas das primeiras mães-de-santo na cidade de
João Pessoa, Mãe Marinalva, a liderança do Terreiro Ogum Beiramar, traz relatos e fragmentos
historiográficos a partir da década de 1960 sobre processos de negociação e conformação do campo das
religiões de matriz africana neste território.
5
Em yourubá: cabeça, mente, espírito.
6
https://www.camara.leg.br/noticias/832964-mulheres-negras-sao-maioria-das-vitimas-de-feminicidio-e-
as-que-mais-sofrem-com-desigualdade-social/

4
filhos. Estas lideranças são aquelas que influenciam, sobretudo, outras esferas
sociais.

A partir do reconhecimento da importância e impacto destas práticas e ações


em contextos societários, comunitários, marginalizados e mais pauperizados do
país, observo preceitos, orikís, ebós, e ensinamentos cotidianos sobre o
enfrentamento de adversidades inerentes às lutas contra a desigualdade
econômica, o racismo, e opressões interseccionais.

Por este caminho, e inerente a estas ações, identifico algumas nuances da


construção de pedagogias decoloniais que emergem no chão dos terreiros. Na
combinação e sistematização de dados, das informações historiográficas a partir
das histórias de vida, e do repertório de resistências de pessoas subalternas e
racializadas que compartilham suas experiências diante do devir colonial.

Logo, perante da mutualidade próxima do conceito de dupla consciência


fornecido por (GILROY 2001:79) ao versar sobre os densos sincretismos
culturais decorrentes da condição de colonialidade, e do problema analítico
proposto, o esforço pela compreensão acerca de lógicas sobrepostas pela
experiência da diáspora nos solicita que algumas formas específicas de
compreensão da realidade sejam consideradas.

De acordo com o nível de complexidade do esforço interpretativo pretendido,


serão observados pressupostos oriundos da proximidade entre: produção
intelectual negra e ativismo político; as mudanças provocadas na esfera pública,
cultura política e demais debates contemporâneos acerca das questões raciais;
e o lugar das comunidades tradicionais neste enredo, a utilização desta dupla
consciência se torna possível mediante as novas interpretações sobre as
realidades ambivalentes, contraditórias e exusísticas dos contextos sociais
inscritos nas conjecturas e de submetidos aos efeitos da modernidade,
colonialidade.

Logo, no decorrer do trabalho de movimento não linear, nos deparamos com


a familiaridade consistente de elementos que nos remetem à compreensão de
algo próximo daquilo que os estudos culturais e de antropologia da performance
já o fazem; por sua proximidade com a noção de dupla consciência proposta por

5
Gilroy (2001) ao analisar os elementos culturais e simbólicos pan-africanistas
compartilhados através atlântico negro; mas, sobretudo, por fornecer um novo
olhar acerca dos caminhos interpretativos anticoloniais, complexos e por este
motivo, constitutivos, da abordagem analítica necessária acerca das práticas
rituais, educacionais, ecumênicas, políticas e performativas, afrodiaspóricas.

Assim, através deste lócus-encruzilhada, e no fluxo epistêmico perpetrado


pela desobediência colonial (Mignolo, 2010) desenvolvido por pessoas
pertencentes às comunidades tradicionais de terreiro às quais denomino
enquanto pessoas de axé, utilizarei algumas noções a partir de meu lugar de
fala, que, por sua vez, condiciona a abertura de meu ofò7 de maneira condizente
com os valores civilizatórios afro-brasileiros.

Estes relatos fazem parte também de minha trajetória de vida enquanto


cientista social negra, cotista, oriunda da periferia, e, principalmente enquanto
candomblecista do Ilê Asé Opô Omidewá, o terreiro que me acolhe, e de mim
cuida há quase uma década, e que está situado na cidade de João Pessoa,
estado da Paraíba, nordeste do Brasil. Logo, o foco do trabalho se aterá a
analisar as contribuições dos saberes compartilhados pelo candomblé em sua
capacidade de fornecer um modo de interpretação do mundo, observando a
história das comunidades, sua relação com a natureza, ancestralidade e relação
com o sagrado.

“Foi batendo o pé na terra que vovó me ensinou a sambar”:

Saberes que emergem no chão-do-terreiro

Segundo (BOTELHO e FLOR DO NASCIMENTO, 2010, p. 75) as


modificações no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB), promovidas pelas Leis n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, que tornam
obrigatório o estudo da história e cultura africanas e afro-brasileiras, introduzem

7
Forma de encantamento que ocorre através do ato de proferir palavras, no entendimento do
Candomblé Ketu.

6
uma demanda ímpar de conhecimentos sobre a contribuição das culturas
africanas para a constituição da identidade e da cultura brasileiras.

