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A INVISIBILIZAÇÃO TRANSMASCULINA E A GESTALT-TERAPIA:

ENCONTRO ENTRE A PSICOLOGIA E EXPERIÊNCIAS DISSIDENTES

Klaus Macena Fontenelle, Orientando; Kyara Maria de Almeida Vieira, Orientadora,


Programa de Pós Graduação em Cognição, Tecnologia e Instituições - UFERSA
klausmfontenelle@gmail.com; kyara.almeida@ufersa.edu.br

RESUMO
O seguinte texto consiste em um delineamento de pesquisa de mestrado em fase inicial
que possui como proposta central a transmasculinidade. Foi apenas nos anos 2000 que o
movimento das identidades transfemininas e travestis obteve evidência. Contudo, a
visibilidade conceitual e social da categoria transmasculina ainda se encontra reduzida
nos dias atuais. Assim, o presente trabalho se propõe a compreender as ressonâncias da
invisibilização na emergência mais autônoma das identidades transmasculinas a partir da
ótica gestáltica. Utilizando da pesquisa bibliográfica como metodologia, onde foram
analisados textos sobre: Transmasculinidade, Questões de gênero e Gestalt-Terapia. A
partir dos textos verificados foi possível perceber que Gestalt-Terapia possui arcabouço
teórico para realizar uma minuciosa leitura do processo de adoecimento oriundo da
invisibilização da categoria transmasculina., já que possibilita a leitura do preconceito, da
violência, da normatividade e das experiências não normativas, além de categorizar as
consequências e sofrimentos advindos da deslegitimação e invisibilização da
transmasculinidade.
Palavras-chave: Transmasculinidade, Gestalt-Terapia, Cisnormatividade.

