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NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
Hermana D’Ògún1.
Mãe Stella quando criança na Escola Prof. Anfrisia Santiago. Observa-se na fotografia que a mulher que
se tornaria Iyalorixá era a única criança negra de sua turma. Fonte: Memorial Mãe Stella de Oxóssi.
1
Hermana Cecília Oliveira Ferreira. Doutoranda em Sociologia (PPGS/UFPB).
E-mail: hermanacof@gmail.com .
A LEI 10.639 E OS CAMINHOS DE UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO
RESUMO
formal brasileira.
PALAVRAS-CHAVE
1
LARÓYÈ!
Deste modo, o objeto escolhido se perfaz junto com minha trajetória de vida,
condição de gênero, socioeconômica, e racial, bem como, pela possibilidade, a
partir do meu lugar de fala1 (RIBEIRO, 2017), de escrever sobre trajetórias de
vida e ações políticas de lideranças comunitárias que a mim e a tantos circundam
e cuidam – as mulheres negras.
ÒGÚN YÈ!
O PANO DE CABEÇA VERSUS O VÉU DA COLONIALIDADE
1
Segundo Djamila Ribeiro (2017) o conceito ‘lugar de fala’ se ancora no movimento ‘feminist stand point’,
um feminismo que articula teoria racial crítica e pensamento decolonial ao recuperar as conquistas do
feminismo do ponto de vista discursivo de corpos subalternizados que reivindicam sua existência tendo
como destaque, as mulheres negras.
2
Para Ratts e Rios (2010, p. 77) o movimento negro contemporâneo
pressupunha negros em movimento, de modo que, segundo os autores, além de
atuar diretamente na formação, consolidação e difusão do movimento negro, que
reapareceu no Brasil no final dos anos 70, em pleno regime militar, Lélia
Gonzalez analisou e interpretou sua formação. Em seus textos, ela se refere a
esse período de ditadura como os tempos de “silenciamento a ferro e fogo, dos
setores populares e de sua representação política”. (GONZALEZ, 1982, p. 11).
2
https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/02/lei-de-cotas-tem-ano-decisivo-no-
congresso
3
https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/07/cresce-proporcao-de-pretos-e-pardos-na-populacao-
brasileira.shtml
3
conhecimento. Segundo o autor, e atual Ministro dos Direitos Humanos e da
Cidadania do Brasil, o racismo institucional se pratica pelo fato de que as
instituições: enquanto o somatório de normas, padrões e técnicas de controle,
condicionam o comportamento dos indivíduos, resultam em conflitos e lutas pelo
monopólio do poder social; enquanto parte da sociedade, as instituições também
carregam em si os conflitos existentes na sociedade. Em outras palavras, as
instituições também são atravessadas internamente por lutas entre indivíduos e
grupos.
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“Umbanda: Missão do Bem” de Marinalva Amélia da Silva é um livro lançado em 2012 que traz relatos
sobre a trajetória de vida e permanente luta pelo reconhecimento da cultura e das religiões de matriz
africana na Paraíba. A partir do exercício mnemônico de umas das primeiras mães-de-santo na cidade de
João Pessoa, Mãe Marinalva, a liderança do Terreiro Ogum Beiramar, traz relatos e fragmentos
historiográficos a partir da década de 1960 sobre processos de negociação e conformação do campo das
religiões de matriz africana neste território.
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Em yourubá: cabeça, mente, espírito.
6
https://www.camara.leg.br/noticias/832964-mulheres-negras-sao-maioria-das-vitimas-de-feminicidio-e-
as-que-mais-sofrem-com-desigualdade-social/
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filhos. Estas lideranças são aquelas que influenciam, sobretudo, outras esferas
sociais.
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Gilroy (2001) ao analisar os elementos culturais e simbólicos pan-africanistas
compartilhados através atlântico negro; mas, sobretudo, por fornecer um novo
olhar acerca dos caminhos interpretativos anticoloniais, complexos e por este
motivo, constitutivos, da abordagem analítica necessária acerca das práticas
rituais, educacionais, ecumênicas, políticas e performativas, afrodiaspóricas.
