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Temática

Anatomia não é destino: um ensaio sobre as transexualidades

José Stona

Salvador Dalí (1904–1989). Femme à tête de roses, 1935. Öl auf Holz, 35 x 27 cm. Kunsthaus, Zürich. Sch.

Quando se estudam ciências humanas, os alvos são móveis. Freud há muito tempo já falava da importância da
psicanálise se ocupar das mudanças ocorridas na cultura. A ciência psicanalítica consiste em repensar as
subjetividades e suas sintomáticas clínicas, mas não somente isso; o trabalho clínico baseia-se num movimento
de desprender-se de si mesmo, numa tentativa de modificar o que se pensa e até mesmo o que se é. Sendo que
o primeiro ato de um psicanalista consiste na recusa do instituído. Ocupar-se de (re)pensar a clínica trata-se,
então, de um ato ético e político, pois ao campo teórico da psicanálise, [...] a renovação de seu saber e de sua
prática, fundada na particularidade de que, para cada analista, como para cada caso clínico, é necessário
reinventar a psicanálise (POLI, 2008, p. 3).

As novas formas de enunciação do sujeito, em ação no social, promovem novas maneiras de se lidar com os
conflitos psíquicos e formulam as posições frente aos organizadores inconscientes como diferença sexual,
sexualidade, gozo, masculino e feminino, elementos da psicanálise, submetidos a regulamentações simbólicas,
que, por sua vez, ancoram o sujeito na cultura e devem ser repensados (COSSI, 2014). Essas instâncias
representativas têm efeito sobre a identidade do sujeito.

Quando nos autorizamos a ocupar um lugar de escuta, devemos ficar atentos a erros regados em estereótipos
que engessam o sujeito na angústia. A psicanálise surge como uma ciência de escuta única, centrada pela
linguagem inconsciente, que, para seu fundador é regida por uma atemporalidade e lógica própria, onde, marcas
são postas e retomadas o tempo todo. Neste sentido, vamos nos propor a pensar a transgeneralidade
264 março/2017 Menu (Jesus, J.
G. 2012), termo guarda-chuva que abrange as especificidades das pessoas que ultrapassam as normas de
gênero: pênis-macho-homem-masculino e vagina-fêmea-mulher-feminino. Em um recorte específico: as
transexualidades.

Inicialmente, é fundamental situarmos que o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Entre 2008 e
março de 2014, foram registradas 604 mortes no país, segundo pesquisa do Transgender Europe (TGEU) (2016),
ONG não governamental que se ocupa dos direitos da população transgênero.

Quando dados assustadores evidenciam violências constantes, devemos situar que, culturalmente somos
impelidos por uma cisnormatividade (PARANHOS, 2015) e heteronormatividade (Butler, 2010) que basicamente
referem-se ao fato de que a heterossexualidade e a relação pênis-macho-homem-masculino e vagina-fêmea-
mulher-feminino são culturais e historicamente tomadas como modelos de normalidade e saúde dos seres
humanos.

O discurso médico junto com essa matriz heterocisnormativa naturaliza corpos, gêneros e desejos, definindo um
modelo hegemônico, onde diversas enunciações de sujeitos, que não se encaixam na concepção binária de
gênero (em que anatomia, gênero e práticas sexuais devem ser concordantes), sejam inseridas no campo da
psicopatologia.

Os primeiros estudos sobre a experiência dos indivíduos, que não se reconhecem com o gênero que lhe foi
atribuído, surgiram na década de 50 com o termo transexualismo, cunhado pelo norte-americano Harry Benjamin
(1966) designando como um transtorno psíquico de identidade sexual. Termo posteriormente utilizado com o
surgimento dos manuais diagnósticos e estatísticos de transtornos mentais (DSM). Conforme avanços teóricos,
diversas terminologias surgiram: transtorno de identidade e o termo atual disforia de gênero, respectivamente nos
DSM-III (1980); DSM-IV (1994) e DSM-V (2013).

Nas transexualidades, a angústia é marcada quando o sujeito experiencia seu gênero de uma forma diferente
daquela que lhe foi designada. Essa incompatibilidade provoca grande sofrimento, pois não se trata do desejo de
pertencer ao outro gênero, mas da evidência de que ele pertence ao outro gênero (CHILAND, 2008, p. 38).
Evidência de pertencimento que pede reconhecimento. Onde o discurso vigente na cultura padroniza as
transexualidades, porém, a psicanálise em sua história enuncia que os sujeitos são diversos.

Freud, desde o início da teorização psicanalítica, pensou o humano na medida em que ele interage, não existindo
para a psicanálise o homem "natural", ele sempre é significado socialmente passando por relações
intersubjetivas. Freud ([1905] 1996) questionou a diferença da constituição psíquica da menina e do menino,
afirmando que existem elementos diferentes da fase organizativa das disposições da masculinidade e da
feminilidade oferecidas à criança. Percebendo através das teorias sexuais infantis, uma diferença, nem para mais
nem para menos, que independente do gênero, “as reações dos indivíduos de ambos os sexos são mesclas de
traços masculinos e femininos” (FREUD, [1925] 1987, p. 264).

Ao entender a infância enquanto marco central de experiências subjetivantes, determina que toda criança é
bissexual, e a partir de operadores estruturantes (castração e complexo de Édipo) vai recalcar uma dessas
posições e se situar em outra. Ele não negou a diferença do órgão, mas assegurou que isso não seria o estatuto
da masculinidade e da feminilidade. Seus ávidos seguidores deram continuidade ao seu ensino, pensando uma
clínica das transexualidades.

