Você está na página 1de 109

Negro, educação e

multiculturalismo
organizadores:

Maria do Rosário Silveira Porto


Afrânio Mendes Catani
Celso Luiz Prudente
Renato de Sousa Porto Gilioli
ÍNDICE
Apresentação
Maria do Rosário Silveira Porto e Renato de Sousa Porto Gilioli 4

Primeira parte: O NEGRO E O SAGRADO

Sangoma: um presente sagrado da tradição zulu


Marcos Ferreira Santos 10

Valhei-me, meu São Benedito! (Fé, resistência e educação entre os negros brasileiros)
Elaine Pereira Rocha 25

Uma leitura do racismo a partir das narrativas bíblicas


Julvan de Oliveira 29

Segunda parte: Manifestações da cultura afro

Orixás: um filme, uma revivência, uma resistência


Marcelo G. Tassara 36

Arquibancada alegre de reserva (Escola de samba: uma contribuição ao estudo de


alguns aspectos socioculturais para a compreensão do dilema do negro brasileiro)
Celso Luiz Prudente 40

O fazimento da arte popular do Brasil destinada às grandes massas mestiças


Ricardo Cravo Albin 47

Expoentes da estética da negritude na literatura brasileira


Eduardo de Oliveira 51

O Hip hop e a radiografia das metrópoles na ótica dos excluídos


João Lindolfo Filho 60

Terceira parte: Educação, escola e espaços para a negritude

Escola e relações raciais no Brasil


João Baptista Borges Pereira 65

Até quando educaremos exclusivamente para a branquitude? Redes-de-significado na


construção da identidade e da cidadania
Ronilda Iyakemi Ribeiro 69

Educação , negritude e auto-estima


Edílson Marques da Silva 75

Educação musical: a construção de uma identidade nacional brasileira excludente


Renato de Sousa Porto Gilioli 82

2
O exercício do olhar: etnocentrismo na literatura infanto-juvenil
Andréia Lisboa de Sousa 86

Última parte: Alteridade e multiculturalismo – perspectivas para a


educação

Perspectiva educacional da cidadania e multiculturalismo


Wilson do Nascimento Barbosa 92

O impacto do diferente: reflexões sobre a escola e a diversidade cultural


Nilma Lino Gomes 97

Ações afirmativas: a saída conjuntural para os afro-descendentes na educação


Petronio José Domingues 103

3
APRESENTAÇÃO

Cada vez mais a discussão sobre as disparidades étnicas que a educação brasileira
abriga tem se tornado significativa. Uma pluralidade de vozes tem se levantado no
sentido de avaliar e reavaliar o papel dos espaços educativos, de modo a que eles
permitam a constituição de práticas e perspectivas de inclusão e convivência com o
outro.
Entretanto, a escola não é o único locus educativo onde se processam
discriminações e onde podem ser encontrados encaminhamentos e soluções possíveis
para distorções produzidas ao longo de séculos. Urge que também observem-se outros
espaços sociais, nos quais o fator pedagógico é significativo, pois estes podem apontar
para uma ampliação da compreensão acerca das manifestações do racismo e das
alternativas para combatê-lo eficazmente.
Desta preocupação de abordar a questão racial a partir de uma ótica multicultural
no contexto dos fenômenos sócio-educativos – incluídos tanto aqueles presentes na
escola formal quanto em situações pedagógicas informais – foi realizado, em 29 de
novembro de 1999, o seminário “Negro: Educação e Multiculturalismo”, organizado
pela área temática “Cultura, Organização e Educação”, do Programa de Pós-Graduação
da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
Para desenvolver o relevante debate sobre o imaginário e cultura afro-brasileira,
as expressões de sua auto-afirmação, sua estética e a perspectiva de uma pedagogia
voltada para a cidadania, houve a preocupação de uma abordagem interdisciplinar
efetiva. A diversidade de indagações levantadas pelos participantes do evento
converteu-se na presente publicação, composta tanto de textos resultantes das falas
proferidas pelos palestristas convidados, como de outras produções relativas ao tema, e
que aborda desde a antropologia do imaginário, passando pela psicologia, literatura,
cinema, pela discussão da cultura popular e das faces do sagrado, até aspectos culturais
da educação formal.
Trazendo indagações sobre os espaços sócio-educativos – escolares ou não – nos
quais os problemas relativos às disparidades étnico-raciais em nosso país se configuram,
os textos que se seguem objetivam contribuir para uma percepção singular da alteridade
de modo a permitir um esforço catártico de resgate dos valores simbólicos da negritude
e de sua inserção na polifônica cultura brasileira. Dessa forma, esta coletânea de artigos
é dividida em quatro partes: O negro e o sagrado; Manifestações da cultura afro;
Educação, escola e espaçoes para a negritude e, por fim, Alteridade e
multiculturalismo.

***
Na primeira parte, O negro e o sagrado, os autores têm como objeto de análise a
relação do negro com suas crenças ancestrais e com a religião judaico-cristã, num
processo de reelaboração contínua de suas próprias religiões.
No interessante artigo “Sangoma: um presente sagrado da tradição zulu”,
MARCOS FERREIRA SANTOS, partindo de uma noção de cultura como processo
simbólico, ou seja, como o universo da criação, transmissão, apropriação e interpretação
de produtos simbólicos e suas relações, vai mostrar, na formação brasileira, as
influências da cultura africana. Para tanto, indica como as energias Mundu, Axé e Islão
influenciam essa formação, para, em seguida, permitir que as “velhas vozes” se
expressem pelas imagens do guerreiro, da Grande Mãe africana, da serpente, do pássaro
e do sangoma na tradição zulu, das quais desenvolve elucidadora explicação. O autor

4
põe em relevo que, para além do que essas figuras e práticas mitológicas representam na
cultura africana, é propriamente seu valor antropológico, o reencontro com a
ancestralidade que possibilita o renascimento, que permite, talvez, ouvir as vozes
ancestrais que continuam ecoando – de dentro.
São Benedito é figura de devoção, principalmente pela população do interior do
Brasil. Em vários locais realizam-se festas em sua homenagem, com orações, comidas,
cantos e danças, atraindo pessoas de diferentes idades para festejar o santo e cumprir
promessas. Nessas festas, que ELAINE PEREIRA ROCHA descreve em “Valhei-me
meu São Benedito! (Fé, resistência e educação entre os negros brasileiros)”, mesclam-se
elementos da cultura medieval portuguesa com os oriundos da África e fica clara a
ligação que os negros têm pelo santo, talvez pelo fato de ele ser de origem etíope. Essa
fé acabou adquirindo caráter didático – uma educação para a resistência – expresso pelo
fato de esses festejos terem persistido desde o período colonial até os dias atuais.
Proporcionando o encontro entre as pessoas, a troca de experiências e o
desenvolvimento de vínculos de solidariedade, a festa de São Benedito vem ocupando
um espaço que o sistema educacional ainda não conseguiu: o desenvolvimento da auto-
estima dos negros e mestiços e a valorização da sua cultura.
JULVAN MOREIRA DE OLIVEIRA mostra em “Uma leitura do racismo a partir
das narrativas bíblicas” como vão se construindo, no corpus bíblico, as noções de raça e
racismo. Por meio de um sutil processo de “sacralização”, sucessivas gerações de um
grupo étnico – os judeus - tentam construir uma história de salvação em termos
favoráveis a esse grupo, em oposição a outros. Esse esforço mostra a evolução do
particularismo étnico com endosso divino rumo a um racismo de pior espécie.
Relativamente aos povos negros, de uma imagem simpática e positiva no Antigo
Testamento, o conceito de eleição de Israel como o povo escolhido de Deus pressupõe a
exclusão desses, muitas vezes associados ao pecado. Já no Novo Testamento, a idéia é a
de “secularização”: para sobreviver, a Igreja começa a sucumbir aos símbolos e
ideologias dominantes da cultura greco-romana, excluindo o resto do mundo - a África,
em especial. Para reverter esse processo, ou seja, para rever o racismo de que são
portadoras, segundo o autor as igrejas precisarão operar uma profunda catarse.

***
Na segunda parte, Manifestações da cultura afro, os autores mostram como o
cinema, o carnaval, a música e a literatura podem ser expressões da resistência negra e
de afirmação da estética da negritude na cultura brasileira.
Como manifestação cultural e artística de grande penetração, o cinema não
poderia ser desprezado. A partir dessa constatação, MARCELO G. TASSARA, no texto
“Orixás: um filme, uma revivência, uma resistência”, defende que, dentro de suas
limitações, o cinema brasileiro tem permanecido fiel às suas origens sócio-culturais,
independente de gênero, escola, estilo ou época. De modo consciente ou não, ele sempre
retratou nossa realidade, tentando renascer a cada instante, após cada choque causado
pela instabilidade econômica. Nessa produção cinematográfica, o negro e sua cultura
também se apresentam. No entanto, na opinião do autor, o cinema brasileiro ainda está a
dever uma obra que mergulhe no legado antropológico e cultural que constitui a herança
negra no Brasil e nas tradições religiosas do negro, continuamente expostos à
voracidade do consumismo e da mundialização sufocantes, os quais tem a
responsabilidade pedagógica de divulgar.
Música popular e carnaval carioca são, para RICARDO CRAVO ALBIN, duas
vertentes da arte popular brasileira, idéia que defende em “A música popular e o
carnaval carioca”. Produto de exportação na pauta de produtos culturais, a música

5
popular brasileira tem condições de fazer frente às importações e aos modismos
disseminados pela mídia. Até porque, nossos letristas são realmente poetas. E foram os
sambistas-poetas da Mangueira que organizaram os primeiros desfiles de escola de
samba, na passagem dos anos 20 para os 30. Atualmente, único evento público exibido
no exterior, envolvendo enormes recursos financeiros e de pessoal para sua realização, a
escola-de-samba anuncia elementos pós-modernos, dionisíacos, agregando à ordem uma
estrutura original e sem paralelos no mundo. O carnaval inverte a pirâmide social e
transforma-se num rito de passagem que permite a amável convivência multirracial e,
nesse sentido, desarma o barril de pólvora em que se assentam as injustiças do país.
Em “Arquibancada alegre de reserva”, CELSO LUIZ PRUDENTE mostra como a
escola de samba - manifestação de resistência da cultura negra - surgiu no cenário
carioca e como foi sendo dominada pela indústria do turismo. Catalizadora das massas
negrasuma vez que realizava uma síntese das manifestações culturais do universo
africano, passou de manifestação marginal à oficial, referência nos catálogos turísticos
internacionais e tema importante de exploração pela mídia. Como conseqüência, o
artista popular foi sendo preterido pelo branco “de fora” e as escolas cresceram, a partir
de uma política de consumo de forças socialmente estranhas à comunidade. Sofisticou-
se a indústria artesanal, fragmentou-se a cultura popular na montagem do desfile e
marginalizou-se a comunidade no processo de produção da arte carnavalesca. Ao
“bamba”, sem ingresso ou fantasia, restou ficar à margem do sambódromo ou fazer
número na arquibancada, numa eventual dificuldade de público para a transmissão
midiática – a “arquibancada alegre de reserva”.
Em seu texto “Expoentes da estética da negritude na literatura brasileira”,
EDUARDO DE OLIVEIRA trata de três expoentes da negritude na literatura nacional:
Auta de Souza, João da Cruz e Sousa e Solano Trindade. Da primeira, traça a trajetória
de vida e da obra, cercadas ambas pela sombra da morte (Auta de Sousa era tuberculosa
e cedo perdeu um irmão), talvez a razão por que sua obra caracteriza-se por uma
profunda espiritualidade místico-religiosa. Sobre Cruz e Sousa, o Dante Negro da
literatura brasileira, o autor mostra, numa breve biografia, como o “pai do simbolismo
brasileiro” ao longo de sua atribulada vida, além da obra literária composta de prosa e
poesia, toma posições estéticas e políticas defendidas com ardor e talento, despertando
paixões e ódios. Finalmente, revisitando vida e obra de Solano Trindade, sublinha a
forma como o poeta da resistência intelectual negra entrou na vida pelas portas do fundo
de uma sociedade burguesa e da vida saiu coberto de glória e de grandiosidade.
Em “O Hip hop e a radiografia das metrópoles na ótica dos excluídos”, JOÃO
LINDOLFO FILHO enfoca as relações entre cultura hip hop – e sua inserção na
indústria cultural – e educação formal, com o intuito de compreender possíveis pontos
de contato e divergências entre ambos. Os rappers são apontados como porta-vozes da
cultura dos excluídos das metrópoles, exercendo papéis que remetem àqueles dos
tradicionais griots da África. O rapper vive uma ambigüidade: ao mesmo tempo em que
é um transmissor do conhecimento informal, considera a importância do conhecimento
formal como instrumento – do qual não se pode prescindir – para se exercer a cidadania
e combater a exclusão étnica, social e moral. Por outro lado, a escola também mantém
uma relação ambígua com a cultura hip hop, ora aceitando ora resistindo a ela. E mesmo
quando aceita esse discurso do outro, costuma não acolher as críticas ao currículo
oculto.
***
Na terceira parte, Educação, escola e espaços para a negritude, a preocupação
dos autores centra-se em mostrar como o processo educativo pode reforçar estereótipos

6
e preconceitos na sociedade, também apontando pistas para o enfrentamento dessa
realidade.
No texto “Escola e relações raciais no Brasil”, o insígne professor JOÃO
BATISTA BORGES PEREIRA adverte para o fato de que a sociedade brasileira – e a
escola – não sabe lidar com a questão racial. Por isso, seria necessário que a escola fosse
educada para aprender a atender as exigências e características de uma sociedade
pluriétnica. E embora a escolaridade não determine a ascensão social – na verdade o
pertencimento a um segmento sócio-econômico superior é que garante em grande
medida o acesso a uma alta escolaridade –, a perspectiva de inclusão social (da qual o
negro está à margem) depende cada vez mais da escolarização. Portanto, haveria a
necessidade de a escola pública – onde o negro é mais presente – prover qualidade ao
estudante, de modo a possibilitar igualdade de condições de concorrência, inclusive para
o vestibular. Termina alertando que as cotas são apenas um aspecto pontual da questão
de fundo: a necessidade de democratização da escola pública.
Em “Até quando educaremos exclusivamente para a branquitude? Redes-de-
significado na construção da identidade e da cidadania” RONILDA IYAKEMI
RIBEIRO revela a existência de um modelo opressor eurocêntrico, racista e capitalista
atuando fortemente na construção da identidade do brasileiro. O ideal social corrente,
reforçado pela escola, identificaria o branco como vencedor e o negro como perdedor,
provocando prejuízos na sua auto-estima e aumentando sua possibilidade de fracasso.
Como solução, a autora indica a necessidade de haver modelos identificatórios positivos
para o negro, especialmente na escola. Assim, o caminho apontado é o da re-
significação no nível do imaginário. Os estereótipos e mitos racistas que identificam o
negro ao escravo, ao bárbaro etc. teriam de ser enfraquecidos, individual e
coletivamente – daí a importância da escola e dos educadores –, em favor de uma
valorização das culturas negro-africanas, por meio de fábulas, lendas, mitos e contos, e
do resgate da memória da diáspora africana.
EDÍLSON MARQUES DA SILVA discute no texto “Educação, negritude e auto-
estima” o papel da educação na superação do racismo, lembrando a importância dos
processos lúdicos e da construção de imagens estéticas positivas no resgate da
identidade e transmissão da herança africana. Considerando a relevância da imagem
formada pelas histórias contadas por pais, professores e pela igreja, e sabendo que elas
comumente produzem experiências traumáticas de negação da identidade étnica, a
utilização destas histórias – em seus aspectos ético, estético e cultural – é apontada
como elemento de recuperação da auto-estima (entendida como alicerce da
assertividade e diferente do egoísmo, do narcisismo e da arrogância) e de combate à
ideologia racista brasileira. O autor indica que esse resgate deveria ser feito, por
exemplo, com a inclusão da história africana nos currículos escolares e através da
valorização do prazer de ser negro.
No texto “Educação musical: a construção de uma identidade nacional brasileira
excludente”, RENATO DE SOUSA PORTO GILIOLI discute como o ensino escolar de
música volta-se para a construção de uma identidade nacional baseada em valores
eurocêntricos. Vários manuais didáticos publicados desde a década de 1910 até a década
de 1980 propõem-se a desenvolver os sentimentos patrióticos, a disciplina, a moral e o
gosto estético dos educandos. Contudo, estas finalidades fundam-se na exclusão de
padrões estético-musicais não-europeus. Para os educadores que elaboraram esses
métodos, as manifestações musicais afro-indígenas são consideradas como produto
cultural primitivo e, quando aceitas, são folclorizadas e “branqueadas”, de modo a se
adaptarem ao gosto estético ocidental. Assim, é apontada a necessidade de incluir

7
concepções “não-brancas” de música (caracterizadas através do exemplo da Congada)
no ensino escolar – e não somente as europeizantes.
ANDRÉIA LISBOA DE SOUSA, em “O exercício do olhar: etnocentrismo na
literatura infanto-juvenil”, reflete acerca do impacto que o caráter etnocêntrico da
literatura infanto-juvenil – cujo papel é lúdico, estético e criativo – tem sobre o leitor.
Esta postura se caracterizaria pelo fato de não se perceber e não se relacionar com o
outro, o que seria um sintoma da dificuldade da cultura ocidental em trabalhar com a
união dos pares opostos (bem/mal, corpo/alma, céu/diabo). Nesse sentido, a autora
questiona como se pode educar para o encontro com o outro, se a imagem de negros,
índios e portadores de deficiências é geralmente representada através de estereótipos
nos livros de literatura infanto-juvenil. Portanto, a autora sugere que as ilustrações
estereotipadas sejam abandonadas, que a representação do negro como inferior e
submisso seja revista e que o educador utilize a literatura como meio de contribuir para
um resgate da auto-estima do educando.

***
Na última parte, Alteridade e multiculturalismo: perspectivas para a educação, os
autores descrevem projetos, desenvolvidos por diferentes setores da sociedade, que
objetivam resgatar e afirmar a cultura negra e contribuem no sentido de trazer
perspectivas para a plena realização da cidadania dos afro-descendentes.
No texto, “Perspectiva educacional da cidadania e multiculturalismo”, WILSON
DO NASCIMENTO BARBOSA mostra, inicialmente, como, no Brasil, a cidadania
continua sendo negada aos negros, negação que se reflete em um projeto racista e
antinacional relativo à política pública de educação. Diante desse cenário, desenvolve-se
uma “guerra civil”, mais ou menos oculta, entre uma minoria branca europeizada que se
confunde com a elite brasileira e a maioria da população, cada vez mais empobrecida e
bloqueada culturalmente. Essa política é decorrente de um Estado de base racista, que
finge ignorar que essa população compõe-se de negros, indígenas e mestiços. Como
esforços para romper essa situação, o autor cita a ação de setores democráticos da Igreja
Católica, aliados na luta pela defesa e ampliação dos direitos dos negros e, em especial,
a do Movimento Negro nos anos 80, cujas propostas por ele resumidas podem servir de
base à elaboração de uma metodologia específica para um trabalho multiculturalista,
através de estratégias anti-racistas.
Nas palavras de NILMA LIMA GOMES, seu artigo “O impacto do diferente:
reflexões sobre a escola e a diversidade cultural” tem o intuito de refletir sobre as
diferentes presenças na escola e na sociedade brasileira e suas relações com as
transformações políticas, econômicas e socioculturais dos últimos tempos. Como
exemplo, toma a primeira Feira Étnica de Belo Horizonte, realizada em 1999, para
mostrar como a sociedade relaciona-se com as diferenças étnico-raciais, um dos
aspectos da diversidade cultural do país. Fazendo uma reflexão sobre a questão, a autora
chega à escola, propondo a necessidade de essa instituição refletir sobre e respeitar as
diferentes presenças no seu interior, não apenas no sentido de suportar ou elogiá-las,
mas de adotar políticas públicas que permitam trabalhar o diverso, o que certamente
resultará em mudanças nas relações de poder, na redefinição de escolhas e no
estabelecimento de uma verdadeira democracia.
Projetos educacionais nos moldes do curso pré-vestibular do Núcleo de
Consciência Negra (NCN) da USP podem contribuir para a minimização da
desigualdade racial e para aumentar a presença de afro-descendentes na universidade.
Esta é a tese defendida por PETRONIO JOSÉ DOMINGUES no texto “Ações
afirmativas: a saída conjuntural para os afro-descendentes na educação”. Os alunos

8
negros frequentam majoritariamente a escola pública, no período noturno,
comparativamente com menor carga horária e com uma taxa de escolarização menor no
ensino médio. Portanto, cursos pré-vestibulares como o do NCN – exemplo inserido no
contexto das políticas de ação afirmativa –, permitem um horizonte de integração sócio-
racial, operam um resgate da auto-estima e reforçam os laços de pertencimento a um
grupo específico. O autor também defende que iniciativas como essa não promovem
desigualdades, já que a desigualdade de oportunidades é um dado anterior na sociedade.

Maria do Rosário Silveira Porto


Renato de Sousa Porto Gilioli

9
Primeira parte: O Negro e o Sagrado

SANGOMA: UM PRESENTE SAGRADO DA TRADIÇÃO ZULU

Marcos Ferreira Santos

Nyankwabe...
Espíritos d'África, escutai minhas preces!
Nos ajude, nos guie, nos ensine.
(Tradição zulu apud Makeba, 1988)

Estatueta em madeira da cultura Luba

V ozes ecoam há muito tempo,

por longos espaços, através de gerações. Vozes que


ora cantam e ora gritam. Não teria sido o grito a primeira interjeição da consciência? O
canto não teria sido a primeira ordenação da consciência? De qualquer forma, de algum
lugar da região sudeste do continente negro, um hominida austral contemplou a

Estas vozes marcaram a direção da lança, ritmaram o pilão das sementes e o


compasso da dança. Estas vozes submergiram na circulação ígnea, oxigenando
músculos e tecidos. Configuraram um espírito.
Neste pequeno ensaio de mythologia1 (em seu duplo aspecto: ensaio como
tentativa de investigação e como estilo literário), procurarei assinalar algumas
características deste espírito que considero importantes para compreender a

Professor Doutor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador do Centro de Estudos do Imaginário,
Culturanálise de Grupos e Educação – CICE/FEUSP.
1
A ortografia arcaica de mytho derivado do grego mythós (aquilo que se relata), é adotada por mim para
assinalar a diferença das concepções usuais de "mito" como algo ilusório, fantasioso, falacioso, resultado
de uma má consciência das coisas e das leis científicas. O mytho é aqui compreendido como a narrativa
dinâmica de imagens e símbolos que orientam a ação na articulação do passado (arché) e do presente em
direção ao futuro (télos). Neste sentido, é a própria descrição de uma determinada estrutura de
sensibilidade e de estados da alma que a espécie humana desenvolve em sua relação consigo mesma, com
o Outro e com o mundo, desde que, descendo das árvores, começou a fazer do mundo um mundo humano
(Ferreira Santos, 1998).

10
profundidade de sua herança para o mundo ocidental. Para tanto, valer-me-ei do
instrumental da hermenêutica mythanalítica, a partir da convergência das mythocrítica e
mythanálise de Gilbert Durand (1997), das contribuições dos fenomenólogos do sagrado
(M. Eliade, J. Campbell), das formas simbólicas (E. Cassirer, Merleau-Ponty e G.
Bachelard) e da antropologia filosófica e existencial (G. Gusdorf, E. Mounier e N.
Berdiaev); ou seja, como o conjunto heurístico de leituras, escutas, interpretações e
compreensões atentas às significações profundas de fundo mythico da cultura, num
recorte fenomenológico e de caráter hermenêutico.
Como bem afirma Oscar Saéz (1996:205) em outro contexto:
... não interpretar o acaso, mas interpretar no acaso. Não me empenhei na
compreensão do mundo descrito a partir da compreensão de seus atores, mas na
construção de sistemas hipotéticos em contraste com os quais se desenha com
detalhes inesperados a realidade. Tal método cumpre a condição básica de um
bom método: conduz a pesquisa um pouco à revelia do autor - mantém o sujeito
um pouco como o viageiro em terra estranha, olhando muito e andando às cegas.
Tal estilo hermenêutico valoriza a interpretação na dinâmica do processo, em
detrimento de resultados pré-concebidos que o influenciariam. A construção e
organização do real se dá no próprio imaginário.
Portanto, partimos de uma noção de cultura que procura esquivar-se dos vícios
aristotélicos e cartesianos da simples enumeração de propriedades ou atributos
suficientes e necessários, portanto, constituintes de um conceito. Um cachorro possui
quatro patas e um rabo. Aquele que se acidentou e perdeu uma pata ainda seria um
cachorro? Lembrando o amigo Celso Favaretto, o conceito de cachorro, por acaso,
morde? Nesta tradição, as centenas de conceitos de cultura inventariados convergem. As
diferenças acidentais estão nas propriedades e nos atributos elencados à exaustão. Ora
entende-se cultura como o conjunto de hábitos e costumes que funcionam de maneira
diferente em grupos diversos, ora como o conjunto de determinadas produções culturais
(eruditas ou populares), ou mesmo como a teia de relações estabelecidas entre estes
produtos e seus produtores.
À parte de concepções funcionalistas, estruturalistas e relativistas, procurei, aqui,
compreender a cultura, essencialmente, como processo simbólico. Neste sentido, a
cultura é o universo da criação, transmissão, apropriação e interpretação de produtos
simbólicos e suas relações. Estas quatro ações concretas, nem sempre necessárias e
muito menos suficientes, é que configuram o campo tensional das manifestações
simbólicas. Seus produtos e produtores, seus professantes, receptores e hermeneutas
somente podem ser compreendidos em profundidade, se contextualizados em sua
natureza processual, dinâmica e inacabada. Por isso, esta noção de cultura vai de par
com uma arqueologia e com uma teleologia (Ferreira Santos, 1998). Procura, nos
túmulos e ruínas da origem, a gênese das invariâncias. Abre-se aos fins para entender o
presente, o bricolage, as cores da variada roupagem do arlequim (Serres, 1993). A
cultura, como processo, abre-nos sua dimensão de esperança (Durand, 1997). Abre-nos
sua natureza escatológica (Gusdorf, 1987) entre a invariância ancestral e a variada
roupagem das culturas, na qual o ser humano confronta-se com sua transcendência e sua
imanência em um mundo já dado e situado. É completamente livre para escolher. Mas,
o que é paradoxal: escolhe entre alternativas que lhe são dadas. Como lembra o mestre
romeno Eliade citando um mytho de origem da morte, na Indonésia: a divindade deu a
escolher para o homem uma pedra e uma banana. Faminto, o homem escolheu a banana.
O sagrado, então, replicou-lhe que, se tivesse escolhido a pedra, seria imortal e

11
inabalável como ela. De agora em diante, será efêmero como a banana. Depois de
frutificar, fenece.2

Energias na formação brasileira: mundu, axé & islão

Como afirma Gilberto Freyre em seu clássico “Casa Grande & Senzala”, o
fenômeno da escravidão, em seus primórdios no Brasil, prostou uma civilização
superior aos pés de uma outra tacanha. A formação islâmica dos primeiros escravos
permitia-lhes conservar a galhardia e a altivez do escravo surrado por falar uma língua
desconhecida (de origem árabe), por escrever algo que os pouco letrados senhores de
engenho e seus soldados de Cristo (jesuítas) não conseguiam ler. Segundo a
pesquisadora Cacciatore (1977), as principais tradições trazidas ao Brasil no início do
tráfico negreiro eram:

TRADIÇÃO CULTURA ORIGEM REGIÃO


PREDOMINANTE
Sudanesas Hausá Norte da Nigéria Bahia
Islâmicas peul (fula) Norte da África
(desde a costa do Atlântico até o Chad)
mandinga (mali) Acima de Serra Leoa
tapa (nupê) Norte da Nigéria
Sudanesas (axé) yorubá (nagô) Nigéria Bahia
dahomey (jejê) Dahomey (Benin)
fanti-ashanti (mina) Ghana
Bantu (mundu) angola, congo, cabinda e Principalmente de Angola e do Maranhão,
benguela Congo Pernambuco,
Bahia, Minas
Gerais e Rio de
Janeiro
Moçambique Moçambique Rio de Janeiro

Ainda que seja um quadro aproximativo e de valor apenas didático, fica evidente
que a formação islâmica foi predominante no início do ciclo, concentrando-se na região
da Bahia. As outras tradições bantu e sudanesa não-islâmica substituíram os
problemáticos filhos de Allah e foram sendo distribuídas pelas outras regiões de
engenhos no nordeste e sudeste brasileiros, e pela região pampeana de atividade mais
pecuária.
No entanto, três importantes concepções de energia sagrada serviram de alicerce
para o espírito afro-descendente: a verdade de Allah dos hausá e malês; o mundu dos
bantu de angola, congo e moçambique; e o axé dos sudaneses yorubá, dahomeyanos e
Fanti-Ashanti. Ainda que guardem grandes diferenças entre si, o mundu e o axé
convergem para o tipo de energia sagrada que Gusdorf (1953) faz referência ao tratar do
mana. É a energia que pode ser transferida para objetos, substâncias e animais, mas que
guarda a significação profunda de re-ligação com o divino.
Em seu livro de memórias, Jung narra uma experiência marcante na sua viagem à
Uganda e Quênia, em 1925. No capítulo entitulado “Viagens - Quênia e Uganda”, ele
faz quinze referências ao crepúsculo africano. Aniela Jaffé confirma o papel central que
este capítulo possui no conjunto da obra, ao registrar que fora, na realidade, o último
capítulo que Jung escrevera. Um capítulo crepuscular. Às demais partes, ele recorrera a
manuscritos de palestras e seminários anteriores:

2
Frazer, Sir James. The Belief in Immortality. Londres: vol.1: 74-5, 1913 apud Eliade, 1979.

12
Ao devolver-me o capítulo ‘Sobre a Vida depois da Morte’, disse: ‘Algo em mim
foi atingido. Formou-se um declive pelo qual me vejo forçado a descer.’ Neste
clima apareceram ‘Últimos pensamentos’ onde se encontram suas idéias, as mais
profundas, aquelas que atingem os horizontes mais longínquos. No verão do
mesmo ano Jung escreveu, ainda em Bollingen, o capítulo sobre ‘Quênia e
Uganda’. (Jaffé apud Jung, 1995:12).
Em Uganda, recebe dos sudaneses o apelido de Mzee (o velho) de cem anos,
embora contasse com apenas 50 anos, mas já tivesse cabelos brancos (p.229). É nesta
oportunidade que conhece um silencioso ritual que consiste na saída de toda a
comunidade das cabanas, que cospe nas mãos e as ergue em direção ao sol nascente.
Embora não soubesse explicar o seu significado, um velho disse que todos veneravam
Adhista
... que é o Sol no momento em que se ergue. Só nesse instante ele era mungu,
Deus. O primeiro crescente de ouro na lua nova na púrpura do céu no Oeste
também é Deus. Mas só nesse momento, depois não. (p.235).
Depois de interpretar a saliva como substância que encera o mana (energia)
pessoal, Jung compreende o ritual silencioso como uma prece: Ofereço a Deus minha
alma viva. Ou ainda: Senhor, ponho meu espírito em Tuas mãos (idem). Tal como
ocorre com os Bakongos na região inferior do rio Congo, no culto a Nzambi Mpungu3 e
no culto a Raluvhimba, deus supremo dos Vendas, tribo bantu na África do Sul,
considerado, também, como doador da chuva (Eliade, 1995:17-9). A substância líqüida
encerra o amalgamento da terra com o divino, soprando o hálito da vida, em ambos os
cultos.
Ainda que, no Brasil, estas referências africanas tenham se metamorfoseado no
ecletismo característico da formação brasileira, veremos que alguns traços ancestrais
permanecem latentes. Renato Ortiz (1978), ao descrever a morte branca do feiticeiro
negro4, seja no branqueamento do campo religioso de origem africano, seja no
empretecimento das religiões importadas (catolicismo, protestantismo e espiritismo) na
constituição da umbanda, observa que a única manifestação religiosa que guarda
referências mais fiéis às origens africanas é o candomblé. Dividido em várias nações
diferentes, a pluralidade interna às práticas do candomblé guarda correspondências com
as origens culturais e cultuais do continente africano. Porém, sucumbindo às mais
diferentes formas de preconceito e proibições, ora sob a chancela do “exótico”, ora do
“grotesco”, as origens na formação mestiça brasileira, quando não constituindo um
“caso de polícia”, foram sendo, forçosamente, esquecidas. Da mesma forma como o
banzo acometia nossos primeiros escravos, a herança dos afro-descendentes no Brasil
costeia limitações sociais, políticas, econômicas e culturais que, talvez, só possam ser
revistas, se considerarmos as velhas vozes que ecoam.
Um moléstia extranha, que é a saudade da patria, uma especie de loucura
nostalgica ou suicidio forçado, o banzo, dizima-os pela inanição e fastio, ou os
torna apaticos e idiotas. Em todos os carregamentos de escravos, na estreita
travessia do Atlantico entre a Africa e o Brasil, a morte cobra um imposto
excessivo. (Ribeiro, 1939:27 - grafia e acentuação mantidos do original).
Ainda não sendo nem banzo nem leso, vejamos algumas características destas
velhas vozes.
3
Cacciatore (1977:269) lembra-nos que Nzambi era o deus supremo dos cultos bantu e de umbanda,
criador e todo poderoso. Foi a única divindade bantu que predominou sobre os nomes das divindades
nagô, fazendo pouco conhecido o nome de Olorum (o supremo ser criador).
4
Adaptação de sua tese de doutoramento em Paris, dedicado ao mestre de todos aqueles que tentam
conciliar psicanálise e sociologia no Brasil, Roger Bastide.

13
Aspectos guerreiros nas mythologias africanas

Uma das imagens mais freqüentes na memória negra e das mais solicitadas por
aqueles que brandem no front das lutas sociais, empunhando suas lanças legais (projetos
de lei de cotas sociais, reparação financeira de afro-descendentes, penas mais graves por
discriminação racial etc.), sem dúvida, é a imagem do guerreiro. Altivo, forte e
destemido, o guerreiro negro jorra energia, oferecendo a própria vida pelo que se
empenha, seja na memória quilombola de nosso Zumbi libertador, morto à traição em
Palmares, seja em Mãe-África nas várias esculturas em ferro e bronze da tradição
yorubá, com seus característicos olhos amendoados enfatizados, representando
guerreiros carregando o antílope, produto de sua caça (Parrinder, 1967:133). Num
painel yorubá da Nigéria, que se encontra no British Museum, figuram dois destes
guerreiros yorubá com lança e espada lutando contra uma enorme serpente –
provavelmente representando o herói mythico Dan – ou Dangbé, fundador da tradição
Dahomey – que, por sua vez, tenta devorar uma tartaruga – símbolo yorubá5 (p.42).
Em África, também temos a figura altamente emblemática do guerreiro masai (da
África do Sul, Kalahari até Moçambique). Alto, esguio e de feições delicadas, o masai
conserva a verve guerreira dos ancestrais. O guerreiro funda o poder patriarcal. Os
masai são dos poucos grupos a escapar da hipotética curva evolutiva, que faz avançar
dos altos e grotescos hominidas mais antigos até os grupos menores e de feições mais
gráceis, como o Homo sapiens sapiens. O outro grupo que não se encaixa nesta curva
bio-antropológica predominante são os aborígenes australianos (de baixa estatura e de
feições mais rudes).
O guerreiro masai que empunha sua lança mantém a cabeça encoberta por uma
espécie de elmo feito de barro úmido. O adolescente, quando se prepara para o ritual de
iniciação, recolhe-se à cabana de forma esférica, onde as mães e outras mulheres irão
lhe preparar o corpo. O ato principal é a raspagem do cabelo. Depois de cânticos
ancestrais e da entrada em transe, o jovem guerreiro estará pronto. Seria apenas
coincidência, nesta passagem iniciática, o fato de recolher-se ao útero materno e ter
feita a sua cabeça? Tal expressão, conhecida no âmbito do candomblé e na umbanda
(embora com importantes diferenças rituais), refere-se à cerimônia iniciática, na qual o
neófito se coloca à disposição do pai-de-santo ou mãe-de-santo, para revelar-lhe o guia
ou orixá que seguirá, depois do recolhimento a lugares sagrados na natureza. Vertentes
desta cerimônia também eram conhecidas como camarinha (Cacciatore, 1977; Bastide,
1980)6.
Os orixás são divindades intermediárias na tradição yorubá entre Obatalá (mais
conhecido como Oxalá, ou Orixalá – o maior dos orixás - filho do ser supremo Olorum)
e os homens. Obatalá tem duas manifestações diferentes, além de figurar, por vezes,
como hermafrodita: jovem guerreiro vigoroso proveniente da nobreza e ancião sábio,
nobre e cheio de bondade, apoiado sobre seu cajado. Em África, seriam em torno de 600
orixás, tendo vindo ao Brasil cerca de 50, reduzidos a 16 no candomblé (Cacciatore,

5
João Ribeiro, em O Elemento Negro (1939), demonstra de maneira muito peculiar como várias lendas
brasileiras, em que figuram a tartaruga, o cácago ou o jaboti, possuem uma origem yorubá.
6
De maneira geral, a iniciação no candomblé segue resumidamente os seguintes passos: determinação do
orixá de cabeça pelo chefe do terreiro através do jogo de búzios; entrada no terreiro e na camarinha;
aprendizado inicial; manifestação do orixá em transe; raspagem da cabeça após o corte dos cabelos;
lavagem com água dos axés e cura do pequeno corte que é feito no alto da cabeça; sundidé (banho de
sangue de animal); banho ritual e pintura tribal; primeira saída da camarinha; continuação do
aprendizado; segunda saída; dia do Orunkó, em que o orixá diz seu nome ao neófito; compra e quitanda
das iaôs; e romaria à Igreja do Bonfim (Cacciatore, 1967:153).

14
1977). Assim como em Cuba e Haiti, estes orixás das forças elementares da natureza ou
rei divinizados foram sincretizados com santos católicos, exibindo uma duplicidade que
lhe garantiram sobrevivência: ancestral africano e santo permitido pela liturgia católica.
Obatalá, por exemplo, pela situação arquetípica de filho do ser supremo, foi
sincretizado com o Cristo católico.
É preciso lembrar que há uma separação primordial entre as divindades maiores
(Olorum da cultura yorubá ou Nzambi bantu) e os homens. Na maioria dos mythos
africanos, os deuses partiram da terra após a criação (Parrinder, 1967), cabendo aos
seres humanos a busca da re-ligação. Não possuímos contato direto com eles, pois estão
numa esfera superior e alheios ao mundo profano (Ortiz, 1978). São as entidades
intermediárias que possibilitam a re-ligação com a dimensão do Sagrado.
Pela verve guerreira, um dos principais orixás é Shango (Xangô). Deus do raio, do
trovão e das tempestades, de caráter orgulhoso, dominador e distribuidor de justiça,
monarca da região que vai do Benin até Dahomey, o quarto rei da mythica cidade de
Oyó, é predominantemente sincretizado com São Jerônimo. Algumas vertentes dizem
que, após sua morte, teria se tornado um orixá. Entre suas esposas, há Oyá (Iansã, no
Brasil) – o próprio rio Niger formado com suas lágrimas, quando o marido se enforcou
na floresta, segundo algumas vertentes; Oxum (personificação do Rio Oxum), orixá dos
rios de águas doces, da riqueza e da beleza, a mais jovem e preferida esposa, de
natureza guerreira, cujo animal epíteto é a pomba (forma através da qual pôde fugir do
cativeiro); e Obá (orixá do Rio Obá), outra guerreira, muitas vezes confundida com
Iansã, a menos amada das esposas. Esta última foi iludida por Oxum, que lhe disse haver
colocado uma das orelhas num prato para o marido como feitiço de amor, o qual comeu
com grande prazer. Obá, imitando-a, realmente corta uma das orelhas que inclui na
refeição. Shango, enojado, repudia-a. Colocando o myhto em ação, a dança nos rituais
brasileiros é feita com uma das mãos sobre a orelha. Para alguns, Shang é filho do
próprio Obatalá. As características heróicas mantêm-se na prevalência da figura das
espadas (epítetos das esposas do orixá guerreiro) que diferem apenas no material: prata,
ferro ou cobre. O fetiche de Shango é um oxê – machado de duas faces (Parrinder,
1967:67) – e uma pedra negra de cachoeira.
Outros orixás guerreiros são semelhantes a Oxóssi: orixá protetor dos caçadores,
possui arco e flecha em ferro, bronze ou metal branco, podendo, também, ser
representado por uma espingarda em miniatura. Sincretizado com São Jorge (Bahia) ou
São Sebastião (Rio de Janeiro e Porto Alegre), sua dança ritual no Brasil imita a caçada.
É ligado a outro orixá heróico que, segundo algumas vertentes (Cacciatore, 1977), é seu
irmão: Ogum. Espécie de ferreiro militar yorubá, Ogum é o deus do ferro e, por
extensão, da guerra, da agricultura e de todos aqueles que trabalham com artes manuais
e instrumentos de ferro. Seu fetiche é justamente uma espada ou a ferramenta de Ogum
– uma penca de ferramentas agrícolas, de caça e guerra presas a um arco de ferro.
Ambos possuem uma filiação matriarcal: Oxóssi, na figura de Odé, está ligado à Lua;
Ogum, seu irmão, assim como Shango, é filho de Yemanjá, a orixá das águas do mar e
da procriação (por isso, sincretizada com Nossa Senhora da Conceição) e de Oranhiã,
fundador mythico da cidade de Oyó, capital do reino yorubá.
Aqui retomo o que parece ser a gênese do regime patriarcal a que alude Ortiz-
Osés (ou diurno, nos termos de Durand). Em profundidade, o regime patriarcal é
devedor e mantido pelo regime matriarcal (ou noturno). A cerimônia iniciática a que me
referi não demonstraria, em seu complexo contexto, que os valores luminosos nos
adornos do guerreiro, sua altivez, sua lança ascencional, a espreita e a caça em atos
ágeis e velozes, a supremacia de sua arte de separar o bem do mal, o fraco do forte, o

15
puro do contaminado, que estariam todos estes valores patriarcais submetidos à
preparação e à iniciação de instâncias matriarcais (Ortiz-Osés, 1989)?