7
Forma de encantamento que ocorre através do ato de proferir palavras, no entendimento do
Candomblé Ketu.
6
uma demanda ímpar de conhecimentos sobre a contribuição das culturas
africanas para a constituição da identidade e da cultura brasileiras.
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“Vamos Quilombar na Educação” foi um projeto por mim coordenado e financiado pela Prefeitura
Municipal de João Pessoa através do CMDCA (Conselho Municipal Direitos da Criança e do Adolescente)
que promoveu na CCIAO, durante o contraturno escolar, o ensino da História e Cultura Afrobrasileira e
Africanas em consonância com as Leis 10.639 e 11.645 para crianças da educação básica estudantes de
escolas públicas.
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Formada por 40 crianças beneficiárias, que normalmente chamávamos carinhosamente por: meninos, o
Vamos Quilombar se complementava às outras ações desenvolvidas pela Casa, a exemplo do Serviço de
Convivência promovido junto às famílias das crianças, através de incentivos do CMDCA (Conselho Municipal
da Criança de do Adolescente). O Próprio projeto foi financiado pelo CMDCA, que disponibilizou os recursos
para pagamento dos agentes educativos envolvidos e material de utilização.
7
Minha chegada à Casa de Cultura ocorreu em março de 2022 quando fui
recebida e contratada para coordenar o Projeto que visava desenvolver
atividades didáticas implementando os conteúdos previstos pela lei 10.639 de
2003, para crianças e adolescentes do bairro, no contraturno escolar.
A indicação havia sido feita por um colega ativista dos direitos humanos de
quilombolas no estado, de modo que, e em João Pessoa, seja bastante comum
que uma pessoa tenha, em algum momento, comentado sobre uma outra, que
conhece uma outra, e no fim, todo mundo se conhece, principalmente quando
tratamos de espaços direcionados às resoluções de questões relacionadas a
desigualdade social, luta antirracista, ou seja, as Comunidades Tradicionais de
Terreiro.
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Pai Renato, além de diretor, é o esposo de Mãe Tuca, e desempenha a função de ogã do Ilê, cargo
geralmente destinado às pessoas do sexo masculino em terreiros de matriz africana.
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Pessoa de axé é um termo adjetivo utilizado entre candomblecistas e demais praticantes de religiões de
matriz africana. Axé: a energia vital, é principal objetivo e de busca pelo aprimoramento ético com base
nos valores civilizatórios afro-brasileiros tendo enquanto base a cosmologia e cultura yorubá.
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ou seja, recebem enquanto nome a referência ao Orixá de cabeça da Iyalorixá
ou Babalorixá que funda ou abre a casa. Ali encontramos o funcionamento da
Casa, que além de Ilê, também era nosso lugar de encontro e trabalho.
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A ‘Ialorixá e o Pajé’, livro de Mãe Stella com ilustrações lançado em 2018. ‘A Ialorixá e o Pajé’ é um relato
verdadeiro sobre lembranças de Mãe Stella de Oxóssi quando era jovem e enfermeira. Na história, um
encontro de Mãe Stella com um Pajé, trocas de conhecimentos sobre plantas, ervas medicinais, raízes,
sementes, folhas e rituais entre uma pessoa nascida na cultura afro-brasileira e com a cultura indígena.
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Aprender, educacar é um radical comunitário. A comunidade para
muitos dos habitantes desse tempo é também mais que humana, é um
radical vivente”.
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https://kn.org.br/oq/2013/01/31/incra-publica-relatorio-de-identificacao-da-comunidade-quilombola-
de-paratibe-em-joao-pessoa/
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seleção dos conteúdos trabalhados para a produção final de um Podcast,
incluímos biografias das personalidades de destaque e dos heróis
afrobrasileiros, a exemplo de Dandara, Zumbi dos Palmares, Tereza de
Benguela, Luísa Mahim, Luís Gama, dentre outros.
