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Ilustração da capa elaborada pelo autor a partir da obra Depois do Banho, 1932, de

Victor Brecheret, localizada no Largo do Arouche


CAVERNAS URBANAS
uma proposta aos grupos LGBTs em São Paulo

autor ARTHUR FERNANDO DOS SANTOS

orientadores CLAUDIA STINCO


GILBERTO BELLEZA

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO


UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

SÃO PAULO, 2018


trabalho final de graduação
Aos amantes do fenômeno urbano
A toda heterogeneidade
Aos grupos LGBTs
Às possibilidades de encontrar aos outros e a si mesmo,
ou perdê-los e até mesmo se perder na multidão.
Eliminarás a doença e o bário
Restará o deleite dos homens
Porque foste o andrógino

Oswald de Andrade, Episódio, 1946


sumário

i. raiar das cavernas 13

ii. desejos e heterogeneidades 17

iii. localizar 23

iv. pontilhismo 33

v. a cavernona 36

__sítio 37

__programa 40

__partido arquitetônico 43

__ o1. oficina cultural 45

__ o2. espaço dzi croquettes 51

__03. casarão das acolhidas 57

__detalhes construtivos 63

vi. conclui-se com o belo 65

bibliografias 68
p (1) Transarquitetônica (vista panorâmica),
Henrique Oliveira, 2014, Museu de Arte Contem-
porânea, São Paulo - Brasil
foto: Everton Ballardin

t (2) vista interna da instalação.


foto: Everton Ballardin

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i. raiar das cavernas

[A caverna] é a arquitetura como as ruas seriam os corredores; os edifícios, as


abrigo. É a necessidade de habitar, de se grutas; as praças, as clareiras; uma junção e
abrigar e de se proteger de um mundo sobreposição de elementos que nós mesmos
agressivo; é o reflexo do eterno retorno criamos e que proporcionam toda a dinâmica
ao claustro materno. A caverna como urbana a qual conhecemos e vivemos.
arquitetura muda, sem significação Nessas cavernas, diferentes cidadãos,
nem capacidade de transmissão, vem reunidos por desejos em comum, refugiam-
a ser uma necessidade materializada se e constroem nelas suas expressões.
na própria terra – a mãe terra-, pois
A partir desta interpretação,
certamente as primeiras habitações
propõe-se o olhar a cidade de dentro
humanas foram as cavernas que a
das cavernas dos grupos LGBTs em São
natureza oferecia como local de refúgio
Paulo. Motiva-se pela necessidade de
contra os animais e os humores do clima.
tecer ideias que buscam explicar como
(PEREIRA, 2010, p: 21) e porque grandes metrópoles abrigam
significativas expressões destes grupos bem
como a sua contribuição em meio a própria
metrópole. Também encontra estímulo na
Nas origens do homem, afirma-se que necessidade de materializar um programa
nossa primeira forma de abrigo teriam sido arquitetônico que os acolham, permitindo
as cavernas, mas que em um determinado a reflexão sobre seus anseios e poéticas.
momento da história deixamos de ser Parte do valor que é auspicioso
refugiados e tornamo-nos construtores e as heterogeneidades urbanas e toda
criadores da arquitetura – como sugere complexidade dessa grande caverna e
Laugier com o mito da cabana. Reinventamos enfatiza-se que a essência das cidades é a
a caverna e, nelas, nos protegemos possibilidade do encontro, tal como afirma
de coisas e amparamos nosso viver. Paulo Mendes da Rocha. Ao mesmo tempo,
Essas diversas arquiteturas, sabemos que muitos desses encontros geram
conectadas, compõem nossas cidades. arenas de conflitos e violências, disputas
A cidade também é arquitetura, como já territoriais de caráter político e moral.
disseram inúmeras pessoas ilustres, de Nosso país é hoje recordista mundial
Vilanova Artigas, Aldo Van Eyck ou mesmo em violências aos grupos LGBTs: a cada
Leon Battista Alberti no século XV: “a 25 horas assassina-se uma pessoa por
cidade é, na opinião dos filósofos, uma casa lgbtfobia, de acordo com o Grupo Gay da
em ponto grande e, inversamente, a casa é Bahia(GGB, 2017). Em 2010, por exemplo,
uma cidade em ponto pequeno” ALBERTI mesmo em um dos espaços visto como
(2011, p.170 apud RAMOS,2016, p.61). seguros na cidade de São Paulo, cheio
Assim, a casa em ponto grande pode ser de “olhares na rua”, como nomeou Jane
lida como um conjunto de cavernas onde Jacobs, ocorreu um crime em que 5 homens

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atacaram 3 jovens gays à golpes com tudos da Violência Homofóbica no Brasil, publicado
de lâmpadas flourescentes na Avenida pela Secretaria de Direitos Humanos da
Paulista. Felizmente os jovens sobreviveram, Presidência da República (SDH) em 2013.
mas o crime explicita que a violência limita
Em São Paulo, a única pesquisa
a vivência da cidade por essas pessoas. Não
que se tem conhecimento sobre a situação
só a física mas a de caráter psicológico e
habitacional das pessoas LGBTs foi realizada
discriminatório. Para os LGBTs, uma parte
pela Prefeitura Municipal de São Paulo
da constituição de suas cavernas se dá pela
(PMSP) junto a Fundação Instituto de
busca de proteção de um mundo hostil.
Pesquisas Econômicas (FIPE), em 2015. O
Mas a hostilidade não está presente estudo levanta que até 10% das pessoas em
somente no espaço público das cidades, situação de rua se identificam como LGBT
propagando-se em diversos outros âmbitos. e estão suscetíveis a uma situação mais
Em um outro estudo realizado em 2016 precária do que a população heterossexual –
pela Secretaria de Educação da Associação como maior mendicância, prostituição, uso
Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais e de drogas ilícitas, proibição de frequentar
Transexuais (ABGLBT, 2016), entre 1016 espaços públicos, agressão verbal e física.
alunos, mostra que 73% dos que não se Enquanto que, de acordo com a ONU, nos
declaram heterossexuais já foram agredidos Estados Unidos há cerca de 500 mil jovens
verbalmente nas escolas. Agressões sem-teto; sendo que 40% se identificam
físicas alcançaram 36% de vítimas. sendo um LGBT. Muitas vezes, essas pessoas
foram expulsas de casas por questões morais
Em outro estudo, conduzidos pela
ou se viram obrigadas a sair por não inclusão.
Comissão da Diversidade Sexual da Ordem
dos Advogados do Brasil (OAB), afirma que Tais dados trazem à luz problemas
o país concentra 82% da evasão escolar de enfrentados pelo grupo e a urgência de
travestis e transexuais. Nesses equipamentos, projetos que contemplem suas necessidades
até pela arquitetura a hostilidade se expressa: de proteção e acolham essas pessoas.
a ausência de banheiros unissexuais rompe Felizmente, há, em contrapartida, diversos
com o acolhimento dessas pessoas. Aliás, projetos em andamento que percorrem
o estudo realizado pela ABGLBT(2016) os âmbitos educacional, habitacional
afirma que os espaços que essas pessoas e profissionalizante que podem ser
tem maior medo de estar são os banheiros, exemplificados com as iniciativas de ONGs,
seguido pelas aulas de educação física. O como a Casa1 (São Paulo) ou o Aly Forney
espaço através da arquitetura tem poder Center (Nova York), que abrigam jovens
de acolher ou fragmentar as pessoas. LGBTs sem moradia. Através da Prefeitura
Municipal de São Paulo, o programa de
Além da evasão escolar somada
Reinserção Social Transcidadania, em que
ao preconceito no mercado de trabalho
se promove a recuperação de travestis e
resultam que 90% das transexuais estão
transexuais pelo oferecimento de atividades
desempregadas, segundo a pesquisa da
escolares e preparação para o mercado
ANTRA Brasil (Associação Nacional de
de trabalho. Também o projeto Voz e
Travestis e Transsexuais Brasil). Assim, a
Cozinha, numa parceria com a Organização
transfobia faz com que esse grupo acabe
Internacional do Trabalho (OIT), a chef
tendo como única opção de sobrevivência a
Paola Carrosella junto com o Ministério
prostituição de rua, de acordo com o Relatório
Público do Trabalho e outros agentes, que

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criaram um curso profissionalizante em
gastronomia, especialmente para travestis e
transexuais, proporcionando a capacitação
delas ao mercado gastronômico, além de
todo compartilhamento multicultural.
Tais possibilidades a esses problemas
ajudam a refletir no campo da arquitetura
e urbanismo, numa possível conexão
interdisciplinar, permitindo uma melhor
integração entre os próprios projetos e
maior entendimento e construção para os
grupos LGBTs dentro do espaço urbano,
consequentemente, uma perspectiva
da própria construção das cidades.
Assim, o presente trabalho propõe,
em um primeiro momento, em Desejos e
Heterogeneidades, entender esse conjunto
de cavernas urbanas a partir do desejo por
e em as cidades com toda sua diversidade,
visto não como um conjunto de fragmentos,
mas como um sistema de trocas e busca
pelas identidades em meio a redes urbanas.
Então, em Localizar, tenta
responder como os grupos LGBTs
contribuíram e se sujeitaram, enquanto
agentes urbanos, na construção da
cidade e sua relação com outros agentes.
Em Pontilhismo, analisa-se projetos
que contribuem para o entendimento
da dinâmica das cavernas urbanas dos
[grupos] LGBTs, além dos projetos em
contrapartida às violências citados acima.
Tais análises se dão também como
embasamento para o partido arquitetônico
que é apresentado posteriormente,
em A Cavernona, com a proposta de
uma arquitetura possível ao amparo
atual dos grupos LGBTs, prestando-
se para reflexão sobre suas dinâmicas.

