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A Construção do Homoerótico na

Contemporaneidade à Luz da Psicanálise


Autor: Alex Barbosa Sobreira de Miranda | Publicado na Edição de: Fevereiro
de 2014
Categoria: Psicanálise

Resumo: O presente trabalho aborda a construção do homoerótico na contemporaneidade


à luz da psicanálise. O homoerotismo, no presente contexto, se refere a uma tendência a
se estabelecer relações afetivo-sexuais preponderantemente com pessoas do mesmo
sexo. Portanto, essa pesquisa teve como objetivo principal analisar a construção do
homoerótico na contemporaneidade à luz da psicanálise. O estudo torna-se relevante por
apontar como a clínica psicanalítica interroga na atualidade a construção do
homoerótico, como também por explicar como a psicanálise pode escutar e acolher o
sofrimento psíquico do indivíduo, em decorrência de sua sexualidade. O debate acerca
do homoerótico continua nos tempos atuais, todavia, os sujeitos tendem a lidar com uma
sexualidade mais aparente nos contextos sociais, colocando, assim, a temática como
uma área que precisa ser rediscutida a fim de ampliar visões e quebrar paradigmas.
Nesse sentido, espera-se que esse estudo possa promover discussões atuais e dialogar
sobre as novas posturas referentes ao homoerotismo, bem como contribuir para que o
indivíduo consiga lidar com sua sexualidade de modo mais aberto. Sendo assim, esse
trabalho visa auxiliar a ciência psicológica a desconstruir conceitos e construir novas
ideias acerca da temática.

Palavras-chave: Homoerótico, Psicanálise, Contemporaneidade.

1. Considerações iniciais
A prática homoerótica não é algo novo no comportamento humano, a sua manifestação
está presente desde a aurora da humanidade em todas as culturas. Contudo, ao longo da
história, o homoerotismo tem sido discutido por diversos campos da ciência. As
dúvidas, o preconceito, o moralismo e as especulações ocuparam esse cenário em
diversos lugares, assumindo várias formas e funções nas diferentes culturas e épocas. A
época e o local foram determinantes no tratamento que se deu aos homoeróticos, tendo
em vista que cada civilização, em determinados momentos históricos tiveram uma
postura diferente frente a tais comportamentos.

Com a evolução do tempo, as transformações sociais e a pós-modernidade, o


homoerótico tenta demarcar seu lugar na sociedade. Isso se deve às lutas políticas ou
ainda aos movimentos sociais que surgiram a fim de garantir e defender direitos iguais
perante a sociedade. Para Pecheny (2005), a homossexualidade, no presente contexto, se
refere a uma tendência a se estabelecer relações afetivo-sexuais preponderantemente
com pessoas do mesmo sexo.

Assim, quando o sujeito se percebe homoerótico, podem surgir questionamentos,


incertezas, medos, vergonha, culpa e sofrimento, visto que a sociedade ainda exige uma
postura oculta por parte deste indivíduo; atribuindo-lhe estigmas, estereótipos e agindo
com preconceito frente à sua sexualidade. Entende-se que tais comportamentos podem
gerar dificuldades e soar como um efeito “limitador” na manifestação de uma
sexualidade saudável.

Para Guimarães (2009), o estado de segregação e de exclusão social é constitutivo das


identidades sexuais não-dominantes. Os homossexuais tendem, por isso, a produzir e
aplicar mecanismos para contornar situações discriminatórias do cotidiano. De fato,
uma possível tentativa de conceituar identidades sexuais traz, necessariamente, a relação
recíproca entre ator social e cultura.

Existe, sobretudo, uma dificuldade do outro em lidar com a sexualidade, e em respeitar


as diferentes manifestações existentes. Esse comportamento pode ser baseado
unicamente na forma de pensar e agir impregnada pela cultura vigente. Esses
pensamentos podem estar envoltos pelas brumas do preconceito arraigado
historicamente, bem como pelas consequências sócio-morais advindas de uma
sociedade que carrega em si uma cultura conservadora, pautada no disciplinamento da
vida sexual dos indivíduos.

Nesta pesquisa, o termo homoerótico será utilizado como de significado equivalente ao


termo homossexual, tendo em vista que essa terminologia é a mais utilizada no campo
psicanalítico.

2. A Homossexualidade na Obra Freudiana


Como é do conhecimento de muitos, a sexualidade faz parte da dimensão humana,
sendo considerada em toda teoria psicanalítica. Nesse aspecto, deve ser entendida a
partir da totalidade dos seus sentidos, como tema e área de conhecimento. No que
concerne homossexualidade, as contribuições de Freud foram fundamentais para o
esclarecimento e despatologização dessa manifestação da sexualidade, tendo em vista
que promovem uma reflexão para a sociedade do seu tempo e garantem um legado para
as civilizações contemporâneas.

Analisar a homossexualidade no universo freudiano é uma tarefa árdua, diante da


grande diversidade de discussões e oscilações nas quais a teoria se depara. O estatuto da
homossexualidade na obra freudiana apresenta controvérsias, no sentido de que as
concepções de Freud não foram sempre as mesmas, o que pode ser justificado como o
início da construção de um princípio teórico. Porém, ao longo do tempo foram sendo
reformulados e ganharam grande destaque na sociedade.

Embora tendo algumas dificuldades iniciais, a psicanálise contribuiu para a mudança do


discurso que se articula na modernidade, ao passo que trouxe uma nova postura frente
ao discurso da psiquiatria da época e questionou o papel da hereditariedade e
degeneração, abrindo espaço para novas perguntas e novas respostas frente ao fenômeno
da sexualidade. Até o século XIX, data que Freud inaugura a Psicanálise, a
homossexualidade ainda não era reconhecida, simplesmente existiam parceiros que
mantinham relações com pessoas do mesmo sexo. Nessa época, as pessoas não eram
vistas como diferentes das outras e a atividade sexual não consistia um marcador de
identidade sexual.

De acordo com Vieira (2009), no final do século XIX, sobretudo pela ascensão de um
novo discurso médico-científico, preocupado com o estudo e classificação das
patologias, eis que surge uma nova espécie: o “homossexual”. Nesse sentido, existia
uma preocupação em identificar as causas da homossexualidade, visto que essas
investigações tinham a intenção de normatizar a vida sexual das pessoas, o que fazia
parte de do movimento higienista que se dirigia ao controle e regulação da vida urbana.

