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Universidade de São Paulo

Programa de Pós Graduação em Educação - Faculdade de Educação

Filosofia e cosmovisão africana por meio do Mancala Awelé:


uma epistemologia afrocêntrica e pluriversal

Robson Gonçalves da Silva

Área de concentração: cultura, filosofia e história da educação

INTRODUÇÃO

Nasci em uma família negra brasileira na cidade de São Caetano do Sul, no


estado de São Paulo. Sou filho de pai migrante baiano e mãe nascida no interior
paulista. Eu e meus irmão nascemos em São Caetano do Sul, cidade que
historicamente se tornou um polo de oportunidades de trabalho e moradias próximas
à cidade de São Paulo, mas ao mesmo tempo ela se transformou em uma cidade
higienista, que valoriza apenas a história e cultura dos imigrantes europeus,
marginalizando e apagando as culturas dos povos negros africanos e indígenas locais
que constituíram e construíram a história e as estruturas da cidade. Este fato é muito
bem desvelado e discutido na obra de José de Souza Martins: A escravidão em São
Caetano (1598 – 1871). Martins (1988) nos mostra que a cidade de São Caetano do
Sul foi habitada por indígenas e negros escravizados nas fazendas da igreja católica
da região onde, através da mão de obra principalmente negra, a região foi crescendo
e se tornando referência principalmente na produção de cerâmica. Com o decorrer
dos anos o território foi se tornando cada vez menos negro e indígena, sendo ocupado
majoritariamente por pessoas brancas. Em todos espaços em que circulei pela cidade,
este contraste é visível, onde me situo como uma minoria e as vezes com um
sentimento de ser um estranho no local.
Foi em São Caetano do Sul que concluí todas as fases da minha educação.
Cursei a educação básica nas escolas municipais, estaduais e passei por duas
escolas particulares da cidade, onde fui bolsista por ser atleta. Concluí o ensino
superior na Universidade de São Caetano do Sul (USCS), onde fui bolsista do CNPQ
por ser integrante do observatório de políticas sociais de esportes e lazer do Grande
ABC (SP), me tornando licenciado e bacharel em Educação Física em 2008 e 2009,
2

respectivamente. Dentro do município iniciei minha trajetória profissional em


empresas, clubes, academias e como autônomo. A partir do ano de 2017 ingressei
como professor de ensino fundamental II e médio na prefeitura de São Paulo, onde
por meio de algumas formações me tornei também formador do jogo de tabuleiro
Mancala Awelé. Tive como principal objetivo de ensino transmitir a história e cultura
africana e afro-brasileira para os estudantes. Após o contato com o jogo Mancala
Awelé pude utilizá-lo como ferramenta para a introdução e conhecimento de alguns
aspectos culturais e da cosmovisão africana aos estudantes, além da possiblidade de
discutir sobre o racismo estrutural, institucional e epistemológico dentro do nosso país.
Hoje sou coordenador pedagógico no CEU EMEF Campos Salles, localizado no bairro
do Heliópolis, bairro vizinho à São Caetano do Sul e por 35 anos território de trabalho
da minha mãe.
Trago todas estas informações junto com a minha trajetória profissional e
acadêmica, pois elas se relacionam com meu objeto de pesquisa que é a possibilidade
de ensino da filosofia e cosmovisão africana na educação através do jogo de tabuleiro
Mancala Awelé. A minha trajetória de vida foi atravessada por silenciamentos,
opressões e supressões de debates extremamente necessários para a constituição
de minha identidade enquanto pessoa negra, além dela ter sido demarcada pela falta
de acesso a conhecimentos históricos, filosóficos e culturais que não fossem os
transmitidos por pesquisadores e cânones da filosofia, cultura e literatura ocidental.
Porém eu só fui ter o entendimento do quanto isto era uma forma de violência ou
crime, a partir do momento em que tive contato com professores e professoras negras
do município de São Paulo que me deram a formação do jogo Mancala Awelé,
transmitindo alguns conhecimentos sobre a cultura de povos africanos. Nisto pude me
reconhecer como um descendente destes povos e perceber o quanto aquelas culturas
estavam ainda presentes no meu dia-a-dia, porém eram encobertas ou inferiorizadas
frente a uma epistemologia eurocêntrica.
Existe toda uma filosofia e cosmovisão que permeiam o jogo e isto não pode ser
deixado de lado ao utilizá-lo como uma ferramenta educacional. Isto transformou meu
olhar e ações, não só na prática pedagógica, mas também no meu cotidiano social.
Percebi a necessidade, não só minha, mas de toda a sociedade, de ter acesso aos
ensinamentos africanos e poder compartilhá-los dentro e fora da educação, pois são
valores civilizatórios de um povo, diferente daquele que é hegemônico em nossa
3