17
p (3) Brazil, Keith Haring, 1989 – tela em acrílico e esmalte, 182.88 x 182.88 centímetros

18
ii. desejos e heterogeneidades

Naquela direção, após seis dias


e sete noites, alcança-se Zobeide, cida-
de branca, bem exposta à luz, com ruas
que giram em torno de si mesmas como
um novelo. Eis o que se conta a respeito
de sua fundação: homens de diferentes
nações tiveram o mesmo sonho - viram
uma mulher correr de noite numa cidade
desconhecida, de costas, com longos cabe-
los e nua. Sonharam que a perseguiam.
Corriam de um lado para o outro, mas ela
os despistava. Após o sonho, partiram em
busca daquela cidade; não a encontra-
ram, mas encontraram uns aos outros;
decidiram construir uma cidade como a
do sonho. Na disposição das ruas, cada
um refez o percurso de sua perseguição;
no ponto em que havia perdido os traços
da fugitiva, dispôs os espaços e a mura-
lha diferentemente do que no sonho a fim
de que desta vez ela não pudesse escapar.

A cidade era Zobeide, onde se


instalaram na esperança de que uma
noite a cena se repetisse. Nenhum deles,
nem durante o sono nem acordados, re-
viu a mulher. As ruas da cidade eram
aquelas que os levavam para o trabalho
todas as manhãs, sem qualquer relação
com a perseguição do sonho. Que, por sua
vez, tinha esquecido havia muito tempo.

Chegaram novos homens de


outros países, que haviam tido um so-
nho como o deles, e na cidade de Zobei-
de reconheciam algo das ruas do sonho,
e mudavam de lugar pórticos e escadas
para que o percurso ficasse mais pa-
recido com o da mulher perseguida e

19
para que no ponto em que ela desapa- a sede da economia monetária” (SIMMEL,
recera não lhe restasse escapatória. 1902, apud. VELHO,1973: p. 13) e exige que
Os recém-chegados não com- o cidadão paute suas dinâmicas através da
preendiam o que atraía essas pessoas a racionalização de si próprio. Sem ela, sem a
Zobeide, uma cidade feia, uma armadi- mais estrita pontualidade nos compromissos
lha. (CALVINO, 1990, p.45) e serviços, toda a estrutura [urbana] se
romperia e cairia num caos inextrincável
(SIMMEL,1902), onde o próprio homem
Nossas cidades são como Zobeide: é transformado em trabalho, como um
uma constante construção na busca pela re- número que indifere da sua individualidade.
alização dos desejos de seus cidadãos. Muda [A metrópole] é provida quase que
uma coisa aqui, refaz outra lá, entram em inteiramente pela produção para o
conflitos entre suas próprias mudanças pelo mercado, isto é, para compradores
sonho do encontro com suas musas fugiti- inteiramente desconhecidos, que nunca
vas. Talvez, se pudéssemos ver a planta de entram pessoalmente no campo de
Zobeide ela mais se pareceria com a pintura visão propriamente dito do produtor.
de Keith Haring, um labirinto em movimen- Através dessa anonimidade, os
to com diferentes corpos em um empurram- interesses de cada parte adquirem um
-se, encontram-se, perdem-se, colidem-se, caráter impiedosamente prosaico; e os
sobrepõem-se – uma possível transa que egoísmos econômicos intelectualmente
faz do espaço uma dança desritmificada. calculistas de ambas as partes não
(...) a cidade é “investida” por uma precisam temer qualquer falha devida
ordem dupla de “desejos” desejamos a aos imponderáveis das relações pessoais.
cidade como “seio”, como “mãe” e, em (SIMMEL, 1902, apud. VELHO,1973: p.14)
simultâneo, como “máquina”, como
“instrumento” ; queremo-la “éthos”, no Com isso, as grandes cidades se
sentido original de morada e residência constituem de um excesso de informação
e, ao mesmo tempo queremo-la um e um multiculturalismo tão grande
meio complexo de funções; pedimo-las que o homem naturalmente acaba
segurança e “paz” e, concomitantemente, que por gerar uma autopreservação
pretendemos dela grandes eficiência, dos próprios efeitos da cidade.
eficácia e mobilidade. A cidade vive Cria-se uma “reserva” de estímulo
sujeita a questões contraditórias. Querer mental, chamada por Simmel de efeito
ultrapassar esta contraditoriedade é má blasé. “A pessoa resiste a ser nivelada
utopia. É necessário, ao invés, dar-lhe e uniformizada por um mecanismo
forma. A cidade, na sua história, é a perene sociotecnológico” (SIMMEL, 1902, apud.
experiência de dar forma à contradição, VELHO,1973: p.11). Numa perspectiva geral,
ao conflito.” (CACCIARI, 2010, p. 07) afasta-se e ignora o que não lhe interessa e
A cidade é dicotomia. Desejamos desconhece. Por isso, aliás, estereotipa-se
a dinâmica urbana e vivemos nela pelo os homens metropolitanos como “frios e
encontro e a partilha da vida com o outro. desalmados” que faz muitas vezes com que
Concomitantemente, vivemos submetidos eles não conheçam seus próprios vizinhos.
ao que é comum a todos e que nos ignora Mas na metrópole não importa
enquanto indivíduo: “a metrópole sempre foi quem seja seu vizinho. As relações do

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cidadão metropolitano não são limitadas Podemos então olhar os espaços
a suas proximidades físicas. Quebra-se urbanos não como um território
os limites da topografia e estabelece-se as fechado, mas como um sistema de redes:
redes e os circuitos (MAGNANI, 2002).
As grandes cidades certamente são
(...) nós moramos em territórios cuja importantes para análise e reflexão, não
métrica já não tem qualquer sentido apenas porque integram o chamado
espacial, mas quando muito unicamente sistema mundial e são decisivas no
temporal. Fazemos todas as nossas fluxo globalizado e na destinação dos
contas em base ao tempo, não ao espaço; capitais, mas também porque concentram
já ninguém pergunta a que distância fica serviços, oferecem oportunidades de
determinada cidade, mas quanto tempo trabalho, produzem comportamentos,
demora a chegar lá. (CACCIARI, 2010, p. 56) determinam estilos de vida – e não
apenas aqueles compatíveis com o
Os círculos sociais agora metrificados
circuito dos usuários “solventes”, do
pelo tempo e não mais no espaço contíguo, que
grande capital, freqüentadores da rede
tem seu controle social enfraquecido. O que
hoteleira, de gastronomia e de lazer
proporciona ao cidadão uma maior liberdade
que seguem padrões internacionais.
individual, pois círculos sociais fechados,
com maior delimitação, como por exemplo A presença de migrantes, visitantes,
pequenos grupos ou como a dinâmica da moradores temporários e de minorias; de
pólis grega, o controle social é grande e obriga segmentos diferenciados com relação à
o indivíduo a adquirir uma individualidade orientação sexual, identificação étnica ou
sujeita ao coletivo, à própria pólis. regional, preferências culturais e crenças;
de grupos articulados em torno de opções
Já,
políticas e estratégias de ação contestatórias
“homem metropolitano é ‘livre’ em um ou propositivas e de segmentos marcados
sentido espiritualizado, em contrates com pela exclusão – toda essa diversidade
a pequenez e preconceitos que atrofiam o leva a pensar não na fragmentação de
homem de cidade pequena.Pois a reserva e um multiculturalismo atomizado, mas
indiferença recíprocas e as condições de vida na possibilidade de sistemas de trocas
intelectual [racional] de grandes círculos de outra escala, com parceiros até então
nunca são sentidas mais fortemente pelo impensáveis, permitindo arranjos,
indivíduo, no impacto que causam em sua iniciativas e experiências de diferentes
independência, do que na multidão mais matizes. (MAGNANI, 2002, p. 15)
concentrada na grande cidade. (SIMMEL,
Para Magnani, ao acompanharmos um
1902, apud.VELHO,1973: p. 20).
indivíduo dentro de seu cotidiano, produziríamos
A metrópole submete o homem a uma um mapa de deslocamentos pontuados por
racionalização de si mesmo, mas permite contatos significativos entre variados contextos:
a ele uma maior liberdade a construção de do trabalho, práticas religiosas, de lazer
seus desejos, pela ausência de controle e etc. “(...) capaz de apreender os padrões de
a anonimidade. De antemão, já se supõe comportamento, não de indivíduos atomizados,
aqui dois porquês das [pessoas] LGBTs mas dos múltiplos, variados e heterogêneos
compor especificamente o fenômeno urbano conjuntos de atores sociais cuja vida cotidiana
mesmo com os preconceitos e violências transcorre na paisagem da cidade e depende de
motivadas por uma determinada moral.

