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1. Considerações iniciais
A prática homoerótica não é algo novo no comportamento humano, a sua manifestação
está presente desde a aurora da humanidade em todas as culturas. Contudo, ao longo da
história, o homoerotismo tem sido discutido por diversos campos da ciência. As
dúvidas, o preconceito, o moralismo e as especulações ocuparam esse cenário em
diversos lugares, assumindo várias formas e funções nas diferentes culturas e épocas. A
época e o local foram determinantes no tratamento que se deu aos homoeróticos, tendo
em vista que cada civilização, em determinados momentos históricos tiveram uma
postura diferente frente a tais comportamentos.
De acordo com Vieira (2009), no final do século XIX, sobretudo pela ascensão de um
novo discurso médico-científico, preocupado com o estudo e classificação das
patologias, eis que surge uma nova espécie: o “homossexual”. Nesse sentido, existia
uma preocupação em identificar as causas da homossexualidade, visto que essas
investigações tinham a intenção de normatizar a vida sexual das pessoas, o que fazia
parte de do movimento higienista que se dirigia ao controle e regulação da vida urbana.
Ainda de acordo com o autor acima citado, as campanhas de higiene social pertenciam a
um momento histórico que apoiava a expressão sexual desde que restrita ao laço
matrimonial, ou seja, apenas as relações heterossexuais conjugais vinculadas à
reprodução e à transmissão de bens eram endossadas. Em qualquer outra esfera ou
contexto, a relação sexual era estigmatizava.
Com a invenção de novos significantes para designar aqueles que se atraem por
parceiros do mesmo sexo (o sodomita, o uranista, o invertido), opera-se uma mudança
na concepção que se faz da homossexualidade. Mas, ao mesmo tempo inicia-se a luta
pela apropriação da categoria “homossexual”: apropriação jurídica, médica, social e,
porque não dizer, psicanalítica. Porém, é incontestável a radicalidade do pensamento
freudiano, pois em oposição radical ao seu tempo, Freud, defenderá o aspecto “natural”
e não patológico da homossexualidade, posicionando-se claramente, contra os juízes,
contra os sexólogos, contra os médicos enfim, contra a moral do fim do século
(VIEIRA, 2009).
Desse modo, foi a partir do conceito de pulsão, introduzido pela primeira vez nos Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, que se possibilitou a sustentação de Freud a
respeito da homoafetividade. O autor esclarece:
Freud (1975, p. 142) diz que pulsão é “um conceito situado na fronteira entre o mental e
somático; ou ainda é o representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do
organismo e alcançam a mente”.
Desta forma, Freud afirma que, desde que se familiarizou com a noção de
bissexualidade, passou a considerá-la como o fator decisivo: sem levá-la em conta,
dificilmente se poderia chegar a uma compreensão das manifestações sexuais de forma
efetiva no homem e na mulher, já que será a partir desta base conceitual que o autor
fornecerá uma explicação para o comparecimento da corrente homossexual latente ou
manifesta nos neuróticos (MARQUES, 2008).
Desta forma, tomando os sujeitos que escolhem como objetos sexuais pessoas do
próprio sexo, bem com do sexo oposto, apresenta-se insustentável qualquer hipótese
baseada no fato de que, a partir de premissas biológicas, o sujeito, segundo seu sexo
anatômico, possa recalcar as moções pulsionais do sexo oposto como que ancorado
numa certeza sobre o sexo que alicerça todos os processos mentais referentes à
sexualidade (MARQUES, 2008).
É bem sabido que em todos os períodos houveram, como ainda há, pessoas que podem
tomar como objetos sexuais membros de seu próprio sexo, bem como do sexo oposto,
sem que uma das inclinações interfira na outra. Chamamos tais pessoas de bissexuais e
aceitamos sua existência sem sentir muita surpresa sobre elas. Viemos a saber, contudo,
que todo ser humano é bissexual nesse sentido e que sua libido se distribui, quer de
maneira manifesta, quer de maneira latente, por objetos de ambos os sexos (FREUD,
1937, v. 23, p. 260).