Assim, este lócus narrativo-analítico toma enquanto ponto de partida o projeto


pedagógico8 por mim coordenado no primeiro semestre do ano de 2022 na sede
de uma Comunidade Tradicional de Matriz Africana situada na zona sul de João
Pessoa. Caracterizada por ações junto à sociedade civil, esta entidade, situada
em um Terreiro de Candomblé da Nação Ketu (Casa de Cultura Ilê Asé
D’Osoguiã – CCIAO), se destaca por sua abrangência e articulação a nível
transnacional, o que lhe compete: capacidade de diálogo com o poder público
em seus níveis municipais, estaduais, federal, e o desenvolvimento de ações
junto a comunidades tradicionais, quilombos, dentre outras.

Através de parcerias junto a órgãos de financiamento internacionais, incluindo


CLACSO e UNESCO, o trabalho desenvolvido intitulado “Vamos Quilombar na
Educação” abriga, portanto, o insight primordial para o desenvolvimento desta
pesquisa, e se assenta a partir da experiência etnográfica cuja denominarei por:
chão-de-terreiro. Sendo assim, é importante enfatizar que a escrita deste texto
está ambientada no bairro periférico e composto em sua maioria por população
negra – o Planalto da Boa Esperança. Para melhor compreensão do problema
apresentado, tomaremos este espaço de observação enquanto centralidade do
pressuposto decolonial investigado, qual seja, a experiência pedagógica
desenvolvida a partir do Projeto ‘Vamos Quilombar na Educação’.

A Casa de Cultura e o primeiro contato com “os meninos”9

8
“Vamos Quilombar na Educação” foi um projeto por mim coordenado e financiado pela Prefeitura
Municipal de João Pessoa através do CMDCA (Conselho Municipal Direitos da Criança e do Adolescente)
que promoveu na CCIAO, durante o contraturno escolar, o ensino da História e Cultura Afrobrasileira e
Africanas em consonância com as Leis 10.639 e 11.645 para crianças da educação básica estudantes de
escolas públicas.
9
Formada por 40 crianças beneficiárias, que normalmente chamávamos carinhosamente por: meninos, o
Vamos Quilombar se complementava às outras ações desenvolvidas pela Casa, a exemplo do Serviço de
Convivência promovido junto às famílias das crianças, através de incentivos do CMDCA (Conselho Municipal
da Criança de do Adolescente). O Próprio projeto foi financiado pelo CMDCA, que disponibilizou os recursos
para pagamento dos agentes educativos envolvidos e material de utilização.

7
Minha chegada à Casa de Cultura ocorreu em março de 2022 quando fui
recebida e contratada para coordenar o Projeto que visava desenvolver
atividades didáticas implementando os conteúdos previstos pela lei 10.639 de
2003, para crianças e adolescentes do bairro, no contraturno escolar.

A indicação havia sido feita por um colega ativista dos direitos humanos de
quilombolas no estado, de modo que, e em João Pessoa, seja bastante comum
que uma pessoa tenha, em algum momento, comentado sobre uma outra, que
conhece uma outra, e no fim, todo mundo se conhece, principalmente quando
tratamos de espaços direcionados às resoluções de questões relacionadas a
desigualdade social, luta antirracista, ou seja, as Comunidades Tradicionais de
Terreiro.

Na entrevista me recordo do comentário simpático de Pai Renato10 dizendo


que seria muito bom ter ali um projeto coordenado por mim, uma mulher negra,
de axé11. É importante enfatizar que na maioria dos terreiros de matriz africana
existe uma divisão essencial baseada no sexo. Esta divisão, por sua vez,
determina funções relativas às tarefas necessárias à organização dos Ilês.

Conheci a liderança feminina da CCIAO, Mãe Tuca, após seu retorno da


cidade do Rio de Janeiro, cidade que a mesma residiu por muitos anos de sua
vida, logo após o carnaval quando fico sabendo de seu apreço e estima pelas
escolas de samba cariocas, tanto quanto pelo círio de Nazaré. Em sua Casa,
localizada há quatorze anos no Planalto Boa Esperança, são desenvolvidas
atividades relacionadas à educação de crianças e adolescentes, combate à
fome, cadastramento em programas sociais do governo, e disseminação da
cultura afrobrasileira.