21
seus equipamentos.” (MAGNANI, 2002, p. 17) imprevisibilidade da vida”. (MENDES, 2018)
A partir do contexto metropolitano,
tal como as reservas anunciadas por Simmel,
Magnani dedica-se a entender como se
dão os relacionamentos no espaço urbano.
as grandes metrópoles contemporâneas
não podem ser vistas simplesmente
como cidades que cresceram demais
e desordenadamente, potencializando
fatores de desagregação. Elas também
propiciaram a criação de novos
padrões de troca e de espaços para a
sociabilidade e para os rituais da vida
pública. (MAGNANI, 2002, p. 26)

Assim aproxima-se da complexidade


da dinâmica urbana atual dada em diferentes
práticas e escala numa proposta que ele
chama de “olhar de perto e de dentro” onde
os próprios arranjos desenvolvidos pelos
atores sociais resultam na categorização de
formas que constituem a paisagem urbana da
metrópole: pedaço, mancha, trajeto e circuito.
(...) a noção de pedaço evoca laços de
pertencimento e estabelecimentos de
fronteiras, mas pode estar inserida em
alguma mancha, de maior consolidação
e visibilidade na paisagem; esta, por
sua vez, comporta vários trajetos como
resultado das escolhas que propicia a
seus freqüentadores. Já circuito, que
aparece como uma categoria capaz de
dar conta de um regime de trocas e
encontros no contexto mais amplo e
diversificado da cidade (e até para fora
dela), pode englobar pedaços e trajetos
particularizados. (MAGNANI, 2002, p. 25)

Desse modo, a cidade pode ser


analisada como uma rede de circuitos. Já
que nela, para além de suas construções,
reflete-se os diferentes estilos de vida.
“(...) uma cidade é feita mais dos
comportamentos dos homens do que das
construções. A arquitetura ampara essa

22
p
iii. localizar

Localizar significa mostrar o lugar. Quer


dizer, além disto, reparar no lugar. Ambas
as coisas, mostrar o lugar e reparar no
lugar, são os passos preparatórios de
uma localização. Mas é muita ousadia
que nos conformemos com os passos
preparatórios. A localização termina,
como corresponde a todo método
intelectual, na interrogação que pergunta
pela situação do lugar. (HEIDEGGER,
1998 apud PERLONGHER, 1987: p. 266)

Como e quando São Paulo se


tornou o espaço de encontros dos grupos
LGBTs? Como está hoje? Desenvolvendo
essas questões, a partir da localização,
pretende-se nessa leitura encontrar
caminhos que especifiquem as dinâmicas
para melhor amparar os grupos LGBTs.
Década 1930, São Paulo é o centro
industrial do país e já ultrapassa seu 1
milhão de habitantes. Com o Plano de
Avenidas, Prestes Maia permite que a
centralidade urbana se expandisse do antigo
Triângulo Histórico à região da Praça da
República. A expansão dos limites do centro
proporciona à cidade seu primeiro caráter
metropolitano com a abertura das grandes
avenidas, as superposições de usos, variações
culturais e as primeiras verticalizações.
legenda
O Laboratório de Antropologia do
pontos das possíveis localizações
Serviço de Identificação do Departamento
delimitação do Largo do Arouche
de Polícia de São Paulo relata nessa década
as primeiras localizações de [pessoas]
LGBTs no espaço urbano, nomeado de
t (4) carta com os possíveis pontos de encontro das Estudo biográfico dos homossexuais
pessoas LGBTs em São Paulo na década de 1930
base: recorte do Mappa Topographico do município de (pederastas passivos) da capital de São
São Paulo, SARA-BRASIL S/A, 1930.

25
p
Paulo. Aspectos de sua atividade social grandes fluxos da vida metropolitana,
(costumes, hábitos, ‘apelidos’, ‘gíria’, possibilita tanto o anonimato como também
de 1938-39. O estudo apresentou que os o consumo das atividades de caráter
principais centros de reuniões se localizavam especificamente urbano que proporcionam o
nas áreas centrais, especificamente no encontro entre pessoas.
Parque Anhangabaú, próximo à Avenida
Na década de 1960, com a
São João, e no Largo do Paissandu.
região da República consolidada como
No fim da década de 1950, José centralidade. De acordo com Silva (1958):
Fábio Barbosa da Silva, considerado
A região principal que tem sobrevivido,
o primeiro estudioso da cidade de São
por muito tempo, como ponto de encontro
Paulo de caráter não repressivo sobre os
de grande parte do grupo homossexual
grupos LGBTs, realizou sua dissertação
de São Paulo, pode ser caracterizada por
de mestrado sobre o tema e os localizou:
um grande T, formado pela confluência
Não é difícil perceber as razões da das Avenidas São João e Ipiranga, tendo
concentração dos homossexuais nessa como pontos cardeais os cinemas Oásis,
área. Segundo pensamos, o sistema de ArtPalácio e início da Rua São Luiz (...)
classificação de áreas urbanas utilizado Praça da República, do Largo do Arouche,
por Burgess (1925), em linhas gerais, do Largo Paissandu, da Praça Ramos de
encontra-se aplicação em São Paulo. Azevedo e dos cinemas e bares citados.
Podemos delimitar de maneira geral as Estações de ônibus intermunicipais,
áreas concêntricas (de desorganização, estações de estrada de ferro e quartéis.
habitação e industrial); apenas elas (SILVA,1958 apud GREEN,2005: p. 73)
passam em nossa cidade por uma série
Os LGBTs estavam camuflados no
de fracionamentos e superposições.
mundo do ócio, convergido com outros
(SILVA,1958 apud GREEN,2005: p. 74)
grupos, desde boêmios, cinéfilos, artistas de
Os encontros de LGBTs são situados teatros até a prostituição. Ao mesmo tempo,
em uma área que - em consequência dos como no caso de encontro em banheiros e
terminais de ônibus, expressavam-se a partir
da fluidez e anonimato do ir e vir pela cidade.
Ainda não existia a Galeria Metrópole,
mas no lugar onde ela está agora já
existiam dois bares frequentados por
pessoas homossexuais, Barbazul e Arpege.
O Barbazul era mais refinado, pessoas
mais convencionais, de terno e gravata,
legenda
e o Arpege era mais boteco, não tinha
pontos das possíveis localizações
mesinhas como o Barbazul, era um bar de
delimitação do Largo do Arouche
balcão. Continuando pela Rua São Luís,
onde agora é a Praça Dom José Gaspar,
ainda não tinha calçadão, mas já estavam
outros dois bares gays: O Cremeirie (que
t (5) carta com os possíveis pontos de encontro das
pessoas LGBTs em São Paulo, em meados da década de ainda existe) e o Pari Bar, que desapareceu
1960
base: recorte do Município de São Paulo: levantamento por volta de 1983” (...). Tinha casas de
aerofotográfico , VASP/CRUZEIRO do Sul, 1954.