sociedade e que reproduz desigualdades, discriminações e não contempla a


pluriversalidade do mundo.
Desde 2003, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LBDN) foi
alterata no seu artigo 26 com a promulgação da lei nº 10.639/03 e posteriormente pela
lei nº 11.645/2008. As respectivas leis obrigam o ensino de história e cultura africana
e afro brasileira e dos povos indígenas na educação básica. A LDB determina que o
conteúdo programático:

[...]incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a


formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais
como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos
povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o
índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições
nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
(BRASIL, 1996).

Em minha trajetória profissional me deparei com poucas práticas que


cumprissem as referidas leis e em nenhuma instituição escolar em que passei elas
foram cumpridas em todo currículo escolar. Os poucos trabalhos em que presenciei,
boa parte deles aconteciam em algumas datas específicas e muitas vezes abordavam
a história africana apenas sobre a perspectiva da escravidão ou da imagem de miséria
pós-colonização do continente africano, sem contemplar os conhecimentos africanos,
a história pré-colonial, as cosmovisões ou até mesmo sem relacionar todos estes
saberes e cultura africana ao Brasil.
A pesquisa “As práticas pedagógicas de trabalho com relações étnico-raciais na
escola na perspectiva da Lei 10.369/03”, coordenada pela professora Nilma Lino
Gomes, aponta que dentro de algumas escolas existem projetos significativos
desenvolvidos por alguns profissionais sobre a temática étnico-racial e ao mesmo
tempo existem profissionais que desconhecem a lei 10.639/03 ou mantem um
conhecimento superficial dela entendendo-a como uma imposição do Estado ou “lei
dos negros”. Outro aspecto encontrado foi que o conhecimento dos docentes sobre
as relações étnico-raciais e sobre a História da África são superficiais e
estereotipados, fornecendo aos estudantes pouco conhecimento sobre África e sua
inter-relação com as questões afro-brasileiras (GOMES; JESUS, 2013). Isto mostra
que os saberes africanos pouco são abordados dentro da educação. Quando são
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abordados acontece de forma voluntária, individual por alguns profissionais da


educação e algumas vezes de forma superficial sem um aprofundamento da filosofia,
cultura e história que envolve os povos africanos.
Considerando todas as problemáticas encontradas nas práticas pedagógicas ao
abordar a história e cultura africana, na aplicabilidade das leis 10.639/03 e 11.645/08,
por conseguinte, na LDB, na falta de pesquisas sobre a filosofia e cosmovisão africana
dentro da educação, na possibilidade de utilização de um elemento que faz parte da
cultura africana, que é o jogo Mancala Awelé, como uma ferramenta pedagógica
potente e carregada de aspectos filosóficos, históricos e da cosmovisão africana,
entendo como necessária uma pesquisa que desvele a possibilidade de compartilhar
a filosofia, história e cultura africana a partir de uma epistemologia pluriversal e
afrocêntrica. Molefi Kete Asante define afrocentricidade a conscientização e o
entendimento da história, cultura, literatura, linguística e política a partir de teóricos
africanos ou afro-diaspóricos disposto a agir em prol da liberdade humana e capazes
de fazer isto de forma independente, de acordo com seus interesses (ASANTE, 2009).