A grande mãe africana

Chegamos, agora, a uma das principais características do arcabouço mythico


africano. Ao contrário do que à primeira vista parece ser predominante, a cultura
africana possui valores matriarcais (noturnos) fundantes. Não seriam sintomáticas a
referência e reverência de grande parte dos afro-descendentes (nos quais me incluo), à
Grande Mãe África? Pari passu à grande mãe do mediterrâneo7, pesquisada por vários
mythólogos herdeiros do Círculo de Eranos; assim como, muito antes da mãe negra,
Lilith (imagem tabu para as correntes cristãs), é a Nanã Buluku da tradição dahomey, a
progenitora do casal gêmeo primordial: Mawu (feminino) e Lissa (masculino) que, por
sua vez, deu origem à humanidade. Etimologicamente, da raiz de várias línguas
sudanesas, a duas vezes mãe – (“na”), vai ser mais cultuada no Brasil, já no século XX,
como a mãe de todos os orixás, a vovó (Cacciatore, 1977:187). O epíteto Buluku,
utilizado na África, é também assaz significativo: bu (tirar uma porção de algo), ru ou
lu na contração fonética (gerar) e ku (morrer) – aquela que extraiu a massa para criar,
gerou e se foi... Os elementos aquáticos nas narrativas guerreiras são bastante presentes,
seja na criação, no amalgamento do barro, na procriação, seja no esposamento. Não
obstante, há uma separação e uma partida logo após a concepção.
Parrinder (1967:21) relata-nos que o casal dahomey Mawa-Lissa, filhos de Nanã
Buluku, são representados pelo Sol (Lissa) que mora no poente e pela Lua (Mawa).
Quando houve um eclipse nos céus, eles fizeram amor e procriaram. Sete filhos tiveram,
sendo que os primeiros – segundo algumas vertentes – teriam sido o deus do trovão e
das tempestades (Shango) e o deus do ferro (Ogum). Na bacia do rio Niger e do rio
Congo, são freqüentes os postes de madeira com a representação de um casal primordial
em seu alto – geralmente a mulher com uma vasilha sobre a cabeça, como vemos no
exemplar do Musée d’Homme (p.20)
Várias são as representações desta mãe ancestral, atualizadas na mãe cotidiana. Na
tradição Zulu (África do Sul), todos são filhos do caniço que, por sua vez, é filho da
água primordial. No Corry Bevington do Arts Council, há uma estatueta em madeira
que representa a grande mãe terra da nação Ibo (p.34), cujo ventre é predominante. No
Pitt Rivers Museum, uma figura de Benin (Nigéria), esculpida em marfim com grande
refinamento, apresenta uma jovem sustentando os seios, ajoelhada sobre a base. Os
adornos, o cabelo e o ventre enfatizam o mistério e a força da fertilidade (p.19). Mesmo
sob a insígnia de Shango, outra escultura yorubá em madeira do Museum of Primary
Art apresenta uma mãe da linguagem do orixá guerreiro com o duplo machado num
elmo em sua cabeça (seu atributo), com grandes seios pontiagudos que alimentam uma
criança (p.35). Outra escultura encontrada com freqüência é a da mãe carregando o filho
às costas, com os seios pontiagudos, carregando um cesto à frente, o corpo todo
adornado com tatuagens e o cuidado com o penteado ritual. Este tipo de escultura em
madeira, muito comum, como a do British Museum (p.91), é utilizado no cotidiano para
conter as sementes do oráculo. Ventre da origem e do futuro. Na mesma linha de
esculturas que servem para a guarda das sementes do oráculo, há uma estatueta em
madeira da tradição Luba (Zâmbia) na coleção do University Museum of Philadelphia,
em que uma mulher sustenta um cesto sobre os braços erguidos. As pernas dobradas e
encurtadas realçam as tatuagens no tronco, dado ao valor estético que possui a tatuagem
7
Aqui me lembro da luminosa citação do diretor espanhol Bigas Luna em seu filme La Teta y La Luna
(1994), dizendo pela boca de seu personagem Tete: El Mediterráneo és un mar para niños....

16
sobre a pele nestas tradições, além dos colares de contas no pescoço e nos braços (p.61).
Outra peça deste mesmo museu, porém pertencente à tradição Bambara de Mali, trata
de uma mulher sentada sobre um banco, com os mesmos seios pontiagudos, pele toda
adornada de tatuagens, uma argola de ferro no nariz e as mãos significativamente
abertas e espalmadas, como que doando seu colo para receber alguém. Trata-se de uma
peça funerária (p.22).
Da Grande Mãe doadora de vida margeando a proximidade da morte, há no
panteão yorubá a figura de Omulu, orixá da varíola e de todas as doenças epidêmicas,
pouco cultuado e muito temido, pois encoleriza-se facilmente, distribuindo doenças;
proveniente da tradição dahomey, é conhecido, também, como senhor dos cemitérios.
Sincretizado com São Lázaro devido às chagas que carrega, possui o rosto e o corpo
coberto por feixes de palha, sua vestimenta característica. Encerra os mistérios da morte
e do renascimento (Cacciatore, 1977:203).
Outra representação imagética altamente emblemática da natureza matriarcal do
imaginário negro-africano é a cabaça universal. É uma cabaça cortada em dois lados
que contém os segredos da vida. Permanece fechada e só os autorizados pelo Sagrado
podem manusear o seu conteúdo. Na parte externa, figuram pequenas esculturas de
madeira. No exemplar yorubá da coleção de Michael Holford (Parrinder, 1967:53), há
um casal primordial de braços dados na parte superior da cabaça e uma serpente python
colorida de azul, preto e branco, encimando-os e unindo-os. A grande serpente ensina os
mistérios da procriação ao casal ancestral 8. A cabaça, na tradição dahomey, aparece
como uma chave para compreender o mundo: cortada em duas metades, a parte superior
é o céu, com as estrelas terminando na borda do azimute. Na parte inferior, concentra-se
o mar (esta é a parte utilizada para se tomar água). Fechada e jogada na superfície da
água, a cabaça flutua, como a terra no espaço infinito. Assim procedeu a serpente Dan
ao constituir o mundo. É ela que sustenta o universo formando quatro grandes pilares,
um em cada canto cardeal. Ou, ainda, numa vertente muito comum, há 3.500 serpentes
enrodilhadas abaixo do mundo e 3.500 acima dele. De qualquer forma, a serpente
dahomey criadora possui, de maneira muito significativa em nossos estudos do
crepuscular, três cores com as quais se veste, formando o negrume da noite, o branco do
dia e o vermelho do crepúsculo. São também as três cores dos pilares (pp.22-3).
Então, no seio das manifestações matriarcais (noturnas) da produção mythica
africana, aproximamo-nos de uma outra característica fundante que melhor nos
esclarecerá sobre a complexidade deste universo simbólico: a conciliação de contrários,
expresso num regime fraternal (crepuscular ou dramático, nos termos de Durand).

A serpente e o pássaro: a complementaridade dos ciclos

Elementos muito presentes na imagética africana são dois animais, a princípio


inconciliáveis: a serpente e o pássaro. De domínio terrestre, a serpente é doadora de vida
e ao mesmo tempo senhora da morte, oculta-se na terra, esquiva-se sobre a água,
inflama-se serpenteante nas chamas da fogueira. O pássaro domina os ares. Cruza o
horizonte em direção ao infinito, vasculha o chão à procura de sementes, fisga peixes
sob a superfície das águas, repousa sobre as árvores. Como dizia o mestre Bachelard
(1990), toda alta folha de uma árvore é uma reserva de vôo.

8
O Ogã Gilberto de Exú, em observação assaz interessante, durante o evento “Negro, Educação &
Multiculturalismo”, na FEUSP, em novembro de 1999, chama-nos a atenção para o aculturamento de
origem católica, utilizando a mesma cabaça no seu trabalho de catequese, atribuindo à cena mythológica a
representação do casal adâmico e a serpente que acarretou a perda do paraíso, tal como figura no Gênesis
bíblico. O desvio significativo, altamente exemplar, fornece muito bem a medida dos etnocentrismos.

17
Na coleção de Michael Holford, encontramos uma estatueta em madeira da
cultura bakongo (próximo ao Rio Congo) e, ainda que portando algumas influências
européias, figura um homem com um tambor sobre a cabeça, no qual contém uma
insígnia com uma serpente enrodilhada, carregando uma segunda serpente nas mãos
(Parrinder, 1967:100). A forma cíclica do enrodilhar da serpente já começa a introduzir
valores cíclicos e, portanto, também ritmo – que o tambor nos lembra. Outra forma
circular muito comum são os braceletes que, inspirados neste movimento cíclico,
configuram-se geralmente em serpentes, como na tradição dahomey (p.31). Justamente
por ter na figura da serpente mythica Dan o articulador de sentido e significado, a
cultura dahomey é bastante emblemática da ordenação reptilínea.
Um tecido dahomey da coleção de
André Held demonstra a natureza desta
articulação: no centro da cena está Dan, o
herói mythico, com a serpente nas mãos.
Circundando-o, há vários guerreiros da
linhagem de Shango, pois estão empunhando
o oxé (machado de dupla face), vestidos com
as faixas cruzadas sobre o peito, que também
são característicos. À esquerda, na parte
inferior, há a figura de uma árvore
(provavelmente referência à Ossaim) e um
outro orixá com instrumento agrário nas
mãos (provavelmente Ogum). Encimando o
tecido, a figura protetora da serpente-arco-
íris. Todos articulados contra o demônio
branco que aparece no terço superior do tecido. Sua calda, suas asas e garras possuem
características européias. Todo o panteão se articula a partir de Dan, protegendo-se do
demônio branco (p.93).
Este herói mythico dahomey é conhecido no Brasil como Oshumaré, seu nome
yorubá. Orixá do arco-íris, é controlador do bom tempo. Sua identificação com o arco-
íris deve-se ao fato de os dahomey verem neste fenômeno celeste uma serpente que
emerge das profundezas e vem beber os céus. Ao mesmo tempo, é confundido com
Orungã que violou sua mãe Yemanjá: refere-se à imagem do arco-íris penetrando no
mar. Em algumas vertentes, é Oshumaré que leva água ao palácio de Shango, nas
nuvens. Seu objeto de fetiche são as duas serpentes de ferro que leva na mão. Tem
natureza hermafrodita, sendo de princípio masculino durante seis meses, habitando
próximo às árvores e outros seis meses de princípio feminino, quando assume a forma
da bela ninfa Bessém ou Dani, forma feminina de Dan, vivendo nas matas e lagoas,
alimentando-se de peixes. Outra representação comum desta entidade é a oroboros
africana, a serpente comendo o próprio rabo, insígnia de eternidade e constância, tal
como aparece no baixo relevo do muro do palácio do rei Ghezo de Dahomey, hoje
convertido em museu (p.38).
Outro orixá deste regime fraternal é Ossaim, que figura no mesmo tecido
representado pela árvore. Conhecido, também, como Ossanha, é o orixá das folhas e
ervas medicinais de função litúrgica, essenciais a qualquer ritual, pois é através delas
que se consegue a força mística do axé, purificação e preparação ritual (Cacciatore,
1977:208-9). Espécie de Esculápio africano que possui também poderes advinhatórios
na África, Ossaim ora é cultuado como orixá masculino e sincretizado com São
Benedito, ora como orixá feminino, sincretizado com a figura indígena da Caapora
(como no Rio Grande do Sul). Neste caso, veste verde, utiliza um chapéu de couro ou

18
elmo de plumas e carrega um galho nas mãos. Seu objeto de fetiche é um ferro com sete
hastes pontiagudas e um pássaro sobre a haste central. Como no caso de Oshumaré, os
elementos aqui presentes remetem-nos novamente a um universo hermesiano: a
conciliação de contrários, o chapéu/elmo de plumas (chapéu com asas de Hermes), as
duas serpentes e o pássaro sobre a haste (caduceu de Hermes) que, por sua vez,
remetem-nos a um universo mythico dramático (crepuscular ou fraternal, nos termos de
Ortiz-Osés).
Complementando estas características, há, ainda, a figura controversa de Eshu.
Cada uma das deidades (orixás) que nasceram do casal primordial possuem uma
linguagem distinta e, para propiciar a comunicação dos mortais com eles, Eshu (ou
Legba, na tradição dahomey), como uma espécie de Mercúrio latino ou Hermes grego,
serve de intermediário. Na versão dahomeyana, ele está mais ligado a Ifá (orixá do
destino) e aos poderes da adivinhação e dos oráculos (Parrinder¸1967:13, 21, 90 e 91).
Estes símbolos de complementaridade e conciliação de contrário ficam ainda mais
evidentes no portal do palácio real de Dahomey (no Musée d’Homme, p.40). Neste,
muito embora se trate da vitória de uma civilização sobre a outra, há, em sua parte
superior, os símbolos yorubás: um camaleão que possui ligados a si o crescente lunar e
o Sol. Espadas e espingardas povoam os espaços no entorno e, na parte inferior, está o
oroboros, símbolo dahomey.
Numa rebuscada proa de canoa da coleção do Museum für Völkerkunde, em
Munique, da tradição Douala (República dos Camarões), nas significativas cores
amarela, vermelha e azul, várias figuras européias são rodeadas de serpentes. O mais
interessante é que há um pássaro bicando cada serpente (p.108). Outra figura que aponta
na mesma direção é uma máscara yorubá da coleção Giraudon (p.129) que apresenta as
mesmas cores (de Oshumaré ou Dan) e que possui sobre a cabeça a cena de uma
serpente que lhe contorna, sendo bicada por um pássaro. Mais recente, pertencente à
coleção do British Museum, o cabo de um guarda-chuvas esculpido em madeira com
riquíssimos detalhes apresenta uma serpente enrodilhada sob um pássaro de bico
proeminente. Nesta mesma direção, um provérbio da cultura Ashanti (Ghana) diz: a
serpente vive sobre o chão, mas Deus a oferece ao bico de um pássaro (p.131). A
complementaridade entre os dois princípios: serpente (noite) e pássaro (dia), faz-se no
fio da narrativa. O elemento aéreo na figura do pássaro também pode indicar a
influência e o confronto islâmico sobre a natureza telúrica dos povos sudaneses,
representados pela serpente9.
Na Ilha de Malagasy, um mytho de origem assinala, de maneira muito peculiar à
sensibilidade africana, seu caráter fraternal: o Criador teria criado dois homens e uma
mulher separadamente e nenhum deles sabia da existência do outro. O primeiro homem
resolveu esculpir em madeira a figura de uma bela mulher e, depois de contemplar a
imagem criada, apaixonou-se por ela, assim como ocorre com o mytho de Pigmaleão.
Outro dia, o segundo homem, passando por ali, deparou-se com a imagem em madeira e
também enamorou-se, porém, resolveu cobrir a mulher nua com vestimentas e adornos
para embelezá-la ainda mais, demonstrando todo seu amor. Num terceiro dia, a mulher,
também passando por ali, deparou-se com a imagem na madeira e rogou ao Criador que
lhe desse vida, clamando por alguém que lhe aliviasse a solidão. O Criador, então,
prometeu-lhe conceder vida à estátua se ela a levasse para a cama. Na manhã do dia
seguinte, a estátua transformou-se numa bela e formosa mulher. Quando os dois homem
voltaram e a viram, reclamaram-na. O Criador interveio e decretou que o primeiro
homem que a havia esculpido na madeira seria seu pai, pois a criara. A mulher que lhe
9
Etimologicamente, há probablidades de o termo Sudan ser decomposto em su (lugar) e Dan (a serpente
mythica), o que significaria a terra de Dan.

19
havia rogado para dar vida seria, a partir de então, sua mãe. E o homem que demonstrou
seu amor dando-lhe as roupas e os adornos seria o seu marido. Destes dois casais surgiu
a humanidade (p.43).

Sangoma na tradição zulu: a arte das contas, do canto e dos santos

Se nos lembrarmos de um outro mytho que explica o fenômeno da morte, na


tradição zulu, veremos que este universo hermesiano está marcado, também, pela figura
do mensageiro: Deus havia mandado o camaleão levar uma mensagem aos homens
dizendo que eles eram imortais. O camaleão, faminto, distrai-se no meio do caminho.
Deus manda outra mensagem, desta feita por um lagarto: a partir de então, os homens
conheceriam a morte. O lagarto chegou primeiro e eles tornaram-se mortais. Com a
mensagem, pois, a morte entra no mundo10.
Esta comunicação será justamente uma das características mais marcantes da arte
de compor colares, toucas, braceletes com contas de vidro, pedras, gemas, sementes e
búzios na cultura zulu. Esta arte chama-se sangoma. Os zulu são um grupo Nguni de
tradição oral que se subdivide, predominantemente, nos grupos Xhosa, Pondo e
Thembu, tendo suas influências chegado até a região de Moçambique. No entanto,
podem-se verificar padrões semelhantes às composições zulu na arte das contas em
Ghana, Songhai, Mali, Nigéria e República dos Camarões. Portanto, muito presentes,
também, nas nações sudanesas.
No entanto, é na tradição zulu que o sangoma atinge níveis semânticos
extraordinários. Há um código de construção das peças que a mulher zulu domina e que
serve de instrumento educacional para as mais jovens, orientando-as nos
relacionamentos com os homens (Schoemann, 1983). Seus intrincados sistemas de
figuras geométricas e cores abrem combinações que levaram a denominar os sangomas
cartas de amor. Twala (1951) chega a chamá-los de inspirada forma de poesia e arte
visual, com determinados papéis e uma gramática. Alguns de seus pressupostos são: as
contas possibilitam uma comunicação entre homens e mulheres, evitando o desconforto
dos primeiros contatos diretos; são desenhadas e confeccionadas pelas mulheres e
podem ser presenteadas aos homens; o uso do sangoma dirá se é casado, a que família
pertence, qual relação possui dentro do grupo, evitando relações incestuosas, qual tipo
de mulher deseja etc.; os sistemas simbólicos e arranjos finitos de formas geométricas
(com predominância dos triângulos) e cores são padrões constantes; as cores possuem
valores negativos e positivos (com exceção da cor branca que não possui conotação
negativa); são fatores de influência na composição da mensagem a combinação e arranjo
das cores, o contexto do uso e a natureza do sangoma.
Na utilização dos triângulos, é convencionado que cada um dos ângulos
representa o pai, a mãe e a criança. Dependendo da posição, o triângulo pode indicar se
a mulher é casada (apontando para cima, formando um ovo estilizado – símbolo de
fertilidade); se o homem é solteiro (apontando para baixo, formando um falo) que, junto
com as cores, configuram a mensagem. Vejamos um exemplo desta semântica zulu no
quadro abaixo:

COR VALOR POSITIVO VALOR NEGATIVO


Preto Casamento, recuperação Pesar, desespero, morte
Azul Fidelidade, convite Insensibilidade, hostilidade
Amarelo Saúde, florescimento, fertilidade Ansiedade, maldade

10
Abrahamson, Hans. The origin of Death: studies in Africa Mythology. Uppsala, 1951, apud Eliade,
1979. Vide, também, Parrinder, 1967.

20
Verde Contentamento, benção doméstica Doença, discórdia
Rosa Nascimento, promessa Pobreza, preguiça
Vermelho Amor físico, forte emoção Cólera, impaciência
Branco Amor espiritual, pureza, virgindade -o-

Desta forma, compõem-se sangomas os mais variados. O Ibheqe é uma espécie de


tira que adorna o pescoço. O Ucu, uma forma de colar de apenas um fio de contas,
geralmente composto com vários outros. O Umbhama é uma tira delicada que serve
como acabamento para as tradicionais toucas femininas zulu. Essas chamam-se Isicholo
(penteado de mulher casada), onde aparecem as Amaganda (ovos), indicando que ela
possui filhos. Quando não há esta indicação, chama-se Isambozo e se constitui com
pequenos triângulos arranjados ao longo da borda da touca.

Os que mais nos interessam no presente momento são os sangomas chamados de


Ishungu: uma espécie de colar com um amuleto esférico bordado com os mesmos
códigos e utilizados pelos sangoma, com uma finalidade litúrgica. Aqui temos a
segunda significação para o mesmo termo na cultura zulu. O Sangoma é, também, um
líder da comunidade, xamã que trabalha com a medicina tradicional, com poderes
adivinhatórios e que, freqüentemente, é tomado em possessão pelos espíritos ancestrais.
No Zulu Beadwork Sangoma Collection de Schoeman, há um exemplar de ishungu
bastante antigo, com a figura de uma mulher bordada em contas, a partir de triângulos,
sob fundo branco e que teria sido utilizado por um sangoma, para induzir fertilidade a
uma mulher da comunidade que tinha dificuldades em conceber (Schoeman, 1983).
Significativamente, quando Nelson Mandela tomou posse da República Arco-Íris,
em 10 de maio de 1994, fez questão de que o ato fosse frente ao povo e ao ar livre, fora
dos suntuosos edifícios do Parlamento sul-africano, erguido sobre o sangue do
apartheid. Os generais, que o perseguiram durante tantos anos, agora o escoltavam.
Fôra, justamente, um sangoma zulu que, naquele ato, exorcizara os fantasmas. Em
setembro daquele mesmo ano, um congresso de sangomas exprimia seu desejo de
reconhecimento oficial da terapia tradicional com o mesmo status da medicina
ocidental.
Os sangoma são pessoas “escolhidas” pelos espíritos ancestrais para a tarefa de
conduzir a saúde espiritual da comunidade. Não se é sangoma porque se quer. Os
futuros sangomas são visitados no meio da noite pelos espíritos ancestrais e, em
conseqüência, não conseguem dormir pelas transformações internas e devido à
responsabilidade perante a comunidade. Um canto característico desta fase da escolha
do sangoma é Angilalanga (Eu não durmo). Seu caráter solidário e fraternal, além do
aspecto medicinal, baseia-se, sobretudo, no respeito à ancestralidade. Uma das canções
para a invocação dos espíritos ancestrais chama-se Ihoyiya (invocação), utilizada
quando alguém está sob possessão ou se invoca a cura de algum doente. Outra canção

21
diz: wamemez'Umngoma, ndiyagula ndinani na? Ndinenhloko ndinehlaba, ndiyagula
ndinani na? (ndinani na = O que eu tenho?). O doente solicita ao sangoma que, pela
intervenção dos ancestrais, diga o que ele tem, qual a origem de suas dores. Toda a
comunidade invoca aos ancestrais que iluminem o sangoma para a cura (Makeba, 1988).
Este aspecto solidário é tão presente na cultura zulu, que tanto na prece de
invocação como no agradecimento, a comunidade irmana-se com o sangoma. Por
exemplo, o canto Baya Jabula (Eles se regozijam) é de agradecimento, quando alguém
é curado pela intervenção dos ancestrais no sangoma: Bayajabula abangoma, eha eya
nembala bayajabula abangoma. Aproximadamente, a citação significa: Nós nos
regozijamos quando os ancestrais dão ao sangoma o poder de cura e dá saúde a um
dos membros da comunidade, pois quando este está com boa saúde, é a comunidade
que tem boa saúde. (Makeba, 1988).
Uma escultura em ébano de Moçambique,
pertencente à coleção do Museum für Völkerkunde
(Parrinder, 1967:97), representa um antigo medicine-
man, um sangoma com várias tatuagens na pele e o ar
sereno e altivo de quem é respeitado pelo que ele
representa. Ele intermedia as forças da natureza, os
espíritos ancestrais e o Sagrado, num trabalho,
essencialmente, comunitário.
Estes aspectos levam-nos a perceber como se
articulam as contas, os cantos e os santos na
característica principal das mythologias africanas, que
vimos demonstrando ao longo deste ensaio, tal como
um presente sagrado da tradição zulu: a idéia de
ancestralidade. Este será o fator primordial e necessário para que a busca de uma
identidade não seja apenas a busca morta de verbetes em etimologias perdidas ou a
mímese vazia de estereótipos. Talvez, aprendendo com as várias acepções de sangoma,
percebamos que o fio narrativo somente se articula e configura sentido e significado,
quando ele está vivo no seio de nossa própria comunidade. O canto invoca os santos.
Disto não se conclui que estamos negligenciando as limitações econômicas,
raciais, sociais, políticas que cerceiam os grupos afro-descendentes (o que é um contra-
senso, pois a maioria da população brasileira é mazomba, mestiça). As raízes históricas
do racismo brasileiro (Silva, 1987) já foram muito bem expostas e discutidas em vários
espaços que tendem a ampliar-se, com a chegada à intelectualidade acadêmica de
maiores contingentes afro-descendentes. Seja por uma maior flexibilidade do jogo
social, seja pela valentia de sua insistência heróica. A lança tornou-se caneta e, hoje,
notebook.
Entrementes, a mythologia adverte-nos novamente: a razão das dores talvez esteja
dentro de nós mesmos. O mestre Roger Bastide (1980:82-5) confia-nos as analogias
entre a cerimônia da lavagem das escadas da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim e o
mytho africano com o qual foi sincretizado, reforçando, também, a natureza hermesiana
desta narrativa. Oxalá, já velho e cansado, morando com um dos filhos na mata, queria
ver seu outro filho Shango, rei dos yorubá, antes de morrer. Bastide salienta que os
deuses africanos morrem! Como nada se faz sem consultar os oráculos, Oxalá ouve a
interdição do babalaô ao "ler" as nozes do Ifá, proibindo-lhe a viagem. Porém, o pai
parte mesmo assim, guiado pela saudade. Após várias outras peripécias que aqui podem
ser suprimidas, Oxalá, já na terra dos yorubá, encontra um cavalo perdido e tenta
capturá-lo para devolver ao dono. No entanto, guardas o confundem com um ladrão,

22
pois o animal era, exatamente, o cavalo de Shango. Espancam Oxalá e o prendem.
Preso, agoniza nos porões do palácio durante sete anos.
Serão sete anos de intempéries e catástrofes no reino yorubá, perdendo-se as
colheitas, morrendo o gado, as mulheres tornando-se estéreis. O rei Shango, preocupado
com tudo e sentindo-se impotente, consulta o oráculo para saber a razão de tudo. O
babalaô responde-lhe: procura nas prisões do teu reino. Seguindo as orientações do
oráculo, Shango percorre todas as prisões e na cela fria encontra o próprio pai. Manda,
imediatamente, as mulheres buscarem água pura na fonte, sem cumprimentar ninguém
pelo caminho, em sinal de pesar. Com a água, Shango lava o pai, dá-lhe de beber e
oferece-lhe um banquete. Depois o envia de novo para casa, auxiliado por um dos
servos, pois, após ter apanhado dos guardas, ficara manco. A festa de Oxalá no
candomblé lembra esta passagem, quando a pedra branca de Oxalá é guardada num
santuário por sete dias. As filhas de santo, inteiramente vestidas de branco, solenes e
sem cantar nem falar, vão até a fonte buscar a água com a qual a pedra sagrada será
lavada: é a lavagem de Oxalá por seu filho Shango, momento, então, em que irrompem
os cânticos. A lavagem da escadaria da Igreja de Nosso Senhor do Bonfim, sincretizada,
é a lavagem da pedra branca de Oxalá.
É propriamente o re-encontro com a ancestralidade que possibilita o renascimento.
Descobri-lo preso nos porões da consciência...
De uma apropriação mazomba da concepção de sangoma, temos a noção de
cangoma, que mantém a idéia de xamã, escolhido e portador das vozes ancestrais,
mesmo que sob o cativeiro. Como uma mensagem antecipatória para os nossos atuais
afrodescendentes, um tema popular com fortes influências do período da abolição,
gravado na voz da saudosa Clementina de Jesus, exemplifica este “despertar” da
ancestralidade para a consciência que dorme:
Tava durmindo, Cangoma me chamou
Disse: Levanta Povo! Cativeiro já acabou…11

No entanto, o aspecto para o qual chamamos a atenção, aqui, possui valor


antropológico. Uma desorientação ontológica (Gusdorf, 1953) grassa o homem
moderno numa amplitude inédita. Na selva tecnológica e na barbárie eletromecânica,
talvez precisemos ouvir novamente as antigas vozes ancestrais que continuam ecoando.
As contas nos lembram, os cantos revivem, os santos procuram... Apenas avisam: as
vozes ancestrais ecoam de dentro.

Dedico este artigo à memória daquela que cuidava dos remédios,


negra e índia mongoió de São Jorge dos Ilhéus, Maria Silvina dos
Remédios, e daquele que, negro e filho de portugueses, pastor
protestante, ensinou-me o caminho da busca do Sagrado, João
Baptista Pereira dos Santos, meus avós (in memoriam).

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

ALIA, Ramiz. Africanos: A Tríplice Herança. Londres: BBC, vídeo VHS, 1991.
BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação do movimento.
São Paulo: Martins Fontes, 1990.
BASTIDE, Roger. Brasil, terra de contrastes. Rio de Janeiro: Difel, 10a. ed., 1980.
11
Original em “Canto Popular do Nordeste”, Coleção Discos Marcus Pereira, 1978. Outra versão mais
recente se encontra em Mawaca. Tucupira Astrolábio, Ethos Produtora de Arte e Cultura, 2000.

23
CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1977.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
ELIADE, Mircea. O Conhecimento Sagrado de Todas as Eras. São Paulo: Mercuryo,
1995.
ELIADE, Mircea. Ocultismo, Bruxaria e Correntes Culturais: Ensaios em Religiões
Comparadas. Belo Horizonte: Interlivros, 1979.
FERREIRA SANTOS, Marcos. Práticas Crepusculares: Mytho, Ciência & Educação
no Instituto Butantan - um estudo de caso em Antropologia Filosófica.
SãoPaulo: FEUSP, tese de doutoramento, 2 vols., ilustr., 1998.
________. Música & Literatura: O Sagrado Vivenciado. In: PORTO, SANCHEZ
TEIXEIRA, FERREIRA SANTOS & BANDEIRA (orgs.). Tessituras do
Imaginário: Cultura & Educação. Cuiabá: Edunic/CICE/FEUSP, 57:76, 2000.
GASTER, Theodor H & FRAZER, James J. Mito, Leyenda y Costumbre en el Libro del
Genesis. Barcelona: Barral, 1971.
GUSDORF, Georges. Mythe et Métaphysique. Paris: Flammarion, 1953.
________. Professores para quê?. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
JUNG, Carl Gustav. Sonhos, Memórias, Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
17a., 1995.
MAKEBA, Miriam. Sangoma. New York: Imaginary Entertainment, 1988.
ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro. Petrópolis: Vozes, 1978.
ORTIZ-OSÉS, Andrés. Filosofia de La Vida (Así No Habló Zaratustra). Barcelona:
Editorial Anthropos, 1989.
PARRINDER, Geoffrey. African Mythology. London: Paul Hamlyn, 1967.
PINSKY, Jaime. Escravidão no Brasil. São Paulo: Global, 4a. ed., 1984.
RIBEIRO, João. O Elemento Negro: História, Folklore, Linguística. Rio: Record, 1939.
SÁEZ, Oscar Calavia. Fantasmas Falados: Mitos e mortos no campo religioso
brasileiro. Campinas: Editora da UNICAMP, 1996.
SCHOEMAN, Stan. Eloquent beads, the semantics of a Zulu art Form. Africa Insight.
Vol. 13, nº 2, 1983.
SERRES, Michel. Filosofia Mestiça : Le Tiers-instruit. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1993.
SILVA, Martiniano J. Racismo à Brasileira: Raízes Históricas. Brasília: Thesaurus,
1987.
TWALA, Regina. Beadwork in the Zulu cultural tradition. African Studies. Vol. 10, nº
3, pp. 113-23, 1951.

24
VALHEI-ME MEU SÃO BENEDITO!
(Fé, Resistência e Educação entre os Negros Brasileiros)

Elaine Pereira Rocha*

Todos os anos, em datas que variam de acordo com as tradições locais, cidades do
interior de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goiás realizam a festa de São
Benedito. Um espetáculo de orações, comidas, cantos e danças que atrai pessoas de
diferentes idades, que vêm festejar o santo e cumprir promessas.
Os fiéis preparam-se durante um largo tempo, que varia conforme a amplitude dos
festejos e pode exigir uma complexa organização, com grupos de festeiros dividindo
tarefas como a elaboração da programação, que inclui muitas vezes a missa, novenas,
procissão, seleção de músicas sacras e confecção de enfeites para a Igreja e altares.
Do mesmo modo, cuidar das comidas e bebidas implica na arrecadação de
alimentos e na divisão das tarefas para a preparação (descascar, cortar, temperar,
cozinhar, guardar, servir) e uma comissão é especialmente designada para angariar os
fundos e doações em geral que servirão para ornamentos, leilões, velas e hospedagem
de festeiros.
A preparação de mastros e bandeiras de São Benedito, que deverão ser hasteadas
no terreiro da igreja, no auge da festa, pressupõe talentos artísticos e habilidade para
trabalhar com a madeira, sendo normalmente parte de destaque dos preparativos. Além
disso, há tarefas individuais como a preparação das vestes de anjos que as crianças usam
durante a procissão.
Durante a festa, tradicionalmente grupos apresentam espetáculos moçambique e
da congada, um misto de dança e ritual no qual são representadas figuras como rei,
rainha, princesas, porta-bandeiras e pajens, entre outros personagens. Estes espetáculos
apresentam elementos da herança medieval portuguesa mesclados com outros, oriundos
da África, reinventados no Brasil, mostrando uma riqueza de cores, instrumentos,
ritmos.
A devoção a São Benedito teve origem na Itália, no século XVI, quando um
monge descendente de etíopes, ainda em vida conquistou a fama de ser milagroso, por
haver curado pessoas que recorriam ao mosteiro quando muito doentes. Chegou ao
Brasil no final do século XVII, conquistando logo fiéis entre os negros escravizados,
libertos e mestiços que se identificavam com o santo.
A Igreja, que também possuía escravos e tinha o dever de zelar pela ordem na
colônia, estimulava tal devoção, pois Benedito era o tipo exemplar a ser seguido por
todos os negros escravizados: era bom e prestativo, era caridoso, humilde e submisso.
Por outro lado, os escravos viram em São Benedito um irmão da raça. Uma pessoa
de origem africana que possuía talentos, poderes e santidade, o que contradizia o
violento cotidiano em que esses negros viviam, no qual lhes era dito ou demostrado, a
todo momento, que aquelas pessoas eram escravas porque eram negras, porque eram
ignorantes e não serviam para nada além do trabalho pesado e da servidão.
A devoção assumiu o caráter de estímulo, uma esperança de valor para os que
tinham a pele escura e o sangue africano. O santo tornou-se íntimo daquelas pessoas,
que viam nele um fiel protetor contra os males visíveis e invisíveis, um advogado diante
de Deus.

*
Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo.

25
À primeira vista, poder-se-ia dizer que os principais fundamentos da fé católica
estavam traduzidos na devoção a São Benedito, muitas vezes associada à devoção à
Nossa Senhora do Rosário (que livrou os cativos dos muçulmanos), porém as fortes
raízes da cultura africana se mantinham, fosse na forma com que esculpiam estatuetas
com a imagem em pequenos pedaços de madeira, trazendo-as junto ao corpo, fosse nas
palavras estranhas aos brancos, utilizadas nas preces e evocações.
Com o tempo, surgiram muitas lendas de São Benedito entre as quais: que era um
escravo cozinheiro que roubava pão e levava aos companheiros famintos da senzala;
que vivia na senzala e sempre fugia para adorar a Nossa Senhora, que aparecia sob as
águas de uma lagoa, razão pela qual o patrão mandou que colocassem guizos em seus
pés, para que, ao fugir da senzala, o barulho o denunciasse; que era amigo de Ifigênia
(uma santa mestiça), com quem trabalhava na cozinham e ajudava os companheiros da
senzala.
Enfim, uma grande quantidade de estórias foi transmitida de geração em geração,
justificando a manutenção da imagem na cozinha até os dias de hoje, sua presença nas
capelas de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos ou a ornamentação dos
dançarinos das festas de São Benedito com guizos.
A fé em São Benedito acabou adquirindo um caráter didático, numa educação
para a resistência, contrariando os anseios pacificadores e conformistas que a Igreja e o
Estado colonial alimentavam ao estimular a sua prática. A tradição dos festejos
atravessou o período colonial, resistiu às pressões do período pós-abolição, quando
eram reprimidas manifestações culturais negras, por serem consideradas primitivas e
inadequadas a uma nação que se pretendia progressista e civilizada.
A socialização do momento da festa (as danças, as comidas e os batuques) e, mais
ainda, a organização para a realização da festa (divisão das tarefas e gerenciamento de
fundos), somada à complexidade dos quadros das irmandades que se formaram pelo
Brasil afora, desde a chegada da fé ao Brasil, podem ser consideradas como um dos
vetores da resistência afro-brasileira.
Os locais de sociabilidade dos negros, fossem os seus terreiros de candomblé,
fossem os espaços onde se reuniam para sambar ou batucar, eram sempre visados pelas
autoridades locais e pela polícia, obediente ao Estado que se ressentia da ausência de
controle sobre esses festejos. Ainda assim, essas formas de sociabilidade sobreviveram
até os nossos dias.
Por muitos anos, e ainda hoje, as organizações em torno da devoção a São
Benedito supriram um espaço de educação e transmissão de conhecimentos, que inclui a
aprendizagem dos ritmos sonoros e das danças, a transmissão de conhecimentos pela
tradição oral, pelas lendas e outros ensinamentos relacionadas à vida do Santo e à
vivência da própria comunidade.
A participação indiscriminada de homens, mulheres e crianças de todas as idades
propiciava a troca de experiências e o desenvolvimento de vínculos de solidariedade e
mesmo de auto-afirmação, à medida que o garoto e a garota poderão vir a ocupar
lugares de destaque nos festejos, como reis e rainhas, os dirigentes das bandas e dos
grupos musicais, as puxadoras de ladainhas ou simplesmente alguém que se destaque à
sua própria maneira, seja como dançarino, seja como doceira. Todos têm valor.
Assim, a festa vem ocupando um espaço que o sistema educacional ainda não
atingiu, que é o desenvolvimento da auto-estima dos alunos negros e mestiços pela
valorização da sua cultura e pelo reconhecimento da função dos elementos das tradições
culturais na formação social, cultural e histórica do país.
A negligência do governo em relação à história e cultura das comunidades negras
tem custado caro ao país, ao apontar poucos caminhos para negros e seus descendentes

26
trilharem em busca de um futuro melhor. Não vai longe o tempo em que os veículos de
comunicação mostravam como única saída para os jovens negros o futebol para os
meninos e o palco das casas de espetáculo para as meninas.
A razão disso vem daquilo que Célia Marinho de Azevedo (1987) chamou de
“medo branco”, ou seja, o medo da inversão da ordem social que tomou conta das altas
camadas da sociedade brasileira por ocasião da abolição da escravidão, levou a
sociedade a adotar um padrão de exclusão que perdura até hoje: a construção de uma
imagem negativa para o negro brasileiro1.
A manutenção da ordem, ou seja, do status quo perpassa pelo controle dos meios
de comunicação e de informação (inserindo-se aqui a escola), sendo preconizada pelo
Estado, que tem nessa ordem social o único instrumento de controle da população. Tal
situação, gerou um fenômeno social, no qual a única possibilidade de ação para os
excluídos ou atingidos pelos efeitos dessa política é compreender a si próprio,
transgredindo as imposições imaginárias ou reais traçadas pelos detentores do poder.
O auto-reconhecimento conduzirá à valorização de si mesmo e a uma visão cada
vez mais clara dos mecanismos que agem contra o indivíduo ou o grupo social; a partir
daí ele poderá adaptar-se, conformar-se ou resistir, sendo que nenhuma dessa variáveis
são absolutas ou isoladas.
A compreensão da sua realidade e da sua história, por meio da valorização da sua
cultura, poderia levar os alunos de ascendência africana a distinguir momentos em que
adaptação, conformação e resistência foram elementos de uma mesma ação, cujo mais
importante exemplo é a própria resistência dos negros, tanto física quanto
culturalmente. Ao excluir os negros dos livros didáticos e paradidáticos, bem como dos
meios de comunicação e das políticas de promoção social de caráter efetivo, o Estado
Brasileiro condena a si próprio à ignorância e uma parte significativa da sociedade ao
isolamento.
De fato, é como se existissem dois padrões de cultura brasileira, um – alimentado
pelo poder hegemônico – que trata a cultura negra como uma espécie de ilha, à qual só
se tem necessidade de acesso no Carnaval, e outra – a que existe na prática social do
povo brasileiro – que mantém um diálogo intenso nos mais diferentes âmbitos.
O silêncio quase absoluto em que os negros têm permanecido dentro dos meios
acadêmicos e culturais brasileiros, aliado à maneira como algumas políticas são traçadas
para o negro – muitas vezes contra o negro – faz pensar na história de Robinson
Cruzoé. No livro, o personagem título é obrigado a conviver com um desconhecido do
qual, a princípio, ele só conhece a pegada na areia. Como uma informação incompleta,
aquela marca faz o europeu imaginar monstros e canibais de ferocidade ilimitada,
levando-o a tomar atitudes de defesa.
Posteriormente, já em contato com o nativo, mas ainda sem conhecê-lo, Robinson
não lhe dá a chance de mostrar quem é, batiza-o como um dia da semana, deixando
clara a sua exclusão no campo da humanidade. Passa, então, a tentar ensinar Sexta-
Feira a realizar tarefas básicas de sobrevivência na ilha, como se o nativo nada soubesse
de aproveitável e toda a sua existência se resumisse ao que o europeu pensou a seu
respeito (Certeau, 1994).
As comunidades negras brasileiras, das metrópoles ou das pequenas cidades do
interior, ao não terem seu passado reconhecido como história, correm o risco de
tornarem-se sextas-feiras e terem (quando muito) seu passado reconstituído por pessoas
alheias à sua cultura, que fazem dos negros uma unanimidade histórica, de uma história
que é reinventada pelo elemento alienígena e transmitida ao próprio nativo como a mais
1
Outros autores também trataram do tema, destacando o papel da construção de uma imagem negativa do
negro para a sua exclusão social no Brasil, entre eles, Sidney Chalhoub e Lilia Moritz Schwarcz.

27
profunda das verdades. Em cada um desses casos, o povo é convidado a assistir a um
espetáculo, no qual ele mesmo é um dos personagens representados, e levado a acreditar
naquela representação até que o espetáculo seja substituído por um outro, o que ocorre a
cada vez que o público se recusa a acreditar no roteiro a ele apresentado.
De certa forma, é o que vem acontecendo hoje, quando, beneficiados pela lei que
impõe a obrigatoriedade do ensino básico às crianças, os negros conseguiram o acesso à
educação que por tantos anos lhes foi negado, logrando melhorar seus padrões de
consumo e, em conseqüência, alterar gradativamente sua imagem no mercado.
Logicamente, não se pode ignorar que tal benefício é também gerado pelo medo
que essas crianças inspiram nos órgãos públicos e em parte da população, como se
fossem bandidos em potencial, portanto, mantê-los na escola é mantê-los sob controle.
Mais uma vez as regras de um Estado historicamente opressor foram usadas em
benefício dos historicamente oprimidos.
A possibilidade aberta, nos últimos anos, com a ampliação das escolas públicas e
mesmo a pressão da sociedade para que todas as crianças sejam alfabetizadas têm
contribuído para a progressão deste quadro, da mesma forma que a abertura das
comunicações de massa e o contato com outros países com população negra, como os
Estados Unidos, o Caribe e os países africanos, leva os brasileiros a reconhecerem
valores em sua própria etnia e, portanto, a reconhecerem valores em si mesmos, a
buscar direitos civis e a lutar para o cumprimento das leis.
De qualquer maneira, trazer para a escola um estudo mais aprofundado de
expressões culturais, como as festas populares, poderia lançar mais luz a uma riqueza de
dados que reconheceriam identidades diferenciadas a comunidades negras e que,
somados e analisados, poderia oferecer meios de intervenção na realidade e de
construção de uma nova ordem sócio-cultural, menos excludente.
A festa de São Benedito é apenas uma das expressões culturais dos negros
brasileiros, contendo nuances variados, cuja dinamicidade se explica pela sua trajetória
no tempo, pelas influências externas e pelo contexto sócio-econômico e geográfico no
qual se insere.
O ponto de convergência dessas festas em louvou ao santo negro é justamente a
alegria dos festejos, a presença da música, das comidas e a reinvenção das tradições
mais longínquas. Comemora-se, a vida, a alegria de ser negro e a certeza que todos têm
o seu valor e um lugar na comunidade.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Onda negra e medo branco. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A festa do Santo Preto. Rio de Janeiro: INF/UFGo,
1985.
________. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. São Paulo:
Brasiliense, 1980.
CERTEAU, Michel de. “Citação de Vozes”: A invenção do cotidiano. Rio de Janeiro:
Vozes, 1994.
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. São Paulo: Cia. Das Letras, 1990,
CHAUÍ, Marilena de Sousa. Conformismo e resistência. São Paulo: Brasiliense, 4ª
edição, 1989.
SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina. Mentes insanas em corpos rebeldes. São
Paulo: Scipione, 1993.

