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O senhor tolere minhas más devassas no contar. É ignorância. Eu não converso com ninguém de fora, quase. Não
sei contar direito. Aprendi pouco foi com o compadre meu Quelemém; mas ele quer saber tudo diverso: quer não o
caso inteirado em si, mas a sobre-coisa, a outra-coisa...
lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os
outros acho que não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo as coisas de rasa importância.
Numa roda de amigos, alguém mostrou uma fotografia em que se via um homem de rosto severo, com o dedo
levantado, quase agredindo o público. Todos ficaram com a idéia de se tratar de uma pessoa inflexível, antipática,
que não permitia intimidade. Nesse momento, chegou um rapaz, viu a fotografia e exclamou: ‘É meu pai!’ Os outros
olharam para ele e, apontando a fotografia, comentaram: ‘Pai severo, hein?!’ Ele respondeu: ‘Não! Não é não! Ele é
muito carinhoso. Meu pai é advogado. Esta fotografia foi tirada no tribunal, quando ele denunciava o crime de um
latifundiário que queria despejar uma família pobre de um terreno baldio da prefeitura, onde ela estava morando
havia vários anos! Meu pai ganhou a causa. Os pobres não foram despejados!’ Todos olharam de novo e disseram:
‘Que fotografia simpática!’ Como por um milagre, ela se iluminou e tomou um outro aspecto. Aquele rosto tão severo
adquiriu traços de uma grande ternura! As palavras do filho mudaram tudo, sem mudar nada!
(Carlos Mesters)
Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado... Eu quase que nada não sei. Mas
desconfio de muita coisa. O senhor concedendo, eu digo: para pensar longe, sou cão mestre. – O senhor solte em
minha frente uma idéia ligeira, e eu rastreio essa por fundo de todos os matos, amem!
(João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas)
4
ORIENTAÇÃO
BANCA EXAMINADORA
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PARA:
ELIANA,
ANA CLARA E JOÃO PEDRO
MEUS AMORES
7
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora, Jerusa Pires Ferreira, pela paciência e por ensinar sempre a arte da troca
de saberes.
pesquisa.
incentivo. Destacando os professores João Décio Passos, Silas Guerriero e Pedro Lima
Vasconcellos.
Aos Professores da UNISAL – Campus Pio XI pelo incentivo, de modo especial o coordenador
À Comunidade Salesiana Santo Tomás de Aquino, na pessoa do Padre Diretor Edmilson Tadeu
A Josias Abdalla Duarte que com muita atenção e carinho leu os manuscritos da tese.
Aos meus familiares que aceitaram as minhas ausências, de modo especial, Eliana, Ana Clara e
João Pedro.
Aos alunos do ITESP, PIO XI e PUC-SP que foram pacientes em meio às correrias na etapa final
da tese.
Aos Professores Ênio da Costa Brito e Archibald M. Woodruf pelas valiosas contribuições no
Exame de Qualificação.
Agradeço a todos aqueles que direta e indiretamente contribuíram para a realização deste
trabalho.
8
RESUMO
“Edição e Heresia: O livro de Daniel” é um trabalho que visa estudar e analisar o Livro de Daniel
em sua comunicação oral e escrita desde os primeiros séculos a.E.C. Em se tratando de um livro
do gênero apocalíptico, é preciso levar em conta as características principais da apocalíptica.
Partindo, pois, da origem social desta literatura e de um suposto contexto histórico-cultural,
passo a trilhar pela matriz apocalíptica de Daniel e as suas interações com as construções
míticas e mágicas do mundo da época. O primeiro caminho da pesquisa tomará como ponto de
partida a aproximação e estudo do texto que foi sendo transmitido, comunicado e reconstruído
em novas conjunturas. A intenção da pesquisa, na sua primeira parte, consiste no estudo do livro
levando em conta seu simbolismo que nos conduz a imaginários e a vida cotidiana. Do texto que
foi comunicado para seus contextos sócio-culturais. Nesta perspectiva busca-se perceber o
intercruzamento entre oralidade, voz e escritura. Na segunda parte seguiremos os passos de sua
comunicação no universo do cristianismo, perguntando pela circulação das suas imagens e
símbolos no imaginário cristão desde suas origens. Para daí, na terceira parte acompanhar a
recepção deste livro na América colonizada através da leitura e interpretação do padre Antônio
Vieira, entre outros.
ABSTRACT
“Edition and Heresy: The book of Daniel” is a work that studies and analyzes the Book of Daniel
in its oral and written communication since the first centuries b.a.c. (before age commom). Being
an apocalyptic gender, it’s important to consider the main characteristics of the apocaliptic
literature. Starting from the social origin of this literature and from a supposed historical-cultural
context, I start the apocalyptic matrix of Daniel and its interactions with myths and magic from the
world at that time. Firstly, this work will start with the approximation and study of the text that has
been transmitted, communicated and rebuilt in new situations. In the first part of this research,
my intention consists of studying the entire symbolism of the Book of Daniel which leads us to the
imaginary and daisly life of its authors and to their different social and cultural contexts. In such
perspective, I with point and the mixture of the oral, voicing and writing in the text. Secondly, I will
follow the steps of the communication of the Book od Daniel in the Christianity context, asking for
the circulations of the images and symbols at the Christian imaginary in its origins. So, in the
third part, I will look for the reception of this book (Daniel) in colonized America through the
reading and interpretations of the priest Antonio Vieira, among others.
Key words: Oral communication – Vocal transmission – Biblical orality - Apocalyptic – Bible –
Exegesis - Hermeneutic
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................................. 11
CONCLUSÃO.............................................................................................................................. 306
BIBLIOGRAFIA............................................................................................................................ 316
11
INTRODUÇÃO
Há alguns anos aprendi a ler a Bíblia num espaço ecumênico, popular e de serviço aos
pobres. Neste tempo adquiri uma leitura militante e comprometida na escola do CEBI (Centro
introduziu na leitura bíblica do CEBI e ali aprendi a ler o texto por trás das palavras. É um jeito
novo e antigo de se achegar às Escrituras, que aos poucos foi me convidando para entrar na
“casa do povo”1, e ali, experimentar as descobertas e aprender a fazer exegese sem modificar a
estes, a minha leitura da Bíblia é também devedora. Ali aprofundei e fiz leituras da profecia e me
leitura junto aos acampados do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra. Na academia e
na leitura popular finquei os meus pés no compromisso junto às Comunidades Eclesiais de Base
e nas lutas sociais. O meu orientador no mestrado em Ciências da Religião, Milton Schwantes,
grande incentivador da leitura da Bíblia na América Latina, me ensinou que a luta do povo é o
ninho da Escritura, tanto no sentido de que a caminhada elucida o texto, quanto no sentido de
que este ilumina, anima, critica aquela. Me ensinou a ler e a ouvir a Bíblia em meio ao ambiente
político das lutas populares e me ajudou a sempre ter presente que as palavras na Bíblia são
contextuais.
imperialista.2
Diante desta interpretação apresentada pelo estudo acadêmico e diante de uma questão
que sempre me provocou nas aproximações aos textos bíblicos, a saber, a passagem da
oralidade para a escritura, o que há ‘por trás’ do texto, em resumo, ler o texto perscrutando as
“vozes silenciadas”. Nesta busca conheci Daniel D’Andrea que trabalha com contos populares,
num dos encontros de Bíblia do CEBI. Ali ele me falou de Jerusa Pires Ferreira e só depois de
algum tempo vim de fato a conhecê-la numa conversa amiga sobre o projeto de leitura do texto
troca de saberes. Aprendi muito nas aulas, nas orientações e nas conversas sobre o meu tema
de pesquisa, principalmente no que eu buscava: as tramas do texto e seu assento nas camadas
populares e como o texto tem uma matriz que gera outros textos. É uma pista de mão dupla: da
caminham nos limites entre a pluralidade e a invenção3. Daí, percebermos que a leitura não está
inscrita no texto, pois entre o texto e o leitor aparece com força vital a interpretação feita pelas
2
Trecho de um dos primeiros textos que li de Milton Schwantes: Projeto de Deus na Bíblia (Anotações
para uma palestra no Curso de Extensão Universitária “Fé e Educação Política”, promovido pelo
Diretório Acadêmico do Instituto de Teologia, PUC, Porto Alegre, 30.09.1981), p.7.