No Ilê Asé D’Osoguiã (CCIAO), que recebe este nome em homenagem ao


Orixá de Mãe Tuca, a liderança da Casa onde desenvolvemos o Vamos
Quilombar, o que é comum que ocorra em terreiros de matriz africana do país,

10
Pai Renato, além de diretor, é o esposo de Mãe Tuca, e desempenha a função de ogã do Ilê, cargo
geralmente destinado às pessoas do sexo masculino em terreiros de matriz africana.
11
Pessoa de axé é um termo adjetivo utilizado entre candomblecistas e demais praticantes de religiões de
matriz africana. Axé: a energia vital, é principal objetivo e de busca pelo aprimoramento ético com base
nos valores civilizatórios afro-brasileiros tendo enquanto base a cosmologia e cultura yorubá.

8
ou seja, recebem enquanto nome a referência ao Orixá de cabeça da Iyalorixá
ou Babalorixá que funda ou abre a casa. Ali encontramos o funcionamento da
Casa, que além de Ilê, também era nosso lugar de encontro e trabalho.

Quando iniciamos o Projeto, percebemos que a relação de Mãe Tuca, e de


alguns funcionários da Casa com as crianças estava preestabelecida pelo fato
de que os mesmos residiam ali mesmo, ou no entorno, junto à comunidade do
Planalto Boa Esperança. No dia-a-dia, bastante dinâmico, desenvolvíamos
mensalmente reuniões de planejamento das atividades, intercaladas ao café-da-
manhã e lanche da tarde, onde ouvíamos os aconselhamentos e
direcionamentos da Iyalorixá. Apesar de estar coordenando as atividades, o aval
final sobre metodologia e conteúdos era dado por ela.

Neste cotidiano, o espírito da intimidade (SOMÉ: 2003) foi despertado de


maneira zelosa na interação com o grupo. Nossa relação com os meninos se
dava de maneira bastante afetuosa, possibilitada pelos cotidianos encontros
face-a-face construídos no chão daquele terreiro. Nossa relação, minha junto
aos dois educadores, se estabeleceu de maneira fluida e acolhedora, possibilitou
que cultivássemos amizade mesmo após o encerramento das atividades do
Projeto, quando nos reuníamos para tomas uma cerveja depois do expediente
em algum bar na principal do Planalto, e conversar sobre nossas impressões
sobre a efetividade do envolvimento das crianças e o resultado dos conteúdos
abordados.

Uma biblioteca negra

Para Luiz Rufino (2022) “educar é um jogo de corpo”:

12“Os vaqueiros aprendem com a terra, me disse um velho da lida do


gado. A estações ensinam sobre a roça, conta um lavrador. A planta é
a professora, me disse a erveira. O xamã disse sobre a necessidade
de criar intimidade com os sonhos para aprender sobre si. O mestre do
samba canta: "as coisas estão no mundo e eu preciso aprender".

12
A ‘Ialorixá e o Pajé’, livro de Mãe Stella com ilustrações lançado em 2018. ‘A Ialorixá e o Pajé’ é um relato
verdadeiro sobre lembranças de Mãe Stella de Oxóssi quando era jovem e enfermeira. Na história, um
encontro de Mãe Stella com um Pajé, trocas de conhecimentos sobre plantas, ervas medicinais, raízes,
sementes, folhas e rituais entre uma pessoa nascida na cultura afro-brasileira e com a cultura indígena.

9
Aprender, educacar é um radical comunitário. A comunidade para
muitos dos habitantes desse tempo é também mais que humana, é um
radical vivente”.

Na Casa, onde o Projeto foi desenvolvido, pudemos acessar uma


biblioteca com alguns títulos com os conteúdos a serem trabalhados e que
contemplavam a Lei supracitada. A adequação das atividades à esta legislação
constituía-se enquanto uma via de mão dupla, de modo que muitos dos
conteúdos presentes nos livros eram vivenciados pelas pessoas em suas
dinâmicas afro referenciadas.

Dentre as leituras disponíveis utilizados o “Pedagogias das Encruzilhadas”


como ponto de partida, encontramos importantes leituras sobre Mãe Stella
D’Oxóssi, uma das principais Iyalorixás para o candomblé ketu brasileiro
contemporâneo. A partir da leitura de “Iyalorixá e o Pajé” desenvolvemos um dos
temas da metodologia ‘Leituras de si e Leituras do Mundo’ o que rendeu
excelentes reflexões com as crianças sobre autopercepção na relação das
histórias de vida com o território do bairro Valentina e suas adjacências, Paratibe,
Muçumagro13, Gramame, e o lugar onde estávamos, o Planalto da Boa
Esperança. Nesta atividade, em especial, as crianças e adolescentes
desenvolveram narrativas com fragmentos de história oral, e sobre os
conhecimentos tradicionais que constituíam o patrimônio de saberes ancestrais
de suas famílias, e a relação com a flora e a fauna do lugar.