28
UMA LEITURA DO RACISMO A PARTIR DAS NARRATIVAS BÍBLICAS.

Julvan Moreira de Oliveira*

Introdução

As questões sobre raça e racismo no corpus bíblico são problemas espinhosos,


albergados em densa moita de complexidades e, talvez, de controvérsias, de nível
etnológico, filológico, teológico e histórico. O tipo racial específico dos hebreus é muito
difícil de se determinar com precisão. Com efeito, é de maneira geral aceito que eles,
muito provavelmente, surgiram de uma amálgama de raças, ao invés de um estoque
racial puro. Referir-se aos hebreus primitivos chamando-os de semitas não ajuda muito,
uma vez que esse termo, cunhado no século XVIII, designa não uma raça, mas um
grupo lingüístico, que abrange as línguas de hebreus, acádicos, árabes e etíopes. Assim,
a língua de africanos de “pele queimada” acha-se incluída no mesmo conjunto dos
semitas, como as línguas de judeus e árabes. Aithíops (que significa de rosto queimado)
é a mais freqüente tradução de Cush, encontrada em tradução da Bíblica, denominada
“Setenta”, e designa, geralmente, africanos de pigmentação escura e traços negróides:
Um rio saía de Éden para regar o jardim e de lá se dividia formando quatro
braços. O primeiro chama-se Fison; rodeia toda a terra de Hévila, onde há ouro;
é puro o ouro dessa terra na qual se encontram o bdélio e a pedra de ônix. O
segundo rio chama-se Geon: rodeia toda a terra de Cuch. O terceiro rio se chama
Tigre: corre pelo oriente da Assíria. O quarto rio é o Eufrates. (Gn 2, 10-14).
Cuch é descendente de Cam. Cam é filho de Noé:
Os filhos de Noé, que saíram da arca, foram Sem, Cam e Jafé; Cam é o pai de
Canaã. Esses três foram os filhos de Noé e a partir deles se fez o povoamento de
toda a terra.
Noé, o cultivador, começou a plantar a vinha. Bebendo vinho, embriagou-se e
ficou nu dentro de sua tenda. Cam, pai de Canaã, viu a nudez de seu pai e
advertiu, fora, a seus dois irmãos. Mas Sem e Jafé tomaram o manto, puseram-no
sobre os seus próprios ombros e, andando de costas, cobriram a nudez de seu pai.
Quando Noé acordou de sua embriaguez, soube o que lhe fizera seu filho mais
jovem. E disse: ‘Maldito seja Canaã! Que ele seja, para seus irmãos, o último dos
escravos!’ E disse também: ‘Bendito seja Iahweh, o Deus de Sem, e que Canaã
seja seu escravo! Que Deus dilate a Jafé, que ele habite nas tendas de Sem, e que
Canaã seja seu escravo!’ (Gn 9, 18-27).
Há outros textos que nos mostram os filhos de Noé (Gn 5, 32; 6, 10; 7, 13; 10, 1).
Cam é antepassado de Cuch. Logo, se a África é a “terra de Cuch”, ela é a terra da
maldição. Essa reflexão foi defendida por vários teólogos cristãos, a ponto de o Pe.
Antônio Vieira, em seus sermões (XI e XXVII), dizer que a África é o inferno donde
Deus se digna retirar os condenados para, pelo purgatório da escravidão nas Américas,
finalmente alcançarem o paraíso. O negro no cristianismo, portanto, está ligado à visão
da queda, da perdição, do pecado.
O termo Aithíops já se encontrava em Homero, como Ilíada 1, 423-7 e Odisséia 1,
21-3, no qual os etíopes (negros) são relacionados com a idéia de relaxamento moral,
ociosidade, falta de seriedade e festividade. Em termos de raça, pois, a Bíblia não
*
Doutorando em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).

29
oferece uma noção distinta ou um desenvolvimento sistemático explícito; pelo
contrário, desde o princípio até o fim, coloca-nos diante de certas ambigüidades
fundamentais.

Antigo Testamento

Um dos mais impressionantes exemplos de “sacralização” já se nos depara no


Antigo Testamento, quando lemos as genealogias dos chamados descendentes de Noé.
É especialmente importante examinar a Lista das Nações (Gn 10), comparando-a com a
genealogia (1 Cr 1, 1-2, 1ss). De um lado, essas listas parecem ser catálogos
abrangentes e todas foram, muitas vezes, erroneamente interpretadas como fontes
fidedignas de antiga etnografia. De outro lado, seu estudo crítico põe bem em evidência
os motivos teológicos que, inevitavelmente, veiculam uma crescente tendência a dar
prioridade à importância dos israelitas como a categoria étnica e nacional mais
importante de todas as que existem sobre a terra.
Enquanto, à primeira vista, Gênesis 10 tem a aparência de uma lista homogênea
de antigas nações, a crítica bíblica já mostrou, há algum tempo, que esses textos
representam uma mistura de, ao menos, duas diversas listas: a Javista (J) e a Sacerdotal
(P), separadas por séculos. De fato, a mistura de diversas tradições em Gênesis 10
explica tais discrepâncias, como, por exemplo, determinar a terra de Cush, as diferenças
entre Seba e Sheba ou a relação entre Cush e Sheba. Por exemplo, Gn 10, 7 menciona
Seba como filho de Cush, ao passo que Sheba é o neto de Cush segundo Gn 10, 8. Aqui,
o texto identifica os descendentes de Cam. Depois, em Gn 10, 28, o texto introduz uma
anomalia, de vez que Sheba é, a esta altura, mencionado como direto descendente não
de Cam, mas de Sem. Além disso, poder-se-ia supor que Gn 10 apresenta-nos duas
pessoas chamadas Sheba como descendentes de Cush, mas apenas uma pessoa desse
nome como descendente de Sem.
Mais do que uma lista objetivamente histórica de genealogias, a Lista das Nações
em Gênesis 10 quer apresentar-nos um catálogo de povos. A Lista não apenas termina
com os descendentes de Sem, mas o faz de forma propositadamente estilizada, para
acentuar a importância desses entre todos os povos da terra. A redação sacerdotal (P)
pós-exílica explica a ordem Sem, Cam e Jafé, omitindo Canaã em Gn 10, 1, bem como a
inversão dessa ordem nos versículos subseqüentes. Por exemplo, Gn 10, 2 os filhos de
Jafé; Gn 10, 6 os filhos de Cam; e Gn 10, 21 descendência de Sem, o pai de todos os
filhos de Heber (Hebreu).
O autor da genealogia no Primeiro Livro das Crônicas (1 Cr 1, 17-34) é mais
explícito, pois, dentre todos os descendentes dos filhos de Noé, dá a máxima atenção
aos que descendem de Sem. Assim, tendo em vista a mais primitiva lista Javista de
nações, Gn 10 é muitos séculos depois redigida segundo a tradição sacerdotal pós-
exílica, para dar prioridade aos descendentes de Sem e, apenas, ser seguida por uma
elaboração mais cuidadosa, novamente séculos depois, como se vê nas genealogias do
Primeiro Livro das Crônicas. Nessa longa progressão, os pressupostos teológicos de um
grupo étnico especial deslocam toda preocupação por historiografia e etnografia
objetiva. Os descendentes de Noé, excetuando-se os filhos de Sem, tornam-se, sempre,
mais insignificantes e só recebem acolhida no texto, enquanto servem como contraste
para mostrar a prioridade dos israelitas.
Este sutil processo pode ser denominado sacralização, por representar uma
tentativa, por parte de sucessivas gerações de um grupo étnico, de construir uma história
da salvação em termos favoráveis a esse grupo, em oposição a outros. Aqui, o
particularismo étnico vai evoluindo com certo endosso divino e não se pode evitar um

30
perigo subjacente de racismo. De fato, O livro de Números atesta muito bem como é
que uma pessoa pode, facilmente, chegar de um particularismo étnico, por motivos
sacrais, ao racismo de pior espécie.
Em Números, o irmão e a irmã de Moisés censuram-no por ele ter se casado com
uma mulher negra1, cushita:
Maria e Aarão murmuraram contra Moisés por causa da mulher cuchita que ele
havia tomado. Pois ele havia desposado uma mulher cuchita. (Nm 12, 1)
Diversos fatores sugerem a probabilidade de que o aspecto “censurável” desse
casamento fosse a pele negra da mulher. Em primeiro lugar, este é o ponto de vista
expresso pelo texto do quarto livro da Bíblia. Segundo, o castigo estranhamente seletivo
que Deus infligiu a Maria. Aqui, dramatiza-se um contraste bem intencional: a mulher
de Moisés, negra, injuriada por Maria e Aarão, é agora posta em contraste com Maria,
subitamente coberta com lepra, “branca como neve”, no castigo. O contraste, ainda,
acentua-se, uma vez que somente Maria é punida por uma culpa, na qual Aarão também
incorrera:
A ira de Iahweh se inflamou contra eles.
E retirou-se e a Nuvem deixou a Tenda.
E Maria tornou-se leprosa, branca como a neve.
Aarão voltou-se para ela, e estava leprosa. (Nm 12, 9)
Ao mesmo tempo, a narrativa de Nm 12 põe ainda mais em evidência as
dificuldades inerentes a toda rápida generalização a respeito das implicações raciais no
processo de sacralização, que vai emergindo enquanto as antigas tradições assumem, em
muitos anos de depuração, um particularismo étnico que, circunstancialmente,
marginaliza outros grupos que se acham fora da Torah e da Aliança.
Não são difíceis de se encontrar listas extensas de passagens do Antigo
Testamento que mencionam favoravelmente pessoas negras. Algumas delas, como
exemplo, são Is 37, 9 e 2 Rs 19, 9 que se referem a Tirharka, rei dos etíopes, de fato, o
terceiro membro da 25ª dinastia egípcia, que governou o Egito entre 689 e 664 a.C.
Segundo os textos bíblicos, Tirharka era alvo das desesperadas esperanças de Israel.
Ele, nos dias de Ezequias, como esperavam em Israel, iria intervir com seus exércitos,
para impedir o iminente assalto dos assírios comandados por Senaquerib. Mais de meio
século depois, outro texto bíblico iria se referir aos poderosos homens da Etiópia e de
Fud que retesam o arco (Jr 46, 9). O Antigo Testamento mostra-nos, ainda, que havia
negros no exército judeu (2 Sm 18, 21-32) e mesmo na corte do rei; Ebed-Melek não só
interviria para salvar a vida de Jeremias (Jr 38, 7-13), mas seria alvo de uma especial
bênção divina (Jr 39, 15-18). A imagem dos etíopes no Antigo Testamento é o de um
povo rico (Jó 28, 19; Is 45, 14) que logo se converteria (Sl 68, 31; Is 11, 11; Is 18, 7; Sf
3, 10).
A imagem simpática e positiva dos etíopes, no Antigo Testamento, tem um outro
lado. As nações da África, como acontecia com todas, segundo o ponto de vista judeu,
estavam sujeitas à ira e ao juízo divinos (Ez 30, 1-5; Is 20, 3; Sf 2, 12). Essa atitude
revela bem um sutil processo de sacralização no Antigo Testamento. Ou seja, nesse, os
negros, em última análise, só recebem alguma atenção, quando afirmam e se identificam
com os tópicos centrais da história de fé de Israel. Fora disso são marginais, sem uma
história independente e própria. Desde o cômputo das Listas de Nações até os diversos
oráculos proféticos, esse fato básico serve como armadilha para todos os escritores
vétero-testamentários. O resultado é uma justificação marcadamente teológica para a

1
Outros textos sobre Séfora, mulher de Moisés: Ex 2, 15-21; 4, 25; 18, 2.

31
preeminência de um só grupo étnico na ordem da criação, ineludivelmente perigosa para
toda categoria étnica ou racial.
As ambigüidades étnicas e raciais implícitas no conceito de eleição de Israel
parecem persistir, apesar de muitos fatores em sentido contrário. A ambigüidade resulta
não tanto do fato de os autores bíblicos que sustentam a idéia vétero-testamentária da
eleição de Israel pressuporem uma história universalista, mas provém, principalmente,
da natureza do universalismo pressuposto. Os autores deuteronomistas esforçaram-se
por demonstrar a singular afirmação de Javé sobre a monarquia davídica e, ponto mais
importante, a escolha de Jerusalém, por Javé, para ser o centro de uma contínua
atividade redentora. Mais, parece paradoxal que, embora o povo de Israel não mostre
nenhum atributo ou valor extraordinário pelo qual objetivamente merecesse a eleição de
Javé, desenvolve-se, particularmente no judaísmo pós-exílico, uma elaborada doutrina
de mérito, pela qual aqueles que conhecem e seguem a Torah, em Israel, como um
grupo étnico, procuram provar o seu valor como povo eleito.
Apesar da ausência de qualquer intrínseca superioridade do povo de Israel no seu
vasto inventário bíblico de pecados e exemplos de infidelidade, o conceito de eleição
vai se ligando, inextricavelmente, ao particularismo étnico. Em conformidade com isso,
o povo de Israel arroga-se a condição de ser preeminentemente escolhido e, portanto,
afirma possuir a Lei, a Aliança e uma indefectível promessa da Terra e da Cidade como
o “povo de eleição”. Ao mesmo tempo, todos aqueles que se acham fora da comunidade
ou da ideologia religiosa fundamentadora da eleição são relegados para a margem da
“universal” história salvífica de Israel. Nessa progressão, podem outras raças e grupos
étnicos, naturalmente, endossar a ideologia religiosa de Israel e, daí, recolher benefícios
proporcionais, mas parece que o critério para tal endosso sempre há de ser mediado pela
predileção de um grupo étnico reforçado por genealogias elaboradas e pela transmissão
de tradições jurídico-religiosas particulares.
Todo esse desenvolvimento exemplifica aquilo que denominamos sacralização e é
impressionante, de fato, ver o modo tão diferente como a eleição vem a ser elaborada no
Novo Testamento. Ao invés da idéia vétero-testamentária de uma nação eleita, Paulo e a
Igreja introduziram a de eleição individual à vida eterna, sem levar em conta raça ou
status. Tal sentença, contudo, simplifica demais as idéias do Novo Testamento a
respeito de eleição. Nesse, a Igreja cristã se torna o verdadeiro povo de Deus. O Novo
Testamento já não se mostra preocupado com algum grupo étnico preeminente, isto é, o
Israel segundo a carne (1 Cor 10, 18), mas com o Israel de Deus (Gl 6, 16), sem
coordenadas étnicas exclusivistas.
Em contraste com o uso deuteronomista de eleição, o Novo Testamento jamais
apresenta o termo ou seus derivados em sentido etnicamente restritivo ou exclusivo.
Paulo deseja manter uma certa continuidade com aspectos da eleição de Israel no
Antigo Testamento, mas essa continuidade não é nem étnica nem cúltica (Rm 9, 11; 11,
2; 11, 28-29). Para Paulo, a eleição em um grupo pode incluir alguns judeus, mas deve,
também, abraçar gentios (Rm 11, 25; Gl 3, 28). Segundo ele, Deus escolheu os tolos,
fracos e de baixa condição social (1 Cor 1, 27-8). Para Tiago, Deus escolheu os pobres,
ricos na fé. Para Mateus, Deus chama muitos, mas escolhe apenas uns poucos (Mt 22,
14). O novo universalismo e a unidade que se devem achar na Igreja cristã exprimem-
se, de preferência, no contexto dos “eleitos de Deus”:
Aí não há mais grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, cita, escravo,
livre, mas Cristo é tudo em todos. Portanto, como eleitos de Deus, santo e
amados, revesti-vos de sentimentos de compaixão, de bondade, humildade,
mansidão, longanimidade. (Cl 3, 11-12)

32
O único texto do Novo Testamento que menciona os cristãos como raça eleita é de
Pedro:
Mas vós sois uma raça eleita, um sacerdócio real, uma nação santa, o povo de sua
particular propriedade, a fim de que proclamais as excelências daquele que vos
chamou das trevas para a luz maravilhosa, vós que outrora não éreis povo, mas
agora sois o Povo de Deus, que não tínheis alcançado misericórdia, mas agora
alcançastes misericórdia. (1 Pd 2, 9).
Mas, essa frase de Pedro é explicitamente metafórica. Ele usa a expressão “povo
eleito” no sentido dado por Isaías, mas o particularismo étnico, implícito nos textos do
Antigo Testamento, acha-se inteiramente ausente em Pedro:
Os animais selvagens me honrarão, sim, os chacais e os avestruzes, porque fiz
jorrar água no deserto, e rios nos lugares ermos, a fim de dar de beber ao meu
povo, o meu eleito. O povo que formei para mim proclamará o meu louvor. (Is 43,
20-21)
Assim, com o período neotestamentário, “eleito” na literatura cristã torna-se,
praticamente, sinônimo de “Igreja” e, mais particularmente, refere-se aos verdadeiros
crentes dentro dos confins da Igreja no mundo, sem qualquer restrição explícita de
cunho étnico ou racial.

Novo Testamento

Ambigüidades em relação à raça no Novo Testamento não aparecem no contexto


que denominamos sacralização. Em conseqüência, não difunde a idéia, etnicamente
inspirada, de uma eleição em grupo ou “Israel segundo a carne”. De fato, o Novo
Testamento não oferece nenhuma ampla genealogia, visando sacralizar o mito de
alguma superioridade intrínseca e divinamente endossada, nem de gregos, nem de
romanos, comparável, de qualquer modo, à Lista das Nações encontrada em Gênesis 10.
Portanto, se alguém deseja explorar o tema de tendências racistas nas narrativas
neotestamentárias, deve focalizar um fenômeno diverso, a saber, o processo de
secularização. A pergunta, agora, é esta: como a Igreja em expansão, na tentativa de
sobreviver sem a proteção temporária que obtinha por ser confundida com o judaísmo,
começou a sucumbir aos símbolos e ideologias dominantes do mundo greco-romano?
Nesse desenvolvimento, diminui o universalismo do Novo Testamento, à medida que
Atenas e Roma vão substituindo Jerusalém como novos centros da atividade redentora
de Deus.
A conceptualização do mundo pelos primitivos autores cristãos, em tempos do
Novo Testamento, raramente incluía a África e nem mencionava as Américas ou o
Extremo Oriente. Esses escritores cristãos primitivos referiam-se à Espanha como os
confins do Ocidente (Rm 15, 22-9). Consideravam os limites do mundo como as partes
limítrofes do Império Romano. Para esses, as realidades sócio-políticas romanas, bem
como a língua e a cultura helenísticas determinavam o modo como Deus, a seu ver,
estaria atuando em Jesus Cristo. Assim como Jerusalém, no Antigo Testamento, tornara-
se símbolo da cidade central de Javé, Roma, como a meta última do querigma cristão,
tornou-se o novo foco de todo o movimento missionário cristão, como Lucas apresenta
nos Atos dos Apóstolos (Jerusalém: At 2; Antióquia: At 15; Atenas: At 17, 16-34;
Roma: At 27).
Não é por acaso que Marcos, o primeiro redator de uma narrativa da Paixão,
estende-se tanto, para mostrar que a confissão do centurião romano leva toda a sua
narrativa evangélica ao clímax. Quanto a Lucas, faz notáveis esforços para especificar

33
as qualidades positivas de seus diversos centuriões. Eles apresentam Roma como a
capital do mundo gentio. Contudo, Lucas mostra-nos uma narrativa da conversão e do
batismo de um ministro etíope: At 8, 26-39.
Pode-se perguntar se esse ministro etíope de Candace, ou seja, rainha de Meroë, é
judeu ou gentio. E, também, se esse batismo foi, de fato, eficaz e constituiu ou levou a
uma plena conversão ao cristianismo. O importante no texto é que não se detecta
nenhuma dificuldade racial particularmente significativa.
Nos círculos cristãos helenísticos do primeiro século, o primeiro convertido gentio
foi um núbio. Além disso, Lucas apresenta líderes negros da Igreja em Antióquia:
Havia em Antioquia, na Igreja local, profetas e doutores: Barnabé, Simeão
cognominado Níger... (At 13, 1).
Lucas, provavelmente, queria frisar a idéia de que esse Simeão era um homem de
pele escura, possivelmente um africano, pois os outros líderes apresentados por ele,
neste capítulo e versículo e outros, não são apelidados. Talvez queira chamar a atenção
para o fato de que o primeiro convertido era um núbio, ao invés de um romano.
Em tudo isto, Lucas não é inocente. Em seus dois escritos, o Evangelho e os Atos
dos Apóstolos, há elogios aos oficiais romanos, bem como dá importância a Roma
como centro do mundo (Lc 1, 3; At 1, 1). Estes elogios podem fazer parte da tentativa
da Igreja de sobreviver por volta do ano 70, sob o domínio político de Roma.
Essa ambigüidade a Igreja enfrentou e continua a enfrentar, ou seja, a obrigação
de pregar uma comunhão universal, com base num renovado compromisso pelo
pluralismo e cuidadoso reconhecimento da integração de todos os grupos étnicos. Daí a
importância de uma pesquisa sobre a questão étnico-racial a partir da Bíblia. É um
programa por muito tempo negligenciado pela visão eurocêntrica e nas tradições
eclesiais que continuam, infelizmente, marginalizando negros em todo o mundo.

Conclusão

A humanidade particularizou-se, no passado, em diferentes povos que


correspondem às divisões da terra em continentes. Os povos viveram e evoluíram em
relativo isolamento nesses grandes territórios geográficos: africanos, negros ou pretos;
asiáticos ou mongóis; caucasianos, incluindo orientais próximos, europeus; americanos
e malaios. Aceitar que esses povos sejam “raças humanas” e espécies no sentido
zoológico seria não-científico e pura ideologia racial, pois, no caso da humanidade,
gênero e espécie são idênticos. Só há um gênero e uma espécie humana presentes nesse
globo. A espécie humana, que primeiro diferenciou-se ao longo das linhas continentais,
particularizou-se, depois, em diferentes nações baseadas em raça e, por fim,
singularizou-se em diferentes famílias e indivíduos condicionados, racialmente, como
organismos e sujeitos naturais, com diferentes talentos, temperamentos, caracteres,
ciclos de vida, sexualidade e idiossincrasias.
Por todo o século XIX e XX, tanto filósofos como cientistas naturais e sociais
focalizaram, consistentemente, a questão da monogênese (Gn 1, 26; 3, 20: Adão e Eva
como antepassados de toda humanidade) e poligênese (Gn 10, 1-32: Humanidade
descendendo dos filhos de Noé). Eles pensavam que, aceitando a descendência da
humanidade de casais diferentes, podiam explicar a superioridade física e espiritual de
uma “raça” sobre outra. Ou, como os teólogos católicos, descendentes do mesmo casal,
o pecado de um dos ramos desse casal justificaria a inferioridade do grupo descendente.
No fundo, esperavam provar que os humanos são tão diferentes uns dos outros por
natureza, que alguns podem muito bem ser dominados por outros como os animais. É
esse, exatamente, o cerne da ideologia moderna do racismo, que utilizaram-se de textos

34
bíblicos, alguns analisados nessa exposição, encontrando, principalmente, sua mais
terrível aplicação prática por parte dos europeus contra negros (na África e na diáspora),
particularmente durante os séculos XIX e XX.
Assim, que contribuições positivas dão os cristãos para superar o racismo? Como
o racismo é portador de símbolos de negação de outros povos considerados inferiores e
como esse simbolismo opera na imaginação e no inconsciente das pessoas, as igrejas só
poderão libertar-se do racismo através de uma profunda catarse.

35
Segunda parte: Manifestações da cultura afro

ORIXÁS: UM FILME, UMA REVIVÊNCIA, UMA RESISTÊNCIA

Marcello G. Tassara*

Uma informação sugestiva e, ao mesmo tempo, inquietante para as nações que


ainda lutam por sua independência cultural –condição sine qua non para a conquista da
dignidade de suas populações- andou circulando, recentemente, pelas veias do nosso
universo intelectual. Esta informação, um tanto bombástica, mas revestida de um
significado político profundo e merecedora de um cuidadoso esmiuçamento, dá conta de
que, nos Estados Unidos, o conjunto das atividades industriais e de serviços
relacionadas com os meios de comunicação é superado em importância somente pelo
das indústrias bélicas e aeroespaciais. Várias lições estão implícitas nessa notícia. Nem
mesmo a produção de alimentos, petróleo ou automóveis parecem ter, no país vizinho,
um peso superior ao de veículos supostamente inofensivos, como a imprensa, a internet,
a televisão ou o cinema. Veículos muito peculiares, diga-se de passagem, pois, durante
as últimas décadas, vêm sendo utilizados no transporte e na distribuição dos valores
essenciais para a formação das cabeças que deverão habitar o mundo globalizado em
que estamos fadados a viver. Segundo tudo indica. Uma globalização assimétrica e que
mantém o centro de gravidade do poder de decisão acentuadamente deslocado para o
Norte, implicando em sua necessidade crucial de manter o controle total sobre as
periferias.
Fica muito evidente que, nesse jogo estratégico pela conquista da hegemonia,
todas as formas de comunicação humana desempenham um papel fundamental. Assim,
uma análise mais completa dessa situação poderia levar-nos a compreender as razões
que fazem com que as nossas manifestações culturais e artísticas continuem
desempenhando o papel de coadjuvantes no cenário internacional. E mesmo no
nacional. O cinema parece ser o exemplo mais patético desta vicissitude, pois, não
obstante a brilhante vocação cinematográfica brasileira, muita coisa tem sido
irrecuperavelmente atirada no lixo da civilização.
Apesar de tudo, percorrendo os estreitos atalhos abertos pelas raras combinações
de oportunidades, algumas jóias do cinema brasileiro conseguem chegar às telas. No
momento em que isto acontece, cabe a pergunta: valeu a pena? Valeu a pena percorrer a
grande maratona de obstáculos em que quase sempre se transforma a realização de um
filme brasileiro? Qualquer um dos nossos realizadores, se desejar transformar seu
projeto de filme em filme de verdade, precisa ser suficientemente arrogante para
somente encarar esses obstáculos depois de superados.
Esta força, quase mágica, emana da própria natureza da arte que durante todo o
século que ora termina tem catalisado multidões, direcionado e condicionando novos
comportamentos estéticos, sociais e mesmo políticos. O seu poder de empatia
transcende a vontade dos autores, quer em seu formato convencional de celulóide, quer
nas suas mais modernas encarnações eletrônicas. Não deveria surpreender-nos, portanto,
a grande importância que, nos Estados Unidos, atribui-se a essa e a outras artes-armas
similares, usadas como seringas para a injeção de modelos de consumo e de
*
Professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).

36
comportamento. Quase paradoxalmente, são nesses campos de luta que ainda poderiam
ser encontrados espaços para serem vencidas algumas batalhas significativas em defesa
de nossos preciosos valores culturais.
Em relação ao cinema - arte cara e complexa -, para que isso se transformasse em
uma realidade objetiva, seria necessário que uma facção de nossa sociedade, aquela
privilegiada com o poder de decisão, estivesse disposta a enfrentar os monopólios e a
oferecer um apoio maciço à nossa eternamente insipiente indústria cinematográfica.
Mas, teria que ser um esforço no sentido de superar as fracas leis de incentivo
atualmente existentes, sucedâneos mal sucedidos dos antigos apoios estatais. O cinema
seria, assim, um dos mais importantes componentes do conjunto de esforços voltados
para uma resistência cultural efetiva, acordando-nos do grande sono macunaímico que
ainda nos embala.
Se não o dizem as grandes autoridades no assunto, vamos dizê-lo nós: dentro de
suas limitações, o cinema brasileiro tem sido extremamente fiel às suas origens sócio-
culturais. Independentemente do gênero, escola, estilo ou época. Nosso cinema,
consciente ou inconscientemente, sempre retratou a nossa realidade. Isto, desde o
cinema mudo, passando pelas chanchadas da Atlântida, pelo Cinema Novo, pelo
Cinema Marginal, pela pornochanchada e chegando a este frágil cinema da atualidade,
que tenta renascer a cada instante, depois de cada choque causado pela instabilidade da
economia. No grande balaio cultural em que parece estar se curtindo uma futura
civilização, uma futura etnia, o cinema brasileiro tem encontrado suas fontes de
inspiração, sempre dignificando suas origens. Nada ou pouco tem sido esquecido: a
tradição européia com suas inúmeras variantes, a pureza das sociedades indígenas e a
bela cultura africana que chegou até nós através dos navios negreiros.
Um rápido passar de olhos pela nossa cinematografia revela a constante presença
do negro, ocupando um justo lugar na formação de nossa identidade como povo. "Tenda
dos Milagres", "Ganga Zumba", "Xica da Silva", "O Amuleto de Ogum", "Orfeu
Negro" e tantos outros filmes, incluindo-se inúmeros documentários, como "Ori" e
"Iaô", atestam esta afirmação. No entanto, talvez pela falta de fôlego diante da grandeza
do tema ou, simplesmente, das dificuldades envolvidas no levantamento de recursos, é
justamente em relação ao legado e às tradições religiosas do negro africano que o
cinema brasileiro ainda detém uma dívida de honra. Dívida que, esperamos, mais cedo
ou mais tarde venha a ser resgatada. Na verdade, até o presente momento muitos
episódios dessa saga têm sido mostrados no cinema, isoladamente, mas em nenhuma
ocasião o processo foi mostrado de maneira abrangente, dentro de uma pespectiva
histórica. Em toda sua plenitude e grandeza, esta saga dos deuses africanos que
cruzaram o oceano, implantando em terras brasileiras a beleza e a nobreza das vivências
religiosas negras, ainda representa um desafio para o nosso cinema.
É precisamente por estas razões que gostaríamos de ver realizado este que deveria
ser um filme de longa-metragem, talvez um misto de documentário e de ficção, cujo
objetivo seria o de oferecer ao público uma visão poética e, ao mesmo tempo, conceitual
e historicamente correta do processo de transmigração desse culto que é o principal de
origem afro-brasileiro e que, na maior parte do território brasileiro, é conhecido por
candomblé. As figuras míticas das divindades pertencentes a este culto deveriam
prevalecer e a narrativa fluir por entre as personalidades de seus orixás e por suas
paixões e emoções, desveladas pela incursão entre os meandros e episódios de sua
candente mitologia. No seio da cultura brasileira residem essas componentes, cuja
beleza e vigor permeiam nosso quotidiano com uma presença tão familiar, que delas
quase não nos damos conta: todo o generoso legado que a África Negra nos ofereceu, já
em um tempo triste, ora distante. Assim, seu peso sociológico e antropológico acabou

37
sendo percebido apenas por um restrito grupo de pesquisadores, como é o caso, por
exemplo, de dois estudiosos de origem francesa: Roger Bastide e Pierre Verger. O
primeiro, sociólogo que participou da fundação da Universidade de São Paulo, dedicou
grande parte de sua vida ao estudo das religiões africanas no Brasil. O segundo,
fotógrafo radicado na Bahia, viveu todos os últimos anos de sua vida sem desligar-se da
magia do candomblé.
É claro que esforços deste gênero, mesmo quando isolados, acabam atuando,
positivamente, no sentido de reconhecer e preservar a herança da cultura negra no
Brasil. No entanto, nem sempre a essência dessa informação - carregada de motivações
sociais e de valores morais - chega à grande massa da população. Lamentavelmente, a
maioria das pessoas continua navegando por essas águas, sem se dar conta de que nelas
persistem, submersas, as raízes arrancadas do solo africano e transportadas a bordo dos
antigos navios negreiros que aqui aportaram, a partir do Século XVI. Desta maneira, as
tradições africanas, ardilosamente introduzidas pelos escravos, acabaram aninhando-se
de forma indelével no espírito de nossa história e no corpo de nossa etnia. E tudo isso
tem pressa de ser trazido à flor da consciência nacional: uma peça importante de
resistência diante do invasor virtual e de difícil e fugaz identificação.
Não obstante a violência com que estas tradições foram combatidas, só
tardiamente o homem de origem européia percebeu a habilidade do negro em mimetizá-
las, através de manhosos expedientes como ode vestir os orixás com as roupas dos
santos católicos, a fim de preservar - intactos em todo o seu sentido mais telúrico - os
preciosos cultos ancestrais. Apesar disso, alguns desses valores puros, alguns dos mais
requintados ritos primordiais do candomblé, bem como boa parte de sua mitologia
encontram-se inexoravelmente condenados ao esquecimento, sucumbindo sob o
impacto dos processos de urbanização e de industrialização. O que o colonizador não
conseguiu em séculos de sangue e lágrimas derramados, provavelmente será conseguido
em poucas décadas, pela voracidade do consumismo e pela mundialização sufocante.
Mas, a umbanda, nascida nos subúrbios das grandes cidades, diante dos olhos
emocionados de Roger Bastide, é, talvez, o indício mais seguro de que muitas das
vivências mítico-místicas africanas ainda continuarão a compor a personalidade social
brasileira por muito tempo, não obstante as pressões da modernidade. Isto, conservando
as mesmas características funcionais que, em épocas passadas, asseguravam aos
escravos a integridade psicológica, o espírito de solidariedade comunitária e a reserva
de um poderoso linimento para os instantes de sofrimento e dor. Assim é que o alto
preço que pagamos por um presumível progresso material passa, necessariamente, pela
perda irrecuperável de algumas das peças mais refinadas de nossa tradição.
Com efeito, a umbanda parece abandonar algumas das antigas formas de
manifestação dos orixás, em favor de certas racionalizações dos rituais, a fim de
adequar os cultos ao modo de vida das populações urbanas a que atende – em
contraposição às características essencialmente rurais do candomblé, bem mais próximo
do seu berço africano. Tais "desaparecimentos", embora menos dramáticos do que os
dos legados das culturas indígenas – tão deplorados pela nossa intelectualidade -, não
são menos lastimáveis nem menos implacáveis.
Assim sendo, neste momento singular, em que a sociedade brasileira - talvez
incitada pelos próprios meios de comunicação - procura, timidamente ainda, reavaliar o
peso de seus próprios valores, acreditamos que o desenvolvimento de um completo
inventário das tradições africanas, bem como sua efetiva divulgação, justifica-se
plenamente: um registro áudio-visual, crítico-analítico, elaborado a partir da grande
variedade de fenômenos antropológicos e culturais que constitui o centro da herança
negra no Brasil. Enquanto persistir o privilégio de lhes sermos contemporâneos,

38
enquanto tivermos fé no poder da intuição coletiva e, sobretudo, enquanto ainda formos
capazes de dirigir um olhar de esperança para o ser social a que todos pertencemos.

39
ARQUIBANCADA ALEGRE DE RESERVA
Escola de samba: uma contribuição ao estudo de alguns aspectos socioculturais
para a compreensão do dilema do negro brasileiro

Celso Luiz Prudente*

É de suma importância o esforço para a elaboração de um artigo com o propósito


de contribuir no terreno da análise de alguns aspectos da escola de samba e sua presença
na consolidação do carnaval como núcleo de turismo, bem como as implicações que
essas relações produzem na desenvoltura dessa agremiação, sobretudo na qualidade
comunitária dos seus componentes. Nesse sentido, buscaremos enfocar, na nossa
reflexão, a origem da escola de samba enquanto fenômeno sócio-cultural e a sua função
na sociedade como um todo.
Nessa linha de abordagem, indagaremos, ainda, qual a situação da composição
social que deu origem à sua formação e a localização desse segmento no processo de
transformação da escola em produto socialmente válido, tendo em vista a condição
sócio-racial preponderante na sua fase inicial. Analisaremos, também, como o caráter
étnico, por sua natureza essencialmente popular, viria a ser um entrave numa possível
configuração da escola no terreno das relações sócio-culturais hegemônicas.
Observaremos nessa reflexão, pautada pelo discernimento da escola de samba
como resistência cultural do negro (Moura, 1988:142), a dificuldade da mesma na
trajetória que tem como objetivo colocá-la como um instrumento de afirmação humana
no problemático resgate da condição ontológica do afro-brasileiro; e, ainda, a tentativa
de colocar essa entidade agremiativa como elemento catalisador da cosmovisão africana
para um segmento étnico-social que se localiza na periferia da sociedade, vivendo, desse
modo, toda a sorte do lumpemproletariado, num quadro de sucessivas transformações
do meio urbano (Moura, 1983:42) em que se insere a escola. Nesse sentido, escreve
Neusa Fernandes (1986:43):
Com a abertura da Avenida Central, hoje Av. Rio Branco, no início do século
vinte, houve um deslocamento das populações pobres que por ali moravam.
Muitas famílias foram habitar o Morro da Favela, o Morro da Mangueira e o
bairro do Estácio.
Cabe verificar, ainda, se houve ou não a assimilação da escola na relação turística,
na qual a indústria do turismo tornou-se uma organização empresarial viável para o
terceiro milênio, mediante sua capacidade de gerar empregos e crescer em meio à
situação de crise mundial, sem ter, contudo, mudado sua característica eurocêntrica.
Nesse sentido, é sensato indagar onde se situa o negro nesse processo de consolidação
do nosso turismo, que também é nucleado pela escola de samba, na qual o vetor afro é
componente majoritário. Entretanto, em decorrência da questão racial, percebe-se a
ausência desses produtores originais da escola, mesmo nas posições mais modestas da
força produtiva na complexa relação de produção turística.
Para a compreensão histórica do papel do negro na relação carnavalesca, faz-se
necessário retomar a gênese do carnaval e sua inserção na cultura brasileira. A origem
do carnaval ainda é bastante discutível, alguns autores creditam suas primeiras
manifestações à Grécia Antiga com as festas dionisíacas, no entanto, o Egito também é
indicado como berço desse evento que, posteriormente, ganha corpo nas festas

*
Doutorando da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e antropólogo.

40
lupercais, na Roma Antiga. De acordo com Fernandes (op.cit.:9): ... o Carnaval se
inicia com o paganismo, nas festas dedicadas à deusa Íris e ao Boi Ápis, no antigo
Egito.
O traço europeu do carnaval surge no Brasil, no período colonial, com o
“entrudo”, espécie de batalha campal dos portugueses caracterizada pelo uso de lama,
polvilho e, por último, para amenizar a violência, convencionou-se a prática de jogar
limão de cheiro uns nos outros. Essas manifestações não poupavam a presença das
sinhás e sinhazinhas, que faziam desse momento um possível ato de natureza catártica.
Sobre esse fato temos o relato de Ferdinand Denis (apud Fernandez, op.cit.:12-3),
integrante da Missão Artística Francesa que aqui chegou em 1816:
... [entrudo] espécie de carnaval, na qual os ovos de cera desempenham papel
principal, começa na segunda-feira de carnaval e vai até quarta-feira de
cinzas. Nesse período de loucura, um amigo me levou para pagar visita e,
desde as primeiras saudações, fomos acolhidos por saraivadas de ovos
amarelos e verdes, impiedosamente lançados em nosso rosto, por todas as
jovens bonitas e senhoras da família.
O escravo, também, participava desse carnaval, porém, de maneira compulsória,
uma vez que o mesmo era atacado por lama pelos brincantes da elite.
Esse fenômeno carnavalesco, todavia, seria civilizado pela influência francesa que
substituirá esse arsenal por confete. Tal mudança foi registrada pela imprensa da época:
... este ano em vez de bisnagas e dos limões de borracha que bem boas
constipações promovem teremos uma novidade: os “confetti” parisienses, que
consistem em algumas rodelas de papel que são atiradas sobre os que passam,
inofensivos e limpos, que constituem um passatempo agradável para as moças e
rapazes. (Fernandez, op.cit.:13)
Enfim, esse caráter violento (Moura, op.cit.:61) e desconexo consubstanciou uma
tendência denominada por alguns estetas de dionisíaca, a qual sofreria uma mudança,
decorrente da transformação urbana, em que, posteriormente, com a cosmovisão
africana ganharia notoriedade nas relações carnavalescas. Assim sendo, a partir daí, o
carnaval brasileiro seria visto e tratado como corrente apolínea, dado o aspecto da
beleza harmônica empreendida na sua estrutura.
Com o advento do império, no entanto, constata-se a formação de grandes
sociedades carnavalescas, que nos desfiles mostravam uma nova composição social,
dada à emergência de um processo moderno, indicativo do modelo que viria, mais tarde,
marcar a visão positivista da República (Tupy, 1985:72). Essas entidades eram clubes
formados por pessoas de grande prestígio social, entre elas intelectuais de renome, os
quais mantinham estreito relacionamento com o Imperador.
São conhecidos como “Sociedades” os clubes carnavalescos que desfilam
oficialmente durante o Carnaval. (...) O primeiro desfile data de 1855, feito pelo
Congresso das Sumidades Carnavalescas, primeiro clube carnavalesco do Rio de
Janeiro. (...) Dele faziam parte grandes personalidades da época: o escritor José
de Alencar, Pinheiro Guimarães, o romancista Manuel Antônio de Almeida e
Henrique Cezar Muzio. Alencar, o coronel Polidoro da Fonseca Quintanilha
Jordão e o poeta Muniz Barreto foram ao palácio convidar o Imperador. O
Imperador Dom Pedro II foi com a Imperatriz e as Princesas apreciar o desfile,
que constava de foliões, carros alegóricos com personagens históricos, grupos a
cavalo, banda etc.( Fernandez, op.cit.:33)
As agremiações expressavam a vanguarda ideológica do período imperial,
chegando a promover campanhas abolicionistas de grande significação, as quais se

41
constituíam em críticas políticas, incomodando a prestigiosa Família Imperial que,
algumas vezes, fazia-se presente nos desfiles. O engajamento da sociedade era
representado na crítica de caráter alegórico, indicando, aí, a influência, também
francesa, configurada nos versos e prosas de importantes poetas dessa época.
A partir de 1877, surgiram os chamados pufes que vieram da França, onde a
palavra tem muitos significados. Aqui, funcionou como uma espécie de desafio em
versos, que as Sociedades usavam para descrever os carros alegóricos ou como
instrumentos de combate contra outra Sociedade. Muitos artistas dedicaram-se aos
pufes: Olavo Bilac, Benedito Kalixto, João Lira Filho, Francisco Guimarães, Mauro de
Almeida, dentre outros (Fernandez, op.cit.:34).
Esse comportamento encontrava seu ápice, quando essas entidades clubistas
transformavam-se em sede de campanhas e atividades objetivamente políticas em favor
dos ideais republicanos, conforme exemplifica texto abaixo, referente à preparação de
uma reunião na sede da tradicional Sociedade dos Fenianos:
... 16 de dezembro de 1891, (...) tiveram início as sessões preparatórias da
primeira reunião da Constituinte sob a presidência de Aristides da Silveira Lobo.
(Fernandes, op.cit.:34)
Evidentemente, a dinâmica relação carnavalesca, no início da era republicana,
indicava um outro panorama sócio-econômico de conseqüência inevitável e irreversível,
ou seja, a crise da aristocracia agrária que perdia espaço para a emergente tendência
industrial, que irá se consolidar na política de substituição das importações da era
getulista, culminando na ditadura do Estado Novo.
Diga-se de passagem, esse fenômeno produziu um proletariado e uma massa
urbana negra que não consegue lugar no embrionário mercado de trabalho, uma vez que
foi preterida em favor do imigrante europeu, dando origem a um lumpesinato formado
por negros e miscigenados egressos da escravidão. Esse segmento étnico, não
assimilado pelo novo mercado de trabalho, formaria um verdadeiro exército de reserva,
no qual os negros nordestinos vão se constituir numa ampla massa estigmatizada pela
malandragem (Prudente, 1995:151).
Cabe dizer que, nesse contexto, só a mulher negra tem espaço no mercado de
trabalho, ocupando lugar na criadagem (Moura, op.cit.:43). Concomitantemente, o
homem negro é desarticulado da posição de sustentação de chefe da família,
aprofundando, ainda mais, o estigma de malandro. É nesse quadro de marginalização
que Ismael Silva e seus companheiros darão origem à primeira escola de samba
brasileira, cujo nome, “Deixa Falar”, traz subjacente a natureza de protesto.
Essa agremiação cultural passou por várias fases; sua gênese data do segundo
meado da década de 20, na cidade do Rio de Janeiro. Fundada no bairro do Estácio de
Sá, no primeiro momento foi um bloco carnavalesco, afirmando-se, posteriormente,
como rancho e, somente em 1932, inspirados na Escola Normal 1, os “bambas”2, que na
sua porta costumavam se reunir, resolveram, ali mesmo, transformar a organização em
escola de samba. É interessante notar que, embora a instituição escolar fosse
instrumento da ideologia de exclusão social do negro, os sambistas se inspiraram nela
para nomear esse folguedo popular.
É possível, todavia, que o nome “escola de samba” já existisse antes da fundação
da “Deixa Falar”, conforme relato de alguns jornais:
1
FERNANDES, Neusa. Op. cit.:45. A histórica instituição educacional situava-se na antiga esquina das
ruas Joaquim Palhares e Machado Coelho.
2
Os bambas eram os lideres dos desocupados, ou seja, lumpemproletários e os mais visados na ação da
máquina repressiva da época. Esses sambistas tinham seus instrumentos - tamborim, pandeiro e tambor -
furados pela polícia. (Nota do autor).