3
Cf. CERTEAU, Michel de. (2000: 269-270): “Longe de serem escritores, fundadores de um lugar
próprio, herdeiros dos servos de antigamente mas agora trabalhando no solo da linguagem, cavadores
de poços e construtores de casas, os leitores são viajantes; circulam nas terras alheias, nômades caçando
por conta própria através dos campos que não escreveram, arrebatando os bens do Egito para usufruí-
los. A escrita acumula, estoca, resiste ao tempo pelo estabelecimento de um lugar e multiplica sua
produção pelo expansionismo da reprodução. A leitura não tem garantias contra o desgaste do tempo (a
gente se esquece e esquece), ela não conserva ou conserva mal a sua posse, e cada um dos lugares por
onde ela passa é repetição do paraíso perdido”.
13
sucessivas leituras e produções de sentido feitas por seus leitores. O texto torna-se cada vez
encarnada por gestos, espaços e hábitos”. É o que percebemos nas várias leituras do livro de
Daniel. Textos que fogem às convenções de leituras e que podem ser lidos de formas diferentes.
(macabeus), apocalípticos, a do messias e a do povo pobre. Livro que faz circular imagens e
recria (criativamente) imaginários de resistência. Podemos dizer que o livro de Daniel representa
um corpus mixtum. Ali encontramos várias tradições, vários gêneros literários e muitas vozes.
Na busca do livro de Daniel e nas várias leituras que foram sendo feitas no decorrer da
história deste livro; bem como, nas primeiras leituras do livro somos impactados por dois
aspectos: a sua localização nas Bíblias e a apresentação de textos diferentes dentro do seu
conjunto. Na trilha das leituras era necessário ter presente o livro em suas origens e a sua
recepção em nosso contexto. Levando em conta essas buscas é que organizamos a pesquisa
em três partes.
Na primeira parte, “o livro de Daniel nos primeiros séculos a.E.C.”, buscamos entender o
livro, utilizando as ferramentas da exegese bíblica aplicadas sob três passos: o entendimento do
texto e a maneira como estão organizadas cada versão do livro em termos literários (estrutura,
forma e análise semântica). Neste primeiro passo, nos acercamos do documento para conhecer
o rosto do texto. Ao mesmo tempo que fomos conhecendo o texto e éramos informados do seu
conteúdo, descobrimos o que este texto dizia. No segundo passo sobre o conteúdo do texto
atingimos o coração das palavras. E, finalmente, no terceiro passo buscamos entender o seu
14
contexto e quais os grupos que estão por trás de cada versão do livro: Estas palavras tem chão.
suas relações com outros textos que existiram em seu entorno. Algumas de suas imagens e
símbolos presentes em outros livros e textos sagrados que existiram apesar das proibições e
sanções. Sua circulação no contexto do Cristianismo Primitivo. Esta parte tem a grande função
de dobradiça e ponte para a grande pergunta que fizemos sobre as leituras do livro de Daniel:
Assim sendo, o foco da terceira parte está na comunicação do texto e suas leituras na
América. Nos dias da dominação colonial e entre as leituras coloniais nos deparamos com a
leitura e exegese do jesuíta Antônio Vieira. Priorizamo-la por perceber a sua importância na
formação da sociedade e o livro de Daniel em meio aos conflitos de interpretação e no jogo das
A chave de leitura que descobrimos ao final do trabalho consiste que este livro de Daniel
sofreu acréscimos, cortes, revisões, leituras várias e, de modo especial, em suas mais variadas
interpretações, foi evocador de heresia frente aos poderes de censura. Livro herege que demora
a entrar no cânon, livro herege que alimenta e coexiste com outros livros hereges (Enoque,
Oráculos Sibilinos, Apocalipse de João entre outros) e livro que está nas penas e discursos de
No jogo das interpretações do livro (ou livros) de Daniel com suas leituras variegadas
“La primera fiera que vio Daniel... era como un león...: es el poder real que toma
la espada y se abre paso para gobernar a otros dando... así la tierra a algunos,
negando a tierra a otros. La segunda fiera era como un oso: y éste es el poder
de las leyes egoístas... el poder de las prisiones... la confiscación de los
bienes... las horcas y hogueras... La tercera fiera era como un leopardo...: éste
es el embustero arte que practican unos de comprar o vender la tierra, con sus
frutos a otros. La cuarta fiera es el imaginario poder del clero, que en realidad es
Judas: y ésta es más terrible y aterradora que las demás. (...) Son la maldición y
15
4
Gerrard Winstanley. Apud. Christopher Rowland. “Los que hemos llegado a los fines de los tiempos”:
lo apocalíptico y la interpretación del Nuevo Testamento. In: BULL, Malcolm (org.). (2000: 51).
16
PRIMEIRA PARTE
Nos primeiros séculos antes da Era Comum5 circulam nos ambientes judaicos, tanto na
Judéia quanto fora dela (diáspora), vários textos e livros de natureza religiosa (sagrada). O livro
de Jesus Ben Sirac (mais conhecido como Sirácida ou Eclesiástico) registra entre os judeus a
existência dos livros, das leituras e das traduções.6 Através deste texto podemos vislumbrar que
existia a leitura e circulação de vários textos ou livros. No entanto, um livro nos chama a atenção
neste processo de formação dos textos religiosos e litúrgicos na tradição judaica: o livro de
Daniel, que nesse contexto, circula em suas três versões (aramaica, hebraica e grega). Ao nos
Podemos falar de um livro de Daniel? Ou temos, pelo menos, três livros? Pode parecer
fácil fixar uma data para o livro de Daniel e, sobretudo, elaborar uma hipótese para a sua
redação final. Existe uma redação final do livro de Daniel? Quando ela se deu? Quem são os
5
Não vou seguir a fórmula padrão utilizada nas datações e passarei a utilizar a.E.C. para dizer antes da Era
Comum e E.C. para Era Comum.
6
“Visto que a Lei, os Profetas e os outros escritores, que se seguiram a eles, deram-nos tantas e tão
grandes lições, pelas quais convém louvar Israel por sua instrução e sua sabedoria, e como, além do
mais, é um dever não apenas adquirir ciência pela leitura, mas, ainda, uma vez instruído, colocar-se a
serviço dos de fora, por palavras e por escritos: meu avô Jesus, depois de dedicar-se intensamente à
leitura da Lei, dos Profetas e dos outros livros dos antepassados, e depois de adquirir neles uma grande
experiência, ele próprio sentiu necessidade de escrever algo sobre a instrução e a sabedoria, a fim de
que os que amam a instrução, submetendo-se a essas disciplinas, progridam muito mais no viver segundo
a Lei. Sois, portanto, convidados a ler com benevolência e atenção e a serdes indulgentes onde, a
despeito do esforço de interpretação, parecermos enfraquecer algumas das expressões: é que não tem a
mesma força, quando se traduz para uma outra língua, aquilo que é dito originariamente em hebraico;
não só este livro, mas a própria Lei, os Profetas e o resto dos livros têm grande diferença nos originais.
Ora, no trigésimo oitavo ano do falecido rei Evergetes, indo ao Egito e sendo-lhe contemporâneo,
encontrei uma vida segundo uma alta sabedoria, e eu julguei muito necessário dedicar cuidado e esforço
para traduzir este livro. Dediquei muitas vigílias e ciência durante este período, a fim de levar a bom
termo o trabalho e publicar o livro para os que, fora da pátria, desejam instruir-se, reformar os costumes
e viver conforme a Lei” (Prólogo grego do Livro do Eclesiástico, vv.1-34. Ver B.J.).
17
presentes nas diferentes versões de Daniel foram transmitidas? E como estas imagens e leituras
dos acontecimentos dos primeiros séculos a.E.C. continuaram a ser transmitidas e se fizeram
Uma resposta para estas questões está na concepção de que texto cultural é mais amplo
do que apenas o texto escrito. “A história é sempre texto, ou mais amplamente, discurso, seja ele
escrito, iconográfico, gestual etc., de sorte que somente através da decifração dos discursos que
afirmar à luz de Clifford Geertz de que a cultura se compõe de um conjunto de textos com
amplos significados, ultrapassando, assim, os textos escritos e verbais.8 Neste sentido, temos
que buscar a tradição e a memória subterrânea presente em Daniel.9 Porém, é preciso repensar
texto, como expressão de relações sociais que orientam caminhos, percepções, modos de
pensar e de viver.10 No entanto, será necessário, de um lado, perceber tanto o texto oral quanto
o texto escrito como frutos da cultura11 e da memória histórica e coletiva e, de outro, distinguir
7
CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (1997:377).
