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tecnlogias e saberes africanos

Patrícia da Silva Soares

Introdução

Como professora do ensino básico do CPMG-PMVR e estudiosa da


história da África e dos afrodescendentes, tenho procurado manter um es-
treito vínculo entre minhas pesquisas de natureza historiográfica e aquelas
relacionadas ao processo de ensino de história.

A característica da sociedade contemporânea é a globalização, a in-


formação imediata, em tempo real, e a possibilidade de conectar-se com
qualquer parte do mundo a qualquer tempo. A reflexão mais cuidadosa,
entretanto, introduz inúmeras dúvidas quanto à abrangência desse mun-
do de informação e conhecimento. Quando voltamos nosso olhar para o
continente africano, a dúvida se torna mais explicita. Qual é a imagem que
possuímos da África hoje, em pleno século XXI? Praticamente esquecida
na mídia, a África continua desconhecida, submetida aos mesmos e velhos
preconceitos que dizemos questionar. Pensamos em uma África formada
somente por selva, com populações isoladas, famintas, aculturadas, vivendo
em choupanas. Temos uma visão de uma suposta inferioridade do africano
e, logo, do negro trazido ao Brasil na colonização e de seus descendentes. A
África só existe para explicar a origem dos negros presentes na formação da
sociedade brasileira.

O estudo sobre a história dos povos da África, como já foi afirma-


do inúmeras vezes, tem sido relegado a um segundo plano. Observa-se, na
produção recente de material didático, uma crescente preocupação com es-
tudos relacionados à diversidade étnica e à pluralidade cultural. Conserva-
-se, entretanto, um grande vazio no que se refere ao conhecimento sobre
a África. As referências ao continente ou a algumas de suas regiões ainda

Tecnologias e Saberes Africanos 9


estão predominantemente relacionadas ao tráfico de negros trazidos ao
Brasil para trabalhar como escravos. Negro e africano constituem-se, des-
ta maneira, sinônimos de um povo, cuja identidade é ter sido escravo. Da
mesma maneira e, talvez, por isso mesmo, a ideia que possuímos de África
é, também, desprovida de identidade. A África é uma totalidade e não con-
seguimos imaginá-la como um continente onde habitam povos diferentes
com culturas diversas, ou como uma região marcada por uma diversidade
ecológica que exigiu de seus habitantes respostas diferentes para garantir
sua integração e sobrevivência. A única imagem que temos dela é que de lá
vieram os negros/ escravos para trabalhar na plantação da América.

A ocultação sistemática da história africana é uma das faces da dis-


criminação a que foi submetido o negro na Idade Moderna. Os europeus,
que impuseram aos africanos processos sucessivos de espoliação, precisa-
ram justificar seu comportamento e o fizeram caracterizando o negro como
“inferiores”, “povos bárbaros” que necessitam serem governados por outros.
Neste sentido, ignoram até mesmo as narrativas repletas de admiração a
atingir a costa ocidental da África (século XV), produzidas pelos primei-
ros europeus ou por aqueles que penetraram pela primeira vez o interior
do continente (século XIX). Muitos desses cronistas descrevem formas de
organização social e política, sistemas religiosos e regras de comportamento
social bastante complexas. Foram igualmente esquecidas as relações entre
o Brasil e a costa ocidental africana (Angola, Benin, Nigéria) durante o pe-
ríodo colonial, às vezes mais intensas que aquelas entre Brasil e Portugal.
Segundo Henrique Cunha Junior:

“O principal problema encontrado no processo de ensino e aprendi-


zado da História Africana não é relativo à história e à sua complexidade, mas
é com relação aos preconceitos adquiridos num processo de informação de-
sinformada sobre a África. Estas informações de caráter racistas produziram
1
CUNHA JR., um imaginário igualmente pobre e preconceituoso, extremamente alienante
Henrique. O e fortemente restritivo. Seu efeito é tão forte que as pessoas quando colo-
Ensino da História
Africana. Disponível cadas em frente a uma nova informação sobre a África têm dificuldade na
em:< http://www. articulação de um novo raciocínio sobre a história deste continente, sobre-
historianet.com.br/ tudo de imaginar diferente do raciocínio habitual. A imagem do Africano na
conteudo/default.
aspx?codigo=499>. nossa sociedade é a do selvagem acorrentado à miséria. Imagem construída
Acesso em: 05 pela insistência e persistência das representações africanas como a terra dos
out. 2012.
macacos, dos leões, dos homens nus e dos escravos”1.

10 Curso de Extensão Educação Quilombola


Paralelamente aos questionamentos, não poderíamos deixar de nos
perguntar que métodos didáticos deveríamos desenvolver no sentido de es-
timular um olhar mais relativizado em relação às sociedades africanas ou a
qualquer sociedade culturalmente diversa da nossa.

A inserção da História da África no currículo de História no Ensino


Fundamental e Médio mantém-se como uma necessidade, como um ele-
mento essencial de fundamentação e de estabelecimento do sentido para as
experiências vivenciadas pelas comunidades negras e afro-brasileiras, além
de proporcionar uma importante contribuição para a discussão das questões
de natureza étnico-raciais. Hoje, a Lei Federal nº 10.639/03 determina a
obrigatoriedade do ensino da História da África e da cultura afro-brasileira.

Com a Lei nº 10.639/03 aprovada, a dificuldade agora é a sua im-


plementação, particularmente no capítulo relativo ao ensino de História da
África, para que ela possa se concretizar e se desdobrar de forma positiva
em prática escolar. Os PCNS apontaram para a necessidade de inserir temas
sobre “pluralidade cultural”, destacando a questão da “democracia racial”
como um aspecto central a ser pensado nas atividades escolares. Observe-
mos um pequeno trecho do referido documento:

“A ideia veiculada na escola de um Brasil sem diferenças, forma-


do originalmente pelas três raças – o índio, o branco e o negro
– que se dissolveram dando origem ao brasileiro, também tem
sido difundida nos livros didáticos, neutralizando as diferenças
culturais e, às vezes, subordinando uma cultura à outra. Divul-
gou-se, então, uma concepção de cultura uniforme, depreciando 2
PCN, Temas Trans-
as diversas contribuições que compuseram e compõem a iden-
versais, p.126.
tidade nacional”2.

Vemos, portanto que a problematização da diversidade cultural já


estava presente na legislação desde a década de 80. A necessidade da Lei
nº 10.639, de 2003, que determina a obrigatoriedade do ensino de História
da África no ensino básico, coloca-nos algumas questões, uma vez que ela
indica que o trabalho que vinha sendo feito segundo os PCNs não estava
sendo satisfatório.

Tecnologias e Saberes Africanos 11


Não basta desenvolver um trabalho centrado nas questões étnico-ra-
ciais, mas é preciso rever o olhar dirigido para o próprio continente africano,
mantido em um “silêncio” que exterioriza a continuidade do preconceito.
A História da África nos currículos de história no Ensino Fundamental
e Médio adquire, assim, o papel de fundamentação e estabelecimento de
sentido para as experiências vivenciadas pelas comunidades negras e afro-
-brasileiras; é essencial na discussão das questões relacionadas à construção
de preconceitos e estereótipos em relação ao povo negro.

Os currículos escolares brasileiros constituem um poderoso instru-


mento de intervenção do Estado, e este é o responsável pelo direcionamen-
to do conteúdo que se transformará em saber escolar. É através do currículo
que se selecionam e divulgam as concepções produzidas por diferentes áre-
as de conhecimento, daí a necessidade de uma reflexão sobre os currículos
escolares e, principalmente, o currículo de história do Ensino Fundamental
e Médio proposto pelo Estado.

As novas propostas curriculares apresentadas às escolas (PCN) cria-


ram brechas que possibilitam a superação das lacunas e dos preconceitos
que ainda persistem nos currículos. A possibilidade de se inserir temas rela-
cionados à diversidade étnica e cultural não só se tornou possível como está
sendo explicitamente recomendada.

Ao pensarmos no tema transversal “pluralidade cultural”, proposto


pelos PCNs, a reflexão é a mesma, a proposta existe, mas há uma dificulda-
de para sua implementação. Na proposta para o ensino de história, o tema
tem que vir ligado a um contexto, a um período e a um espaço específico,
exigindo-se do professor um profundo domínio dos conteúdos propostos e,
para isso, uma proximidade permanente entre ensino de história e pesquisa.
A dificuldade está na transposição destes estudos para a situação de ensino
e a explicitação dos conteúdos ao tema pluralidade cultural. O que vemos
hoje nas tentativas de trabalho com a pluralidade cultural, principalmente
na abordagem dos livros didáticos, é sua ligação às formulações clássicas de
nossa historiografia, pois não estão em sintonia com as novas pesquisas que
estão sendo forjadas em nossas universidades. Em algumas áreas, o proble-
ma é ainda maior, como o da história da África que ainda engatinha como
área de discussão e de pesquisa nas nossas universidades. Até mesmo para
os próprios africanos a história deste continente é recente. Esta só começou
a ser abordada e explorada com as lutas de independência quando os países
africanos começaram a construir sua própria história e a resgatar seu passado.

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Há alguns anos, historiadores alertaram para a necessidade urgen-
te de se promover o desmonte de certos arranjos de conteúdos da história
apresentada nos livros didáticos e ensinada nos níveis fundamental e médio.
Buscou-se, desta forma, a superação da visão teleológica imposta pelos cur-
rículos tradicionais, onde se cristalizam noções como progresso, civilização
e modernização, marcando os rumos em direção aos quais todos os povos
devem caminhar. Essa desmontagem passa pela reorganização dos tópicos a
serem trabalhados e pela inclusão de temas. Ao invés de construírem aque-
les modelos de sociedade a serem alcançados ou mostrarem sociedades di-
versas sob uma visão linear e generalizada, numa linha histórica que é euro-
peia, buscam analisar efetivamente os temas e as problemáticas presentes
no meio social com uma abordagem diversificada, não somente política e
econômica, mas também cultural e social. O que se pretende é que o ensino
de história, como o das demais disciplinas, seja significativo e desencadeie
um processo de reflexão comum a alunos e professores.

Hebe Maria Mattos fala de como a África e os africanos estão inseri-


dos em nossos currículos de Ensino Fundamental e Médio até o momento
e sua consequência para o aprendizado:

“Os africanos entram em cena na história do Brasil colonial a


partir do ‘pacto colonial’, da ‘monocultura do açúcar’ e do exclu- 3
MATTOS, Hebe
sivismo metropolitano”, que necessitavam do ‘tráfico negreiro’ e Maria. O Ensino de
do ‘trabalho escravo africano’. Esta formulação clássica da nossa História e a Luta
Contra a Discri-
historiografia produz como efeito uma relativa naturalização da
minação Racial no
escravidão negra como simples função da cobiça comercial eu- Brasil. In: Ensino de
ropeia, escamoteando a face africana do tráfico essencial para o História: Conceito,
entendimento de sua dinâmica e durabilidade. Essa naturaliza- Temática e Metodo-
ção da escravidão negra, a partir de uma premissa que torna o logia. Organização:
Martha Abreu e
tráfico negreiro um fenômeno histórico, econômico e cultural
Rachel Soihet.Rio
derivado apenas da historia europeia, é fruto do desconheci- de Janeiro: Casa da
mento da história africana e de sua importância na articulação Palavra,2003, 133.
do mundo atlântico”3.

Parece-nos fundamental desvincular a história das sociedades afri-


canas dessa “história eurocêntrica”, limitar nossa compreensão do conti-
nente africano apenas ao contexto do mercantilismo e do tráfico negreiro
ou, séculos depois, da colonização efetiva daqueles territórios. Frente a essa
expectativa, a introdução do eixo temático pluralidade cultural torna-se
imprescindível para o desenvolvimento de uma nova proposta curricular

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que possa se apresentar como um importante instrumento que possibilite a
compreensão da Historia da África em todas as suas dimensões.

Todo o material proposto, textos, imagens, mapas, podem ser utili-


zados em suas salas de aula de Ensino Fundamental e Médio.

1. A HISTÓRIA DA ÁFRICA NO CURRÍCULO


OBRIGATÓRIO ESCOLAR BRASILEIRO

1.1 A importância da História da África no Brasil

É inequívoco que a construção de uma identidade passe pelo conhe-


cimento da própria história para fazê-la presente como referência cultural.
O Brasil é habitado por cerca de 76 milhões de negros e pardos, o equiva-
lente a 45% da população. Portanto, os negros não podem ser considerados
uma minoria num país que só perde para a Nigéria em quantidade de negros
no mundo. O curioso é saber que, mesmo com toda a riqueza cultural, his-
tórica e econômica que nós, brasileiros, herdamos da África, ainda conhece-
mos muito pouco sobre o continente, onde vivem mais de 780 milhões de
pessoas das mais variadas etnias.

No estudo e no ensino de História no Brasil, a história da África foi


quase inexistente até muito pouco tempo atrás. Se os antropólogos e estu-
diosos da cultura popular sempre registraram e analisaram as manifestações
culturais, portadoras de elementos africanos, realizadas por aqueles que para
cá foram trazidos na condição de escravos e pelos que deles descendiam, os
historiadores se preocuparam muito pouco com a presença africana no Bra-
sil ou com as relações mantidas ao longo de séculos com aquele continente.

Caso o Brasil fosse um país sem nenhuma imigração africana de im-


portância, não seria surpreendente que os currículos escolares dispensas-
sem estes conteúdos. Mesmo assim, por razões da história da humanidade,
seria indispensável um conhecimento da história africana. Surpreendente é
um país que, nos seus últimos quatro séculos, teve não somente a imigração
africana maciça, como também a maioria da sua população descendente de
africanos, não ter história africana nos currículos escolares.

14 Curso de Extensão Educação Quilombola


O argumento principal para o ensino da História Africana está no
fato da impossibilidade de uma boa compreensão da história brasileira sem
o conhecimento das histórias dos atores africanos, indígenas e europeus.
Sem estes elementos, constrói-se uma história parcial, distorcida e promo-
tora de racismos.

A exclusão da História Africana é uma dentre as várias demonstra-


ções do racismo brasileiro, pois produz a eliminação simbólica do africano
da história brasileira.

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Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI No 10.639, DE 9 DE JANEIRO DE 2003.

Mensagem de veto

Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece


as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o


Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa
a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B:
“Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e
médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino
sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste
artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africa-
nos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira
e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a
contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e
política pertinentes à História do Brasil.