42
... o jornal “A Noite” de 22 de novembro de 1914 que registrou: “Grupo Escola
de Samba do Riachuelo”. E até o famoso cordão da Bola Preta — cuja primitiva
sede era na Rua do Lavradio — foi citado no jornal “O Imparcial”, edição de 22
de fevereiro de 1925, como Escola de Samba, pelo cronista carnavalesco Gigolô,
(...) Fernandes, op.cit.:45)
Ora, é fundamental compreender a escola de samba como elemento catalisador
das amplas massas negras, na medida em que foi também síntese das diferentes
manifestações culturais do universo africano. A exemplo disso, vamos encontrar nessa
organização o uso do artesanato na produção de alegorias, adereços e instrumentos de
percussão de inspiração africana que compõem a bateria e a polissemia de “motivos”
que forma a estrutura temática da coreografia afro da escola. Percebe-se, ainda, na ala
das baianas, a força da mulher negra com sua ternura e liderança, características do
sacerdócio da tradição dos orixás.
Observa-se, nesse sentido, que a temática negra foi, por muito tempo, fonte de
inspiração dos enredos das escolas, constituindo, talvez, uma espécie de trama utópica
ou catártica. Sendo assim, não é raro alguns sambistas fantasiarem-se com trajes
diferentes da sua condição social, dando ao carnaval uma conotação onírica e libertária.
Cabe ressaltar, sobretudo, que as diferentes modalidades dessa espécie de procissão
profana, da dança ao ritmo, tudo se unifica na ação coletiva do canto que irmana os
participantes.
Vale dizer que a escola de samba foi, possivelmente, uma das poucas formas de
organização consensual da resistência cultural do afro-brasileiro nas periferias dos
grandes centros urbanos. Sendo assim, converteu-se numa força tão significativa, que o
samba tornou-se um símbolo da integração nacional, conforme afirmou José Carlos
Rego (1996:4). Essa situação vai contribuir de maneira decisiva para que o carnaval,
baseado na visão do negro, viesse a se tornar uma potência e, provavelmente, o mais
importante produto da complexa indústria do turismo brasileiro.
Não é por acaso que os primeiros concursos de desfiles das escolas de samba
foram promovidos pelos jornais da época. De acordo com Dulce Tupy (op.cit.:10):
... 1932, data do primeiro baile carnavalesco no Teatro Municipal, marca também
o primeiro concurso entre as escolas de samba na Praça Onze, promovido pelo
jornal Mundo Sportivo.
Tamanho foi o peso que a imprensa jogou nesses desfiles carnavalescos, que a
municipalidade oficializou o desfile do Rio e fez deste o maior carnaval do mundo e,
logo, referência do turismo da cidade maravilhosa. Nesse sentido, é sensato inferir que,
no sistema capitalista, o produto turístico só se consolida em estreita relação com a
mídia (Tupy, op.cit.:113). Contudo, no caso específico da escola de samba, pode se
dizer que o desdobramento seria dramático, pois lucro e cultura dificilmente se
combinam, sendo o artista popular o prejudicado nas relações artísticas-comunitárias.
É pertinente observarmos, com maior atenção, que a transição do desfile das
escolas como uma expressão da oficialidade da capital carioca se daria num processo de
correlação de forças, em que as escolas eram o núcleo das relações midiáticas daquele
momento. Em outras palavras, a nova posição desse folguedo popular, enquanto
organização negra, forma-se num processo de mídia em que a força da expressão
cultural da escola de samba também torna-se um produto turístico de implicação
midiática. Isso seria um problema para a escola, pois sua composição étnica e a sua
natureza popular provocariam o deslocamento da posição de protagonista de seus
membros em favor de um suposto tipo social, o qual combina com o caráter dominante
da mídia que, no entanto, é estranho à vida da comunidade. A esse respeito comenta
Ney Lopes (apud Tupy, op. cit.:113):

43
... 1962, os órgãos de turismo fecharam parte da Avenida Rio Branco, instalavam
arquibancadas em frente à Biblioteca Nacional e cobravam ingressos. Depois, em
1970, a pretexto de acabar com os atrasos, esses órgãos limitavam o tempo de
desfile de cada escola (nesse ano, a televisão, que antes tomava apenas algumas
cenas do desfile, passava a transmiti-lo integralmente). (...) Tudo culminou,
entretanto, em novembro de 1975. E culminou com a assinatura de um contrato de
prestação de serviços, com vigência de quatro anos, que obriga as 44 escolas de
samba cariocas a participarem de todas as atividades programadas pela Riotur,
mediante a remuneração global (a ser dividida entre as participantes) de 28% da
renda do espetáculo, cabendo 12% para a Associação das Escolas de Samba e
60% para a Riotur
O papel fundamental da mídia numa sociedade poliétnica, de economia
dependente, é produzir o mito do tipo ideal, de tal modo que esse tipo ideal será o
representante do poder e sua égide, ou seja, o homem branco e o desdobramento da sua
extensão de relação de poder. Em consideração a esse quadro de etno-poder, é sensato
supor que o eurocentrismo estabeleceria a imposição de uma provável mudança na
composição racial dos protagonistas da escola de samba para atender à política de
modelo ideal, forjada pela mídia enquanto aparelho ideológico das classes dominantes.
Ainda citando Tupy (op.cit.:115):
Sob o luxo das alegorias, desfilam “figurões” da alta sociedade ... Tiranizadas por
conveniências turísticas e comerciais, as escolas de samba se transformaram na
embalagem.
Nessa perspectiva, assim que a escola de samba torna-se um produto socialmente
válido, faz-se necessário que ela assuma a feição do ideal social da elite branca. Desse
modo, esse fenômeno concorreu para aviltar a feição sócio-racial das escolas, pelo
menos nos postos estratégicos. Assim, as escolas começam a crescer a partir de uma
política de consumo dada pelo interesse de forças socialmente estranhas às mesmas. A
esse respeito comenta Goldwasser (s/d:146-7):
Um indivíduo que tem longamente convivido com dirigentes mangueirenses e que
prestou serviços cruciais na construção do Palácio do Samba, interpretou para
mim dessa forma sua participação: “Como branco, intelectual e forasteiro, (...)
pessoalmente tenho muitas dificuldades para penetrar no código deles. São outra
gente, outro mundo, pensam com outras categorias”.
A necessidade de mudança da organização carnavalesca impôs uma exigência
seletiva no comportamento da comunidade local, que tinha na escola de samba a única
alternativa de participação sócio-cultural. Citando Leopoldi (1978:96):
A importância social da Escola de Samba para a comunidade pode ser
exemplificada pelas observações de um seu diretor: “Aqui em Padre Miguel, o
divertimento é o samba. (...) quando não tem samba não tem divertimento, pois o
divertimento é a Mocidade Independente, é o samba da Escola”.
Com efeito, a provável desarticulação da força comunitária frente às exigências de
um modelo estranho à comunidade, que a escola experimenta para se transformar em
produto substancial do maior carnaval do mundo e seu desdobramento no turismo,
enquanto capital, significaria o indício de uma espécie de exílio existencial imposto ao
indivíduo na sua própria comunidade, resultando numa patologia de natureza
antropológica, uma vez que esse quadro é também uma quebra de identidade.
Portanto, depois de dar ao carnaval europeu (de característica dionisíaca) um traço
de beleza africana (de natureza apolínea), consubstanciado na escola de samba, o negro,
justamente por uma questão de modelo de beleza ideal, seria gradativamente deslocado

44
da posição de destaque no desfile para dar lugar a um tipo midiático, diferente do
encontrado na dinâmica do cotidiano comunitário das periferias, onde estão localizadas
as grandes escolas de samba dos principais centros do turismo carnavalesco.
Teremos, desse modo, uma nova configuração da escola de samba, que se delineia
em virtude dessa complexa organização turística-carnavalesca para atender aos apelos
das dinâmicas relações de interesses midiáticos; desenvolvendo, ainda, uma verdadeira
indústria artesanal cada vez mais sofisticada, cujo objetivo é responder à necessidade
músico-instrumental da bateria, bem como de adereços, alegorias e carros alegóricos.
No entanto, no período anterior a esse processo de transformação midiática, a escola de
samba desenvolvia, em favor da comunidade, a oficina artesanal, a qual tinha a função
de escola de artes e ofícios, formando jovens aprendizes, sobretudo nas áreas de
percussão, fundição, marcenaria, costura e outros ofícios afins. De tal sorte que, dessa
forma, a escola ocupava um espaço significativo na vida comunitária dos seus
componentes. Nesse sentido, Goldwasser (op.cit.:152) lembra que:
... na Ala de Bateria, por informação de seus próprios componentes, é que a maior
parte de seus elementos e a quase totalidade dos membros de suas duas diretorias
residem no próprio Morro da Mangueira, sendo alguns dentre eles dos mais
antigos moradores na localidade.
Assim, na medida em que aumenta a obediência da escola em relação ao poder da
mídia, percebe-se, também, a fragmentação da cultura popular no processo de
montagem do desfile da escola. Dessa maneira, o artesão, que antes estava vinculado
aos compromissos existentes nas relações comunitárias, é obrigado a ceder lugar para os
chamados carnavalescos, artistas plásticos das classes privilegiadas, os quais não
mantêm nenhuma ligação com a comunidade local e, portanto, marginaliza-a no
processo de produção da arte material carnavalesca.
Desse modo, deslocado da escola de samba - seu único espaço social -, o negro
não será assimilado pelo valor hegemônico da verticalização de origem mercadológica
que impregna a sua entidade agremiativa. Somado a isso, a dificuldade de inserção no
mercado de trabalho também contribuiu para impedir a sua participação nos desfiles.
Assim, na medida em que é elemento característico do lumpesinato (IBGE, 1981:21),
vivendo toda a sorte dessa contradição socioeconômica e cultural, não terá condições de
comprar a fantasia e o ingresso do desfile, cujos preços são pautados pelas relações
turísticas-midiáticas.
No entanto, esse “bamba”, mesmo sem ingresso, comparece como folião sem
fantasia, para ficar à margem dos sambódromos, junto a uma multidão que teve o
mesmo destino. Restando-lhes estarem disponíveis como reserva na necessidade de
virem a compor, apenas como número, as arquibancadas numa eventual dificuldade de
público para a transmissão midiática do carnaval. Essa situação de caráter sócio-cultural
parece ser um fenômeno que se generaliza nos carnavais típicos das grandes metrópoles,
sugerindo, talvez, uma nova categoria antropológica que carece de pesquisa, a qual, por
hora, chamaremos de arquibancada alegre de reserva.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

FERNANDES, Neusa. Síntese da história do carnaval carioca. Instituto Estadual do


Patrimônio Cultural: Divisão de Pesquisa de Manifestação Cultural, 1986.
IBGE. O lugar do negro na força de trabalho. Fundação Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística. Rio de Janeiro: IBGE, 1981. (elaborado por Lucia Elena
Garcia de Oliveira/Rosa Maria Porcaro/Tereza Cristina N. Araújo).

45
GOLDWASSER, Maria Julia. Palácio do samba: estudo antropológico da Escola de
Samba Estação Primeira de Mangueira. Rio de Janeiro: Zahar.
LEOPOLDI, José Sávio. Escola de samba, ritual e sociedade. Petrópolis: Vozes, 1978.
MOURA, Clóvis. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.
MOURA, Roberto. Tia Ciata e a pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
FUNARTE, 1983.
PRUDENTE, Celso. Barravento: o negro como possível referencial estético do cinema
novo de Glauber Rocha. São Paulo: Nacional, 1995.
REGO, José Carlos. Dança do samba: exercício do prazer. Rio de Janeiro: Aldeia,
1996.
TUPY, Dulce. Carnavais de guerra. Rio de Janeiro: ABS, 1985.

46
O FAZIMENTO DA ARTE POPULAR DO BRASIL DESTINADA ÀS
GRANDES MASSAS MESTIÇAS

Ricardo Cravo Albin*

O fazimento da arte popular do Brasil destinada às grandes massas mestiças


cristaliza-se em duas vertentes, que destaco como as minhas fontes prediletas de estudo
e observação: a música popular e o carnaval carioca.
Há alguns anos atrás, solicitado através de carta por George Sadoul, intelectual e
escritor francês, além de diretor da "Cinemateque Française", levei dois sociólogos da
Sorbonne para assistir ao desfile das escolas de samba. Passei toda a noite a fornecer aos
visitantes dados sobre o grande espetáculo, além de comentários sobre o esforço
individualizado daquela multidão de cerca de 50 mil pessoas, todas ricamente
fantasiadas a suas próprias custas. Ao final, mais de quatorze horas depois da maratona
do samba, fomos tomar café da manhã num pé-de-chinelo das imediações do
sambódromo na Praça XI. Exaustos e depois de tomar uma média com misto-quente,
um deles saiu-se com a seguinte previsão:
- Se eu não estiver sonhando e for verdade o que acabo de ver, uma conclusão
preliminar se impõe: um povo que consegue realizar desfile tão prodigioso,
apenas pelo prazer pessoal de participar de uma estrutura coletiva, naturalmente
deglutidora de individualidades, não é apenas um grande povo. Será um povo que
sinaliza os caminhos da organização social mais fraterna e mais justa no próximo
milênio. E mais: será brasileiro o primeiro esboço de civilização que poderá se
organizar e se tomar referência a base do melhor da espécie humana, que,
também, é seu segredo final: o poder de se realizar através do lúdico, do prazer,
da solidariedade.
Com efeito, quem reflete sobre o fenômeno do processo civilizatório brasileiro,
necessariamente, passará pela conformação trirracial que nos fez um raro ponto mulato
de convergência. Parodiando mestre Gilberto Freire, graças a Deus, a Oxalá e a Tupã
somos um povo caracterizado pela miscigenação, cujo condimento de sensualidade,
alegria e descontração não deveria nunca nos envergonhar, como era comum até pouco
tempo atrás, ao menos por gente de narizes emproados, esses pobres de espírito que
consideram que o único berço civilizatório está plantado na sensaboria e mesmice da
Europa dos três últimos séculos.
Aliás, o próprio Gilberto Freire me disse, durante um jantar em que era
homenageado no senhorial Solar do Jambeiro de Niterói (de Lúcia e Egon Falkenberg),
que essa fidalguia brasileira na arte de bem receber era dotada de tal calor humano, que
seria até capaz de derreter quaisquer blocos de gelo interpostos pelo formalismo
europeu no ato de conviver em sociedade. Luiz da Câmara Cascudo, na cadeira ao lado
da minha, não só assentiu, como tomou da palavra para improvisar um quase discurso
paralelo, em que celebrava a graça, a alegria e a espontaneidade da mulher brasileira,
fruto da doçura do temperamento mulato, de que, felizmente, o Brasil é portador,
condição sempre a ser proclamada em bulícios de algaravia. E jamais varrida,
silenciosamente, para debaixo do tapete.
Pois foi esta civilização mulata, que somos nós, que permitiu e fez desabrochar o
que hoje temos de mais exportável na nossa pauta de produtos culturais: a música
popular brasileira. Mas, argüirão alguns pançudos mal-humorados, música popular é
*
Jornalista e escritor.

47
manifestação ligeira e efêmera do espírito, música eterna é música erudita. Ademais,
como ficam nossos grandes músicos como Villa-Lobos, Mignone, Guarnieri e Lorenzo
Femandes?
Ficam, também, por certo, e muito mais no coração da gente e muito menos nos
ouvidos. Por quê? Porque a forma erudita é de assimilação muitíssimo mais complexa
para um público despreparado, menos afeiçoado secular e culturalmente, e, sobretudo,
seduzido e já conquistado pela música popular, cuja força e originalidade faz dela a
mais interessante do mundo. Se isso é uma fatalidade - e é - que seja assumida.
Aliás, Vinícius de Moraes se dizia - com a graça habitual - o branco mais preto do
Brasil, numa reverência formal ao elemento negro, constituidor, talvez prioritário, da
mulatice que impregna e define o melhor da MPB, desde o choro criado pelo gênio
mulato do flautista Callado, nos idos de 1870, às modinhas de Chiquinha Gonzaga,
lançadas nos teatros da praça Tiradentes, de 1880 até 1934, e aos lundus do Xisto Bahia,
que inundaram de ritmo e descontração as ruas do Rio, nas décadas finais do século
XIX.
Devo aqui registrar - e clamar, como venho fazendo durante os últimos 25 anos
ininterruptos pelos microfones da rádio MEC - que a macaqueação, a submissão cultural
e a sabujice ante os modismos, que chegam de espúrias procedências externas, aviltam-
nos como nação e tumultuam-nos como povo. Nada mais entristecedor para mim que
assistir, aqui e acolá, ao destroçamento do vernáculo de Machado de Assis em todos os
níveis, que, hoje, abrangem um leque de impensadas e inacreditáveis opções. Vão desde
à imposição tirânica do modismo do computador até aos bailes funks nas favelas dos
sambas, quando não à indigência ilegal dos grafiteiros e ao horror de nivelar,
especialmente os jovens, pelas drogas, berço e repositório da violência urbana que nos
infelicita a todos nas grandes urbes do país.
Não estará longe de cometer injustiça ou ato de burrice explícita quem não
concordar que a música popular do Brasil é a melhor do mundo. Patriotada
inconseqüente? Nem um pouco, quando se considera que publicações severas, como a
revista Time e o jornal Le Figaro, referem-se ao nosso cancioneiro, tanto em
reportagens sucessivas quanto em colunas musicais, desde o lançamento mundial da
bossa nova, com Jobim, Vinícius e João Gilberto à frente, como a mais estimulante
novidade musical da segunda metade do século para cá.
Não é à toa, pois, que nossa música popular é a única do mundo a cultivar os seus
letristas, elevando-os à condição de poetas. Pois como, senhores, não considerar poetas
de estirpe - e sem adjetivos incomodamente restritivos como popular - artistas do porte
de Orestes Barbosa, que, em 1936, escreveu a maravilha que é o verso Tu pisavas nos
astros distraída, referindo-se, em “Chão de Estrelas” (parceria com Sílvio Caldas) às
poças d’água, feitas pela chuva da véspera, em frente ao barraco da amada no morro
carioca? Por este verso, Orestes, ainda em vida, foi homenageado por Manuel Bandeira,
como o autor da mais linda frase poética escrita no Brasil.
Na trilha de Orestes, aí estão poetas de extraordinária qualidade como os boêmios
e fugazes Noel Rosa e Antônio Maria ou os contemporâneos Chico Buarque e Caetano
Veloso, Paulo César Pinheiro e Abel Silva, para citar apenas meia dúzia dentre as
centenas que constróem e fazem andar a MPB.
Que dizer do milagre dos poetas do morro que jamais foram aos bancos escolares
e produziram pura poesia - sem adjetivos, por favor - como a testemunhar que a
inspiração e o gênio independem de escolaridade e categoria sócio-econômica? Aí estão
- para quem se der ao trabalho de conferir - os mulatos Cartola e Nelson Cavaquinho,
ambos do morro e da gloriosa escola de samba da Mangueira, cujas jóias poéticas
podem se resumir em versos como, do primeiro, As rosas não falam / Simplesmente as

48
rosas exalam / O perfume que roubam de ti. Do segundo, em parceria com o também
poeta Guilherme de Brito, Tire seu sorriso do caminho / Que eu quero passar com
minha dor. Alturas poéticas que fizeram Carlos Drummond comentar, em crónica para o
Correio da Manhã, que tudo que ele queria era escrever coisas tão belas.
Pois foram, exatamente, os citados poetas da Mangueira, à frente o honorável
Cartola, apelido de exemplar cidadão do samba e da poesia Angenor de Oliveira, que
ergueram, em seus ombros raquíticos e com suas mãos sem vintém, os desfiles
inaugurais das escolas de samba, a partir do finalzinho dos anos 20, começo dos 30. As
escolas, que vieram dos blocos carnavalescos, acabariam por sobrepujar seus
concorrentes, os já veteranos Ranchos e as Grandes Sociedades, ponto alto do desfile de
rua no carnaval carioca desde o começo deste século, sucessores organizados e
miscigenados dos brutais entrudos. Portugueses e europeus na essência. E na
truculência.
As escolas de samba cariocas - cujo apogeu universal ocorreria na década de 80
com a inauguração do sambódromo, fruto do sonho e da ousadia de Oscar Niemeyer e
Darcy Ribeiro - é hoje um fenômeno cultural brasileiro, absorvido, com interesse, pelo
mundo afora. E não apenas absorvido: é o único evento público do país exibido com
fartura no exterior, como que a contrabalançar as imagens da violência e da miséria
exibidas com igual volúpia nos países do primeiro mundo e provocadas pela desdita dos
nossos já crônicos problemas da má distribuição de renda e da impunidade, ambos
elementos da infelicidade nacional.
Não será, tampouco, exagero afirmar que o desfile das escolas de samba resgatam
a felicidade nacional, ao menos nos dias em que é realizado. Na verdade, o conjunto de
artistas envolvidos na confecção do gigantesco espetáculo - considerando-se as centenas
de pintores, escultores, figurinistas, designers, os próprios diretores da infra-estruturada
do evento, chamados de carnavalescos - não tem paralelos na história da cultura
popular. Muito menos o número de pessoas envolvidas nos desfiles, cerca de 80 mil,
todas luxuosamente paramentadas às suas próprias expensas. Também, sem paralelos é
a surpreendente cifra da economia que envolve o conjunto do desfile, considerando ao
custos gerais das escolas. Dos ingressos e dos serviços prestados, particulares e
públicos, algo em tomo de cem milhões de dólares. Nunca houve, na história da
manifestação da arte popular, nada tão pungente, tão grandioso, quanto à forma e à
essência.
Em termos acadêmicos, este singularíssimo fenômeno já merece atenções de
núcleos internacionais de pesquisa, na área das ciências sociais.
O arquiteto, urbanista e filósofo inglês Paul Virillo, em seu recente "Ensaio sobre
a dromologia e a arte do motor", editado em 1993, refletiu sobre a tese da velocidade
no comportamento do ser humano neste final de século. A idéia central da tese de
Virillo é a discussão entre poder e velocidade. Em outras palavras, o ensaísta considera
caducos os valores anteriores, que tinham o centro no binômio poder e industrialização.
Ou seja, chegamos, finalmente, ao mundo pós-moderno, no qual o oculto e o secreto
desaparecem, para dar lugar ao ciberespaço e à realidade virtual, conseqüências diretas
da revolução dos computadores, que aceleram, dramaticamente, o poder da velocidade.
Pois bem: a denominação de sambódromo à passarela do samba antecipa o jogo
pós-moderno na tradicional, lenta e maturada arte popular. De mais a mais, o dromos
grego também fez acelerar a marcha do desfile das escolas de samba, impulsionando-o
para a velocidade, uma velocidade tal, que faz passar 5 mil desfilantes em apenas 80
minutos. Ou seja, o desfile modifica-se e acompanha a vertigem dos tempos virtuais,
com toda a carga de riscos e deterioração que essa vertigem pós-modernista pode
acarretar à arte tradicional do fazer do povo.

49
Já o sociólogo francês Jean Baudrillard observa que, enquanto o modernismo
destituiu os mitos em nome da razão, o pós-modernismo fez o contrário: privilegia o
lúdico, o dionisíaco, em lugar da ordem.
Na tese que apresentei à Conferência Mundial de Estudiosos do Carnaval (a
FECC), na Suécia, em 1995, defendi, juntamente com o pesquisador Hiram Araújo, que
a contribuição civilizatória brasileira é absolutamente única, nesse sentido, em oposição
a Baudrillard. O desfile carioca não perde o dionisíaco, mas agrega a ordem, uma
estrutura original e sem paralelos no mundo.
Outro apóstolo do pós modernismo na análise da cultura popular, especialmente à
movimentação de massa no carnaval, o sociólogo Michael Maffesoli, no belo ensaio. “A
contemplação do mundo” (aliás, Maffesoli é habitué dos desfiles das escolas no Rio e
nelas tem uma das argamassas de seus estudos), observa que o pós-modernismo
deflagrou a tribalização, com um ideal comunitário. Ou seja, o mundo pós moderno
polariza-se em tribos, em cujos ideais básicos estão, quase sempre, o lúdico, o sonho,
enfim, a generosidade idealista.
A epifanização do corpo, a valorização do lazer, a ecologia e a busca do prazer
são as sinalizações prioritárias das tribos neste efervescente finalzinho e início de
milênio. Ou seja, tribo, velocidade, celebração ao corpo são os ingredientes que
ritualizam a sociedade heterogênea de nossa contemporaneidade pós-modernista. Aqui,
no Brasil, mais uma vez, uma sociedade fortemente solidária nasce nos trópicos, cuja
ponta de lança nós, que estudamos a arte do povo, localizamos, precisamente no
sofisticado sistema organizacional da escola de samba.
Ademais, como também observa o nosso Roberto da Matta, o carnaval do Brasil,
especialmente o do Sambódromo, inverte a pirâmide social, provocando a dematização
do rito, para que a sociedade injusta, que ainda somos, alivie a flamejante parcela da
pressão social. O que será a carnavalização senão um rito de passagem, uma
providencial e brasileiríssima contribuição para a desopressão do barril de pólvora em
que se assentam todas as injustiças do Brasil? Com o que também concordam, ainda que
timidamente, o teórico russo Mikhail Baktin e o sociólogo inglês Peter Burke, este,
também, observador freqüente do carnaval carioca.
Aliás, foi Burke mesmo quem assinalou, no seu estudo “Popular culture in
modern times”, que o carnaval quase desapareceu na Europa para renascer nos trópicos,
especialmente no Rio, Salvador e Nordeste Brasileiro, como fruto da amável
convivência multirracial do Brasil.

50
EXPOENTES DA ESTÉTICA DA NEGRITUDE NA
LITERATURA BRASILEIRA

Eduardo de Oliveira*

Em se tratando de estética da literatura, a poesia é o gênero artístico que melhor se


presta para sublimar os sentimentos nobres, éticos e afetivos que se agasalham no
espírito e no coração humano. Neste sentir, cremos haver, essencialmente, dois tipos de
pessoas: as que nascem e as que se fazem poetas.
As que vieram ao mundo assinaladas por esta insígnia divinatória são aquelas que
melhor se identificam com os desígnios do Supremo Criador, porque marcham à frente
de seu povo e de sua pátria, conduzindo os seus semelhantes para um destino triunfal de
beleza e glórias imperecíveis. As que se fizeram poetas são aquelas que, tendo uma
mensagem para oferecer aos seres humanos, preferem transformar-se em holocausto
como forma de libertar as almas oprimidas pela dor da humilhação, tornando–se os
heróis da bondade e da virtude das gerações a que pertencem.
É dentro desta dualidade filosófica que vamos encontrar a gênese da edificação
poética da negritude, construída por Auta de Souza, por João da Cruz e Sousa e por
Solano Trindade, porque, nesta excepcional trindade de negros nascidos ou que se
fizeram poetas, faz-se esssa grande parte da história transbordante de tristeza e de
amargura, mas, também, prenhe de fulgurações épicas iluminadas pelos feitos de
coragem e rebeldia realizados pelo povo oriundo da Mãe África e, hoje, solidamente
cristalizados neste soberbo monumento que se chama Brasil.

AUTA DE SOUZA

Há um profundo vinco de uma dor específica, por assim dizer santificante, que
atravessa por todos e cada um dos poemas e sonetos inseridos ao longo das páginas do
único livro de poesia produzido por Auta de Souza, com o sugestivo título “Horto”.
Nascida na cidade de Macaíba, no Estado do Rio Grande do Norte, onde veio ao
mundo no dia 21 de Setembro de 1876, Auta de Souza era única mulher de uma
irmandade integrada por cinco homens, todos filhos de Elói Castriciano de Souza e
Henriqueta Leopoldina Rodrigo de Souza, pais dos quais se tornou órfã com cinco ano
de idade, o que a levou a ser criada por sua avó materna de nome Silvina Maria da
Conceição, mais conhecida por Dindinha, segundo nos esclarece o escritor Raimundo
de Menezes na 2ª edição de seu Dicionário Literário Brasileiro, de 1978.
Cercada pelo estigma da morte (o falecimento de seu irmão Irineu aos 12 anos de
idade num incêndio), parece que esta sombra invisível, mas sinistra, marcou de modo
indelével a sua personalidade, refletindo-se, inclusive, em seus versos escritos e vindos
à tona dez anos mais tarde.
Em tais circunstâncias e em razão dessas vicissitudes, a genial criadora de
“Horto”, com onze anos, é levada, em 1887, para o Colégio São Vicente de Paula, na
cidade de Recife, instituição educacional dirigida por religiosas franceses, na qual ficou
internada por três anos, distinguindo-se nos estudos e vindo a dominar com relativa
facilidade o idioma de Victor Hugo, a ponto de fazer belos versos nessa língua.
Atingida precocemente pela tuberculose – O Mal do Século – Auta de Souza, com
sua avó e seus irmãos, regressa ao Rio Grande do Norte, em 1890, tendo a oportunidade
*
Professor, político e poeta.

51
de ver o seu irmão Henrique Castriciano publicar, em 1892, o seu primeiro livro,
Iriações, ocasião em que quase nada se registra digno de nota, produzido por nossa
ilustre biografada.
Ao lado das peregrinações, com o fito de buscar um ambiente mais adequado à
cura da moléstia que abalara a sua saúde, Auta de Souza, concomitantemente, dá início
a uma fase de intensa atividade literária, que ocorre a partir de 1893. É desse período a
fundação do “Clube do Biscoito”, que promovia reuniões nas casas dos associados, nas
quais se tocava, recitava, dançava e cantava, animando os saraus organizados pela
mocidade preparada e culta do local.
Nesses encontros alegres e descontraídos, Auta de Souza destacava-se pela
desenvoltura e pela simpatia que irradiava de sua inteligência e de sua vivaz e colorida
conversação. Fazer e declamar versos e até mesmo musicá-los fazia parte do cotidiano
entre os jovens e as pessoas educadas para o convívio social sadio e para a liberdade,
naqueles tempos em que, ainda, a escravidão mais objeta grassava no Brasil.
Como nos é dado verificar, Auta de Souza fazia parte daquele elite intelectual e
era uma jovem brilhante, em que pese o seu precário estado de saúde, sendo sempre
uma agradável companhia para todos que dela se acercavam.
Em 1.894, começam a aparecer as primeiras colaborações literárias bem
elaboradas, que passam a ser publicadas em revistas, como “Oásis”, da cidade de Natal.
Também, na época, começou o romance de amor que duraria quase dois anos e que
tanto influiu em suas poesias. Tratava-se do bacharel João Leopoldo da Silva Loureiro,
promotor público em Canguaretema e Macaíba, Rio Grande do Norte, e que faleceu em
12 de Junho de 1.897, deixando a futura consorte com 21 anos de idade; o namoro não
era bem visto e acabou terminando em razão da oposição dos familiares de Auta de
Souza, alegando, para isto, a fragilidade de sua saúde.
As colaborações aos jornais e revistas da época tornam-se cada vez mais
freqüentes, devido à elevada qualidade de sua obra, fazendo com que estas apareçam no
jornal do governo “A República” e no “Congresso Literário”, revista da qual Auta de
Souza passa a fazer parte, “apesar da mestiçagem”, referindo-se, no caso, à sua origem
negra. O que significava ter sangue africano correndo em suas veias.
Grande parte das poesias que hoje se encontram inseridas no seu único livro
publicado, foi recolhida desses periódicos, inicialmente enfeixada sob o título de
“Dálias”. A colaboração literária, um ano depois, estende-se ao “Oito de Setembro” e à
“Revista do Rio Grande do Norte”, ambos de Natal.
Em 1899, por insistência de seu mano Henrique, submeteu o livro Horto à
apreciação de Olavo Bilac, que, aliás, escreve-lhe o Prefácio para a sua primeira edição.
Em 1900, transferiu-se para Natal, indo morar no Bairro Vermelho. A 20 de junho foi
publicado Horto. Figurava como pertencente à Biblioteca do Grêmio Polimático.
Auta de Souza veio a falecer no dia 7 de Fevereiro de 1901, à 1 hora e 15 minutos
da manhã, contando 24 anos, 4 meses 26 dias de idade.
Este preâmbulo sobre a vida e obra de Auta de Souza é importante, para que
melhor se compreenda o seu significado no contexto da literatura nacional, que se
caracteriza por uma profunda manifestação de espiritualidade místico-religiosa, dando
oportunidade para que a crítica especializada a aproxime da Escola Simbolista, cujo
patrono maior é o negro Cruz e Sousa, ainda que se admita que, a rigor, a sua obra não
possa ser enquadrada dentro dos limites de seus cânones, necessariamente.
É importante, ainda, destacar o fato de que a crítica a tem na mais alta conta, em
virtude de sua linguagem escorreita, apropriada à poesia, e de seu estilo dotado de uma
meridiana clareza e tocante simplicidade. Neste sentido, são expressivas as palavras de
Olavo Bilac, ao prefaciar o “Horto”, dizendo, logo de início, que ... encontrar entre os

52
livros (tantos, Santos Deus) que por aí se publicam, um livro como este de uma tão
simples e ingênua sinceridade, é coisa que surpreende e encanta! Prosseguindo,
lembra-nos o consagrado poeta das “Estrelas” que Não há nas estrofes do Horto o labor
pertinaz de um artista, transformando as suas idéias, as suas torturas, as suas
esperanças, os seus desenganos em pequeninas jóias, o que, por certo, pela pureza e
espontaneidade de suas criações poéticas, faz a notável poetiza nordestina conseguir
ecoar esses versos no coração de diversas gerações, como a maior poetiza mística do
Brasil.
Lembrado por Alceu de Amoroso Lima, Jackson de Figueiredo alça Auta de
Souza à mais alta expressão do nosso misticismo, pelo menos, no sentimento cristão,
puramente cristão, na poesia brasileira. Nos versos de Auta de Souza há uma tristeza
docemente amarga, como se fosse a bocarra de um abismo fundo e tenebroso, ocultado
por formosas e singelas flores; será que esta poesia não estaria se preocupando com a
dor dilacerante do negro escravizado e que vivia em luta para fugir às agruras do
cativeiros? Isto não seria possível?
Sendo uma poetiza extremamente sensível, Auta de Souza, ainda que não se
batesse de frente e de modo desabrido como o fizeram Castro Alves, Cruz e Souza e
tantos outros abolicionistas, execrando a escravidão, não cremos que pudesse ter
passado indiferente ao flagelo dos negros brasileiros. Os seus dias na terra, mesmo
durando nada mais que 24 anos, dos quais 12 vividos sob o regime escravo, foram o
suficiente para ter-se envolvido naquelas lutas bravas e heróicas, o que, de certa, forma
fizeram-na deixar, no segundo terceto do lapidar soneto “Ao Pé do Túmulo”, estes
versos tocantes e comovedores:
Em pranto escrevam sobre a minha lousa:
Longe da mágoa enfim, no Céu repousa
Quem sofreu muito e quem amou demais.