27
chás como a Vienense, que ainda existe, Galerias Comerciais. Consequentemente, os
na Barão de Itapetininga, frequentada por encontros das LGBTs também se adaptaram
casais, no começo da noite, final da tarde. a essa nova forma de viver a cidade.
Havia também marginalia; São Paulo
A começar do carro: “até então
já era uma cidade grande. O ponto dos
a paquera era sobretudo caminhante. A
michês era no cinema Itapira, do lado do
paquera motorizada no circuito (onde
Jeca, se estendendo pela Avenida São João
agora é o calçadão) que apodava-se
até a galeria do cinema Lira. Havia então
“Autorama”, aparece só nos anos 70.
uma postura de distinção entre as pessoas,
Até então era uma badalação incrível,
na paquera. (PERLONGHER,1987: p.73)
mas a pé, nas imediações da Galeria
Meados da década de 1960 e 1970, Metrópole”. (PERLONGHER, 1987: p.78)
novos processos urbanos marcaram uma
Segundo, em meados de 1970-80,
nova etapa na construção da cidade. Flávio
outros processos complexos interferiram na
Villaça descreve o deslocamento do centro
produção da cidade. A ditadura militar, e de
econômico movido pelas elites para a Avenida
combo a grande repressão e violência vinda
Paulista, que se seguiu pelo vetor sudoeste.
do próprio Estado, escancarada pós o AI.5,
Um fator marcante é que houve um grande
em 1968, declinou mais ainda o homem
incentivo à indústria dos automóveis. Outro
público. Os espaços de encontro dos grupos
fator, a limitação da circulação de carros na
LGBTs que estavam concentrados na Região
região da República e Centro Histórico com a
da República – a Av. São João, Ipiranga,
execução dos grandes calçadões. O centro se
o Largo da Paissandu, Arouche e a Praça
torna menos atrativo ao consumo daqueles
Dom Gaspar – sofrem uma pulverização
que almejavam e podiam ter um novo estilo
e deslocamento, primeiro para a Praça
de vida onde seu meio se dava pelo carro.
Roossevelt, depois para a região dos bairros
Mas, o centro também receberia as primeiras
Jardins, seguindo também o vetor sudoeste.
linhas de metrô e grandes terminais de
ônibus, o que permitiu sua popularização. Ao mesmo tempo, ganha
popularidade um novo tipo de local de
Se antes havia como desejo o uso
encontro: tal como a caixa fechada que
comercial na cidade através da tipologia das
são os shoppings, fervilham as boates.
Galerias Comerciais, que eram integradas ao
espaço público, no final de 1960, surge uma (...) a extensão do circuito da paquera
nova tipologia, os shoppings centers, como gay aos Jardins vai se dar muito depois,
marco a inauguração do Shopping Iguatemi – já no final dos anos 70, com a expansão
projetado para ser acessado por automóveis. das boates. Uma das primeiras a sair do
Os shoppings são hoje uma tipologia de microcentro e ir para a Augusta foi a Saloon.
comércio que rompe a cidade, são como uma As boates foram uma grande novidade
caixa fechada, muitas vezes alheia ao espaço da época. Já no final dos anos 60 (1968
público. Isso, entre outros fatores - como a ou 1969) lembro de uma, na Ladeira da
instalação de viadutos rasgando a cidade Memória, chamada Nighting... No início, a
e seus espaços públicos - desencadeiam o capa cultural, os “entendidos” e o pessoal
declínio do homem público, como intitula do teatro, fizeram uma grande resistência
Richard Sennet. Os circuitos para vivenciar às boates, à música rock, ao Roberto Carlos.
o ócio, antes a pé, integrados às calçadas, Eles transavam jazz e bossa nova e curtiam
entram em decadência, assim como as lugares para ouvir música. Era a elite versus

28
o populacho. (PERLONGHER, 1987: p.81) uma entrada do Oscar, e todo mundo
ficou mortificado com aquilo, porque você
A tipologia das boates nos
não queria estar ali no meio do Jardins
ajuda a entender parte do modo de vida
e um holofote... Você sendo focalizado,
dos grupos LGBTs da época e como se
entrando numa boate gay? Acabou
passa a definir a dicotomia entre “público”
a boate em uma semana, não durou
e o “privado”, o “secreto” e o “exposto”
quase nada. (em FRANÇA, 2006: p. 35)
e a busca de suas cavernas. Esse tipo de
comércio, fechado em si, funciona de forma Contudo, o descolamento de uma
desconexa da cidade e possibilita discrição parcela do grupo LGBTs, também seguindo
de quem está lá dentro, protegidos de um o vetor sudoeste, fez com que o centro
mundo externo, com uma ambiência interna - do “populacho” –, ficasse conhecido
específica (luz, som, cheiro e espacialidade como um local de constante violência,
projetados para passar uma nova atmosfera criminalidade e por LGBTs de classe média
para quem frequenta). Em entrevista a e baixa. A região da Augusta com o Jardins,
França(2006), um frequentador descreve: restrita para aqueles com maior poder
aquisitivo e de fácil acesso por automóveis.
Durante toda a época se mantém uma
Na hora em que aquilo se abriu, era
diferença de classe muito clara; todos
uma boate pequena e era tudo de veludo
esses locais: Nestor Pestana, Largo do
vermelho, as paredes, e era pequeno e
Arouche, eram curtidos por pessoal da
amontoado de gente, um monte de homens
classe média. Continuava o tempo todo
lindos, todos perfumados, bonitos, bem
existindo o foco mais pobre, mais lúmpen,
vestidos, era uma espécie de esconderijo da
da Avenida Ipiranga e São João e a Praça
burguesia gay. Quando eu achei finalmente
da República(...). Agora, vejamos o que
[o bar], entrei e aí foi um ‘abre-te sésamo’,
acontece com a massa dos gays. Saem da
né? Porque eu entrei nesse lugar e eu
Galeria Metrópole, fugindo da polícia, e vão
descobri que tinha centenas de pessoas
parar na Nestor Pestana. Daí vem uma nova
como eu. (em FRANÇA, 2006: p. 34)
perseguição policial, e então confluem para
Em uma outra entrevista para o Largo do Arouche e expandem-se pela
também França (2006), e em contraponto, Vieira de Carvalho. Esse processo teve seu
narra-se uma boate que resolve fugir da apogeu no final dos anos 70, 1978 e 1979,
tipologia padrão e as consequências disso: justo antes das blitz do Richetti, que foram
Ainda nos anos 1980, você tinha que em 1980. (PERLONGHER, 1987: p. 82)
entrar discretamente no lugar (...) teve Essa segregação de caráter econômico
uma boate que na noite de inauguração, com o deslocamento e a pulverização dos
eles tiveram a infeliz ideia de colocar um espaços revelam também a violência – além
holofote, acho que foi do outro lado da da policial – da própria elite das LGBTs,
rua, e conforme as pessoas iam chegando fazendo com que os espaços centrais fossem
na boate, eles focalizavam a pessoa com vistos com estranhamento e se distanciassem
aquele holofote, que te acompanhava até deles. Isso revela as fragmentações
a entrada da boate. Isso matou a boate. dentro do próprio grupo. Também, com
Na noite de inauguração, eles cometeram o isolamento das próprias pessoas LGBTs
esse erro fundamental, de achar que as - em um primeiro momento - dentro do
pessoas queriam ser iluminadas como

29
p
(6) São Paulo, junho de 1980: em torno de quinhentas pessoas se manifestaram na primeira passeata organizada por grupos de direitos LGBT, em protesto a repressão policial
a travestis, prostitutas e homossexuais, no centro da cidade.
Acervo: J.S. TREVISAN.
Reprodução: Marcos Vilas Boas

Ressalta também o panorâma global da época pelo início do movimento da “saída do armário” com a Revolução Sexual. A “blitz do Richetti” foi um conjunto de operações
da polícia, à mandato do Delegado José Wilson Richetti, extremamente violenta que tinha como intuito esfacelar a existências de LGBTs na região central, com apreensão e
tortura de LGBTs mesmo dentro de espaços privados, bares e boates.