8
Cf. GEERTZ, Clifford (1989: 316).
9
As contribuições da história oral e/ou oralidade serão ferramentas imprescindíveis para a nossa
compreensão da conjuntura, das múltiplas releituras dos símbolos e imagens apocalípticas. É neste
aspecto que se insere a perspectiva de uma leitura do livro de Daniel que leve em conta a construção de
um imaginário. ZUMTHOR, Paul (1997a: 28) vai nos ajudar a partir do seu entendimento do termo
oralidade enquanto vocalidade, pois, na voz não só transita a linguagem como também é de onde nasce o
sentido e transborda a palavra. Nas páginas 35-36 o autor vai dizer que a oralidade não se define por
subtração de certos caracteres da escrita, da mesma forma que esta não se reduz a uma transposição
daquela.
10
Esta perspectiva se encontra nos seguintes textos: BURKE, Peter (1995); BURKE, Peter e PORTER,
Roy (1993); BURKE, Peter (1997). CHARTIER, Roger (1990); DAVIS, Natalie Zenon (1990);
GNERRE, Maurício (1994); ZUMTHOR, Paul (1997a, 1997b e 2001); Revista Projeto História
(n.15/1997 e n.22/2001).
11
Não quero aqui me estender no emaranhado de definições sobre cultura. No entanto, o meu interesse na
definição de cultura reside na busca de um caminho para a compreensão das origens do livro de Daniel.
Ver BURKE, Peter (2000: p.13). Cultura é uma teia de significados que foram transmitidos
historicamente, incorporados em símbolos, formando um sistema de concepções herdadas por meio das
quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à
vida. Ver GEERTZ, Clifford (1989: 15 e 103). Podemos conferir os textos de Alan Dundes. Oral
Literature; J. A. Clifton. Cultural Anthropology: Aspirations and Approaches; BURKE, Peter e
18
tradição oral12 e transmissão oral. Pois, o ato de narrar (contar e escrever) já por si carrega a
escrita e lembrança: “Talvez seja esta a chave. Escrever para que os fatos não se apaguem,
para que a memória não seja varrida pelo vento. Escrever para registrar as coisas e dar nome às
Por mais que tenhamos que nos debruçar sobre a tradição oral presente em Daniel,
temos de aceitar o inevitável: ela só chega a nós através de um texto. O texto ou escritura de
Daniel é resultado de uma longa tradição oral. Como descobrí-la? Como percebê-la dentro do
texto escrito?15 Quem redigiu o texto escrito foi fiel ao texto da tradição oral ou o silenciou?
Concordamos com Walter Ong acerca da presença da oralidade como aspecto vivificador da
cultura de uma sociedade, mesmo conhecendo e sendo totalmente dependente da escrita16; pois
a oralidade deve ser compreendida como parte da estrutura da sociedade e a memória não
PORTER, Roy (1993); BURKE, Peter Burke e PORTER, Roy (1997); THOMPSON, Edward
Palmer (1998); LE GOFF, Jacques (1998); HUNT, Lynn (2001); BURKE, Peter (1992); DOSSE,
François A história em migalhas. Dos Annales à Nova História. 2003; Projeto História: História e
Oralidade, n.22, 2001 e Corpo e Cultura, n.25, 2002.
12
Paul Zumthor aponta quatro espécies de situações de oralidade: uma oralidade primária, sem contato
com forma alguma de escritura; uma oralidade mista, que coexiste com a escritura num contexto
sociológico no qual a influência desta última é de caráter parcial, externo e retardado; uma oralidade
secundária que na realidade se recompõe a partir da escritura (a voz pronuncia o que antes se tem escrito
ou se tem pensado em termos de escritura) num âmbito onde, tanto na prática social como na imaginação,
predomina o escrito sobre a autoridade da voz; uma oralidade mediatizada, a que hoje nos oferece o rádio,
o disco e outros meios de comunicação. In: Permanência de la voz. Correio do UNESCO. n.1, p.5.
13
Segundo Homi K. Bhabha (1998: 93) “a tradição é aquilo que diz respeito ao tempo, não ao conteúdo.
Por outro lado, o que o Ocidente deseja da autonomia, da invenção, da novidade, da autodeterminação,
é o oposto – esquecer o tempo e preservar, acumular conteúdos; transformá-los no que chamamos
história e pensar que ela progride porque acumula. Ao contrário, no caso das tradições populares...
nada se acumula, ou seja, as narrativas devem ser repetidas o tempo todo porque são esquecidas todo o
tempo. Mas o que não é esquecido é o ritmo temporal que não pára de enviar as narrativas para o
esquecimento”.
14
Isabel Allende. Apud. Hans de Wit (1988: 29).
15
No estou me referindo a texto impresso como o concebemos hoje, mas aos textos que aos poucos foram
sendo escritos num processo que vai das inscrições em pedras, argilas (cerâmicas), papiros, pergaminhos,
rolos e códices.
16
Cf. ONG, Walter J. (2001: 69).
19
como uma simples recordação dos fatos e acontecimentos, mas como uma maneira criativa de
“El hecho de que los pueblos orales comúnmente, y con toda probabilidad en
todo el mundo, consideren que las palabras entrañan un potencial mágico está
claramente vinculado, al menos de manera inconsciente, con su sentido de la
palabra como, por necesidad, hablada, fonada e, por lo tanto, accionada por un
poder. La gente que está muy habituada a la letra escrita se olvida de pensar
en las palabras como primordialmente orales, como sucesos, y en
consecuencia como animadas necesariamente por un poder; para ellas, las
palabras antes bien tienden a asimilarse a las cosas, “allá afuera” sobre una
superficie plana. Tales “cosas” no se asocian tan fácilmente a la magia, porque
no son acciones, sino que están muertas en su sentido radical, aunque sujetas
a la resurrección dinámica”.17
sapienciais, enfim, de textos que registram os acontecimentos do passado ou até mesmo que se
17
Idem. p.39.
18
Vale a pena lembrar que os textos apocalípticos, além de serem considerados uma espécie de mixtum
compositum” (afirmação de Gerhard von Rad) podemos elencar algumas de suas características, no
tocante a uma literatura que mescla leitura dos acontecimentos passados e uma história do futuro: 1. as
revelações são comunicadas e transmitidas através de visões, epifanias (acompanhadas pela figura do
mediador ou intérprete que apresenta uma explicação da visão na forma de discurso ou diálogo), viagem a
outro mundo e revelação escrita num documento. Estas revelações são acompanhadas pela presença de
um mediador transcendente, de modo geral na figura de um anjo, e, de um receptor da revelação, que
normalmente é identificado por uma figura venerável do passado. Eles utilizam o recurso da pseudonímia.