CRUZ E SOUSA

Talvez eu jamais tenha ocupado esta tribuna trêmulo de tanta emoção, pungido
pela tristeza mais dilacerante. Também nunca antes e nem depois deste momento
um sentimento de orgulho e dignidade humana teve ou terá o poder de elevar tão
alto a minha auto estima, sintonizada com o orgulho e a auto estima do povo
afrodescendente a que pertenço. Pois, é algo que acontece freqüentemente na
história de um povo, o surgimento de um gênio do porte desta figura gigantesca
que estamos reverenciando no centenário de sua morte: João da Cruz e Sousa!
Com estas palavras plenas de justificável comoção pessoal, o Senador Negro
Abdias Nascimento dá início, da Tribuna do Senado da República, ao seu discurso
flamejante e cheio de contornos épicos, com o qual homenageia a memória do insigne
poeta negro Cruz e Sousa, por ocasião do transcurso do primeiro centenário de seu
falecimento, ocorrido no dia 19 de Março de 1898, em Sítio, cidade do estado de Minas
Gerais.
Pintando com tintas fortes o perfil másculo e ao mesmo tempo sereno do poeta
simbolista – o comovido autor de “Missal”, “Broquéis” e “Faróis” -, o conceituado
crítico Agripino Grieco proclama que Cruz e Sousa nasceu com a noite na pele e a cruz
no nome, garantindo-nos que:
O grande mal do menino negro catarinense foi que o tiraram de junto do pai
pedreiro e o levaram a conhecer os livros, servindo-lhe o álcool perigoso tornado-
o uma espécie, ‘de emparedado’ no orgulho intelectual. Porque desde de cedo se

53
mostrou ele um asceta, um místico das letras, incapaz de permitir injúrias aos
santos da arte, quase se mantendo em vestes sacerdotais antes de ir à mesa de
pinho escrever seus versos.
Nascido em 24 de Novembro de 1861, João da Cruz e Sousa era filho do escravo,
pedreiro de profissão, Guilherme da Cruz e de Dona Carolina Eva da Conceição, negra
alforriada que vivia de pequenos afazeres, sendo que o casal residia na propriedade do
Coronel Xavier de Sousa, esposo de Clarinda Fagundes de Sousa. Este casal, como
pessoas cultas, pôde, por força de sua inexcedível bondade, oferecer ao menino negro
uma excelente educação, pelo menos para uma época de escravidão, quando o eito era o
lugar normal de qualquer descendente de africanos, onde, sob o látego de feitores
brutais, exauriam sua vida útil que, na mais das vezes, não passava de dez ou doze anos.
Sob o amparo desse convívio afetivo e saudável, Cruz e Sousa pôde desenvolver suas
faculdades intelectivas, sobressaindo-se, ainda na tenra idade, entre os seus
contemporâneos.
Apaixonado por teatros, o futuro pai do simbolismo brasileiro não perdia a
oportunidade de acompanhá-los, ofertando a sua inestimável colaboração, vindo, com
isso, a viajar com eles por boa parte do país. Dominando com fluência os idiomas grego,
latim e francês, João da Cruz e Sousa funda, em 1881, juntamente com Virgílio Várzia e
Santos Lostada, o jornal literário “Colombo”, ao longo de cujas páginas deixa firmado o
cinete do seu talento de poeta do povo. Forma-se em direito e, como tal, é nomeado
promotor público da cidade de Laguna, cargo, aliás, que não chega a ocupar por
injunções políticas e, principalmente, pelo fato de ser negra a cor de sua pele.
Há mesmo um grande e singular mérito que deve ser creditado ao poeta Cruz e
Sousa: o fato de haver lutado com denodo, galhardia e perseverança para se impor
perante a classe branca dominante, apesar da cor negra estampada em sua epiderme.
Poucos poetas brasileiros, se é que houve algum, tiveram de viver e experimentar na
própria carne as amargas notas de seus versos profundamente tristes e chorosos, por
vezes trágicos, como se a vida humana fosse uma Madrasta de Coração de Pedra, que
faz de cada poeta pobre um crucificado moral.
Como, apesar dos pesares, a vida continua, Cruz e Sousa transfere-se para o Rio
de Janeiro, em 1890, passando, em 1892, a colaborar no jornal Cidade do Rio, de José
do Patrocínio, casando-se no ano seguinte com a afrodescendente Gavita Rosa
Gonçalves, ano, inclusive, em que se torna praticante, ou seja, funcionário público da
Central do Brasil. Os momentos que passam com a sua doce e encantadora Gavita, a sua
Flor Divina e Secreta da Beleza e a Solitária Madona da Tristeza, não mudam muito a
sua sina de poeta sempre inspirado e, ao mesmo tempo, terrivelmente armagurado.
A dor maior, todavia, iria atingi-lo, brutalmente, nesse período, quando o estado
de saúde de Gavita é abalado pela loucura, levando o poeta Cruz e Sousa, literalmente,
ao supremo desespero. Talvez, em obediência a tais condições de sofrimento, é que
devamos encontrar, na poesia de Cruz e Sousa, os ingredientes que fizeram-no
preocupar-se com os problemas que reduziam o ser humano à condição social e
espiritual de profunda miserabilidade, nos termos em que o escutamos cantar no poema
“Litania dos Pobres”:
Os miseráveis, os rotos
são as flores dos esgotos.
São espectros implacáveis,
os rotos, os miseráveis.
Por conseguinte, nós nos enganaríamos se pensássemos que Cruz e Souza, ao
longo de sua vida fecunda e atribulada, passou ao largo dos problemas cruciais de sua
época, como a mácula da escravidão. Numa combinação estilística de veia parnasiana e

54
condoreira, este esplêndido poeta compôs, na fase inicial de sua carreira, notáveis
poemas abolicionistas, como este belo e enérgico soneto “Escravocratas”:
Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio
manhosos, agachados – bem como um crocodilo
Viveis sensualmente à luz dum privilégio
na pose bestial dum cágado tranqüilo.
Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas
ardentes do olhar – formando uma vergasta
dos mil raios do sol, das iras dos poetas,
e vibra-vos a espinha – enquanto o grande basta
O basta gigantesco, imenso, extraordinário
da branca consciência - o rútilo sacrário
no tímpano do ouvido – audaz me não soar.
Eu quero em rude verso altivo adamastórico,
vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
castrar-vos como um toro – ouvido-vos urrar!
Na verdade, a Escola Simbolista encontra em Cruz e Sousa o seu insuperável
paladino e o criador supremo dessa estética literária, que consistia na revelação de um
estado onírico, em momentos crepusculares e numa audaciosa manifestação
expressional criativa e renovadora, ao tempo em que apareceu entre nós, segundo nos
ensina Tasso da Silveira, num dos estudos mais bem elaborados sobre a vida e a obra do
poeta de “Broquéis”, livro editado em 1893.
Como dizem os professores Benjamim Abdala Júnior e Samira Jossef Campedele
em seu livro “Tempo da Literatura Brasileira”, os poetas simbolistas são autênticos
“Artesões da Beleza Artística” dessa estética literária surgida na França, na década de
1880, e que se estendeu até os primórdios da Primeira Grande Guerra Mundial, em
1914.
É evidente que a presença de um vulto ciclítico dessa expressividade teria de
causar, de um lado, o ódio penetrante nas elites escravocratas, sobretudo, em razão da
audácia de suas posições estéticas e políticas e do ardor e talento com que as defendia;
tanto quanto despertaria, de outro lado, a estima apaixonada de admiradores, como a
que se manifestou na triunfal recepção de que foi alvo por ocasião de sua chegada no
Rio Grande do Sul, em 1886, inegavelmente, ... o momento de rara euforia numa vida
marcada muito mais pela frustração e pela revolta, fatos estes lembrados por Abdias
Nascimento, como já dissemos, da tribuna do Senado Federal, no dia em que essa Casa
de Leis do País tributava a Cruz e Sousa as devidas homenagens em virtude do
centenário do seu falecimento.
E não seria para menos. Tornando se o poeta de língua portuguesa que mais se
aproximou do ideal simbolista, de angústias metafísicas expressas numa explosão de
sílabas claras..., como nos realça Antônio Olinto, atual secretário da Academia
Brasileira de Letras, em seu livro intitulado “Breve História da Literatura Brasileira”.
É este escritor que nos diz que O crítico Francês Roger Bastides situa Cruz e
Sousa ao lado de Stéfhane Malharme e Stefan George, vendo neles a tríade suprema do
simbolismo universal e dando visível preeminência, nessa tríade, ao poeta brasileiro,
esclarecendo, ainda, que ... Cruz e Sousa deixou obra única - pela invenção vocabular,
pelo ritmo, pela fidelidade a um caminho e pela adequação/inadequação quase
religiosa entre poesia e vida - na literatura brasileira, a ponto de exercer uma marcante
influência nos intelectuais e poetas de sua geração, entre os quais se incluem poetas
brilhantes do gabarito de Alfhonsus de Guimaraens (1870-1921), Emiliano Perneta
(1866-1921), B. Lopes (1859-1916), Da Costa e Silva e, com destaque especial,

55
Augusto dos Anjos (1844-1914), ... cuja forma, porém, de exaltamento pessoal, o
separou de outros grupos de poetas numa obra sem imitadores nem discípulos.
Na douta avaliação de Antônio Olinto: Cruz e Sousa influiria ainda os poetas
modernistas-simbolistas do século XX como Cecília Meirelles, Tasso da Silveira,
Murilo Araújo e mesmo Augusto Frederico Schimidt.
João da Cruz e Sousa, cognominado o Dante Negro, é a sumidade máxima da
literatura brasileira, por haver feito desse pontificado uma das vertentes mais luminosas
e singulares de quantas transformaram-se em Escola, que verberou na prosa e na poesia
da geração de sua época no Brasil, permeando o período literário enfeixado entre 1880 e
1914, de um modo muito especial.

SOLANO TRINDADE

Recordar Solano Trindade é ver a alma de um Brasil Negro esvoaçando pelas


ruas, praças e bares do Recife, do Rio de Janeiro, de São Paulo, cidades que parecem
guardar no interior de suas estruturas emocionais o eco imorredouro de seus passos de
poeta e sonhador, flagelado pelas inquietações e injustiças sociais que deixaram-no de ...
Olhos distantes e tristonhos, de poucos dentes e maus, de alguém que andava dando-nos
a impressão de ... que deslizava pelas nuvens como anjo rebelado. Solano Trindade foi a
imagem mais vívida e característica de seu tempo, a ponto de causar fortes e profundas
impressões em renomados intelectuais da envergadura de Antônio D’Elia, Roger
Bastides, Artur Ramos, Carlos Drummond de Andrade, Miécio Táti, Carlos Freitas,
Álvaro Alves de Faria, Sérgio Milliet e tantos outros de sua época.
Era uma figura simples, de hábitos morigerados, mas de marcante e altiva
personalidade, que não se dava ao luxo de discutir o valor dos herméticos concretistas,
neo-concretistas, dadaístas, no seu entender propriedade inquestionável dos ... eruditos
donos da Cultura Ocidental, afirmando categórico que
Apesar de tudo o que tenho ouvido e lido sobre poesia, resultados das teses e
debates nos congressos de poetas e críticas – não me sinto disposto a mudar de
linha, de sair do caminho popular de minha poética.
Recordar Solano Trindade é revê-lo caminhando por entre o povo e a sua gente de
origem africana, que lotavam os mangues, as favelas e os periférios, davam vida aos
milhares de palafitas, cortiços e barracos pendentes dos morros ou encrostados nos
subúrbios da Zona Norte da hoje megalópole cantada como Cidade Maravilhosa.
Havia, mesmo, no canto e na fala de Solano Trindade algo de místico e de
profético e, paradoxalmente, de revolucionário, ingredientes que dotaram a sua poesia
dessa cor madura que agradava os olhos dos teóricos de um marquicismo que preferia
ver nos males e nos problemas da sociedade capitalista brasileira apenas e tão somente o
dado de natureza econômica, excluindo dessa discussão o cancro do racismo orgânico
anti-negro, da herança advinda da brutalidade sinistra da escravidão, que separava os
seres humanos pela cor de sua pele.
Revisar a efusão poética de Solano Trindade é rever alguém que soube intervir
com estoicismo de herói solitário, mas capaz de perturbar os valores acentados numa
sociedade que voltara as costas aos sentimentos nobres inerentes aos que acreditam que
a realidade pode, deve e precisa ser, urgentemente, modificada pelo poder detonador de
uma poesia socialmente participativa, agregando metáforas contundentes, como se
fossem petardos arremessados contra as muralhas da indiferença, da frieza e da
hipocrisia burguesa de seu tempo:
Canto de negro dói

56
Canto de negro mata
Canto de negro faz bem e faz mal.
Poeta da resistência, Solano Trindade fez da literatura um bastião solidificado
com a firmeza de suas convicções políticas e estéticas, de modo que a sua negritude
adquirisse essa dignidade transformadora, descoberta pelo Prof. João Batista Borges
Pereira, que nos lembra que
... esse tipo de literatura praticado pelo festejo autor de o ‘Trem da Leopoldina’
objetiva singularizar um grupo, oferecer códigos, valores, mitos para a construção
de bandeiras de combate, possibilitando conquistas sociais, como arte-
representação, é técnica positiva formando o cimento moral que irá unir os
indivíduos matizados pela cor e pela classe dentro de um mesmo grupo.
A poesia de Solano Trindade ganha amplos espaços na moderna literatura
brasileira e nela se perpetua, na medida em que a sua obra erige-se como um texto de
representação coletiva do povo negro, que reivindica e consegue consolidar e ampliar
conquistas de bens materiais e de valores éticos espirituais, junto à sociedade que está
sendo construída com os músculos e com o cérebro de sua negritude, enquanto asfalta
os seus caminhos para o amor, para os sonhos e para os ideais de liberdade e vai
cantando:
É o homem que sofre
o homem que geme
é o lamento
do povo oprimido
da gente sem pão.
É o gemido
de todas as raças
de todos os homens
É o poema da multidão.
Este sentimento e esta visão humanista e universal que perpassam a poesia de
Trindade são os que melhor respondem ao mulato Oliveira Viana, cujo pensamento de
ideólogo racista, à moda do Conde Gobineau que, ao ganhar fórum de ciência, pretende
atribuir incapacidades genéticas ao negro em relação ao branco, inculcando-lhe supostos
graus de inferioridade intelectual nos termos denunciados pelo Prof. Celso Prudente, em
seu expressivo livro de mestrado “Barravento: O negro com o possível referencial
estético do Cinema Novo de Glauber Rocha”.
Estamos com Zilá Bernd, quando afirma peremptoriamente que:
Solano Trindade nos dá a chave de sua poética que busca no negro o ritmo, no
povo em geral as reivindicações sociais e políticas e nas mulheres em particular, o
‘Amor’.
Querendo-se poeta negro e poeta popular, procura Solano Trindade fazer de sua
poesia o lugar da defesa das tradições culturais e da luta por um mundo melhor. Logo, a
sua preocupação com os oprimidos de todas as raças tem como ponto de partida a sua
preocupação com a condição do negro em particular. Ser poeta participante não implica
a exclusão da temática ligada à beleza das mulheres e do amor.
A escritora negra Heloísa Pires Lima, proprietária da editora “Selo Negro”
recentemente lançada entre nós, revela profunda lucidez, quando diz: O racismo
brasileiro é tão ideológico que faz com que a expressão artística dos negros seja
praticamente proibida (a não ser que ele se expresse através do esporte ou da música)
Sempre houve uma literatura feita por homens negros, mas ela ora era camuflada, ora

57
interditada, como aconteceu com Lima Barreto, que foi muito combatido. Hoje estamos
lentamente conquistando nosso espaço.
Confirmando a presença negra na literatura brasileira, é de se admitir que o poeta
Solano Trindade, que atuou, também, com sucesso na imprensa e no teatro (fundou e
dirigiu o Teatro Popular Brasileiro), nucleia um dos pontos mais evidentes e luminosos
dessa constelação de poetas negros, em nosso País, com a sua vasta obra, com especial
destaque para “Contares ao meu povo”, “Seis tempos de poesia” e “Poemas de uma vida
simples”, nos quais o seu santificado orgulho de ser negro não permitiu que ficasse
indiferente diante de algozes e traidores:
... negros agressores
em qualquer lugar do mundo
não são meus irmãos. Só negros oprimidos
escravizados
em lutar por liberdade
são meus irmãos. Para estes tenho um poema
grande como o Nilo
ou ainda:
Eu canto aos Palmares
sem inveja de Virgílio, de Homero
e de Camões
porque meu canto
é o grito de uma raça / em plena luta pela liberdade.
O “Eu – Lírico” de Solano Trindade, ao dar voz a Zumbi dos Palmares,
reapresenta-o como o ex-escravo, o proscrito, o fora-de-lei, que, desta feita, transfigura-
se no maior responsável pela ação heróica, fazendo emergir uma nova verdade,
possibilitando uma outra leitura da convencional, como nos ensina Affonso Romano de
Sant’Anna, no dizer de Zilá Bernd.
Solano Trindade, como o poeta da resistência intelectual negra, entrou na vida
pela porta do fundo de uma sociedade burguesa espoliativa e empedernida, em 1908, e
desta se afastou coberto de glória e de grandiosidade, em 1973, quando ocupava os
sofisticados salões de exibidores dos mais consagrados pintores, aos quais o autor dos
populares versos tem gente com fome / Dá de comer juntou-se para glorificá-los e dar-
lhes a identidade afro-america, o que acabou por se constituir na marca mais expressiva
de quanto aconteceu em termos de arte negra entre o período balizado por duas grandes
guerras mundiais; a de 1914 e a de 1939.
É assim que Solano Trindade é recebido na sodalícia que perpetua a memória dos
maiores poetas da história da humanidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina, Porto Alegre: Mercado


Aberto, 1987.
LOBO, Luiza. Crítica sem juízo, RJ: Fr. Alves, 1993.
MENEZES, Raimundo de. Dicionário literário brasileiro, RJ: Livros Técnicos e
Científicos, 2a ed. rev., 1978.
NASCIMENTO, Abdias do. THOTH. Revista nº 04, Brasília: Gabinete do Senador
Abdias do Nascimento.
OLINTO, Antônio. Breve história da literatura brasileira, SP: Lisa, 1994.

58
OLIVEIRA, Eduardo de. Quem é quem na negritude brasileira, SP: Consgresso
Nacional Afro-Brasileiro, 1998.
PRUDENTE, Celso. Barravento: o negro como possível referencial estético do cinema
novo de Glauber Rocha. São Paulo: Nacional, 1995.
SANTOS, Joel Rufino dos. O que é racismo, SP: Abril Cultural, 1984.

59
O HIP HOP E A RADIOGRAFIA DAS METRÓPOLES NA ÓTICA DOS
EXCLUÍDOS1

João Lindolfo Filho*

Este artigo procura discutir o fenômeno cultural das periferias das metrópoles do
mundo e da cultura hip hop, que traz em seu MC (Mestre de Cerimônia) a figura
ancestral dos griots, e suas relações com a educação formal. Os griots2 do terceiro
milênio são acompanhados por um componente tecnológico musical e questionam o
modus vivendi dos discriminados nas metrópoles, usando como veículo os diversos
campos de expressividade artística abrigados na cultura hip hop: grafite, break, rap e
DJs3. Não que saibam de tudo, mas, a partir de suas perspectivas questionam os donos
do saber constituído, chamando a atenção para a situação de subalternidade a que alguns
povos são relegados por força de sistemas que inclusive já se provaram incapazes de
sanar as questões do homem moderno.
Assim, o discurso de denúncia das injustiças raciais formulado por quem vive na
periferia e de lá olha para os centros urbanos invade as metrópoles do mundo,
questionando essa ética que se constitui em pilares desse formato de sociedade. Em suas
várias modalidades, tem alcançado vez e voz e demonstrado ser elemento de
contestação que se constitui em uma função básica a ser cumprida e difundida pela
cultura hip hop e seus b.boys (seguidores da cultura hip hop).
A revolução das comunicações e a indústria cultural – com a conseqüente
diminuição dos ciclos de produção e consumo dos produtos – favoreceram a divulgação
da música das “minorias”. A segmentação do mercado, a facilidade crescente na
gravação e divulgação de músicas (através de rádios comunitárias, por exemplo) e o
incremento da renda das populações marginalizadas concorreram para fazer vigorar o
caráter musical do movimento hip hop. Os propagadores dessa música, os chamados
negros, através de aparatos tecnológicos (que no início eram em parte desenvolvidos por
eles para dar conta de possibilidades outras, criadas por eles próprios4), trazem à luz
uma música que carrega em si a metáfora da superação da discriminação imposta.
A cultura hip hop, seus desdobramentos, alcances e limites no quotidiano dos
jovens, seus pontos de contato, união e/ou intersecção com o controle social exercido
pelo poder público e com a escola, e o que pode advir dessas questões que
comprovadamente habitam o quotidiano de jovens das periferias das metrópoles do
mundo, foram os elementos principais trazidos à luz por nossos atores.
Alguns questionamentos balizam a trajetória de pesquisa que percorro. Indagamos
aos jovens de hoje se os conteúdos das mensagens veiculadas pelo rap e pelo reggae,
em confronto com o currículo oculto5 que reproduz o status quo,preencheriam de
1
O presente artigo foi inspirado em minha tese de doutorado, intitulada Tribos urabanas, o rap e a
radiografia das metrópoles na ótica dos excluídos, PUC-SP, a ser defendida no início de 2002.
*
Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e doutorando em Antropologia Social na Faculdade de
Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); cantor e compositor.
2
Os griots, na África, eram os responsáveis pela transmissão da história oral de suas etnias através das
gerações; ou seja, eram os contadores e cantadores de histórias.
3
O graffite corresponde às artes visuais, o break à dança, e o rap à música. Já os DJ’s são os
manipuladores da mensagem sonora.
4
Atualmente a Technics, empresa de produtos eletrônicos, tem desenvolvido equipamentos específicos
para DJ’s e rappers.
5
Currículo oculto, para os teóricos da resistência, é composto basicamente por processos de inculcação de
uma realidade social e de pensamentos das elites sobre essa realidade polarizada.

60
alguma forma as lacunas deixadas pela educação formal e evasão escolar. Outras
questões relevantes são: as mensagens veiculadas por esses movimentos musicais têm
sido realmente incorporadas pelos diversos segmentos da juventude em centros urbanos
que cantam e dançam ao seu ritmo? Seria esse movimento algo tão importante quanto
foi a geração beat, o movimento hippie, o movimento punk e outras importantes
manifestações culturais de juventude? Ou seria apenas um modismo passageiro,
fomentado pela indústria cultural em sua busca de lucros? Haveria por parte desta uma
conseqüente escalada rumo à apropriação e domesticação dos conteúdos potencialmente
radicais das mensagens das canções desses movimentos, visando à sua neutralização?
De acordo com o meu objetivo, ligado ao trato de fenômenos urbanos de cultura,
enfoco a questão da educação formal, dos valores sociais e étnico-raciais que a
fundamentam. Esperando que, a partir da voz de nossos atores – tanto a voz da narrativa
de suas histórias de vida quanto a voz que se ouve em suas composições – consigamos
indicar a importância de um conhecimento formal para a transmissão do conhecimento
informal, ou seja, as impressões, denúncias, críticas e propostas de vida sugeridas ou
explicitadas nas letras de raps. O que constatei preliminarmente é que essa escolaridade
pode ou não ser importante para o autor, mas ele vê a escola com os olhos de quem
acredita no saber letrado como forma de aquisição de um discurso de cidadania e de seu
melhor exercício. Porém, no discurso de suas composições, as letras são narrativas
claramente orais, histórias narradas de um cotidiano que parece dispensar o
conhecimento letrado e se apoiar na sabedoria de um observador atento. Eis aí a
ambigüidade de uma história de vida que transforma os que puderam e os que não
puderam permanecer no espaço escolar na figura ancestral dos griots.
Educação e cultura podem se relacionar de várias maneiras. À universalização do
ensino correspondeu, no século XX, ao fenômeno da massificação industrial de
manifestações culturais. Por sua vez, o surgimento da cultura de massa torna cada vez
mais tênue a linha que separa a cultura popular da cultura erudita. Os anos depois da
Segunda Guerra Mundial trouxeram o incessante desenvolvimento tecnológico que
torna a indústria cultural cada vez mais sofisticada e os meios de comunicação e
divulgação apequenam o mundo paulatinamente.
Se no Renascimento dos séculos XIV e XV a cultura de elite se distanciava da
cultura da maioria da população por ser feita pela e para a burguesia, nas últimas
décadas em que vivemos a informação circula em tempo real e a industrialização passa
a atingir elementos da cultura popular e da cultura erudita para originar uma cultura que
não está ligada necessariamente a nenhum grupo social, mas que se configura em
mercadorias a serem consumidas em larga escala, ou seja, a cultura de massa para a ser
consumida pela sociedade de consumo. Assim, a cultura da juventude surgida nas
décadas de 1950/60, embora tenha surgido como crítica à educação formal e aos
padrões culturais estabelecidos, é absorvida pela indústria cultural norte-americana,
desenvolve-se e rapidamente se volta para a emergente cultura da juventude,
estimulando seu consumo, comercializando-a e divulgando-a, tornando-a universal.
Mesmo se opondo à industrialização da cultura, é através da indústria cultural que os
movimentos jovens acabam se expandindo e sendo assimilados, principalmente no
campo da música.
Por um lado, introduzem temas e questões até então ignorados ou pouco
discutidos pela maioria da sociedade, como, por exemplo, drogas, sexo, racismo,
ecologia, pacifismo e outros. Por outro lado, evidenciam o aspecto transformador e
crítico da realidade e acabam por modificá-la, mesmo estando submetidos a um rígido
processo de industrialização e comercialização.

61
Os rappers de São Paulo e Lisboa que ilustram minha observação criticam a
indústria cultural, mas de certa forma dela dependem para um maior alcance de suas
mensagens e críticas. A indústria cultural é implacável na sua caminhada com vistas aos
dividendos; assim foi com a juventude transviada dos anos 1950, com os hippies da
década de 1960, com os punks dos anos 1970/80 e com o rap dos anos 1980/90. Esses
movimentos culturais de juventude e suas manifestações musicais formam o mosaico
que me conduziu a essa observação mais atenta da cultura hip hop como fenômeno
cultural de juventude, que critica a estrutura social, a educação formal e inclusive
aponta para o resgate da dignidade e para o exercício da cidadania dessas populações
jovens das periferias.
Atualmente, a escola, que sempre professou um modus vivendi para a juventude,
se depara com uma cultura outra que vem de fora – dessa tribo urbana da cultura hip
hop – e passa a viver a ambigüidade entre a aceitação ou resistência a essa cultura que
se contrapõe àquela que a escola difunde, podendo-se observar que muitas delas, mais
em Lisboa que em São Paulo, estão abrindo seus portões para festividades rap, break e
grafite em algumas de suas paredes; elas avaliam que, uma vez grafitadas, seriam
respeitadas, ficando livres da possibilidade de serem pichadas, como, invariavelmente,
são os muros que rodeiam as escolas.
Uma situação ilustrativa dessa questão é que, quando de minha estada em Lisboa
em função da pesquisa que realizei, o primeiro evento de rap que pude presenciar
ocorreu na Universidade de Lisboa e os DJ’s eram justamente Emanuel e Contador6,
que desenvolvem trabalhos acadêmicos sobre o tema. Seus nomes figuram na lista de
referências bibliográficas deste texto.
O rap ocupa espaços de lazer em universidades, por ação e força da juventude que
a freqüenta. Verificam-se desta feita dois vetores nítidos, sendo eles: a contradição do
rapper e a ambigüidade que a escola vivencia.
A contradição aparece no discurso do entrevistado e na produção cultural, ao
narrar em sua trajetória a resistência à escola como lugar que não o acolhe como um
crítico da escola. Entretanto, na sua produção musical, os temas sobre a educação são
recorrentes e, portanto, a escola toma uma outra dimensão. Ou seja, a educação formal
seria um caminho de regaste da exclusão.
A contradição também aparece na rejeição ao modelo educacional e no
reconhecimento da necessidade da educação como passagem para fora da exclusão
social e moral. Se no discurso dos rappers há contradição entre não aceitar o modelo
educacional, mas não poder prescindir da educação, para a escola a questão é vivenciar
a ambigüidade entre acolher o sujeito crítico da instituição, assumindo a produção
cultural desse sujeito, como forma de mantê-lo e, ao mesmo tempo, moldá-lo, no
interior do seu próprio discurso. Revertendo o paradigma da crítica, na cultura dos
jovens, a escola assume o papel de incorporar esse discurso, acomodar-se a ele,
enquanto elemento aparentemente desencadeador de novos comportamentos. Porém, o
aproveitamento da crítica ao chamado currículo oculto não é incorporado ao discurso da
escola. A resistência às mudanças é a contraface da aparente acomodação à crítica.
A exclusão a que nos referimos aqui é a que se dá não só no plano social, mas de
modo geral e principalmente no plano moral. A exclusão moral sustenta a "inclusão
desigual". Na exclusão moral, os sujeitos são vistos como potencialmente perigosos,
ameaçadores, inimigos do sistema, marginais ao sistema. Desta perspectiva, sua

6
Ao chegar no Iscté em Lisboa, de olhos bem abertos para as manisfetações culturais jovens, avistamos
um cartaz avisando sobre um evento de rap. Prontamente tratamos de comparecer. Qual não foi minha
surpresa quando percebemos que os DJ’s da atividade eram justamente Contador e Emanuel, autores da
obra Os caminhos do Rap (1998),que nós já havíamos consultado.

62
produção cultural, mesmo incluída na mídia, tende a ser parcialmente incluída, ou seja,
escolhe-se "quem" é o representante de determinada cultura e quem deve ser visto como
porta-voz dessa cultura.
A exclusão moral está na base da criação do inimigo; retirando dele as
características de humanidade genérica e alimentando a "diferença" em parte social e
em parte cultural como justificativa para a exclusão. Quando há inclusão parcial, os
objetivos, historicamente observados, indicam que não foi mais possível ignorar a
presença do "inimigo" como parte integrante da sociedade e como meio de manter os
interesses econômicos gerados a partir do crescimento do interesse social local ou
expandido por um determinado tipo de produção cultural. Como exemplo, temos o
blues, o jazz negro, o reggae, que se configuram inicialmente como estilos e produções
marginais de grupos visados pelo sistema e, pouco a pouco, saem dos "guetos" em que
são gerados para serem incluídos num universo maior de consumo, até a absorção
completa num universo cultural nacional e mundial.
O filme Buena Vista Social Club, de Win Wenders, é uma re-apresentação7 dos
valores culturais, musicais, políticos e individuais da música cubana tradicional, num
trabalho que explora exatamente o reconhecimento de que esses valores locais são,
atualmente, apropriados como necessários para a retomada de cada cultura local, tanto
quanto para uma visão universal das diversidades de culturas e de suas interinfluências,
na qual o que se registra é a importância de manter viva e atuante uma postura de
abertura cultural, um "olhar estrangeiro" sobre valores desqualificados e/ou perdidos
nos centros culturais globalizadores. Percebe-se aí, portanto, a importância da posição
comunitária na participação da produção cultural e dos ideais da arte e da cultura, o que
nos parece ser os caminhos desses rappers, nossos griots do terceiro milênio.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BASTIDE, Roger. As religiões Africanas no Brasil. SP: EDUSP, 1960.


CAPRA, Fritjof. O Ponto de Mutação. SP: Cultrix, 1982.
CARDOSO, Hamilton. O resgate de Zumbi. In: Lua Nova. Revista de Cultura e
Política, SP: no 8, jan-mar/1986.
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e Resistência: Aspectos da Cultura Popular no Brasil.
SP: Brasiliense,1986.
CONTADOR, Antônio J. C. e FERREIRA, Emanuel L. Ritmo e Poesia: Os Caminhos
do Rap. Lisboa: Assírio e Alvin,1998.
COSTA, Márcia Regina da. Os carecas do subúrbio. SP: Vozes, 1993.
FERNANDES, Florestan. O negro no Mundo dos Brancos. SP: Difusão Européia do
Livro, 1972.
GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a manipulação da identidade deteriorada.
RJ: Zahar Editores, 1963.
HOBSBAWM, Eric. A história social do jazz. RJ: Paz e Terra, 1990.
HORKHEIMER e ADORNO. Dialética do Conhecimento. RJ: Editora Zahar, 1985.
IANNI, Octavio. A idéia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1992.
KOGURUMA, Paulo. As tramas das religiosidades afro- brasileiras e as nascentes urbe
cosmopolitas. In: Varia História. São Paulo, 1890/1920. Belo Horizonte:
7
Re-apresentação é considerado aqui como um conceito que, diferente de representação social - ou seja,
imagem ideológica -, inclui uma dimensão simbólica, base da produção e reprodução cultural. Na re-
apresentação, os elementos envolvidos não possuem apenas uma dimensão de contradição, mas também
uma dimensão de trans-figuração, ou seja, revertem-se em seu próprio contrário, assumindo, assim, a
múltiplas facetas dos símbolos.

63
Programa de Pós Graduação em História/Faculdade Federal de Minas Gerais,
2000.
LARKIN, Nascimento. O sortilégio da cor: Identidade afro-descendente no Brasil. SP:
Tese de Doutoramento/USP, 2000.
LINDOLFO Filho, João. Tem dias que de noite é assim. Identidade racial na música de
dois compositores negros. SP: Dissertação de Mestrado/PUC-SP, 1993.
MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX. O Espírito do Tempo II -Necrose.
RJ: Forense-Universitária, 1986.
MOURA, Clóvis. Sociologia do Negro Brasileiro. SP: Ática, 1988.
MUNANGA, Kabengele. As Facetas do Racismo Silenciado. In: SCHWARCZ, Lilia
M. e QUEIROZ, Renato da S. (orgs.), Raça e Diversidade. São Paulo, Edusp,
1996.
NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980.
ORTIZ, Renato. Mundialização da Cultura. SP: Brasiliense, 1994.
PAIS, José Machado. Culturas Juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda,
1996.
PIZA, Edith S. P. O Caminho das Águas: Estereótipos de personagens femininas
negras na obra para jovens de escritoras brancas. SP: Tese de
Doutoramento/PUC-SP, 1995.
RIBEIRO, Darcy. A Universidade Necessária. RJ: Paz e Terra, 1982.
ROSEMBERG, Fúlvia. Segregação Espacial na Escola Paulista. SP: Estudos afro-
asiáticos, 1990.
SAINT-MAURICE, Ana. Identidades reconstruídas: cabo-verdianos em Portugal.
Lisboa: Celta, 1997.
SANTOS, Boaventura Sousa Santos. Pela mão de Alice: O social e o político na pós-
modernidade. SP: Cortez, 1996.
SHUSTERMAN, Richard. Vivendo a Arte. O pensamento pragmatista e a estética
popular. SP: Editora 34, 1998.
SILVA, José Carlos Gomes da. Rap na Cidade de São Paulo: música, etnicidade e
experiência urbana. Campinas: Tese de Doutoramento/UNICAMP, 1998.
VALA, Jorge e KHAN, Sheila. Traços e Riscos de vida: uma abordagem qualitativa a
modos de vida juvenis. Porto: Ambar, 1999.
VELHO, Gilberto (org.). Antropologia Urbana: Cultura e Sociedade no Brasil e em
Portugal. RJ: Editora Zahar, 1999.

64
Terceira parte: Educação, escola e espaços para a negritude

ESCOLA E RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL

João Baptista Borges Pereira*

As relações entre a escola e a população negra brasileira está permeada de um


enorme desconhecimento, na medida em que toda a sociedade, em seus múltiplos
segmentos, revela a todo o instante não estar familiarizada com a questão racial do país.
Tudo se passa como se um enorme clichê, a um só tempo, escondesse o que há de
injusto na crua realidade social e a substituísse por um doce manto de relações de
harmonia, salpicado aqui e acolá por algum incidente sem maiores conseqüências. São
em tais momentos que a sociedade deixa de naturalizar, como se natural fosse a
iniquidade de nossa ordem social, passa a se interrogar sobre o tema e, num ato de
constrangimento, admite o racismo à brasileira, que por sua vez é interpretado de
múltiplas formas: ato falho de pessoas bem intencionadas; produto direto do pauperismo
econômico de vastas camadas da população, onde o negro é a grande presença; excesso
de melindres de negros; estardalhaço da mídia etc. etc. etc. Em geral, nesses momentos,
considerados excepcionais, a sociedade procura dar respostas a esses “condenáveis
desvios” com medidas legais, formação de grupos de trabalho e outras iniciativas da
mesma natureza que serão logo esquecidas, nunca sairão do papel. São fórmulas de
apaziguamento da consciência social, tão somente.
Qual o papel da escola nesse contexto social? Seria imperdoável injustiça afirmar
que a escola, a exemplo dos demais órgãos e instituições sociais, só reagisse em prol da
população negra nesses momentos de constrangimento nacional. Tal afirmativa significa
ignorar todo um trabalho de educadores que lutaram e lutam por uma escola mais
sensível à questão do negro no Brasil. Contudo, ao se focalizar esse tema, pelo menos
quatro pontos se impõem:
1) Embora deva ser uma instituição crítica, de vanguarda e desencadeadora de
ações que desafiem a rotina da ordem social, a escola brasileira não se distancia
muito da sociedade no tocante ao desconhecimento e no trato da questão racial.
Talvez deva-se, mesmo, admitir que a escola brasileira precise ser educada para se
transformar numa instituição que tenha condições de atender às características e às
exigências de uma sociedade pluriétnica. Esse trabalho de educar a própria escola,
desde o primário até a universidade, deve começar pela preparação dos agentes
sociais que nela atuam (docentes e funcionários), passar pela revisão de seu
conteúdo programático e procedimentos pedagógicos, até alcançar os próprios
alunos para que a interação entre eles seja marcada pelo reconhecimento e o
respeito à diversidade dos colegas. Em síntese, a escola deve ser não somente uma
comunidade envolvida na criação e disseminação do saber, mas também uma
instituição que eduque para se viver na plenitude da cidadania. Isto significa que
cabe à escola combater, a seu modo, todas as formas de preconceito,
discriminação, segregação e racismo incompatíveis com essa ordem social
igualitária e com o respeito que se deve ter ao ser humano.
*
Professor do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
USP.

65
2) A escola precisa conhecer melhor a expectativa que nasce da imagem ou
representação que os alunos têm da educação. É comum, entre alguns estudiosos
brasileiros, a idéia de que a escola sempre foi vista como trampolim para a
ascensão de vastas camadas da população brasileira. Tudo indica que esta idéia
continua forte no seio de segmentos populacionais que vê na educação o caminho
da redenção de seus problemas sócio-econômicos. Talvez esse componente da
idealização da escola tenha ficado mais definido quando, a partir da década de 50,
operou-se progressiva separação entre posse do conhecimento e o poderio
econômico. As pessoas com alto grau de escolaridade (mostram os fatos) estavam
em pontos altos de hierarquia social. Desse fato comprovado e comprovável,
gerava-se a interpretação relativamente enganosa de que ter alta escolaridade
garantiria galgar os degraus de uma sociedade de classe. A interpretação mais
correta seria a de que ter altas condições sócio-econômicas é que garantiria a alta
escolaridade. Quando esse modelo começou a se desmanchar com a relativa
democratização quantitativa do ensino escolarizado, o mito continuou forte, muito
forte, a funcionar como mola propulsora em camadas desprivilegiadas,
notadamente entre os negros
Mas os tempos mudaram. Hoje, ainda que essa representação e expectativa se
mantenham, é impossível ignorar que para a integração ou inclusão sócio-
econômica numa sociedade que segue o modelo das sociedades capitalistas de
todo o mundo, a escolarização é um passo decisivo. Sem ela, grandes camadas da
população brasileira permanecerão excluídas, à margem do sistema produtivo
nacional, sem qualquer perspectiva de se auto-sustentar.
Cada vez mais se reduz a oferta de empregos na faixa da estrutura ocupacional
tradicionalmente ocupada pelas pessoas sem qualificação escolar. Profissões
aparentemente menos exigentes (frentistas de postos de gasolina, auxiliares de
supermercados, mecânicos etc.), já exigem, pelo menos, o segundo grau. Dentro
dessa redefinição da estrutura ocupacional, a exigência de escolaridade por parte
de camadas oprimidas, ainda que envolta na representação citada acima, cada vez
mais adquire um sentido de realidade que as toca diretamente. Elas têm
consciência de que a escola é um elemento fundamental para aspirar dias
melhores.
3) A escola deve ser igualmente competente para todos os segmentos sociais. É
impossível admitir dentro de um ideário democrático a existência de dois tipos de
escola: a escola pública, dos pobres e negros, que mal prepara seus alunos para a
competição, mesmo no nível da competição escolar; e a escola particular, das
camadas ricas, onde o negro raramente tem a oportunidade de estar e que dá aos
seus alunos condições para competir com êxito tanto na obtenção de vagas para as
melhores universidades como para conseguir melhores fatias no mercado de
trabalho. Não se trata aqui de estigmatizar a escola particular por ela existir e ser
boa escola. O que se pretende grifar é que a escola pública também deve ter
recursos humanos e materiais para oferecer condições similares, servindo como
opção válida, de alto nível, para aqueles que, a exemplo dos negros e dos pobres
em geral, não tenham condições financeiras de ingressar num colégio particular.
Esse sistema dual de escolas pobres e incompetentes e escolas ricas e competentes
é em si mesmo um dos mais poderosos mecanismos discriminadores e
segregadores da população negra brasileira, ainda que acobertado por clichês de
racionalizações.
4) E a escola chamada universidade? o que se escreveu nos três itens anteriores
é, em larga extensão, válido também para a universidade brasileira, tomada em

66
seu conjunto. No tocante, porém, ao sistema dual – escola pública e escola privada
– os termos se invertem: a universidade pública goza de total preferência de todas
as classes sociais por ser gratuita e mais competente (onde o ensino e a pesquisa
se desenvolvem associados), por dar ao portador do título mais prestigio e mais
vantagens na competição empregatícia. O resultado dessa preferência é de todos
conhecido: a grande demanda, que cresce anualmente, pelos vestibulares das
universidades públicas, o que leva a uma acirrada disputa entre os egressos das
escolas públicas e privadas, com absoluta desvantagem para os primeiros. Nessa
ponta se configura o que os economistas chamam (ou chamavam?) de efeito
perverso: os que podem pagar estão nas universidades públicas e os que não
podem pagar se refugiam nas instituições onde o ensino é pago e sem o padrão de
competência das públicas.

Obviamente, o negro está no segundo caso. Vindo, em geral, das escolas públicas
precárias da periferia urbana, sem ter tido oportunidade de se preparar nos caros
cursinhos pré-vestibulares, o seu destino escolar dificilmente seria outro. Quando
consegue ingressar na universidade pública, ao que tudo indica, está freqüentando
cursos chamados baratos: aqueles que não exigem tempo integral dos alunos e que são
também ministrados à noite, gerando na estrutura ocupacional os empregos mais mal
remunerados. Não há negros, pelo menos entre nós, nos cursos de medicina,
odontologia, engenharia e publicidade – os mais procurados e os denominados cursos
nobres.
O que fazer perante tal quadro? Ao se tentar responder a esta pergunta mergulha-
se num cipoal de propostas e teses polêmicas. Para alguns notadamente, o movimento
negro em suas múltiplas faces, a solução estaria na concessão de cotas para a população
negra que representaria algo em torno de 45% da população brasileira. Com isso,
ampliar-se-ia o total de negros universitários que, pelo menos na USP, não chega
atualmente a 2% do alunado. Seria, por outro lado, uma medida que viria saldar uma
dívida que a sociedade brasileira contraiu ao longo da história com um dos pilares da
construção do país.
Para outros, a adoção da cota conduziria à quebra do padrão de excelência que a
universidade conseguiu construir e preservar no transcorrer dos anos, mesmo no atual
período de notório rebaixamento do padrão educacional brasileiro. Nessa linha de
raciocínio, receber alunos mal formados e formá-los mal, portando diplomas apenas
como expressão simbólica, seria um ato de leviandade e de hipocrisia social. Em se
tratando do negro, seria um “faz de conta” com o qual se tentaria exorcizar o que há de
mal na tradição racista brasileira.
Para outros ainda, os reclamos negros dos que sustentam a tese das cotas não
passariam de clamores de classe média, pequena-burguesa, que apenas beneficiaria
reduzida parcela dos presuntivos 3% de negros incluídos na classe média do Brasil.
Nesse caso, a universidade, ao adotar a política de cotas, ajudaria a adensar essa
minguada classe média que não transferiria, necessariamente, suas conquistas para o
restante 97% do povo negro que permanece excluído, no plano da mera sobrevivência.
Segundo essa tese, tem que se encontrar um mecanismo capaz de atender às aspirações
da classe média sem deixar de lado o grosso da população negra. Esse mecanismo só
pode funcionar tendo como peça central uma escola pré-universitária, pública e
competente, capaz de promover toda uma camada que aspira, com plenos direitos, viver
dias melhores. Essa seria, na opinião dos que esposam essa tese, a verdadeira ação
democrática da educação brasileira: tornar-se eficiente, colocar-se ao alcance de todos e

67
constituir-se numa escola preparada para funcionar numa sociedade pluriétnica, como é
a brasileira.
Só que isto exige tempo e os negros injustiçados de hoje não podem e não querem
esperar!

68
ATÉ QUANDO EDUCAREMOS EXCLUSIVAMENTE PARA A
BRANQUITUDE? REDES-DE-SIGNIFICADO NA CONSTRUÇÃO DA
IDENTIDADE E DA CIDADANIA

Ronilda Iyakemi Ribeiro*

Escrevendo sobre cultura brasileira, Correia-Rickli (1993) dá a seu livro o título


“Três raízes, dez mil flores. 500 anos e Cultura Brasileira”, para expressar a enorme e
rica variedade originada do encontro de influências indígenas, africanas e européias na
constituição sócio-cultural brasileira. Uma riqueza de fazer gosto e dar orgulho a esse
povo, cuja diversidade de origens étnicas fez brancos alvíssimos, negros pretíssimos,
tons e semitons, decorrentes da mistura de seivas trazidas por raízes fortes, mergulhadas
em distintas origens raciais.
Lembrar que o eurocentrismo brasileiro tem nos causado sérios e alguns
irreparáveis danos individuais e coletivos é chover no molhado. Apesar de bastante
denunciado, cada vez mais, o racismo brasileiro continua sendo ocultado. E daí? Que
recursos teóricos e educacionais podem ser postos a serviço da necessária transformação
desse status quo? Querendo participar do debate sobre esse tema, apresento, aqui,
alguns elementos.
Para início de conversa, retomemos a importante problemática da formação de
identidades no Brasil, segundo país em população negra no mundo, primeiro país em
população negra fora do continente africano. A identidade, em sua característica de
contínua metamorfose, pressupõe um jogo permanente entre auto-imagem, ideal-de-ego
e auto-estima. Nas sociedades em que branco é sinônimo de vencedor e negro, de
perdedor, o ideal de ego socialmente convencionado é o de branco, certamente, porque,
quem vai querer se identificar com o derrotado? Quem quer ser o perdedor? Você quer?
Eu não.
Seja no ambiente doméstico, escolar, de trabalho ou de lazer, para a construção da
identidade, está disponível sempre um único modelo - racista e capitalista - fundado na
dupla opressão classe/cor. Souza (1983) aponta para o fato de que para a construção de
identidades, nas sociedades em que vencedor é sinônimo de branco, a primeira regra
para os negros é a negação, o expurgo de qualquer mancha negra, a eliminação dos
sinais de negritude.
A imperiosa exigência de realizar o modelo ideal imposto encontra uma barreira
biológica intransponível (Souza, 1983). Este fato, associado às múltiplas tentativas
frustradas, provoca sentimentos de insatisfação e, para alívio das tensões, são ativados
mecanismos de defesa do ego. O mecanismo de compensação, por exemplo, determina
que o negro obrigue-se a realizar tarefas quase impossíveis, procure ser o mais e melhor
em tudo, sem conseguir, contudo, atingir o ideal.
Da distância entre o que eu sou e o que eu devo ser decorrem sentimentos de auto-
estima rebaixada: auto-desvalorização, timidez, retraimento, insegurança, ansiedade
fóbica. E, convenhamos, auto-estima rebaixada é garantia de fracasso, porque todas as
profecias a respeito das próprias impossibilidades confirmam-se. A solução para esse
impasse tem como pedra fundamental a possibilidade de defrontar-se com modelos
identificatórios negros que, constituídos sobre ideais de ego viáveis por serem coerentes

*
Professora do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP) e do Programa de
Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM-USP).