Robert J. Stoller (1982), psiquiatra e psicanalista, um dos primeiros psicanalistas a pensar questões sobre
gênero, questionou a teoria freudiana acerca do desenvolvimento da sexualidade. Antagônico sobre o complexo
de Édipo enquanto formador da identidade sexual. Afirmou que as transexualidades seriam um “primitivo estágio
do desenvolvimento da masculinidade e da feminilidade, o núcleo da identidade genérica: o senso de pertencer
ao sexo masculino ou feminino” (STOLLER, 1982, p. 292).

Quando Stoller traz para a psicanálise a noção de gênero, propõe pensarmos a masculinidade e a feminilidade
enquanto aspectos psicológicos, sociais e históricos. Decreta em definitivo que o sexo, no sentido anatômico,
diferencia-se
264 março/2017da identidade sexual e que tais elementos não são naturalmente correspondentes. Considerando
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que as transexualidades seriam uma problematização relacionada ao registro do imaginário do corpo.

Lacan (1971) ao falar sobre a obra de Stoller chama atenção para não tomarmos a masculinidade e a
feminilidade enquanto instâncias unificadas. Pontua que a cultura é o discurso determinante das posições
sexuadas. Insere, então, o conceito de semblante para explicar a relação entre os gêneros. Percebe, que a
definição do homem é diretamente ligada em sua relação com a mulher, sendo o contrário recíproco. A menina e
o menino na fase adulta se posicionam no (semblante) "parecer" homem e "parecer" mulher. Mas, elucida que o
sujeito é determinado por um número mínimo de signos constitutivos, que em cada época, se organiza de uma
maneira particular sob a forma de uma estrutura discursiva, ou seja, de linguagem.

Lacan (1973), na articulação da lógica da sexuação, vai determinar que a verdade ou falsidade sobre essas
posições inexistem, é no semi-dito, no falta-a-ser, na experimentação significante, que cada um vai compor sua
masculinidade e a feminilidade.

A afirmação psicanalítica sobre ainexistência de uma verdade sobre o homem e a mulher, quer dizer,
propriamente, que esses significantes têm diferentes significados em cada época. É nessa mínima diferença que
conforme Maria Rita Kehl (1996) e, antes dela, Lacan (1971) nos situam a diferença dos gêneros; na forma de
desejar e gozar.

O semblante lacaniano vem para dar conta do insuportável, do impossível de simbolização, para o sujeito. Sendo
na "aparência de ser" o que organiza os gêneros. Estamos, hoje, perante o desafio de atualizarmos nossa escuta
conforme novas coordenadas que decorrem dos efeitos da perda dos semblantes tradicionais. Se os destinos
para a libido são os oferecidos pela cultura, hoje, temos uma condição do sujeito moderno frente às diversas
possibilidades de sexuação.

Ao pensarmos a clínica das transexualidades é necessário entendermos que o sujeito tende a afirmar-se desde
muito cedo, habitando um gênero que não lhe corresponde. O sofrimento emerge do imperativo para se tornar
uma coisa ou outra, isso provoca angústia. O importante aqui é situar que para além da angústia de não
pertencimento, existe a discriminação social diária ditando o estatuto do que é ser homem e o que é ser mulher.

A angústia não vem da experiência transexual, mas sim, da discriminação. As premissas psicanalíticas nos
apontam evitar trabalhar em um sentido adaptativo mas, através do ato criativo, escutando o outro naquilo que
lhe é singular. Se, para a psicanálise, não existe um lugar que fale da verdade sobre “o homem" e “a mulher”,
quem tem a verdade sobre o sujeito além da sua própria história? Quais são hoje os lugares oferecidos no laço
social para as pessoas que experienciam as transexualidades?

Referências bibliográficas

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION: DSM-III. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.


Porto Alegre: Artmed, 1980.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION: DSM-IV. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.


Porto Alegre: Artmed, 1994.

AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION: DSM-V. Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais.


Porto Alegre: Artmed, 2013.

BENJAMIN, Harry.(1966) The transexual phenomenon. New York: the julian press, 1999. 156 p.

BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CHILAND, C. O transexualismo. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
FREUD,
264 S. “Algumas
março/2017 consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos” (1925). In:Menu
Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. XIX.

FREUD, S. "Organização sexual infantil”(1923). In: Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. 2. ed. Rio
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FREUD, S. ”Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905). In: SALOMÃO, J. (org.). Edição standard
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JESUS, J. G. Guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros. Publicação online.
Brasília, v. 2, dez. 2012. https://www.sertao.ufg.br. Data de acesso: 29 dez. 2016.

KEHL, Maria Rita. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. São Paulo. Imago editora. 1996.

LACAN, Jacques. O Seminário 18: De um discurso que não fosse semblante (1971).

______________ O Seminário 20: Mais, Ainda. (1972-1973) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

______________ Ou pior. Ed. interna em CD-R da Associação Freudiana de Buenos Aires. (Lição 3. 08/12/1971.
P.2681)

PARANHOS, William.R. A heterocisnormatividade na construção de nossa personalidade. as Blogueiras


Feministas, Out. 2015. . Data de acesso: 02/02/2017.

POLI, M. C. Escrevendo a psicanálise em uma prática de pesquisa. Estilos Clin., São Paulo, v. 13, n. 25, dez.
2008. Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org/scielo Acesso em: 04 set. 2016.

STOLLER, R. J. A experiência transsexual. Rio de Janeiro: Imago, 1982.

Autor: José Stona

* José Stona é psicólogo – UFRGS

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