“Para cada casa, um santo, para cada santo, uma casa”.

A maior parte das atividades aconteciam no Barracão do terreiro, espaço


destinado às festividades religiosas, e também, para reuniões mensais com a
equipe completa que incluía assistente social, a diretoria, e a principal liderança,
Mãe Tuca, de dialogava conosco definindo como desenvolver as atividades, qual
a melhor maneira, e como se comportar ali, naquele chão, naquele espaço.

Também foram utilizadas outras leituras, a exemplo do livro “Quarto de


Despejo” de Carolina Maria de Jesus. No planejamento mensal, que incluía a

13
https://kn.org.br/oq/2013/01/31/incra-publica-relatorio-de-identificacao-da-comunidade-quilombola-
de-paratibe-em-joao-pessoa/

10
seleção dos conteúdos trabalhados para a produção final de um Podcast,
incluímos biografias das personalidades de destaque e dos heróis
afrobrasileiros, a exemplo de Dandara, Zumbi dos Palmares, Tereza de
Benguela, Luísa Mahim, Luís Gama, dentre outros.

Aspectos sobre a religiosidade yorubá também foram trabalhados, inclusive


pela curiosidade das próprias crianças e suas perguntas sobre Exu, e os demais
Orixás. A Casa de Cultura, por ser um Terreiro de Matriz Africana, é repleta de
ornamentos e objetos decorativos, iconografias de Orixás e das demais
entidades do panteão afroindígena brasileiro.

A relação com Mãe Tuca, por sua vez, merece ser enfatizada, pelo fato de
que, além de uma líder comunitária, esta sexagenária nascida na cidade de João
Pessoa, e que sempre se utiliza da frase de que “Um rio que esquece sua
nascente seca” – partindo do princípio Sankofa da filosofia ubuntu de que
necessitamos olhar para o passado, para que assim possamos construir um
futuro, era atravessada por muitos sentidos. Além de uma liderança religiosa,
sua influência determinava as ações organizativas e os princípios ideológicos
que guiam as ações de todas as pessoas envolvidas.

Cotidianamente, os ensinamentos sobre os conteúdos a serem trabalhados


pela legislação supracitada previstos se alternavam dando espaço aos
ensinamentos provenientes da sabedoria oriunda da experiência dos mais
velhos. Respeitar os mais velhos. Cultuar a memória. No Barracão existia uma
grande fotografia da ancestral da Iyalorixá da Casa. Bem centralizada na
principal parede daquele espaço, despertava a nossa percepção, e a das
crianças, se relacionava com o culto à memória dos mais velhos, ou seja,
daqueles que vieram antes.

Apesar do racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) e da forte intolerância


religiosa, relatada por todas as mães-de-santo14 com as quais tive contato, e que

14
Durante os encontros com a Iyalorixá, à qual sempre cumprimento solicitando sua benção,
principalmente por este ser um dos modos através dos quais a comunidade composta por pessoas de axé
inicia suas interações, e seguindo a hierarquia das Casas de Axé tradicionais de matriz africana, era comum
dela ouvir cotidianos relatos de situações vexatórias onde, segundo a mesma, as pessoas depreciavam o
espaço pela associação negativa promovida pelo cristianismo durante séculos no Brasil através dos

11
impediam o acesso das crianças às atividades, por exemplo, preferindo manter
muitas delas em casa, as oficinas foram bastante frutíferas.

Além das oficinas de produção textual através das quais diagnosticávamos


níveis de desenvolvimento de ortografia e escrita, assistimos alguns filmes e
documentários juntos, sobre as biografias, trajetórias e luta das personalidades
supracitadas na tentativa de demonstrar as tantas possibilidades e caminhos
para a população negra do país, na valorização de sua autoestima.

Caminho se faz caminhando

Conforme dito anteriormente, minha relação com os Terreiros de Matriz


Africana na cidade de João Pessoa não é de hoje, meus passos, “que vêm de
longe”, que possibilitam que meu odu (caminho) esteja vinculado à trajetória
destas lideranças. Algo que agradeço todos os dias.

Na trajetória enquanto cientista social, tenho minha iniciação etnográfica, e de


observação participante, em um terreiro de matriz africana, o Ogum Beira-mar,
de Mãe Marinalva, situado no bairro do Castelo, bairro onde resido, repleto de
histórias afro referenciadas e que hoje abriga significativa porcentagem de Ilês
Asé – os terreiros de matriz africana.