Na mesma dinâmica, o texto é produzido numa conjuntura de crise e a “revelação” é projetada para um
momento arquetípico (origens e formação de Israel, exílio da Babilônia, etc.). 2. Em termos de conteúdo,
os apocalipses apresentam alguns temas: a) assuntos que tratam do começo da história ou da pré-história:
teogonia ou cosmogonia; eventos primordiais que tem significado paradigmático para o resto da história,
como a interpretação do pecado de Adão; b) releitura da história do mundo ou de Israel (no sentido de
lembrança do passado) ou uma prophetia ex-eventu, onde a história passada é disfarçada como futura; c)
salvação presente que se dá através do conhecimento (tema próprio dos apocalipses gnósticos); d) uma
escatologia da crise, que se dá na descrição de uma perseguição dos justos ou nos desastres e sofrimentos
que perturbam a natureza e a história; e) julgamento escatológico e de destruição dos opressores (nos
textos gnósticos e o julgamento e destruição do mundo) e das forças de outro mundo (as forças de Belial,
de Satanás e de outros poderes do mal), que é provocado por intervenção sobrenatural (transformação
cósmica) e f) salvação escatológica através de transformação cósmica para renovar o mundo ou de uma
salvação pessoal (tanto na forma de ressurreição ou de exaltação para o céu enquanto outras formas de
vida após a morte). 3. No tocante ao eixo espaço, aparecem os elementos de outro mundo (regiões
celestiais) com viagens do receptor da revelação ou de seres transmundanos (anjos e demônios). 4. Na
literatura apocalíptica encontramos também a Parenese em suas várias formas. As pareneses são
fornecidas pelo mediador no momento da revelação (raramente aparece nos apocalipses judaicos e tem
mais proeminência nos apocalipses cristãos). 5. Elementos finais: Instruções para o receptor (por
exemplo, escrever ou esconder a revelação); uma conclusão narrativa que descreve o despertar ou a volta
à terra, a partida do mensageiro e ações conseqüentes (alguns textos gnósticos faz referencia à
perseguição sofrida pelos receptores por causa da revelação). “É preciso levar em conta também a
intenção dos apocalipses de exortar, gerar esperança e segurança na salvação em função de um contexto
20
apocalípticos foram produzidos por gente camponesa empobrecida ou pelos escribas e doutores
conhecedores das leis e escrituras? Por mais que os camponeses da Judéia desconhecessem a
escrita e comunicassem as suas tradições através da oralidade, não podemos nos esquivar do
fato de que o poder da escrita daqueles que estão nos palácios e nas cidades depende da
dinâmica da oralidade. Portanto, “embora haja culturas orais sem alfabetização, não há culturas
Nesta perspectiva por mais que se queira ler o livro de Daniel como fruto e resultado do
trabalho de redatores (redação final), não dá para se esquivar da constatação de que o texto
caracteriza pela memória e tradição oral. Segundo Nyberg, "quase toda escrituração de qualquer
obra no Oriente teve... como predecessor um período mais ou menos longo de tradição oral, e
sócio-politico e cultural de sofrimento”. Ver CROATTO, José Severino (1990: 8-21) e NÁPOLE,
Gabriel M. (2001: 353-355).
19
Esta é uma afirmação de Crossan, que aponta para alguns exemplos de estudos que nos impulsiona a
enxergar a divisão entre oralidade e alfabetização não no oral versus o letrado, mas no oral sozinho
versus oral e letrado juntos. Eis os exemplos: primeiro é o estudo de Brian Stock demonstrando que a
grande mudança na sociedade se dá nas combinações entre oralidade e escritura. O segundo, nos diz que o
modelo ideológico de alfabetização se concentra na interação de modelos orais e letrados (Brian Street). E
Jack Goody, terceiro exemplo, diz que é um erro fazer a divisão entre culturais orais e escritas, e devemos
perceber que a divisão aparece entre a oral e a oral mais escrita. E, por fim, o estudo de James Fentress e
Chris Wickham, que defende a tese de que por mais que uma sociedade tenha adquirido a habilidade de
representar seu conhecimento através de formas escritas não significa que tenha deixado de ser oral.
CROSSAN, John Dominc (2004: 129-130).
20
ONG, Walter J. (2001: 169).
21
mesmo depois que foi posta por escrito a tradição oral continua a ser a forma normal de
existência e do uso de uma obra".21 Além disso, uma leitura dos verbos no livro do
Deuteronômio revelará por que Israel é reconhecido como "um povo por excelência da
ouve, ó Israel...recorda-te... Nele a tradição oral se mostrou um caminho fecundo pelo qual,
através da voz e da escuta foi conservada e transmitida a sua sabedoria, o seu mundo, a sua
história. A voz designa o sujeito a partir da linguagem e nela a palavra se enuncia como
produz uma dinâmica de manutenção das tradições, mitos, ritos, cosmovisões e história. É uma
memória coletiva que é recriada coletivamente para que em cada momento ecoe a experiência
dos antepassados. Em presença da voz e da escuta cada geração com "boca", "olhos" e
"ouvidos" atentos às necessidades cotidianas, realiza uma leitura da vida e da história, na busca
de orientação diante das problemáticas concretas. Assim, a tradição e o passado podem ser
re-significados como utopia e futuro. Em Israel (no período histórico aqui considerado e a partir
gerações.24 Ernst Robert Curtius ao abordar o livro como símbolo diz que entre os gregos
“Conta Sócrates que o deus egípcio Teuth (isto é, Thot), inventor da escrita,
recomendara sua invenção ao rei Thamus: ela tornaria os egípcios mais sábios
e preservaria sua memória. O rei, porém, não aceitou: ‘Isso causará
21
Apud BENTZEN. Aage (1968a: 119).
22
Cf. ZUMTHOR, Paul (1997a: 13).
23
Ver SILVA, Rafael Rodrigues da (2003: 197-210).
24
ZUMTHOR, Paul (1997a:19). A memória, que é transmitida por textos, objetos, pedras, edifícios e
máquinas, embora dê a impressão de preservar o passado em sua totalidade, reproduz apenas parte do que
foi vivenciado anteriormente.
22
Conforme Ernst Robert Curtius, a escritura e/ou o livro aparecem em linguagem figurada
características em cada cultura. Das metáforas apontadas por ele podemos destacar as
seguintes: nas culturas antigas o livro se reveste de caráter sagrado26, chegando a ser
designado como escrito pelas divindades; já na Grécia antiga representa instrução filosófica oral
e memória, pois a vida é comparada a um livro; das poucas metáforas que vêm da literatura
romana, aparece em meio às guerras o conceito de “Livro da História”, no qual alguém é inscrito
“com letras de ouro”. Porém, na tradição bíblica herdamos a imagem da Escritura Sagrada, das
Tábuas da Lei e o Livro da Vida como “escritas pelo dedo de Deus”, onde no início da Idade
Média, os mártires são vistos como “páginas atribuídas a Cristo” e na obra de Isidoro aparece
uma concepção mágico-mística dos elementos da escrita27; já, no apogeu da Idade Média,
utiliza-se a rubrica como metáfora para o sangue derramado pelos mártires e o rosto humano é
comparado a um livro, no qual se devem ler os seus pensamentos; também nos sermões dos
pregadores são utilizadas metáforas acerca do livro a partir dos textos bíblicos28; do século XIII
25
Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 377-78).
26
Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 377). Privilégio de uma casta de sacerdotes e veículos de idéias
religiosas. Aí encontramos livros “celestiais”, “sagrados” e “litúrgicos”. A própria arte de escrever
participa do mistério, e ao escritor é reconhecida especial dignidade.
27
Isidoro afirma também que os “antigos” dirigiam as linhas como o lavrador abre os sulcos (Et. VI,
14,71). Escreviam “em bustrofêdon” (em grego bostrofhdo,n: “como os bois de um sulco para o outro”,
isto é, escrevendo alternadamente da esquerda para a direita, depois da direita para a esquerda). A
metáfora “relha” por “estilo” não ocorre, ao que eu saiba, em nenhuma outra obra da literatura romana,
mas é encontrada nos poetas medievais. Deve, portanto, em qualquer caso, provir de Isidoro. A base da
comparação é, naturalmente, mais antiga. Já em Platão encontramos a comparação do cultivo do campo
com a escrita. Os romanos raramente usavam arare como metáfora do ato de escrever.. O composto
exarare (“exarar”) é muito mais freqüente, mas parece não ser mais sentido como expressão figurada,
significando apenas “assentar no papel”, “reduzir a escrito”... A metáfora de “arar” por “escrever” passou
da literatura medieval para as línguas vulgares. Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 388).
28
Uma pregação sobre Dt 4,1 atribuída a Hildebert de Lavardin, que explica aos ouvintes como se
prepara um livro: “primeiramente o escritos, com uma raspadeira, limpa o pergaminho da gordura e da
23
em diante aparece com força a imagem do “Livro da Natureza”29 ou “Livro da criatura”. Enfim,
Nesta perspectiva, a busca de um livro de Daniel só nos faz ver que estamos diante de
um conjunto de livros, ou melhor dizendo, de textos que foram sendo produzidos por grupos
sociais diferentes. No entanto, estes textos não estão preocupados em transmitir a exatidão dos
fatos, mas em descrever uma conjuntura vivida e experienciada. O modo de transmissão, seja
Analisando atentamente as versões do livro que chega até os nossos dias (o aramaico: 2,4-7,28;
o hebraico: 1,1-2,3 e 8-12 e o grego: 3,24-90 e 13-14) iremos perceber não só as costuras feitas
pelo redator, mas também a dinâmica de transmissão do relato e a sua releitura no novo texto.30
oralidade, escrita e memória. Nesta dinâmica, o ouvinte é receptor de um texto oral e, ao mesmo
tempo, co-autor desse texto ao transmiti-lo oralmente.31 Por isso, temos de levar em conta que o
oral, a transmissão oral, a memória e a escritura. Por um lado, a primeira etapa do surgimento
sujeira mais evidente. Depois com uma pedra-pomes, remove os pêlos e as fibras. Sem isto, o escrito não
serviria nem duraria. Depois pauta o pergaminho para que a escrita seja regular. Tudo isso deveis fazer
também com o vosso coração”. Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 394).