INTRODUÇÃO
Este texto é um pequeno recorte da pesquisa de mestrado em desenvolvimento inicial.
Tem como tema central vivências de pessoas transmasculinas. A violência e
marginalização da comunidade transgênero é um fenômeno conhecido e, infelizmente,
naturalizado dentro da sociedade brasileira. Segundo a Associação Brasileira de Travestis
e Transexuais ANTRA (2021), no seu boletim anual de assassinatos e violências contra
pessoas transexuais e travestis, no ano de 2020 houveram 175 casos de assassinatos contra
esta população, o que consolidou um recorde de casos em um único ano. A ANTRA,
como grande associação e referência frente a luta contra a transfobia, realiza de maneira
independente relatórios anuais sobre os assassinatos e violências vivenciados por pessoas
transexuais e travestis, pois tal coleta não é efetuada por nenhum órgão estatal. Contudo,
a Associação é criticada por trazer poucos dados sobre transmasculinidade, evidenciando
a invisibilidade que os homens trans e transmasculinos vivenciam até dentro da própria
comunidade. De acordo com Araújo e Almeida (2021) foi apenas no final da primeira
década dos anos 2000 que o movimento das identidades transfemininas e travestis obteve
evidência. Contudo, chama-se a atenção para a reduzida visibilidade conceitual e social
da categoria transmasculina ainda nos dias atuais. É a partir dessa experiência de
existência invisibilizada em diversos ambientes que, para a maioria da sociedade, essas
narrativas de vida parecem não legítimas e são assim, muitas vezes, ignoradas, silenciadas
e negadas. Porém, a questão está dentro da comunidade transgênero apenas como
consequência, pois o alicerce que sustenta tal fenômeno está relacionado à própria
construção da compreensão cisheternonormativa do gênero. A naturalização do
extremismo existente na polaridade feminino e masculino imposta aos sujeitos dentro
dessa lógica binária e cisgênera de manutenção de poder sobre os corpos, faz com que
essa ideologia recaia sobre as pessoas antes mesmo de nascer, promovendo práticas que
censuram, violentam, humilham e investem de forma intensa na pretensa correção de
corpos. Temos como exemplo o chá revelação, esse anúncio não é inocente ou neutro, já
que, a partir dele, se começa a construção do roteiro de vida a partir das expectativas das
pessoas responsáveis e da sociedade sobre como aquela criança deve ser (Lins, Machado,
Escoura, 2016). Muitos são os rompimentos que podem ocorrer nesse sistema, contudo,
para a construção deste estudo iremos nos debruçar especificamente sobre o rompimento
produzido por pessoas transmasculinos, e quais as consequências para eles, sendo esses
sujeitos construtores de uma vivência que rompe com paradigmas impostos socialmente
do que é adequado para meninas ou para meninos. Sendo assim, o presente trabalho tem
como objetivo compreender as ressonâncias da invisibilidade na emergência mais
autônoma das identidades transmasculinas a partir da ótica gestáltica.
MÉTODO
Para ser construída a presente pesquisa realizou-se um levantamento bibliográfico. Brito,
Oliveira e Silva (2021) definem que a pesquisa bibliográfica consiste na busca por
informações já existentes sobre determinado assunto possibilitando ao autor realizar
novas descobertas a partir de conhecimentos já existentes. Para isso, os textos utilizados
foram retirados de livros físicos e plataformas de textos acadêmicos como: Scielo e
Google Acadêmico, a partir da busca por textos sobre Transmasculinidade, Questões de
gênero e Gestalt-Terapia.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
A Gestalt-Terapia ou Abordagem Gestáltica foi criada oficialmente em 1951 em Nova
Iorque, por Friedrich Salomon Perls, Fritz Perls ou Perls como é mais conhecido, e por
Lore Posner Perls, Laura Perls ou apenas Laura (ABG, 2019), e tem como um dos seus
pilares fundamentais o teórico Paul Goodman. Nascido no ano de 1911 em Manhattan,
foi: artista; psicoterapeuta; crítico social, literário, político e dos modelos de educação
tradicional (Belmino, 2017). Goodman se reconhecia como membro da comunidade
Queer dos Estados Unidos nos anos 1960, assumidamente bissexual e escrevendo sobre
suas experiências e as afetações de sua sexualidade pública em sua carreira acadêmica.
Goodman defendia a livre expressão da sexualidade por acreditar que as inibições desta
eram um dos motivos para a neurose contemporânea (Belmino, 2017). Falava que era
necessário olhar para os grupos minoritários e oprimidos socialmente, como os negros,
mulheres, homossexuais e estrangeiros, pois esses grupos eram a prova de que a
liberdade, no âmbito político, era uma farsa diante da alienação que as instituições
produziam nos estadunidenses. A obediência em excesso, a submissão à burocracia e
aquilo que era ditado pela indústria de massa eram as questões que deveriam ser
observadas para além do avanço do American Dream. A visão holística das pessoas é
uma das maiores contribuições da Gestalt-terapia pois estão “sempre em interação com
seu meio, isto é, leva-se em conta não apenas o que ocorre com a pessoa em sua totalidade,
mas também o contexto no qual isto ocorre” (Frazão, 1997, p.10). Para enfrentar as
adversidades ao longo da vida, nós utilizamos o ajustamento criador, que seria a busca
pelo melhor funcionamento do corpo diante de uma situação. Lima (2014) aponta que
Perls parte do princípio de que o ser humano tem capacidade de experimentar a frustração
e criar, a partir de então, outras maneiras de funcionamento que não aquelas almejadas
no início do processo, utilizando-se assim de uma maneira de se ajustar criativamente, ou
seja, o ajustamento criativo. E sim, é realmente possível, contudo, diante da realidade de
intensa pressão social, da marginalização, da falta de conhecimento popularizado sobre a
transmasculinidade e a transfobia, o processo de ajustamento criador do corpo
transmasculino é intensamente interrompido e desestimulado, ou seja, as possibilidades
de ajuste são retiradas desses sujeitos. Goldstein aponta que quando um corpo é
submetido a restrições severas e constantes impedimentos de autorrealização, este corpo
pode criar reações sintomáticas, passando a funcionar de uma maneira não harmônica,
sendo intensificado com o grau de frustração insuportável das necessidades básicas,
podendo ter atitudes destrutivas até em relação a si (Lima, 2014). A descoberta de um
corpo impedido de ser em experiência aquilo que sente que é, quando também não é
possível performar o gênero imposto, repercute ao longo de toda a vida do sujeito, pois
este enfrentará diversos episódios de preconceito, intolerância, discriminação e
deslegitimação de sua existência. É neste momento que nos deparamos com experiências
diárias de violências e discriminação (Almeida, Santos, 2021), transformando o momento
de descoberta em terror e negação. A infância é o momento de produção da estilização
dos gêneros através da subjetivação dos enunciados performativos e dos marcadores de
gênero (Bento, 2006), ou seja, no momento da infância é quando introjetamos as normas
sociais de gênero. Ao transicionar, as expectativas sobre como serão nossos corpos são
tão violentas, nesse segundo momento, quanto no primeiro. Nos é questionado quando
teremos barba; quando faremos a cirurgia de mastectomia (retirada das mamas);
automaticamente nos colocam dentro da heterossexualidade compulsória, sendo
impensável a possibilidade de uma pessoa trans ter qualquer outra sexualidade; a clássica
pergunta de como faremos para ter um pênis; entre vários outros questionamentos que
são feitos embasados pela cisgeneridade, promovendo vários tipos de violências e certo
nível de cobrança. Não é possível falar do processo de transição sem compreender que o
interno (desejos, anseios, introjetos e tudo que o sujeito vivenciou ao longo da história
que ele carrega) e o externo (as expectativas, normas, regras, lugares que ocupa, modelos,
cobranças e funcionamento da sociedade ao qual esse sujeito está inserido) são
igualmente influenciados e modificados durante esse processo. Então essa ideia de que as
pessoas trans sempre souberam que eram trans e depois de se reconhecer tem um único
caminho a ser seguido e todos o fazem, é muito mais uma imposição da cisnormatividade
para continuar moldando os nossos corpos do que um desejo íntimo, pois essa é apenas
uma das infinidades de narrativas existentes. A falta de contato com outras narrativas de
transmasculinidade, a partir do processo de invisibilização dessas vivências, colabora
para que, pós-transição, seja mantida a masculinidade desejada e performada através da
cisnorma, pois se não é possível ampliar os horizontes de possibilidades do que é ser
homem a partir do encontro com outros componentes da sua categoria, faz-se necessário
enquadrar-se naquilo que é normativo para ser legitimado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir dos textos verificados foi possível perceber que Gestalt-Terapia possui arcabouço
teórico para realizar uma minuciosa leitura do processo de adoecimento oriundo da
invisibilização da categoria transmasculina, pois se coloca como ferramenta para a leitura
do preconceito, da violência, da normatividade e das experiências não normativas,
possibilitando o encontro prático entre psicologia e experiências dissidentes diante do
contexto do enfrentamento de uma minoria à norma vigente, compreendendo que os
processos normativos e impositivos ao sujeito são grandes responsáveis pelo processo de
adoecimento dos sujeitos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABG, Associação Brasileira de Gestalt-Terapia e Abordagem Gestáltica. Gestalt
terapia: O que é?. c2019. https://www.gestalt.com.br/gestalt-terapia.php
ALMEIDA, Raul Gomes de; SANTOS, Manoel Antônio dos. Transmasculinidade e
teoria queer: a experiência corporal da infância à vida adulta. Psicologia & Sociedade
[online]. 2021, v. 33, e240127. Disponível em: https://doi.org/10.1590/1807-
0310/2021v33240127