(7) Parada LGBT de São Paulo, 2015 , acervo pessoal

30
espaço urbano, demonstra o que psicanalista boates com “dark room”, saunas, cinemas,
Christian Dunker chama de “estratégias de motéis. Também ofertas de serviços
vida”. Talvez, para evitar os desprazeres da direcionados aos grupos LGBTs locais:
vida e os conflitos entre as diferenças, as lojas de roupas, clinicas estéticas e etc.
pessoas se isolam como um refúgio para
O Centro Antigo aparentemente absorve
um mundo próprio. Ora por sobrevivência
uma camada da população homossexual
de um mundo hostil, ora por uma “ilusão
menos valorizada pelos padrões
de uma realidade esteticamente orientada”.
globalizados de estética, consumo e
Quase todas elas [estratégias de vida] estilo de vida homossexual: congrega
estão condensadas em nossa parábola do homens mais velhos, gordos e peludos,
condomínio fechado: associação entre a lésbicas “masculinizadas”, michês,
conquista da natureza e a comunidade travestis e homossexuais considerados
orgânica, refúgio em um mundo próprio, afeminados. Também se caracteriza pelo
sentimento de que se usufrui de uma menor poder aquisitivo do seu público,
experiência que é acessível para poucos, o que se pode aferir facilmente diante
ilusão de uma realidade esteticamente dos menores preços cobrados pelas
casas noturnas. (FRANÇA, 2006: p.48)
orientada, sentimento de ruptura
intencional com o “mundo comum”, Na mancha Paulista-Jardins,
e finalmente, a anestesia induzida há, de acordo com França (2006), “pelo
pela intoxicação. Em tais condições a menos 21 bares e boates destinados ao
possibilidade de sonhar e as ilusões público homossexual com mesmos padrões
disponíveis à consciência tornam- de consumo a áreas como Itaim Bibi,
se perigosamente próximas de sua Pinheiros e Vila Madalena”. Com focos
realização efetiva. (DUNKER, 2011: p.03) de concentração na Alamedas Jaú, Tietê,
Av. Rebouças, Rua Augusta e Frei Caneca.
A partir disso, surge uma distinção
Há maior presença de bares ao público
de manchas dentro do circuito das LGBTs.
feminino e mais próximos aos bares de
Para além da segregação econômica, França
frequência masculina, em comparação
(2006) diferencia também esses dois
com o centro. O “eixo Jardins-Paulista não
territórios, dentro do mesmo circuito, por
abriga cinemas de ‘pegação’ e os poucos sex
outros fatores: no Centro Antigo, de acordo
shops da região têm procurado acessar uma
com a autora, há uma diversidade maior
clientela sofisticada, por vezes promovendo
dentro do próprio grupo LGBT e, como já
performances de temática fetichista em
descrito por Silva (1958) e Perlongher(1987),
festas periódicas voltadas para um público
também há a convergência com outros grupos
gay mais elitizado.” FRANÇA(2006). Há
classificados dentro das marginalidades
poucos pontos de prostituição e os existentes
(como a prostituição). Dentro do grupo
são relativamente isolados da mancha.
existe maior amplitude em faixa etária
e diferentes tribos compondo o mesmo A mancha que se situa no eixo Paulista-
grupo (como “os ursos”, “caminhoneiras”, Jardins talvez seja a melhor representação
“drags queen”, transexuais, “bicha/bofe”, desta imagem globalizada de “cultura gay”,
“afeminadas” e etc). Da mesma forma que colada a uma série de outros significados
há uma maior variedade de serviços sexuais que se atribui a essa região da cidade.
e oferta de espaços destinados ao sexo: (...) As regiões de entroncamento desses

31
p
fluxos seriam, então a própria expressão suas unidades e atrair o público que
do sistema global, gerando espaços que se identifica e que possa comprá-las.
excluem expressões não conformes a esta
As elites fundamentam sua
configuração espacial e simbólica. Esta
intervenção pela necessidade de higienização
“mancha” carrega consigo características
do centro. A própria Prefeitura de São
da onda maior de expansão do “mercado
Paulo, em 2017, apresentou um projeto
GLS” nos anos 90, pautada pela busca
urbano encomendado pela Secovi-SP
e conformação de um público alvo
que se intitula “revitalização”. Mas, ora,
mais alinhado com os padrões do ‘gay
o centro não estava abandonado, sem
globalizado’. (FRANÇA, 2006: p.49)
vida, nem está. A própria mancha LGBT
Hoje, há novos processos na da República exemplifica isso.
construção do espaço urbano. As elites que
Assim, questiona-se como os novos
abandonaram as regiões centrais, voltam
processos urbanos acolherão os grupos que
a fazer parte significativa na produção do
hoje compõem a mancha LGBT da República
centro. As grandes potencialidades da região
e permitirão a convivência entre todos esses
com toda sua infraestrutura e propensão a
agentes urbanos, considerando que dentro
habitação, torna o espaço atrativo para uma
dos próprios grupos LGBTs há uma exclusão
“cidade-lazer” como alega Lipovetsky(2016):
de expressões não conformes à configuração
“comércios, bares descolados, às flagships
stores, dos restaurantes às concept stores, do “gay globalizado”.
das galerias comerciais às lojas de luxo(...)
o mundo hipermoderno é da estética
mercantil e do comércio consumista que
invade o espaço urbano e arquitetônico.”
Em paralelo, “o mercado GLS”
tem se fortalecido e outros agentes do
mercado também têm se apropriado
do fortalecimento do “gay globalizado”.
Puccinelli(2017) descreve que o lançamento
de novos empreendimentos no centro
de São Paulo se apropriam da ideia de
diversidade e modernidade para valorizar

legenda

equipamentos de serviços aos LGBTs

delimitação do Largo do Arouche

t(8) Carta elaborada pelo autor a partir do mapeamento dos equipamentos


oferecidos aos grupos LGBTs na região central.
base: MDC, 2004
u(9) “Propaganda veiculada nos dois principais jornais paulistas de circulação
nacional e no site da empresa em agosto/2013.”
Fonte: Bruno Puccinelli
u(10) Lançamento de um empreendimento com o discurso de retorno ao centro pela
modernidade
Fonte: Bruno Puccinelli

33
iv. pontilhismo

Numa outra leitura, vê-se as


cavernas urbanas como uma reunião de
pontos que criam as categorias descritas por
Magnani(2002). Tal qual foi o movimento
neo-impressionista de Georges Seurat,
que instaurou a técnica do pontilhismo...

(...) que consiste na divisão de tons (...) em


várias pequenas manchas de cores puras
reunidas entre si de modo a recompor,
na visão do observador, a unidade
do tom (luz-cor) sem as inevitáveis
impurezas do empaste que anula e
confunde as cores. (ARGAN, 1995, p.82)


O Pontilhismo buscou uma
associação das artes com a ciência, baseados
nos estudos do químico Michel Chevreul
(1786-1889), pela busca do entendimento
de como funciona a visão humana. Um
sistema de pontos isolados quando reunidos
criam, quando visto em outra perspectiva, as
manchas, que por sua vez compõe um corpo,
um objeto ou o que o artista quiser representar.
Acredita-se que essa visão sistêmica
seja necessária para o entendimento da
cidade e a criação da arquitetura. Sua
concepção por si já é sistemática e engloba
uma enorme conjuntura: o programa,
circulações, ventilação, iluminação,
hidráulica, elétrica e toda atmosfera do
edifício. Além, o pensamento sistêmico
permite que construímos não um edifício
fechado em si, mas um espaço que
dialoga com seu entorno. Seja pela forma,
t (11) recorde de A Sunday on La Grande Jatte, 1884,
pela possibilidades de relações com
Georges Seurat, França
Disponível em:/www.artic.edu/
outros programas e etc. Por isso, numa

35
tentativa de entender aqui o pensamento existentes nos territórios inseridos. Os
sistêmico, observa-se alguns casos. programas se complementam por diferentes
edifícios espalhados na cidade mas próximos
Primeiro, como um sistema diferente
um ao outro. Estabelecendo ao estudante
do circuito do grupo LGBTs, há o circuito
uma relação com o espaço público como um
hospitalar: o Hospital Central da Santa
intervalo dentro do próprio CEU. Onde se cria
Casa de Misericórdia em São Paulo ocupa
uma hibridização, para além dos diferentes
uma grande quadra notável e histórica
edifícios, com o território ao qual estão
no bairro da Santa Cecília. A quadra se
inseridos possibilitando viver o trajeto pela
comporta como âncora e, no seu entorno,
cidade como parte também do programa.
florescem variados serviços complementares
a ela: farmácias, clínicas, laboratórios e De forma parecida, em São Paulo, a
etc. Com um circuito hospitalar para além ONG Casa1, localizada no Bixiga, consiste
da própria quadra notável, faz com que os em dois edifícios: o Galpão Cultural, em que
usuários possam vivenciar aquele espaço abriga atividades culturais, como a relização
externo que cotidianamente se cruzam de diferentes oficinas (de aulas de línguas,
com outros usuários. É interessante que atividades corporais, cursos preparatórios,
a própria quadra é pública e permite o eventos e uma pequena biblioteca) que por
cruzamento de pessoas com diferentes sua vez é âncora ao primeiro edifício, a Casa
finalidades não só no meio externo, mas das Acolhidas, que acolhe jovens LGBTS. O
também dentro da própria Santa Casa. fluxo gerado pelas moradoras da Casa das
Acolhidas para o Galpão Casa1 desenvolvem
O Parc de la Villette, em Paris,
a relação com a vizinhança e proporciona a
projetado por Bernard Tschumi, em 1982,
hibridização do território. Um dos programas
estabelece um sistema de três camadas
do Galpão é a Casa Aberta às Crianças,
sobrepostas para a sua materialização:
que por meio de atividades educacionais,
pontos, linhas e a superfície. A camada de
atende crianças moradoras dos cortiços
pontos dimensiona o espaço e se comporta
do Bixiga e lhes proporciona educação não
como referência de localização aos usuários.
só pelos canais educativos tradicionais,
Repetindo a natureza entre eles, estabelece
mas também pelo encontro com outras
uma ordem do homem sobre ela. As linhas
pessoas, promovendo a diversidade cultural.
são os caminhos principais que demarcam
o grande ambiente do solo, elas se cruzam
e direcionam os usuários aos diferentes
pontos da estrutura como também ao
espaço urbano do entorno imediato ao
parque. A superfície é livre, permitindo
diferentes usos pelos usuários. Os pontos
com os outros grandes edifícios projetados
por Tschumi compõem um grande edifício
descontínuo, mas em uma estrutura única.
Como outro caso, há os CEUs
(Centro Educacional Unificado) criados
pela Prefeitura de São Paulo que consistem
em programas educacionais e culturais