Um dos casos mais emblemáticos de Sigmund Freud sobre a homoafetividade foi o caso
Schreber. É valido ressalvar que Freud nunca teve qualquer espécie de contato com o
paciente, nem com seus familiares. Sua análise foi publicada em Notas psicanalíticas
sobre um relato de uma paranóia em 1911. Portanto, o autor propôs, a partir da análise
do relato autobiográfico de paranóia de Schreber, que a doença expressaria um
mecanismo de defesa do sujeito contra sua libido homossexual.
Para Freud (1911), após recalcada, a libido homossexual retornaria com a falência das
defesas e o ego defender-se-ia novamente com o desenvolvimento da paranóia, através
de seu mecanismo de projeção, que é manifesta clinicamente pelos delírios de
perseguição e de ciúme, por erotomania e por megalomania. Esta reflete a fixação da
libido no próprio ego e revela dinamicamente a regressão da homossexualidade
sublimada ao narcisismo.
No caso de Daniel Paul Schreber o livro relata uma síndrome delirante de uma pessoa
perseguida por Deus. Assim, Schreber apresentou tais sintomas após ter sido derrotado
em uma campanha ser candidato de um partido conservador. Desse modo, seu discurso
aponta uma existência terrível: um ser sem estômago, sem laringe e sofrendo
perseguições de pássaros. Desse modo, em seu discurso, ele se transformaria em uma
mulher e engravidaria de Deus.
A partir da “revolta” que Schreber tinha de Deus, pôde-se identificar uma transferência
pela figura de seu pai, podendo constituir uma homoafetividade recalcada. Para Freud
(1911), o surgimento do delírio foi uma tentativa de cura, cujo objetivo de Schreber era
um consolo para a morte do pai, já que não havia tido filho algum. Nesse aspecto, Deus,
em seu sistema delirante, seria a representação do seu pai.
A partir da publicação dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), com a
introdução do conceito de pulsão, e toda significação que tal conceito propõe, Freud
desliga-se da sexologia e retoma seus estudos a fim de compreender as causas da
homoeroticidade. Nesse texto, é possível encontrar elementos indispensáveis para a
noção de sexualidade defendida pelo autor.
Nesse sentido, com o discurso da pulsão, algumas condutas que outrora eram
consideradas perversas, deixam de sê-la ao tomar como referência o destino da pulsão.
É justamente este o ponto crucial, o qual Freud desenvolve no primeiro dos Três
ensaios, demonstrando sua superação quanto à noção de sexualidade.
Iniciar-se-á com As aberrações sexuais, texto no qual já nota-se, desde o título, uma
indicação do estranho, do patológico, do avesso do normal. Talvez, para alguns, possa
parecer que Freud estivesse tratando de novas denominações para o até então
considerado comportamento perverso. No entanto, o que o autor faz é precisamente o
contrário. Ele se utiliza do sentido dessas palavras para transcender o saber da ciência,
já vigente no senso comum, e, assim, introduzir uma nova configuração, a partir da ótica
psicanalítica (MARQUES, 2008).
Acredita-se que este é o grande corte dado por Freud:
Devo destacar, como característica desse meu trabalho, sua deliberada dependência da
investigação biológica. Evitei cuidadosamente introduzir expectativas científicas
provenientes da biologia sexual geral, ou da biologia das espécies animais em particular,
no estudo da função sexual do ser humano que nos é possibilitado pela técnica da
psicanálise. A rigor, meu objetivo foi sondar o quanto se pode apurar sobre a biologia
da vida sexual humana com os meios acessíveis à investigação psicológica; era-me
lícito assinalar os pontos de contato e concordância resultantes dessa investigação, mas
não havia por que me desconcertar com o fato de o método psicanalítico, em muitos
pontos importantes, levar a opiniões e resultados consideravelmente diversos dos de
base meramente biológica (FREUD, 1905, v. 7, p. 125).
Com base em um novo diálogo com o campo da ciência, realizado por meio efetuado do
inconsciente e da pulsão, Freud assinala suas novas concepções de forma clara,
dedicando à homossexualidade um estatuto diferente daquele das aberrações, fazendo
menção à pulsão e aos possíveis desvios em relação ao objeto sexual. Nessa perspectiva,
o autor retira a possibilidade de qualquer caráter de degenerescência aplicado à
homossexualidade e adverte:
No decorrer da sua obra, por volta de um ano depois, Freud comunica a Jung um
interesse pela vida de Leonardo da Vinci, sobretudo, pela sua pulsão de saber sobre a
origem da atrofia da vida sexual deste, que para o autor parecia à própria substituição de
uma homossexualidade. Pouco depois, realizou um trabalho, sobre o tema em questão,
publicando seu texto em 1910.