Deste modo, e atravessada pelos relatos de trajetórias inspiradoras de vida,


observo que meu asé, e força vital está relacionado aos ensinamentos,
conselhos e cuidados destas lideranças matriarcais, a quem peço a bênção, que
me orientam, e que orientam os caminhos de seus filhos, filhas, e de toda a
comunidade, seja através das práticas divinatórias de Òrúnmìlà-Ifá, do jogo de
búzios: Ifa-Opele, e Ikin-Ifá, ou através das cartas.

Diante destes ensinamentos, identifico um despertar, a partir do caminho


dentro das religiões de matriz africana – o candomblé, que me inclui, situa no
despertar de uma consciência afrocentrada. Enquanto uma mulher negra,
nordestina, e nascida em periferia, o acesso aos livros nem sempre foram

elementos mais proeminentes da intolerância religiosa praticada no Brasil atualmente, qual seja: a
associação do Orixá Exu ao à figura judaico-cristã do diabo, o que não existe na liturgia yorubá.

12
tranquilos. Em minha experiência acadêmica, repleta de situações racistas,
continuo a atravessar um oceano que invisibiliza as contribuições das pessoas
racializadas no Brasil. Assim, acreditar na ciência, apesar da experiência
colonial, é também um voto político e de fé, na construção de ferramentas
interpretativas e analíticas sobre o social, a partir de uma forma específica de ser
um corpo no mundo.

Observo a confluência contemporânea de inúmeras correntes epistêmicas


que, embora silenciadas, não foram apagadas. A experiência acumulada diante
da vivência e inúmeras situações que solicitam a resolução dos conflitos
inerentes à diversidade social e étnica que constitui o país, fazem destes
espaços um ambiente profícuo para estudos, não somente da socio antropologia
das religiões de matriz africana, mas enquanto recintos de assistência,
educação, e articulações políticas, em muitos níveis.

A utilização da memória, patrimônio constitutivo às experiências de


comunidades afroindígenas brasileiras, consiste, portanto, enquanto artifício de
pesquisa, “Para cada casa um santo, para cada santo uma casa”, e assim,
famílias e núcleos associativos entre pessoas e populações em permanente
contato com estes núcleos de cultura negra, comunidades tradicionais, já
reconhecidas e implementadas pelo poder público15, através de ações e lutas
protagonizadas historicamente pelo Movimento Negro brasileiro, o que inclui a
participação das mães-de-santo.

Corpo Saber

Diante do que foi exposto, é importante enfatizar que, a mutualidade


constitutiva de minha participação em mais de um espaço de atuação, informa e
abastece a possibilidade de observação dos fenômenos sociais mencionados,
quais sejam, o protagonismo das Casas de Axé na promoção de uma educação
antirracista no Brasil contemporâneo.

15
https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/composicao/secretaria-de-politicas-para-quilombolas-povos-
e-comunidades-tradicionais-de-matriz-africana-e-ciganos

13
Tão logo, a emergência de um pensamento elaborado a partir do Sul-global
– o que inclui as contribuições do Atlântico Negro, da Améfrica Ladina; dos
quilombos; das comunidades tradicionais e terreiros; das epistemologias
oriundas do feminismo negro; e do pensamento negro radical afro-americano,
demonstram algo novo ao exercício sociológico, qual seja: a capacidade de
inscrever a produção de conhecimento ao corpo racializado, sua relação com o
território, fazendo jus à trajetória de quem o produz. Este argumento, portanto,
se baseia na seguinte ideia: a produção do conhecimento perpassa a
materialidade e espiritualidade do corpo daquele que cria a narrativa descritivo-
analítica, e interpretativa de sua experiência social.

Isto significa que o conflito constitutivo e inerente ao campo de produção de


conhecimento nas ciências sociais, naquilo em que consiste sua produção e
circulação de ideias, tende a buscar, e encontrar, talvez cada vez mais, como
que através de uma constante arqueologia conceitual de suas bases laborativas
ou elaborativas, descrições e análises: a coexistência de dissonantes e
polifônicas vozes, metodologias e objetos, conforme analisam, (Brito, Hamlin e
Weiss, 2022, p. 29).

A crítica aos pressupostos de colonialidade, modernidade e racionalidade


que, por sua vez, praticam a separação entre o orí16 e a corporeidade, desperta,
afrontosamente, a necessidade de compreensão entre as distintas perspectivas,
que, por sua vez, reúnem mutuais, ambíguas e dissidentes leituras de si, e do
mundo17, acerca da origem, destino, e pertencimento identitário.

