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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


Pedagogia - UC Fundamentos Teórico Práticos do Ensino de História
Prof. Dr. Cléber Santos Vieira

Natalia Bissiato Fernandes da Silva - RA 128.351

a) A Unicamp incluiu o CD Sobrevivendo no Inverno - Racionais MCs – na lista de


leituras obrigatórias do vestibular 2020. Esta medida pode ser considerada como
expressão da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana nas escolas?
O CD Sobrevivendo no Inferno, do grupo Racionais MCs, lançado em 1997,
considerado um dos álbuns mais importantes para o rap brasileiro, traz o retrato mais
áspero possível de uma metrópole labiríntica e desigual, esta máquina de ceifar vidas
chamada São Paulo (Júnior,1997).
Evidencia o racismo estrutural e a desigualdade racial, impactando diretamente
na falta de acesso e oportunidade da população negra a empregos, universidades etc. Bem
explicitada na introdução da música Capítulo 4, Versículo 3, por Primo Petro: “60% dos
jovens de periferia sem antecedentes criminais/Já sofreram violência policial/ A cada 4
pessoas mortas pela polícia, 3 são negras/ Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos
alunos são negros/ A cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São
Paulo/Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente.”. Além disso álbum denuncia
a violência polícia, preconceito e genocídio da população negra, que colocando-os em
posições de vulnerabilidade social, por vezes, veem na criminalidade e no uso de drogas
o caminho mais viável para fuga de uma realidade, extremamente violenta e miserável.
Tendo em vista a Lei 10.639, sancionada em 2003, que alterando a Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, inclui no currículo oficial da Rede de Ensino a
obrigatoriedade da presença da temática "História e Cultura Afro-Brasileira e Africana",
delibera como dever da escola e do Estado proporcionar uma consciência histórica e
política sobre o multiculturalismo e a pluralidade, se configuram como uma correção do
esquecimento da memória positiva da escravidão na história do Brasil (Munanga, 2015),
não se tratando de mudar um foco etnocêntrico marcadamente de raiz europeia por um
africano, mas de ampliar os currículos escolares buscando equidade e valorização da
cultura negra em detrimento do reconhecimento da real história da ocupação europeia na
América Latina e na África.
É nessa perspectiva, que pensar sobre a decisão da Universidade Estadual de
Campinas de incluir como leitura obrigatória o CD Sobrevivendo ao Inferno no grupo
Racionais MCs, sendo uma medida que se constitui a partir da obrigatoriedade do ensino
de história e cultura afro-brasileira e africana em todos os níveis da educação básica do
país, expressa pela Lei 10.639/2003, contra a ideia do mito de democracia racial, que
coloca a escravidão como um evento pontual, restrito a um momento histórico, e
superado. Favorece um debate, dentro das escolas, principalmente nos anos finais, sobre
o reais e permanente impactos da escravidão no Brasil e no mundo.

b) A partir dos fragmentos e textos acima, analise o vídeo “Mil trutas, mil tretas -
documentário" na perspectiva da implementação das diretrizes nacionais para a
educação das relações étnico-raciais e ensino de história e cultura afro-brasileira e
africana. Focalize na perspectiva pela qual os produtores do documentário
reconstruíram a história e memória da cidade de São Paulo.