36
p (12) axiometria explodida do projeto do Parc de la Villette,
Bernard Tschumi, 1982
Disponível em: http://www.tschumi.com
v. a cavernona

A CAVERNONA

a proposta de uma arquitetura possível ao amparo dos


grupos LGBTs

38
sítio

Todo o circuito LGBT permite uma A coleta feita com apenas vinte
vasta escolha de um sítio que possa sediar pessoas, servindo apenas como amostragem,
a proposta arquitetônica. Poderia-se, dada levantou os seguintes dados: a faixa etária dos
toda condição da metrópole de civitas augens frequentadores varia de 19 a 45, com média de
(CACCIARI,2010), escolher um local fora 30,5 anos; 60% das pessoas se identificavam
do circuito mas que possibilitasse o trajeto como sendo homossexuais, 25% como
do grupo expandindo o próprio circuito. bissexuais e 15% como heterossexuais; 75%
Entretanto, pauta-se na possibilidade de se identificavam com o gênero masculino,
fornecer maior identificação espacial pelo 5% feminino, 15% como transexual
grupo, rica em equipamentos dirigido às feminino, 5% como outros. Em ofícios,
LGBTs: o entorno do Largo do Arouche. 5% são desempregados, 10% estudantes e
O Largo pertence ao patrimônio 75% empregados (profissões variadas: de
histórico das LGBTs. Foi palco da primeira médicos, vendedores de roupa, consultor
manisfestação pela luta dos seus direitos, empresarial, farmaceuticos etc.). Quanto ao
palco de conflitos que podem ser expressos local de residência: 25% residiam no centro,
pelas blitz de Richetti e outros, é palco os outros 75% em bairros de outras zonas e
diário do encontro de inúmeros indivíduos até da Grande São Paulo. No que respeita à
de diferentes localidades que se identificam mobilidade, os entrevistados informaram
como uma pessoa LGBT ou simpatizantes ter chegado ao Largo utilizando transporte
com o grupo. público (70%), transporte privado (10%) ou
Em uma das análises sobre o espaço, a pé (20%). Nesse sentido, cabe frisar que
foi realizado uma pequena coleta de dados região conta com uma vasta infraestrutura
no Largo para confirmar a afirmação do urbana intermodal com fácil acesso: metro
imaginário popular sobre a origem dos e terminais de ônibus, ciclovias e calçadas
frequentadores. amplas.

39
Caracteriza-se também como uma Assim, o mapeamento buscou por
área rica na expressão das heterogeneidades três lotes ociosos, sem uso definidos
para além das próprias LGBTs: o sítio abriga ou por usos deficientes ao Largo.
uma vasta coleção de monumentos urbanos, Também a área, por estar dentro do perímetro
como a escultura Depois do Banho de Victor da Operação Urbana Centro (OPC), permite
Brecheret (1894-1955). O entorno abriga a que os lotes possam ter maior flexibilidade,
maior oferta de equipamentos direcionados como coeficiente de aproveitamento (CA) e
aos grupos LGBT da cidade, como destacado etc.
na cartografia (8). Também conta com oferta Determinou-se 5 lotes possíveis.
de comércio e serviços que atendem ao Como podem ser vistos a seguir.
público geral. De início descartou o lote 1. Imagina-
Hoje, o Largo do Arouche compõe se que seja apropriado ali uma possível
o cenário da discursada “revitalização”, faz extensão do Largo do Arouche com conexão
ao largo vizinho, o Largo da Santa Cecília,
parte das áreas do projeto encomendado pela
onde poderia se estabelecer uma grande
Secovi-SP, em 2017, que não teve nenhuma área de lazer urbana e talvez também uma
discussão popular (apenas uma apresentação conexão vertical com o Parque Minhocão.
do mesmo numa parceria da Prefeitura com Além disso, seu vizinho, em atual
os arquitetos autores da requalificação do
Largo¹).
O Largo pode mesmo ser diferente.
lote 01 (descartado)
Este trabalho considerou diretrizes que
Área: 1.083,40 m²
poderiam ser aplicadas: do alargamento das
CA máximo: 4.333,6 m²
calçadas para melhor fluidez peatonal e união
CA máximo (OPC): 6.500,4 m²
da quadras que compõem o Largo (já que
Perímetro de fachada com a rua: 95,93 m
hoje são fragmentadas pelo sistema viário
e geram uma desproporcional ocupação
Localiza-se na Av. Duque de Caixias.
pelos usuários - a parte alta do Largo muito Atualmente é um posto de gasolina e pelo
seu uso ser muito abaixo do coeficiente de
ocupada, mas as intermediárias e a baixa aproveitamento permitido, o caracterizou
como ocioso.
não são).Faltam iluminação e instalação de Hoje em seu entorno há uma construção
habitacional, além de estar próximo ao
banheiros públicos. A própria Galeria das Minhocão.

Flores, único equipamento localizado dentro


do Largo, está de costas a ele, criando uma
empena cega que poderia ser muito melhor
aproveitada como uma fachada ativa. lote 04 (descartado)
Área: 854,15 m²
Escolhido o sítio, mapearam-
CA máximo: 1.708,30 m²
se lotes que pudessem abrigar o projeto CA máximo (OPC): 5.125,5 m²
arquitetônico. Perímetro de fachada com a rua: 59, 94m
Em paralelo, como premissa, determinou-se Localiza-se no Largo do Arouche esquina
que a busca seria não por um lote, mas três, com a Rua Rêgo Freitas.
Atualmente também é um posto de
para que os usuários usassem o Largo como gasolina.

extensão dos edifícios. Almeja-se com isso


um maior aproveitamento do espaço público
e também maior fortalecimento do próprio
Largo como um espaço identitário ao grupos
LGBTs.

1 - Requalificação do Largo do Arouche: projeto encomendado em 2017 pelo prefeito João Dória ao estúdio franco-brasileiro
Triptyque Architecture.

40
construção, tem todas as suas janelas construtivas no projeto de ambos edifícios.
voltadas ao respectivo lote, o que, por O 2 se assemelha ao 3 e 5 por conter
respeito, exige, que se houver algum tipo de uma empena cega em um de seus limites,
edificação, que ela seja térrea. mas é o terreno mais irregular entre todos e
Dentre os outros, o 4 era interessante está ao lado de um dos únicos espaços não
por ter o um grande perímetro da fachada verticalizados do Largo.
e estar no centro do Largo. Mas descartou- Também no lote 2 a presença da
se o lote 4 para compor a “tríade”, mesmo empena cega vizinha garante a aplicação de
sendo um lote privilegiado. Seu coefiente soluções projetuais parecidsa com as dos
de aproveitamento possibilita um nível de outros lotes. Escolhe-lo também possibilita
densidade que nos afastaria do programa que o usuário, ao usar mais de um edifício,
previsto no partido arquitetônico desta obrigatoriamente cruzará o Largo do
proposta. Arouche.
O 3 e o 5 eram muito similares: Portanto, determinou os lotes 2,3 e 5 como
média de 10 m de perímetro da fachada e locais de intervenção.
30 m de profundidade, ambos delimitados
por empenas cegas. Com a similaridade
entre eles vislumbrou-se a possibilidade de
empregar as mesmas soluções estruturais e

lote 02(escolhido) lote 03 (escolhid0)

Área: 725,74 m²
Área: 377, 25 m
CA máximo: 1 451, 48 m²
CA máximo: 754, 50 m²
CA máximo (OPC): 4.354,44 m²
CA máximo (OPC): 2.263,5 m²
Perímetro de fachada com a rua: 22,86m
Perímetro de fachada com a rua:
11,12m

Localiza-se no Largo do Aroche, ao lado


do histórico restaurante La Casserole e Localiza-se na Av. Vieira de Carvalho,
de um edifício habitacional que cria uma vizinho de dois verticalizados edifícios
grande empena cega no lote. Atualmente que criam duas grandes empenas
é um estacionamento improvisado, cegas. Atualmente é também um
e pelo seu uso ser muito abaixo do estacionamento improvisado e
coeficiente de aproveitamento permitido é o lote mais próximo, entre os
e não gerar uma grande ocupação de mapeados, da Estação República do
pessoas, foi caracterizado como ocioso. Metro.

lote 05 (escolhido)

Área: 315.86 m²

CA máximo: 1.263,44 m²

CA máximo (OPC): 1.895,16 m²

3
Perímetro de fachada com a rua: 10.19m
1
Localiza-se na parte baixa do Largo do 2
Arouche.
Atualmente é um pequeno motel,
também com seu uso muito abaixo do
coeficiente de aproveitamento atual
permitido.Único local considerado
para a intervenção localizado no Baixo 5
Arouche, também o mais próximo ao 4

Minhocão.