§ 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-


-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Li-
teratura e História Brasileiras.
§ 3o (VETADO)”
“Art. 79-A. (VETADO)”
“Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novem-
bro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.”
Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 9 de janeiro de 2003; 182o da Independência e


115o da República.

LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA


Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque

16 Curso de Extensão Educação Quilombola


1.2 Olhares para a África: os limites da imaginação

A história ensinada nas escolas é um elemento formador da memória


coletiva e da identidade nacional. Como afirma Jacques Le Goff,

“A memória coletiva é não somente uma conquista, é também


um instrumento e objetivo do poder”(LE GOFF, 1984, p. 46).

O estudo sobre a História da África tem sido relegado no Brasil, a


um segundo plano. Este deveria ser um fator de estranhamento, visto que os
negros constituem um importante grupo entre os “formadores do povo bra-
sileiro”. No curriculum e nos livros didáticos utilizados nas escolas de Ensino
Fundamental e Médio, são raras as referências feitas à história do continente
africano, estando estas, geralmente, relacionadas ao tráfico que trouxe os ne-
gros ao Brasil para trabalhar como escravos. Em decorrência disso, é muito
frequente ocorrer o uso, entre os estudantes, do termo “escravo” para se re-
ferir ao africano ou ao negro e do termo “negro” para se referir ao escravo,
mesmo ao estudar a escravidão romana, fenícia ou de outros povos.

Os termos negro e africano constituem-se, dessa maneira, sinônimos


de um povo, cuja identidade é ter sido escravo. Da mesma maneira, talvez
por isso mesmo, a ideia que possuímos de África é, muita das vezes, despro-
vida de identidade. Consideramos a África como uma totalidade; não con-
seguimos imaginá-la como um continente onde habitam povos diferentes
com culturas diversas ou como uma região marcada por uma diversidade
ecológica que exigiu de seus habitantes respostas diferentes para garantir
sua integração e sobrevivência.

A ocultação sistemática da história da África é uma das faces da discri-


minação a que foi submetido o negro na Idade Contemporânea. A negação
da história da África e a caracterização da sua população como “inferiores”,
“povos bárbaros”, “primitivos”, “crianças que ainda têm que crescer” e que
necessitavam ser governadas por outros, foi uma das maneiras de garantir
e justificar os processos sucessivos de espoliação, particularmente aqueles
promovidos pela Europa.

Nesse sentido, ignoraram até mesmo as narrativas repletas de ad-


miração, produzidas pelos primeiros europeus a atingirem a costa oriental
africana (séculos XV), ou por aqueles que penetraram pela primeira vez o

Tecnologias e Saberes Africanos 17


interior do continente (séculos XIX). Muitos desses cronistas descreveram
formas de organização social e política, sistemas religiosos e regras de com-
portamento social bastante complexas.

O intelectual zairense, radicado no Brasil e professor da USP, Kaben-


guele Munanga questiona a visão que foi construída sobre a África, conside-
rando-se que, para a maioria das pessoas, a África é:

- um “país” indiferenciado e uniforme; uma massa compacta ao pé


da Europa;

- composta de sociedades “primitivas” e estáticas;

- um “país” tropical, de paisagens e culturas exóticas;

- marcada pelas catástrofes sociais, guerras civis e guerras étnicas.

Por esses motivos, o principal problema encontrado no processo de


ensino e aprendizado da história da África são as informações adquiridas
sobre a África fora do contexto escolar, marcadas por preconceitos. Estas
informações de caráter racistas são produtoras de um imaginário pobre e
preconceituoso, extremamente alienantes e restritivas.

Seu efeito é tão forte que, segundo Henrique Cunha Junior, as pes-
soas quando colocadas em frente a uma nova informação sobre a África têm
dificuldade em articular outros raciocínios sobre a história deste continente.

Predomina-se, na nossa sociedade, a imagem do africano como selva-


gem acorrentado à miséria. Esta imagem é construída pela insistência e per-
sistência das representações africanas como a terra dos macacos, dos leões,
dos homens nus e dos escravos. Há um bloqueio sistemático em pensar
diferente das caricaturas presentes no imaginário social brasileiro.

Para Henrique Cunha Júnior, o elemento básico para introduzir a


história da África é a desconstrução e eliminação de alguns elementos bási-
cos das ideologias racistas brasileiras.

São cinco os pontos importantes a serem desconstruídos na imagina-


ção dos brasileiros sobre a África:

18 Curso de Extensão Educação Quilombola


1. A África não é uma selva tropical; Dicas

2. A África não é mais distante que os outros continentes; Texto: “A África na


Sala de Aula”, deMô-
nica Lima: http://ma-
3. As populações africanas não são isoladas e perdidas na selva; ralanez.wordpress.
com/2006/04/02/
materia-publicada-
4. O europeu não chegou um dia na África trazendo civilização;
-na-revista-nossa-
-historia/Texto: “Um
5. A África tem história e também tinha escrita. continente no currí-
culo”, de Marina de
Mello e Souza
Devemos pensar a África a partir da diversidade dos povos africanos
e analisar os problemas presenciados atualmente no continente, conside- http://www.revis-
rando os múltiplos processos históricos pelo qual passou o continente. Não tadehistoria.com.
br/secao/educacao/
se pode esquecer os impactos dos processos violentos de colonização pelo um-continente-no-
qual passou o continente desde o século XV, nem os processos de indepen- -curriculo
dências recentes, já em meados do século XX.
Vídeo: A África
Referências que nunca vimos,
ou que ninguém
mostra. http://
www.youtube.com/
CUNHA JR., Henrique. O Ensino da História Africana. Disponível em:< http:// watch?v=3vllE0-
www.casadeculturadamulhernegra.org.br/quem_somos_frameset.htm>. Acesso em: -Xuo0
15 fev.2008.

LE GOFF, Jacques. Memória. In: Enciclopédia Einaudi – Vol 1. Lisboa: Império Na-
cional – Casa da Moeda: 1984, p. 11- 50.

MUNANGA, Kabengele. África,Trinta anos de processo de independência.


In: Revista USP Dossiê Brasil/África. SP, n° 18, Jun- Jul- Ago, 1993, p.102-110.

TEDESCO, Maria do Carmo Ferraz. Povos Africanos Antes da Chegada dos


Europeus. In: SILVA, Marilena; GOMES; Uene José (Orgs.). África, Afrodescendência
e Educação. Goiânia: UCG, 2006. p. 23- 24.

TEIXEIRA, Dante Martins (Org.). A arte nos mapas na Casa Fiat de Cultura.
Nova Lima: Casa Fiat de Cultura, 2008.

Tecnologias e Saberes Africanos 19


2. RITMOS HISTÓRICOS DO CONTINENTE
AFRICANO ATÉ O SÉCULO XV

2.1. Fontes para o estudo da história da África

A África é um continente de população muito diversificada, reunin-


do centenas de grupos étnicos com diferentes histórias. No entanto, durante
muito tempo, as sociedades africanas foram vistas pelos europeus como so-
ciedades sem história. Na verdade, as poucas referências ao passado daquele
continente eram dadas a partir dos marcos da história europeia. Porém, des-
de o processo de independência dos países africanos, iniciado na década de
1950, historiadores daqueles países vêm buscando restabelecer o passado
da África a partir da perspectiva das sociedades que ali vivem.

O estudo da história da África recorre a três fontes principais: os


documentos escritos, orais e arqueológicos. Os documentos escritos foram
produzidos, em sua maioria, por outros povos que entraram em contato
com os africanos ao longo de sua história, entre estes os árabes, que man-
tiveram contatos comerciais e políticos estreitos com povos africanos e, a
partir do século XV, também os europeus.

As sociedades africanas subsaarianas – região ao sul do deserto do


Saara – eram orais, isto é, o saber era tradicionalmente transmitido pela pa-
lavra falada. Por essa razão, até pelo menos a década de 1950, a maioria dos
historiadores desprezou a história desta parte do continente que, pratica-
mente, não dispunha de fontes documentais escritas. No entanto, é preciso
compreender que a ausência da escrita não significa nenhuma falta de ha-
bilidade, mas relaciona-se ao valor fundamental atribuído à palavra nessas
sociedades orais: ela é a depositária da sabedoria dos ancestrais.

Assim, grande parte da memória das sociedades subsaarianas foi pre-


servada pela tradição oral. Na República do Mali, por exemplo, os “dielis” ou
“griots”, antigamente genealogistas e conselheiros a serviço dos reis, ainda
hoje recitam de cor as epopeias dos reis de dinastias inteiras do antigo Im-
pério do Mali. São, por isso, considerados, pelo historiador malinês Ham-
paté-Ba, verdadeiras “bibliotecas públicas ambulantes”. Esse assunto vai ser
aprofundado posteriormente nos próximos eixos da disciplina.

20 Curso de Extensão Educação Quilombola


Nos locais onde há carência de fontes orais e escritas, a arqueologia
tem prestado uma valiosa contribuição à história das sociedades africanas.
O estudo da cerâmica e dos objetos de osso e metal da região do Níger e
do Chade, por exemplo, demonstrou a ligação entre os povos pré-islâmicos
da bacia chandiana e as áreas culturais que chegam até o Nilo e o deserto
da Líbia.

Figura 2 - Carta de Lázaro Luís de1563, vendo-se a África Ocidental e uma representação
do Castelo da Mina, no Golfo da Guiné. In: http:// www.arqnet.pt/portal/artigos/jss_expan-
sao1.html 06/10/2012.

Fontes para o estudo da história da África

Três fontes principais:

1º - Documentos escritos:

• Foram produzidos em sua maioria por outros povos que entraram


em contato com os africanos ao longo de sua história, entre estes árabes
e europeus.

2º- Documentos orais:

• As sociedades africanas subsaarianas eram orais, isto é, o saber era


tradicionalmente transmitido pela palavra falada. Assim, grande parte da

Tecnologias e Saberes Africanos 21


memória das sociedades subsaarianas foi preservada pela tradição oral. Por
essa razão, até pelo menos a década de 1950, a maioria dos historiadores
desprezou a história desta parte do continente que, praticamente, não dis-
punha de fontes documentais escritas. No entanto, é preciso compreender
que a ausência da escrita não significa nenhuma falta de habilidade, mas re-
laciona-se ao valor fundamental atribuído à palavra nessas sociedades orais:
ela é a depositária da sabedoria dos ancestrais.

3º- Documentos arqueológicos:

• Nos locais onde há carência de fontes orais e escritas, a arqueologia


tem prestado uma valiosa contribuição à história das sociedades africanas.

2.2 Tradição oral africana

A história dos povos africanos era transmitida oralmente. Era pacien-


temente passada de boca a ouvido, de mestre a discípulo ao longo do tempo.
De modo geral, a importância maior da fala sobre a escrita está presente
ainda hoje na cultura de muitos povos, nos vários cantos do planeta.

HAMPATÉ BÁ, A
4

tradição viva. In: “Entre as nações modernas, onde a escrita tem precedência
KI-ZERBO, Joseph
(org.). História Ge-
sobre a oralidade, onde o livro constitui o principal veículo da
ral da África – vol herança cultural, durante muito tempo julgou-se que os povos
1. São Paulo: Ática/ sem escrita eram povos sem cultura. Felizmente esse conceito
UNESCO, 1982. infundado começou a desmoronar. [...] Os primeiros arquivos
P.181 ou bibliotecas do mundo foram o cérebro do homem”4.

A oralidade dessas sociedades desenvolve a memória e fortalece a


ligação entre homem e palavra. A fala é considerada divina, pois é a força
criadora. A tradição oral africana não se limita a narrativas lendárias ou mi-
tológicas e está ligada ao comportamento cotidiano das pessoas e da comu-
nidade e aos fatos históricos que marcam a vida de um povo. Ela é, ao mes-
mo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história,
divertimento e recreação.

Por exemplo, ao fazer uma caminhada pela mata e encontrar um for-


migueiro, um velho mestre terá a oportunidade de ensinar aos mais jovens
de diversas maneiras. Pode falar do próprio animal e da classe de seres a

22 Curso de Extensão Educação Quilombola


que pertence ou pode demonstrar como a vida em comunidade depende da
solidariedade. Assim, qua lque r acontecimento pode ser aproveitado para
desenvolver vários tipos de conhecimento. A memória das pessoas que vi-
vem em sociedades orais é maior que a dos indivíduos das sociedades letra-
das. Nas sociedades da costa ocidental africana, os membros responsáveis
pela transmissão das tradições (conhecimento repassado por uma cadeia de
ancestrais) têm uma memória extraordinária e aprofundam seus conheci-
mentos durante toda a sua vida.

Os guardiões da tradição oral africana são os tradicionalistas (doma


em bambara) e os detentores do conhecimento transmitido pela tradição
oral de sua sociedade.

Esses domas conhecem a ciência “das plantas”, “das terras”, “das


águas”, e também as ciências astronômicas, biológicas, cosmogonias e eso-
téricas – que consistem em saber como entrar em uma relação apropriada
com as forças que sustentam o mundo visível e podem ser colocadas a ser-
viço da vida, pois o universo visível é concebido e sentido como o sinal, a
concretização de um universo invisível. Para a Hampaté Bá, todo este co-
nhecimento “trata-se de uma ciência da vida cujos conhecimentos sempre
podem favorecer uma utilização prática” na vida dos membros da sociedade
(HANPATÉ BÁ, 1982, 188). São também conhecidos como mestres de
ofício, pois não dominam apenas as histórias e as ciências de seu povo, mas
a vivenciam, e são ferreiros, tecelões, sapateiros, marceneiros, lenhadores,
pastores de animais.

Mais do que todos os outros homens, os domas obrigam-se a res-


peitar a verdade, pois a fala, que é o instrumento de trabalho deste grupo,
encontra-se em relação direta com a conservação ou com a ruptura da har-
monia do homem e do mundo que o cerca. A palavra pode criar a paz, assim
como pode destruí-la. Se forem pegos mentindo, não podem mais cumprir
com suas funções, porque desvirtuaram a palavra, profanaram-na, usaram
de forma imprudente o conhecimento que lhes foi repassado por seus an-
cestrais. Segundo Hampaté Ba:

“O que se encontra por detrás do testemunho é o próprio valor


do homem que faz o testemunho, o valor da cadeia de transmis-
são da qual ele faz parte, a fidedignidade das memórias individu-
al e coletiva e o valor atribuído à verdade em uma determinada

Tecnologias e Saberes Africanos 23


HAMPATÉ BÁ, A
5
sociedade [...]. É, pois, nas sociedades orais que não apenas a
tradição viva. In: função da memória é mais desenvolvida, mas também a ligação
KI-ZERBO, Joseph entre o homem e a Palavra é mais forte. Lá onde não existe a
(org.). História Ge-
ral da África – vol. escrita, o homem está ligado à palavra que profere. Está com-
1. São Paulo: Ática/ prometido com ela. Ele é a palavra e a palavra representa um
UNESCO, 1982. testemunho daquilo que ele é. A própria coesão da sociedade
p.182. repousa no valor e no respeito pela palavra”5.