A relação com Mãe Tuca, por sua vez, merece ser enfatizada, pelo fato de
que, além de uma líder comunitária, esta sexagenária nascida na cidade de João
Pessoa, e que sempre se utiliza da frase de que “Um rio que esquece sua
nascente seca” – partindo do princípio Sankofa da filosofia ubuntu de que
necessitamos olhar para o passado, para que assim possamos construir um
futuro, era atravessada por muitos sentidos. Além de uma liderança religiosa,
sua influência determinava as ações organizativas e os princípios ideológicos
que guiam as ações de todas as pessoas envolvidas.
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Durante os encontros com a Iyalorixá, à qual sempre cumprimento solicitando sua benção,
principalmente por este ser um dos modos através dos quais a comunidade composta por pessoas de axé
inicia suas interações, e seguindo a hierarquia das Casas de Axé tradicionais de matriz africana, era comum
dela ouvir cotidianos relatos de situações vexatórias onde, segundo a mesma, as pessoas depreciavam o
espaço pela associação negativa promovida pelo cristianismo durante séculos no Brasil através dos
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impediam o acesso das crianças às atividades, por exemplo, preferindo manter
muitas delas em casa, as oficinas foram bastante frutíferas.
elementos mais proeminentes da intolerância religiosa praticada no Brasil atualmente, qual seja: a
associação do Orixá Exu ao à figura judaico-cristã do diabo, o que não existe na liturgia yorubá.
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tranquilos. Em minha experiência acadêmica, repleta de situações racistas,
continuo a atravessar um oceano que invisibiliza as contribuições das pessoas
racializadas no Brasil. Assim, acreditar na ciência, apesar da experiência
colonial, é também um voto político e de fé, na construção de ferramentas
interpretativas e analíticas sobre o social, a partir de uma forma específica de ser
um corpo no mundo.
Corpo Saber
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https://www.gov.br/igualdaderacial/pt-br/composicao/secretaria-de-politicas-para-quilombolas-povos-
e-comunidades-tradicionais-de-matriz-africana-e-ciganos
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Tão logo, a emergência de um pensamento elaborado a partir do Sul-global
– o que inclui as contribuições do Atlântico Negro, da Améfrica Ladina; dos
quilombos; das comunidades tradicionais e terreiros; das epistemologias
oriundas do feminismo negro; e do pensamento negro radical afro-americano,
demonstram algo novo ao exercício sociológico, qual seja: a capacidade de
inscrever a produção de conhecimento ao corpo racializado, sua relação com o
território, fazendo jus à trajetória de quem o produz. Este argumento, portanto,
se baseia na seguinte ideia: a produção do conhecimento perpassa a
materialidade e espiritualidade do corpo daquele que cria a narrativa descritivo-
analítica, e interpretativa de sua experiência social.
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Em yorubá a palavra ori significa cabeça, mente, consciência, parte norteadora e constitutiva do espírito.
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‘Leituras de si e Leituras do Mundo’ foi uma metodologia desenvolvida no chão-do-terreiro durante as
oficinas onde as crianças e adolescentes eram incentivadas a desenvolver textos autobiográficos no esforço
de que reconhecessem suas histórias de vida, afetos e meio-ambiente.
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O marcador racial, ou dispositivo de racialidade, (CARNEIRO, 2005), que
somatiza e nos solicita novos modos de entendimento, encontramos a
possibilidade de compreensão acerca da diversalidade inerente à formação de
sociedades compostas por diferentes experiências e suas respectivas categorias
do entendimento, (MAUSS, 2003), atravessando e inscrevendo-se, apesar do
paradigma colonial, (QUIJANO, 2005).
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Por inscrição do corpo na teoria sociológica refiro-me, neste momento, aos trabalhos de perspectiva
anticolonial que consideram este lugar de fala (Ribeiro, 2017) enquanto ponto de partida, praticado,
reflexivamente por quem elabora o trabalho sociológico. Mais do que uma alteridade mínima, observa-se
a tendência de produções que versam a partir de si, de modo que na crítica anticolonial os aspectos à
memória, trajetória, território, dentre outros elementos de compreensão do fenômeno afrodiaspórico, e
demais dimensões identitárias a partir do corpo, e que podem ser percebidos enquanto repositório de seus
efeitos.