29
“Vê, a Natureza é um livro vivo, incompreendido mas não incompreensível; pois teu coração sente
forte e grande desejo de juntar em si toda a alegria que pode haver no mundo, toda a luz do sol, todas as
árvores, toda beira-mar, todos os sonhos” (Goethe). Cf. CURTIUS, Ernst Robert (1996: 402).
30
Mais adiante iremos detalhar estas diferenças literárias no livro de Daniel ao tratar de sua formação,
“edição” e circulação.
31
Ver ZUMTHOR, Paul (1997a: 221-256); (2001: 96-116) e (1997b).
24
do texto de Daniel está na formação de uma pequena coleção (Dn 2-7) de legendas ou histórias
da corte32, que, numa segunda etapa são agregados os capítulos em hebraico (Dn 1 + 8-12),
demonstrando que o texto base já existia sob uma forma literária. Ou seja, o livro aramaico de
Daniel já tinha passado de texto oral para texto escrito, constituindo-se numa espécie de
transmitido e o recria numa nova dimensão. Uma terceira etapa, consiste dos enxertos que
foram colocados num livro já organizado, ou seja, o texto grego (Dn 3,24-90 e 13-14). Aqui, a
memória desempenha um papel de grande importância, pois antes de ser escrita, a apocalíptica
de Daniel foi memória transmitida, e antes de ser memória foi palavra e voz da tradição oral.34
Entendo que este processo dinâmico que vai da tradição oral para a memória ou
panfleto, da memória para o escrito e deste para a transmissão e releitura, é marcado por
constantes mudanças e ampliações. A memória e o texto escrito amplificam a tradição oral, pois
nas nossas lembranças se processa a construção de um saber que chega até nós como
fragmentos de um conhecimento, que, na sua origem, diz, analisa e interpreta uma dada
conjuntura e, que ao serem lembrados ou esquecidos, são reinterpretados à luz de novos pontos
grande estátua, constituída de vários materiais como ouro, prata, bronze e que tem os pés de
ferro e barro. A interpretação de Daniel sobre o sonho amplia o ferro e o barro para os dedos (2,
Homem (13), que na interpretação é transformado na categoria dos Santos do Altíssimo (22ss).
32
Os capítulos 2-6 + 1 de Daniel são comumente considerados nos comentários bíblicos como romances
populares, histórias paradigmáticas, parêneses, profecia ex-eventu, fábulas, parábolas, alegorias, profecia
interpretada, entre outras classificações do gênero literário.
33
Utilizamos aqui uma conceituação formulada por Milton Schwantes na sua análise sobre a formação do
livro de Amós. Cf. SCHWANTES, M. (1987: 79-92).
34
Para M. Scholz o surgimento da escritura está ligado ao desenvolvimento do comércio, das
comunicações e do direito; enquanto para M. Clanchy, o que favoreceu a difusão da escritura é a relação
estreita que ela mantinha com a voz. Apud ZUMTHOR, Paul. (2001: 97).
25
Na movência do texto oral para a escritura, não só acontece uma transcrição, mas uma
trans-criação das imagens e da voz. O texto oral ao ser fixado na escritura, de certa maneira,
transmissão oral e da escritura. O que acontece no livro de Daniel é que a escritura foi um dos
caminhos para a conservação dos contos, imagens e símbolos apocalípticos. Mas, ao mesmo
tempo, foi provocadora de novas leituras e de uma transmissão oral. O texto, como escritura, se
A memória35 é muito mais uma reconstrução criativa do que uma simples recordação
exata dos acontecimentos, pois numa dada conjuntura e situação política as pessoas (envolvidas
ou não) lembrarão ao cruzar os seus dados e noções comuns com os dos outros. Assim, a
colocarem desde o ponto de vista do outro. A interação entre memória individual e memória
coletiva se assenta na história vivida e não na história aprendida36; pois “ao lado de uma história
escrita, há uma história viva que se perpetua ou se renova através do tempo”37. Diria como
35
A memória é uma construção coletiva sobre o passado feita a partir das condições sociais que o grupo
vivencia no presente. Ao mesmo tempo, a lembrança do passado informa o grupo sobre o seu presente, de
forma que passado e presente se constroem mutuamente – são socialmente percebidos por meio de
informações que um projeta sobre o outro. Na sua função de explicar o presente, a memória (que às vezes
se apresenta na forma de relatos míticos) equivale à herança de uma « lente cultural » que define a visão e
a interpretação que o grupo pode ter sobre os fatos que vivencia. Como um retrato do passado, a memória
coletiva tem também um papel importante na construção da identidade do grupo. Os indivíduos se
apresentam aos outros e enxergam a si mesmos tendo como referencial básico as suas origens, desenhadas
a partir de uma memória compartilhada e transmitida através das gerações. Neste sentido em particular, a
memória coletiva expressa os valores culturais do grupo, pois se a memória é constituída por uma seleção
de feitos e marcos « memoráveis », ou seja, dignos de lembrança, ela demonstra os critérios que o grupo
utiliza para fazer sua seleção. Assim sendo, a memória coletiva pode ser compreendida como a moldura
cultural que define os parâmetros para a realização dos processos cognitivos da memória particular de
cada indivíduo que dela participa. Ver LIMA, Deborah de Magalhães e ALENCAR, Edna Ferreira (2001:
27- 48); CONNERTON, P. (1989) e BARROS, Myrian Moraes Lins de (1989: 29-42).
36
Ver Memória coletiva e memória individual. HALBWACHS, Maurice (2004: 29-56).
37
HALBWACHS, Maurice (2004:71). Halbwachs a propósito deste problema afirma: “Assim, cada
sociedade recorta o espaço a seu modo (...) de modo a constituir um quadro fixo onde encerra e localiza
suas lembranças (...) . Não é certo então, que para lembrar-se, seja necessário se transportar em
pensamento para fora do espaço, pois pelo contrário é somente a imagem do espaço que, em razão de
sua estabilidade, dá-nos a ilusão de não mudar através do tempo e de encontrar o passado no presente;
mas é assim que podemos definir a memória; e o espaço só é suficientemente estável para poder durar
sem envelhecer, nem perder nenhuma de suas partes”. (pp.166-67).
26
João Guimarães Rosa: a estória não quer ser história. A estória, em rigor, deve ser contra a
História.38
Na leitura das narrativas de sonhos, nos contos e visões do livro de Daniel percebemos
o texto não como a apresentação de uma dada conjuntura, mas como um dos materiais
Diante da circulação das imagens presentes no livro de Daniel, podemos sugerir que os
autores deste livro (profético, sapiencial e apocalíptico) jogam com os ouvintes e leitores. O texto
é um jogo.40 Por um lado, deixa transparecer as intencionalidades dos autores em seu contexto
presente e, por outro, suscita nos leitores, a imaginação e a interpretação, aspecto que desloca o
texto para novos tempos: o tempo da leitura e da hermenêutica. Assim, o mundo presente no
texto sofre as mutações através da capacidade de imaginar e interpretar daqueles que recebem
o texto e que se tornam os grandes transmissores do texto. Nesta perspectiva, o mundo do texto
encenada para revelar a situação de um povo num dado contexto, que por sinal, dialoga com o
Na relação entre poeta e historiador, Spingarn vai dizer que eles têm muitos pontos em
comum. Assim, podemos relacionar o historiador com aqueles que criaram as narrativas
presentes no livro de Daniel, pois descreve lugares, pessoas, seus diálogos, suas leis; as
38
João Guimarães Rosa (2001: 29). .