Outro grupo social que também trabalha com a palavra são os dielis
– chamados pelos franceses de griots. Estes são menestréis, trovadores, res-
ponsáveis por entreterem o público. A poesia lírica, os contos e as histórias
são privilégio dos dielis e são classificados em três categorias: os músicos,
que tocam instrumentos, cantam, compõem e transmitem as músicas anti-
gas; os embaixadores, que mediam as negociações entre grandes famílias; os
genealogistas, que contam as histórias e genealogia das famílias e transmi-
tem as notícias da sociedade.

A tradição lhe confere um status social especial, gozam de grande li-


berdade de falar – até de mentir se necessário – e tem o direito de receber
presentes – diferente dos domas. Essa liberdade com a fala os tornou trans-
missores das mensagens dos nobres e dos reis, que não tinham o direito de
voltar atrás no que diziam.

Dieli é uma palavra da língua bambara, falada pelo povo africano


que habita principalmente as regiões do Mali, Senegal e Guiné-Bissau, que
quer dizer “sangue”; a circulação do sangue é a própria vida, como a palavra
que circula. De fato, estes dielis circulavam pelo corpo das sociedades como
o sangue circula pelo corpo humano. Os dielis conhecem muitas línguas
e viajam pelas aldeias, escutando relatos, notícias e recontando a história
das famílias.

A possibilidade de se tornar um tradicionalista está ao alcance deste


dielis, como de qualquer membro da socieedade , s e sua s aptidões o permi-
tirem, e se passar pelo processo de assimilação e aprofundamento dos ensi-
namentos que recebeu desde a infância. Estes diélis passam a ser chamados
diéli-faama ou griot-rei, e abdicam dos seus direitos tradicionais de dieli,
direito de mentir e receber presentes por seus préstimos.

A tradição oral e as características da memória africana não foram


afetadas pela expansão da religião islâmica no continente africano.

24 Curso de Extensão Educação Quilombola


De fato, o islamismo incorporou-se a essa tradição e seus ensinamen-
tos e preceitos passaram a fazer parte da memória africana e a serem trans-
mitidos pela oralidade.

Exemplo da manutenção dessa tradição africana na costa ocidental


africana com a chegada do islamismo é a permanência da grande memória
africana e as formas de sua transmissão oral que são feitas pelos domas e
pelos dielis. Logo que a população dessa região aprendeu o árabe, passou
a utilizar suas tradições ancestrais para transmitir e explicar o islamismo.
Escolas islâmicas na costa ocidental africana eram puramente orais, e os en-
sinamentos da religião eram repassados nas línguas vernáculas – exceto o
Alcorão e os textos que fazem parte das orações canônicas, que eram repas-
sados em árabe.

O trabalho com as fontes orais para o estudo da história da África é


de suma importância. Os testemunhos de fatos passados conseguidos atra-
vés das fontes orais são tão confiáveis quanto os testemunhos conseguidos
através das fontes escritas, pois o testemunho, segundo Hampaté Ba, “seja
oral ou escrito, no fim não é mais que testemunho humano”. Portanto, um
não é melhor ou mais confiável que o outro, tem apenas a forma de trans-
missão diferente.

Figura 3 - Griots de Sambala, roi de Médine 1890


(illustration de Côte occidentale d’Afrique du Colonel Figura 4 - Tom Hale met with griot Ayouba Tessa
Frey) - Fig.81 p.128 - [Cote : Réserve A 200 386]. again in Niger in 1987. In: http://www.rps.psu.edu/
Autor: Jeanniot (grav.) 0205/keepers.html 06/10/2012

Tecnologias e Saberes Africanos 25


A palavra de um griot

O senegalês Djibril Niane, um dos mais importantes intelectuais africanos da atuali-


dade, registrou as palavras de um griot, da Guiné, quando este descreve o valor da
verdade para o seu grupo:

“(...) Sou griot. Meu nome é Djeli Mamadu Kuiyatê, flho e Bintu Kuyatê e de Djeli
Kedian Kuyatê, mestre na arte de falar. Desde tempos imemoriais estão os Kuyatês a
serviço dos príncipes de Keita do Mandinga [o mesmo que Império do Mali]: somos
os sacos de palavras, somos o repositório que conserva segredos mulPsseculares. A
arte da palavra não apresenta qualquer segredo para nós, sem nós, os nomes dos reis
cairiam no esquecimento; nós somos a memória dos homens; através da palavra, damos
vida aos fatos e às façanhas dos reis perante as novas gerações.

Recebi minha ciência de meu pai Djeli Kedian, que a recebeu igualmente de seu pai; a
História não tem mistério algum para nós; ensinamos ao vulgo tudo o que aceitamos
transmir­-lhe; somos nós que detemos as chaves das doze portas do Mandinga.

(...) Os griots conhecem a história dos reis e dos reinos, motivo porque são os me-
lhores conselheiros dos reis. Todo grande rei quer ter um chantre para perpetuar
sua memória, visto que é o griot quem salva a glória dos reis, pois os homens têm a
memória muito curta.

Os reinos têm o seu destino traçado, tal como os homens; só o conhecem os advinhos,
que investigam o futuro, cuja ciência dominam.

Nós outros, griots reais, somos os depositários da ciência do passado; mas quem co-
nhece a história de um país poderá ler o seu futuro.

Há povos que se servem da linguagem escrita para fixar o passado; mas acontece
que essa invenção matou a memória dos homens: eles já não sentem mais o passado,
visto que a língua escrita não pode ter o valor da voz humana. Todo mundo acredita
conhecer, ao passo que o saber deve ser algo secreto [os griots tradicionais são muito
criteriosos ao transmitir seu saber por considerá-lo um segredo]. Os profetas não
escreveram, e sua palavra nem por isso é menos viva. Pobre conhecimento, esse que se
encontra imutavelmente fixado nos livros mudos...

Eu, Djeli Mamadu Kuyatê, sou o elo final de uma longa tradição: desde muitas gerações
nós transmitimos de pai para filho as histórias dos reis.

A palavra me foi transmitida sem alteração e eu a passarei sem que qualquer mudança,
visto que a recebi isenta de qualquer mentira. (...)”

Fonte: NIANE, Djibril. Sundjata ou a epopeia mandinga. São Paulo: Ática, 1982. P.11 e 66.

26 Curso de Extensão Educação Quilombola


2.3 Ritmos históricos africanos até século xv

Os estudos sobre a África nos obrigam a refletir sobre história de


acordo com os períodos e ritmos históricos muito diversos dos europeus.

O primeiro período de sua história está ligado ao de toda a humani-


dade, pois, conforme hipóteses dos estudiosos, foi naquele continente que
esta se originou. Esse primeiro período, relativo à origem e evolução do ho-
mem, desenvolveu-se em um tempo muito longo, que abrange milhões de
anos, cuja documentação é produzida pela arqueologia.

Um segundo período chamado genericamente de “pré-história afri-


cana” refere-se à época em que ocorre o povoamento e ocupação efetiva do
continente por grupos humanos que tiveram que se adaptar e criar condi-
ções de sobrevivência, produzindo, dessa forma, uma imensa diversidade
de culturas. O estudo dessa época, que teve duração milenas , é realizado
predominantemente também pela arqueologia.

Em um último período, relativo aos dois últimos milênios, a história


desenvolveu-se em ritmo mais acelerado e envolveu uma intensa troca de
contatos com povos de outras regiões e continentes. Neste último período,
surgiram, no continente africano, diversas confederações de aldeias e rei-
nos, cujas complexas estruturas de organização foram sendo desarticuladas
e destruídas pela ulterior dominação europeia.

Tecnologias e Saberes Africanos 27


2.4 Diversidade e pluralidade na África

Uma das mais marcantes características do continente africano é


a sua diversidade. Seus mais de 30 milhões de km² abrigam grande varie-
dade de climas, vegetações, hidrografia, sociedades, economias, culturas e
línguas diferentes.

A sua geografia física apresenta vastos maciços montanhosos, como


o Adamawa (próximo a Camarões) e o Drakensberg (na África do Sul),
densas florestas equatoriais (na região central) e amplos desertos (Saara,
Kalahari), grandes lagos (Nyassa, Vitória, Tchad) e os rios imensos, sendo
os principais o Nilo, o Zaire, o Zambeze e o Níger. Veja o mapa “Retrato
Físico do Continente”.

O continente pode ser dividido e pensado de várias formas: África


do Norte, África Subsaariana e África do Sul; África Mediterrânea, África
Atlântica, e África Oriental; e, por fim, a divisão em cinco regiões, mais uti-
lizada em mapas e estudos: África do Norte, África Ocidental, África Orien-
tal, África Central, África do Sul.

Do ponto de vista étnico e cultural, também há uma grande diversi-


dade: Khoi-khoi, san, tua, guineense, bantu, etiópico, uolof, fulani, dogon,
mossí, malinké, bambara, zulu, xhosa, peules, hauçá, iorubá e muitos outros
povos.

Estima-se que as línguas africanas de hoje derivam de mais ou menos


1250 línguas diferentes. Os historiadores costumam classificar estas varie-
dades em quatro famílias linguísticas:

1. Afro-Asiática, no norte e leste do continente, compreende os ra-


mos Berbere, Egípcio Antigo, Semítico, Cuxita (ou Kushita) e Chádico (que
inclui o Hauçá).

2. Níger-Cordofaniana, com os ramos Cordofaniano e Níger-Congo


(que predomina na maior parte do continente e engloba línguas como:
ashanti, suaíli, banto, xosas, zulus, iorubas, ibo, entre outras).

3. Nilo-Saariana, no vale superior do Nilo, Saara e Sudão Oriental,


compreende os ramos Songai, Saariano, Mabã, Fúria, Coma e Nilótico.

28 Curso de Extensão Educação Quilombola


4. Coissã, em partes da Tanzânia e África do Sul, engloba os ramos
Hadza, Sandane e Coissã sul-africano.

Geralmente falava-se mais de uma língua: a da família e a das comu-


nidades vizinhas com as quais se mantinha relações comerciais e alianças
políticas. A valorização da diversidade cultural fez com que o conteúdo da
disciplina fosse organizado a partir dos estudos de sociedades com diversas
organizações políticas, econômicas e culturais, que se formaram em pontos
diversos do continente e mantiveram contato com outras sociedades afri-
canas e de outros continentes no período a ser analisado – entre os séculos
V ao XV. Importante também ressaltar que a escolha dessas sociedades tão
diversas foi porque vários de seus indivíduos chegaram à América entre os
séculos XV e XVIII com o tráfico negreiro.

Referências

CAMPOS, de Flávio. O jogo da História. São Paulo: Moderna, 2002.32-33p.

FERREIRA, João Paulo Hidalgo. Nova História Integrada: Ensino Médio.

Campinas: Cia da Escola, 2005. HAMPATÉ BÁ, A tradição viva. In: KIZERBO, Joseph
(Org.). História Geral da África – vol 1. São Paulo: Ática/UNESCO, 1982.

GOMES, Uene José (Orgs.). África, Afrodescendência e Educação. Goiânia: UCG,


2006. p. 23- 24.

Tecnologias e Saberes Africanos 29


VEGETAÇÃO AFRICANA

Oceano Atlântico
Mar Mediterrâneo

Tópico de Câncer

Golfo do Áden

Golfo da Guiné
Equador 0º

Oceano Índico
Oceano Atlântico

FLORESTA TROPICAL
FLORESTA COSTEIRA DO LESTE DA ÁFRICA
FLORESTA DECIDUAL - SAVANA DE ÁRVORES
Tópico de Capricórnio
FLORESTA DECIDUAL - SAVANA DE GRAMÍNEAS
ESTEPE - GRAMÍNEAS E VEGETAÇAO RASTEIRA
SEMI DESERTO
DESERTO
MEDITERRÂNEA
GRAMÍNEAS DE MONTANHAS
FLORESTA DE MONTANHAS - TUNDRA

30 Curso de Extensão Educação Quilombola


ÁFRICA LINGUÍSTICO

Judeu Chenoua
Kabila Árabe
Marroquino Tarifit Tunisiano
Árabe Marroquino
Árabe
Tamazight Nefusa Greek
Argelino Siwa
Guanche
Tachelhit Árabe Árabe Egípcio
*Azenegue Líbio Awjila
Tuat Árabe Coopta1
Saariano Árabe
Árabe Tamaha
Tamasheg Tuaregue Egípcio
Mabang
Hassanlyya Fulfulde Árabe Núbio Bedawi
Dazaga Masalit
Árabe
Zenaga Saariano Árabe Sudanês Dongolo
Cabo Fula Tadaksahak Chádico Chádico
Tucolore Coyra Chiin Kanurl *Katia
Verdiano Maba Tigre
Jalofo Koyraboro Senni Tasawaq Fur *Talodi *Helbon
Bijage Bambara Dogon Haussa Bilen
Susa Soninguê Fulo Zarma Masa Gaam Temein Tigiína
Surere Fulfulde Lamang Berta Saho
Mocolê Tusia Senufo Bariba Bagimi Barein Daju
Beafada Fula Sara Bongu Amhara
Bwamu Fon Afar
Banhum Mandinga Acuamu i Itsequíri Mandará Homa Nitótco Oromo
Krio Acã Edo enOió Nobandi Teteta Moru Wolaytta
Samali
Kuwaa Doameano B Ibibio Fula Ubangi Komuz
Evé Iorubá Ibo Igala Mpiemo Gono
Bandi Bossa Gbaya Sango Konama
Klao Wee Fante Madi
Defako llo Ecóide Fali Aori Omo-tana
Zandi Nubi Samali
Banda Logo Borani
Sãotomense Bafia Gueve Komo Acholi Turkana Maay
Mongo
Angolar
n gaFang Bemitapa Ganda Somali
ta LENGOLA Nande SWAHILI
Ba Mbosi
Kamba
Sira Kota Kasai RUANDA Choni
Kituba Maasai
Lumbu Sonde Tembo RUNDI
Somali Kamba
CONGO Tio LUNDA Bembe Sandawe Cutchi_Swahili
Kongo
São Salvador Luba Sukuma SWAHILI
Luanda Jiriga Bemba Fipo Hehe Seychelles
Dembo LUNDA Lengola Crioulo
Iaô
Umbundu
Konzo Tumbuka
Imbangala Enia Comoro
Cassanje
Luvale Malave Makaonde Betsimisaraka
Inglês Ovimbundo Bemba Norte
Niemba Kaonde NYANJA
Ambundo Subia MAKUA Tsimihety Malagásio
Hereno Xoe XONA
Ndonga Anguni Sena Platô
Tsao Francês*
Kwanga Ju|’hoan Shua NEBELE
Malagásio
Ndau
Afrikaans Yeye ZULU Bara Malagásio
Diriku Naro Chopi
Venda Maurício
Hua afr afr Betsimisaraka Reunião Crioulo
Nama Inglês Suati Sul Crilouro
Kiwi Tsonga
Trópico de Cap
ricórnio
Nguni
Soto
Afrikaans
XOSA Inglês