Ainda de acordo com o autor acima citado, as campanhas de higiene social pertenciam a
um momento histórico que apoiava a expressão sexual desde que restrita ao laço
matrimonial, ou seja, apenas as relações heterossexuais conjugais vinculadas à
reprodução e à transmissão de bens eram endossadas. Em qualquer outra esfera ou
contexto, a relação sexual era estigmatizava.

Com a invenção de novos significantes para designar aqueles que se atraem por
parceiros do mesmo sexo (o sodomita, o uranista, o invertido), opera-se uma mudança
na concepção que se faz da homossexualidade. Mas, ao mesmo tempo inicia-se a luta
pela apropriação da categoria “homossexual”: apropriação jurídica, médica, social e,
porque não dizer, psicanalítica. Porém, é incontestável a radicalidade do pensamento
freudiano, pois em oposição radical ao seu tempo, Freud, defenderá o aspecto “natural”
e não patológico da homossexualidade, posicionando-se claramente, contra os juízes,
contra os sexólogos, contra os médicos enfim, contra a moral do fim do século
(VIEIRA, 2009).

Podemos observar, através de seus escritos, que tanto a homossexualidade quanto a


heterossexualidade são resultados de caminhos pulsionais, fazendo com que uma seja
tão legítima quanto à outra. Segundo Freud, é a partir do complexo de Édipo, baseado
na bissexualidade original, que a “escolha do objeto” vai constituir-se, pois em todos os
seres humanos desde o início da vida encontramos, ainda que no inconsciente,
investimentos libidinais homossexuais e heterossexuais (CECCARELLI, 2010).

Amparado pela formulação edipiana e enfatizando o conceito de fantasia, passa então a


rejeitar todas as teses sexológicas, quando em 1905, no texto “Três ensaios sobre a
teoria da sexualidade”, refere-se à bissexualidade como fundamento da
homossexualidade (MARQUES, 2008).

Em 1871, Charles Darwin (1809-1882) define a bissexualidade segundo as perspectivas


da ciência biológica da época e publica A descendência do homem, disseminando um
novo olhar para o tema. Foi a partir desta publicação que Darwin adotou uma
terminologia adequada para o estudo da sexualidade humana e introduziu a idéia de que
a bissexualidade não era apenas um mito, mas uma realidade da natureza. Assim,
dissemina por completo seu conceito de seleção sexual, explicando a evolução da
cultura humana e as diferenças entre os sexos (ROUDINESCO; PLON, 1998).

Conseqüentemente, no fim do século XIX, os sexólogos passaram a adotar o termo e a


designá-lo como uma predisposição biológica dotada de componentes masculinos e
femininos. Freud, por sua vez, influenciado pelos ensinamentos do médico e zoólogo
alemão, Carl Clauss (1835-1899) e de seu amigo, também médico, Wilhelm Fliess
(1858-1928), passa a adotar a tese da bissexualidade (MARQUES, 2008).

Nesse aspecto, Freud é enfático:


A doutrina da bissexualidade foi exprimida em sua mais crua forma por um porta voz
dos invertidos masculinos: “um cérebro feminino num corpo masculino”. Entretanto,
ignoramos quais seriam as características de um “cérebro feminino”. A substituição do
problema psicológico pelo anatômico é tão inútil quanto injustificada (FREUD, 1905, v.
7, p. 135).

Assim, o autor define a homossexualidade como uma escolha sexual derivada da


existência, em todo sujeito, de uma bissexualidade originária, universal da sexualidade
humana, contradizendo definitivamente qualquer concepção do sexo biológico como
prevalente aos processos psíquicos ligados ao recalque. Ou seja, a relação estabelecida
por Freud entre o recalque e a predisposição bissexual é, neste momento, a base para a
explicação da homossexualidade (MARQUES, 2008).

Desse modo, foi a partir do conceito de pulsão, introduzido pela primeira vez nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, que se possibilitou a sustentação de Freud a
respeito da homoafetividade. O autor esclarece:

Chamou-nos a atenção que imaginávamos como demasiadamente íntima a ligação entre


a pulsão sexual e o objeto sexual. A experiência obtida nos casos considerados anormais
nos ensina que, neles, há entre a pulsão sexual e o objeto sexual apenas uma solda, que
corríamos o risco de não ver em conseqüência da uniformidade do quadro normal, em
que a pulsão parece trazer consigo o objeto. Assim, somos instruídos a afrouxar o
vínculo que existe em nossos pensamentos entre a pulsão e o objeto. É provável que, de
início, a pulsão sexual seja independente de seu objeto, e tampouco deve ela sua origem
aos encantos deste (FREUD, 1905, v. 7, p. 140).

Freud (1975, p. 142) diz que pulsão é “um conceito situado na fronteira entre o mental e
somático; ou ainda é o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do
organismo e alcançam a mente”.

Desta forma, Freud afirma que, desde que se familiarizou com a noção de
bissexualidade, passou a considerá-la como o fator decisivo: sem levá-la em conta,
dificilmente se poderia chegar a uma compreensão das manifestações sexuais de forma
efetiva no homem e na mulher, já que será a partir desta base conceitual que o autor
fornecerá uma explicação para o comparecimento da corrente homossexual latente ou
manifesta nos neuróticos (MARQUES, 2008).

No decorrer da sua contribuição, Freud descobre um elo entre a bissexualidade e


ambivalência afetiva, que antes parecia obscuro. Na análise do caso Homem dos ratos,
logo na primeira sessão, através de um ato falho do paciente, Freud detecta uma moção
homossexual predominante, que ao longo do tratamento parece ser mais enfática, o que
relata inconscientemente uma demanda amorosa que compete com o desprezo ao pai.

Algum tempo depois, o autor consegue inserir a ambivalência afetiva originária,


descoberta a partir do Homem dos ratos (1909), no mito da formação do complexo
nuclear do sujeito, descrito no texto Totem e tabu (1913) (MARQUES, 2008).