39
Iúri Lotman afirma que “todo texto contribui tanto para a memória como para o esquecimento. E um
texto não é então a ‘realidade’ mas os materiais para reconstruí-la. (...) a transformação da vida em texto
não é interpretação, mas a introdução de eventos na memória coletiva”. Apud. FERREIRA, Jerusa Pires
(1994: 118).
40
Cf. Wolfgang Iser. O jogo do texto. In: LIMA, Luiz Costa (2002b: 105-18).
27
exatamente como aconteceu, ao passo que ao narrador de contos e sonhos sempre haverá a
perspectiva de um aspecto a mais a ser acrescentado. Este tipo de texto narrativo sapiencial e
apocalíptico é aberto e permite que o leitor ou o grupo e comunidade receptora acrescente o que
deseja.41
O esquecimento pode ser visto como um dos mecanismos utilizados pelas culturas
hegemônicas e colonizadoras para apagar certos elementos da tradição que estão presentes na
memória coletiva. Porém, podemos percebê-lo como um fundamento (pivô) no universo das
narrativas poéticas e contos populares.42 Esquecimento e memória devem ser vistos como
responsável pela continuidade, pela memória e até pela lembrança (...). É o esquecimento que
vem quebrar uma certa continuidade na ordem mental, sendo responsável pela criação de uma
outra ordem”.43
de retransmiti-los às novas gerações é que nos deparamos com três tipos de memória: 1) a
num determinado grupo social); 2) a memória coletiva que traz à tona fatos e aspectos da vida
social que são julgados relevantes pela sociedade; e, 3) as memórias subterrâneas ou marginais
41
Spingarn. Apud. LIMA, Luiz Costa (2002a: 260).
42
Cf. ZUMTHOR, Paul (1997b: 16). Ver FERREIRA, Jerusa Pires (2004: 91-127). “Mas o que fica em
várias passagens ressaltado é que de um modo ou de outro a cultura se dirige contra o esquecimento.
Vive-o, transformando-o num dos mecanismos da memória. Por conseqüência, podem-se criar hipóteses
sobre precisas limitações no volume da memória coletiva que determinaram a substituição de uns textos
por outros. Mostra que existe um profundo abismo entre o esquecimento enquanto elemento de memória
e enquanto elemento de destruição desta memória. Ocorre levar em conta que uma das formas mais
agudas de luta social na esfera da cultura é a imposição de uma espécie de esquecimento obrigatório de
determinados aspectos da experiência histórica. É claro que esta afirmação tem de ser relativizada, e
não existe passividade que acolha totalmente um “esquecimento obrigatório”, imposto por um sistema
político ou pela comunicação de massas”. (p.79).
43
FERREIRA, Jerusa Pires (2004: 94).
28
que correspondem às versões sobre o passado dos grupos dominados e que são transmitidas
oralmente44.
À luz destas questões sobre tradição oral, memória, escritura e transmissão oral é
preciso ter presente o conceito de livro e de texto no período de formação e compilação das
A origem do texto hebraico, ainda é uma das questões não resolvidas na exegese e no
estudo literário. Uma antiga opinião dizia que o Texto Massorético45 já estava fixado em tempos
antigos e daí fora passado com fidelidade absoluta às gerações posteriores, porém, há muito
tempo esta teoria tem trilhado os caminhos da incerteza. Dizemos isto simplesmente porque
devemos nos aproximar desses textos antigos da escritura hebraica e dos povos vizinhos
atentos à sua pluralidade. Visto que este texto existia desde o início em diferentes formas.46
evolução dos textos da Bíblia Hebraica segue um processo que vai da oralidade à escrita de
pequenas unidades de textos (perícopes), destas pequenas unidades aos textos proto-
A tradição oral é muito forte e presente em Israel e Judá desde os tempos do pré-exílio e
tem um longo caminho na formação e transmissão das escrituras hebraicas. É bom lembrar que
as perícopes se apresentam carregadas de tradições orais, e estas, estão assentadas nas mais
Três espaços sócio-culturais são marcantes no período do Segundo Templo (515 a.E.C.
o Templo de Jerusalém. Por um lado, estes espaços são marcados pela necessidade da
memória para garantir a identidade judaica diante das mudanças culturais e da difícil realidade
alegorias, narrativas populares, contos e casos. Dois verbos em hebraico demonstram uma das
atividades dos escribas e das lideranças no meio do povo: contar (rp;s:., contar, relatar (verbo
denominativo), tendo os seguintes substantivos de origem: rp,s:e escrito, livro; h,r{_)(*,> p' ,s:i livro;
rpes:o escriba; rp,s,. :. censo, contagem; hr'pso :. número e rP,s. m. :i número)47 e reunir (@s"a:'
reunir, ajuntar, recolher).48 Interessante que por trás destes verbos estão designados dois
grupos sociais ligados à recuperação e manutenção das tradições do povo: os escribas (rpes) e
seja, aqueles que vão exercitar a leitura dos textos e pontuar as diferenças entre as palavras
47
Sepher é empregado para designar a atividade matemática em geral. Pode-se fazer a contagem de
objetos, pessoas, períodos de tempo, ações, pensamentos, etc. O verbo no grau piel tem conceito
reiterativo de “recontar”, assim, passa a ter também a idéia de “narrar”, “contar”, “anunciar”,
“demonstrar”. Neste sentido, as palavras sepher e sopher, consideradas empréstimo lingüístico do
acadiano (sepher vem do acadiano siphru, “escrito”, “mensagem” [o vocábulo acadiano procede de
saparu, “enviar”, “escrever”] e sopher, do acadiano sapiru, “escriba”. A posição social e o trabalho do
sopher eram de grande importância no antigo oriente médio. Na Babilônia a arte dos escribas começou
em tempos bem remotos e era regulamentada e estimulada mediante o estabelecimento de escolas para
escribas, nas quais se dava uma educação formal rigorosa em todos os aspectos da cultura escrita. No
Israel pré-exílico a posição social e o trabalho dos escribas não estavam bem definidos. Sabe-se que o
ofício existia e que o escriba, aparentemente, gozava de uma posição favorável e de responsabilidade no
governo, tendo até mesmo aposentos especiais no palácio. Em 2Rs 25,19 há um escriba que tinha a
função de “alistar o povo da terra” (para o serviço militar). O substantivo sepher veio também a designar
documentos legais importantes (Dt 24,1.3; Is 50,1: Jr 3,8) ou cartas oficiais (1Rs 21,8; 2Rs 19,14: Est
1,22: Jr 29,1). Não há dúvida de que tais escritos ou livros existiam principalmente na forma de rolos (Nm
5,23; Sl 40,7; Is 34,4; Ez 2,9), escritos em colunas (Jr 36,23) e às vezes dos dois lados (Ez 2,9-10). Cf.
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1056-58).
48
~yrIp+ S' . / “livros” – Dn 9,2 A Septuaginta traduz bi,bloij (livrinho, folheto) daí a conotação de escritura:
bibli,a ta. a[gia – “livros santos_ - 1Mc 12,9 e i`era.n bi,blon – “livro sagrado – 2Mc 8,23.
30
lidas e as palavras escritas. Estou falando da riqueza na língua hebraica do ketiv e qerê. Devido
a existência de variantes nos antigos manuscritos aplicam-se estes termos para determinar
quando uma palavra deve ser lida de forma diferente da que foi escrita. Daí o uso da palavra
bytiK. / ketîv que literalmente significa o que está escrito; enquanto que a palavra yrEq. / qerê
ou qerî (do aramaico yrEq. YrIq). , literalmente quer dizer o que é lido.49
textos que compunham a tradição das Escrituras hebraicas têm os seus inícios formais no
período da elaboração do Cânon Hebraico (a partir do final do I século E.C.) talvez marcado pela
disputa entre judeus e cristãos.50 Estes textos proto-massoréticos foram utilizados e copiados
No entanto, é forte ainda a concepção de que a autoria dos textos da Bíblia pertencem
aos autógrafos ali presentes, passando pelos manuscritos hebraicos medievais e chegando até
nossos dias em nossas edições impressas. Porém, a descoberta dos Manuscritos de Qumran
trouxe uma nova luz sobre esta questão e, de modo geral, demonstrou a fidelidade com que o
texto hebraico foi conservado e a pluralidade de textos e versões que circulavam entre o Io
século a.E.C. e o IIo século E.C. No tocante ao livro de Daniel foram encontrados oito
49
“As anotações de Qerê e Ketiv são relacionadas a diversas situações textuais próprias da Bíblia
Hebraica: eufemismos, grafias incomuns, tipos de grafia (plena e defectiva), correções de formas
arcaicas ou dialetais, correções gramaticais, correções estéticas, omissão de letras em algum vocábulo,
omissão ou adição de palavras no texto, metátese, leituras errôneas, além de outras peculiaridades”. Cf.