Mesmo diante da dificuldade para provar a verdade de tal hipótese, o autor ressalta que
o instinto da pesquisa e a atrofia da vida sexual de Leonardo da Vinci, pareciam derivar
do fato de que depois de sua curiosidade ter sido ativada, na infância, a serviço de
interesses sexuais, ele tenha conseguido sublimar a maior parte da sua libido em sua
ânsia pela pesquisa.
A resposta lhe parece simples: “Já tivemos a ocasião de mostrar que, de acordo com as
frequentes substituições de que se serve a linguagem, a “cauda” do abutre deve, com
toda certeza, significar o genital masculino, um pênis” (FREUD, 1910, v. 9, p. 100) E
acrescenta:
Desse modo, o autor conclui que nos casos de homoeroticidade masculina, geralmente
os indivíduos contemplam uma ligação erótica muito próxima com a mãe durante o
primeiro período da infância, até chegar o momento em que este amor não pode mais
continuar e acaba por sucumbir. Essa ligação haveria sido despertada pelo excesso de
ternura por parte da própria mãe, levando Freud a considerar a hipótese de que a
presença de um pai forte asseguraria no filho a escolha “correta” de objeto, ou seja, uma
pessoa do sexo oposto.
Entretanto, embora a resposta aos questionamentos levantados pareça ter sido dada,
ainda estamos longe de querer exagerar a importância dessas explicações sobre a gênese
psíquica da homossexualidade. É óbvio que elas discordam completamente das teorias
adotadas pelos defensores dos homossexuais, mas sabemos também que não são
bastante claras para chegar a uma conclusão definitiva sobre esse problema. Aquilo que,
por motivos práticos, é geralmente chamado de homossexualidade poderá ser o
resultante de uma variedade enorme de processos inibitórios psicossexuais; o processo
particular que destacamos é, talvez, apenas um entre muitos outros e talvez corresponda
a um único tipo de “homossexualidade”. Devemos também admitir que o número de
casos de “homossexualismo” deste tipo, em que podemos reconhecer as causas
determinantes assinaladas por nós, é bem maior do que aqueles em que ele de fato se
concretiza. Portanto, nós também não podemos negar a influência exercida por fatores
constitucionais desconhecidos, aos quais geralmente se atribui toda a homossexualidade
(FREUD, 1910).
Nessa perspectiva, Freud acrescenta, em 1910, a partir de uma nota aos Três ensaios
uma atribuição da homossexualidade a certo caráter “adquirido”, em contraposição ao,
até então, considerado unicamente “inato” da sexualidade humana, acrescentando à
diversidade de seus aspectos a influência das diferentes culturas e estágios de
civilização:
A diferença mais marcante entre a vida amorosa da Antiguidade e a nossa decerto reside
em que os antigos punham a ênfase na própria pulsão sexual, ao passo que nós a
colocamos no objeto. Os antigos celebravam a pulsão e se dispunham a enobrecer com
ela até mesmo um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional
em si e só permitimos que seja desculpada pelos méritos do objeto (FREUD, 1905, v. 7,
p. 141).
Contudo, esse momento se torna relevante para o autor poder reconhecer a valiosa
contribuição da bissexualidade na construção da escolha do objeto, de modo que passa a
utilizá-la mais firmemente como um recurso no esclarecimento da sexualidade.
Para Freud (1905), a investigação psicanalítica opõe-se com toda firmeza à tentativa de
separar os homossexuais dos outros seres humanos como um grupo de índole singular.