De forma simplificada, verifica-se nesse mito que a comunidade de irmãos atravessa


dois estágios distintos: no primeiro, os irmãos são excluídos pelo pai; as mulheres e os
bens lhes são negados. O assassinato do pai abre a possibilidade da divisão e
distribuição dos bens, das mulheres e do poder. Passagem que pressupõe a elaboração
da ambivalência afetiva, ou seja, uma transformação econômica da bissexualidade
originária. No primeiro estágio, a frustração imposta pelo pai e a dependência de seus
favores os colocam, em relação a ele, numa situação polarizada – bissexual – extremada
entre amor e ódio. Esta é compensada pelas relações de troca-troca entre os irmãos; a
bissexualidade é atuada como nos jogos perversos polimorfos – de troca-troca – da
infância ou nos estados extremos de confinamento na prisão. Já o vazio instaurado no
segundo período, após o assassinato, é atravessado no luto, na culpa e nas saudades do
pai morto (DELOYA, 2003).

Segundo o mesmo autor, o contrato social na nova sociedade requer a sublimação,


permitindo aos sujeitos conformarem-se aos ideais legados pelo pai morto. Porém, o
ponto principal é que a atuação homoerótica do primeiro estágio, sob a cobertura de
certa proteção da mãe, sofre uma grande concessão narcísica. A moção homossexual
transforma-se em uma identificação horizontal entre os irmãos, em torno do legado e da
lei paterna. Nasce, no lugar da bissexualidade, o sentimento social que, segundo Freud,
é a conseqüência, pela identificação, da definição e ingresso do sujeito em uma nova
ordem, como membro da série constituída sob a égide da lei e legado paternos.

Desta forma, tomando os sujeitos que escolhem como objetos sexuais pessoas do
próprio sexo, bem com do sexo oposto, apresenta-se insustentável qualquer hipótese
baseada no fato de que, a partir de premissas biológicas, o sujeito, segundo seu sexo
anatômico, possa recalcar as moções pulsionais do sexo oposto como que ancorado
numa certeza sobre o sexo que alicerça todos os processos mentais referentes à
sexualidade (MARQUES, 2008).

Nesse ponto Freud é enfático:

É bem sabido que em todos os períodos houveram, como ainda há, pessoas que podem
tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo oposto,
sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de bissexuais e
aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa sobre elas. Viemos a saber, contudo,
que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui, quer de
maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos (FREUD,
1937, v. 23, p. 260).

Desse modo, é a partir da bissexualidade, que o indivíduo pode escolher um ou outro


caminho. Isso, não fará, de maneira alguma, com que a possibilidade de que uma
determinada escolha, oposta à inicial, desapareça.

Um dos casos mais emblemáticos de Sigmund Freud sobre a homoafetividade foi o caso
Schreber. É valido ressalvar que Freud nunca teve qualquer espécie de contato com o
paciente, nem com seus familiares. Sua análise foi publicada em Notas psicanalíticas
sobre um relato de uma paranóia em 1911. Portanto, o autor propôs, a partir da análise
do relato autobiográfico de paranóia de Schreber, que a doença expressaria um
mecanismo de defesa do sujeito contra sua libido homossexual.

Para Freud (1911), após recalcada, a libido homossexual retornaria com a falência das
defesas e o ego defender-se-ia novamente com o desenvolvimento da paranóia, através
de seu mecanismo de projeção, que é manifesta clinicamente pelos delírios de
perseguição e de ciúme, por erotomania e por megalomania. Esta reflete a fixação da
libido no próprio ego e revela dinamicamente a regressão da homossexualidade
sublimada ao narcisismo.

No caso de Daniel Paul Schreber o livro relata uma síndrome delirante de uma pessoa
perseguida por Deus. Assim, Schreber apresentou tais sintomas após ter sido derrotado
em uma campanha ser candidato de um partido conservador. Desse modo, seu discurso
aponta uma existência terrível: um ser sem estômago, sem laringe e sofrendo
perseguições de pássaros. Desse modo, em seu discurso, ele se transformaria em uma
mulher e engravidaria de Deus.

A partir da “revolta” que Schreber tinha de Deus, pôde-se identificar uma transferência
pela figura de seu pai, podendo constituir uma homoafetividade recalcada. Para Freud
(1911), o surgimento do delírio foi uma tentativa de cura, cujo objetivo de Schreber era
um consolo para a morte do pai, já que não havia tido filho algum. Nesse aspecto, Deus,
em seu sistema delirante, seria a representação do seu pai.

A partir da publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), com a
introdução do conceito de pulsão, e toda significação que tal conceito propõe, Freud
desliga-se da sexologia e retoma seus estudos a fim de compreender as causas da
homoeroticidade. Nesse texto, é possível encontrar elementos indispensáveis para a
noção de sexualidade defendida pelo autor.

Considerando o discurso da pulsão como o primeiro eixo diferenciador do pensamento


até então vigente, retoma-se este conceito e introduz-se a diferença fundamental
estabelecida por Freud quanto ao que se refere ao instinto. O autor afirma que a grande
divergência está no fato de que há uma plasticidade pulsional, na qual o objetivo é a
satisfação e, por sua vez, o objeto é o que há de mais variável (MARQUES, 2008).

Nesse sentido, com o discurso da pulsão, algumas condutas que outrora eram
consideradas perversas, deixam de sê-la ao tomar como referência o destino da pulsão.
É justamente este o ponto crucial, o qual Freud desenvolve no primeiro dos Três
ensaios, demonstrando sua superação quanto à noção de sexualidade.

Até o ano de 1910, Freud se referiu à homoafetividade como inversão, no sentido de


caracterizar aqueles indivíduos cujo objeto sexual seria diferente da chamada
“normalidade”. Diz-se dessas pessoas que são “de sexo contrário”, ou melhor,
“invertidas”, e chama-se o fato de inversão. O número de tais pessoas é bastante
considerável, embora haja dificuldades em apurá-lo com precisão. No entanto, é válido
lembrar que, entre 1905 e 1924, houve quatro edições dos Três ensaios e na realidade,
como se verá, o autor introduziu, em cada uma delas, modificações referentes ao
aperfeiçoamento de sua própria doutrina.