FRANCISCO, Edson de Faria (2005: 179). Ver também SILVA, Cássio Murilo Dias da (2000:42): “Um
recurso dos massoretas para esclarecer dificuldades com a vocalização, quando esta é incompatível com
as consoantes. Ou seja, quando o texto apresenta consoantes de uma palavra com vogais de outra”.
50
Para BARRERA, Julio Trebolle (1996: 53): “quando, porém, os cristãos começaram a servir-se da
versão grega dos LXX e do cânon amplo correspondente, os rabinos judeus decidiram estabelecer uma
Bíblia única reconhecida e autorizada: a Tanak em língua hebraica, com um texto minuciosamente fixo e
com um cânon reduzido, que deixava ‘fora’ os considerados ‘exteriores’ (hîsonîm) ou apócrifos, alguns
dos quais figuravam na Bíblia grega dos cristãos”.
51
Caminham nesta direção os comentários de: BARRERA, Julio Trebolle (1996: 327-329);
GOTTWALD, Norman K. (1988: 124-125) e PISANO, Stephen. O texto do Antigo Testamento. In:
SIMIAN-YOFRE, Horacio (2000: 39-71).
31
textos de língua aramaica. Apresentam algumas adições e variantes que coincidem com a
versão da Septuaginta.52 Vale lembrar que as traduções e/ou as versões de um mesmo relato
“As Escrituras bíblicas, como toda literatura e mais do que qualquer literatura,
são um contínuo reescrever o que já foi escrito. A Bíblia não é somente seus
textos, senão também as citações, alusões e ecos de seus livros em outros
textos (intertextualidade), que por sua vez permitem descobrir novos aspectos
do próprio texto bíblico. Se a literatura bíblica nasce de formas simples como
a canção, o provérbio, o oráculo etc., a literatura pós-bíblica nasce da
“citação” e é toda ela uma imensa citação do AT. A citação não é simples
reprodução de um texto, mas produção de um novo texto. O deslocamento
contextual altera o sentido da citação que se pretende mais exata, dando
novo sentido ao citado.”53
escritura. No Egito, na Mesopotâmia e nas regiões da Síria e Israel foram encontradas algumas
inscrições cuneiformes em pedra. No Egito, essas inscrições estão presentes nos túmulos,
templos, muros, etc.; e na Mesopotâmia, se reduzem aos textos oficiais e às estelas públicas.
em placas de bronze (veja 1Mc 8,22; 14,18.26.48 e o Rolo de Cobre). Vale lembrar que a argila
foi se constituindo num dos materiais mais utilizados nas escrituras oficiais, literárias e, até
mesmo, para cartas, recibos, ensino, etc., isto devido a sua forte presença nos vales entre os
rios Tigre e Eufrates e pelo seu baixo custo. Da argila úmida eram modeladas as tabuletas, no
qual se inscreviam os sinais pictográficos ou cuneiformes, estas depois eram colocadas ao sol
Algumas tabuletas eram conservadas com máxima segurança por conterem textos oficiais e
outras eram devidamente classificadas por se tratarem de conteúdo literário. Até mesmo as
52
Mais detalhes sobre os manuscritos de Qumran ver BARRERA, Julio Trebolle (1996: 330-48).
53
BARRERA, Julio Trebolle (1996: 60).
32
cerâmicas quebradas eram utilizadas para diferentes atividades (cartas, recibos, listas,
daí para os rolos ou volumes (megillâ ou megillat seper que é traduzida para o grego por
kephalís biblíou). De um lado, os papiros representaram um trabalho mais fácil de ser feito do
que cunhar a escrita em tabuletas, mas, de outro lado, era um material que facilmente se
deteriorava (de modo especial nas regiões mais úmidas). Grande parte dos papiros que foram
conservados, provém do Egito e do Mar Morto e permaneceram guardados por muito tempo em
vasos de cerâmica.
pequenos textos escritos em diferentes materiais e épocas, isto nos leva a refletir acerca das
versões, circulação e popularização do livro de Daniel. E aqui estamos, diante de um livro que é
que só depois foram reunidos e compilados. Este momento primeiro da escritura de Daniel nos
leva à constatação de que os textos enquanto unidades separadas pertencem a um grupo, lugar
54
BARRERA, Julio Trebolle (1996: 102-103).
55
Curtius ao comparar a literatura com a arte e as fotografias vai dizer: “(...) a literatura, excluindo todas
as outras, é portadora de pensamentos, e as artes plásticas, não. Mas a literatura também tem outras
formas de movimento, de crescimento, de continuidade, diferentes das artes plásticas... Para a literatura,
todo o passado é presente ou pode vir a ser. (...) O livro é muito mais real que o quadro. Nele há uma
relação ontológica e a real participação numa existência intelectual... um livro é um ‘texto’. Podemos
entendê-lo ou não”. Cf. CURTIUS, Ernst Robert. (1996: 46).
56
Cf. HILL, Christopher (2003: 25).
33
sócio-cultural e conjunturas diferentes. São vários livros que mais tarde serão condensados e
organizados numa versão aramaica, depois numa outra versão hebraica e, por fim, numa versão
antiguidade da escrita com relação à tradição oral, é que a tradição oral, em grande medida
costuma ser anônima (sem autoria), enquanto que a tradição escrita na maioria das vezes tende
Daniel, num momento intermediário, que conjuga tradição oral, escritura e transmissão?
Justamente esta é uma das questões que devemos ter presente ao ler as versões do livro de
O livro de Daniel – como muitos da Bíblia Hebraica – foi composto ao longo de muitos
anos. Evidentemente que passou por um processo de compilação, com possíveis cortes e
agregações, tradições que foram privilegiadas e outras que foram colocadas de lado. Uma das
tradições carregadas de novidades no livro de Daniel são os contos e legendas dos capítulos 2-
7, que se constituem de relatos leves, amenos, muito conhecidos e com conteúdo teológico
e teologia. Estas são algumas das características de como o livro de Daniel é apresentado na
formam o texto têm uma estrutura ou uma rede de relações que são portadoras de sentido.
Porém, vale salientar que deparamos no texto não só com o que está articulado ou explicito, mas
57
Cf. FRYE, Northrop (2004: 242).
58
Ver a opinião de SICRE DIAZ, José Luis (1996: 445-446).
34
também com o não articulado e implícito. É preciso descobrir as relações internas do relato,
outras aproximações são possíveis, de modo especial, aquelas que se movem entre a
que levar em conta todas as considerações do sujeito (tanto como destinatário quanto como
autor), o que implica no tratamento do texto como expressão de uma mentalidade individual ou
e interpretação).62
No bojo das discussões hermenêuticas é que o livro de Daniel tem causado grande
interesse de pesquisa, não somente por ser um livro que sofreu várias colagens e que teve
sérios problemas para ser aceito no Cânon. A leitura do livro de Daniel abarca desde as
59
“A hermenêutica parece estar ligada à diacronia, ao devir do sentido, à semântica ou transformação
do sentido das palavras ou dos textos, ao passo que a semiótica concede um lugar privilegiado à
sincronia, à simultaneidade, às leis estruturais que dirigem a realização da linguagem”. CROATTO,
José Severino (1986: 16).
60
O método semiótico ou semiológico apresenta três pontos importantes: a separação da organização
sincrônica das transições diacrônicas; a separação entre língua e palavra e a consideração da linguagem
como um sistema (a linguagem como sistema, acontecimento, texto e escrita).
61
RICOUER, Paul. Du conflit a la convergence des méthodes em Exégèse Biblique. In: AAVV (1978a:
219-243).
62
Cf. CROATTO, José Severino (1986: 36-58). Ver também: AAVV. Análisis Estructural y Exégesis
Bíblica. 1973.