OBJETO DE ESTUDO

Esta pesquisa tem como objeto de estudo a possiblidade de aprender e ensinar,


a partir de uma epistemologia afrocêntrica, a filosofia e cosmovisão africana através
do jogo Mancala Awelé
Ela reconhece a existência e importância da filosofia e cosmovisão africana e
que estão presentes em nosso país como bases culturais, linguísticas, históricas e
filosóficas, sendo necessário desvelá-las e apresentá-las de forma pedagógica e
afrocentrada dentro dos ambientes educacionais do país. Para isto, sugiro a utilização
do jogo de tabuleiro Mancala Awelé, que faz parte de uma família de jogos de tabuleiro
de origem africana e por ter esta origem carrega elementos da filosofia e cosmovisão
dos povos que o criaram.

JUSTIFICATIVA

Mancala é uma família de jogos de tabuleiro de origem africana, “esse termo


passou a ser usado pelos antropólogos para designar uma série de jogos disputados
num tabuleiro com várias concavidades e com o mesmo princípio geral na distribuição
5

das peças.” (BRANDÃO, 2006, p. 69). No Mancala esta distribuição simula a


semeadura e a colheita. Este jogo é conhecido por diferentes nomes, de acordo com
a região, e é jogado de diferentes formas entre os povos africanos e não-africanos. O
jogo contribui para o raciocínio lógico, fomenta operações lógicas, testa hipóteses,
exercita a concentração e constrói identidades, contribuindo com o conteúdo da
matemática inferindo na “geometria; sequência; equação e inequação; sistema de
numeração decimal; estratégia; valor posicional; localização e espacialidade”
(SANTOS e FRANÇA, 2017, p. 97). Agbinya (2004) em sua pesquisa, relata que
apenas na vida adulta que passou a perceber que os anciãos que jogavam em sua
aldeia contavam na base 5 a cada jogada que faziam. Utilizavam esta e outras
operações matemáticas, estrategicamente, para obter vantagens no jogo.
O jogo tem sido utilizado como ferramenta pedagógica para o ensino de
matemática ou educação inclusiva no Brasil. Mas para além destas funcionalidades,
há aspectos filosóficos, históricos e culturais passíveis de pesquisa, descrição, análise
e apropriação para o espaço escolar, com o objetivo de contribuir para a educação
das relações raciais. Brandão (2006) escreve que o nome Mancala passou a ser
utilizado por antropólogos, não necessariamente sendo o nome original do jogo.
Agbinya (2004) faz uma dura crítica ao uso da palavra “mancala” para se referir aos
jogos de tabuleiros africanos. Para ele é uma infelicidade essa confusão que os não-
africanos fizeram, utilizando este nome genérico para referir-se aos jogos que existem
há séculos em diferentes grupos-étnicos africanos e com diferentes nomes e regras.
Ele nos traz que o nome “Mancala é na verdade uma corrupção da palavra Mankaleh
que significa o jogo da inteligência. É difícil encontrar o uso desse nome por grupos
étnicos africanos. Mankaleh é derivado de suaíli uma língua híbrida que tem uma
grande influência árabe” (AGBINYA, 2004. p.17). A crítica de Agbinya conflui com o
que Hampâté Bá escreve sobre a tradição oral africana e da importância de ouvir os
“tradicionalistas” africanos para conhecer a essência da história. De acordo com
Hampâté Bá “Uma história que se quer essencialmente africana deverá
necessariamente, portanto, apoiar‑se no testemunho insubstituível de africanos
qualificados. “Não se pode pentear uma pessoa quando ela está ausente”, diz o
adágio.” (HAMPÂTÉ BÁ, 2010. p. 175)
Pesquisadores encontraram fileiras de buracos em rochas de monumentos
egípcios, inclusive no Templo de Kuma e na pirâmide de Queóps. Culin (1896) já dizia,
há quase dois séculos atrás, que o Mancala “pode ser considerado, por assim dizer,
6