Iniciar-se-á com As aberrações sexuais, texto no qual já nota-se, desde o título, uma
indicação do estranho, do patológico, do avesso do normal. Talvez, para alguns, possa
parecer que Freud estivesse tratando de novas denominações para o até então
considerado comportamento perverso. No entanto, o que o autor faz é precisamente o
contrário. Ele se utiliza do sentido dessas palavras para transcender o saber da ciência,
já vigente no senso comum, e, assim, introduzir uma nova configuração, a partir da ótica
psicanalítica (MARQUES, 2008).
Acredita-se que este é o grande corte dado por Freud:

Devo destacar, como característica desse meu trabalho, sua deliberada dependência da
investigação biológica. Evitei cuidadosamente introduzir expectativas científicas
provenientes da biologia sexual geral, ou da biologia das espécies animais em particular,
no estudo da função sexual do ser humano que nos é possibilitado pela técnica da
psicanálise. A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode apurar sobre a biologia
da vida sexual humana com os meios acessíveis à investigação psicológica; era-me
lícito assinalar os pontos de contato e concordância resultantes dessa investigação, mas
não havia por que me desconcertar com o fato de o método psicanalítico, em muitos
pontos importantes, levar a opiniões e resultados consideravelmente diversos dos de
base meramente biológica (FREUD, 1905, v. 7, p. 125).

Com base em um novo diálogo com o campo da ciência, realizado por meio efetuado do
inconsciente e da pulsão, Freud assinala suas novas concepções de forma clara,
dedicando à homossexualidade um estatuto diferente daquele das aberrações, fazendo
menção à pulsão e aos possíveis desvios em relação ao objeto sexual. Nessa perspectiva,
o autor retira a possibilidade de qualquer caráter de degenerescência aplicado à
homossexualidade e adverte:

A opinião popular faz para si representações bem definidas da natureza e das


características dessa pulsão sexual. Ela estaria ausente na infância, far-se-ia sentir na
época e em conexão com o processo de maturação da puberdade, seria exteriorizada nas
manifestações de atração irresistível que um sexo exerce sobre o outro, e seu objetivo
seria a união sexual, ou pelo menos os atos que levassem nessa direção. Mas temos
plena razão para ver nesses dados uma imagem muito infiel da realidade; olhando-os
mais de perto, constata-se que estão repletos de erros, imprecisões e conclusões
apressadas (FREUD, 1905, v. 7, p. 128).

No decorrer da sua obra, por volta de um ano depois, Freud comunica a Jung um
interesse pela vida de Leonardo da Vinci, sobretudo, pela sua pulsão de saber sobre a
origem da atrofia da vida sexual deste, que para o autor parecia à própria substituição de
uma homossexualidade. Pouco depois, realizou um trabalho, sobre o tema em questão,
publicando seu texto em 1910.

Mesmo diante da dificuldade para provar a verdade de tal hipótese, o autor ressalta que
o instinto da pesquisa e a atrofia da vida sexual de Leonardo da Vinci, pareciam derivar
do fato de que depois de sua curiosidade ter sido ativada, na infância, a serviço de
interesses sexuais, ele tenha conseguido sublimar a maior parte da sua libido em sua
ânsia pela pesquisa.

Contudo, ao tomar a fantasia infantil de Leonardo, na qual o abutre é o representante do


conteúdo real de sua lembrança, Freud questiona o porquê desse conteúdo ter se
transformado em uma situação homossexual; ou seja, por que a mãe, que amamenta, foi
transformada num abutre que põe a sua cauda dentro da boca da criança? (MARQUES,
2008).

A resposta lhe parece simples: “Já tivemos a ocasião de mostrar que, de acordo com as
frequentes substituições de que se serve a linguagem, a “cauda” do abutre deve, com
toda certeza, significar o genital masculino, um pênis” (FREUD, 1910, v. 9, p. 100) E
acrescenta:

Quando nos lembramos da probabilidade histórica de Leonardo ter-se comportado em


sua vida como uma pessoa emocionalmente homossexual, ocorre-nos perguntar se esta
fantasia não indicaria a existência de uma relação causal entre as relações infantis de
Leonardo com a mãe e sua posterior homossexualidade manifesta, ainda que ideal
[sublimada]. Não nos atreveríamos a inferir qualquer conexão dessa natureza da
reminiscência confusa de Leonardo se não soubéssemos, pelos estudos psicanalíticos de
pacientes homossexuais, que tal ligação existe de fato e é, na verdade, condição
intrínseca e necessária (FREUD, 1910, v. 9, p. 104-105).

Desse modo, o autor conclui que nos casos de homoeroticidade masculina, geralmente
os indivíduos contemplam uma ligação erótica muito próxima com a mãe durante o
primeiro período da infância, até chegar o momento em que este amor não pode mais
continuar e acaba por sucumbir. Essa ligação haveria sido despertada pelo excesso de
ternura por parte da própria mãe, levando Freud a considerar a hipótese de que a
presença de um pai forte asseguraria no filho a escolha “correta” de objeto, ou seja, uma
pessoa do sexo oposto.

Entretanto, embora a resposta aos questionamentos levantados pareça ter sido dada,
ainda estamos longe de querer exagerar a importância dessas explicações sobre a gênese
psíquica da homossexualidade. É óbvio que elas discordam completamente das teorias
adotadas pelos defensores dos homossexuais, mas sabemos também que não são
bastante claras para chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema. Aquilo que,
por motivos práticos, é geralmente chamado de homossexualidade poderá ser o
resultante de uma variedade enorme de processos inibitórios psicossexuais; o processo
particular que destacamos é, talvez, apenas um entre muitos outros e talvez corresponda
a um único tipo de “homossexualidade”. Devemos também admitir que o número de
casos de “homossexualismo” deste tipo, em que podemos reconhecer as causas
determinantes assinaladas por nós, é bem maior do que aqueles em que ele de fato se
concretiza. Portanto, nós também não podemos negar a influência exercida por fatores
constitucionais desconhecidos, aos quais geralmente se atribui toda a homossexualidade
(FREUD, 1910).

Nessa perspectiva, Freud acrescenta, em 1910, a partir de uma nota aos Três ensaios
uma atribuição da homossexualidade a certo caráter “adquirido”, em contraposição ao,
até então, considerado unicamente “inato” da sexualidade humana, acrescentando à
diversidade de seus aspectos a influência das diferentes culturas e estágios de
civilização:

A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antiguidade e a nossa decerto reside
em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao passo que nós a
colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com
ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional
em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto (FREUD, 1905, v. 7,
p. 141).
Contudo, esse momento se torna relevante para o autor poder reconhecer a valiosa
contribuição da bissexualidade na construção da escolha do objeto, de modo que passa a
utilizá-la mais firmemente como um recurso no esclarecimento da sexualidade.