69
com o fenótipo dos afro-descendentes, propiciam a esses o sentimento de orgulho de
pertença a grupos, nos quais beleza, dignidade, sabedoria e poder são reconhecidos.
Na escola, alunos afro-descendentes apresentam-se tímidos, medrosos, humildes.
Por vezes, entretanto, mostram-se excessivamente ativos, tornando-se fortes candidatos
ao papel de bodes expiatórios dos grupos que integram. A literatura didática e
paradidática, comprometida com o processo de exclusão, é marcada por dupla
moralidade, pois apresenta um discurso educativo que, embora se pretenda propiciador
de formação ético-moral, está, de fato, impregnado de preconceitos de toda ordem.
Mas, o drama da formação de identidades - atentemos para isso - não é problema
exclusivo dos negros e seus descendentes. Extrapola o nível psicológico da formação de
identidades individuais, para alcançar o nível de problema social, pois um país de
marcada presença negra como o nosso, que insiste em se perceber branco, sofre,
certamente, do grave problema de identidade nacional, com conseqüências certamente
indesejáveis. Que irônica, por exemplo, a insistente referência ao grupo de brasileiros
afro-descendentes como minoria (?!) excluída.
A riqueza das muitas culturas negro-africanas que compõem, juntamente com
outras, a alma brasileira, é quase totalmente ignorada entre nós. As religiões de matriz
africana recebem pecha de primitivas e as raízes africanas de práticas culturais
brasileiras têm sua importância minimizada. O corpo teológico das religiões africanas e
a complexidade sócio-cultural tornam-se invisíveis. A sabedoria milenar transmitida por
tradição oral, rica em metáforas e provérbios, belíssima na forma e conteúdo,
permanece ignorada por esse povo mestiço que, obedecendo à ordem de branquear-se,
ignora ou mutila as próprias raízes.
Crianças brasileiras de todas as origens étnico-raciais têm direito ao conhecimento
da beleza, riqueza e dignidade das culturas negro-africanas. Jovens e adultos têm o
mesmo direito. Nas universidades brasileiras, procure, nos departamentos de História, as
disciplinas que informam sobre a África. Procure os mapas do continente africano nos
departamentos de Geografia. Procure disciplinas relativas à África - continente e
diáspora - nos cursos de Ciências Sociais. Que silêncio tão lamentável é esse, que torna
invisível parte tão importante da construção histórica e social de nosso povo, de nós
mesmos?
Em publicações anteriores (Ribeiro, 1996/97), fiz referência ao fato de que as
representações negativas do africano e seus descendentes no imaginário coletivo
brasileiro possuem raízes profundas. À atribuição negativa de descendentes de escravos
associam-se outras, bem mais antigas. Os estereótipos negativos decorrem, em parte, do
fato de ser o passado do afro-descendente associado à escravidão. Tão intimamente, que
não se fala em africano escravizado, e sim em escravo (observação de Elisa Larkin
Nascimento, da UERJ), transformando o adjetivo em substantivo, ou seja, tornando
essencial um atributo secundário, determinado por circunstâncias históricas.
Rodrigues (1965) refere-se ao fato de terem as crônicas de viagem veiculado
estereótipos negativos. Navegantes portugueses, marcados pelo conteúdo imaginário
medieval, viam, na África, monstros em forma de homens, com quatro olhos (Randles
apud Rodrigues, 1965).
Em 1488, Azurara, ao fazer a crônica dos feitos da Guiné, escreveu: Ouço as
preces das almas inocentes daquelas bárbaras nações, em número quase infindo, cuja
antiga geração desde o começo do mundo nunca viu luz divinal. Em narrativas
avidamente lidas pelo público europeu, Duarte Pacheco descrevia os africanos como
gente pagã e bestial. Camões denominava-os cafres, ásperos e avaros. Outros autores da
época a eles se referiam como disformes, horríveis, cruéis, bestiais e ferozes. Mitos e
lendas, assim, construídos foram sendo gradativamente corrigidos durante o contato. De

70
qualquer modo, os africanos haviam se tornado alvo de estereótipos que, formados já no
século XVI, desenvolveram-se depois, longamente, por distintos caminhos. Os
hotentotes, bestas sem rei, nem lei, nem fé; todos os demais africanos, inferiores; o
branco europeu, superior - eis a receita útil para justificar dominação e escravidão.
O estereótipo negativo, estendido à própria África, apresentava-a bárbara e cruel
como seus filhos: o clima, o sítio, o modo de povoação e qualidade da terra pelejavam
por seus moradores e eram as mais poderosas armas com que se defendiam dos
estrangeiros, porque, em clima tão ardente e em região que, com tanta dificuldade,
encontrava-se água e refresco, mal se poderia sustentar um exército de gente tirada de
terras temperadas e mui providas de fontes e frescuras, costumada a não padecer a sede
e esterilidade com que se criam e sustentam os africanos e seus animais. Assim, às
deficiências humanas, associavam-se a hostilidade e esterilidade da terra.
Tais estereótipos, criados pelos portugueses e fortalecidos por outros europeus,
foram transplantados para o Brasil durante o tráfico negreiro que, ao longo de séculos,
transpôs um total de mais de três milhões de pessoas da África para cá. Retomando o
tema da construção de identidades individuais e nacional neste país de marcante
presença negra, perguntamos: Que implicações têm esses fatos históricos no processo
identitário que aqui debatemos? Não é difícil constatar, que para a construção da
identidade nacional, é indispensável (e inadiável) o resgate da beleza, poder e dignidade
das diversas etnias africanas que participaram da construção da vida sócio-cultural
brasileira. Falta-nos o modelo de Belo Negro, para que nos tornemos orgulhosos de
nossas africanidades. Como diz Correia-Rickli, acreditar que venho de uma gente
atrasada em relação aos outros povos do mundo é bem diferente de saber que meus
antepassados estão entre os principais construtores da cultura e da civilização. Saber que
meus antepassados não viviam com o cabelo amarrado num ossinho, cozinhando
brancos em caldeirões, mas integravam grandes civilizações, com magníficas
arquiteturas, escrita própria, comércio internacional e refinadas obras de artes, faz,
necessariamente, uma grande diferença.
Os problemas relativos à formação das identidades têm, como não poderia deixar
de ser, sérias decorrências para a construção e exercício da cidadania: quem vale pouco
não merece muito. Direito a quê? Direito a quem? Eu? Impossível abordar o tema das
relações raciais, sem tratar da questão fundamental do direito humano à dignidade e aos
bens materiais e simbólicos. Fortalecer as identidades dos afro-descendentes faz parte
da tarefa de estender a cidadania a tão importante segmento populacional, minimizada, e
as causas disso não são difíceis de se compreender. Estudos sobre o mito da democracia
racial e sobre a ideologia do branqueamento são reveladores da dinâmica das relações
raciais, que determina a ocorrência de uma aguda dificuldade de reconhecimento da
existência de racismo no Brasil.
Santos (apud Ribeiro, 1996:14) refere-se ao Brasil como país inconcluso: os
relatórios feitos por organismos internacionais deixam a nu dois brasis: um moderno,
rico e desenvolvido e outro, pobre e anacrônico. O que chama a atenção nesses dois
países contidos em um só são os estoques raciais alojados em cada um deles. No
primeiro Brasil, país que mais cresceu neste século, tem-se um povo marcadamente
branco e amarelo. No segundo Brasil, a esmagadora maioria é preta e parda (para usar o
jargão do Censo). A unificação dos dois brasis, tão diferentes em termos sócio-
econômicos, mas tão parecidos do ponto de vista cultural, passa pelo estabelecimento de
políticas específicas para os marginalizados. Tais políticas não podem ignorar a
dimensão psicológica. O que fazer para transformar um imaginário coletivo, assim,
carregado de estereótipos negativos?

71
Possibilidades no nível social

Segundo essa perspectiva e com o objetivo de lutar pela valorização da


diversidade humana e melhor convivência entre os povos, a UNESCO, órgão da ONU
para a Educação e a Cultura, está desenvolvendo o projeto Rota do Escravo. Partindo do
fato de que à questão do tráfico negreiro não foi dada a importância merecida - a
escravidão negra não foi suficiente adequadamente abordada nos livros pedagógicos ou
de história, ou nos sistemas educacionais, não foi estudada em profundidade nem
devidamente narrada às gerações subseqüentes - esse projeto tem por meta (1) realizar o
resgate histórico da (forçada) diáspora africana, o fenômeno humano de mais ampla e
sistemática transferência populacional de toda a história da humanidade, para
compreender suas causas profundas e sua moralidade; e (2) avaliar, na atualidade, as
conseqüências desse fenômeno, responsável pela promoção do maior encontro inter-
étnico da história da humanidade.
Constatando haver no âmbito da comunidade científica e intelectual de todo o
mundo um consenso sobre a urgência e necessidade de tratamento global, metódico e
consensual da história da escravidão negra, o projeto tem por objetivos principais a
pesquisa histórica e o conhecimento do destino das populações arrancadas da África. Na
opinião de seu líder, Doudou Diènne, a importância dessa iniciativa reside no fato de
constituir a ignorância um obstáculo à paz. Trazer memória comum à luz da consciência
dos povos contribui para criar condições de renovação das bases de cooperação entre as
nações. Não se trata, pois, de uma questão de africanos ou de negros, e sim de direitos
humanos, de direito à memória do patrimônio comum, do legado dos já-idos às gerações
subseqüentes. Trata-se de resgatar, preservar e entregar às gerações vindouras a história
humana a que têm direito.

Possibilidades no nível psicológico - reconstrução do imaginário

Para reconstruir o imaginário, é preciso re-significar. A concepção de que o


conhecimento organiza-se em redes de significados, e não de modo linear ou vertical,
vem ganhando importância crescente nos terrenos da epistemologia e da educação. O
conhecimento, entendido como uma rede em que todos os elementos encontram-se
conectados, supõe que cada palavra ou imagem possui um campo associativo, uma rede
de associações por semelhança ou contigüidade.
Ao tratar desse tema, em co-autoria com Abdounur (1995:438), consideramos a
contribuição de Ullmann (1982) e de Luria (1987) (apud Machado, 1994). Este faz
referência a campos semânticos, redes de associações, através dos quais o significado de
uma palavra é construído, convertendo-se cada palavra em elo ou nó de uma rede de
imagens e palavras a ela ligadas conotativamente, e por ela evocadas.
Machado (op.cit.), discorrendo a respeito da construção de significados, lembra
que compreender é apreender o significado. Apreender o significado de um objeto ou
acontecimento é vê-lo em suas relações com outros objetos ou acontecimentos. Como
os significados constituem feixes de relações, estas se entretecem, articulam-se em teias,
metamorfoseiam-se continuamente. A rede de significados, enquanto espaço de
representações, é teia de significações, desprovida de hierarquia entre os nós que a
constituem. Nessa rede, importante papel compete à metáfora que, ao processar a
tessitura da rede de significados, ao estabelecer conexão entre distintos contextos
semânticos, possibilita a transferência de relações de um feixe consolidado para outro
ainda em formação, instaurando ou desenvolvendo novos significados (p.39).

72
Bem, que implicações tem para o tema aqui abordado essa dinâmica das redes de
significado? Considerando o importante papel reservado à analogia na formação dessas
redes, bem como seu potencial de ampliação de conceitos, temos que a desconstrução e
reconstrução de significados, por caminhos da analogia, pode favorecer processos
educacionais e psicológicos voltados para a tarefa de construir identidades
positivamente afirmadas.
Se nossa intenção é atuar em favor da reconstrução de significados no campo das
relações raciais, precisamos eleger analogias úteis a esse propósito. A proposta não é,
evidentemente, eliminar a discriminação. Discriminar é preciso. É útil. Como sobreviver
sem reconhecer diferenças? Incorporar de tudo, de modo indiferenciado, alheio à
originalidade e virtude de cada objeto, é suicídio. O necessário espírito crítico,
particularmente desenvolvido nos relacionamentos interpessoais, supõe a discriminação
e organização em categorias de iguais, semelhantes e diferentes, o que é, em si,
desejável. Note-se, entretanto, que o mesmo espírito crítico pede revisão dos
significados atribuídos, bem como da definição de padrões ideais.
Na luta contra o racismo, a ação que se poder realizar, em nível psicológico, inclui
a tarefa de enfraquecer associações desfavoráveis e fortalecer outras, favoráveis. Trata-
se de substituir analogias indesejáveis, presentes no incessante bombardeio realizado
pelos meios de comunicação de massa em favor da cronificação de estereótipos
negativos da África, dos africanos e seus descendentes. A ordem é tecer novas redes de
significado: analogias que associam significações negativas às palavras e imagens-
chaves devem ser substituídas por outras que reportem às qualidades culturais, virtudes
e peculiaridades admiráveis do povo africano. Novas redes de significado permitirão o
modelar de padrões positivos e tornarão viável o projeto identificatório de afro-
descendentes.
Mas, não apenas isso. Não apenas a construção das identidades individuais dos
afrodescendentes será beneficiada pela re-significação. Trata-se, lembremos, do desafio
de re-significar, para que todos os brasileiros, independente de sua origem étnico-racial,
possam reconhecer suas africanidades e orgulhar-se delas.
Dos educadores e profissionais da mídia envolvidos com essa tarefa exigem-se
qualidades de ordem pessoal, que incluem o potencial para realizar avaliação crítica.
Quanto ao estabelecimento de novas redes de significado, indispensáveis são as
repetições constantes da analogia (associação por contigüidade ou semelhança) que se
deseja estabelecer. Pode parecer, à primeira vista, um processo prioritariamente
cognitivo. Mas não é. Envolve aspectos afetivos, motores e volitivos de importância
crucial.
Um bom caminho para a re-significação ou re-representação é a narração de
fábulas, lendas, mitos e contos, em que as virtudes e qualidades positivas, reafirmadas
através de metáforas e alegorias, propiciem a construção ou resgate de um campo
semântico, em que palavras como África e negro, por exemplo, são re-significadas,
graças ao mecanismo de enfraquecimento de associações negativas e fortalecimento das
positivas entre os nós que compõem a rede de significados. Evidentemente, tais
reformulações atuam no âmbito dos mecanismos de construção de auto-imagem, auto-
conceito, auto-estima, identidade pessoal e coletiva. Trata-se, pois, de um trabalho de
reestruturação do pensamento, do sentimento e da vontade. Por exemplo, se as palavras
negro e sujo possuem um elo de conexão, fica pressuposta, aí, uma comparação entre
homens, alguns dos quais são negros.
Esta proposta demanda cuidados. Por quê? Como toda analogia envolve fatores de
semelhança, é preciso ressaltar as diferenças, para não reduzir os elementos comparados
somente aos aspectos similares que possuem. Ë preciso, ainda, tomar cuidado para não

73
generalizar pequenas semelhanças. Ao selecionar contos para narrar, por exemplo,
convém perguntarmo-nos se naquelas histórias transcorridas em território africano e/ou
cujos personagens são africanos ou afrodescendentes, as relações ocultas que estão
sendo apresentadas - de modo analógico ou subliminar - podem, de fato, favorecer em
todos os âmbitos psicológicos envolvidos - cognitivo, afetivo, volitivo - a desejada re-
significação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CENTRO DE ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS - CEAA. Os números da cor. Boletim


Estatístico sobre a Situação Sócio-Econômica dos Grupos de Cor no Brasil e
suas regiões. Rio de Janeiro, 1995.
CORREIA-RICKLI, Ralf. Três raízes, dez mil flores. 500 anos e cultura brasileira
(contribuições a uma reflexão livremente antroposófica). São Paulo: Trópis,
1993.
FERREIRA, Ricardo F. Uma história de lutas e vitórias: a construção da identidade de
um afro-descendente brasileiro. Tese de Doutorado, IPUSP, São Paulo, 1999.
MACHADO, Nilson J. Inteligência Múltipla: a língua e a matemática no espectro de
competências. São Paulo. São Paulo: FEUSP/IEAUSP, 1994.
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO E ORÇAMENTO – IBGE. Cor da População.
Síntese de Indicadores 1982/1990. Rio de Janeiro, 1995.
PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS / FERNANDO HENRIQUE
CARDOSO. Brasília: Presidência da República, Secretaria de Comunicação
Social, Ministério da Justiça, 1996.
RIBEIRO, Ronilda I. Ação Educacional na construção do novo imaginário infantil
sobre a África. In: MUNANGA, Kabengele. Estratégias e Políticas de Combate
à Discriminação Racial. São Paulo: EDUSP, 1996.
________. Alma africana no Brasil. Os iorubás. São Paulo: Oduduwa, 1996.
________. Políticas de ação afirmativa e a temática racial no Projeto de Educação para
a Paz. In: SANTOS, Jocélio T. dos et alii. A COR DA BAHIA - Educação e os
afro-brasileiros: trajetórias, identidades e alternativas. Salvador: Novos
Toques, 1997.
________ & ABDOUNUR, Oscar J. Analogias na estruturação da identidade de
crianças negras e mestiças. Anais do XXV Interamerican Congress of
Psychology. San Juan de Puerto Rico, 1995.
RODRIGUES, José H. Brazil and Africa. Berkeley & Los Angeles: University of
California Press, 1965
SANTOS, Hélio. Apresentação. In: RIBEIRO, Ronilda I. Alma africana no Brasil. Os
iorubás. São Paulo: Ed. Oduduwa, 1997.
________. Uma visão sistêmica das estratégias aplicadas contra a discriminação racial.
In: MUNANGA, Kabengele. Estratégias e Políticas de Combate à
Discriminação Racial. São Paulo: EDUSP, 1996.
SOUZA, Neusa S. Tornar-se negro: as vicissitudes da identidade do negro brasileiro
em ascenção social. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
ZOLLA, Elémire. The uses of Imagination and the decline of the West. Ipswich:
Golgonooza Press, 1978.

74
EDUCAÇÃO, NEGRITUDE E AUTO-ESTIMA

Edilson Marques da Silva*

Que histórias lhe contaram?

Atualmente, é inegável o papel da educação como imprescindível área de atuação


na luta pela eliminação e superação do racismo. É através da educação que as pessoas
formam a sua visão de sociedade, elaboram valores éticos e étnicos, bem como
formulam o conceito sobre si mesmos e o outro. Neste texto, queremos abordar um
aspecto ligado à educação, que diz respeito ao lúdico ou, mais especificamente, às
histórias utilizadas como instrumento educacional, com a incumbência de divertir,
entreter e, ao mesmo tempo, transmitir a herança cultural para aqueles que seriam os
“iniciandos” desta comunidade, ou seja, as nossas crianças.
As crianças, na sua maioria, adoram histórias e, por mais absurdas que sejam,
acreditam nelas. As histórias nos fazem rir, chorar e ficam gravadas no nosso coração.
Ainda quando crianças, orientamo-nos pelas histórias que nos contam. Queremos ser
iguais àquele personagem que vimos naquela história. Não queremos ser iguais àquele
outro personagem da outra história. As histórias influenciam na formação da auto-
imagem e contribuem profundamente na construção da nossa auto-estima, além de,
também, ter sua parcela de responsabilidade pela imagem que formamos do outro.
As histórias são capazes de penetrar no mais profundo do nosso ser e permanecer
ali enquanto vivermos, e permanece mesmo depois que morremos, porque, sempre que
tivermos oportunidade, vamos reproduzir e contar a velha história a alguém que
gostamos muito ou não. Grande parte das nossas atitudes são tomadas em função de
alguma história que temos guardada dentro de nós e que, sem percebermos, estão
exercendo profundas influências nas nossas ações diárias. Comecei a escrever este texto
a partir da reflexão sobre a importância das histórias na formação da nossa auto-estima.
Minha inquietação começou a surgir quando me dei conta de que era um
integrante de uma família negra, homem negro, casado com uma mulher negra e com
um casal de filhos negros. Percebi que as histórias contadas aos nossos pequenos filhos
teriam grande parcela de responsabilidade na formação da personalidade deles e, acima
de tudo, influenciariam na imagem que eles fariam deles mesmos, além de determinar o
nível de satisfação ou insatisfação de serem quem são. O susto foi maior, ao notar que a
imagem que eles formam de si, quando crianças, provavelmente os acompanhará pela
vida toda, determinando a relação que terão futuramente, no trabalho, na família que
irão formar, influenciando até mesmo a relação que terão com Deus.
São muitas histórias registradas dentro de nós. As histórias contadas pelos nossos
primeiros professores na escola, as histórias contadas nas cartilhas de alfabetização, as
histórias que nos contaram na igreja. Tudo isto levou-me à reflexão sobre a questão
racial, sobre o fato de ser negro. Pessoalmente, tenho uma recordação muito forte dentro
de mim. Recordo-me que, quando criança, fechava os olhos e sonhava, mas não
conseguia me enxergar como uma pessoa negra, e sim como uma criança loura de olhos
azuis.
Lembro-me da primeira vez que me sentei a mesa de um lugar público juntamente
com outras três pessoas negras. Naquele momento tinha 22 anos de idade. De repente,
*
Mestre em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo e professor da Universidade
Estadual Paulista da Universidade Estadual Paulista (UNESP) – Bauru.

75
veio uma indagação à mente: O que estou fazendo aqui? Nunca sentei com outros
negros, porque estou aqui agora? Isto era uma verdade. Nunca, até então, havia me
assentado antes com um grupo de negros. Teria isto alguma relação com as histórias que
estavam registradas dentro de mim?
Esta reflexão trouxe-me a mente algumas pessoas que conhecia e passei a
imaginar que tipo de histórias estavam registradas dentro delas e a relação estabelecida
com o comportamento. Lembrei-me daquele jovem negro que, com muita dor,
compartilhou-nos que no seu período escolar nunca havia levantado a mão para
responder qualquer pergunta feito pela professora, porque pensava que todos da classe
iriam ver o seu braço levantado e perceber que ele era negro. Para não ser notado como
negro, enquanto criança, nunca se apresentava para responder qualquer coisa. Que
histórias contaram para aquela criança negra, que a deixou com a auto-imagem e a auto-
estima tão rebaixada? Que histórias lhe contaram e ele, criança inocente, acreditou!
Recordo-me de um amigo negro que, ao reportar-se aos tempos de criança, tem
gravado na lembrança a imagem da sua mãe que constantemente lhe comprimia o nariz.
Ele perguntava a mãe o porquê dela estar sempre apertando o seu nariz. Ela respondia
que era para afinar-lhe os traços, a fim de que ele deixasse de ter o nariz chato,
característico da raça negra, para que as pessoas não o identificasse como um negro e o
filho não sofresse tanto quanto a sua mãe. Que lembranças terríveis tem essa mãe
guardada dentro de si! Que histórias lhe acompanham desde a meninice, ao ponto de,
por amor ao filho e para poupá-lo de sofrimento, chegar a acreditar que, com as próprias
mãos, poderia apagar a identidade negra de seu filho, do seu amado filho?
Passei, então, a pensar nas gravações arquivadas na mente de menino de um outro
grande amigo negro, quando fui convidado por ele para participar da festa de seu
casamento. A sua noiva era uma jovem branca de cabelos pretos todo ondulados.
Despretensiosamente, perguntei-lhe por que iria se casar com ela. Sinceramente,
esperava ouvir dele a seguinte resposta: Estou me casando com ela, porque eu a amo e
esta é a mulher da minha vida. Mas a resposta foi outra: Estou me casando com ela
para poder melhorar a raça. Não quero que meus filhos nasçam negros. Que histórias
estão registradas na mente de menino, exercendo papel tão preponderante, influenciando
até mesmo as relações afetivas e os projetos de família?
No senso realizado pelo IBGE, em 1980, havia duas questões destinadas a
quantificar a população de acordo com a sua etnia: uma fechada, outra aberta, reduzida
à pergunta: Qual é a sua cor? Com liberdade, cada um respondia a cor que achava que
tinha. Foram 136 variações de cores. Isto me fez refletir sobre os escapes que as pessoas
encontram para não serem identificadas como negras. Tentam de todas as maneiras
fugirem de serem identificados com esta raça. Que histórias foram contadas, capaz de
levar essa imensa massa populacional, pesquisada pelo IBGE, a omitir sua identidade
negra? Que histórias nos foram contadas na infância e adolescência levando-nos ao
medo de dizer: Eu sou negro ou Sou negra? Como se o ser negro ou negra não
correspondesse a uma raça, mas sim a uma marca negativa, que precisa ser apagada,
superada ou esquecida.
Lembro-me, neste momento, de uma redação escrita por uma criança negra, da
cidade de Tupã, interior de São Paulo, na qual ela conta que no seu primeiro ano de
escola, no primeiro dia de aula, a professora precisou sair por um momento da sala.
Pediu aos alunos que conversassem com o coleguinha do lado, da frente para se
conhecerem. Um aluno perguntou: Professora, eu vou ter que conversar com esta
pretinha aqui de traz? Conta a redação da menina, que a professora ficou desarmada,
sem saber o que falar. Diante da fala do colega de classe e da postura da professora,
desarmada e sem saber o que dizer, a pequena aluna negra, no seu primeiro ano de

76
escola e no primeiro dia de aula, já pôde concluir, na sua ingenuidade, que aquele não
seria um espaço muito amistoso.
Cada pessoa traz dentro de si histórias que ajudam a categorizar e rotular as
pessoas. E agora, aquela aluna negra recém chegada à escola, além das histórias
gravadas no seu interior, terá, como agravante, que as pessoas que convivem com ela
trazem também suas histórias, e nelas a figura do negro não ocupa um referencial
positivo. Que histórias contaram em casa para aquela criança branca, levando-a a
apresentar resistência e repulsa ao fato de ter que dialogar com uma criança negra? Que
história lhe contaram?
Fico imaginando sobre as histórias que fariam parte do interior daquele aluno da
Universidade Federal de Juiz de Fora, no Estado de Minas Gerais, levando-o,
recentemente, a divulgar, via Internet, um e-mail estimulando as pessoas que estivessem
tendo acesso àquela mensagem a organizarem, em suas localidades, grupos de
extermínio de pessoas negras. Que história lhe contaram na infância, na adolescência,
na escola, na igreja? Seriam as mesmas histórias que também fazem parte do universo
interior das crianças e jovens negros? Que histórias são estas?
No vestibular ocorrido em janeiro de 1998, na Universidade Federal do Mato
Grosso do Sul, a prova de língua portuguesa trazia uma questão para que os candidatos
analisassem duas frases: Ela é bonita, mas é negra e a outra Embora negra, ela é
bonita. O presidente da Comissão Permanente de Vestibular, responsável pela
elaboração da prova, disse que a questão foi uma “escorregada infeliz”. A consultora de
português do jornal Folha de São Paulo, Priscila Figueiredo, analisou as frases.
Segundo a consultora de português, na construção Ela é bonita, mas é negra, há
uma relação de coordenação, ou seja, as orações que a compõem têm mesma função
gramatical. O “mas” é conjunção adversativa no caso, impondo restrição. O que se diz é
De fato, a moça é bonita, mas sua beleza é desqualificada pela cor. Já em Embora
negra, ela é bonita, ocorre subordinação, em que uma das orações determina o sentido
da outra. A palavra “embora”, que introduz a oração subordinada (com omissão do
verbo), tem caráter concessivo - mesmo apresentando argumento desfavorável, constitui
uma “restrição superável” pela beleza. A moça pode ser negra, mas isso não impede
que seja bela é o que está sendo enunciado.
Quem é que sabe as histórias que o professor responsável pela elaboração desta
questão de vestibular vem ouvindo desde a infância? Estas histórias vieram a influenciar
as suas convicções éticas, estéticas e culturais, considerando negritude e beleza coisas
incompatíveis. Quem sabe que histórias lhes contaram seus pais, seus professores,
amigos? Quem sabe?
Houve um homem na África do Sul, de nome Steve Bicko, que morreu nas mãos
de policiais que o torturam na prisão pública até levá-lo à morte. Após muito tempo de
negação, recentemente os próprios policiais confessaram o crime. Uma das razões de
sua prisão e morte, além de ser um ativista contra o regime racista da África do Sul, foi
ter declarado The Black is Beautiful - O negro é lindo.
As histórias são capazes de nos tirar o prazer de sermos negros e negras. É preciso
conhecer mais sobre esta ideologia que nos faz pensar que, pelo fato de sermos negros,
não podemos ser belos, não podemos ocupar determinados espaços da sociedade e que
nos faz perder o brilho dos olhos. Gostaria muito que meus filhos não perdessem o
brilho que ainda têm nos olhos. Repito-lhes, diariamente, que são lindos e gostaria que
eles crescessem crendo e descobrindo-se cada vez mais lindos. Gostaria que meus filhos
fossem cidadãos, sujeitos de deveres e direitos, sem nenhuma restrição. Para que isto
aconteça, é preciso dar uma atenção muito especial às histórias que lhe serão contadas
dentro do lar, na escola, na igreja e demais espaços sociais.

77
Educação religiosa, racismo e auto-estima

A ideologia racista é bastante eficaz em suas ações. Ela faz com que seja reinante
no interior de nossas escolas, igrejas e demais organizações sociais a idéia de que as
pessoas devem evitar falar sobre a questão racial, acreditando que, se discutirem o tema,
irão fazer surgir o problema. A ideologia racista também é responsável pela eliminação
de todos os referenciais positivos que o povo negro poderia ter de si mesmo. Sob os
efeitos desta ideologia, quando lemos, por exemplo, a Bíblia Sagrada, não conseguimos
enxergar a presença do povo negro e o seu papel na história, como se, num passe de
mágica, aquele que é negro passa a ser branco.
É interessante analisarmos o racismo a partir da observação das telenovelas
mexicanas, onde não há mexicanos, mas todos os personagens têm o tipo físico
característico do branco europeu. Da mesma forma, notamos que em um filme ou
novela em que a história se dá na Bahia, onde a grande maioria da população é negra,
mesmo assim a figura do negro não está presente, sendo apenas um pano de fundo no
desenrolar da história. Assim também se dá com a leitura bíblica. Ao lermos a história
de Israel, nem notamos que ela está recheada de personagens negros, protagonistas
importantes no desenrolar da história dos Judeus. A Palestina, região onde se dá a
história do povo de Deus, é vizinha da África, o continente negro por excelência. Em
todo tempo há o relacionamento dos judeus com os países africanos vizinhos, mas,
mesmo assim, o povo negro desaparece e aquele personagem histórico, que
originalmente é negro, passa a ser branco, sem que isto cause nenhum problema a nossa
fé.
O opressor usou a Bíblia para escravizar e matar, justificando raças superiores e
inferiores. No entanto, o povo negro tem na Bíblia uma inesgotável fonte de libertação.
Não há a mínima sustentação bíblica e teológica para os argumentos utilizados pelos
racistas e escravistas, de que a África é um pais do diabo, onde o negro cultua o
demônio, sendo necessário sua vinda para a América para ser purificado. É inaceitável
que ainda há leitores da Bíblia que defendem o dogma estúpido de que o negro estaria
condenado hereditariamente à inferioridade. É inconcebível que ainda há aqueles que
vão até a Bíblia e interpretam que o sinal que Deus pôs sobre Caim para castigá-lo
(Gênesis 4.11-16), estaria relacionado com as características físicas que diferem as
raças, sendo a negritude da pele um sinal marcante do pecado de Caim e castigo de
Deus. Todavia, convém lembrar que o sinal que Deus pôs em Caim foi para protegê-lo,
e não para castigá-lo. É muito triste saber que ainda há cristãos que usam o texto bíblico
como pretexto para sustentarem a ideologia racista, referindo-se à maldição sobre Canaã
(Gênesis 9.24-27), filho de Cam. Advogam a idéia de que o cumprimento desse
julgamento tem sido a escravidão dos negros nos últimos séculos. É bom lembrar que os
descendentes de Canaã eram brancos, e não negros (Genesis 10. 15-17). (Santos, 1988)
A ideologia racista contribuiu para que, freqüentemente, o povo negro ignorasse
tudo a respeito da sua história. Desconhece os dados sobre quando e como aqui chegou,
de onde veio e o que trouxe na sua bagagem. Suas manifestações culturais encontram-se
muito fragmentadas e a sua imagem, quando associada à sua ascendência escrava, evoca
sempre como qualidades maiores a paciência, a docilidade, a resignação, o sofrimento e
a submissão, jamais a rebeldia, a resistência e a recusa da escravidão. O povo negro,
enquanto descendente de africanos, está longe de evocar as nobres virtudes de seus
ancestrais. Traz à lembrança somente o sofrimento e a resignação, associados a um
passado que seria melhor esquecer. (Consorte, 1991:86)

78
O alvo da ideologia racista tem sido, preferencialmente, a auto-estima da pessoa
negra. É para o campo da auto-estima que se direciona grande parte dos dardos
inflamados desta ideologia satânica e mortal chamada racismo.

O que é auto - estima?

Segundo Moshé Feldenkrais e Charles Odiar, denominamos auto-estima o valor


que atribuímos a nossas características físicas, mentais e emocionais. Este valor, auto-
atribuído, pode nos tornar confiantes, seguros, orientando-nos para uma participação
ativa e responsável no que se relaciona a nossas vidas, ou inseguros, dependentes dos
demais e passivos diante dos fatos que ocorrem. A auto-estima está ligada à imagem
que temos de nós mesmos e ao peso que damos a nossos defeitos e qualidades, de
forma a influir no fato de “gostarmos ou não de nós mesmos.” A auto-estima é o
alicerce da assertividade (equilíbrio entre agressividade e passividade), que cria
situações de benefícios para todos os envolvidos. Auto-estima é o amor a si mesmo e
aos outros, e envolve auto-respeito, aceitação e confiança. É diferente do egoísmo,
narcisismo, arrogância. Neste caso, o indivíduo se coloca acima das demais pessoas,
apresentando uma superioridade excessiva. Na maioria das vezes, quem assim se
comporta tem grande dificuldade de aceitar seus defeitos e utiliza-se de compensação
para ocultar o grande sofrimento interno. A quantidade de energia despendida para
anular as conseqüências intoleráveis da frustração denuncia o grau de sua inferioridade
subjacente.

A formação da auto - estima

Quando nasce uma criança ela é um reservatório de pulsões e instintos, que irão
manter sua sobrevivência e marcar seu relacionamento afetivo. Na medida em que
começa a desenvolver-se e a exercer a distinção entre seu ser e o do outro, são
introjetados componentes que vão influir posteriormente na sua auto-imagem. Dos 0 aos
6 anos a criança aprende a controlar, de forma consciente, seus instintos básicos em prol
do processo de socialização. Interioriza os valores sociais e seu aprendizado é baseado
em sistemas de reforço e punição. A representação interna que ela forma de si mesma
parte do que lhe é mostrado e do que lhe dizem a seu respeito. A auto-imagem é
formada a partir de informações que são ditas a nosso respeito. Esse conjunto se
cristaliza em crenças, que nos guiarão no decorrer da vida. Muitas destas crenças,
posteriormente, mostram-se irreais e limitantes, carecendo de grande esforço para serem
modificadas.
Na nossa sociedade ocidental, os fatores determinantes para que o indivíduo seja
reconhecido publicamente como um vitorioso dizem respeito à obtenção do sucesso
profissional, da ascensão social, aumento na aquisição de bens materiais e construção de
um núcleo familiar (mesmo que não seja tão duradouro como antigamente). É em torno
destes ideais que giram nossas metas de vida. A nossa alta ou baixa auto-estima está
ligada à consecução ou não de tais objetivos. O ser humano sempre busca sentir-se
valorizado e aceito por seu grupo social. A nossa auto-estima (de brancos e negros) é,
em sua grande maioria, condicionada pela comparação que fazemos com padrões
socialmente estipulados (mesmo que eles sejam falsos) e com a noção que formamos
sobre nós mesmos durante a primeira infância. As pessoas tendem a se julgar de acordo
com o valor que os pais e a sociedade lhe proporcionam, chegando mesmo a
desconsiderar seu potencial individual, negar seus costumes e adaptar-se a situações e
lugares que muitas vezes considera errados.

79
Com o negro o processo não foi diferente. Submetido ao regime escravista, sendo
considerado durante séculos como semelhante aos animais, não tendo alma, a
recuperação de uma alta auto-estima (como, provavelmente, tinha antes de ser
arrancado de seu continente de origem) tem sido um trabalho de reconstrução política,
social e emocional, que vem percorrendo as décadas. Nos Estados Unidos, na luta pelos
direitos civis ocorridos nas décadas de 50 e 60, iniciou-se um processo de
conscientização de que a população afro-americana tinha uma história, tinha contribuído
para o desenvolvimento do país, merecendo, portanto, não ser mais rotulada como
inferior e proibida de freqüentar locais públicos em geral. A comunidade negra passou a
lutar pela democratização das relações econômicas, políticas e sociais. Muitos avanços
foram conseguidos desde então, trazendo modificações sensíveis na auto-estima do
negro norte-americano, embora o conflito racial ainda permaneça forte. Repetiu-se o
modelo tradicional, no qual a alta auto-estima está associada à conquista do status
considerado ideal pela comunidade negra e também pelo sistema capitalista, que abarca
negros e brancos. Este processo reforçou ou elevou mais a auto-estima de um grande
número de negros.
A idéia da democracia racial brasileira, na qual negros e brancos vivem
harmoniosamente sem conflitos, dificultou a mobilização de luta por melhores
condições da população negra como um todo, como aconteceu nos Estados Unidos.
Ainda presenciamos a maioria da população negra sendo discriminada e,
conseqüentemente, introjetando a inferioridade. Dos poucos negros que conseguem
evoluir na escala social, muitos acabam identificando-se com os ideais do dominador,
em detrimento de seus próprios valores e de seu povo.
É urgente o resgate da auto-estima das pessoas negras. A educação tem um papel
fundamental nesta tarefa de reconstrução da auto-imagem da mulher e do homem negro.
Nossas crianças precisam conhecer sua história e é tarefa da escola ensinar a história do
povo negro. É imprescindível superar as mentiras das histórias oficiais, que mais
atrapalham do que ajudam. É imperativo que esta história seja ensinada por pessoas que
verdadeiramente conheçam a história do povo negro. É preciso que o estudo sobre a
História da África integre os currículos das escolas desde o nível fundamental ao
superior.
A imagem que as crianças negras têm de si próprias ainda é muito ruim. Nossas
crianças, nosso povo em geral tem que ver a sua imagem em todos os lugares, na
televisão, na mídia, nas estatísticas, nos postos de trabalho, nos livros didáticos, nas
revistas de moda, no cinema, na política, no Congresso Nacional, nos lugares de decisão
da nação dos estados e municípios, nas igrejas, enfim, em todos os lugares. Precisamos
de referenciais nos diversos segmentos da sociedade.
A luta contra a discriminação, preconceito e racismo deve se dar em todas as
áreas, na educação, nos tribunais, nas universidades, nas organizações sociais, igrejas
etc. Nenhuma condição humana é permanente, já dizia o provérbio, mas se o
racialmente oprimido não lutar e exigir os seus direitos, não lhe serão dados de mão
beijada, também lembrava o Reverendo Martin Luther King. Já estamos em tempos de
metanóia, de mudanças e conversões. Conversão de cabeça. Mudança de atitude. É
preciso criar um novo ambiente, no qual todos nós juntos possamos colocar nossos
recursos financeiros, materiais e pessoais, nossa educação, nossa cozinha, todo e
qualquer recurso que temos em favor do combate e erradicação do racismo. É preciso
superar esta ideologia satânica que se propaga por meio das escolas, igrejas, mídia e
outras instituições, fazendo com que nossas crianças nutram uma auto-imagem negativa
de si mesmas. Temos que avançar em direção da retomada do prazer e da alegria de
sermos mulheres e homens negros. Reapropriarmo-nos da consciência da beleza da

80
nossa negritude e redescobrir como é belo ser negro e negra. Quem é negro, levante a
mão. Eu sou!

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.


CONSORTE, Josildeth G. A questão do negro - velhos e novos desafios. Revista São
Paulo em Perspectiva, Jan/mar, vol. 5, no. 1, São Paulo: SEADE, 1991.
MACKENZIE, John L., Dicionário Bíblico. São Paulo: Paulinas, 1983.
SANTOS, L.F., Bíblia, racismo e preconceito. Jornal do Conselho da Comunidade
Negra, Setembro, 1988.
SILVA, Edílson M., Negritude & Fé: O resgate da auto-estima. Santa Cruz do Rio
Pardo: Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Carlos Queiroz, 1998.
SOARES, A.I. Auto-Estima. São Paulo: 1997. (mimeo).