LEGENDA POR CORES


NÍGER- Atlântica Atlântica Dogon - 10 AFRO- *Chádica-195 AUSTRO- Malagásio - 11
Congo 64
CONGO 1418 Kru-39 ASIÁTICO NÉSICA
Semítica - 177 Leste - 18
1514V 375 1268
Kwa-39
Ijóide 10 Berbere - 26 Banto - 27
Benue
Bontóide Bantu
Volta- Congo Congo Omótica - 28 Malásio -
681 513
1344 961 Polinésio
1248
Gur-96 Cusítica - 47
*Cordofã 24
Norte Adamaya Ubangl Egípcia - 01
254 158 (¹Extinta)
Mande 71

CÓISAN Xoe - 08 INDO - Germânica Oeste Baixo- Afrikaans


27 EUROPÉIA 53 41 Franco
Nama - 03 04
Sandawe Central 449 Inglês
13 Hua - 02
Sul-Africana Itálica 48 Romanos 48 Francês*
25 Sul - 06 Kiwi - 04

CRIOULO Base Inglesa Krio NILO- Sangai 08


31 04
86 SAARINO
Sudanês -
Base Congo Base Ngbandi 204 Central
02 02 65 Komuz 06 Maban-09
Base
Portuguesa Berta 01
Base Árabe Base Swahili 13
Sudanês - Kunama Fur - 03
03 01 Meridional
95
Base Francesa
12 Saariano 09

Tecnologias e Saberes Africanos 31


3. SOCIEDADES AFRICANAS

A África é um imenso continente ocupado por muitos povos, que


apresenta uma grande diversidade cultural. Tal diversidade resulta dos
diferentes processos históricos, vividos pelos habitantes de cada região
da África.

ORGANIZAÇÕES POLÍTICAS ANTES DE 1885

Berberes
Fez
Marrocos BARBARIA
Teiza
Berberes EGITO
ALMORÁVIDAS TRIPOU
Tuaregue Cirenaica
El Aalum
Burbus Deserto do Saara Berdoa
Guenziga Nobacia
Fezan
Terga
Kaarca
Tibeste
NÚBIA Dongola
Adever Taganet
Air Kawar
Macúria
PEULES Baria
TERRUR Liptako Alódia Eritréia
Macina KANEM-BORNU
SONGAI Daura Funje Tigre
GANA Katsena Bomu Kanem Wadaf Uagara Interta
Gunme Gobir DARFUR
Gabu HAÚSSAS Bulala Uagara Dancália
MALI
Rano Tibue Lasta
JALOFOS Casa MOSSI Bongu Kano Zegzeg Dar CORDOFÃ Semiem
Futa Jalom DIARA Uagadugu Biram Runga Gojam
Amara Angote
Mandinga Nanumba Nupê Adamawa Fatagar Fate
Sapes
Fante Akam Gonja Dahomé Kororofa
Dar Damote ABISSÍNIA Adial e Mora
Ovo
GU
LIBERIA Denkyra Benin Imarya Dauaro
Danda
T I Ewe OR B AS Ibo Hadia Galla
Bali
S Iaundô
N RU
HA
Biafra Mujaco Buganda Jubo Xarca
IO Bunioro-Kitara
AC Toro
Busoga
Maracatos Mogadiscio
Bolia Budu
Loango Ancolê
Kuba Caranguê Kyamutwara Nalinde
Kagongo Tio Kiziba
Ngoyo Mpangu
Inhangiro Mombasse IMPÉRIO
Macoco Pemba
Mbata
Luda Nimeamay COMERCIAL
Mbamba Pemba
Mpangu Lunda DE KILWA
Kazembe
Mpemba CONGO Mongalo Kilwa
Matamba Maraw Kisiwani
Ndongo Mpangu Zimbas
Sonyo Macuas
Cibolo Bororo COMORES
Mabunda Mocaranga Macuas
Cimbebas Dande
Urungue Rundo
Cimbebas MONOMOTAPA Tonga Sofaia
Barué
Butua IMERLINA
Macasis Teve TANALA
Manica LALAGINA
Damara Sabia
Chamgamira Sono Madagáscar MANDRA
BARA ARINDRANO
Biri Inhambane MAHAFALI
Namaqua Covanas
Hambounas
Zulu
Fumos
Bosquimanos
Kosa
Hotetontes

32 Curso de Extensão Educação Quilombola


3.1 A costa oriental africana

No lado oriental da África, os povos também tendiam a se concentrar


às margens dos rios. Em torno dos afluentes do rio Nilo, estabeleceram-se os
reinos cristãos, contudo, com a expansão do mundo islâmico, essas regiões
caíram sob o domínio árabe. Os reinos dessa região próxima aos afluentes
do Nilo que veremos são: Etiópia, Egito, Naga e Meroé.

Também na costa oriental encontram-se povos localizados na região


costeira do oceano Índico que deram origem à cultura suahili, como as cida-
des de Mogadíscio, Sofala, Quiloa, Mombaça, e Melinde.

3.1.1 A Etiópia

O mais antigo dos reinos da costa oriental africana era o da Etiópia.


Nos primeiros séculos da nossa era, sua região foi influenciada pelos antigos
romanos, que lhes deixaram como legado a religião cristã. Entre os séculos
III e VI, a Etiópia teve como vizinhos outros reinos cristãos: o Egito e a
Núbia. Contudo, com a expansão do mundo islâmico, essas duas regiões
caíram sob o domínio árabe, e a Etiópia persistiu como único grande reino
cristão na África.

Isso foi possível devido à aliança entre os governantes locais e os po-


derosos líderes religiosos. Em troca da construção de enormes igrejas de
pedra e da doação de terras, os líderes religiosos apoiavam as guerras contra
os islamitas.

3.1.2 O Egito

Os egípcios antigos viveram em uma região quente e árida, localiza-


da no nordeste da África. Suas principais cidades concentravam-se em uma
faixa bastante estreita que ocupava o curso do único rio perene da região,
o Nilo, de importância básica para a irrigação das plantações e a criação de
gado. Essa região era denominada pelos historiadores como “crescente fértil”.

O Egito pertence à região denominada pelos historiadores como


crescente fértil, onde, a partir de 6.000 a.C. desenvolveu-se a produção de
excedentes, o comércio, a divisão de trabalho, o surgimento e crescimento

Tecnologias e Saberes Africanos 33


de cidades, a formação de governos centralizados, a construção de diques,
canais de irrigação, templos e pirâmides.

O Egito era governado pelo faraó e os egípcios acreditavam que o faraó


era intermediário entre eles e as forças sobrenaturais, denominadas deuses.

3.1.3 Naga e Meroé

Na região de Kush, próximo a Cartum, ergueram-se os reinos de


Naga e Meroé. Em templos e documentos pictóricos e/ou escritos, os egíp-
cios faziam referência aos contatos estabelecidos com esses povos com os
quais comercializavam ébano, mirra, incenso, escravos (os relatos referem-
-se a anões/pigmeus) e metais. Ali foram encontrados ruínas de pirâmides e
templos identificadores de um império que se desenvolveu em um deserto
antes fértil, graças à irrigação.

O reino Naga cresce com a decadência do Egito e seus reis promo-


vem incursões e conquistam o império egípcio por volta de 725 a.C. da di-
nastia etíope. A invasão assíria (662 a.C.) e a superioridade militar desse
exército fizeram com que os kushitas se retirassem para o sul.

Os anos posteriores atestam o crescimento da capital Meroé (530


a.C.), que se tornou importante centro de fundição e manufatura de ferro,
de onde partiam as trilhas das caravanas que seguiam para o ocidente e para
os portos do Índico.

A cidade se tornou um centro de rotas comerciais que uniam a África


Central com os povos do Mediterrâneo. Em Meroé, houve um grande de-
senvolvimento artesanato de ferro apreciado até pelos estrangeiros.

3.1.4 As cidades do litoral do Índico

Desenvolveram-se entre os séculos XII e XV no litoral africano do


Oceano Índico. Eram cidades-estado voltadas para o comércio internacio-
nal com Oriente Médio e Ásia.

Os povos dessa região adotaram a religião islâmica e desenvolveram


uma intensa vida urbana e comercial.

34 Curso de Extensão Educação Quilombola


Como decorrência desses contatos com outros povos, surgiram ci-
dades como: Mogadíscio, Quiloa, Mombaça, Melinde e Sofala. Os comer-
ciantes árabes ali estabelecidos casavam-se com as populações locais (filhas
de dirigentes ou de uma aristocracia negra), o que favorecia sua integração.
Após séculos de convivência, produziu-se uma cultura específica – o suahili,
cuja maior parte dos elementos é bantu com forte infusão árabe.

A maior parte da população praticava: a pesca; a coleta de frutos do


mar; a agricultura: banana, durra (sorgo), inhame, cóleo (família da horte-
lã), coco, cana-de-açúcar e tamarindo, laranjas, limões, várias leguminosas,
cebolinha, ervilha, ervas aromáticas, e a pecuária: gado grande de chifre,
ovelhas e cabras.

O comércio acontecia em certas épocas do ano, pois a navegação no


Índico era regulada pelo regime das monções (os ventos que sopram du-
rante alguns meses da Índia para a costa africana e depois com igual regula-
ridade, da África para a Índia). Os navios chegavam ao atual Quênia entre
outubro e março e deviam regressar entre abril e setembro. Exportavam
ouro, marfim, cornos de rinoceronte, carapaças de tartaruga, peles de felino,
plumas de avestruz, madeiras, copal, ceras e âmbar (resina fóssil), ferro (a
maior parte dos produtos trazidos do interior do continente), e importavam
cerâmica islâmica e chinesa, porcelana, sândalo, cauris, vidro, seda, esgra-
fitos (ornamentos em metal vazado), celadons (material em vidro chinês).

Vasco da Gama chegou à cidade de Moçambique, passou por Mo-


çamba e aportou em Melinde, onde encontrou abrigo e um excelente piloto
que o guiou até as Índias.

3.1.5 Zimbábue

Entre os séculos XIII ao XV, na região entre os rios Zambeze e Lim-


popo onde hoje estão Moçambique e Zimbábue, se desenvolveram várias
sociedades de povos Xonas que pertenciam à família linguística dos bantos.
Sua história é ainda muito pouco conhecida.

Nessa região, encontra-se grande quantidade de ruínas, cujas mais


imponentes são chamadas Zimbabués. São construções elípticas circunda-
das por vasta muralha independente, com uma passagem passarela e uma
torre cônica.

Tecnologias e Saberes Africanos 35


Figura 5- NIANE, Djibril Tamsir (0rg).História Geral da África – Vol. IV – África do século
XII ao XVI. São Paulo: Ática, 1982. p. 516.

36 Curso de Extensão Educação Quilombola


Figura 6 - Ruínas do Grande Zimbábue In:http://www.samvara.info/por_journey.htm
05/10/2012.

Dentro dessas grandes muralhas viviam a elite da sociedade, com


muito luxo. O grande cercado está dividido numa série de pequenos cer-
cados, nos quais se encontram alicerces de casas razoavelmente grandes.
Nestas foram encontradas muitos enfeites de ouro e cobre, além de tigelas e
esculturas de fina qualidade feitas em pedra-sabão, contas de vidro, porcela-
na e vidro de origem chinesa, persa e síria.

A economia xona era baseada na pecuária, na agricultura e através


dos suaílis, no comércio, principalmente como fornecedores de ouro (cida-
de de Sofala). Os xonas também comercializavam sal, cobre e gado com os
seus vizinhos do interior. O soberano exercia monopólio sobre as atividades
de troca.

Desenvolveram uma sociedade com chefia centralizada, com um


chefe que combinava poderes administrativos e religiosos, intermediário
entre o Mwari e o povo. Mas, como ter um poder centralizado sobre popu-
lações seminômades? Segundo Brian Fagan:

“tem-se a impressão de uma autoridade política e religiosa extre- 6


FAGAN, Brian M.
mamente poderosa, incontestada, cujo domínio sobre uma po- As Origens da Cultu-
ra do Zimbabue.
pulação rural dispersa [pela região] baseava-se em uma espécie
In: História Geral
de crença unificadora, compartilhada por todas as famílias, nos da África. São Paulo,
poderes do Mwari divino ou de outra divindade” 6. Ática, 1981 volume 4.

A maior parte da população estava disseminada em aldeias que se


instalavam e se transferiam segundo os imperativos do nomadismo agrícola
e da pecuária.

Tecnologias e Saberes Africanos 37


Dica No final do século XV, a população e a elite abandonaram a região
do Zimbábue. Provavelmente os campos circundantes tenham se tornado
Filme: “África uma incapazes de manter o circuito de pequenas aldeias e a complexa estrutu-
História rejeitada”. ra da população não agrícola dos zimbabués. Quando as terras cultiváveis
In: http://www.you- esgotaram-se, só restou procurar terras novas para começar novas lavouras e
tube.com/watch?v=c alimentar a população existente.
1P884OBMIk&featu
re=results_video
&playnext=1&list=
PL550C37C14ED
AC555

Figura 7 - Reconstituição de uma aldeia fortificada do século XIII, no Zimbábue.


DREGUER, Ricardo;TOLEDO, Eliete. História: conceitos e procedimentos, 6ª série.
São Paulo: Atual, 2006. p. 105.