Para Freud (1905), a investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de
separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular.
Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta,
ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto
homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. [...] A psicanálise considera,
antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo, a liberdade de dispor
igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas
condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual,
desenvolvem-se tanto o tipo normal como o tipo invertido. No sentido psicanalítico,
portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema
que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma
atração de base química.

No ano de 1920, Freud clarifica ainda mais sua posição acerca da homossexualidade:

Não compete à psicanálise solucionar o problema do homossexualismo. Ela deve


contentar-se com revelar os mecanismos psíquicos que culminaram na determinação da
escolha de objeto, e remontar os caminhos que levam deles até as disposições pulsionais
(FREUD, 1920, p. 211).

Baseando-se na literatura, o que se sustenta na obra freudiana sobre homossexualidade,


salvo as ambiguidades, é que ela é uma posição libidinal, uma orientação sexual tão
legítima quanto à heterossexualidade. Para Ceccarelli (2008), Freud sustenta essa idéia
com base no complexo de Édipo fundado sobre a “bissexualidade originária”, a partir da
qual a escolha do objeto vai se constituir. Para o autor, essa escolha, que não depende
do sexo do objeto, será a base dos investimentos futuros, visto que os investimentos
homossexuais estão presentes, ainda que inconscientemente na vida de todo indivíduo.

Nesse aspecto, Freud ressalta:

Com o máximo de decisão, que se destaquem os homossexuais, colocando-os como um


grupo à parte do resto da humanidade, como possuidores de características especiais
(…). Ao contrário, a psicanálise considera que a escolha de um objeto,
independentemente de seu sexo – que recai igualmente em objetos femininos e
masculinos –, tal como ocorre na infância, nos estágios primitivos da sociedade e nos
primeiros períodos da história, é a base original da qual, como conseqüência da restrição
num ou noutro sentido, se desenvolvem tanto os tipos normais quanto os invertidos
(1905, p. 146).

Além disso, Freud leva “as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o
mesmo âmbito que o dos adultos normais” (1925, p. 52). Desse modo, o conceito de
normalidade perde seu sentido, não existindo diferença entre o normal e o patológico. A
diferença se encontra nas pulsões e na finalidade sexual destas.

Ao passo que Freud promove a desconstrução da homoafetividade como patologia,


corrobora para o aumento do preconceito, no que tange a tratar a homossexualidade
como perversão. Para Marques (2008), esta definição derivava da grande influência do
vocabulário influenciado pelos sexólogos da época, ao retomar o termo “perversão”,
considerava-se o conjunto de comportamentos que desviavam do orgasmo por
penetração genital entre um homem e uma mulher. Nessa época não se falava em
prazer, e tudo aquilo que fosse de desencontro com as questões “divinas” entre um
homem e uma mulher era considerado como perversão ou desvio da norma estabelecida.

Posteriormente, Freud rompe definitivamente com a medicina psiquiátrica vigente e


avança teoricamente no trato do sexual, desvinculando-se do preconceito imaginário da
época e introduzindo as idéias de bissexualidade, pulsão, sexualidade infantil e
disposição perverso-polimorfa (MARQUES, 2008, p. 55).

Em face da apropriação jurídica da homossexualidade, Freud aceita conceder uma


entrevista, em 1903, ao jornal vienense “DieZeit”, em defesa de um homem acusado de
práticas homossexuais. Em 1930, ele assina uma petição pela revisão do código penal e
a supressão do delito da homossexualidade entre adultos que consentem (BADINTER,
1993).

No decorrer da obra de Freud ainda existe uma famosa carta do autor, datada de 1935, a
uma mãe norte-americana que solicita conselhos sobre o seu filho que apresentava
condutas e comportamentos que ela considerava anormais. Ao que Freud respondeu:

Eu creio compreender após ler sua carta que seu filho é homossexual. Eu fiquei muito
surpreso pelo fato que a senhora não mencionou esse termo nas informações que deu
sobre ele. Posso eu, vos perguntar por que evitou esta palavra? A homossexualidade não
é evidentemente uma vantagem, mas não há nada do que sentir vergonha. Ela não é nem
um vício, nem uma desonra e não poderíamos qualificá-la de doença. (...) Muitos
indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram homossexuais
(Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci). É uma grande injustiça perseguir a
homossexualidade como crime e também uma crueldade. (FREUD, 1935/1967, p. 43).

No que tange ao texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905) afirma
que a pulsão sexual não tem objeto fixo. Desse modo, o objeto da pulsão é
diversificado, exprime-se das mais variadas formas: oral, anal, escopofílica, vocal,
sádica, masoquista, dentre outras. Com essa proposição, Freud divorcia a sexualidade de
qualquer relação com os órgãos genitais, sendo que o prazer é sua finalidade principal, e
só secundariamente, visa atender as necessidades de reprodução.

Assim, ao revisar o percurso da homossexualidade na obra freudiana entende-se que sua


construção conceitual perdurou no campo da perversão durante muito tempo, situada
entre o normal e o patológico pela psiquiatria. Contudo, Freud contribuiu no sentido de
preocupar-se com o sujeito e seu sofrimento psíquico decorrente da homoeroticidade,
apontando que não há uma ligação natural entre o biológico e o subjetivo nas escolhas
do indivíduo no que diz respeito à esfera sexual. Desse modo, colaborou com a ciência
no intuito de apontar uma nova visão acerca da homoeroticidade, bem como para
minimizar o preconceito que se instalou na cultura ocidental devido aos dogmas
religiosos e ao discurso médico. Ao longo dos trabalhos e estudos realizados por Freud,
pôde-se perceber alguns casos clínicos que apontaram questões homoeróticas. Desse
modo, esse debate será empreendido ao longo do texto, junto às questões da
identificação, que se caracterizam como um ponto fundamental no entendimento do
assunto.

