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Apontamentos sobre estudos e práticas do homossexualismo

Para se compreender melhor as analises que refutam sobre a atuação de


homens e mulheres em caráter de “travesti”, convém situa-la no contexto historiográfico
sobre a sexualidade humana, em especial até a segunda metade do século XX. Eis
porque parece necessário apresentar, à guisa de introdução, discussões importares da
história da investigação cientifica sobre a vida e o comportamento sexual do sujeito
homossexual que se consolidou em meio a um terreno fértil de obstáculos impostos,
muitas vezes intransponíveis, por “barreiras culturais”. O mito sobre a sexualidade, e o
silenciamento do tema em questão, desenvolveu no imaginário social uma série de tabus
e tradições que envolviam a sexualidade humana, delineando comportamentos
socialmente aceitáveis, dos comportamentos considerados “distúrbios sexuais”.
Os pioneiros no campo da medicina e da psiquiatria foram alvo de críticas
destrutivas por parte dos setores mais conservadoras da sociedade, e mesmo em certos
casos, do próprio meio científico. Teóricos e estudiosos como Freud e Havelock Ellis,
por exemplo, foram severamente censurados pela sociedade em que viviam. As obras de
Ellis, Sexual Inversion, chegou a receber na Inglaterra, a rubrica de obsceno. Anos
depois, quando Kinsey publicou seus estudos, foi repudiado por grupos contrários de
médicos e colegas que o ameaçavam com processos criminais. Para o sociólogo
americano, Ira Reiss, os cientistas não consideravam os estudos sobre a sexualidade
como um demônio “seguro”, pois tanto a ciência quanto os cientistas temiam o medo da
reação que a opinião pública poderia resultar, contraindo reagentes como o medo da
pressão política e do espírito preconceituoso marcante da época.
Os primeiros estudos científicos responsáveis por teorizar e discutir a
psicologia da sexualidade aconteceu sobretudo nos países germânicos e anglo-saxões na
Europa, entre o limiar do século XIX para o XX. Dentre as figuras mais marcantes desta
fase inicial, limitamo-nos a citar autores como Krafft-Ebing, autor de Psychopathia
Sexualis, Haverlock Ellis, Magnus Hirschfeld, autor e fundador do primeiro Instituto de
Sexologia de Berlim, pela primeira vez, e também Freud, que se destacava pelas suas
contribuições no campo dos estudos sexuais. Outros ensaios marcaram também os
trabalhos dos etnológicos, como os de Malinowski, sobre a vida sexual nas sociedades
ditas primitivas, além das importantes contribuições de W. Reich, que colou em
evidencia as dimensões políticas e ideológicas da vida sexual.
As mudanças ocorridas na União Soviética, no plano dos costumes, e ligadas à
promulgação de uma legislação sexual revolucionária, que favoreceu o investimento e o
fortalecimento de pesquisas cientifica no domínio dos estudos sexuais, foram
bruscamente interrompidos após a instalação do “stalinismo”. Desde então uma moral
rígida passou a integrar os hábitos e comportamentos da vida sexual dos soviéticos. O
advento do nazismo pôs fim ao desenvolvimento que as pesquisas na Alemanha tiveram
nos primórdios do século XX. O Instituto de Sexologia, dirigido por Hirschfeld, foi um
dos pioneiros no mundo a atender e tratar de homens e mulheres que se identificam com
o sexo oposto, e que usavam o “travesti” para escapar do julgamento moral e social da
sociedade e foi atingindo pela ocupação nazista em decorrência dos países que aderiram
a ideologia fascista.
Com a ascensão do regime nazista e em contrapartida a repercussão que os
estudos de Magnus alcançaram durante o período o homossexualismo acabou se
tornando um crime ainda mais intolerável, resultando em um atentado que incendiou e
destruiu centenas de pesquisas organizadas por Hirschfeld. O Instituto serviu mais do
que um centro de pesquisa teórica, foi também uma das primeiras clínicas a realizar a
primeira cirurgia moderna de confirmação de gênero e atendeu, durante as décadas de
1910 e 1920, muitos pacientes transgêneros e pesquisadores. Apesar do apoio até
mesmo de figuras como Albert Einstein, o Instituo sediado em Berlim, foi fechado em