como O Jogo Nacional Africano”. (CULIN, 1896, p. 601). Em seus estudos e pesquisa,
Culin (1896) mostra diversos nomes e imagens de diferentes tipos de Mancala
existentes no continente africano, comprovando que, de fato, o Mancala é jogado por
todos os povos africanos, de norte a sul e leste a oeste do continente. O professor
Acácio Almeida através de suas pesquisas em África teve contato com diferentes
povos, saberes, jogos e mitologias africanas. No prefácio do livro Mancala Awelé da
coleção Jogos de Tabuleiro da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo
(SME/SP) ele escreve que “segundo o mito fundador Massai, o jogo foi inventado por
Sindillo, filho de Maitoumbe, o primeiro ser humano, e remonta os primórdios da
criação.” (SÃO PAULO, 2020. p.23). Este mito nos faz lembrar da origem do ser
humano, que como escreve Cheick Anta Diop,

Há mais de 150 mil anos, a única parte do mundo em que viviam seres
morfologicamente iguais aos homens de hoje era a regiâo dos Grandes
Lagos, nas nascentes do Nilo [...] Isso quer dizer que toda a raça humana
teve sua origem, exatamente como supunham os antigos, aos pes das
montanhas da Lua. Contra todas as expectativas e a despeito das hipóteses
recentes, foi desse lugar que o homem partiu para povoar o resto do mundo.
(DIOP, 2010. p. 1)

De África, mais precisamente do Egito, surgiu boa parte da medicina,


arquitetura, culinária, cultura, entre outras coisas que conhecemos hoje. Imhotep, que
viveu em África entre 2900 e 2280 a.c., foi considerado um Deus da medicina para os
europeus. Abu Bakr (2010) escreve sobre a história da África e a representação de
Imhotep na época, e até hoje.

A dinastia (II) foi fundada pelo rei Zoser, que, a julgar pelas evidências,
era um soberano vigoroso e capaz. Entretanto sua fama foi
consideravelmente obscurecida pela de seu celebre súdito Imhotep (I‑
em‑htp), arquiteto, médico, sacerdote, magico, escritor e autor de provérbios.
Vinte e três séculos após sua morte, tornou‑ se ele o deus da medicina, em
quem os gregos (que o chamavam de Imuthes) reconheciam Asclepio. Sua
realização mais notável como arquiteto foi a “pirâmide de degraus” e o vasto
complexo funerário construído para seu farão em Saqqara, numa área de 15
ha, na forma de um retângulo de 544 m por 277 m. A construção compreendia
um muro circular, semelhante a uma fortaleza, e Imhotep introduziu notável
inovação substituindo a pedra pelo tijolo. (ABU BAKR, 2010, p. 46)
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De acordo com Obenga (2004) Imhotep era considerado um filósofo também e


fez parte da construção da primeira tradição filosófica na história do mundo. Foi do
Vale do Nilo, que os povos africanos se desenvolveram e se espalharam por todo o
continente e ao se espalharem, levaram com eles seus conhecimentos, costumes e
crenças, para dentro e fora de África. Uma das comprovações de que foi a partir do
Egito que se iniciaram as outras civilizações africanas é que após análises linguísticas
de outros povos africanos, foram encontradas semelhanças com a antiga língua
egípcia.