3.2 A costa ocidental africana

No século IX, a maioria dos povos que habitavam o continente afri-


cano tendia a se concentrar às margens dos rios onde a terra era mais fértil,
facilitando a agricultura. No lado ocidental, alguns exemplos de sociedades
são os impérios de Gana, Mali e Songhai, próximos aos rios Senegal e Niger.
Estes impérios foram islamizados, e os Estados de Akan e Iorubas, às mar-
gens do rio Volta e do afluente do rio Níger, e o reino do Congo, próximo ao
rio Congo, eram sociedades urbanas.

3.2.5 O Congo

O reino de Congo ocupava uma grande área onde hoje estão o Con-
go e a Angola. A capital era a cidade de Mbanza Congo que, no século XVIII,
tinha mais de trinta mil habitantes.

38 Curso de Extensão Educação Quilombola


A maior autoridade do reino de Congo era o ManiCongo, que quer
dizer “senhor do Congo”. Este era eleito por doze conselheiros, representan-
tes das doze famílias mais importantes do reino.

O reino era dividido em províncias, que eram administradas por go-


vernadores. Estes deviam recolher e enviar ao rei tributos em espécie (sorgo,
vinho, frutas, gado, marfim, peles de leopardo e de leão) e também em di-
nheiro. A moeda do Congo era o nzimbo, uma espécie de caramujo pescado
nas águas da ilha de Luanda.

O comércio no território do Congo era intenso. Os produtos mais


comercializados eram os artefatos de cobre, marfim, ferro, cerâmica e te-
cidos vegetais. O sal, mercadoria rara, era rigidamente controlado pelo rei.

Produziam ferro e sal, criavam galinhas, cachorros e cabritos. Os ar-


tesãos faziam objetos de ferro, cobre e marfim. O vinho feito de palmeira era
muito apreciado.

Eram essas atividades econômicas que garantiram a existência de ci-


dades prósperas, como Mbanza Congo, capital do reino e residência do rei.

Desde o século XVI, pessoas desse reino foram escravizadas pelos


portugueses e vendidas no Brasil para servir como mão de obra nas planta-
ções de cana-de-açúcar.

3.2.6 Estados do Sudão Ocidental: Gana, Mali e Songai

Na região do Sahel, uma área de savanas ao sul do deserto do Saara,


entre os rios Niger e Senegal, vários estados, cujos governantes reinavam so-
bre populações camponesas, que lhes pagavam tributos e os consideravam
seres divinos se desenvolveram. Entre os séculos VII e XVIII, essa região
manteve um intenso contato com os povos islamizados do norte da África.
A partir deste contato, ocorreu a islamização de parte de sua população.

Relatos de historiadores árabes nos permitem conhecer alguns des-


ses impérios, Gana, Mali e Songai, cujo desenvolvimento comercial, cultural
e urbanístico superava na época a maioria dos reinos europeus. Estes três
grandes impérios constituíram as mais importantes civilizações africanas
entre os séculos IX e XV. Gana, Mali e Songai existiram em momentos dis-
tintos e sofreram influências diversas do islamismo.

Tecnologias e Saberes Africanos 39


Figura 8 - DREGUER, Ricardo;TOLEDO, Eliete. História: conceitos e procedimentos, 6ª série.
São Paulo: Atual, 2006. p. 105.

Figura 9 - Expedição Portuguesa comparecendo perante o rei do Congo © National Ma-


ritime Museum. Disponível em:< http://civilizacoesafricanas.blogspot.com.br/2010/06/o-
-reino-do-congo-em-finais-do-seculo-xv.html >. Acesso em: 06 out. 2012.

40 Curso de Extensão Educação Quilombola


O mais antigo foi Gana (Wagadu), já centralizado no século IV; o
segundo foi o Mali, que sucedeu o império de Gana a partir do século XII e,
finalmente, Songai (Gao), cuja expansão abarca os séculos XV e XVI. A cada
novo período de hegemonia, interrompido por lutas dinásticas e invasões
estrangeiras, ocorriam períodos de crescimento na organização do poder
central, no sistema de tributos e do uso de metais preciosos, na ampliação
do comércio internacional e no processo de islamização do povo. 7
Al-Bakri. Descrição
da África. 1087.
(Al-Bakri’s online
guide to Ghana
Empire). Disponível
em:< http://www.
casadasafricas.org.
br/wp/wp-content/
uploads/2011/09/A-
-expansao-arabe-na-
-Africa-e-os-Imperios-
-negros-de-Gana-Ma-
li-e-Songai-secs.-VII-
-XVI-Segunda-Parte.
pdf>.Acesso em: 06
out. 2012.
Abu Ubayd al-Bakri,
filólogo, poeta,
geógrafo, historiador
e erudito religioso,
viveu em Qurtuba
(Córdoba),Al Mariyya
Figura 10- Ki-Zerbo J. História da África Negra I. (Almeria) e Ishbiliya
Lisboa: Publicações Europa-América, 1980. p. 137. (Sevilha), onde mor-
reu em 1094. Embora
al-Bakri, da mesma
forma que Tácito em
Al-Bakri nos conta que: sua obra Germânia
(no século I) nunca
tenha ido pessoal-
mente à região que
“O reino de Gana está povoado pelos povos de Soninke, que descreve em sua
chamam sua terra de Wagadugu ou Wagadu. O nome Gana é o obra, ele conversou
título do rei que governa aquele império. O Estado de Soninke com viajantes e
comerciantes, além
é forte, e seu rei controla 200.000 soldados, 40.000 dos quais
de consultar obras de
arqueiros que protegem as rotas de comércio de Gana. O poder geógrafos muçulma-
do rei de Gana provém do monopólio da enorme quantidade de nos, e pode assim
ouro produzida em seu reino. Esta riqueza permite aos de So- fazer um precioso
ninke construir e manter enormes cidades, além de uma capital registro de segunda
mão sobre aquelas
com uma população estimada entre 15.000 e 20.000 habitantes.
culturas negras.
Soninke também usa sua riqueza para desenvolver outras ativi- (KI-ZERBO, s/d:
dades econômicas, tais como a tecelagem, a ferraria e a produ- 131-141)
ção agrícola” 7.

Tecnologias e Saberes Africanos 41


8
Norte da África Ki-Zerbo nos dá uma noção da grandeza desse império. Segundo ele,
- inclui Marrocos, a vida econômica do império [de Gana] era bastante organizada. A presença
Sahara Ocidental,
Argélia e Tunísia. de poços e de numerosos jardins denota um certo bem-estar agrícola. Os
O Grande Magreb cidadãos ganeses se vestiam com panos de algodão, de seda ou de brocado,
inclui também a consoantes os seus meios. A riqueza do Estado provinha essencialmente do
Mauritânia e a Líbia
comércio e, antes de tudo, do ouro. Foram descobertos em Kumbi pesos tão
9
KI-ZERBO, J. Histó- pequenos que podiam servir para pesar metal precioso. O ouro provinha
ria da África Negra de regiões situadas ao sul: Galam, Bambuque e mesmo Buré, por intermé-
I. Lisboa: Publicações
Europa-América, dio de mercadores chamados wangaras. O soberano exercia uma espécie de
1980 monopólio, que consistia em se apropriar de todas as pepitas descobertas
a fim de restringir a massa de ouro em circulação e evitar desvalorização.
10
PRIORE, Mary Del; Está, aliás, preso ao trono do rei um grande bloco de ouro de pelo menos 15
VENÂNCIO, Renato quilos. Apenas o ouro em pó tinha livre curso. Com frequência, o mercado-
Pinto. Ancestrais:
uma introdução à res do Magrebe8 iam até a região trocar tecidos de lã, de algodão e de seda,
história da África púrpura, anéis de cobre, pérolas azuis, sal, tâmara e figos por ouro em pó,
Atlântica. São Paulo: marfim, goma e escravos9.
Edusp, 2004. p.27..

Rotas comerciais da costa ocidental africana


12
PRIORE, Mary Del;
VENÂNCIO, Renato Desde o século VIII, Gana passou a manter relações comerciais com
Pinto. Ancestrais:
uma introdução à os muçulmanos do norte da África. Para ampliar esse comércio, muitos no-
história da África bres e comerciantes adotaram a religião muçulmana, aumentando assim a
Atlântica. São Paulo:
influência da cultura islâmica no império. Segundo Marry Del Priore: “o al-
Edusp, 2004. p.27
corão chega junto com as barras de sal, os fardos dos tecidos, os cestos, os
. objetos de cobre e os alimentos”10.
Al-Bakri. Descrição
13

da África. 1087. Com isso, Gana tornou-se o primeiro Estado islamizado da costa
(Al-Bakri’s online
guide to Ghana ocidental africana. Apesar da adesão ao islamismo dos grupos dirigentes,
Empire). Disponível a maior parte da população continua adepta às suas religiões tradicionais
em:< http://www. animistas11, mesmo o imperador continua exercendo a justiça e sendo eleito
casadasafricas.org.
br/wp/wp-content/ a partir de práticas ligadas a essas religiões.
uploads/2011/09/A-
-expansao-arabe-
-na-Africa-e-os-
-Imperios-negros- “A gente local, devota de divindades ligadas à terra, às águas, às
-de-Gana-Mali-e- árvores, temia e respeitava este misto de comerciantes e sacer-
-Songai-secs.-VII- dotes, que perambulavam com talismãs ao pescoço – saquinhos
-XVI-Segunda-Parte. de couro contendo um trecho do Corão capazes de protegê-los
pdf>. Acesso em: 06
out. 2012. de feitiçarias e inimigos”12.

42 Curso de Extensão Educação Quilombola


No século XI, o viajante mulçumano Al-Bakri, de Córdoba, em sua 11
As religiões
obra “Descrição da África”, nos dá um bom exemplo da separação entre as animistas eram dife-
rentes entre si, mas
duas culturas religiosas do império de Gana naquele momento: a saudação tinha alguns pontos
das pessoas quando se aproximavam do rei. Os animistas jogavam terra em em comum, como o
sua cabeça em sinal de respeito, os muçulmanos batiam palmas, notável e culto a muitos deu-
ses. Para os adeptos
marcante diferença essa que mostra o baixo grau de penetração islâmica jun- destas religiões, o
to ao rei e à corte de Gana13. ser humano era
parte integrante e
não privilegiado da
A capital do império, Kumbi Saleh, é também um exemplo da con- natureza, cabendo a
vivência da tradição e do islamismo no império de Gana. Ela é dividida em ele, portanto, respei-
tar o equilíbrio
duas partes, uma habitada por muçulmanos letrados com doze mesquitas, e ambiental. Animais,
outra habitada pelo rei e sua corte com um bosque sagrado em seus arredo- plantas, minerais
res, onde vivem os feiticeiros encarregados dos cultos religiosos. tinham quase sem-
pre caráter sagrado.
Embora politeístas,
estes acreditavam
“A capital de Gana é chamada Kumbi Saleh. A cidade consiste na na existência de um
ser supremo, cujo
reunião de duas cidades que se unem em uma planície, a maior
nome variava de
delas habitada por muçulmanos e com doze mesquitas. Kumbi uma região para ou-
Saleh possui também um grande número de juízes e de homens tra: Amma, Nyamê,
instruídos. Ao redor de ambas as cidades há poços de água doce Nzambe, Nyambê.
e potável, e próximos a eles, terras cultivadas com vegetais. A Abaixo dele existem
deuses menores
cidade habitada pelo rei está a seis milhas da outra cidade (mu-
que personificavam
çulmana) e é chamada de Al-Ghana. A área entre as duas cidades fenômenos da
é coberta com casas feitas de pedra e de madeira. O rei tem um natureza e espíritos
palácio e choças de formato cônico, cercadas por paredes. Na que habitavam as
cidade do rei, não muito longe da corte de justiça real, há uma florestas e prote-
giam determinadas
mesquita. Os muçulmanos que vêm em missões ao rei podem
aldeias e famílias. Os
rezar ali. Há ainda uma grande avenida, que cruza a cidade de antepassados mais
leste a oeste”14. antigos de uma famí-
lia também pode-
riam ser ordenamos
A adaptação do islamismo à tradição oral africana é outro exemplo seus deuses. O culto
a essas divinda-
da coexistência entre essas duas culturas no império de Gana (também no des era realizado
Mali e em Songai). A história dos povos africanos era transmitida oralmen- tanto em templos
te. Era pacientemente passada de boca a ouvido, de mestre a discípulo ao como em casas de
família ou ao ar livre
longo do tempo. De modo geral, a importância maior da fala sobre a escrita (AZEVEDO, Gislane
está presente ainda hoje na cultura de muitos povos, nos vários cantos do Campos. História.
planeta. A tradição oral e as características da memória africana não foram São Paulo: Ática,
2005. p. 93).
afetadas pela expansão da religião islâmica no continente africano. De fato,
por onde se espalhou o Islã não adaptou a tradição africana de acordo com .
o seu modo de pensar, mas, pelo contrário, o islamismo incorporou-se a
essa tradição africana na medida em que esta não violava seus princípios

Tecnologias e Saberes Africanos 43


Ibidem.
14
morais. Mesmo com a chegada do islamismo à região, a grande memória
africana e as formas de sua transmissão oral são feitas pelos tradicionalistas
15
Almorávidas foi e pelos Dielis (Griots), e continuarão sendo mesmo com a islamização da
um grupo islâmico sociedade. Logo que a população dessa região aprendeu o árabe, passou a
formado no Man-
greb (ocidente utilizar suas tradições ancestrais (tradição oral) para transmitir e explicar
em árabe) – atual o islamismo.
Marrocos – que
tinha a intenção
de lançar-se em O processo de islamização dessa região do continente africano ace-
Guerra Santa pela lerou devido ao avanço almorávida15 sobre o império de Gana no século XI.
África para impor a
Com a desagregação do império de Gana neste período, criou-se uma aber-
verdadeira fé.
tura para uma sucessão política na região. Quem tomou o poder no século
XIII foi o Mali, que formou um dos maiores e mais conhecidos impérios da
costa ocidental africana.

Figura 11 - Ki-Zerbo J. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América,


1980. pg. 165

Dominando as rotas comerciais e as regiões auríferas, os imperado-


res do Mali intensificaram suas relações com os islâmicos.

Relatos de viajantes árabes indicam que no século XV mais de 12


mil camelos atravessavam o deserto do Saara anualmente, unindo o Mali ao
Norte da África, chegando ao Cairo.

O Imperador e os nobres malianos converteram-se ao islamismo,


absorvendo muitos aspectos da cultura islâmica. Entre eles, destacam-se a

44 Curso de Extensão Educação Quilombola


utilização de contratos escritos e de transações comerciais a crédito. A ado-
ção dos mesmos elementos de transações comerciais utilizados por seus
parceiros possibilitava um maior controle sobre as relações comerciais, evi-
tando prejuízos.