1933, no mesmo ano em que se iniciou uma série de leis revisando a formação base
legal que permitia a perseguição aos homossexuais e tudo que envolvesse os
significados atrelados a estudos homossexuais.
Mas, devido a essa perseguição política, houve uma política favorável à
acumulação de conhecimentos científicos que aos poucos, foi dando conta de explicar,
em grande parte, os anseios sobre a sexualidade humana e o domínio das relações
“inversas”. Os diferentes grupos, que constituíram a ruptura das tradições sexuais,
demarcados por experiências “alternativas” de homens e mulheres representavam um
enorme potencial de mudança no campo dos estudos científicos. Dessa forma, na
medida em que os pesquisadores forneciam novas referencias para melhor situa e
compreender os diferentes comportamentos sexuais, eles serviram também para
combater certos pontos de vista tradicionais sobre tais comportamentos e contribuíram
para abrir novos caminhos para futuras pesquisas.
Ao cunhar os conceitos de “transexualismus” e “travesti” pela primeira em,
ainda na década de 1910, Hirschfeld derrubou preconceitos ao afirmar que “a
sexualidade não se reduzia a estereotípicos e classificações”. O médico afirmava ainda
que “todos nós temos uma mescla de elementos masculinos e femininos”, e que essas
características não deveriam ser usadas como defesa da honra e da virilidade dos
sujeitos homens, que encaravam o homossexualismo como uma prática pecaminosa, ou
como um “distúrbio sexual”. De acordo com o Oxford English Dictionary, o conceito
mais antigo associado ao campo linguístico dos conceitos sobre a sexualidade, o termo
“andrógeno” havia sido registrado desde o século XVI, e se referia ao fato de que
homens e mulheres poderiam apresentar características físicas semelhantes ao sexo
oposto.
Em 1938, o artista Micky, famoso pelo seu hábito de viver em travesti, contou
em uma reportagem sobre algumas das primeiras cirurgias, ainda experimental, da
mudança de sexo entre homens e mulheres. Ao assistir duas operações, Micky afirmava
que em meio aos cortes, golpes de faca e costuras, o perigo parecia inevitável. Era uma
experiencia perigosa tanto no sentido físico quanto emocional, pois o choque operatório,
a mudança de vida levava o paciente a um estado de tal ordem que ele próprio não podia
suportar. O número de operações realizadas pelo médico passava de sessenta sujeitos, e
eram considerados “doentes” pois não conseguiam suportar a condição de vida na qual
estiveram inseridas. Entre os pacientes mais fortes, que se adaptavam da cirurgia de
mudança de sexo, estava dois austríacos e um sueco, que “não foram transformados em
belas mulheres, mas ficaram mulheres”. O próprio doutor na época afirmava que esses
sujeitos não passariam dos 50 anos. Considerados “distúrbios sexuais”.
Diferente dos homossexuais, que são forçados a definir-se mais cedo, o sujeito
travesti só descobre suas afinidades físicas com o sexo feminino mais tarde. No campo
da psicanalise, tanto o sujeito homossexual, seja homem ou mulher, consegue se
identificar com sua forma física, diferente do que ocorre com o sujeito que se traveste
do sexo oposto. Ele tem um conflito entre o corpo e a alma e há uma relação subjetiva
intrínseca que o submete ao sentimento de pertencimento de ambos os sexos. Já no
século XX, Freud apontava que o homossexualismo não era uma doença, pois o mesmo
desenvolvia, em alguns casos, no momento em que a criança está estruturando sua
personalidade, momento em que ocorre alguma vertigem que faz com que ao invés de
se identificar com o pai e desejar a mãe, a criança se dá o contrário.
além dos homossexuais, outros 'estranhos' sexuais, como travestis,
transexuais e bissexuais, foram culturalmente definidos como doentes
mentais e patologizados como uma séria ameaça à segurança de outras
pessoas, incluindo crianças. O poder do discurso não fala apenas das
teorias de conhecimento (particularmente médicas) e de poder de
Michel Foucault, mas também de como os comportamentos e a
estética atribuídos à masculinidade, de forma mais restrita, são
moldados e definidos, segundo Elise Chenier.