[...] a língua egípcia como revelada nos escritos hieroglíficos, hieráticos e


demóticos, e em Copta, isto é, a antiga língua egípcia em seus últimos
desenvolvimentos, como está escrito na escrita grego-cóptica, e as modernas
línguas Africanas, faladas atualmente na África Negra, constituem a mesma
comunidade linguística dividida em várias partes. (OBENGA, 2004. p.2)

Diop, na obra “A origem africana da civilização” reproduz uma frase de


Heródoto comprovando que mesmo os pensadores do cânone ocidental acreditavam
que os egípcios antigos eram negros:

Os Egípcios disseram que consideravam os Cólquidas [Colchians] sendo


descendentes do exército de Sesostris. Minhas próprias conjecturas foram
fundadas, em primeiro lugar, sobre o fato de que eles são de pele preta e tem
cabelo lanoso. (HERÓDOTO apud DIOP, 1974. p. 2)

O branqueamento de alguns povos africanos foi uma construção dos europeus


que sabiam da importância dos egípcios para a história da humanidade, por isto
quiseram identificá-los como arianos, já que as teorias racistas queriam comprovar
que os negros eram primitivos e inferiores. Em uma entrevista feita em Dakar,
intitulada “Conversações com Cheick Anta Diop”, Carlos Moore questiona Diop sobre
o termo ariano e a hipótese de origem da população branca. Diop explica que:

A razão pela qual eu frequentemente usei o termo em meus trabalhos, ao


invés do termo “indo-europeu” usado pela escola europeia, é porque “indo-
europeu” tem uma conotação puramente linguística. Não sendo racista, eu
não hesito em usar os termos “ariano” quando eu quero designar essas
originais populações brancas ancestrais dos atuais europeus. [...] Quanto à
origem dos arianos, vemos que eles apareceram subitamente por volta de
1500 A.C., com um ramo invadindo a Índia e outro progressivamente
ocupando o lado oriental da Europa Mediterrânea. (MOORE; DIOP, 2014)
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Partindo destes estudos, podemos compreender que a origem da humanidade,


da civilização, da filosofia e de diversas ciências foi no continente africano. O fato da
filosofia ter sido identificada primeiro em África, não significa que ela é única ou
universal, pois como escreve Ramose

[...] o conceito de universalidade era corrente quando a ciência entendia o


cosmos como um todo dotado de um centro. Entretanto, a ciência
subsequente destacou que o universo não possui um centro. Isto implicou na
mudança do paradigma, culminando na concepção do cosmos como um
pluriverso. (RAMOSE, 2011. p. 10)

Porém o que encontramos com o início da colonização europeia é a negação da


filosofia africana e ameríndia, afim de caracterizar os povos negros como animais
irracionais, impossibilitados de pensar, ou seja, não eram seres humanos e por isto
passíveis de escravização, tortura, epistemicídio e outros tipos de violência. Isto fez
com que a sabedoria ancestral africana fosse deslegitimada e consequentemente
apagada na contemporaneidade.
Saberes como o da família de jogos de tabuleiro Mancala passaram por todo o
planeta com o processo diaspórico, e até mesmo antes como apontado nas
pesquisas. No Brasil eles chegaram com os africanos escravizados, que trouxeram
não apenas o Mancala mas também o jogo de búzios. Segundo Civita (1978)

Nas Antilhas e nos Estados Unidos – principalmente no sul, no estado de


Louisiana, um dos maiores e mais expressivos contingente de escravos era
originário da região do Daomé. Daí se explica a popularidade do adi, jogado
nessas regiões americanas da mesma forma como parte da África onde teve
origem. No Brasil, o adi também foi muito popular. Segundo consta, teria sido
desbancado posteriormente pelo dominó, mas os jogos de búzios, que
derivam dos Mancalas e que no candomblé estão associados a um forte
sentido mágico e religioso, são uma amostra concludente da força dos
Mancalas também na cultura afro-brasileira (CIVITA, 1978. p. 125)

O jogo de búzios é jogado até hoje pois as religiões de matrizes africanas


conseguiram manter viva suas tradições, sem que fossem apagadas ou destruídas
em nosso país. Delfino (2020) em sua pesquisa descobre que:

[...] existem dentro da ciência social africana os Odús e que são eles que
trazem luz a toda herança dos conhecimentos africanos acerca do que a
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filosofia e religião africana buscam entender sobre o ser humano e seu


comportamento, passado oralmente dentro dos terreiros e que ajuda o
Babalorixá ou a Iyalorixá a saber como proceder para ajudar o iniciado a
buscar um caminho. (DELFINO, 2020. p. 3)

Os Odús de uma pessoa são encontrados através do jogo de búzios dentro do


Candomblé. O autor também apresenta que o jogo trabalha questões sobre álgebra
binária, assim como os Mancalas estão diretamente relacionados com a matemática.
Mas assim como o jogo de búzios traz a conhecimentos africanos, através de uma
filosofia africana, o jogo de Mancala também tem uma filosofia e cosmovisão africana
que o cerca. Porém o que encontramos são pesquisas e práticas muito mais
relacionadas as questões matemáticas que fazem parte do jogo. De acordo com a
parecer nº 03/2004 que apresenta as diretrizes nacionais das relações étnico-Raciais
e para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e regulamenta a LDBN

É importante destacar que não se trata de mudar um foco etnocêntrico


marcadamente de raiz europeia por um africano, mas de ampliar o foco dos
currículos escolares para a diversidade cultural, racial, social e econômica
brasileira. Nesta perspectiva, cabe às escolas incluir no contexto dos estudos
e atividades, que proporciona diariamente, também as contribuições
histórico-culturais dos povos indígenas e dos descendentes de asiáticos,
além das de raiz africana e européia. (BRASIL, 2004)

O jogo de tabuleiro Mancala Awelé parece ser uma ferramenta pedagógica


possível de levar estes conhecimentos para dentro da educação, sob um olhar
afrocentrado. Muitos desses valores filosóficos e cosmovisões parecem ser comuns
entre diferentes povos do continente africano e que chegaram ao Brasil na condição
de escravizados. Trindade (2013) nos apresenta alguns desses valores, referindo-se
a eles como valores civilizatórios afro-brasileiros. De acordo com autora:

A África e seus descendentes imprimiram e imprimem no Brasil valores


civilizatórios, ou seja, princípios e normas que corporificam um conjunto de
aspectos e características existenciais, espirituais, intelectuais e materiais,
objetivas e subjetivas, que se constituíram e se constituem num processo
histórico, social e cultural. (TRINDADE, 2013, p. 132).

Esses valores civilizatórios também são destacados por Brandão (2006) e


consistem em: princípio da Energia Vital, Circularidade, Cooperativismo, Oralidade,
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Memória, Musicalidade, Corporeidade, Ludicidade e Religiosidade. O marfinense


Georges Gneka nos conta que aprendeu a jogar Awalé com os mais velhos aos pés
do Baobá, que para o povo dele (Krou – Costa do Marfim) era chamada de Árvore da
palavra, e as sementes do seu fruto eram utilizadas para jogar o Awalé. (LIMA;
GNEKA e LEMOS, 2005). O nigeriano Agbiyan (2004) também relata que dentro da
comunidade em que ele nasceu (Anyuwogbu - Nigéria), os anciãos tinham o costume
de jogar o “Echi”, nome que eles dão ao Mancala por lá, embaixo do baobá, onde
elaboravam diversas estratégias e realizavam operações matemáticas
constantemente durante o jogo. Esses dois relatos indicam que o jogo, dentro das
comunidades africanas, é ensinado oralmente dos mais velhos aos mais novos,
rememorando os ensinamentos ancestrais. A tradição oral faz parte dos valores
filosóficos africanos e sua concepção evidencia o entendimento africano sobre a
filosofia. De acordo com Hampátê Bá:

Ao passar do esotérico para o exotérico, a tradição oral consegue


colocar‑se ao alcance dos homens, falar‑lhes de acordo com o entendimento
humano, revelar‑se de acordo com as aptidões humanas. Ela é ao mesmo
tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite
remontar à Unidade primordial. Fundada na iniciação e na experiência, a
tradição oral conduz o homem à sua totalidade e, em virtude disso, pode‑se
dizer que contribuiu para criar um tipo de homem particular, para esculpir a
alma africana.Uma vez que se liga ao comportamento cotidiano do homem e
da comunidade, a “cultura” africana não é, portanto, algo abstrato que possa
ser isolado da vida. Ela envolve uma visão particular do mundo, ou, melhor
dizendo, uma presença particular no mundo – um mundo concebido como um
Todo onde todas as coisas se religam e interagem. (HAMPÁTÊ BÁ, 2010. p.
169)

Assim como nas comunidades tradicionais africanas o cooperativismo está


fortemente presente, no jogo de Mancala costumamos dizer que não temos um rival,
um inimigo, pois nós estamos dividindo as mesmas terras e sementes, além de ser
proibido deixar nosso parceiro de jogo faminto “[...] é, sobretudo, um jogo baseado na
generosidade: para ganhar, um jogador tem que saber doar ao seu adversário” (LIMA;
GNEKA e LEMOS. 2005).
Os jogos de semeadura como da família dos Mancalas representam o que as
sociedades africanas são por meio da ludicidade, onde uma simples colheita exige
planejamento, estratégia, conhecimento e inteligência. No jogo encontramos as
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características das relações sociais existentes entre os povos africanos, sendo que
elas se dão predominantemente através de cooperação e trocas. Portanto, jogar
Awelé, ou qualquer outro tipo de Mancala, nos permite vivenciar um pouco da cultura
e valores africanos. Por meio do jogo podemos vivenciar diversos elementos que
fazem parte da filosofia e cosmovisão africana, dando-nos a oportunidade de
conhecer outras formas de sociedade, cultura e cosmovisões, além dos saberes
exclusivamente ocidentais, que nos são transmitidos diariamente, desde a
colonização.

REFERENCIAL TEÓRICO ADOTADO

Para a pesquisa sobre filosofia africana será utilizada a epistemologia do lugar


afrocêntrico, ou seja, centrada na África e sua diáspora, como propõe Molefe Kete
Asante (2009). Partiremos das concepções e pesquisas de Cheikh Anta Diop, que foi
responsável pelo renascimento africano dentro da ciência. Suas pesquisas
revolucionaram o debate sobre a origem da humanidade, a antiga civilização egípcia,
as migrações africanas, a formação de etnias, desenvolvimento linguístico dentro do
continente africano e, principalmente, sobre a população do antigo Egito, e de todo
continente africano, ser totalmente negra. Estas descobertas desconstruíram diversas
teorias racistas sobre a África e o povo negro. Entendemos que África é o berço da
civilização e isto aconteceu no Egito, as pesquisas de Diop serviram de bases
fundamentais para o desenvolvimento e aprofundamento nos estudos sobre a filosofia
africana, pois como o autor escreve “A Antiguidade egípcia é, para a cultura africana,
o que é a Antiguidade greco‑romana para a cultura ocidental. A constituição de um
corpus de ciências humanas africanas deve ter isso como base.” (DIOP, 2010.p,34),
se faz necessário conhecer as descobertas de Diop e as influências que elas
trouxeram para os estudos africanos, sejam eles na história, filosofia, na cultura ou na
cosmovisão.
Obenga (2004) relembra uma declaração de Geord Wilhelm Friedrich Hegel em
1830-31, onde ele dizia que “A África não é parte histórica do mundo, ela não tem
movimento ou desenvolvimento para existir...o Egito...não pertence ao espírito
Africano” (HEGEL apud OBENGA, 2004. p. 3), ou seja, Hegel dizia que pessoas
negras não poderiam ser parte de uma grande civilização como a egípcia. Em seu
texto Obenga aponta que apenas após o Simpósio internacional organizado pela
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Organização das Nações Unidas e Educação, Ciência e a Cultura (UNESCO) em