A partir dos anos 80, a cidade de São Paulo foi o maior centro de produção e
difusão do rap nacional. Racionais MC’s, Rappin Hood e Sabotage são alguns dos
exemplos de artistas que vieram do epicentro paulista.
O documentário 1000 trutas, 1000 tretas dirigido por Mano Brown foi lançado
em 2006 como material extra do DVD musical com o mesmo nome. Com duração de
cerca de 70 minutos, apresenta a história da trajetória da população negra na cidade de
São Paulo e pretende ressignificar a memória do negro na cidade, sobretudo por meio das
trajetórias de ocupação do território paulista e suas contribuições artísticas nacionais e
internacionais. O centro é o palco de um questionamento fundamental: Onde está a
história negra na cidade?
Do período escravista ao trabalho livre, quilombos urbanos e irmandades,
organizações religiosas negras, que também atuaram na manutenção das tradições de seus
participantes, são citadas como organizadoras de fundos de emancipação da população
escravizada, passando também pelas moradias coletivas, única forma de habitação barata
no centro da cidade e criadas por ex escravos que se uniam como famílias para resistirem.
No documentário, a rememoração da história negra de São Paulo é recuperada.
As associações culturais e os bailes black são apresentados como espaços de produção
cultural onde o protagonismo pertencia aos negros. Nas entrevistas documentadas relata-
se que os bailes não eram efetivamente um espaço de reunião para organização política
em termos institucionais, observada na fala de Eduardo “Eu conseguia ver a força da
nossa comunidade, mas não o objetivo da nossa comunidade”, se constituindo mais como
um território de reunião em prol da valorização da cultura negra e em contraste com os
bailes brancos, e que se afastava da população negra que tinha mais acesso a educação
formal, relatado na falas de José Luiz. Contudo, também por parte de José o
reconhecimento dos bailes como espaços de reunião e resistência.
Como citado pelo historiador africano Ki-Zerbo, um povo sem história é como
um indivíduo sem memória, um eterno errante. A memória negra paulistana continua
sendo apagada. É o que acontece com o bairro do Bixiga, conhecido como uma região de
tradição italiana, mas historicamente é um espaço de presença negra desde o quilombo
Saracura até os dias de hoje com a Escola de Samba Vai-Vai, formada em sua maior parte
por negros. O mesmo acontece com o bairro da Liberdade. Conhecida território de
predominância asiática, mas teve em sua praça principal mercado de escravos e espaços
de torturas e assassinatos dos mesmos, palco do terrível massacre de José de Chagas,
acontecimento dá origem ao nome da praça. A nova estação de metrô denominada Japão-
Liberdade demonstra como uma escolha, aparentemente simples, contém em seu cerne o
racismo institucional marcado pelos processos de apagamento e esquecimento da
ocupação e das histórias negras sobre o território paulista.
Segundo Munanga, a história de um povo é onde se inicia o processo de
(re)construção de sua identidade. A história da África foi negada e contada a partir do
ponto de vista do colonizador, a memória e a identidade do negro no país foram destruída.
Assim, sua reconstrução passa pela superação da visão colonizadora e dominante no
ensino e aprendizagem da história.
A implementação da lei 10.639/03 veio justamente com o objetivo de buscar a
promoção de uma maior igualdade racial através da educação. A obrigatoriedade do
Ensino de História e Cultura da África e dos Afro-brasileiros, tendo em vista a superação
de um ideário escravista, pretende uma reconstrução da história de um povo.
“Geralmente a escola é o espaço em que crianças e adolescentes, negras
ou não, experimentam pela primeira vez o gosto amargo do racismo
institucional. A falta de identificação com livros didáticos, a negação
da possibilidade do protagonismo e o cerceamento das relações
afetivas constroem um quadro desmotivador. A insegurança, a omissão
e, em alguns casos, a rebeldia, são tratados institucionalmente como
casos isolados, consequências da personalidade individual. E assim, na
maioria dos casos, a resposta é a coerção.” (CAVALLEIRO, 2000 e
MUNANGA, 2005).

O racismo institucional e a discriminação étnico-racial é uma prática difundida na


sociedade brasileira e a escola é um reflexo nítido dessa manifestação. Ele é onipresente
e tem diversos impactos na construção da identidade dos negros no país. Dos livros
didáticos às relações aluno-professor-direção afetam diretamente a relação desses alunos
com a escola.

Referências

BRASIL. Ministério da Educação/Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e


Diversidade. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília,
2004c.

JÚNIOR, Álvaro P. Racionais fazem o retrato mais áspero de São Paulo. Jornal Folha de
São Paulo, São Paulo, 3 de novembro de 1997. Disponível em: <Folha de S.Paulo - Escuta
Aqui - Álvaro Pereira Júnior: Racionais fazem o retrato mais áspero de São Paulo -
03/11/97 (uol.com.br)>. Acesso em: 5 de março de 2021.

MUNANGA, K. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil? Revista do


Instituto de Estudos Brasileiros, 2015.

MUNANGA, K. (Org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da


Educação, 2005.

DIAS, Guilherme Soares. A história dos negros no Bairro da Liberdade. Revista


Trip, UOL, 01 de nov. de 2019. Disponível em: <
https://revistatrip.uol.com.br/trip/historia-dos-negros-no-bairro-liberdade-e-o-
movimento-de-preservacao-sitio-arqueologico-dos-aflitos >. Acesso em: 04 de
dez. de 2020.
Racionais MCs. Capítulo 4, Versículo 3. São Paulo. Cosa Nostra. 1997. (8:06)

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