Ao estudar outras excitações sexuais além das que se exprimem de maneira manifesta,
ela constata que todos os seres humanos são capazes de fazer uma escolha de objeto
homossexual e que de fato a consumaram no inconsciente. [...] A psicanálise considera,
antes, que a independência da escolha objetal em relação ao sexo, a liberdade de dispor
igualmente de objetos masculinos e femininos, tal como observada na infância, nas
condições primitivas e nas épocas pré-históricas, é a base originária da qual,
desenvolvem-se tanto o tipo normal como o tipo invertido. No sentido psicanalítico,
portanto, o interesse sexual exclusivo do homem pela mulher é também um problema
que exige esclarecimento, e não uma evidência indiscutível que se possa atribuir a uma
atração de base química.
No ano de 1920, Freud clarifica ainda mais sua posição acerca da homossexualidade:
Além disso, Freud leva “as atividades sexuais das crianças e dos pervertidos para o
mesmo âmbito que o dos adultos normais” (1925, p. 52). Desse modo, o conceito de
normalidade perde seu sentido, não existindo diferença entre o normal e o patológico. A
diferença se encontra nas pulsões e na finalidade sexual destas.
No decorrer da obra de Freud ainda existe uma famosa carta do autor, datada de 1935, a
uma mãe norte-americana que solicita conselhos sobre o seu filho que apresentava
condutas e comportamentos que ela considerava anormais. Ao que Freud respondeu:
Eu creio compreender após ler sua carta que seu filho é homossexual. Eu fiquei muito
surpreso pelo fato que a senhora não mencionou esse termo nas informações que deu
sobre ele. Posso eu, vos perguntar por que evitou esta palavra? A homossexualidade não
é evidentemente uma vantagem, mas não há nada do que sentir vergonha. Ela não é nem
um vício, nem uma desonra e não poderíamos qualificá-la de doença. (...) Muitos
indivíduos altamente respeitáveis, nos tempos antigos e modernos foram homossexuais
(Platão, Michelângelo, Leonardo da Vinci). É uma grande injustiça perseguir a
homossexualidade como crime e também uma crueldade. (FREUD, 1935/1967, p. 43).
No que tange ao texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905) afirma
que a pulsão sexual não tem objeto fixo. Desse modo, o objeto da pulsão é
diversificado, exprime-se das mais variadas formas: oral, anal, escopofílica, vocal,
sádica, masoquista, dentre outras. Com essa proposição, Freud divorcia a sexualidade de
qualquer relação com os órgãos genitais, sendo que o prazer é sua finalidade principal, e
só secundariamente, visa atender as necessidades de reprodução.
3. A Construção do Homoerótico na
Contemporaneidade
A contemporaneidade é o cenário em que despontam novas configurações e novos
modelos de comportamentos. Desse modo, os eventos contemporâneos assinalam
transformações marcantes que podem construir e realçar novas identidades. O sociólogo
Bauman (2001) visa traduzir a contemporaneidade utilizando-se de uma metáfora, ele
faz referência ao caráter passageiro das relações humanas no presente momento. Aponta
para a liquefação – termo advindo da Química que denota passagem do estado sólido
para o líquido – dos organismos que constituem a sociedade, a exemplo da família e dos
governos. Em consonância com o prisma estabelecido pelo referido sociólogo, Freud, na
primeira metade do século passado, discorreu sobre os males da civilização, indicando
que esta, para se tornar factível, exige do homem uma economia dos seus instintos mais
primitivos.
As reflexões contidas nos parágrafos anteriores foram feitas por Zigmunt Bauman. Em
sua obra Modernidade Líquida, o sociólogo polonês conceituou o estágio em que se
encontra o mundo contemporâneo. Para ele, as relações sociais são fluidas, pois
diferente das sólidas, são soltas pelo espaço e desprendidas do tempo. Diferente do
estado sólido, onde as partículas são fixas e, por isso, possuem fraca mobilidade, os
fluidos – em especial, os líquidos – se caracterizam pelo trânsito intenso num curto
espaço de tempo: “ao descrever os sólidos, podemos ignorar inteiramente o tempo; ao
descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um grave erro. Descrições de líquidos
são fotos instantâneas, que precisam ser datadas (BAUMAN, 2001, p. 8)”.
Assim, com base nessas reflexões é que se busca entender a construção do homoerótico
na contemporaneidade, tendo em vista que a subjetividade é construída a partir do
contexto cultural e social. Ao longo do desenvolvimento dos séculos o debate acerca da
homoafetividade tem ganhado notoriedade e se faz atual no mundo contemporâneo.