O dispositivo de racialidade, (CANEIRO, 2005) varia a depender das


trajetórias e experiências dos sujeitos e seus corpos, inscritos em cada campo,
e da luta antirracista engendrada com seus pares, o que é observado a partir dos
trechos etnográficos produzidos a partir da pesquisa desenvolvida a partir do
estudo sobre as trajetórias das Iyálorixás, importantes protagonistas da luta
antirracista no Brasil contemporâneo.

16
Em yorubá a palavra ori significa cabeça, mente, consciência, parte norteadora e constitutiva do espírito.
1717
‘Leituras de si e Leituras do Mundo’ foi uma metodologia desenvolvida no chão-do-terreiro durante as
oficinas onde as crianças e adolescentes eram incentivadas a desenvolver textos autobiográficos no esforço
de que reconhecessem suas histórias de vida, afetos e meio-ambiente.

14
O marcador racial, ou dispositivo de racialidade, (CARNEIRO, 2005), que
somatiza e nos solicita novos modos de entendimento, encontramos a
possibilidade de compreensão acerca da diversalidade inerente à formação de
sociedades compostas por diferentes experiências e suas respectivas categorias
do entendimento, (MAUSS, 2003), atravessando e inscrevendo-se, apesar do
paradigma colonial, (QUIJANO, 2005).

Esta inscrição do corpo na teoria18 tem possibilitado a reflexão de que o


conhecimento produzido no Brasil acerca da experiência colonial traduz e reflete
em si mesmo relações e disputas de poder articulando aspectos de gênero,
classe e raça, na mesma proporção. Respondendo de maneira dialógica a este
pano de fundo – o paradigma da colonialidade – estas disputas ocorrem nas
diversas esferas e campos da vida societária contemporânea.

A LUTA ANTIRRACISTA E O PAPEL DAS IYALORIXÁS: DUAS


DÉCADAS DE PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL

Segundo Florentina Souza (2006), através de pesquisa sobre o surgimento e


constituição de uma literatura afro-brasileira ou, em suas palavras, uma literatura
negra no Brasil, é possível identificar elementos contidos em discursos
publicados nos Cadernos Negros do Jornal do MNU, o conceito de identidade
cultural afro-brasileira. Para autora, temas como: identidade, tradição cultural,
racismo, discriminação racial, diáspora africana, movimentos negros,
desigualdades sociais, desemprego e marginalidade eram abordados em
formato de contos, artigos e entrevistas. Assim, a importância de sua análise
consiste na eficácia interpretativa presente no trabalho de reinterpretar as

18
Por inscrição do corpo na teoria sociológica refiro-me, neste momento, aos trabalhos de perspectiva
anticolonial que consideram este lugar de fala (Ribeiro, 2017) enquanto ponto de partida, praticado,
reflexivamente por quem elabora o trabalho sociológico. Mais do que uma alteridade mínima, observa-se
a tendência de produções que versam a partir de si, de modo que na crítica anticolonial os aspectos à
memória, trajetória, território, dentre outros elementos de compreensão do fenômeno afrodiaspórico, e
demais dimensões identitárias a partir do corpo, e que podem ser percebidos enquanto repositório de seus
efeitos.

15
versões publicadas pelos periódicos e sua consonância com outras versões que
circulam no campo das ideias contemporâneas.

19

“Os textos dos CN evidenciam a compreensão de que um dos


passos significativos para a implementação de novas políticas de
inserção do negro na sociedade brasileira é constituído pela
elaboração e divulgação de imagens e discursos, por isto, seus autores
empreendem um grande esforço para remapear e reconfigurar o
imaginário construído. Entendem que discurso, imagem e poder estão
interligados de modo que a intervenção direta dos afro-brasileiros nos
discursos e nas várias instâncias de prestígio e poder é indispensável
para que as mudanças ultrapassem o plano do desenho das imagens
e organizem “políticas culturais da diferença” que, além de resgatarem
a autoestima, promovam condições políticas e sociais de respeito à
diversidade cultural e igualdade de direitos”. (SILVA SOUZA, 2006, p.
127).