41
programa

O levantamento realizado detectou


que o sítio escolhido é rico em equipamentos
específicos aos grupos LGBTs: bares, boates,
cinemas, saunas, motéis etc. Também
que é rico pela heterogeneidade que a
própria urbanidade proporciona. Por outro
lado, carece de instituições voltadas aos
grupos com propostas como as feitas pelas
ONGs Casa1 e Aly Forney Center, que
oferecem especial assistência habitacional,
ou outros que oferecem programas de
estudos e profissionalização, como o projeto
Voz e Cozinha ou o Transcidadania.
A eleboração do programa de
necessidades busca a hibridização desses
programas em uma instituição que os
integre, proporcionando habitação,
educação, profissionalização, cultura
e assistência social e psicológica.
Elabora-se 3 edifícios que possam
ser autosuficientes e, ao mesmo tempo
complementares, configurando uma única
instituição partilhada, a Cavernona.
O primeiro, Oficina Cultural,
localizado na Av. Vieira de Carvalho. Será
o espaço de criação e profissionalização.
O segundo, localizado no Baixo
Arouche, será um espaço de expressões
artísticas: com espaços expográficos e
de espetáculos. Nomeia-o de Espaço
Dzi Croquettes, como referência ao
ilustre grupo teatral brasileiro dos anos
de 1970 que levantavam pautas sobre a
diversidade e liberdade sexual e de gênero.
O terceiro, localiza-se no meio do
percurso entre os dois primeiros edifícios.
Será um restaurante-escola, espaço para
estudos, assistência psicológica e social e
habitação. Será o Casarão das Acolhidas, com
a intenção de se criar uma grande casa, não só
para as pessoas acolhidas, mas para a cidade.

42
o1. oficina cultural

O edifício, envolvido por grandes


empenas cegas, abrigará espaços de
aprendizagens. Serão salas com divisórias
móveis, que poderão ampliar sua área para
oficinas diversas: de cursos preparatórios
para o ENEM, oficinas de yoga, de costura, de
maquiagem, línguas e danças. Seu acesso se dará
pelos elevadores panorâmicos, ou pela escada
localizada na face do edifício com um vitral de tons
amarelados aos esverdeados que proporcionarão
uma atmosfera de cores ao usuário e também
uma vista privilegiada do Largo do Arouche.

As oficinas terão na sua face um


espaço de pé direito duplo abrigando uma área
de descompressão pelos usuários, além de
garantir melhor iluminação natural ao edifício.

No térreo, haverá uma praça, também


extendendo os limites do Largo do Arouche, e o
espaço posterior a ela abrigarão os usos pedagógicos
e administrativos. Serão sitiados ali, para que os
usuários do setor pedagógio e adminstrativo, que
permanecerão mais tempo no edifício, possam
ter o olhar de cuidado para a praça interna.

Concomitantemente, tal posição


estratégica, permitirá eliminar as
barreiras aos usuários que eventualmente
precisarão se dirigir a elas, para resolver
questões pedagógicas e administrativas.
É único edifício que tem subsolo,
onde se escavou todo o lote. O nível abrigará
o bicicletário. A ideia é que a própria
instituição proposta, ofereça bicicletários aos
área do lote: 377,25 m² futuros residentes e também possibilite o
área construída: 2 216.09 m² estacionamento de usuários não residentes.
coeficiente de aproveitamento: 5.87 Com a escavação de todo o lote, almeja-
taxa de ocupação: 82.47% se melhor ventilação e iluminação natural
caminhada a pé ao Casarão: 210m em 3min
ao nível do subsolo. Também, para que no
caminhada a pé ao Dzi Croquettes: 350m em 4 min
térreo e primeiro pavimento as pessoas
tenham a perspectiva das copas das árvores.

t ilustração da fachada do edifício Oficina Cultural

47
t ilustração da área
de descompressão 01

49
t ilustração da área
de descompressão 02 - vista de outro pavimento

51
o2. espaço dzi croquettes

O pequeno edifício abrigará espaços de


espetáculo e expografia. Seu entorno é composto
por edifícios verticalizados, ambos de uso
comercial.

Ao entrar, o usuário encontrará de início


um espaço de pé direito triplo, com balcões em seus
níveis: é a Praça/Balcão. Durante o cotidiano será
uma praça interna, ampliando o próprio Largo do
Arouche ao interior. No seu limite há uma parede
de concreto pigmentado de branco suspensa do
chão à 2,2m, sustentada pela lajes superiores
e pela parede estrutural na lateral esquerda.
Ela divide o café que há posterior à Praça/
balcão com um pé direito pequeno para criar
uma ambiência mais acolhedora, em contraste
com os 10 metros de altura da Praça/Balcão.

Mas, eventualmente, o espaço se


transforma numa sala de espetáculo aberta à
cidade - seja para exibição de filmes, palestras
ou peças teatrais -. A parede suspensa ao
fundo se transforma numa tela de projeção de
imagens, com os balcões de apoio à acomodação
de mais espectadores, como no Teatro Oficina
(1981-1993), de Lina Bo Bardi e Edson Elito.

O edifício estreito não recebe muita


iluminação e ventilação natural, devido as
limitações físicas do lote. Por isso, projetam pés-
direitos duplos nos pavimentos superiores de
uso coletivo como vazios, para oferecer melhor
salubridade aos usuários. Nesses pavimentos
área do lote: 315,95 m²
encontram-se um pequeno auditório para 100
área construída: 1292,98 m²
pessoas e duas salas de exposição de artes.
coeficiente de aproveitamento: 4.1
Na fachada, além do policarbonato,
taxa de ocupação: 81.99%

caminhada a pé ao Casarão: 230m em 3 min


as tonalidades azuis às púrpuras, emolduram
caminhada a pé a Oficial Cultural: 350m em 4 min
o horizonte urbano do centro de São Paulo.

t ilustração da fachada do edifício Espaço Dzi Croquettes

53
t ilustração da Praça Balcão vista do primeiro nível.
Momento de exibição de um filme. Filme: Flores Raras,
2013

55
t ilustração ao detalhe construtivo do vazio da área de
exposição. Ao fundo: vista parcial do vitral de tons azuis.

57
o3. casarão das acolhidas

O último edifício também tem uma


empena cega em uma de suas faces. Mas na outra
tem como limite um dos poucos edifícios térreos
que ainda existe naquela região. Por isso, sua
forma, de início, respeita o vazio que o vizinho,
o restaurante La Casserole proporciona, como
uma área de respiro a toda essa sobreposição
arquitetônica que é o centro de São Paulo. Assim,
propõe uma laje inclinada que segue a forma do
edifício térreo e cresce ao edifício verticalizado.
O edifício abrigará a residência das LGBTs, também
a assistência social e psicológica, uma biblioteca
com espaço de estudo e o restaurante-escola.

O uso será como o de uma grande casa, onde


a parte habitacional será o quarto, o restaurante-
escola será a cozinha e a biblioteca será o escritório.
A proposta é que os moradores temporários
vivam nela durante alguns meses à poucos anos
enquanto constroem suas autonomias. Dividirão
os dormitórios entre 4 pessoas, mas com garantia
total de suas privacidade com a divisão interna dos
quartos, ventilação cruzada e pequenas varandas
externas que darão para o vazio do La Casserrole.
Farão suas refeições no restaurante-escola ao
mesmo tempo que poderão aprender sobre
Gastronomia e já ali ter uma opção de profissão.