Algumas indagações podem ser realizadas. Será que a sociedade rompeu com a
moralidade? Como o indivíduo lida com sua sexualidade e o sofrimento psíquico
decorrente de sua condição sexual? Como a clínica psicanalítica pode escutar e acolher
o sujeito homoerótico e o sofrimento psíquico decorrente da sua sexualidade?
Roudinesco (2003, apud MARQUES, 2008) fala de duas posições atuais acerca da
homossexualidade. “Por um lado, os dogmáticos permanecem ligados a um modelo
congelado e, por outro, os modernos se apresentam sensíveis às transformações
induzidas pelos próprios sujeitos” (p. 48).
A partir do momento em que uma nova realidade toma corpo, em que ela existe, a
psicanálise – como, aliás, qualquer outra disciplina – deve pensá-la, interpretá-la e levá-
la em conta, e não condená-la, pois isso significa excluí-la ou negá-la, e, portanto, a
transformar uma disciplina em código de deontologia e a fazer de seus praticantes
censores ou promotores (ROUDINESCO, 2003, p. 51).
Assim, baseada na preocupação deixada por Freud ao tentar traçar sua teoria respaldada
numa perspectiva ética, ampliando visões e abrindo caminhos para a psicanálise acolher
o indivíduo e o sofrimento psíquico decorrente de sua sexualidade, acredita-se na
necessidade, ainda na atualidade, de esclarecer algumas questões oriundas da clínica
psicanalítica relacionadas ao homoerótico, e assim, instrumentalizar e dar suporte aos
profissionais da área para sustentar o sujeito do inconsciente.
De acordo com Marques (2008), após todos os movimentos que ao longo dos anos
assistiu-se contra a patologização da homossexualidade, e apesar de todo o esforço de
Freud ao abordar o sujeito do inconsciente, valorizando a pulsão e admitindo todas as
variações possíveis à sexualidade humana; encontra-se, ainda hoje, uma retórica de
argumentos calcados no ideal da heterossexualidade enquanto norma, que colaboram
com a difusão do imaginário social da complementaridade dos sexos e corrobora com o
aumento do preconceito.
Nesse sentido, está dentro do contexto psicológico, bem como da psicanálise, escutar e
acolher o indivíduo e o sofrimento psíquico decorrente de sua orientação sexual, mas
em nenhum momento o psicólogo deve “reverter” a sexualidade do paciente. A clínica
psicanalítica, através de seu aporte teórico, está apta para ouvir e dar suporte aos
indivíduos em suas diversas manifestações sexuais. O paciente pode procurar ajuda
profissional devido ao sofrimento advindo da forma de viver a sua sexualidade, seja na
vertente heterossexual ou homossexual.
Na grande maioria dos casos, o conflito apresentado pelo sujeito não está ligado
diretamente a sua sexualidade, mas ao discurso social que dita os parâmetros da
“sexualidade de normal”. Neste sentido, entende-se perfeitamente que muitos gays
procurem ajuda na tentativa de livrarem-se da opressão social da qual são vítimas
(CECCARELLI, 2013).
Ainda de acordo com o autor acima citado, o discurso heteronormativo hegemônico cria
uma espécie de armadura na qual o sujeito, em eco com o sistema de valores morais, vê-
se aprisionado em uma forma que determina a maneira correta de viver a sexualidade, e
condena toda expressão sexual que escape às normas socialmente construídas. Com isto,
o imaginário cultural não apenas impede uma fluidez pulsional menos conflitual, como
impõe um discurso dogmático estigmatizante, que classifica os sujeitos como normais
ou desviantes a partir de sua orientação sexual.
Não cabe ao psicólogo, a despeito de suas crenças pessoais, exercer qualquer tipo de
ação que induza a tratamentos não solicitados visando a "cura gay" ou "terapias" com o
intuito de produzir uma reversão na chamada "orientação sexual", como se existisse
uma linha "normal e natural" da qual o/a homossexual se desviou. Seria como
aconselhar a um sujeito, que procura ajuda por conflitos conjugais, a não se separar,
pois o "natural" do ser humano seria constituir família. E, a partir daí, propor-lhe um
tratamento visando "curá-lo" de sua incapacidade de manter laços conjugais
(CECCARELLI, 2013).