ANTRA, Associação Brasileira de Travestis e Transexuais. Boletim-trans Nr 002-2021-


1sem2021. Boletim nº 002-2021, 2021. Disponível em:
https://antrabrasil.org/assassinatos/. Acesso em: 28 set. 2021.

BELMINO, Marcus. A Ontologia Gestáltica de Paul Goodman e seus


desdobramentos clínicos, políticos e educacionais: Gestalt-Terapia, anarquia e
desescolarização. 1° ed. Rio de Janeiro: Via Verita, 2017.

BENTO, Berenice A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência


transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BRITO, Ana Paula; OLIVEIRA, Guilherme; SILVA, Brunna. A importância da


pesquisa bibliográfica no desenvolvimento de pesquisas qualitativas na área de
educação, Cadernos da Fucamp, v.20, n.44, p. 1- 15, 2021.

FRAZÃO, Lilian. Apresentação à edição brasileira. In: PERLS, Fritz; HEFFERLINE,


Ralph; GOODMAN, Paul. Gestalt-Terapia. São Paulo - SP: Summus, 1997.

LIMA, Patrícia. Autorregulação organísmica e homeostaseIn. FRAZÃO, Lilian Meyer;


FUKUMITSU, Karina Okajima (org). Gestalt-terapia [arquivo digital]: conceitos
fundamentais. 1. ed. – São Paulo: Summus, 2014.

LINS, Beatriz Accioly; MACHADO, Bernardo Fonseca; ESCOURA, Michele.


Diferentes, não desiguais: a questão de gênero na escola. São Paulo: Editora
Reviravolta, 2016.

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