A alfabetização da classe dirigente tornou a língua árabe como ofi-


cial dos letrados. Houve também uma disseminação de escolas de teologia
por essa região africana, intensificando assim a prática do islamismo.

Algumas cidades do Mali tornaram-se grandes centros mercantis e


intelectuais da África. Exemplo disso é a cidade de Tombuctu que, por ser
entrecortada por rotas comerciais que atravessavam o Saara e a região das
florestas, se tornou um grande centro comercial e intelectual dessa região.
Tombuctu tinha uma das maiores universidades do período, com unidades
de ensino independentes, com aulas de direito islâmico, gramática, filosofia,
astronomia, história, geografia e religião.

Seus imperadores chamados de Mansas empreenderam a peregri-


nação a Meca no mês do Ramada.

Apesar da adoção dessas práticas islâmicas, os malianos mantive-


ram diversas práticas tradicionais próprias da sua cultura.

Os imperadores continuaram sendo considerados intermediários


entre os homens e os deuses. Sacerdotes praticavam ritos animistas na corte.
O islamismo atingiu uma minoria das camadas subalternas da população,
que continuaram com suas práticas animistas.

Figura 12 - Manuscrito Catalão de 1375. Mansa Musa segura na mão direita um globo de ouro e logo em baixo
está a representação da cidade de Tumbuctu. In: DAVIDSON, Basil. Os Impérios Africanos. História em Revista
(1300-1400). A Era da Calamidade. Rio de Janeiro: Abril

Tecnologias e Saberes Africanos 45


O sucessor do Mali, o Império de Songai, se tornou um típico im-
pério islâmico. Seus governantes receberam o título de califas do Sudão e
promulgaram a constituição do império baseados nas leis islâmicas. Impor-
taram da Arábia doutores da lei islâmica, arquitetos e escritores.

Songai século XV

Figura 13 - KI-ZERBO, J. História da África Negra I. Lisboa: Publicações Europa-América,


1980. p. 181.

Cidades como Djenné, Tombuctu e Gao tornaram-se centros comer-


ciais e culturais conhecidos em todo mundo islâmico.

Songai expandiu-se para leste, dominou algumas cidades hauçás e se


manteve como o estado mais forte do Sudão ocidental até 1591, quando foi
invadido por exércitos vindos do Marrocos. O que havia de mais refinado
nessa região, construído ao longo de séculos, foi sufocado pelos invasores.

Mesquitas, escolas e bibliotecas foram destruídas, os sábios foram


deportados, as estruturas de mando e justiça foram desmanteladas. A ur-
banização e o comércio cederam espaço para as atividades agrícolas e de
16
SOUZA, Marina pastoreio, as religiões tradicionais voltaram a florescer e o islã, que se ali-
de Mello. África e mentava das caravanas que atravessavam o deserto levando e trazendo,
Brasil Africano. São
Paulo: Ática, 2006. P além de mercadorias, peregrinos e especialistas em teologia, passou para se-
31-36. gundo plano16.

46 Curso de Extensão Educação Quilombola


Quadro dos grupos sociais dos impérios de Gana, Mali e Songai
Grupos Sociais Papéis Sociais
- Comandavam as caravanas;
Grandes comerciantes
- Comandavam o comércio local.
- Vendedores de alimentos, de roupas e de
Pequenos comerciantes
armas.
- Ferreiros;
Artesãos - Marceneiros;
- Ouríveres.
- Responsáveis pela agricultura;
- Recolhiam o mel;
Camponeses livres
- Pagavam impostos;
- Participavam das atividades militares.
- Trabalhavam nas terras do imperador e nobres;
Camponeses escravos - Participavam das atividades militares;
- Exerciam tarefas domésticas.
- Assessoravam o imperador;
- Governavam as províncias;
- Responsáveis pelo gerenciamento da agricultu-
Nobres
ra, da navegação e das florestas;
- Administravam o tesouro do rei;
- Responsáveis pelas guerras.
- Líder político;
Imperador
- Intermediário entre os homens e os deuses.
Tradicionalistas - Guardiões da tradição oral africana
- Transmissão das mensagens dos reis;
- Transmissão da história antiga do seu povo;
Dieles (Griots) - Músicos;
- Comediantes;
- Professores.
Tombuctu

Tombuctu tinha posição privilegiada, pois tinha um cais sobre o rio niger a cidade
despontou no século XII, quando servia de ponto de chegada das caravanas que atra-
vessavam o Saara vindas do Oriente. Inicialmente era habitada apenas pelos nômades
do deserto, os tuaregues. Mas, aos poucos, os malienses passaram a ser maioria, e
Tombuctu transformou-se em uma cidade negra, passando no século seguinte a ser
governada pelos senhores de Mali.

A partir de então, Tombuctu continuou prosperando e se tornou um dos mais im-


portantes centros mercantis e intelectuais do mundo medieval. Segundo um relato
da época, “em Tombuctu a muitos juizes médicos e letrados, e todos recebem bons
estipêndios [salários] do rei, que tem grande respeito pelos homens de saber. Livros
manuscritos têm ali grande procura e são importados (...). O comércio livreiro é aí
mais lucrativo que qualquer outra espécie de negócio.”

No final do século XV a cidade possuía cerca de 150 escolas, com milhares de estu-
dantes vindos de vários lugares. Tombuctu possuía também uma universidade, com
unidades de ensino independentes, entre os quais estava a mesquita de Sankoré.

Tecnologias e Saberes Africanos 47


Os professores eram bem pagos e podiam dedicar todo o seu tempo ao ensino e a
pesquisa. O aluno iniciava seus estudos aprendendo a ler e a recitar passagens do Co-
rão em árabe. Depois ingressava no grau superior, onde devia aprender a ciência que o
Islã conhecia. Na Universidade de Tombuctu, havia aulas de direito, gramática, filosofia,
astronomia, história, geografia e religião. O ramo do direito era o mais desenvolvido.

Porém, o conhecimento produzido naquela universidade permaneceu restrito a elite


africana. Não chegou a incorporar as línguas e culturas locais e, por isso, não foi aces-
sível à maioria da população.

Bibliografia:
MAESTRI, Mário. História da África negra pré-colonial. P.29)
BOULOS JUNIOR,Alfredo. Coleção História: sociedade e cidadania. São Paulo. FTD, 2004.

3.2.7 Iorubás

Os iorubás desenvolveram-se entre os séculos XI e XVII entre os rios


Volta e baixo Níger, uma região de florestas tropicais e savana, elementos
responsáveis por uma terra muito fértil de chuvas abundantes. Estes cons-
truíram uma sociedade tipicamente urbana, com uma organização social e
política que se aproximava do tipo cidade-estado e detentora de uma econo-
mia diversificada e ofícios especializados. Esse povo deu origem aos atuais
países do Benin e Nigéria, o mais populoso da África.

Cidades Iorubás, século XV

Figura 14 - NIANE, Djibril Tamsir (0rg).História Geral da África – Vol. IV – África do século XII ao XVI.
São Paulo: Ática, 1982.

48 Curso de Extensão Educação Quilombola


Quase não existem textos escritos com informações detalhadas de 17
Mito: geralmente
como viviam estes povos no passado. Há vestígios arqueológicos e as his- são histórias que
explicam a origem
tórias contadas pelos mais velhos, principalmente na forma de mitos17, que de coisas diversas,
nos falam dessas sociedades. como a criação do
mundo, das plantas
e dos animais, do
Segundo a tradição iorubá, a sua cidade sagrada, Ilê Ifé ou somen- homem e da vida
te Ifé, teria sido fundada pelo orixá-rei Odudua, criador da Terra e ances- em grupo. Os mitos
buscam dar explica-
tral de todos os homens. Seu filho Okambi teria tido sete filhos, que vi-
ções que valem para
riam a ser reis de Owa, Sabe, Popo, Benin, Ilé, Ketu e Oyo, as principais todos a ele ligados e
cidades iorubás. que atribuem iden-
tidades a essas pes-
soas. Os mitos se
apresentam como
“Na variante mais divulgada do mito, diz-se que Olodumaré ou verdades absolutas,
mesmo que recor-
Olorum, o deus supremo, lançou, do céu até as águas ou pânta-
rendo à linguagem
nos que lhe ficavam abaixo, uma corrente, pela qual fez descer dos símbolos, mas
[seu filho] Odudua, com um pouco de terra num saco ou numa são reformulados
concha de caracol, uma galinha e um dedenzeiro. Odudua der- conforme as cir-
ramou sobre a água a terra, e nesta colocou a palmeira e a ave. cunstâncias da vida
dos homens que
A galinha começou imediatamente a ciscar o solo e a espalhá-lo,
os repetem, sem
aumentando cada vez mais a extensão da terra. Daí o nome que deixar de alterá-los
tomou o lugar onde isto se deu: Ifé, o que é vasto, o que se alar- quando preciso.
ga” (COSTA E SILVA, 2006, p. 479-480).

Segundo Ki-Zerbo, Ifé foi o centro local da dispersão iorubá e por 18


Obá é o título do
isso foi reconhecida por todos os iorubanos como a fonte mística do poder principal chefe das
cidades iorubás e
e da legitimidade: o lugar de onde partia a consagração espiritual dos obás oni é o principal
pelo oni18 de Ifé, e para onde retornavam os restos mortais e as insígnias de chefe religioso dos
todos os reis. Todos os obás diziam que seus antepassados haviam saído de iorubás e governan-
te da cidade de Ifé.
Ifé, sendo membros de uma mesma família real, por isso o oni de Ifé tinha
ascendência espiritual sobre quase toda a sociedade ioruba, e era ele que
distribuía os símbolos reais. Alafim é o princi-
19

pal chefe da cidade


de Oyo.
Outra cidade importante desta região foi Oyo que, segundo a tra-
dição iorubá, teria sido fundada por Oraniã e seu filho sucessor Xangô, o
senhor do raio e do trovão.

Oyo, junto com outras cidades e aldeias próximas, formavam uma


confederação de cidades que prestavam obediência ao alafim19 de Oyo, as-
sistido por um conselho de sete membros, chamados oyo-mesis. Estes eram
grandes eleitores do sucessor do rei, pois seu reinado parece ter sido inicial-
mente limitado a quatorze anos. Cada cidade submetida à sua autoridade

Tecnologias e Saberes Africanos 49


tinha uma organização autônoma, obedecia ao seu chefe e decidia sobre
seus assuntos, mas em certas situações aquele aceitava a liderança do ala-
fim, que tomava decisões junto com seu conselho, relativas ao conjunto
de cidades.

Vestígios arqueológicos como caminhos, calçadas e muros de pedra


dão uma noção de como eram estas cidades. Algumas eram cercadas de mu-
ros de pedra e deveriam abrigar artesãos, comerciantes e funcionários do es-
tado. Os comerciantes circulavam em canoas pelos rios e, assim, os produtos
da floresta chegavam, depois de passarem por muitas mãos, aos mercados
ligados às cidades da região do Sahel e ao comércio saariano.

Nos arredores das cidades viviam agricultores e pastores que abaste-


ciam de alimento os moradores. A agricultura apoiava-se no cultivo de tu-
bérculos, como inhame, na produção de bananas e no aproveitamento dos
produtos possíveis de serem extraídos das palmeiras, como o óleo.

Figura 15 - Estas paredes de 6m pertenciam a Kosso, a cidade onde as tradições afirmam


que Sango - rei de Old Oyo a poucos quilómetros mais a sul de Oyo - tornou-se o Deus
do Trovão. Disponível em:< http://csweb.bournemouth.ac.uk/africanlegacy/old_oyo.htm>.
Acesso em: 07 out. 2012.
“Cada uma dessas cidades eram divididas em bairros governa-
dos por um chefe seccional. Cada uma dessas cidades possuía os
seus nichos sagrados, seu palácio real, as suas praças de merca-
do, os seus lugares de reunião, onde o governo da cidade podia
tratar dos seus assuntos e o povo discutir as novidades do dia.
Cada uma delas tornou-se famosa pelos seus artífices, que tra-
balhavam diversos ofícios. Uns especializavam-se na tecelagem

50 Curso de Extensão Educação Quilombola


e tintura de algodão, outros metalurgia ou no ensino dos sacer-
dotes, outros ainda na escultura em madeira ou na guerra ou no
comércio longínquo. Desta maneira os [...] iorubás estavam uni- DAVIDSON, s/d,
20

dos por uma rede de crenças e interesses comuns”20. 126).

A religião das sociedades iorubás tradicionais se caracteriza pelo 21


“Os iorubás [...]
culto a um deus superior – Olodumaré – e a um conjunto de divindades organizavam o
calendário numa se-
intermediárias – orixás, cuja intervenção e vontade regiam a vida humana. mana de quatro dias.
Os orixás foram ancestrais que em vida acumularam saber e poder sobre O ano era marcado
as forças naturais e humanas, em virtude dos quais transitaram um dia da pela repetição das
estações do ano [...].
condição de homens a de deuses. Cada um personifica certas forças da na- A duração de cada
tureza e se associam a um culto que obriga os crentes a oferecer alimentos, período de tempo
era marcado por
sacrifícios e orações para aplacar suas iras e atrair seus favores21.
eventos experimen-
tados e reconhe-
Os membros de uma comunidade cultuam um orixá, que seria seu cidos por toda a
comunidade. [...]
antepassado em comum, isto dá um sentido que supera os vínculos de san- Cada um dos quatro
gue a noção de família para essa sociedade. dias da semana
ioruba tradicional
é dedicado a uma
Os iorubás, principalmente os habitantes da cidade de Ifé, espe- divindade, regulando
cializaram-se no artesanato de terracota e metal. Entre as peças de arte que uma atividade
restaram daquele período destacam-se as esculturas de cabeças em estilo essencial para a vida
de todos os iorubás
naturalista, consideradas hoje em dia obras de arte de rara qualidade. tradicionais [...] a
contagem dos dias
Segundo Alberto da Costa e Silva: e das semanas era
praticada em função
de cada evento, de
modo que a mulher
“Foi esta arte admirável que deu fama a Ifé. [...] As cabeças era capaz de con-
trolar a duração de
mostram-se maravilhosamente acabadas. [...] O escultor teve sua gestação, assim
provavelmente diante de si modelos vivos. Mas [...] o entendi- como o homem
mento que o escultor tem de um rosto humano ideal, de como é contava o desenro-
ou deve ser a face da beleza, dirigi-lhe, assim, a mão, ao retratar lar dos seus cultivos,
o modelo: ele mentalmente seleciona, corta e acrescenta traços mas sem datação”
(PRANDI, 2205, p.
às feições da pessoa cuja imagem se propõe reproduzir. [...] Na 27-28).
maior parte das terracotas de Ifé, o rosto humano é de um per-
feito equilíbrio, distante, como se fora de um deus, das agruras e
defeitos humanos, imóvel na mais profunda serenidade”.