O que tem determinado uma forma “correta” de sexualidade são os critérios construídos
historicamente em uma dada sociedade. No contexto da cultura ocidental, pauta-se em
um modelo heteronormativo, ou seja, a heterossexualidade ainda é considerada
“normal”, o que faz com que todas as outras manifestações sexuais sejam
desconsideradas.
Ao longo das lutas e movimentos políticos, o homoerotismo, nos tempos atuais, tende a
se deparar com novos arranjos e configurações. A exemplo disso encontra-se a
aprovação da União Estável no Brasil, que aconteceu no dia 5 de Maio de 2011 através
do Supremo Tribunal Federal (STF), que votou a favor da união estável entre casais do
mesmo sexo. Desta forma, no Brasil são reconhecidos às uniões estáveis homoafetivas
todos os direitos conferidos às uniões estáveis entre um homem e uma mulher (DIAS,
2012).
Para o universo LGBT esse fato se configura como uma conquista relevante no que
tange aos direitos humanos da categoria, porém, suscita uma série de discussões no que
tange à sua identidade e liberdade de expressão. A moralidade e os modelos religiosos
ainda questionam o lugar do sujeito homoerótico como algo que ameaça à família e a
procriação, visto que rompe com os aspectos ditos “normais” pelas convenções sociais.
É valido ressaltar que um dos pontos de ruptura da teoria psicanalítica que até hoje é
problemático, e talvez ainda por muito tempo, para a cultura ocidental é a questão da
sexualidade. A despeito de tanta “evolução”, a sexualidade ainda continua a ser um
grande tabu.
Neste sentido, o texto de Freud (1889) A sexualidade na etiologia das neuroses, escrito
há mais de 100 anos é de uma atualidade desconcertante. Por outro lado, embora muito
já tenha sido dito e escrito sobre o impacto produzido pela publicação dos Três ensaios,
o assunto é geralmente debatido, já o dissemos, em relação às revolucionárias posições
freudianas a respeito da sexualidade. Acredita-se que a ruptura mais importante trazida
por este texto fundador ainda não foi suficientemente avaliada. Trata-se da
desconstrução do imaginário judaico-cristão produzida pelos postulados freudianos
(CECCARELLI, 2007).
Para Ceccarelli (2010) as referências mais caras sobre a sexualidade, assim como as
posições morais e éticas, são baseadas no sistema de valores judaico-cristão que são
historicamente construídos. Na cultura ocidental, estes valores funcionam como
referências identitárias que organizam o cotidiano e explicam a origem do mundo e
como ele deve funcionar segundo a vontade de Deus: eles são a mitologia da sociedade.
Baseado nessa mitologia, o desejo sexual espontâneo é prova e castigo do pecado
original – a concupiscência: o homem é fruto do pecado – e a única forma de
sexualidade aceita é a heterossexual para a procriação.
4. Considerações Finais
Através da pesquisa pôde-se perceber que a psicanálise informa que tanto a
homossexualidade quanto a heterossexualidade são orientações sexuais legítimas, tendo
em vista que a pulsão sexual não tem objeto fixo, por não estar atrelada ao instinto,
como nos animais. Desse modo, foi possível analisar o processo de construção do
homoerótico na contemporaneidade à luz da psicanálise.
Nesse sentido, percebe-se que o discurso social que constroi as referências simbólicas e
dita os parâmetros que definem “a sexualidade normal” contribui não só para inventar
uma prática homoerótica, como também para que o indivíduo homoerótico, marcado
pelos ideais da sociedade, se sinta “desviante” de tal discurso dominante.
Sobre o Autor:
Alex Barbosa Sobreira de Miranda - Psicólogo graduado pela Universidade Estadual do Piauí
(UESPI). Teresina, PI, Brasil. e-mail: alex_barbo_sa@hotmail.com
Referências:
14982003000200002&script=sci_arttext#topo10>.
_________. (1905). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: FREUD, S. Obras
completas. Rio de Janeiro: Imago, 1976. vol. VII.
vol. XII.