A proposta de “casa pública” também


garante a privacidade. Além dos dormitórios
serem restritos aos residentes, também haverá
uma área em comum aos dormitórios, que
funcionará como a varanda - uma copa e
uma grande área de estar, além da área de
serviço e lavanderia, para que eles mesmos
sejam os mantenedores do edifício. A área
comum tem em determinados pontos um pé
direito quádruplo, que abrigará passarelas que
conectam a circulação vertical aos dormitórios
e proporciona melhor integração entre eles,
além de auxiliar na ventilação e iluminação.
área do lote: 723.43 m²

área construída: 2062.77 m² O térreo, que abrigará o restaurante


coeficiente de aproveitamento: 2.85 escola, será também uma ampliação do Largo
taxa de ocupação: 76.86% do Arouche e como acessos às circulações
caminhada a pé ao Casarão: 230m em 3min verticais, haverá uma escada anunciada em
caminhada a pé ao Dzi Croquettes: 210m em 3 min
um espelho d’água e envolta pelos vitrais de
cores quentes: dos rubros aos alaranjados.

t ilustração da fachada do edifício Casarão das


Acolhidas

59
t ilustração do térreo com vista para a escada sobre o
espelho d’água e o vitral de cores quentes

61
t ilustração ao detalhe construtivo da janela do tipo
camarão de policarbonato. Vista do pavimento 03.

63
64
detalhes construtivos

65
p (13) Museu da Moda de Belo Horizonte (MUMO), Belo Horizonte, 2016, acervo pessoal

66
conclui-se com o belo

Busquei por explicações aos


motivos que caracterizam as pessoas
LGBTs ao fenômeno urbano e me deparei
com explicações que vão além: as subjetivas
e concretas cavernas que desencadeiam
nosso anonimato, as indiferenças (o efeito
blasé), mas também o amparo pela busca
da construção do eu, as realizações de
desejos e a criação de pedaços, manchas
e circuitos ao encontro dos nossos.
Retomo que as cidades, com suas
diferentes formas, tem sua razão nas
possibilidades do encontro. A cidade é
o fenômeno da vida e, repetindo, é feita
mais dos comportamentos dos homens
do que das construções. (...) ampara
essa imprevisibilidade da vida.
Ao desenvolver o trabalho, busquei
intrínseco a tudo isso, o belo. É difícil falar
sobre ele devido a toda sua complexidade,
abstração e por estar às vezes resumido
somente a questões de estéticas.

A beleza tem apenas uma origem: a
ferida, singular, diferente para cada
um, oculta ou visível, que o indivíduo
preserva e para onde se retira quando
quer deixar o mundo para uma
solidão temporária, porém profunda.
(GENET, apud OSORIO, 2000,: p. 07)

Questiono se a beleza tem origem


na ferida. Apesar que levo à reflexão
sobre o amparo que nossas cavernas

67
proporcionam ao sugerir a ideia de retorno de arquitetura que almejou intervalos
ao claustro materno (PEREIRA, 2010) ao invés de espaços fechados em si.
como revelação de nossas fragilidades. Busquei também que os edifícios
Acredito que o belo nos retira do traduzissem ao máximo de liberdade
mundo comum e nos conduz a outras espacial, para que os usuários pudessem
dimensões mesmo que temporariamente. preenchê-los e modificá-los para
Ou melhor dizendo, nos transpõe-nos para melhor satisfação de seus desejos, pois
outras atmosferas (ZUMTHOR, 2009). seriam constantes, tal como com os
A atmosfera sentida é singular habitantes de Zobeide, de Italo Calvino.
a cada um. Mesmo assim, nós, no Afinal, se nossas cidades e
campo da arquitetura, almejamos a arquiteturas são figuradas na labiríntica
captura das mais belas atmosferas e Zobeide é porque nossa vida também o é,
tentamos partilhá-las. Talvez porque, um reflexo.
no fundo, temos muito em semelhanças.
Atmosfera é o fenômeno da
arquitetura. Pode-se encontrar na
composição material, no som, nos novas perspectivas
aromas, na térmica, no movimento e ação
das pessoas, na tensão entre o externo
e interno, no acolhimento e na luz.
Também é a estruturação
de nossos anseios, nossos kalóns...

Kalón significava: ‘vê como está
construído forte’, ‘vê como está hirto’,
‘vê como está bem erradicado’. Algo
que se formou, desenvolveu e construiu
de maneira perfeita e, por isso, pode
durar. (...) Para que possa emergir uma
beleza nesta acepção seria necessário
que os nossos edifícios exprimissem
plenamente a nossa vida e as suas
razões, caso contrário, a beleza torna-
se uma coisa incapturável e indefinível.
(CACCIARI, 2010: p.75)

Não acredito na idéia de perfeição


nem na plenitude do belo. Mesmo assim,
busquei ao projetar A Cavernona traçar
uma correspondência das expressões das
LGBTs. Suas poéticas, a heterogeneidade,
conexões pelos sistemas desenvolvidos e
suas cores. A necessidade de evidenciar e
proteger pela translucidez incorporadas
em um material. O amparo por meio

68
novas perspectivas

Assim, finalizo este trabalho


revelando a busca pelo belo, talvez a mais
profunda busca de nossas vidas. Revelo
também que o edifício proposto, se pudesse
ser real, seria modificado pelos próprios
usuários - além do desgaste do tempo - não
teria fim.
Tal como, não dou fim ao ciclo de
graduação em Arquitetura e Urbanismo, por
mais que termine. Mas me despeço, para o
início de outros anseios e a busca de novas
aprendizagens que a graduação possibilitou
com tantos ensinamentos, orientações de
meus mestres, inspirações, inquietações
e correções. As possibilidades de permear
entre a terra e o céu e criar novos céus e
novas terras.
A produção deste trabalho somente
se deu graças a toda bagagem construída
nesse percurso.
Continua a busca pelo belo.

69
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www.sdh.gov.br/assuntos/lgbt/pdf/relatorio-violencia-
-homofobica-ano-2012/at_download/file> Acesso: 2017

71
sites

www.henriqueoliveira.com

www.haring.com

www.guiagaysaopaulo.com.br

www.aliforneycenter.org

medium.com/@casa1

www.arkosbrasil.com.br/

trabalho final de graduação:

CARLOVICH, Fernanda. Projeto de um edifício em explo-


são.

<https://issuu.com/fernandacarlovich/docs/tfg>. Univer-
sidade de São Paulo, Faculdade de Arquitetura e Urbanis-
mo, São Paulo, 2015.

CARVALHO, G.M. Homossexualidade Masculina na Cons-


trução do Espaço Urbano: duas espacialidades paulistana.
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, 2017.

72
imagens

(1) Transarquitetônica (vista panorâmica), Henrique Olivei-


ra, 2014, Museu de Arte Contemporânea, São Paulo - Brasil
foto: Everton Ballardin, visto em: henriqueoliveira.com,
último acesso: 25.11.2018

(2) vista interna da instalação.


foto: Everton Ballardin visto em: henriqueoliveira.com,
último acesso: 25.11.2018

(3) Brazil, Keith Haring, 1989 – tela em acrílico e esmalte,


182.88 x 182.88 centímetros, visto em: haring.com, último
acesso: 25.11.2018

(4) carta com os possíveis pontos de encontro das pessoas


LGBTs em São Paulo na década de 1930
base: recorte do Mappa Topographico do município de São
Paulo, SARA-BRASIL S/A, 1930. base disponível em: geo-
sampa.prefeitura.sp.gov.br

(5) carta com os possíveis pontos de encontro das pessoas


LGBTs em São Paulo, em meados da década de 1960
base: recorte do Município de São Paulo: levantamento
aerofotográfico , VASP/CRUZEIRO do Sul, 1954.
base disponível em: geosampa.prefeitura.sp.gov.br

(6) São Paulo, junho de 1980: em torno de quinhentas


pessoas se manifestaram na primeira passeata organizada
por grupos de direitos LGBT, em protesto a repressão
policial a travestis, prostitutas e homossexuais, no centro da
cidade. Acervo: J.S. TREVISAN. Reprodução: Marcos Vilas
Boas, visto em (TREVISAN,2000)

(7) Parada LGBT de São Paulo, 2015 , acervo pessoal

(8) Carta elaborada pelo autor a partir do mapeamento dos


equipamentos oferecidos às LGBTs na região central.
base: MDC, 2004, base disponível em: geosampa.prefeitura.
sp.gov.br

(9) “Propaganda veiculada nos dois principais jornais


paulistas de circulação nacional e no site da empresa em
agosto/2013.”, visto em (PUCCINELLI, 2017)

(10) Lançamento de um empreendimento com o discurso


de retorno ao centro pela modernidade, visto em
(PUCCINELLI, 2017)

(11) recorde de A Sunday on La Grande Jatte, 1884, Georges


Seurat, França, visto em: www.artic.edu, último acesso:
25.11.2018

(12) axiometria explodida do projeto do Parc de la Villette,


Bernard Tschumi, 1982
visto em: www.tschumi.com
último acesso: 25.11.2018

(13) Museu da Moda de Belo Horizonte (MUMO), Belo Hori-


zonte, 2016, acervo pessoal

73

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