3. A Construção do Homoerótico na
Contemporaneidade
A contemporaneidade é o cenário em que despontam novas configurações e novos
modelos de comportamentos. Desse modo, os eventos contemporâneos assinalam
transformações marcantes que podem construir e realçar novas identidades. O sociólogo
Bauman (2001) visa traduzir a contemporaneidade utilizando-se de uma metáfora, ele
faz referência ao caráter passageiro das relações humanas no presente momento. Aponta
para a liquefação – termo advindo da Química que denota passagem do estado sólido
para o líquido – dos organismos que constituem a sociedade, a exemplo da família e dos
governos. Em consonância com o prisma estabelecido pelo referido sociólogo, Freud, na
primeira metade do século passado, discorreu sobre os males da civilização, indicando
que esta, para se tornar factível, exige do homem uma economia dos seus instintos mais
primitivos.

As reflexões contidas nos parágrafos anteriores foram feitas por Zigmunt Bauman. Em
sua obra Modernidade Líquida, o sociólogo polonês conceituou o estágio em que se
encontra o mundo contemporâneo. Para ele, as relações sociais são fluidas, pois
diferente das sólidas, são soltas pelo espaço e desprendidas do tempo. Diferente do
estado sólido, onde as partículas são fixas e, por isso, possuem fraca mobilidade, os
fluidos – em especial, os líquidos – se caracterizam pelo trânsito intenso num curto
espaço de tempo: “ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao
descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos
são fotos instantâneas, que precisam ser datadas (BAUMAN, 2001, p. 8)”.

De acordo com o autor supracitado, a contemporaneidade, esta “presente fase, nova de


muitas maneiras, na história da modernidade” (p.53), é marcada pela dissolução dos
estados sólidos anteriores. Tudo aquilo que estava sacramentado pelas instituições –
família, sociedade, Estado – foi “derretido” para a construção de um novo estado de
coisas.

Assim, com base nessas reflexões é que se busca entender a construção do homoerótico
na contemporaneidade, tendo em vista que a subjetividade é construída a partir do
contexto cultural e social. Ao longo do desenvolvimento dos séculos o debate acerca da
homoafetividade tem ganhado notoriedade e se faz atual no mundo contemporâneo.
Algumas indagações podem ser realizadas. Será que a sociedade rompeu com a
moralidade? Como o indivíduo lida com sua sexualidade e o sofrimento psíquico
decorrente de sua condição sexual? Como a clínica psicanalítica pode escutar e acolher
o sujeito homoerótico e o sofrimento psíquico decorrente da sua sexualidade?

Como afirma Ceccarelli (2008), o debate acerca da homossexualidade continua como


nos tempos freudianos: existem analistas que veem a homossexualidade como algo que
pode e deve ser tratado, e há aqueles, mais próximos à teoria freudiana, que a entendem
como uma posição libidinal ao mesmo título que a heterossexualidade. O autor afirma
que o número de trabalhos que têm sido publicados nos últimos tempos é bastante
significativo.
De acordo com Marques (2008), infelizmente, ainda hoje, os homossexuais não gozam
do direito de não serem discriminados e o pior é que não são apenas os cidadãos
religiosos, encharcados pela fé judaico-cristã-islâmica, que apresentam movimentos
retrógrados e contraditórios, nos quais a homossexualidade vem representar o
significante maior do princípio da exclusão pelo fato de andar na mão contrária da
instituição do casamento e da filiação. Vemos, claramente, o discurso da ciência
enveredando por este mesmo princípio etnocêntrico, no qual a anatomia traça a
diferença e o destino do sujeito.

Ao longo do tempo e também na contemporaneamente, muitas lutas e movimentos


visam garantir o espaço ao indivíduo homoerótico a fim de propiciar uma identidade
livre de estigmas decorrentes do preconceito, com base na ideia que não existe uma
sexualidade absolutamente estável. A partir das contribuições de Freud, que estão
oportunamente atuais na época, pode-se fazer menção a uma construção subjetiva da
sexualidade, que é tecida pelos aspectos simbólicos arraigados em uma dada cultura,
daquilo que é certo, ou daquilo que não é certo, o que pode dificultar a liberdade da
expressão no indivíduo homoerótico.

Roudinesco (2003, apud MARQUES, 2008) fala de duas posições atuais acerca da
homossexualidade. “Por um lado, os dogmáticos permanecem ligados a um modelo
congelado e, por outro, os modernos se apresentam sensíveis às transformações
induzidas pelos próprios sujeitos” (p. 48).

Roudinesco (2003), situando-se ao lado dos modernos, enfatiza:

A partir do momento em que uma nova realidade toma corpo, em que ela existe, a
psicanálise – como, aliás, qualquer outra disciplina – deve pensá-la, interpretá-la e levá-
la em conta, e não condená-la, pois isso significa excluí-la ou negá-la, e, portanto, a
transformar uma disciplina em código de deontologia e a fazer de seus praticantes
censores ou promotores (ROUDINESCO, 2003, p. 51).

Assim, baseada na preocupação deixada por Freud ao tentar traçar sua teoria respaldada
numa perspectiva ética, ampliando visões e abrindo caminhos para a psicanálise acolher
o indivíduo e o sofrimento psíquico decorrente de sua sexualidade, acredita-se na
necessidade, ainda na atualidade, de esclarecer algumas questões oriundas da clínica
psicanalítica relacionadas ao homoerótico, e assim, instrumentalizar e dar suporte aos
profissionais da área para sustentar o sujeito do inconsciente.

De acordo com Marques (2008), após todos os movimentos que ao longo dos anos
assistiu-se contra a patologização da homossexualidade, e apesar de todo o esforço de
Freud ao abordar o sujeito do inconsciente, valorizando a pulsão e admitindo todas as
variações possíveis à sexualidade humana; encontra-se, ainda hoje, uma retórica de
argumentos calcados no ideal da heterossexualidade enquanto norma, que colaboram
com a difusão do imaginário social da complementaridade dos sexos e corrobora com o
aumento do preconceito.