Há vinte anos, vinculada ao Ministério de Direitos Humanos, inaugura-se no


Brasil a Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial –
SNPIR. Construída a muitas mãos por diversas frentes, mas, protagonizada pelo
trabalho intensivo do Movimento Negro, surge, pela primeira vez, um segmento
institucional para tratar das questões relacionadas ao reconhecimento das

19
Participação de Mãe Lúcia na Plenária Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana,
etapa preparatória da III CONAPIR, que aconteceu em Brasília, entre os dias 04 e 05 de julho de 2013, teve
como objetivo aprofundar o processo de discussão sobre temas cujas pautas e demandas são estratégicas
para o enfrentamento ao racismo e para a efetivação de um Brasil Afirmativo. SEPPIR - Brasília/DF. Fonte:
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.336922479772467&type=3

16
desigualdades geradas pelo regime de escravização de pessoas negras no país,
o que podemos situar analiticamente pelo que Sueli Carneiro (2005)20 denomina
por dispositivo de racialidade.

Negras Epistemologias

A constituição de um campo de conhecimento funda-se a partir da produção


de entendimentos comuns e através de conceitos compartilhados, sua
discussão, e, sobretudo, por releituras e tentativas de atualização destas
categorias de análise diante de sua funcionalidade, adequação e aplicabilidade
diante de fenômenos que, em nosso ofício, são sociais.

Observamos, a partir daquilo que trata os segmentos das ciências sociais, e


na forma como ocorrem novos movimentos intelectuais, que os insights e
escolas de pensamento no fluxo da produção intelectual contemporânea, assim
como se determinou a Escola de Frankfurt no pós-guerra; ou na década de 1970
em que se iniciaram os esforços para a produção de uma sociologia de síntese;
na crítica pós-colonial; ou com o giro decolonial e seus pressupostos mais ao Sul
incorporando a relevância da produção afro-caribenha de Césaire e Fanon, se
determinam, em grande medida e de maneira mais definitiva, em contextos que
se determinam, sobretudo, em sua dimensão cultural política.

Assim, no que condiz à nossa discussão, no Brasil, as contribuições teóricas


encontram-se embricadas de tal modo com o ativismo político antirracista que,
no campo da produção de conhecimento, caso fizéssemos brevemente uma
retrospectiva acerca das produções elaboradas por intelectuais negras e negros
em sua pertinência para com os assuntos das ciências sociais, encontraríamos
em cada trajetória, a exemplo de Guerreiro Ramos, Lélia de Almeida, Luiza
Bairros e Beatriz Nascimento, um possibilidade de compreensão sobre um
segmento desta epistemologia composta por muitas vertentes.

20
Sueli Carneiro é uma ativista e intelectual negra brasileira fundadora e atual diretora do Geledés —
Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil. Nascida
em São Paulo em 1950, filósofa e escritora, desenvolveu em seu trabalho intitulado: ‘A fundação do Outro
como Não-Ser como fundamento do Ser’ sua tese de doutorado em Filosofia da Educação na FFLCH – USP
publicada em 2005. Neste trabalho, Carneiro usa os conceitos de Dispositivo e Biopoder de Michel Foucault
para analisar as relações raciais no Brasil.

17
Sobre este argumento encontramos nas palavras de (Maldonado-Torres,
2007, p. 162), que a transmodernidade é um convite a pensar modernidade e
colonialidade de forma crítica, desde suas posições e de acordo com as múltiplas
experiências de sujeitos que sofrem de distintas formas a colonialidade do poder,
do saber e do ser. A transmodernidade envolve, pois, una ética dialógica radical
e um cosmopolitismo de-colonial crítico.

“A RODA DO MUNDO É GRANDE, MAS A DE OXALÁ É MAIOR”

Diante disto, a menção ao trabalho de Leda Maria Martins (1997) se torna


necessária por sua importância precursora na criação dos conceitos de
encruzilhada e tempo-espiralar, identificados a partir de pesquisa etnográfica
sobre manifestações rituais com comunidades negras do ‘Rosário do Jatobá’,
estado de Minas Gerais.

O trabalho de Luiz Rufino (2019) também nos fornece o descentramento


necessário para compreender maneiras de compartilhar os saberes fornecidos
através das pedagogias das encruzilhadas, posicionando no centro da questão
o reconhecimento dos saberes e epistemes produzidas e compartilhadas por
comunidades negras e tradicionais do Brasil e sua contribuição em processos
democráticos mais amplos, como as políticas públicas para a educação.

Assim, a etnografia praticada nesta Comunidade Tradicional, específico, o


desenvolvimento da prática pedagógica afrocentrada é permeada por
atravessamentos e memórias que constituem minha experiência enquanto
pessoa negra sujeita a todas as violências geradas pelo racismo estrutural,
constitutivo da imposição de modernidade | colonialidade, mas, que também tem
é alimentada, pelo repertório simbólico constitutivos dos Terreiros de
Candomblé: o entendimento de que Exu enquanto princípio gerador, inverte a
ordem daquilo que não é possibilitando aquilo que é (Rufino, 2019).