1974, onde Diop defendeu suas teorias e pesquisas sobre o antigo Egito ter sido
povoado por pessoas negras, que houve “um ponto de virada na historiografia e
filosofia africanas.” (OBENGA, 2004. p. 4). Esta virada trouxe à tona os estudos que
descortinaram o racismo epistêmico produzido pelos colonizadores. Ramose (2011)
nos confirma isto e aponta que a existência de uma filosofia está relacionada as
relações de poder, onde quem o obtém possui a autoridade de definir o significado e
o conteúdo da filosofia. No caso da filosofia africana o autor nos diz que:

Os conquistadores da África durante as injustas guerras de colonização


se arrogaram a autoridade de definir filosofia. Eles fizeram isto cometendo
epistemicídio, ou seja, o assassinato das maneiras de conhecer e agir dos
povos africanos conquistados. (RAMOSE, 2011. p. 8)

Para confrontar esta exclusão filosófica Ramose adota o paradigma da


pluriversalidade para que seja reconhecida a filosofia africana. Com isto, para
conhecermos e a filosofia africana será necessário conhecer estes filósofos que têm
a África e a diáspora como centro de seus estudos, pois os filósofos ocidentais não
reconheciam, excluíam ou encobriam os valores filosóficos africanos.
Ao conhecer a filosofia africana passaremos a entender como se dá a
cosmovisão dos povos africanos, pois ao ter um olhar pluriversal e não universal, os
filósofos africanos entendem que na “filosofia dos antigos egípcios, nesses elementos
do mito e da cosmogonia contém suas idéias básicas sobre o mundo.” (RAMOSE,
2011. p. 14).

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A base teórica para esta pesquisa se pauta nos seguintes autores: Cheikh Anta
Diop, Theophile Obenga e Mogobe Ramose como descrito anteriormente.
Esta pesquisa terá uma abordagem qualitativa por compreender que a filosofia
africana associada ao jogo de tabuleiro Mancala Awelé representa uma possiblidade
de implementação das leis 10.639 e 11.645 como ferramenta lúdica, mas também
como uma forma de propor uma epistemologia pluriversal do fazer educativo.
O objetivo geral desta pesquisa é apresentar a filosofia africana como conteúdo
pedagógico por meio do jogo de tabuleiro Mancala Awelé.
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Os objetivos específicos são: descrever os pressupostos filosóficos por meio dos


referenciais teóricos adotados para esta pesquisa; relatar historicamente o jogo de
tabuleiro Mancala Awelé; relacionar os pressupostos da filosofia africana presentes
no jogo de tabuleiro Mancala Awelé e sua aplicabilidade no espaço educacional.

CRONOGRAMA

2021 2022 2023

Novembro/Dezembro
Outubro/Novembro

Setembro/Outubro
Janeiro/Fevereiro

Janeiro/Fevereiro
Agosto/Setembro
CRONOGRAMA

Julho/Agosto
Maio/Junho

Maio/Junho
Março/Abril

Março/Abril
Disciplinas Obrigatórias do programa Dezembro
Levantamento Bibliográfico
Revisão Bibliográfica e fichamentos
Leitura do quadro teórico de referência
Reelaboração do Projeto
Escrita do texto introdutório
Relatório de Qualificação
Qualificação
Redação do texto final
Apresentação pública

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABU BAKR, A. O Egito faraônico. In: MOKHTAR, G (Ed.): História Geral da África
Parte II: África Antiga. Brasília: UNESCO, 2010. 2 ed, p. 37-67. Disponível
em:https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000190250?posInSet=1&queryId=683
7f594-7300-4a88-a0ef-851f5aad70a7 Acesso em: 17/05/2021
AGBINYA, Johnson Ihkey. Computer Board of Africa. África do Sul: University of the
Western Cape. 2004.
14

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