15
versões publicadas pelos periódicos e sua consonância com outras versões que
circulam no campo das ideias contemporâneas.
19
19
Participação de Mãe Lúcia na Plenária Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana,
etapa preparatória da III CONAPIR, que aconteceu em Brasília, entre os dias 04 e 05 de julho de 2013, teve
como objetivo aprofundar o processo de discussão sobre temas cujas pautas e demandas são estratégicas
para o enfrentamento ao racismo e para a efetivação de um Brasil Afirmativo. SEPPIR - Brasília/DF. Fonte:
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.336922479772467&type=3
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desigualdades geradas pelo regime de escravização de pessoas negras no país,
o que podemos situar analiticamente pelo que Sueli Carneiro (2005)20 denomina
por dispositivo de racialidade.
Negras Epistemologias
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Sueli Carneiro é uma ativista e intelectual negra brasileira fundadora e atual diretora do Geledés —
Instituto da Mulher Negra e considerada uma das principais autoras do feminismo negro no Brasil. Nascida
em São Paulo em 1950, filósofa e escritora, desenvolveu em seu trabalho intitulado: ‘A fundação do Outro
como Não-Ser como fundamento do Ser’ sua tese de doutorado em Filosofia da Educação na FFLCH – USP
publicada em 2005. Neste trabalho, Carneiro usa os conceitos de Dispositivo e Biopoder de Michel Foucault
para analisar as relações raciais no Brasil.
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Sobre este argumento encontramos nas palavras de (Maldonado-Torres,
2007, p. 162), que a transmodernidade é um convite a pensar modernidade e
colonialidade de forma crítica, desde suas posições e de acordo com as múltiplas
experiências de sujeitos que sofrem de distintas formas a colonialidade do poder,
do saber e do ser. A transmodernidade envolve, pois, una ética dialógica radical
e um cosmopolitismo de-colonial crítico.
Considerações Finais
A partir do que foi trabalhado neste texto, é importante melhor realçar certos
pontos sobre o caminho da pesquisa. Minha frequência em Terreiros de Matriz
Africana na cidade de João Pessoa é tão antiga quanto minha formação
acadêmica.
O trabalho desenvolvido na CCIAO foi pontal durante o ano de 202. Este Ilê,
também está localizado no bairro Planalto da Boa Esperança, assim como o
terreiro do qual sou filha há nove anos: o Ilê Asé Opô Omidewá (Instituto
Omidewá), liderado por Mãe Lúcia de Oxum. O terreiro do qual faço parte
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recebeu as bênçãos de Mãe Stella de Oxóssi, quando há quarenta anos plantou
a semente do Opô Afonjá em João Pessoa.
Por fim, é importante enfatizar que o objetivo deste estudo busca identificar, a
partir da construção dos caminhos para uma educação antirracista no Brasil
contemporâneo, uma série de fatos sociais e ações coletivas protagonizadas
pelas mulheres do axé, um poderoso movimento popular, tradicional, acadêmico
e político de afrontamento às lógicas coloniais.
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REFERÊNCIAS
SILVA, Lucas Trindade da. Colonialidade como fato social total: a teoria social
de Aníbal
Quijano. Revista TOMO, São Cristóvão, v. 42, e16876, 2023 DOI:
10.21669/tomo.v42i. Data de Publicação: 10/01/2020 Dossiê: Teorias Críticas
Decoloniais.
SILVA, Marinalva Amélia da. “Umbanda: Missão do Bem”. 2013, João Pessoa,
Editora: Ideia.
SOUSA, Neusa Santos. Tornar-se negro e as vicissitudes da identidade do negro
brasileiro em ascenção social. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1983. (Coleção
Tendências).