Como na sociedade ocidental, o corpo foi visto como um dos objetos


privilegiados para o exercício da dominação. Estudos sobre o processo de trabalho, das
escolas, prisões e do direito penal, auxiliados pela medicina, psiquiatria e pela
psicanalise, deixam patente a presença de ideologia e de práticas sociais destinadas a
confinar o corpo à região das coisas controláveis e manipuláveis. Uma cultura que fez
do espirito o único sujeito, que depositou nas operações da consciência toda fonte de
conhecimento e de saber, é uma cultura na qual o corpo terá, necessariamente, o mero
estatuto de “objeto”. O peso dessa hegemonia “espiritual” ou da consciência pode ser
avaliado quando examinados estudos em torno da sexualidade. Como lembra
(FOUCAULT, a sociedade ocidental foi a única a elaborar uma “scentia sexualis” em
lugar de uma “ars erótica”, mas pelo modo mesmo como a sexualidade é retalhada,
dividida, controlada, submetida a procedimentos que visam a controlar e a corrigir os
corpos pela produção de um novo objeto, o corpo prazeroso.
Nesse sentido, o corpo foi, e ainda permanece sendo submetido a procedimentos
com a intenção de “corrigi-los”, colocando em pauta o corpo como um objeto de prazer,
bem como também de dominação, reduzido a um conjunto sapiente e consciente de
técnicas de manipulação e controle social. Conhecer o corpo, tornou-se algo que o
próprio sujeito poderia encarar como um objeto, recebendo o conhecimento produzido
fora de si por uma consciência cientifica ou técnica. No decorrer do século XIX, os
exemplos dessa “consciência cientificam”, pode ser analisada em diversos campos
teóricos. Na medicina os estudos médicos e higienistas buscavam concentrar uma certa
normatividade sobre as “classes subalternas”, onde as manifestações de inferioridade
poderiam se expressar na natureza, isto é, da forma como a sociedade considerava os
sujeitos “normais e anormais”, como é o caso dos estudos médicos sobre os corpos de
mulheres meretrizes, como os de Parent Duchalet, Césare Lombroso e Pauline.
Outro exemplo dessa tentativa de controlar os corpos, é o próprio fio condutor
que tece a homossexualidade nos estudos que antecedem a segunda metade do século
XX. A homossexualidade, embora pouco discutida nas fontes periódicas e até mesmo
judiciais, era visto como um “tipo social”. Analisando o discurso das fontes sobre
sujeitos “alternativos”, o sujeito homossexual não era compreendido como aquele/a que
fez uma escolha, mas sim como um “tipo” de sujeito, cujo corpo obedecia a
“determinismos perversos”, que podia ser explicado em decorrência da “perversidade
psíquica” ou de anomalias glandulares e hormonais. Ou seja, diferente das teorias do
criminoso nato, por Lombroso, ou da inferioridade feminina, o sujeito homossexual não
permanecia preso a natureza, mas sim era compreendido como o próprio animal que
redigia a “monstruosidade” na esfera social. No caso das mulheres, sintomaticamente
percebidas e pensadas como “fêmeas” e machos.
Em meio a este “panorama cientifico”, a sexologia cientifica era dívida em duas
correntes, ou duas interpretações distinta sobre o homossexualismo. A primeira delas,
vislumbrada e estudada por Charcot, depois completada por Freud e outros, que
atribuem a inversão sexual a fatores variados da ordem psicogenética, ao passo que,
opondo-se a esta interpretação, surgem outros teóricos como Steinach, Lipschutz e
Maranon, com a teoria da razão endócrina, como determinante da “deformação genética
sexual do homem”. Freud, que formou com as ideias bases de Charcot, foi, aliás, um
dos mais citados nessa corrente científica que apontava os casos de “anormalidade
sexual”, como o homossexualismo, a pederastia, safismo ou lesbianismo. Esse conjunto
de “anomalias” era resultado de uma natureza psíquica adjacentes do ocidente. Segundo
ainda essa interpretação do século XIX, o homossexual, visto como um “doente sexual”,
era definido como um sujeito invertido ou extrovertido, mas acentuadamente o primeiro
que designava a fuga do complexo de Édipo, o que equivalia a renúncia do próprio
sexo.

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