81
EDUCAÇÃO MUSICAL: A CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
NACIONAL BRASILEIRA EXCLUDENTE

Renato de Sousa Porto Gilioli*

Propomos discutir o sentido do ensino de música na escola brasileira,


particularmente durante o período republicano, e seu papel na construção de uma
identidade nacional voltada para valores eurocêntricos. Ao mesmo tempo, interessa-nos
apontar como este ensino musical trata os valores da cultura negra e quais as
possibilidades de se fazer uma abordagem multicultural da música na escola. Para tal
empreitada, recorremos à análise de alguns métodos de ensino de música (publicados
entre 1914 e 1986), para compreendermos quais valores seus autores se propunham a
cultivar nas crianças e que formação pretendiam fornecer a elas.
Inicialmente, cumpre dizer que o ensino de música, enquanto procedimento
educacional voltado para as crianças, existe desde 1537. Nesta data surge o termo
"Conservatório", em Nápoles, que nomeou uma instituição que conservava as crianças
abandonadas até a maioridade e ensinava-lhes música (Sinzig, l959:173). Entretanto, foi
com a Revolução Francesa que a questão do ensino de massas (no qual estava inserida a
educação musical) foi colocada na ordem do dia e só com a industrialização do séc. XIX
que ele se concretizou. O objetivo da educação de massas era, fundamentalmente,
colocar os indivíduos à disposição dos interesses do Estado e dos setores sociais que o
controlavam. Ensinar a língua nacional e a música, entre outras disciplinas, era
necessário para que, entre outras coisas, as leis fossem compreendidas (e cumpridas, de
modo que o poder estatal pudesse ser exercido em sua devida extensão) e para que os
cidadãos respeitassem a identidade nacional que estava sendo construída - e, sobretudo,
as instituições oficiais que a representavam. Ou seja, a educação era percebida como
uma arma política do Estado (Reisner, 1936).
Ao mesmo tempo, a partir do processo revolucionário francês, também a música
passou a ser assim vista. Nele fora demonstrado o poder de mobilização que essa,
executada em praça pública, exercia sobre as multidões, em particular a música coral
(Squeff, 1989:14). Tanto que o relatório de Condorcet sobre o estado da educação na
França (1792) já indicava a importância de que fossem ensinadas canções patrióticas às
crianças (Reisner, op.cit.:26).
No Brasil, o ensino musical não foi pensado de forma diferente. É o que
observamos ao analisar vários autores de métodos de ensino musical (Gomes Cardim &
Gomes Junior, Villa-Lobos, Beuttenmüller, Willems, Pagano, Jannibelli e Suzigan &
Suzigan). Todos se propõem, de forma mais declarada ou não, a cultivar sentimentos
patrióticos nas novas gerações. Contudo, cultivar o patriotismo, no Brasil, tinha um
significado peculiar, pois a identidade nacional foi construída tendo como padrão a
cultura européia - portanto, a imensa maioria afro-indígena estava excluída do projeto
de nação. De modo similar, o ensino musical também seguia, em alguns aspectos, essa
lógica: cultivar as concepções ocidentais de arte nas crianças (que seriam esteticamente
"superiores") e negar ou folclorizar tudo o que escapasse disso, objetivando construir
um ideal de nação à imagem da Europa.
Nas palavras dos autores, isso se traduzia na intenção de, através da música,
disciplinar física e psicologicamente o povo, proporcionar sua formação moral e

*
Mestrando em Educação pela FEUSP, graduado em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Uniersidade de São Paulo (FFLCH-USP) e pianista erudito.

82
intelectual, ensinar dedicação ao trabalho, suavizar a passagem do lar para a escola,
contribuir para um convívio harmônico em grupo e na sociedade, promover a educação
estética e o culto da arte nas crianças. Para isso, um dos meios era ensinar os alunos a
cantar canções, marchas hinos etc. (Beuttenmüller, Villa-Lobos). Além disso, o civismo
foi demonstrado por meio da organização de grandes manifestações orfeônicas públicas.
Como exemplo, temos apresentações organizadas por Villa-Lobos com coros compostos
de 20.000 a 41.000 integrantes1 (Beuttenmüller, 1937:28).
Entretanto, esse ensino musical, regido por características do Regime Diurno de
imagens (Durand, 1997), não só se preocupava em valorizar os cantos patrióticos e a
cultura artística européia. Ele, também, colocava-se num embate claro contra as
manifestações musicais da parcela não-branca da população, excluída do projeto de
construção da nação:
... quase todos os brasileiros, em conjuntos populares, são capazes de marcar
obstinadamente os tempos fortes de qualquer marcha, como inconscientemente o
fazem nos dias de Carnaval, o que não se verifica quando há necessidade de uma
grande e uniforme demonstração popular de solidariedade cívica para cantar o
Hino Nacional. (Villa-Lobos, 1940:3).

Este mal ["o canto gritado", timbre de voz muito utilizado nas culturas afro-
indígenas], além de ser insuportável, é de conseqüências desastrosas. Ele
desvirtua, por, completo, o fim educativo da música e ocasiona o mesmo
inconveniente que acarreta o canto de músicas que não foram escolhidas de
conformidade com as regras da tessitura musical e do gosto estético? (Gomes
Cardim & Gomes Junior, 1929:42).
A Juvenília, coletânea de músicas voltadas para o ensino e elaborada pelos
Salesianos de Dom Bosco, critica o samba e o carnaval, que seriam demonstrações de
mau gosto, nas quais seus participantes, oriundos das favelas, gritavam com suas vozes
estrídulas e roufenhas. E completam: Felizmente a verdadeira música nacional não é
isso. É alguma coisa mais artística e mais séria. (Salesianos de Dom Bosco, 1952:IV).
Na melhor das hipóteses, as canções populares eram "permitidas" na medida em
que eram folclorizadas, "branqueadas" (isto é, retiradas de seu contexto comemorativo,
grafadas em partituras, perdendo certas características rítmicas, timbrísticas etc.) e
interpretadas conforme o gosto estético europeu. Mesmo em autores como Suzigan &
Suzigan, que entendiam a educação musical como uma ferramenta auxiliadora no
combate à exclusão social e à pobreza, a "música não-branca" (se assim poderíamos
chamá-la) continuava a ser folclorizada para promover o senso patriótico no povo.
Além disso, podemos perceber, claramente, o status da música folclórica na
educação musical. Ela era sempre o primeiro "estágio" do aprendizado da criança, o que
permitia contatos entre os diferentes imaginários presentes na sociedade brasileira. Por
outro lado, os autores dizem, explicitamente ou não, que as canções populares são
simples, imprecisas, selvagens e primitivas - assim como seria, também, a natureza da
criança. Seu papel é ser o primeiro passo no caminho "natural" e "evolutivo" que
conduz a criança a uma cultura mais "complexa, "elevada" e esteticamente "mais
refinada" (ou seja, uma cultura... ocidental, escrita, seja em termos de língua ou de
música). Essa cultura "civilizada" era, além de tudo, considerada como universal e
inerente ao ser humano, só "esperando" para ser "despertada" pelo professor de música.
Um exemplo disso está em Willems, quando afirma que a escala diatônica e o acorde

1
As grandes manifestações orfeônicas ocorrem a partir da década de 1930, não por coincidência no
mesmo período em que a industrialização teve grande impulso.

83
maior (produtos da cultura ocidental 2) seriam "princípios" inatos na humanidade a
serem desenvolvidos na criança através da educação musical. Ou seja, o único caminho
possível para se apreciar e praticar o esteticamente belo seria o das concepções de arte
ocidentais.
Com isso, entretanto, não pretendemos "demonizar", muito menos ignorar as
contribuições da cultura ocidental à sociedade brasileira. Apenas criticamos o fato de os
métodos de ensino musical trazerem somente as concepções artísticas européias ou
europeizadas como objetivo final educativo, quando somos um país multicultural.
Enquanto não resgatarmos também a memória afro-indígena e suas concepções de
mundo, trazendo-as para o ensino escolar, continuaremos a prover uma educação que
não se difere muito, do ponto de vista estético, da velha catequização.
Para apresentar algumas das concepções e lógicas das "músicas não-brancas",
tomamos o exemplo de uma de suas diversas manifestações culturais: a Congada,
tradição afro-brasileira, que nos ajudará a entender que a música, embora seja fenômeno
universal, humano, tem significados diferentes conforme cada cultura.
Nessa manifestação, que se ancora fortemente no Regime Noturno de imagens
(Durand, 1997), a música não é entendida como algo separado da fala, da dança, dos
gestos e cumprimentos, das rezas e ritos etc. Todo o conjunto artístico-ritual é uma
narrativa que remete aos repertórios textuais e simbólicos africanos (Martins, 1997:40).
No caso do estudo de Martins, música e letra contam as narrativas sobre o aparecimento
da imagem de Nossa Senhora do Rosário, "ensinando" aos participantes da Congada
sobre as raízes africanas de sua cultura. São, assim, uma sobrevivência étnica, política e
social, que luta pela afirmação de uma identidade afro-brasileira, rejeitando
conscientemente a folclorização (na qual a cultura negra é ordenada segundo códigos
europeus) e elevando o negro a sujeito de sua própria cultura.
Transmitidas oralmente, essas narrativas revelam modalidades de recriação do
tema, com recorrências, supressões e acréscimos próprios dos processos de
transmissão oral, vestindo-se sempre com as estórias, cores, matizes e timbres dos
lugares e do contexto que as assimilam, recriam e reproduzem. (op.cit.:45)
A música e letra são assumidamente uma produção coletiva (ao contrário da
autoria individualizada da música ocidental) e desenvolvem-se a partir de temas centrais
sobre os quais os participantes improvisam (como no jazz), repetem ou usam o recurso
do coro responsorial (o narrador conta a estória e os participantes repetem e/ou
respondem com refrões, coletivamente). Assim, cada versão só tem sentido no contexto
do instante em que foi produzida, que é único e irrepetível. Por isso, a escrita musical
não tem sentido, pois a intenção não é sempre repetir a música da mesma forma, nem
obter a precisão matemática da duração e afinação das notas e do ritmo.
Do que vimos aqui, podemos delinear que o conflito entre as culturas européia e
afro-indígena manifesta-se no ensino de música institucionalizado. Este, ao objetivar a
construção de um imaginário e de uma identidade nacional branca e "civilizada",
excluiu deliberadamente a estética e os valores das outras culturas. E como nosso país é
multicultural e pluriétnico, temos de projetar uma sociedade e uma educação que
permitam justamente a construção de uma identidade nacional na qual essas maiorias
tenham participação.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

2
Afinal, sabemos que outras culturas concebem as escalas de forma diferente. Para mais informações
sobre o assunto, ver Kubik, 1970.

84
BEUTTENMÜLER, Leonila L. O orfeão na escola nova. Rio de Janeiro: Irmãos
Pongetti, 1937.
DOM BOSCO, Salesianos de. Juvenília. Cantos para a vida do colégio e do lar. São
Paulo: Salesiana, 1952.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
GOMES CARDIM, Carlos A. & GOMES JUNIOR, João. O ensino de musica pelo
methodo analytico. São Paulo: Typographia Siqueira, 6a ed., 1929.
JANNIBELLI, Emilia D. A musicalização na escola. Rio de Janeiro: Lidador, 1971.
KUBIK, Gerhard. Natureza e estrutura de escalas musicais africanas. Lisboa: Junta de
Investigações do Ultramar, 1970.
MARTINS, Leda M. Afrografias da Memória O Reinado do Rosário no Jatobá. São
Paulo-Belo Horizonte: Perspectiva/Mazza, 1997.
PAGANO, Letícia. Noções de pedagogia didática geral e elementos da educação
musical. São Paulo: Ricordi, 2a ed., 1965.
REISNER, Edward. Nationalism and education. A social and political history of
modern education. New York: The Macmillan Company, 1936.
SQUEFF, Ênio. A música na Revolução Francesa. Porto Alegre: L&PM, 1989.
SINZIG, Frei Pedro. Dicionário Musical. Rio de Janeiro-São Paulo: Kosmos, 2a ed.,
1959.
SUZIGAN, Geraldo de O. & SUZIGAN, Maria Lucia C. Educação Musical. Um fator
preponderante na construção do Ser. São Paulo: CLR Baliero, 1986.
VILLA-LOBOS, Heitor. Canto orfeônico. Marchas, canções e cantos marciais para
educação consciente da "Unidade de Movimento". 1° vol., São Paulo-Rio de
Janeiro: Irmãos Vitale, 1940.
WILLEMS, Edgar. La preparación musical de los más pequeños. Buenos Aires:
Eudeba, 1962.

85
O EXERCÍCIO DO OLHAR: ETNOCENTRISMO NA LITERATURA
INFANTO-JUVENIL

Andréia Lisboa de Sousa*

Introdução

Realizaremos uma reflexão sobre a postura etnocêntrica presente na literatura


infantil e juvenil, no educador e no leitor. Etnocentrismo é a visão em que um grupo
dominante coloca-se como centro de todas as questões e o outro é designado e sentido
por meio dos valores, modelos e definições desse grupo. Segundo Rocha (1993:7), ele
pode ser visto, no plano intelectual, como a dificuldade de pensar a diferença; no plano
afetivo, como sentimentos de estranheza, medo, hostilidade etc.
O etnocentrismo nos leva a pensar na/a diferença. Entender e/ou aceitá-la, exige
um exercício de com-preensão e despojamento de uma visão homogênea,
segregacionista, racionalizadora e padronizada. Segundo Paula Carvalho (1990:76), essa
diferença é a oscilação entre determinação (mesmo, identidade) e indeterminação
(abertura e referenciação à dimensão do Outro). Dessa forma, estabelece-se uma relação
de "conflitorialidade" entre ambas, em que o simbólico (a função simbólica) serve como
(e é) mediador(a) dessa diferença.

Cultura, relações étnico-raciais e literatura

Em nossa sociedade, notamos uma recusa à diversidade cultural e há falta de


relativização cultural, pelo fato de não existir um "modelo" de relação, em que ser
diferente (o outro) não signifique ser inferior, menos capaz, submisso. Esse contexto é
ilustrado por Paula Carvalho (1990:77):
Essa operação, de desconhecimento ou ocultação do valorizado lugar de onde se
fala sobre os outros desvalorizados lugares ... cria as 'ilusões' ... os falsos
problemas provenientes de uma dinâmica sócio-psico-cultural e organizacional da
redução, da exclusão, da projeção e da estigmatização nas figuras do Outro.
Esse Outro é o inconsciente, pois este é o mediador entre o ... objetivo e o
subjetivo, entre o eu e o outrem (Lévy-Strauss, apud Paula Carvalho, op.cit.:79). Se
pensarmos nas relações raciais no Brasil (refiro-me, especificamente, à relação entre
negros e brancos), veremos que esse "eu" representa o modelo sócio-cultural branco e o
"Outro" seria o universo sócio-cultural do negro que se difere do branco.
Diante dessa relação, temos uma "perversa fabricação do outro" 1, que consiste no
instrumento de opressão utilizado pelo branco sobre o negro para criar estereótipos e,
depois, por uma série de mecanismos instituídos (que os afetam psico-socialmente),
fazer com que o mesmo se "con-forme" com os estereótipos. Exemplo disso é o que
Jung (1972) nos apresenta, ao explicar que o negro ou árabe aparece como sombra para
os europeus quando:
... um negro se porta de determinada maneira, é comum dizer-se: ‘Ora, ele não
passa de um negro’, mas se um branco agir da mesma forma, é bem possível
dizerem que ele é louco, pois um branco não pode agir da mesma forma. Estar
louco é um conceito social (p.56).
*
Mestranda da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP).
1
Expressão utilizada por Devereux, também citado por P. Carvalho, op.cit.:80.

86
Dessa forma, como podemos nos educar para esse encontro com o outro/sombra,
ou melhor, com o que nos apresenta como diferente culturalmente e étnico-racialmente?
Uma das maneiras é desenvolver a relação de respeito/responsabilidade entre o
“eu” e o “outro”, que desemboca numa educação fática:
... uma educação hermenêutica e (mito) poética ... é o despertar de uma
´sensibilidade´ ... que vivencia o fluxo da Palavra ... e do Verbo de modo
mistérico, profético ... (P. Carvalho, 1995:18).
Outra maneira pode ser entendida pelo que Ricoeur (1996) nos apresenta, em sua
reflexão, sobre o mal (geralmente associado ao negro) que, após ser com-preendido,
deixa de ser algo ruim, negativo:
... é desnecessário enfatizar que o mal é o ponto crítico de todo pensamento
filosófico: se ele o compreende, este é o seu maior sucesso; mas o mal
compreendido não é mais o mal, ele deixou de ser absurdo, escandaloso.(p.16)
Munanga (1998), ao estudar a face interna do pensamento racista, dá-nos grande
contribuição para entender a relação do outro, do medo, da agressividade ou do
inconsciente, na verdade, a problemática da sombra que o racista projeta:
Para justificar a destruição dos negros e judeus é preciso antes provar que foram
eles que começaram. Atacam-nos a título preventivo, porque são ameaçadores.
Desse modo, o racista projeta na vítima a sua própria agressividade ... o ódio
pela diferença é diretamente proporcional ao sentimento que o racista tem pela
fraqueza de sua própria pessoa. (p.56)
Para isso, é necessário ter desprendimento para saber ver (pedagogia do olhar),
ouvir (pedagogia da escuta) e respeitar (pedagogia da responsabilidade). Isso nos
levaria à presença do Outro “sem etno-logo-centrismos, na plenitude das diferenças
radicais”, virtude que só se alcança, de modo profundo e poético (poiésis), quando
ocorre transformações na postura do indivíduo: aceitando as diferenças, quebrando a
visão etnocêntrica e eurocêntrica presente na sociedade brasileira, durante esses 500
anos de opressão e desigualdade social. Notamos isso, pois:
Só consegue agir assim consigo aquele que nele descobriu a pluralidade e que a
reunificou, a re-ligou, relendo-se destarte de outro modo ‘modus’ – do Outrem, do
Outro, que em Si se reconheceu o Si mesmo... (Paula Carvalho, 1995:22)
A cultura ocidental teve (e tem) dificuldade em unir dois lados (opostos) em um
só, como, por exemplo, o bem versus o mal, o corpo versus a alma, o céu versus a terra;
já a cultura oriental, como nos mostra Jung (op.cit.), faz isso muito bem, quando integra
elementos opostos:
Aí está a condição primordial das coisas ... a integração de elementos eternamente
opostos... na antiga filosofia chinesa.. A condição ideal é denominada Tao, e
consiste na total harmonia entre o céu e a terra .... O lado claro representa o
calor, o seco, o princípio de fogo, o sul; o lado escuro é o princípio frio, negro,
úmido, o norte. (p.155)
Nossa compreensão das relações humanas é baseada na noção desenvolvida por
G. Durand (1997) de:
... trajeto antropológico, ou seja, a incessante troca que existe ao nível do
imaginário entre as pulsões subjetivas e assimiladoras e as intimações objetivas
que emanam do meio cósmico e social. (p.41)
Prosseguindo, Durand nos diz que o imaginário é exatamente esse trajeto, em que
a representação do objeto deixa-se assimilar e modelar pelos imperativos pulsionais do

87
sujeito (sua afetividade, subjetividade, que se mostra pelo medo, vergonha, timidez,
raiva, agressividade, felicidade, identificação), no qual, reciprocamente, as
representações se explicam pelas acomodações anteriores do sujeito (imagens que se
instalam no decorrer de sua vida e vivência) ao meio objetivo (relações concretas,
sociais, externas). Esse trajeto tem caráter reversível, uma vez que há uma troca
constante e incessante entre o mundo interior dos indivíduos e o meio externo em que
ele vive.
Um outro aspecto a ressaltar é o papel da obra literária. O livro de literatura é um
objeto estético, lúdico que suscita a criatividade e o imaginário do leitor. É um objeto
cultural que possibilita a oportunidade para expressar imagens sociais e culturais
(Kishimoto,1998:01). No entanto, sabemos que o acesso ao mesmo torna-se difícil,
devido às condições financeiras da maioria das crianças e jovens da periferia. Grande
parte dos conteúdos expressos por ele, a respeito dos negros, índios e portadores de
deficiências, ainda mantém uma visão estereotipada, tratando “iconoclasticamente”
(destrutivamente) a representação dos mesmos.
Apesar dos esforços, nas últimas décadas do século XX, de pesquisadoras, tais
como: R. Pahim, E.V. Negrão, F. Rosemberg, em estudar a questão “das minorias” e de
gênero nos livros de literatura infantil e juvenil, notamos poucas mudanças na
concepção dos escritores e ilustradores desses livros, quanto a uma sensibilização e
reflexão sobre os seus próprios preconceitos e os veiculados nessas obras. Os avanços,
tanto quantitativos quanto qualitativos, da literatura infantil e juvenil ainda são
insuficientes para retratar – de maneira igualitária - o pluralismo étnico e a diversidade
racial da sociedade brasileira.
O panorama apresentado por Negrão em sua pesquisa “Preconceitos e
discriminações raciais em livros didáticos e paradidáticos e infanto-juvenis”, de 1988, é
preocupante. Ela apresenta dois dados importantes sobre os livros infanto-juvenis: o
primeiro é que, em uma pesquisa realizada por M. Schreiber, em 1975, na qual a mesma
analisa 98 obras de 54 autores diferentes, 39 não fazem referência a “minorias étnicas”.
O segundo é uma amostra analisada por Rosemberg, em 1980, na qual consta a análise
de 168 livros de literatura infanto-juvenil brasileira editados ou reeditados entre 1955-
1975, cuja conclusão é de que os brancos correspondem à maioria dos personagens e
possuem as características mais bem desenvolvidas e valorizadas.
Rosemberg (1985) mostra-nos que a literatura infantil e juvenil estabelece uma
relação entre desiguais (o adulto emissor e a criança receptora) e iguais (o adulto branco
dirige-se a um público representado pelas crianças brancas). Logo, a criança negra e seu
universo (desejo, experiências) não têm espaço nessa literatura: Ela é uma relação
adulto-criança. Ela se situa tanto no campo do simbólico quanto do concreto. Ela é
fala e ação (p.76).
Os estudos de Rosemberg, Negrão e Pinto apresentam mudanças nessa concepção
entre o adulto (escritor imponente) e a criança (leitora passiva). Rosemberg apresenta
quatro tendências na literatura infantil e juvenil, de 1955 a 1975, das quais interessa-nos
ressaltar as duas últimas (3ª e 4ª). Na terceira, temos um contexto em que a criança
participa do universo adulto, desaparecendo mais a função didatizante e, na quarta, uma
mudança na postura do adulto, pois ele procura expressar, no livro paradidático, a
perspectiva, o olhar da criança.
A partir do trabalho “De Olho No Preconceito: Um guia Para Professores Sobre
Racismo Em Livros Para Crianças”, de E. Negrão e R. Pinto (1990), foi possível traçar
algumas tendências: o negro conquistou o papel de personagem principal; geralmente
possui uma família, faz parte de um universo que tenta reconhecer a diversidade cultural

88
e apontam para uma suposta integração racial. Entretanto, ainda há deficiências quanto a
re(a)presentação desses personagens nos livros:
... são ainda personagens pouco complexas, caracterizadas pelos mesmos traços
estereotipados, tomando parte em estórias demonstrativas. São personagens cuja
existência só se justifica enquanto exemplificadora de certos comportamentos.
(op.cit.:32)
Se por um lado, a literatura mantém um discurso predominantemente utilitário 2,
isto é, são obras cujos textos cumprem o papel de veicular ensinamentos que
determinem o comportamento do leitor, reafirmando preconceitos e caricaturizações do
negro:
... podemos dizer que esse discurso é também racista, uma vez que os mecanismos
narrativos utilizados na criação e caracterização de personagens discriminam as
personagens negras. (op.cit.33)
Por outro lado, há livros (em número bem menor) rompendo com os
preconceitos3. Cabe ao educador/leitor a escolha dessas obras, porém nos deparamos
com alguns problemas: os escritores, editores e ilustradores têm sensibilidade e abertura
para criar obras que fujam do padrão estereotipado/etnocêntrico? Eles procuram resgatar
a temática etnico-racial enquanto ficção literária, trabalhando com imagens (figuradas)
plurais, encantadoras, metafóricas? Os educadores têm a preocupação de escolher livros
desprovidos de representações negativas, de imagens simplificadoras e
homogeneizadoras referentes aos negros? Ainda há um longo caminho a percorrer, para
mudar o olhar sobre essas questões.

Considerações finais

Gostaríamos de ressaltar que não existe um modelo pronto para se trabalhar as


relações étnico-raciais; todavia, há várias pesquisas4 e experiências do norte ao sul do
país, que podem servir como ponto de partida, estímulo e até mesmo subsídio para se
pensar, sensibilizar e refletir sobre a temática em questão. Resta-nos a força de vontade,
o espírito criativo, a curiosidade e, principalmente, o compromisso com textos que
propiciem outros olhares, mediando nosso trabalho concreto como educadores e
educandos.
Para Ribeiro (1996:172) a literatura infantil, didática e paradidática
... está carregadíssima de exemplos lamentáveis. Para a construção de um
autoconceito favorável, é preciso que o ideal de ego não se mostre irrealizável, e
fundamental para isso é o resgate da beleza, poder e dignidade das diversas etnias
africanas. À criança afro-americana falta o modelo de Belo Negro.
Além das ilustrações lamentáveis, temos, muitas vezes, nessa literatura, a
presença de um discurso utilitário.
Outra falha, cometida pelos escritores é a de não levarem em conta que o negro
possui um outro universo de valores e crenças além daquele expresso nesses livros, com
o qual as crianças e os adolescentes negros não se reconhecem ao lerem-nos, ficando
desprovidos de modelos positivos e diversificados que servirão de base para a
constituição de sua mentalidade/personalidade/sociabilidade/identidade. Diante disso, é
2
O termo utilitário é empregado no sentido atribuído por Edmir Perrotti (1984).
3
Apresentamos obras num artigo introdutório sobre o assunto no livro: Racismo e anti-racismo na
educação: repensando nossa escola, Selo Negro, 2001.
4
Vide a bibliografia deste trabalho. De imediato, indicamos trabalhos de Petronilha Beatriz Gonçalves, K.
Munanga, Lilian Schwarcz e, principalmente, as produções do Movimento Negro.

89
importante que se trabalhe o imaginário acerca do negro na literatura infantil e juvenil,
de forma a encontrar possibilidades de transformar o quadro de:
... representação do negro em situação inferior à do branco; o tratamento da
personagem negra com uma postura de desprezo, a visão do negro como alguém
digno de piedade, o enfoque da raça branca como sendo a de mais poderosa
inteligência ... (Negrão,1988:53).
Diante do trabalho com livros de literatura infanto-juvenil, não podemos deixar
de lado o trajeto antropológico, que constitui o processo de leitura do leitor. Logo, se
não soubermos selecionar livros com imagens complexas, não estereotipadas
negativamente, que rompam com a idéia de submissão e inferioridade do negro, jamais
conseguiremos conviver, em uma sociedade, com menos injustiça, desigualdade e
violência.
A aquisição do conhecimento não ocorre estritamente pela via da racionalidade,
mas também através da dimensão emotiva. Munanga (s/d) nos alerta sobre as mudanças
necessárias para o avanço no processo de construção de uma nova metodologia, na qual
o plano da sensibilidade humana seja um instrumento norteador de novos valores ao
aparato científico, incidindo nos mecanismos simbólicos do pensamento:

... esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente


coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são
cultivadas as crenças, os estereótipos, os valores que codificam as atitudes, é
preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de superar os limites da
pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de
deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso
psiquismo.

Cabe ao educador sensibilizar-se, diante desse contexto sócio-cultural-simbólico,


para poder proporcionar um trabalho de leitura em que os traços de identidade “dos que
são considerados minorias” e dele (o próprio educador) sejam experienciados no
contexto educacional, de maneira a contribuir para a auto-estima dos educandos, bem
como para as múltiplas relações que possam ser estabelecidas eticamente entre eles.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, Mauro de. Imagem do negro nos livros didáticos. In: A luta contra o
racismo na rede escolar. São Paulo: FDE, Grupo de Trabalho para Assuntos
Afro-Brasileiros, 1995.
COELHO, Nelly Novaes Coelho. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil. 4ª
edição, São Paulo: Ática, 1991.
DURAND, Gilbert. A imaginação simbólica. São Paulo: Cultrix-Edusp, 1988.
________. As estruturas antropológicas do imaginário, São Paulo: Martins Fontes,
1997.
KISHIMOTO, Tizuko M. Anais da 15. Bienal Internacional do Livro. São Paulo:
Seminário Literatura, Arte, Educação, Luso-Afro-Brasileiro, 1998.
JUNG, Carl Gustav. Fundamentos de psicologia analítica. Petrópolis: Vozes, 1972.
MAGALHÃES, Ligia C. O que é literatura infantil. São Paulo: Brasiliense, 1987.
MUNANGA, Kabengele. Apresentação. In: Estratégias de combate ao racismo na
educação. Ministério da Educação e do Desporto, mimeo, s/d.
________.(org.). Estratégias e políticas de combate à discriminação racial. São Paulo:
EDUSP, 1996.

90
MUNANGA, Kabengele & SCHWARCZ, Lília. Teorias sobre o racismo. In:
HASENBALG, Racismo: perspectivas para um estudo contextualizado da
sociedade brasileira. Revista Estudos & Pesquisas. Niterói: Ed. da UFF, 1998,
p. 45-65.
NEGRÃO, Esmeralda V. Preconceitos e discriminações raciais em livros didáticos e
infanto-juvenis. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, Fundação Carlos Chagas-
Cortez, nº 65, p. 52-65, 1988.
________. Literatura infanto-juvenil: a criança negra. Cadernos CEVEC. São Paulo,
Centro de Estudos Educacionais Vera Cruz, nº 4, p.63-65, 1988.
________ & PINTO, Regina Pahim. De olho no preconceito: um guia para professores
sobre racismo em livros para criança. São Paulo: Fundação Carlos Chagas,
1990.
PAULA CARVALHO, José Carlos de. Apresentação das conferências sobre o
imaginário social e a mitodologia das práticas sociais In: Revista da FEUSP. São
Paulo, vol. 11, nº ½, p. 243, 1985.
________. Antropologia das Organizações e Educação: Um Ensaio Holonômico. Rio
de Janeiro: Imago, 1990.
________. Etnocentrismo: inconsciente, imaginário e preconceito no universo das
organizações educativas. In: Interface: Comunicação, Saúde, Educação. São
Paulo, Agosto de 1994, p. 181-185.
SILVA, Ana C. da. A discriminação do negro no livro didático. Salvador: CEAO-CED,
1995.
RIBEIRO, Ronilda. Ação educacional na construção do novo imaginário infantil sobre a
África. In: MUNANGA, Kabenguele (org.). Estratégias e políticas de combate
à discriminação racial. São Paulo: EDUSP, 1996.
RICOEUR, P. A região dos filósofos: leituras 2. São Paulo: Loyola, 1996.
ROCHA, Everaldo. O que é etnocentrismo, São Paulo, Brasiliense, 1993.
ROSEMBERG, Fúlvia. Discriminações étnicos-raciais na literatura infanto-juvenil
brasileira. São Paulo: Rev. Brasileira de Biblioteconomia, 1979.
________. Análise dos modelos culturais na literatura infanto-juvenil brasileira. São
Paulo: Fundação Carlos Chagas, 1980.
________. Literatura e ideologia. São Paulo: Global,1985.
SOUSA, A. Lisboa de. A personagem negra na literatura infantil juvenil: rompendo
estereótipos. In: CAVALLEIRO, Eliane (org.) Racismo e anti –racismo na educação:
repensando nossa escola., Summus, 2001, São Paulo.
TEIXEIRA, Maria C. S. Imaginário e Cultura: a organização do real. In: TEIXEIRA,
M. Cecília S. e PORTO, M. do Rosário S. Imaginário, Cultura e Educação. São Paulo:
Plêiade, 1999.
ZILBERMAN, R. e MAGALHÃES, Lígia C. Literatura infantil: autoritarismo e
emancipação. São Paulo: Ática, 1987.

91
Última parte: Alteridade e multiculturalismo - perspectivas para
a educação

PERSPECTIVA EDUCACIONAL DA CIDADANIA E


MULTICULTURALISMO

Wilson do Nascimento Barbosa*

Introdução

O descaso com que as chamadas autoridades brasileiras - com raras exceções -


sempre trataram o problema da educação e da instrução pública revela a ausência de
humanismo, de sentimento nacional, a falta de aprumo próprios de uma elite colonial.
País desenvolvido através da escravidão, a insensibilidade e o racismo ainda são as
notas características da absoluta maioria dos brasileiros instruídos, particularmente
daqueles portadores de curso superior. Estes traços negativos só podem ser infundidos
através de um sistema de valores totalmente deturpado, da ausência de treinamento em
racionalidade e de profundo desprezo pelo caráter do conhecimento cientifico. Este é o
ambiente que resultou da escravidão.
A estratégia favorita para discriminar a maioria da população por parte das elites,
é alegar, de uma ou outra forma, que elas preservam a civilização européia, enquanto a
maioria, de origem africana, aborígene ou formada por mestiços, representa a barbárie.
Assim, foi possível às elites dirigentes, até a Constituição de 1988, impedir, por
exemplo, o voto dos analfabetos. Ora, em 1889, os analfabetos eram a maioria da
população e, hoje, ainda constituem uns trinta por cento. Temos, assim, um caso
tipicamente colonial de cidadania negada, de apartheid, fortalecido pela hipocrisia,
tipicamente mediterrânea e latina, de praticar o racismo e evitar a adoção explicita de
leis racistas.
Não é exagero dizer que o Brasil parece-se muito com o III Reich ou com a África
do Sul pré-Mandela. No entanto, uma vez que o Estado brasileiro é esquizofrênico, sua
prática social é ignorada em suas teorias, em sua cultura oficial, expressando-se esta
como um discurso europeu.

Cidadania e guerra civil disfarçada

A cidadania negada implica dizer que os direitos, inscritos na Constituição de


1988, foram adotados apenas "para inglês ver". No dia seguinte da adoção de uma nova
carta constitucional, os setores empresariais e os partidos da ordem, em uníssono,
iniciaram uma campanha de mídia para destruir e desmoralizar a dita Constituição. Cem
anos depois do término da escravatura, foram inscritos direitos trabalhistas e humanos
para os cidadãos brasileiros, que ficaram em suspense, sob a cínica alegação de que
princípios constitucionais devem antes ser regulamentados, para, posteriormente, serem
praticados.

*
Professor do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

92
Ao mesmo tempo, a guerra civil desencadeada pelas elites contra a população
comum avançava para novos patamares. Na área rural, os conflitos pela terra matam
mais de uma pessoa por dia. Nas grandes cidades, uma policia ineficiente acoberta o
crime organizado, ao mesmo tempo em que participa do massacre da população civil.
No ano passado, só em São Paulo, mais de doze mil pessoas sofreram morte violenta,
cerca de cinqüenta mil para todo o país. O descalabro é de tal ordem, que as Nações
Unidas ou a OTAN, se fosse de seu interesse, poderiam ocupar o território, por efetiva
ausência de governo local, no melhor "estilo Kosovo"...
Qual a perspectiva educacional de uma cidadania, cuja condição cidadã lhe é
negada? A pergunta é difícil de responder. A inconsciência da população comum
chegou a uma situação perigosa, em que não consegue distinguir os seus próprios
interesses. O desprezo que as autoridades manifestam pela rede escolar - transformada
em simples reduto de caça eleitoral.- chega, não raro, a ser coadjuvada por parte de
alunos, que se manifestam em atos de vandalismo, tráfico de drogas, tolerância ao crime
etc., nas próprias escolas.
Por outro lado, se julgarmos pela combinação de métodos autoritários, má
aplicação de verbas, tolerância ao crime etc., utilizados pelo sistema oficial, seremos
obrigados a reconhecer um projeto racista e anti-nacional na base da política pública de
educação. Todo aquele que conhece a História pode reconhecer nas práticas vigentes do
poder um conteúdo de neocolonização, uma política de destruição nacional, de
inspiração externa e, até mesmo, Nazi. Nessas condições, como poderiam tais elementos
reforçar a cidadania ou as políticas de dignificação da maioria dos brasileiros?
O problema da perspectiva educacional para os brasileiros não pode ser entendido
desmascarar as estratégias de imiseração que são produzidas nas metrópoles e que
reservam ao Brasil um papel crescentemente subalterno, como uma espécie de espaço
geográfico politicamente vazio, que possa ser preenchido por excessos de população das
metrópoles ou esvaziado, a custo quase zero, de suas riquezas naturais. Tais estratégias
são apoiadas pela minoria étnica de origem européia que reside no Brasil. Esta minoria
étnica, praticamente, confunde-se com as elites do país. Daí que nada no Brasil
funciona. A absoluta maioria dos brasileiros não é cidadã e, talvez, jamais o seja. O
próprio discurso sobre a cidadania foi virado contra o povo, amesquinhado em metas
insignificantes e que escondem todas as questões importantes do poder e da riqueza.
Diante desse cenário efetivo de cidadania negada, desenvolve-se a guerra civil
mais ou menos oculta, que visa amedrontar a população, impedir-lhe a iniciativa,
bloqueá-la culturalmente e mantê-la presa dentro dos barracos, assistindo a TV. Para a
maioria da população, o país é apenas uma enorme senzala, em que as grilhetas do
medo, das balas perdidas, dos tiroteios aprisiona mais e pior que os antigos capitães do
mato. O brasileiro continua sendo simples gado de trabalho. Como é possível acreditar
que empresas conhecidas pelo nome na imprensa continuem devorando o orçamento
público em diferentes governos, com diferentes partidos? Trata-se de um projeto,
reforçado de fora para dentro, em que o país assume um papel desejado no exterior.
Infelizmente, esse papel inviabiliza os verdadeiros brasileiros para a condição de
cidadãos.
A base racista da ação do Estado, no Brasil, serve exclusivamente à cultura
metropolitana daquilo que se convencionou não mais chamar "raça branca". No entanto,
é disso que se trata. O Estado brasileiro é medularmente racista, anti-negro e anti-
indígena, razão pela qual, etnicamente, não pode representar a maioria da população.
Ainda que seus dirigentes aparentem não estar conscientes disso. Ao elaborar toda a sua
política geral e, conseqüentemente, educacional, o Estado brasileiro finge ignorar que a
maioria da população é de negros, indígenas e seus mestiços. Portanto, ao representar

93
uma etnia minoritária no país e ao, deliberadamente, ignorar o caráter necessariamente
multicultural da população, o Estado deve negar a cidadania da maioria, de uma forma
ou de outra. Qual seria o caminho para minorar tão grave problema? Certamente, a
aceitação do caráter racista do Estado e a adoção de estratégias multiculturais, que já
vem sendo aplicadas em outros países, para propiciar um desenvolvimento mais
democrático da sociedade.
Enquanto os responsáveis pela ação pública brincarem de cabra-cega ou de
esconde-esconde com a verdade, não será possível abrir-se uma visão realmente
saneadora da atividade governamental. A adoção de estratégias anti-racistas só pode ser
obtida dentro de uma visão multicultural. O Estado brasileiro baseia sua ação em duas
premissas do Império e da República Velha, infelizmente restauradas pelo movimento
de 1964: (a) existe uma etnia e uma cultura superior no país, de base européia e
detentora da civilização; (b) existem outros elementos, inferiores e detentores da
barbárie.
Enquanto esta maneira de pensar, representada pelas estratégias assimilacionistas,
persistir, não poderá haver um movimento solidário na sociedade, baseado nas
estratégias multiculturalistas e anti-racistas. A duplicidade da prática institucional não
deixa dúvida quanta ao caráter das estratégias assimilacionistas ainda em vigor. O
discurso na mídia, a propaganda televisiva de um suposto brasileiro intermédio,
mestiço, sem educação formal e bem sucedido revela o dedo oficial e preconceituoso
das verdadeiras políticas normativas.
Todas as dificuldades e problemas sócio-econômicos e étnicos do país são
atribuídos à maioria, um setor, supostamente, de inferioridade biológica, que hoje, no
discurso oficial, é disfarçado como inferioridade cultural, capaz de expressar a barbárie.

Perspectiva educacional e multiculturalismo

Em parte como resultado da Conferência de Medelín e do Vaticano II, em parte


como resultado da chamada Teologia da Libertação, a Igreja Católica, através de seus
bispos, vem fazendo um esforço para romper com a velha hipocrisia, sua estratégia de
dominação de fundo racista. Como instrumentos deste processo de mudança, setores da
Igreja têm publicamente rejeitado um passado de exploração e práticas racistas, atitude
indispensável para mudar a própria consciência social e permitir elaborar estratégias
multiculturais, democráticas e anti-racistas, de promoção do ser humano. Este fenômeno
faz desses setores mais democráticos da Igreja importantes aliados na luta pela
organização das diferentes comunidades, na defesa e ampliação dos seus direitos, do
direito à vida, ao emprego, à educação e à moradia.
Também o Movimento Negro, nos anos 80, apresentou, em diferentes momentos,
suas propostas, que podem servir de base à elaboração de uma metodologia especifica
para o trabalho educacional multiculturalista, sob a forma de estratégias anti-racistas.
Podemos resumi-las assim, conforme nos apresenta Pierini (1990:157-8):
As propostas que apareceram no Movimento Negro nos anos 80, com relação a
estratégias anti-racistas incluíam:
a) elaboração de políticas básicas para programas culturais e educativos
públicos a partir de sugestões de instituições e organizações dos interessados
(no caso os negros);
b) reconhecimento da prática da capoeira como prática de ginástica nacional e
sua adoção nas redes de educação;
c) grande número de proposições concretas para obtenção de políticas culturais
pluralistas de criação de organismos de tipo democrático a nível federal,

94
estadual e municipal para coordenar e elaborar políticas de interesse da
comunidade negra;
d) exigência de posicionamento pluralista para ser funcionário público em
programas comunitários;
e) atribuição de funções administrativas a representantes de diferentes
comunidades étnicas, setores excluídos, etc., com base na indicação dos órgãos
representativos dessas comunidades;
f)adoção do principio de uma representação independente para cada comunidade
sem mistura ou cruzamento de representações;
g) estabelecimento de organismos de aconselhamento étnico, com representantes
da comunidade em todos os níveis do sistema educativo;
h) participação de representantes da comunidade na elaboração das políticas
culturais e educacionais nos três níveis (federal, estadual e municipal).
Eis alguns dos pontos programáticos que servem de base às estratégias
anti-racistas elaboradas pelo Movimento Negro nos anos 80 que podem, no
que se aplica à escola, constituir uma base de partida para o pluralismo.
A mesma autora caracteriza o fracasso do assimilacionismo e a importância da
adoção de estratégias multiculturais:
Recordem-se os objetivos verdadeiros, porque ocultos, da escola unicultural: (a)
formar uma minoria, com homogeneidade cultural ocidental; (b) justificar
ideologicamente o fracasso escolar e, em parte, existencial - da maioria; (c)
inculcar o 'status quo' como norma. Percebe-se que a situação existente deixa
transparecer o fracasso da estratégia (c) a saber, a aceitação do vigente como
norma.
A profunda ruptura que pode ser percebida entre o autoritarismo das classes
dominantes com relação à população comum, e a indulgência para consigo mesma
é o elemento explicativo da tendência à anomia. As pessoas comuns já encaram a
dominação com cinismo, o que inviabiliza as prestidigitações dos dominadores.
No entanto a desmoralização do sistema não precisa ser compreendida como a
derrocada do mesmo. O impasse pode-se estender por um longo período histórico,
com um verdadeiro caos societário.
O mito da ascensão social tem na escola um de seus mais poderosos mediadores.
Se os pais das classes trabalhadoras ou excluídas confiarem que através da escola
seus filhos via adquirir paridade e poder com as classes dominantes, então eles
incutirão em suas crianças a crença na ascensão pela via escolar. (op.cit.:113)
Ou seja, o caos instala-se na sociedade, nas condições das estratégias
assimilacionistas, com a escola deixando de se constituir num ambiente de projetos
sociais, familiares ou individuais. Portanto, pode-se concluir que a perspectiva
educacional está cada vez mais entendida como a aceitação do caráter múltiplo, cultural
e étnico da sociedade brasileira. Elaborar uma estratégia educacional deve partir dessa
premissa, e não evitá-la.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

PIERINI, Rita de Cássia S. Racismo e Sala de Aula no Município de São Paulo. O Caso
da Comunidade Negra no Antigo Curso Primário - Zona Norte: 1970-1990.
Dissertação de Mestrado. São Paulo: Departamento de História, FFLCH-USP,
1998.
BARBOSA, Wilson do Nascimento e SANTOS, Joel Rufino dos. Atrás do Muro da
Noite. Brasília: Fundação Cultural Palmares/MEC, 1994.