Essa ideia é reafirmada na contemporaneidade devido a um Projeto de Decreto


Legislativo (PDC) 234 (PDC) nº 234/2011, que tramitou na Câmara dos Deputados e
que teve como objetivo sustar parte da Resolução do Conselho Federal de Psicologia
(CFP) nº 001/99, que "estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à
questão da Orientação Sexual". O projeto ficou conhecido como a liberação da “Cura
Gay”, isto é, a Lei permitia o tratamento por psicólogos de pacientes que quisessem
"reverter" a sua homoafetividade, fato que soa como uma contribuição para aumentar o
preconceito e maximizar a patologização da prática homoerótica. Esse fato configura
um retrocesso nas causas já conquistadas pelo movimento LGBT, porém, o projeto foi
arquivado pela Câmara dos Deputados (CECCARELLI, 2013).

Nesse sentido, está dentro do contexto psicológico, bem como da psicanálise, escutar e
acolher o indivíduo e o sofrimento psíquico decorrente de sua orientação sexual, mas
em nenhum momento o psicólogo deve “reverter” a sexualidade do paciente. A clínica
psicanalítica, através de seu aporte teórico, está apta para ouvir e dar suporte aos
indivíduos em suas diversas manifestações sexuais. O paciente pode procurar ajuda
profissional devido ao sofrimento advindo da forma de viver a sua sexualidade, seja na
vertente heterossexual ou homossexual.

Na grande maioria dos casos, o conflito apresentado pelo sujeito não está ligado
diretamente a sua sexualidade, mas ao discurso social que dita os parâmetros da
“sexualidade de normal”. Neste sentido, entende-se perfeitamente que muitos gays
procurem ajuda na tentativa de livrarem-se da opressão social da qual são vítimas
(CECCARELLI, 2013).

Ainda de acordo com o autor acima citado, o discurso heteronormativo hegemônico cria
uma espécie de armadura na qual o sujeito, em eco com o sistema de valores morais, vê-
se aprisionado em uma forma que determina a maneira correta de viver a sexualidade, e
condena toda expressão sexual que escape às normas socialmente construídas. Com isto,
o imaginário cultural não apenas impede uma fluidez pulsional menos conflitual, como
impõe um discurso dogmático estigmatizante, que classifica os sujeitos como normais
ou desviantes a partir de sua orientação sexual.

Não cabe ao psicólogo, a despeito de suas crenças pessoais, exercer qualquer tipo de
ação que induza a tratamentos não solicitados visando a "cura gay" ou "terapias" com o
intuito de produzir uma reversão na chamada "orientação sexual", como se existisse
uma linha "normal e natural" da qual o/a homossexual se desviou. Seria como
aconselhar a um sujeito, que procura ajuda por conflitos conjugais, a não se separar,
pois o "natural" do ser humano seria constituir família. E, a partir daí, propor-lhe um
tratamento visando "curá-lo" de sua incapacidade de manter laços conjugais
(CECCARELLI, 2013).

O que tem determinado uma forma “correta” de sexualidade são os critérios construídos
historicamente em uma dada sociedade. No contexto da cultura ocidental, pauta-se em
um modelo heteronormativo, ou seja, a heterossexualidade ainda é considerada
“normal”, o que faz com que todas as outras manifestações sexuais sejam
desconsideradas.

Assim, o indivíduo se depara diretamente com sua sexualidade, interditada pela


moralidade e pelas condutas dominantes, todavia, as diferentes formas sexuais estão a
todo tempo a manifestar-se na atualidade. Além da dificuldade em construir livremente
tal sexualidade, existe, sobretudo, a dificuldade do outro em reconhecê-la como algo
natural e subjetivo.
Falar do homoerótico hoje é, sem dúvida, ser convidado a debruçar-se de forma
inovadora sobre algo já tão falado e estudado quanto mal compreendido. Faz-se
importante ampliar nossa compreensão da prática homoerótica como uma das
possibilidades de expressão da sexualidade humana, sem rotulá-la em convenções ou
normas, a fim de se expandir também as focalizações sobre o humano e suas
possibilidades de formação de identidade.

Para o mesmo autor, quando se fala de identidade sexual, só pode-se falar de


sentimento, o de pertencer ao gênero masculino ou ao gênero feminino, e jamais de
certeza. Além disso, para falar de sentimento de identidade, deve-se seguir os passos de
Freud quando ele descreve o “sentimento oceânico”, ainda que este último não se
confunda com o primeiro. Contudo, nos dois casos, se está lidando com representações
percebidas pelo Eu, cujos conteúdos não podem ser objetivamente verificáveis por
serem subordinados ao universo fantasmático: o sentimento de identidade sexual é
intimamente ligado aos conteúdos do recalcado próprio a cada ser humano. O recalcado,
que contém a singularidade da história de cada um, representa, neste sentido, a
verdadeira identidade do sujeito, o que faz com que cada ser humano seja único: é no
recalcado que se encontra a história das escolhas de objeto, a das pulsões, a das
vagabundagens da libido, assim como os caminhos do desejo em suas tentativas de
realização alucinatória.

Quando um sujeito evoca, sem hesitar, seu sentimento de identidade sexual, os


recalcamentos presentes desde o início de sua vida, impedem o acesso aos cenários
fantasmáticos que formam o alicerce daquilo que ele está nos comunicando.

Se o sentimento de identidade sexual é dependente dos efeitos do inconsciente, a


posição do sujeito quanto ao fato de poder dizer, com relativa segurança, que ele é um
homem ou uma mulher, está em relação direta com a questão da atribuição fálica, e é
independente da anatomia: de um lado tem-se o real da anatomia e, de outro lado, a
elaboração psíquica feita a partir desse real, cujo resultado será justamente o sentimento
de identidade sexual (CECCARELLI, 1997).

O entendimento dos processos de construção da identidade sexual traz consequências


muito importantes na prática da Psicologia e das Ciências da Saúde. De fato, há um
conjunto de pedidos na prática clínica em que a falta de compreensão destes assuntos
pode comprometer um apoio psicológico eficaz. Deste modo, importa explicar como se
constrói a identidade homossexual e compreender os seus determinantes para que tal
não aconteça (PEREIRA; LEAL, 2005).

De acordo com Pereira, Ojima e Ayrora (2006), antes de analisar o processo de


construção da identidade homossexual, é necessário levantar alguns pontos: o estigma
que envolve a homossexualidade afeta tanto a formação quanto a expressão da
identidade homossexual; e a formação da identidade homossexual envolve uma gradual
aceitação do “rótulo” homossexual para si.