Os olhos estão abertos e sem pupila [possivelmente eram pinta-


dos, pois foram encontrados restos de tinta nas esculturas]. As
linhas das pálpebras são fortemente traçadas e, nos cantos dos
olhos, a pálpebra superior se sobrepõe à da inferior. O contorno
dos lábios é assinalado em leve relevo. Cavam-se fundos os can-

Tecnologias e Saberes Africanos 51


tos da boca. O pescoço está marcado por ranhuras. As sobran-
celhas parecem raspadas: apenas sugeridas. A testa é em geral
saliente. Em alguns exemplares, as feições estão inteiramente
cobertas por delicadas estrias, que descem verticalmente do
toucado ou do nascimento do cabelo e se arredondam no quei-
xo. Provavelmente representam escarificações, mas, aos olhos de
hoje, acentuam e dão ritmo ao modelado do rosto e distribuem,
atenuando, o derramar da luz sobre a superfície.

A fidelidade às regras da composição faz com que essas cabeças


hieráticas pareçam todas análogas. Nenhuma sorri. Nenhuma
parece, se vista com pressa, mostrar qualquer emoção. Dão a
ideia, ao primeiro olhar, de estarem todas apartadas do mundo,
numa quietude indiferente. No entanto, não há duas iguais. [...]
As cabeças em cobre, bronze ou latão apresentam-se em tudo
semelhantes às de terracota. São transcrições destas em outro
meio, no qual as linhas se cavam e acentuam – pois a luz, em vez
22
COSTA E SILVA, de absorvida pelo barro, é refletida pelo metal, salientando, por
2006, p. 484-487. contraste, as sombras. Desse modo, a suavidade se transforma
em força”22.

Figura 16 - Palácio de Oyo no final de 1890 que mostra portais com magníficas entradas.
Disponível em:<http://csweb.bournemouth.ac.uk/africanlegacy/old_oyo.htm>.
Acesso em: 07 out. 2012.
Essa escultura tinha caráter essencialmente religioso. Eram utilizadas
nos rituais e nos sepultamentos dos reis de Ifé. Mas o que representavam es-
sas cabeças? Segundo Ryder, na maior parte das vezes, o oni, chefe religioso
de Ifé. Elaboradas após a sua morte, eram colocadas na sepultura. Também
representavam os ancestrais da comunidade, pois o culto a estes era funda-
mento da religião tradicional. Ifé criou uma arte para perpetuar a lembrança

52 Curso de Extensão Educação Quilombola


“daqueles que velam pelos vivos”23. Esta arte, porém, não ficou circunscrita RYDER, Allam
23

à Ifé; outras cidades requisitaram junto ao oni escultores, que iniciaram os Frederick Charles,
Do Rio Volta aos
seus artesãos na técnica de moldagem de metais e na arte com a qual se pres- Camarões. São
tava homenagem aos ancestrais. Paulo: Ática/Unes-
co,1985, p. 373)

COSTA E SILVA,
24

2006, p. 486.

COSTA E SILVA,
25

2006, p. 487.

Figura 17 - Ife, Iorubá - The Minneapolis Institute of Arts. In: http://www.metmuseum.org/


toah/hd/ifet/hd_ifet.htm 17/05/08

Essas esculturas de cabeças humanas constituem a maior parte, e


mais divulgada, do acervo artístico de Ifé. No entanto, seus escultores reali-
zavam trabalhos de um realismo que pressupunha o retrato de um ser huma-
no com todas as suas excreções e defeitos.

“Numa delas, um velho obeso abre a boca, a deixar ver os dentes


e a língua num gesto que não se sabe se de maldade, espanto
ou horror. Traz ele, pendurada ao pescoço, uma corrente com
pequena caveira”24.

Faziam-se também em Ifé, no mesmo período, representações de ca-


beças humanas extremamente simplificadas e estilizadas. “Cones com olhos
e boca toscamente desenhados e dois pontos a fingir ser um nariz. [...] Os
artista de Ifé moldavam também no barro cabeças de animais que serviam
de tampa a vasos de uso religioso. Carneiros, leopardos, elefantes, hipopóta-
mos, extremamente estilizados e ornamentados [...]”25.

Tecnologias e Saberes Africanos 53


Grande parte dos negros trazidos para o Brasil integralizava esta rica
e complexa cultura iorubá (conhecidos na Bahia como nagôs) e deixaram
forte marca na cultura brasileira.

Referências

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www.youtube.com/watch?v=JYp6dM0dNxM>.

Kiriku e a Feiticeira, de Michel Ocelot (baseado em uma história da Costa Ocidental


Africana) In:

4.TÉCNICA E TECNOLOGIA AFRICANA NA


FORMAÇÃO BRASILEIRA26 26
Texto reelaborado
por Patrícia da Silva
Soares a partir de:
CUNHA Jr. Henri-
Entre os séculos XVI e XIX, cerca de 11 milhões de africanos foram que. Tecnologia afri-
trazidos para a América como escravos, sendo 4 milhões para o Brasil. As cana na formação
brasileira. Rio de
principais etnias desembarcadas aqui foram a dos sudaneses e a dos bantos. Janeiro: CEAP, 2010

Os sudaneses englobam os originários da África ocidental, que vi-


viam em territórios hoje denominados Nigéria, Benin (ex-Daomé) e Ton-
go. São, entre outros, os iorubás ou nagô (subdivididos em kêto, ijexá, egbá
etc.), os jeje (ewe ou fon) e os fanti-ashanti. Entre os sudaneses também
vieram populações de algumas nações islamizadas, como haussá, tapa, peul,

Tecnologias e Saberes Africanos 55


fula e mandinga. Estas populações se concentraram mais na região açucarei-
ra da Bahia e de Pernambuco, e sua entrada no Brasil ocorreu sobretudo em
meados do século XIX.

SILVA,Vagner Gon-
27
Os bantos reúnem as populações oriundas das regiões localizadas
çalves da. Confusão nos atuais Congo, Angola e Moçambique. São os angolas, caçanjes e ben-
sobre a Origem. In:
História Viva: Gran- guelas, entre outros. Deste grupo, calcula-se que tenha vindo o maior nú-
des Religiões Cultos mero de escravos. Os bantos se espalharam por quase todo o litoral e pelo
Afro. São Paulo, v.6. interior, principalmente em Minas Gerais e Goiás. Sua vinda começou em
n. 1, p. 8 - 9, 2007.
fins do século XVI e não cessou até o século XIX27.

Os navios negreiros que aqui chegaram traziam mais do que braços


escravos para trabalhar. Em seus porões, viajavam também culturas, idio-
mas, religiões e técnicas.

A história do Brasil como é apresentada hoje induz muitas ideias er-


rôneas ou incompletas sobre as populações negras. No acervo tecnológico
transmitido pelas populações africanas ao país não aparecem nem mesmo
as profissões exercidas pelos africanos e afrodescendentes na condição de
escravizados ou de livres. Vários conhecimentos técnicos e tecnológicos im-
portantes foram desenvolvidos dentro do continente africano ao longo de
sua história. Outros vieram de intercâmbio com a China, Índia e as regiões
árabes. Importantes conquistas na matemática, como geometria e teoria de
sistemas dinâmicos, na astronomia e mesmo na medicina foram realizadas
na África.

Os conhecimentos técnicos e tecnológicos tiveram sempre difusão


por todo o continente africano devido às rotas de comércio entre os diversos
países africanos e entre as diversas regiões do mundo antigo. As agriculturas
tropicais tiveram grande desenvolvimento na África antes do século XVI.
Culturas como cana-de-açúcar, banana, café, algodão, arroz e amendoim
eram bastante desenvolvidas em regiões africanas, como também produtos
como açúcar e tecidos. A tecelagem africana era exportada para a Europa no
século XVII, de países como o Congo e o Kano.

As culturas africanas transplantadas para o Brasil e as experiências


históricas de sociedades agrárias e urbanas africanas são resultantes de milê-
nios de aprimoramentos diversos. Estes vieram desde mais de 4000 anos an-
tes da era cristã das civilizações da antiguidade da região do vale do Rio Nilo,
de povos como os núbios, os egípcios e os etíopes, chegando aos reinos dos

56 Curso de Extensão Educação Quilombola


séculos XII ao XV na região do vale do Rio Níger. Neste lugar, encontramos
exemplos como os do Gana, Mali e Songai, ou em outras regiões como o
reino do Congo, na África Central e os almorovitas, no norte africano.

Entre os séculos VI e XIV no norte africano, desenvolveram-se cul-


turas influenciadas pela expansão islâmica no continente africano. São cul-
turas híbridas de povos diversos, como os berberes e tuaregues, portanto,
povos africanos que ficaram conhecidos na literatura brasileira de uma ma-
neira geral, como os mouros. Os mouros foram populações africanas com
grande influência da cultura árabe. Estes também influenciaram as regiões
do sul da Europa, como Portugal e Espanha.

Grande parte do acervo de conhecimentos que possibilitou a em-


presa de produção colonial portuguesa no Brasil é africano. Embora mui-
tas culturas coloniais sejam pensadas de forma errada como portuguesas, a
exemplo da cultura do couro e do gado, isto se deu devido ao desconheci-
mento pelos historiadores e intelectuais brasileiros do passado e do desen-
volvimento da história da África.

4.1 A importação de mão de obra especializada

A colonização do Brasil tem como peculiaridade as agriculturas


tropicais que os portugueses desenvolveram e a realização da exploração
de recursos naturais que não eram do conhecimento europeu. O conhe-
cimento africano viabilizou a colonização europeia nos trópicos, pois foi
a mão de obra africana que os ocupou muitos dos campos da produção
colonial, como fonte de conhecimento da base técnica e tecnológica.

O imigrante africano foi caracterizado, no Brasil, como mão de


obra bruta, como força apenas de massa muscular. Na história do Brasil,
este não é caracterizado como um ser pensante e dotado de conhecimen-
tos. Os nossos historiadores estão muito longe de recuperar a humanidade
do escravizado.

No campo dos trabalhos profissionais, temos as populações afri-


canas e os afrodescendentes realizando todos os tipos de trabalhos exis-
tentes na época. As profissões de ofícios que dependiam de formação ao
lado de um mestre do ofício muitas vezes têm estes mestres africanos. Um
exemplo importante é das forjas de ferro em Sorocaba, no início da me-

Tecnologias e Saberes Africanos 57


talurgia brasileira. Outros exemplos são os de marceneiros, carpinteiros,
28
KARASCH, Mary. ferreiros, oleiros, artistas, professores e construtores existentes no Rio de
A Vida dos Escravos Janeiro no século XIX28.
no Rio de Janeiro
1808–1850. São
Paulo: Companhia No Brasil, a cultura das elites portuguesas e brasileiras tem um grau
das Letras, 2000.
elevado de dependência dos africanos e afrodescendentes, visto que os
SILVA, Adriana Maria.
Aprender com trabalhos nas áreas da música clássica, do teatro e das artes foram realiza-
Perfeição e sem dos como trabalhos anônimos de africanos e afrodescendentes ilustrados.
Coação: Uma Escola
A própria instrução dessas elites dependeu em muito de afrodescenden-
para Meninos Pretos
e Pardos na Corte. tes. Exemplo disso são os africanos alfabetizados que vieram da região su-
Brasília: editora danesa, viviam em Salvador e seu ofício aqui no Brasil era escrever cartas
Plano, 2000.
para os colonizadores portugueses analfabetos.

4.2 Os ciclos da economia brasileira e a África

Os principais ciclos econômicos da nossa história são: extrativismo


de produtos tropicais, da cana e do açúcar, da mineração de ouro, do al-
godão e do café. Houveram outros ciclos de importância relativa menor e

Figura 19 - Projeto Abá, Uniafro, MEC/SECAD/UEG e Projeto para Estudar História da África - CiAA/ UFG/UEG/
FAPEG/CAPES, 2008-2011.

58 Curso de Extensão Educação Quilombola


Figura 19 - Projeto Abá, Uniafro, MEC/SECAD/UEG e Projeto para Estudar História da África - CiAA/ UFG/UEG/
FAPEG/CAPES, 2008-2011.

Figura 20 - Bolsa em couro proveniente da Figura 21- Sandália em couro sudanesa, fabricada na
região de Tombuctu. Fonte: H. Barth,Travels and região de Kano. Mercadorias desse tipo eram exporta-
discoveries in Northern and Central Africa, Nova das em grandes quantidades para a África do Norte.
Iorque, Harper and Brothers, 1857. © Royal Fonte: H. Barth,Travels and discoveries in Northern
Commonwealth Society Library, Londres. and Central Africa, Nova Iorque, Harper and Brothers,
1857. © Royal Commonwealth Society Library, Londres.

Tecnologias e Saberes Africanos 59


existiram áreas econômicas que não constituem um ciclo, mas têm impor-
tância econômica, como a pesca, cujo conhecimento africano e técnicas
chegaram pelas embarcações.

Os ciclos econômicos agrícolas são de produtos tropicais desco-


nhecidos da Europa antes de 1400 e de grande expansão em amplas re-
giões africanas. As culturas da cana-de-açúcar e do café são culturas de
complexidade na sua base técnica, envolvendo diversas etapas e diversos
conhecimentos quanto à escolha do solo, ao plantio, tratamento da planta,
à colheita e ao processamento do produto. Grande parte destes conheci-
mentos foram importados da África, através da mão de obra africana. Al-
guns instrumentos agrícolas, como a enxada, foram trazidos para o Brasil
pelos povos bantos.

No caso do açúcar, a complexidade aumenta quando da sua produ-


ção, que era um segredo dos portugueses obtido da mão de obra africana
já em Portugal, nos Açores, aperfeiçoado no Brasil. Segredo que foi trans-
mitido para os holandeses quando estes invadiram Pernambuco, região
na época com grandes engenhos. Depois, quando expulsos de Pernam-
buco, levaram para o Caribe. O café é uma planta etíope e o seu cultivo
era realizado em uma ampla região da África Oriental. A cultura do café é
uma cultura agrícola de grande complexidade, um processo de divisão do
trabalho bastante sofisticado para a agricultura dos séculos XVIII e XIX.