95
OLIVEIRA, Marcos F. Martins de e RODRIGUES, Luciene (org.). Capitalismo.
da Gênese à Crise Atual. Montes Claros: Unimontes, 1999.

96
O IMPACTO DO DIFERENTE: REFLEXÕES SOBRE A ESCOLA E A
DIVERSIDADE CULTURAL

Nilma Lino Gomes*

O impacto do diferente

Belo Horizonte é uma cidade especial. Um ar de metrópole misturado com um


clima provinciano. Um povo alegre e, ao mesmo tempo, desconfiado. Uma cidade nova,
foco de investimentos industriais e empresariais. De 3 a 6 de dezembro de 1999, Belo
Horizonte assistiu a um novo e diferente evento que causou um certo movimento no
cotidiano da capital: a primeira Feira Étnica BH 99. O evento, embora não tenha sido
recorde de público, movimentou a opinião pública. Os cartazes espalhados pela cidade
traziam o retrato de um homem negro, com cabelos longos e crespos e uma menina
loura de cabelos encaracolados. Ambos sorriam e a menina, no colo de seus
companheiros, abraçava-os. A feira teve como objetivo apresentar o melhor em
produtos étnicos em um só lugar. Beleza, cultura, estilo, serviços, arte, desfiles de moda
afro, música, tudo isso pôde ser visto no mesmo espaço.
Antes e durante a realização desse evento, fui abordada inúmeras vezes por
amigos, familiares e curiosos, que chamaram a minha atenção para esse acontecimento
“estranho” e, por que não dizer, “exótico”, no cenário belorizontino. Algumas pessoas
ficaram satisfeitas pela visibilidade dada à população negra, outras pela construção de
uma imagem positiva do negro e houve até aquelas que afirmaram que a foto de um
homem negro e uma menina branca unidos e felizes confirmava o fato de que, no Brasil,
não existe racismo. Houve, ainda, um grupo que criticou desde a concepção da feira
étnica até o cartaz espalhado na cidade, acusando os organizadores de racistas.
Não cabem, neste artigo, as múltiplas observações e análises que o evento e as
opiniões populares nos possibilitam. Contudo, diante de tão diferentes e veementes
afirmações, comecei a refletir a respeito das representações sobre o negro, subjacentes
às diversas interpretações partilhadas por essas pessoas tão ciosas das diferenças e, mais
precisamente, da diferença racial. Sem querer entrar no mérito de cada julgamento,
achei muito interessantes as diversas reações e interpretações das pessoas sobre a feira.
Tal fato demonstra o quanto a questão racial na sociedade brasileira ainda consegue
incomodar um grande número de pessoas, levando-as a opinarem sobre as diferenças.
Demonstra, também, o quanto o tema das diferentes presenças na sociedade brasileira e,
dentre estas, a do segmento negro, ainda consegue mexer com a nossa tão propalada
identidade nacional. Por que será que, diante de tantas feiras realizadas em Belo
Horizonte, o acontecimento de uma feira étnica conseguiu incomodar tantas pessoas?
Será que as opiniões positivas sobre o evento provam que as pessoas estão mais
sensíveis em relação às diferenças? Isso prova que o Brasil é um país em que as
diferenças são aceitas e respeitadas? Será, então, que o fato de apregoarmos que a
constituição do povo brasileiro é marcada pela miscigenação, pela pluralidade e pela
diversidade cultural faz do nosso país uma nação inclusiva?

*
Professora do Departamento de Administração Escolar da Faculdade de Educação da UFMG e
doutoranda em Antropologia Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

97
Em suma, a discussão em torno da feira étnica pode ser um exemplo de como a
nossa sociedade relaciona-se com as diferenças étnico-raciais, as quais representam um
dos aspectos da diversidade cultural presente em nosso país.
Porém, a diversidade cultural é muito mais complexa e multifacetada do que
pensamos. Significa muito mais do que a apologia ao aspecto pluriétnico e pluricultural
da nossa sociedade. Refletir sobre a diversidade cultural exige de nós um
posicionamento crítico e político e um olhar mais ampliado que consiga abarcar os seus
múltiplos recortes. Diante de uma realidade cultural e racialmente miscigenada, como é
o caso da sociedade brasileira, essa tarefa torna-se ainda mais desafiadora.
O reconhecimento dos diversos recortes dentro da ampla temática da diversidade
cultural (negros, índios, mulheres, portadores de necessidades especiais, homossexuais,
entre outros) coloca-nos frente a frente com a luta desses e outros grupos em prol do
respeito à diferença. Coloca-nos, também, diante do desafio de implementar políticas
públicas em que a história e a diferença de cada grupo social e cultural sejam
respeitadas dentro das suas especificidades, sem perder o rumo do diálogo, da troca de
experiências e da garantia dos direitos sociais. A luta pelo direito e pelo reconhecimento
das diferenças não pode se dar de forma separada e isolada e nem resultar em práticas
culturais, políticas e pedagógicas solitárias e excludentes.
Ao considerarmos as especificidades que compõem a diversidade cultural e os
caminhos que precisam ser trilhados para a construção do diálogo e para a garantia da
cidadania a todos, não podemos nos esquecer de uma instituição muito importante em
nossa sociedade: a escola.
A função social e política da escola é muito mais do que escolher a metodologia
eficaz para a transmissão dos conhecimentos historicamente acumulados ou preparar as
novas gerações para serem inseridas no mercado de trabalho e/ou aprovadas no
vestibular. Quando a escola e os/as educadores/as conseguirem superar essa visão,
ambos compreenderão que a racionalidade científica é importante para os processos
formativos e informativos, porém, ela não modifica por si só o imaginário e as
representações coletivas negativas que se construíram sobre os ditos diferentes em nossa
sociedade. Nesse sentido, a educação escolar, embora não possa resolver sozinha todas
essas questões, ocupa um lugar de destaque em nossa sociedade e na discussão sobre a
diversidade cultural (Munanga, 1999).
Se concordamos e, até mesmo, orgulhamo-nos do aspecto pluricultural da
sociedade brasileira, o nosso projeto de democracia não poderá se eximir da
responsabilidade de criar, de fato, condições em que a diversidade do nosso povo seja
respeitada. A escola é um dos espaços socioculturais em que as diferentes presenças se
encontram. Mas, será que essas diferenças são tratadas de maneira adequada? Será que a
garantia da educação escolar como um direito social possibilita a inclusão dos ditos
diferentes? Por isso, a reflexão sobre as diferentes presenças na escola e na sociedade
brasileira deve fazer parte da formação e da prática de todos/as os/as educadores/as e
daqueles que se interessam pelos mais diversos tipos de processos educativos.

Refletindo sobre a diversidade

Ao consultarmos o dicionário à procura da definição da palavra DIVERSIDADE,


vamos encontrar diferença, dessemelhança. Isso pode levar-nos a pensar que a
diversidade diz respeito, somente, aos sinais que podem ser vistos a olho nu. Se
ampliarmos, porém, a nossa visão sobre as diferenças e dermos a elas um trato cultural e
político, poderemos entendê-las de duas formas:
1) as diferenças podem ser empiricamente observáveis;

98
2) as diferenças podem ser construídas ao longo do processo histórico, nas
relações sociais e nas relações de poder. Muitas vezes, os grupos humanos tornam
o outro diferente para fazê-lo inimigo, para dominá-lo.
Por isso, falar sobre a diversidade cultural não diz respeito apenas ao
reconhecimento do outro. Significa pensar a relação entre o eu e o outro. Aí está o
encantamento da discussão sobre a diversidade. Ao considerarmos o outro, o diferente,
não deixamos de focar a atenção sobre o nosso grupo, a nossa história, o nosso povo; ou
seja, falamos o tempo inteiro em semelhanças e diferenças.
Sendo assim, ao considerarmos alguém ou alguma coisa diferente, estamos
sempre partindo de uma comparação. E não é qualquer comparação. Geralmente,
partimos de um padrão ou de uma norma vigente no nosso grupo cultural ou que esteja
próximo da nossa visão de mundo. Esse padrão pode ser de comportamento, de
inteligência, de esperteza, de beleza, de cultura, de linguagem, de classe social, de raça,
de gênero, de idade...
Por isso, a discussão a respeito da diversidade cultural não pode ficar restrita à
análise de um determinado comportamento ou de uma resposta individual. Ela precisa
incluir e abranger uma discussão política. Por quê? Porque ela diz respeito às relações
estabelecidas entre os grupos humanos e, por isso mesmo, não está fora das relações de
poder. Ela diz respeito aos padrões e aos valores que regulam essas relações.

De onde vem a discussão sobre a diversidade?

Essa é uma pergunta que tenho escutado de forma recorrente durante as palestras e
cursos que venho ministrando aos/às educadores/as. Algumas vezes, os/as
professores/as me dizem: - Pois é, professora... Agora que a diversidade cultural
chegou à escola, não sabemos o que vamos fazer com ela.
Essa afirmação já demonstra, por si só, o quanto o campo da educação ainda
precisa avançar e compreender melhor o que significa a diversidade cultural. É verdade
que a partir dos anos 90 a questão das diferenças vem ocupando um outro lugar no
discurso pedagógico. Cada vez mais, a escola é impelida a ressignificar sua prática
pedagógica, de acordo com as profundas mudanças ocorridas nos últimos anos. A
educação escolar está sendo chamada a superar uma visão psicologizante estreita que
ainda faz parte da cultura da escola e que acaba delineando perfis idealizados de aluno/a
e professor/a. A Pedagogia e a escola têm sido desafiadas a incorporarem os avanços da
própria psicologia e de outras áreas das ciências humanas. Os/as educadores/as, aos
poucos, têm compreendido melhor que o estabelecimento de padrões culturais,
cognitivos e sociais acaba contribuindo muito mais com a produção da exclusão, do que
com a garantia de uma educação escolar democrática, inclusiva e de qualidade.
Isso não quer dizer que é só a partir desse movimento no campo da educação que
a escola passou a conviver com a diversidade cultural. Esse é um dos perigos de se
pensar a diversidade cultural como um tema transversal. Muito mais do que um tema ou
um conteúdo a ser incluído no currículo, a diversidade cultural é um componente do
humano. Ela é constituinte da nossa formação humana. Somos sujeitos sociais,
históricos, culturais e, por isso mesmo, diferentes.
No caso da escola, a pergunta não deveria ser o que faremos com a diversidade
mas, sim, o que temos feito com as diferentes presenças existentes na escola e na
sociedade. Qual é o trato pedagógico que a escola tem dado às diferenças?
Um outro equívoco é pensar que a luta pelo reconhecimento da diferença é algo
próprio desse final de século. É fato que a globalização, as políticas neoliberais, o
ressurgimento dos nacionalismos recolocam a questão da diversidade em outros termos.

99
Contudo, é importante ponderar que a luta pelo direito às diferenças sempre esteve
presente na história da humanidade e sempre esteve relacionada com a luta dos grupos e
movimentos que colocaram e continuam colocando em xeque um determinado tipo de
poder, a imposição de um determinado padrão de homem, de política, de religião, de
arte, de cultura. Também, sempre esteve próxima às diferentes respostas do poder em
relação às demandas dos ditos diferentes. Respostas que, muitas vezes, resultaram em
formas violentas e excludentes de se tratar o outro: colonização, inquisição, cruzadas,
escravidão, nazismo etc.
Assim, a diversidade está colocada, para a educação, como um dado social ao
longo de nossa história. Entendê-la é dialogar com outros tempos e com múltiplos
espaços em que nos humanizamos: a família, o trabalho, a escola, o lazer, os círculos de
amizade, a história de vida de cada um. Respeitá-la é reivindicar o respeito à diferença
como um componente importante e necessário da luta dos/as profissionais da educação.
Nesse sentido, refletir sobre a escola e a diversidade cultural significa reconhecer
as diferenças, respeitá-las, aceitá-las e colocá-las na pauta das nossas reivindicações, no
cerne do processo educativo. Esse reconhecimento não é algo fácil e romântico. Nem
sempre o diferente nos encanta. Muitas vezes, ele nos assusta, desafia- nos, faz-nos
olhar para a nossa própria história, leva-nos a passar em revista as nossas ações, opções
políticas e individuais e os nossos valores. Reconhecer as diferenças implica romper
com preconceitos, superar as velhas opiniões formadas sem reflexão, sem o menor
contato com a realidade do outro. Infelizmente, ainda encontramos opiniões do tipo
“não vi e não gostei”. Como a diversidade é vista nessa perspectiva?
Essas afirmações não significam uma apologia às diferenças e uma negação das
semelhanças existentes entre os grupos humanos. Os homens e as mulheres, sem
exceção, possuem aproximações e distanciamentos. Aproximam-se no que se refere ao
uso da linguagem, à adoção de técnicas, à produção artística e criativa, à construção de
crenças, à necessidade de estabelecer uma organização social e política, à elaboração de
regras e sanções. Todavia, essas aproximações ou semelhanças dão-se das maneiras
mais diversas, pois não são as mesmas para todo grupo social. A existência de
semelhanças, valores universais e pontos comuns que aproximam os diferentes grupos
humanos não pode conduzir a uma interpretação da experiência humana como algo
invariável. O acontecer humano faz-se múltiplo, mutável, imprevisível, fragmentado.
Essa é uma discussão sobre a diversidade cultural que precisa estar presente na escola.
A originalidade de cada cultura reside na maneira particular como os grupos
sociais resolvem os seus problemas, ao mesmo tempo em que se aproximam de valores
que são comuns a todos os homens e a todas as mulheres. Todavia, o fato de possuirmos
valores comuns não nos torna idênticos, pois continuamos a ter uma maneira própria de
agrupar e excluir diferentes elementos culturais. Cada construção cultural e social
possui uma dinâmica própria, escolhas diferentes e múltiplos caminhos a serem
trilhados. A escola e os/as educadores/as deveriam ter como tarefas descobrir os
motivos dessas diversas escolhas, entendê-los e analisá-los à luz de uma reflexão colada
aos processos históricos e sociais da humanidade.
Uma visão e uma prática pedagógica que enxerguem o outro nas suas
semelhanças e diferenças não condizem com práticas discriminatórias, nem com a
crença em um padrão único de comportamento, de ritmo, de aprendizagem e de
experiência. A idéia de padronização dá margem ao entendimento das diferenças como
desvio, patologia, anormalidade, deficiência, defasagem, desigualdade. O trato desigual
das diferenças produz práticas intolerantes, arrogantes e autoritárias. E essa postura está
longe do tipo de educação que os/as profissionais de educação vêm defendendo ao
longo dos anos.

100
A escola possui a vantagem de ser uma das instituições sociais em que é possível
o encontro das diferentes presenças. Ela é, também, um espaço sócio-cultural marcado
por símbolos, rituais, crenças, culturas e valores diversos. Essas possibilidades do
espaço educativo escolar precisam ser vistas na sua riqueza, no seu fascínio. Sendo
assim, a questão da diversidade cultural na escola deveria ser considerada no que de
mais fascinante ela proporciona às relações humanas.
Os/as educadores/as são, também, profissionais da cultura, e não de um padrão
único de aluno, de currículo, de conteúdo, de práticas pedagógicas, de atividades
escolares. Todos/as, sem exceção, diferem em raça/etnia, nacionalidade, sexo, idade,
gênero, crenças, classe. Todas essas diferenças estão presentes na relação
professor/aluno e entre os próprios educadores. Nesse sentido, podemos afirmar que a
reflexão sobre a diversidade cultural conduz-nos a repensar o papel do/a professor/a.
O trato pedagógico da diversidade é algo complexo. Ele exige o reconhecimento
da diferença e, ao mesmo tempo, o estabelecimento de padrões de respeito, de ética e a
garantia dos direitos sociais. Avançar na construção de práticas educativas que
contemplem o uno e o múltiplo significa romper com a idéia de homogeneidade e de
uniformização que ainda impera no campo educacional. Representa entender a educação
para além do seu aspecto institucional e compreendê-la dentro do processo de
desenvolvimento humano. Isso nos coloca diante dos diversos espaços sociais em que o
fazer educativo acontece e convida-nos a extrapolar os muros da escola e a ressignificar
a prática educativa, a relação com o conhecimento, o currículo e a comunidade escolar;
coloca-nos, também, diante do desafio da mudança de valores, lógicas e representações
sobre o outro, principalmente, aqueles que fazem parte dos grupos historicamente
excluídos da sociedade.
Educar para a diversidade é fazer das diferenças um trunfo, explorá-las na sua
riqueza, possibilitar a troca, proceder como grupo, entender que o acontecer humano é
feito de avanços e limites. E que a busca do novo, do diverso, que impulsiona a nossa
vida deve nos orientar para a adoção de práticas pedagógicas, sociais e políticas em que
as diferenças sejam entendidas como parte de nossa vivência, e não como algo exótico
ou como desvio ou desvantagem.
A consciência da diversidade cultural, entretanto, não é acompanhada, somente,
de uma visão positiva sobre as particularidades culturais. Por mais que ela seja um
componente da nossa formação humana, que imprime marcas profundas na nossa vida
cotidiana, nos últimos anos, temos observado uma maior proximidade entre grupos
sociais e culturais portadores de distintos modos de ser, de ver e de existir. Seja devido
ao processo de globalização ou pelas migrações, ou mesmo pela fuga dos conflitos
armados, esse movimento tem alterado a consciência da diversidade e colocado a
humanidade diante de impasses políticos, éticos e teóricos de difícil equacionamento.
Como não cair em um relativismo exacerbado? Como respeitar as diferenças e, ao
mesmo tempo, intervir em situações e práticas culturais que ferem os direitos humanos?
Como a humanidade, permeada por tantos interesses e pelo jogo de poder, poderá
equacionar essa situação?
Respeitar a diversidade cultural não se restringe ao elogio às diferenças. Significa
uma reflexão mais densa sobre as particularidades dos grupos sociais. Representa a
adoção de políticas públicas que contemplem o diverso. Tal conduta, certamente,
resultará em uma mudança nas relações de poder, na redefinição de escolhas e no
estabelecimento de uma verdadeira democracia.

101
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAYRELL, Juarez (Org.). Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte:
UFMG, 1996.
GOMES, Nilma L. A mulher negra que vi de perto; o processo de construção da
identidade racial de professoras negras. Belo Horizonte: Mazza, 1995.
GONÇALVES e SILVA. Petronilha B. Prática do racismo e formação dos professores.
In: DAYREL, Juarez (org.) Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo
Horizonte: UFMG, 1996, p.168-178.
GUSMÃO, Neusa M.M. de. Antropologia e educação: origens de um diálogo. In:
Cadernos Cedes, Campinas, nº 43, p. 8-25,1997.
LIMA, Elisa S. Estudos acelerados - alternativa temporária ou política educacional
competente? In: Encontro nacional sobre estudos de aceleração no ensino
fundamental. Brasília, p.79-90,1997.
MUNANGA, Kabengele. (Org.) Superando o racismo na escola. Brasília:
MEC/Secretaria de Educação Fundamental, 1999.

102
AÇÕES AFIRMATIVAS: A SAÍDA CONJUNTURAL PARA OS NEGROS NA
EDUCAÇÃO

Petronio José Domingues*

Na primeira parte deste artigo, em breves notas, buscarei fazer um balanço do


curso pré-vestibular – para negros e mestiços, sobretudo – do Núcleo de Consciência
Negra (NCN) na Universidade de São Paulo (USP). Trata-se de projeto pioneiro no
Estado de São Paulo1. Pretendo entender de que maneira um projeto educacional,
gestado no bojo das políticas de ações afirmativas, pode contribuir para minimizar a
desigualdade racial e, por conseguinte, aumentar o número de negros e mestiços na
universidade2. Além disso, nessa reflexão, avaliarei em que medida a disciplina
Cidadania e Consciência Negra (CCN), que integra a grade curricular do curso, pode
servir de referência para futuras mudanças curriculares nos programas curriculares do
sistema oficial de ensino. Em um segundo momento, mostrarei a necessidade de
aprovação de um programa de cotas para negros nas universidades públicas.

Curso Pré-Vestibular do Núcleo de Consciência Negra na USP: um balanço do


primeiro projeto de ação afirmativa na área da educação implementado em São
Paulo.

Nos últimos anos, diversas pesquisas comprovaram que o negro leva desvantagem
em relação ao branco no sistema educacional, em todos os indicadores analisados.
Fúlvia Rosemberg, em “Segregação Espacial na Escola Paulista”, constatou que: o
estudante negro paulista freqüenta quase que exclusivamente a escola pública;
proporcionalmente, um número maior de negros freqüenta o curso noturno e, do ponto
de vista do rendimento, alunos negros freqüentam escolas que oferecem cursos
provendo menor tempo de aulas diárias. Como a própria autora admite: ... a impressão
que se tem é que toda vez que o sistema de ensino propicia uma diferenciação de
qualidade, nas piores soluções encontramos uma maior proporção de alunos negros
(1990:103).
Em outro estudo, a mesma pesquisadora (1986) verificou que a taxa de
escolarização de negros é inferior à dos brancos; os negros apresentam uma
porcentagem maior de crianças em atraso escolar; uma maior concentração de alunos
negros freqüentam as escolas que oferecem cursos com menor número de horas de aula.
Todas essas desvantagens alimentam o ciclo vicioso negativo do negro no sistema de
ensino.
Analisando as informações sobre a educação da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílio (PNAD), Hasembalg e Silva (1990:88) constataram que a estrutura da

*
Doutorando em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo (FFLCH-USP) e ex-Coordenador Executivo do Núcleo de Consciência Negra na USP.
1
Algumas das reflexões deste artigo foram inspiradas no meu projeto de pesquisa "Curso Pré-Vestibular
do Núcleo de Consciência Negra na USP: um balanço do primeiro projeto de ação afirmativa na área da
educação implementada em São Paulo". São Paulo, mimeo., 1998.
2
Apesar de a USP possuir aproximadamente 50 mil alunos em todas as suas unidades, apenas 1% desse
total, ou seja, 500 alunos são negros. Para denunciar essa situação e apontar saídas, ainda que precárias, o
NCN resolveu colocar em prática o seu projeto de cursinho pré-vestibular voltado para negros e mestiços,
desde 1994. Esses dados estimativos foram apurados pelo NCN em 1992.

103
educação brasileira é desfavorável ao negro, tendo em vista, entre outros indicadores, o
ingresso na rede de ensino, progressão, atraso escolar, repetência e evasão.
Diante desse quadro totalmente perverso, é fundamental a mobilização no
sentido de se pensar em mecanismos que acenem saídas para o drama do negro no
momento de ingresso no ensino superior. Daí a importância de se avaliar o pré-
vestibular do NCN, projeto que se credencia como uma das alternativas correcionais à
gritante desigualdade racial na área da educação.
O curso pré-vestibular do NCN visa atender a população negra,
preferencialmente, e a carente não-negra, que não têm condições financeiras para
sustentar seus estudos preparatórios para o vestibular nos “cursinhos” comerciais. A
seleção de ingresso acontece no início (turma de extensivo) e no meio do ano (turma de
semi-intensivo) em duas etapas: primeiro, uma prova de conhecimentos gerais mais
redação, com caráter eliminatório; e, na segunda etapa, uma entrevista para avaliação
sócio-econômica do candidato.
Atualmente, a turma inicia-se com 140 alunos, dos quais, no mínimo, 70% são
negros ou mestiços. As aulas acontecem de segunda à sexta-feira, no período noturno, e
aos sábados, no período matutino. As aulas realizam-se em módulos duplos
(dobradinhas), durante a semana; aos sábados, funciona o laboratório de redação e
palestras são ministradas por convidados do movimento negro ou professores da USP
para debater questões raciais e sociais de um modo geral, no espaço de uma disciplina
que integra o currículo, denominada Cidadania e Consciência Negra (CCN).
Quanto à referida disciplina, o seu objetivo é
... além de responder às expectativas de informação e formação da clientela a ser
atingida, em termos de consciência e cidadania, pretende também sistematizar
uma experiência didático-pedagógica capaz de alinhar um conteúdo específico
que atenda e preencha os vazios curriculares, não satisfeitos no 1 º e 2º graus (atual
ensino fundamental e médio). (Santos, 1994:2)
As aulas são ministradas por professores, em sua maioria formados ou pós-
graduandos da USP, que recebem um salário correspondente ao valor vigente no
mercado das horas/aulas. Alunos da universidade, de forma voluntária, dão monitoria
nos plantões de dúvida. O cursinho tem dois coordenadores, que dão plena orientação
didático-pedagógica a professores e alunos.
Embora funcionando na sede do NCN, que fica no interior do campus da
universidade, o curso, bem como a entidade, não mantém vínculo com a USP. No
entanto, é importante salientar que a reitoria contribuiu para a implantação e
funcionamento do cursinho, possibilitando o uso de sua infra-estrutura, tais como: salas
de aula, mesas, cadeiras etc.
No Brasil, os debates sobre políticas afirmativas em benefício da população negra
se ampliam e têm se constituído em uma das alternativas táticas para a promoção das
igualdades raciais na sociedade brasileira.
A política de ação afirmativa é denominação geral de uma ampla rede de
programas destinados a superar os efeitos da discriminação passada e, assim, promover
oportunidades para grupos que foram historicamente discriminados de forma negativa.
Em outras palavras, ações afirmativas em benefício da comunidade negra são políticas
que visam minimizar a gritante desigualdade racial, através de mecanismos que
compensem a desvantagem que o negro tem em relação ao grupo racial dominante.
No terreno educacional, diversas são as políticas que estão no bojo da construção
da igualdade tão almejada pelos negros, dentre as quais destacaria: a inclusão de
conteúdos afro-brasileiros nos currículos escolares; a tendência de democratização
racial dos recursos e livros didáticos; a formação de educadores e especialistas dos

104
sistemas de ensino para acompanhar, compreender e avaliar a necessidade de uma
pedagogia multirracial; e, finalmente, o atendimento à população de jovens e adultos
para viabilizar seu ingresso na universidade através de pré-vestibulares para negros e
mestiços.3
Como sustenta Ronald Walters (1997:121):
... a questão é que as ações afirmativas, em conjunto com outros mecanismos, têm
auxiliado não somente na ampliação das oportunidades igualitárias e na
promoção da real inclusão do negro, mas, acima de tudo, elas têm ajudado a criar
uma sociedade mais democrática.4
Agora, farei um sucinto balanço da trajetória do cursinho, para apurar se foi
alcançado o objetivo geral de
... possibilitar o ingresso sistemático de parcela considerável de negros e mestiços
na universidade, alterando o quadro atual e sugerindo um perfil de alunado que
esteja mais próximo da composição étnica brasileira. (Projeto Pedagógico...,
1997:1)
Primeiramente, a disciplina Cidadania e Consciência Negra serve para despertar
uma consciência racial nos alunos e professores, contribuindo para a construção da
identidade de um grupo específico, bem como é possível sustentar que a disciplina, na
medida em que atua como laboratório de atividades extracurriculares, serve de base para
propostas de políticas públicas que atendam às expectativas da população negra. Afinal,
os CCNs, em conformidade com um pensamento racial crítico, revelam um olhar sobre
o Brasil e o mundo que rompe com os grilhões do conhecimento eurocêntrico,
iluminista e positivista.
Segundo, um ambiente étnico de incentivo múltiplo influencia na formação de
uma auto-estima positiva dos alunos negros, de modo que estes se sintam mais
estimulados e, por conseguinte, melhorem o quadro de rendimento no aprendizado. Um
desses indicadores é a constatação de que o índice de aprovação nos vestibulares, nesses
seis anos de vida, vem sendo considerado de razoável a satisfatório. Embora não se
tenha dados estatísticos precisos, é possível assegurar que, aproximadamente, 20% a
40% dos alunos, do universo daqueles que efetivamente se inscrevem, são aprovados
nos vestibulares das universidades públicas 5. Já para as universidades privadas, esses
números elevam-se substancialmente. Assim, verificamos que o cursinho do NCN
aumentou, proporcionalmente, a aprovação de negros e mestiços no vestibular.
Terceiro, apesar de os alunos terem uma visão instrumentalizada do papel do
cursinho, o projeto, em si, serve para introjetar no aluno negro e mestiço a concepção
segundo a qual a educação é uma via de integração no “mundo dos brancos”.
Quarto, o cursinho funciona como mecanismo de reeducação racial do branco, que
cultiva uma estereotipia negativa do negro, dado que a convivência cotidiana em um
grupo multirracial, de maioria absoluta negra, marcado por um clima mais próximo de

3
Sobre esse assunto ver: Políticas compensatórias nas escolas públicas. In: Relatório do 1º Seminário
Nacional de Entidades Negras na Área da Educação. Espírito Santo: CECNEES, 1996; Políticas
compensatórias para negro no contexto educacional. In Anais do Seminário: Políticas Compensatórias:
iniciativas institucionais e não-institucionais. São Paulo: 1996, mimeo; CONCEIÇÃO, Fernando.
Cursinhos Pré-Vestibulares positivos: uma abordagem crítica. São Paulo: 1996, mimeo.
4
Ver também: SKIDMORE, Thomas E. Ação Afirmativa no Brasil? Reflexões de um brasilianista; e
ALFREDO, Antônio Sérgio. A desigualdade que anula a desigualdade: notas sobre a ação afirmativa no
Brasil, ambos em SOUZA, Jessé Souza (org.) Multiculturalismo e Racismo. Brasília: Paralelo 15, 1997.
5
É necessário fazer essa observação, pois, em função do recorte racial e social, muitos alunos não têm
condições de pagar as inscrições dos vestibulares, nem mesmo das universidades públicas.

105
autêntica democracia racial, impele, naturalmente, o branco a fazer uma revisão de
muitos preconceitos anti-negro e a passar a ter uma conduta de respeito à diferença.
Quinto, o cursinho também consiste em um espaço de união, onde os alunos
negros reforçam os laços de pertencimento a um grupo específico, aliás, é o espírito
associativo que move as ações dos negros na luta anti-racista. Nessa perspectiva, o
cursinho pode ser entendido como mais uma estratégia de resistência da comunidade
negra paulistana, frente sua exclusão ou inclusão marginal no ensino superior.
No entanto, se os cursinhos étnicos constituírem um projeto político isolado, isto
é, se não forem implementados no bojo de um programa maior de políticas
compensatórias, a tendência é sua descaracterização, transformando-se em mais um
projeto assistencialista que não coloca em cheque a estrutura vigente de desigualdade de
oportunidades raciais no sistema educacional. Daí, a necessidade de articular o
movimento dos cursinhos étnicos pela luta em prol da tomada de um conjunto de
medidas que garantam a presença do negro na universidade, dentre as quais destaco a
experimentação de um programa de cotas.

Cotas para negros na universidade pública: um mal necessário?6

Este item visa enfatizar a necessidade imperiosa da implementação de ações


afirmativas em benefício da população negra, principalmente, na adoção imediata de um
programa de Cotas. Nos Estados Unidos e no Reino Unido, onde foram implantadas há
mais de vinte anos, as equal opportunity policies também são conhecidas como ação
positiva, discriminação positiva ou políticas compensatórias. Uma das possibilidades,
portanto, das ações afirmativas é o programa de cotas - que hoje constitui uma das
principais reivindicações do movimento negro organizado -, cujo princípio é garantir a
reserva de um percentual de vagas para negros7.
Embora o negro jamais tenha sido beneficiado, o Estado brasileiro já realizou (e
realiza) políticas públicas seguindo o princípio da discriminação positiva. Um exemplo
cabal foi o projeto imigrantista paulista. O Estado de São Paulo favoreceu, entre o
último quartel do XIX e as duas primeiras décadas do século XX, a entrada de
aproximadamente 2,5 milhões de imigrantes brancos europeus, sobretudo italianos,
espanhóis, portugueses e alemães.
Dentro da estratégia de branqueamento, a elite racista paulista empreendeu um
oneroso programa de políticas públicas de privilégio aos imigrantes brancos europeus.
Subvencionava-se a viagem ultramarina, concedia-se hospedagem, doavam-se terras na
perspectiva do povoamento, facilitavam-se créditos agrícolas, empréstimos bancários e
outras desmedidas benesses. Um outro exemplo de discriminação positiva é o Proer,
programa do governo FHC que despendeu mais de R$20 bilhões dos cofres públicos
para socorrer um determinado grupo: os banqueiros falidos.
É importante ressaltar que a política pública de cotas não é inédita nas instituições
do Estado brasileiro. Um exemplo do sistema de cotas é a lei eleitoral que exige de todo
partido político no mínimo 30% de candidatos do sexo feminino, ou seja, mulheres.
Outro caso de cotas é a lei constitucional que assegura a reserva de 5% das vagas de
todo concurso de ingresso ao funcionalismo público para deficientes físicos.
Depois dessas breves considerações, apresentarei quatro razões pelas quais a luta
pelas cotas tem que ser abraçada por todas as pessoas sensíveis à luta anti-racista.
Primeiro, a campanha pelas cotas coloca na ordem do dia a discussão sobre o racismo

6
Este item traz minhas reflexões, presentes em Domingues (1999:8).
7
Uma reflexão sobre as formas de combate ao racismo encontra-se em Munanga (1996); ver também
Guimarães (1999).

106
no Brasil, quebrando a lei do silêncio que há sobre o assunto. Segundo, a simples
avaliação de qualquer projeto de cotas por alguma instituição do Estado serve como
prova e reconhecimento da existência do racismo; desse modo, o projeto de cotas, em si,
denuncia o racismo como fator de exclusão do negro. Terceiro, a política compensatória
de cotas representa o resgate de uma dívida histórica que o Estado brasileiro tem com
todo afro-descendente. Quarto, as cotas significariam uma integração, ainda que parcial,
do negro à sociedade.
Talvez alguns leitores fiquem com a impressão de que encontro nas cotas o único
caminho da “redenção” para a “raça negra”. Antes de qualquer mal-entendido, friso que
a luta por cotas não é um fim em sim mesmo: ela tem que ser concebida como um meio
de ação, uma via que dá visibilidade ao povo negro. Não penso que a política de cotas
seja a solução para a superação do racismo; originalmente, não é essa a sua finalidade.
Nem penso que tais políticas devam ser esposadas de forma isolada. Entendo que a luta
por cotas tem que ser travada em conjunto com a luta pela melhoria da escola pública.
Uma reivindicação não inviabiliza a outra.
Um imediato programa de cotas não afetaria a atual estrutura administrativa das
universidades públicas. Este é o caso, por exemplo, da Universidade de São Paulo
(USP). Em uma pesquisa realizada pelo NAEG (Núcleo de Apoio aos Estudos de
Graduação), daquela universidade, comprovou-se que 10% dos alunos aprovados no
vestibular para o curso de Pedagogia evadem logo após a matrícula, não freqüentando,
em nenhum momento, o curso. Tratam-se de 10% de vagas ociosas desde a primeira
forma de vínculo do aluno com a Universidade. Se o resultado desta pesquisa servir
como indicador de políticas públicas, podemos inferir que 10% a mais das vagas
poderiam ser ocupadas por estudantes negros, sem nenhum tipo de custo adicional para
a universidade.
Em uma pesquisa divulgada pela própria USP, concluiu que o índice médio de
evasão desta universidade, na década de 70 e 80, foi de 40% do número total de vagas e
que a maior parte desta evasão acontece nos quatro primeiros semestres. São índices
estratoféricos, mas que denunciam, a rigor, o universo de vagas que poderiam ser
aproveitadas por estudantes negros.
Além disso, sabemos, mediante uma pesquisa do NAEG, que não há relação
mecânica ou direta entre a nota do candidato no vestibular e seu rendimento no curso.
Ou seja, o aluno que teve a melhor nota no momento estanque do vestibular não será,
necessariamente, o aluno com maior grau de aproveitamento do curso. Nessa
perspectiva, é possível sustentar que o negro - malgrado eventualmente não aufira o
mesmo desempenho no vestibular de um candidato do grupo racial dominante - tem
condições de acompanhar satisfatoriamente o curso escolhido.
Uma falácia propagada pelos refratários à política de cotas é argumentar que um
imediato programa de cotas implicaria num rebaixamento nos níveis de excelência da
Universidade. É um argumento tão infundado quanto preconceituoso. Lembremos que
os africanos que ingressam, por exemplo, na USP, não são submetidos a uma avaliação
pela Universidade; vêm por um sistema de convênio que se estabelece entre as
embaixadas. Saúdo tal iniciativa, no entanto, ninguém questiona os níveis de excelência
dos nossos “irmãos” africanos. É evidente. O potencial deles é equiparado ao de
qualquer outro estudante não-negro brasileiro. Isto mostra que o discurso de excelência
para negros só serve para balizar o ingresso, e não o produto do processo educacional.
O mais grave, entretanto, é que a assertiva que tenta associar o negro ao baixo
nível é preconceituosa. Essa concepção sempre foi a base da ideologia racista: negro é
desqualificado, incapaz e incompetente, até que se prove o contrário. Esse discurso
nefasto vem, de longa data, legitimando o status quo racista a favor do branco,

107
impingindo no imaginário social um estigma ao negro que não corresponde à verdade.
Se habilidade e competência foram os fatores que nortearam a elaboração dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), não tenho dúvida de que o negro atende às
prerrogativas teóricas para acompanhar qualquer curso universitário.
Um outro setor dos detratores de um possível programa de cotas insiste em dizer
que o preconceito não é racial, mas social. Assim, o negro paupérrimo sofre tanto
quanto o branco paupérrimo e que a linha de penúria nivela todos, independente da
ascendência racial. Embora tenham se passado quase 50 anos desde que a UNESCO
encomendou para um grupo de intelectuais em São Paulo - dos quais se destacaram
Roger Bastide e Florestan Fernandes - a mais ampla pesquisa que já surgiu sobre as
relações raciais no país e tenha sido comprovada a existência do racismo enquanto
barreira quase intransponível da integração do negro no "mundo dos brancos", ainda
não se avançou um milímetro na adoção de políticas públicas específicas para modificar
essa situação. Esse é o retrato de um país que silencia e, no limite, banaliza, ou melhor,
futiliza a questão racial.
No entanto, o principal argumento dos refratários ao projeto de cotas é considerá-
lo um sistema de privilégios, que contraria qualquer princípio democrático. Esse
argumento é tão improcedente quanto o discurso que prega que todos nós temos as
mesmas oportunidades na vida. Ora, nos marcos do deletério sistema de racismo à
brasileira, normalmente os privilegiados, independente da classe social, são os brancos.
A possibilidade de um negro chegar ao 2o. grau (atual ensino médio) é a metade
daquela que tem um branco, nas mesmas condições sociais e econômicas (Veja,
28/07/93). O racismo gera dividendos simbólicos, políticos, sociais e econômicos para
os brancos, com ou sem o consentimento do beneficiado.
Segundo as estimativas da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD),
levantamento conduzido pelo IBGE em 1988, apenas 1,2% da população de cor preta e
2,3% dos pardos concluíram o curso superior. O negro leva desvantagem em relação ao
branco desde a mais tenra idade. Quando criança, o negro já começa a ser tratado de
forma inferiorizada em relação ao branco. É a professora que dá mais atenção ao aluno
branco; são os colegas que preferem amizades com brancos; são os brinquedos que
apenas retratam o mundo mágico da criança branca. Ao chegar na adolescência, o negro
começa a ser rejeitado mais explicitamente. Daí sua dificuldade em construir uma
identidade étnica no processo de socialização. Na juventude, percebe que o padrão de
beleza oficial é branco e, no estágio de ingresso em uma universidade, constata que o
vestibular, além do recorte social, também tem um recorte racial. Finalmente, na idade
adulta, o negro observa que o direito à imagem lhe é negado ou que ele é retratado de
forma recalcada. Mais: descobre que a cor da pele de seu grupo racial é um estigma que
vai diminuir suas chances de inserção ao mercado de trabalho e, a médio e longo prazo,
seu próprio sucesso profissional.
Portanto, o privilegiado no nosso pseudoparaíso racial é o branco. O sistema
social está construído à sua imagem e semelhança, a serviço de seus interesses raciais.
Tanto na África do Sul do apartheid, como nos EUA da época do Jim Crown - regime
de segregação institucional anterior às políticas afirmativas iniciadas na década de 60 -,
os negros tinham melhores oportunidades de progredir, educacionalmente do que no
Brasil da "democracia racial". Escolas e universidades específicas chegavam a formar
centenas de médicos, engenheiros e advogados nesses países. Nesse sentido, a
implementação de políticas de cotas permitiria sinalizar pela eliminação da monstruosa
desigualdade de oportunidades educacionais que existe entre negros e brancos,
garantindo a entrada de negros em todos os cursos, inclusive naqueles considerados
monopólio da dominação branca. Cotas não são um privilégio: são uma necessidade.

108
A implantação de reservas de vagas para negros em universidades públicas como
a USP é uma política básica no exercício da democracia; afinal, a luta anti-racista está
no quadro da construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Chegou a hora do
Estado brasileiro fazer as devidas reparações ao povo negro. Caso nenhuma medida
concreta for tomada, os negros não têm nada a comemorar nesses 500 anos de racismo e
exclusão.

INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

DOMINGUES, Petrônio J, “Cotas para afro-brasileiros” in: Jornal da USP, no 481, 23


a 29.08.1999, p.8.
________. "Curso Pré-Vestibular do Núcleo de Consciência Negra na USP: um
balanço do primeiro projeto de ação afirmativa na área da educação
implementada em São Paulo". São Paulo, mimeo., 1998.
GUIMARÃES, Antônio S. A. Racismo e Anti-Racismo no Brasil. São Paulo: Editora
34, 1999.
HASEMBALG, Carlos A. e SILVA, Nelson do Valle. Raça e oportunidades
educacionais no Brasil. In: Estudos Afro-Asiáticos, no.18. CEAA, 1990.
MUNANGA. Kabengele (Org.). Estratégias e Políticas de Combate à Discriminação
Racial. São Paulo, Edusp/Estação Ciência, 1996.
OLIVEIRA, Romualdo P. e outros. Acompanhamento da trajetória escolar dos alunos
do curso de pedagogia/FEUSP: resultados parciais de uma pesquisa. In: Estudos
e Documentos, no. 36.
ROSEMBERG, Fúlvia. Segregação Espacial na Escola Paulista. In: Estudos Afro-
Asiáticos, no.19. Centro de Estudos Afro-Asiáticos, CEAA, 1990.
________. Diagnóstico sobre a situação educacional de negros (pretos e pardos) no
estado de São Paulo, 2 vols. São Paulo, Fundação Carlos Chagas, mimeo.
SANTOS, Luís Carlos. Projeto Pedagógico do Núcleo de Consciência Negra. São
Paulo: NCN, 1994, mimeo.
WALTERS, Ronald. Racismo e ação afirmativa. In: SOUZA, Jessé (org.).
Multiculturalismo e Racismo. Brasília: Paralelo 15, 1997.

109

Você também pode gostar