Seguindo essa vertente, o mesmo autor argumenta que o processo de construção da


identidade é um processo de auto-classificação no qual o indivíduo reconhece e aplica
um rótulo. Desse modo, se reconhecer homoafetivo na contemporaneidade ainda é
carregar um rótulo atribuído pelo social, o que implica lidar com uma sexualidade mais
aberta e notável. A sexualidade homoafetiva pode, ainda, ser carregada de estigmas e
esteriótipos e o lugar do sujeito deve ser entendido como o daquele que tem direito à
voz e, sobretudo, direito de viver sua sexualidade.

Percebe-se que constituir-se homoafetivo, causa conflitos ao indivíduo, tendo em vista


que este poderá se deparar com a segregação social e todo o preconceito inerente à
moralidade. A não compreensão inicial do ser homoerótico, de acordo com diversos
autores, distingue nesta descoberta, a aceitação e a negação, causando confusões na
percepção do que é escolha, desejo, opção e orientação.

Ao longo das lutas e movimentos políticos, o homoerotismo, nos tempos atuais, tende a
se deparar com novos arranjos e configurações. A exemplo disso encontra-se a
aprovação da União Estável no Brasil, que aconteceu no dia 5 de Maio de 2011 através
do Supremo Tribunal Federal (STF), que votou a favor da união estável entre casais do
mesmo sexo. Desta forma, no Brasil são reconhecidos às uniões estáveis homoafetivas
todos os direitos conferidos às uniões estáveis entre um homem e uma mulher (DIAS,
2012).

Para o universo LGBT esse fato se configura como uma conquista relevante no que
tange aos direitos humanos da categoria, porém, suscita uma série de discussões no que
tange à sua identidade e liberdade de expressão. A moralidade e os modelos religiosos
ainda questionam o lugar do sujeito homoerótico como algo que ameaça à família e a
procriação, visto que rompe com os aspectos ditos “normais” pelas convenções sociais.

É valido ressaltar que um dos pontos de ruptura da teoria psicanalítica que até hoje é
problemático, e talvez ainda por muito tempo, para a cultura ocidental é a questão da
sexualidade. A despeito de tanta “evolução”, a sexualidade ainda continua a ser um
grande tabu.

Neste sentido, o texto de Freud (1889) A sexualidade na etiologia das neuroses, escrito
há mais de 100 anos é de uma atualidade desconcertante. Por outro lado, embora muito
já tenha sido dito e escrito sobre o impacto produzido pela publicação dos Três ensaios,
o assunto é geralmente debatido, já o dissemos, em relação às revolucionárias posições
freudianas a respeito da sexualidade. Acredita-se que a ruptura mais importante trazida
por este texto fundador ainda não foi suficientemente avaliada. Trata-se da
desconstrução do imaginário judaico-cristão produzida pelos postulados freudianos
(CECCARELLI, 2007).

Para Ceccarelli (2010) as referências mais caras sobre a sexualidade, assim como as
posições morais e éticas, são baseadas no sistema de valores judaico-cristão que são
historicamente construídos. Na cultura ocidental, estes valores funcionam como
referências identitárias que organizam o cotidiano e explicam a origem do mundo e
como ele deve funcionar segundo a vontade de Deus: eles são a mitologia da sociedade.
Baseado nessa mitologia, o desejo sexual espontâneo é prova e castigo do pecado
original – a concupiscência: o homem é fruto do pecado – e a única forma de
sexualidade aceita é a heterossexual para a procriação.

Ao postular tais ideias, percebe-se que o homoerotismo no contexto contemporâneo,


encontra-se cerceada pelos modelos pautados na cultura ocidental, bem como nos
valores cristãos que impedem que a manifestação homoafetiva por acreditar-se que essa
prática não condiz com as formas de sexualidade aceitável por tais crenças, ao passo
que ainda se instala em grande parte da sociedade ideias e pré-julgamentos acerca dos
indivíduos que apresentam uma orientação sexual que não é a heterossexualidade.

Portanto, a psicanálise trouxe grandes contribuições acerca do entendimento da


sexualidade, no que tange à ideia de que a sexualidade provém de uma “natureza
humana”. Assim, Freud rompe com tal ideia e assume postura de que a sexualidade não
tem relação com a biologia, mas sim com a pulsão, que por si mesma não tem possui
um objeto definido. Nesse aspecto, a psicanálise pode contribuir para a desmistificação
da construção homoerótica, bem como para alargar os pensamentos e auxiliar o
indivíduo a lidar com sua sexualidade.

4. Considerações Finais
Através da pesquisa pôde-se perceber que a psicanálise informa que tanto a
homossexualidade quanto a heterossexualidade são orientações sexuais legítimas, tendo
em vista que a pulsão sexual não tem objeto fixo, por não estar atrelada ao instinto,
como nos animais. Desse modo, foi possível analisar o processo de construção do
homoerótico na contemporaneidade à luz da psicanálise.

O levantamento bibliográfico também permitiu verificar que a construção do


homoerótico na contemporaneidade percorre um caminho em que o indivíduo se depara
com uma sexualidade mais aparente, porém, essa mesma sexualidade ainda encontra-se
pautada em uma cultura heteronormativa, que traz em seu bojo o preconceito social que
estigmatiza e rotula o indivíduo até os dias atuais. Pôde-se perceber que além da
dificuldade em construir livremente uma identidade homoerótica, existe, sobretudo, a
dificuldade do outro em reconhecê-la como algo natural e subjetivo. Assim, o indivíduo
se depara com uma sexualidade interditada pela moralidade e pelas condutas
dominantes, o que se deve a uma construção sócio-histórica da própria sexualidade, bem
como do discurso religioso e médico-psicológico que contribuíram para a formação
dessa visão.

Nesse sentido, percebe-se que o discurso social que constroi as referências simbólicas e
dita os parâmetros que definem “a sexualidade normal” contribui não só para inventar
uma prática homoerótica, como também para que o indivíduo homoerótico, marcado
pelos ideais da sociedade, se sinta “desviante” de tal discurso dominante.

Sobre o Autor:

Alex Barbosa Sobreira de Miranda - Psicólogo graduado pela Universidade Estadual do Piauí
(UESPI). Teresina, PI, Brasil. e-mail: alex_barbo_sa@hotmail.com

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