Outros produtos agrícolas tiveram importância econômica regio-


nal e são de origem africana, como o “coco da Bahia” e o azeite de dendê.
Mesmo o inhame e o milho, plantas básicas da alimentação nacional que
por muitos são considerados de origem indígena, eram culturas ampla-
mente realizadas na África e de conhecimento da mão de obra africana
instalada no Brasil.

A farmacologia brasileira mereceria um estudo mais detalhado


quanto à origem dos produtos africanos e sua importância na saúde e no
campo econômico. O uso de jardins com ervas acromáticas, como é o caso
da arruda, teve um papel de grande importância no combate às doenças
infecciosas transmitidas por insetos. As casas de negros que tinham arru-
da tinham menos moscas e estavam mais imunes à transmissão de doen-
ças. Na área dos males estomacais, as farmácias na atualidade vendem um
produto conhecido como “Boldo do Chile”, que é de origem africana.

60 Curso de Extensão Educação Quilombola


A mineração brasileira do período colonial tem como principal
produto a produção de ouro em grandes escalas. Vejam que a escala de
produção não implica apenas a abundância do produto, mas também as
formas técnicas da sua extração. A mina de grandes proporções, mesmo
que a céu aberto, faz parte de um conhecimento específico. A mineração
na mesma forma e na mesma escala da brasileira já era realizada em pelo
menos duas regiões africanas, da África ocidental e da região de Zimbábue.
O período do ciclo do ouro no Brasil foi um período de muita inovação de
técnicas, graças também à base de conhecimento africano transferido para o
Brasil. A exploração muitas vezes não se restringe à mineração, mas também
à fundição, às profissões de ourives e à produção de joalheria.

Os ciclos econômicos da história brasileira obtiveram muito sucesso


devido aos conhecimentos da mão de obra africana. Muitas especializações
agrícolas e de mineração encontradas na África não eram de domínio eu-
ropeu e foram realizadas no Brasil em virtude da importação de africanos.

Técnica de fundição por cera perdida

Há muitas modalidades de arte africana; uma delas é a fundição por


cera perdida.Veja no esquema e no texto a seguir como os iorubás utilizavam
esta técnica, que era feita em diversas etapas.

“Á técnica é associada à Fundição por Cera Perdida, em que o profis-


sional esculpe, modela a peça em cera, que segue para a fundição, onde será
transformada em peça de metal” [...].

A Fundição por cera Perdida surgiu com o homem primitivo, na bus-


ca por ferramentas mais eficientes. As lanças por exemplo, eram esculpidas
em cera de abelha. Estas peças eram envolvidas com argila e levadas ao fogo
para endurecer. Em seguida, o metal incandescente era derramado no inte-
rior da argila – que era quebrada – e eis que surgia a ponta de lança de metal.
“A técnica foi aperfeiçoada e hoje são usados equipamentos mais sofistica-
dos que possibilitam peças com acabamento detalhado perfeito.”

Revista BR&Jóias – Brasil Relógios & Jóias. São Paulo: Dimep Gráfi-
ca, Editora e Publicidade Ltda, janeiro de 2005. p. 52.

Tecnologias e Saberes Africanos 61


4.3 As tecnologias têxteis

29
CUNHA Jr., Hen- Já no século XV, a difusão da manufatura têxtil já estava muito difun-
rique / MENEZES, dida em todo território do continente africano. Então, os africanos introduzi-
Marizilda dos San-
tos. Tear e o Saber ram no Brasil uma forma de tecelagem para fabricar panos para roupas, assim
Africano na Área como para outras utilidades, entre elas, redes de dormir, velas de embarcações
Têxtil. III Congresso e sacaria para embalagem de produtos agrícolas e alimentícios diversos. Boa
Brasileiro de Pesqui-
sadores negros. São parte do vestuário utilizado pelos africanos e seus descendentes no Brasil Co-
Luís: Universidade lônia e Império é de fabricação artesanal própria. A tradição da confecção de
Federal do Mara-
redes de dormir no nordeste brasileiro permanece até hoje, utilizando a forma
nhão – Ma. 2004.
têxtil de tear vinda da África29, da mesma forma que a produção de pano da
costa para as atividades religiosas do Povo de Santo nos candomblés do Brasil.

Diversas regiões africanas são conhecidas no passado da história afri-


cana (mesmo antes de 1500) como centros importantes de produção têxtil.
Destacam-se entre elas: as regiões de Kano, na Nigéria, devido à produção de
índigo (atual Indigo Blue); a região do reino do Congo; as regiões do Mada-
gascar e do Oceano Índigo, também de produção têxtil, e também as regiões
do Marrocos como produtoras de tapetes e tecidos.

Os fios têxteis vindos tanto de fibras vegetais como de fibras animais


eram encontrados em diversas regiões e com diversas formas de cultivo e
produção. Além das técnicas têxteis, a experiência neste ramo de manufatura
engloba outra, no campo da química, nas áreas da produção de tinturas e fi-
xadores de cores.

4.4 Os conhecimentos na construção

Vários africanos e afrodescendentes foram projetistas renomados no


passado brasileiro. Uma de suas técnicas que foi de grande importância na
construção colonial brasileira foi a do uso de óleo de baleia para as ligas da
argamassa nos edifícios. Entre os construtores livres do mobiliário urbano e
dos edifícios religiosos, se destaca no país Antonio Francisco Lisboa, o aleija-
dinho, e suas construções no século XVIII, em Minas Gerais.

As construções de obras em galerias, em minas e mesmo em obras pú-


blicas urbanas foram motivo de admiração por parte de engenheiros europeus
em visita ao Brasil na época da colônia, para observarem estas construções.

62 Curso de Extensão Educação Quilombola


Figura 23 - Cabeça de Ifé, século XIII - Museos y Monumentos del Gobierno de Nigeria.

Tecnologias e Saberes Africanos 63


Muito do que foi realizado pelos africanos e afrodescendentes é co-
nhecido como obras de autores anônimos, entretanto, nos interiores de
igrejas, as assinaturas simbólicas destes construtores são realizadas pela in-
corporação de símbolos da cultura de base africana. Portanto, não conhece-
mos nominalmente todos os artistas, artesões e construtores do patrimônio
arquitetônico brasileiro, mas podemos identificar o seu pertencimento étni-
co devido aos pequenos símbolos ou rotos negros deixados nas obras.

Adobe, taipa de pilão e taipa de mão são técnicas construtivas com


terra crua para casas e edifícios, encontradas em grande escala no período
colonial, mas em uso até hoje. Foram introduzidas e difundidas no Brasil
pelos africanos. O adobe é um tijolo de terra crua, geralmente muito grande
com relação aos tijolos de hoje, cuja técnica de produção implica ser seco
inicialmente à sombra e depois ao sol. Este tijolo foi e é muito utilizado na
África do Rio Níger. Para constituição do tijolo de adobe, se misturam argi-
la, fibra vegetal, estrume de gado e óleos vegetais ou animal.

A taipa de pilão, utilizada para alicerce e para paredes, se produz da


massa de terra crua socada como no pilão. À massa de terra crua se acres-
centam esterco animal, fibras vegetais, óleos e sangue de animais. Estes são
emparelhados em formas de madeiras de onde vem o nome de taipa. A taipa
de mão é uma versão mesmo elaborada e menos trabalhosa da taipa de pilão.
Esta também recebe o nome de “pau a pique”. Sobre a trama de galhos de
árvores amarrados com arame, cipó ou fibra vegetal, é aplicada massa igual à
da taipa de pilão, mas com a mão tendo uma menor compactação.

As peças das embarcações de madeira de diversas zonas pesquei-


ras brasileiras (pesca artesanal) são a tradução ou atualização das mesmas
peças no universo africano. A construção de barcos de pesca, elementos
construtivos incorporados às embarcações no litoral brasileiro, podem ser
vistos como uma importante contribuição africana para a história e a práti-
ca tecnológica brasileira. As curvas do casco dos barcos trazem perfis de di-
fícil obtenção, mesmo face aos conhecimentos geométricos e construtivos
da atualidade.

4.5 A técnica de fazer sabão

O porto de Salvador, na Bahia, era o principal porto de entrada de


mercadorias vindas da África. Entre as principais importações, até aproxi-

64 Curso de Extensão Educação Quilombola


Figura 24 - Tear vertica iorubano – Disponível em:< http://claudio-zeiger.blogspot.com.
br/2012/05/tecelagem.html>.

madamente 1780 era o sabão africano. A técnica de fazer sabão era relativa-
mente simples se compararmos com os conhecimentos de química da atu-
alidade. Os sabões eram produzidos com uma mistura de gordura animal e
vegetal, como uma soda do tipo cáustica. A produção da soda era realizada
tomando as cinzas resultantes da queima de algumas madeiras específicas e
colocadas molhadas em um pano, deixando gotejar lentamente. O resultado
é uma soda que, no interior do Brasil, algumas pessoas antigas ainda a reali-
zam e consideram adequada.

Esse processo de fabricar sabão usava a gordura animal extraída de


restos de sebos e carnes fervidas, resultando num sabão mais pesado. O

Tecnologias e Saberes Africanos 65


uso de gordura vegetal como a do coco produzia um sabão mais refinado
e leve, como o sabão de coco. Em consequência do uso da gordura de coco
no Brasil é que se importou e se difundiu a plantação de coqueiros. Esta
é mais uma dentre outras importações africanas que modificou a flora e a
fauna brasileira.

30
APENA, Adeli- Nesse campo da química e dos óleos vegetais, o óleo de palma é ou-
ne. Colonization, tro que foi importado da África de início e depois produzido no Brasil. As
Commerce, and
entrepreneurship produções e exportações de óleo de palma eram um importante negócio da
in Nigéria. New região delta do Rio Níger30. Este óleo é proveniente do coco de dendê e é
York: Peter Lang conhecido no Brasil como óleo de dendê. Este óleo tem diversas utilidades,
Publishing. 1997.
sendo o mais conhecido o de uso doméstico do óleo comestível. O uso de
gordura vegetal é mais um exemplo interessante da influência africana na
sociedade brasileira.

4.6 Fazendo uso da madeira

A madeira é uma matéria-prima de usos múltiplos, com uma dispo-


nibilidade de variedades imensa no Brasil. Também a África oferece esta
disponibilidade de madeiras. A madeira é usada nas máquinas dos engenhos
de açúcar e de teares, nas estruturas das construções civis, no mobiliário,
nos acabamentos, nos transportes (carros, carroças, carruagens, cadeiras de
carregar gente, barcos e embarcações, civis e militares), nas artes em geral. A
amplitude do uso da madeira foi muitíssimo mais intensa no Brasil do que
em Portugal, devido à presença africana no Brasil.

A madeira encerra propriedades estruturais bastante importantes,


cujo emprego constitui um conhecimento de engenharia e arte. Nos enge-
nhos de cana-de-açúcar brasileiros, encontramos desenhos de peças bas-
tante originais e inovadoras com relação aos conhecimentos europeus de
construção mecânica da época. Estes conhecimentos podem ter origem na
arte do uso da madeira africana.

O fato mais recente que ressalta a importância do africano no uso da


madeira foi no exame de teares de madeiras utilizados até hoje no nordeste
brasileiro. Estes teares têm a construção idêntica de antigos teares africanos.

66 Curso de Extensão Educação Quilombola


Figura 25 - Mali cidade de Niafounke às margens do Rio Niger. Disponível em:http://www.
rituais.com/Imagens/Motivos_de_Interesse/Mali/012-Vida-Rio_Niger.jpg>.
Acesso em: 07 out. 2012.

Figura 26 - Mesquita de Djenné – Mali. Disponível em:<http://www.rituais.com/Imagens/


Motivos_de_Interess/Mali/008-Djenne.jpg>. Acesso em: 07 out. 2012.

Tecnologias e Saberes Africanos 67


Conclusão

A ideia de “escravo” empregada na educação e na cultura brasileira


sempre limitou o pensamento dos historiadores brasileiros. Africanos e
afrodescendentes foram, na maior parte das vezes, vistos como seres ori-
ginários das tribos de homens nus. Ou seja, seres incultos despossuídos de
conhecimentos e incapazes da edificação de uma cultura, de protagonismo
político e de realizações importantes históricas.

Os europeus não sabiam como produzir os produtos da colônia bra-


sileira. Como Portugal era a primeira nação europeia a explorar com inten-
sidade a mão de obra africana, o Brasil passou a ser fonte de tecnologias, da
qual a produção do açúcar é mais conhecida e depois exportada para o Ca-
ribe holandês. Estas observações nos abrem um horizonte para procurar os
conhecimentos de origem africana que foram fundamentais na construção
do Brasil. O quadro revela um número enorme de contribuições originais e
de registros de africanos e afrodescendentes realizando os diversos ofícios e
empreendendo as diversas construções.

Constar e relacionar os africanos e afrodescendentes na produção do


conhecimento técnico e tecnológico do Brasil ainda é uma tarefa de garim-
pagem. Os estudos da história das técnicas e das tecnologias, da arquitetura
e da engenharia são reduzidos. Estes dependem dos conhecimentos das áre-
as tecnológicas e da história, principalmente, da tecnologia na África e na
Europa nos períodos anteriores ao século XVIII. Tem-se muito a fazer ainda
para termos uma boa história da tecnologia no Brasil e da presença africana
nesta. Entretanto, todo passo realizado revela a presença de conhecimentos
africanos e a intervenção direta de africanos e afrodescendentes.

A singularidade do Brasil é que o trabalho foi durante muito tempo


obra quase que exclusiva de africanos e afrodescendentes. A imigração for-
çada de africanos de diversas regiões trouxe um elenco surpreendente de
profissionais e uma infinidade de conhecimentos nos diversos campos do
conhecimento: da mineração, da construção, da engenharia civil, das artes,
da arquitetura, da agricultura, da produção têxtil, da metalurgia, da química
e farmacologia, da marcenaria e da náutica.

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Referências

APENA, Adeline. Colonization, Commerce, and entrepreneurship in Nigé-


ria. New York: Peter Lang Publishing, 1997.

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CUNHA Jr., Henrique / MENEZES, Marizilda dos Santos. Tear e o Saber Africano
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SILVA, Adriana Maria. Aprender com Perfeição e sem Coação: Uma Escola para
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