A partir do projeto ‘Vamos Quilombar na Educação’ foi possível observar


lacunas na implementação da legislação que torna obrigatório o ensino dos
conteúdos de história e cultura afrobrasileira e africana. Auxiliando o Estado
18
através do projeto pedagógico para o contraturno escolar, as atividades
realizadas no chão do terreiro durante o terceiro ano da Pandemia de Covid-19
para crianças de baixa renda em condição de vulnerabilidade social, negras, em
sua maioria, com idade de seis a dezessete anos – demonstrou limites e
possibilidades entre ator e estrutura naquilo que condiz ao racismo estrutural,
epistêmico, e fundador das ciências sociais do Brasil.

Apesar da necropolítica, (MBEMBE, 2018), perpetrada pelo desenvolvimento


dos pressupostos modernos de colonialidade e racionalidade, observamos o
aumento do percentual de pessoas autodeclaradas negras no Brasil, o que faz
com que o país abriga o reúna o segundo maior contingente populacional negro
do mundo, fora do continente africano. Este dado abriga em si vetores de
mudança social, principalmente se observamos a partir da luta antirracista o
resgate de uma forma de estar no mundo, que apesar da violência promovida
pelo sistema-mundo capitalista moderno, se impõe, simbólico, cultural e
democraticamente.

Pela perspectiva crítica decolonial, o principal argumento deste estudo é que


parte substancial da luta antirracista do movimento negro e suas principais ações
enquanto sociedade civil tem sido liderada por mulheres negras no país,
incluindo a relação com os terreiros de matriz africana através da incorporação
de um repertório cultural, simbólico e epistêmico de resistência decolonial,
emancipação e inovação democrática.

Considerações Finais

A partir do que foi trabalhado neste texto, é importante melhor realçar certos
pontos sobre o caminho da pesquisa. Minha frequência em Terreiros de Matriz
Africana na cidade de João Pessoa é tão antiga quanto minha formação
acadêmica.

O trabalho desenvolvido na CCIAO foi pontal durante o ano de 202. Este Ilê,
também está localizado no bairro Planalto da Boa Esperança, assim como o
terreiro do qual sou filha há nove anos: o Ilê Asé Opô Omidewá (Instituto
Omidewá), liderado por Mãe Lúcia de Oxum. O terreiro do qual faço parte

19
recebeu as bênçãos de Mãe Stella de Oxóssi, quando há quarenta anos plantou
a semente do Opô Afonjá em João Pessoa.

Deste modo, e conforme já foi dito, o insight inicial, para a investigação da


pesquisa, bem como, para o desenvolvimento das reflexões aqui abordadas, se
deu a partir das metodologias e pedagogias utilizadas no chão-do-terreiro, junto
com as crianças negras da região do Valentina, segundo bairro mais populoso
da cidade. Por esta via, foram previamente acionados os saberes acumulados
durante décadas de inserção junto a estas comunidades, bem como, fragmentos
de memórias, falas, dentre outros materiais e dados ainda em fase de
sistematização. Todos os relatos e informações coletadas através de
observação participante, entrevistas e registros de história oral são dialogados
com as matriarcas, com as quais estabeleço constante interlocução.

Algumas informações a exemplo de fotografias e dados sobre a participação


das Iyálorixás em Congressos Nacionais pela Promoção da Igualdade Racial
puderam ser coletadas de maneira pública por estarem em plataformas da rede
mundial de computadores, a exemplo das páginas na plataforma Facebook de
ambas as Casas.

Na contracorrente do que promove o imaginário racista da intolerância


religiosa inerente às imagens de controle, (COLLINS, 2019) enquanto braço da
modernidade, colonialidade, este trabalho busca descontruir elementos de
racismo religioso associados às Mães de Santo, às comunidades de terreiro, e
às pessoas de axé. Este véu de ignorância, implementado durante séculos de
dominação e violências eurocêntricas, ainda se fazem presentes atualmente,
nos impedindo de enxergar tais atores sociais na mutualidade de suas práticas
e ações no tecido societário.

Por fim, é importante enfatizar que o objetivo deste estudo busca identificar, a
partir da construção dos caminhos para uma educação antirracista no Brasil
contemporâneo, uma série de fatos sociais e ações coletivas protagonizadas
pelas mulheres do axé, um poderoso movimento popular, tradicional, acadêmico
e político de afrontamento às lógicas coloniais.

20
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