63
H. G. Gadamer. Apud LIMA, Luiz Costa (2002a: 69). “Pode-se compreender um discurso apenas
quando se compreendeu a pergunta da qual ele é uma resposta (...). A pergunta, de cuja reconstrução se
trata, não concerne em primeiro lugar às vivências mentais do autor mas sim apenas ao sentido do
próprio texto. Quando se compreendeu o sentido de uma frase, i.e., que se reconstruiu a pergunta a que
ela de fato responde, deve então ser possível dirigir a pergunta àquele que a fez e à sua opinião, de que o
texto talvez seja uma possível resposta” (pp.85-86).
35
discussões acerca da origem do cânon, da história do texto e da origem do livro, passando pelas
tentativas de se elaborar uma História das Sagradas Escrituras até chegar em nossos dias em
meio às variadas definições de apocalíptica e suas raízes. De certa maneira, a grande guinada
nos estudos da Bíblia na modernidade se deve a Hermann Günkel que com muita sabedoria
elaborou uma história literária sintético-criativa64, fazendo uma ponte entre a história da literatura
tem recebido especial atenção nos últimos anos65. Uma dos aspectos importantes nesta leitura
reside na busca de correlacionar o texto literário com a realidade66. Porém, a investigação acerca
dos contextos sociológicos dos apocalipses a partir das fontes históricas comuns, resulta numa
tarefa não tão fácil de ser realizada, pois não temos informações sobre os grupos e/ou indivíduos
dos textos apocalípticos e, também, por estarmos diante de textos antedatados, que utilizam o
recurso da pseudonímia67 e que se apresentam como prophetia ex eventu. Estes recursos têm
64
Expressão de BENTZEN, Aage (1968a: 23).
65
Ver o balanço elaborado por WOODRUFF, Archibald Mulford e NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza
(2000: 227-245).
66
Claudio Bedriñán por exemplo vai propor uma leitura do livro do Apocalipse a partir da dimensão
sócio-política da linguagem simbólica. Toma como referência as questões apresentadas pelos seguintes
autores: David E. Aune, Elisabeth Schüssler Fiorenza, Pierre Prigent, John G. Gager, Adela Y. Collins,
George W. E. Nickelsburg, David L. Barr, Leonard L. Thompson e Jan A. Du Rand. In: “Apocalipsis una
comunidad que resiste al imperio”. http://www.franciscanos.net/teologos/biblia/apocresisten.htm.
(retirado em 15/09/2004).
67
Implica um autor diferente, bem como outra situação e outros destinatários que os enunciados no texto.
36
A grande maioria dos autores que comentam a tradição apocalíptica, afirmam que esta
literatura surgiu no período pós-exílio. Ambiente este marcado pela centralização no Templo e na
Israel/Judá aceitam a crítica da profecia de que a situação de crise instaurada pelo exílio foi
provocada pela quebra da Aliança. Resultado dessa afirmação está no regime da lei e do templo
como o único capaz de garantir a fidelidade e a volta a Javé. Para Pedro Trigo, a literatura
apocalíptica na forma de visões e interpretação de enigmas por parte de alguém que tenha nome
de prestigio entre o povo (um sábio, Daniel, um homem de Deus, Salomão, Enoc, e outros),
ação próxima do Deus da Aliança em favor de seus fiéis para libertá-los (nos moldes da
profecia), porém, a libertação não se dará neste tempo e consistirá na passagem para outro
tempo, através de uma guerra sem quartel entre os detentores do poder tirânico, os impérios e
profecias com o recurso da pseudonímia e/ou pseudoepigrafia. Mas de que consiste esta
pelos textos apocalípticos tenta esboçar também uma expansão da história para além dos fatos.
68
Cf. CROATTO, J. S. (1990/3: 131).
69
Cf. TRIGO, Pedro. (2003). In: http://www.servicioskoinonia.org (retirado da Internet no dia
14/02/2003).
70
Ver METZGER, B. M. (1972: 3-24).
37
Nesta perspectiva podemos dizer que o nome Daniel pode ser também um pseudônimo
que era utilizado para dar autoridade a um grupo ou movimento que atuou no segundo século
presença de um grupo de sábios e piedosos, conhecidos como maskilim, que atuam diretamente
José que fora vendido como escravo ao Egito pelos seus irmãos (Gn 37-50). Em termos
políticos, Daniel funciona como uma espécie de conselheiro e crítico junto a reis a quem prediz a
elevação e caída de reinos. As predições apocalípticas de Daniel 7-12 têm caráter político. Os
contos de Daniel 1-6 demonstram os papéis sociais de aspiração dos maskilim e é um indicativo
políticos.72
Neste sentido, por mais que a narrativa se apresente carregada de símbolos e imagens,
faz-se necessário na leitura levar em conta que o texto interpreta uma conjuntura de crise e, com
isso, quer suscitar no ouvinte e leitor o despertar para a situação em que está inserida a
comunidade ou grupo social73. Por isso, muitos comentários sobre a literatura apocalíptica
atribuem como um dos objetivos dos textos o de provocar uma saída da situação de crise74 (vale
71
Mais adiante falaremos deste grupo que está por trás do livro aramaico de Daniel.
72
Ver DAVIES, Philip R. "Reading Daniel Sociologically". In: WOUDE, A. S. van der (1993: 355).
73
Veja os artigos da revista Semeia n.36, Decatur, GA: Scholars, 1986.
74
HENGEL, Martin (1974) nos diz que a cosmovisão apocalíptica resulta de dois fatores: de um lado, da
experiência de vida durante a aguda crise que muitos judeus enfrentaram com a invasão da cultura
helênica em Jerusalém e, de outro, da forte influência que receberam do pensamento helenista.
75
John J. Collins apresenta uma análise de textos apocalípticos na conjuntura do Segundo Templo. In:
COLLINS, John J. (1997c).
38
poético e teológico deixou sua marca nele, e estudar sua função na vida cúltica
e diária; mas também mostrar como as formas de literatura são usadas
estilisticamente, e em compilações eruditas, que não obras de homens
religiosos e de teólogos que as colecionam e moldam, até à época em que o
Cânon exclui o que não é considerado como divinamente inspirado, e portanto
normativo para a fé e para a vida”76.
conta o método histórico-crítico, tendo presente que o Cânon tem sua origem num processo de
seleção em meio a um grande número de escritos que não foram aceitos e outros que foram
que foram produzidos sob um nome fictício ou pseudônimo), automaticamente teremos que
classificar o livro de Daniel como um texto apócrifo. Porém, pelo fato de Daniel ter sido aceito no
apócrifos, pois nem todos os livros são classificados como pseudonímicos.78 Muitos textos são
Daniel, do Livro dos Vigilantes e do Livro dos Jubileus encontraremos muitas características em
76
Idem., pp.25-26.
77
Neste aspecto é que se encaixa a expressão apócrifos (apokryphos) que tem o significado de
“escondido, secreto”. Na tradição cristã tem a conotação de escritos que foram excluídos do Cânon ou
excluídos do uso público. Podemos conferir as várias denominações dos livros apócrifos na obra dirigida
por DIEZ MACHO, Alejandro (1984/1: 27-30). Segundo FERREIRA, Jerusa Pires (1992: 83) “entende-
se, em geral, por apócrifo uma obra ou fato sem autenticidade de autoria ou cuja autenticidade não se
aprovou. Em definições correntes significa também aquilo que é oculto, escondido, encoberto, restrito à
consciência de alguns (...). A proibição de livros, a definição destes como não-canônicos, nocivos ou
falsos liga-se à luta da Igreja contra as correntes de oposição dentro do cristianismo; assim as chamadas
heresias, que continham com freqüência idéias sociais avançadas”.
78
CROATTO, José Severino (1990: 16): “Quanto à maneira como se transmite a revelação, pode ser uma
visão, uma audição (discurso, diálogo), uma viagem a outro mundo, ou a recepção de uma escritura (
como as “tabuinhas celestiais” do Enoc etíope 93,2 ou 81,1-2). Junto com o meio pelo qual se dá a
revelação há também um mediador transcendente (anjo, na maioria dos apocalipses: Cristo, no NT) e,
naturalmente, um receptor. Este geralmente é pseudônimo (Enoc, Moisés, João, etc.), o que não responde
ao intento de legitimar um texto recorrendo a um personagem significativo e aceito (o que se dá em
outros contextos) mas sim a uma intenção básica destes textos que é a de criar segurança no desenlace
da história. Isto tem a ver com a periodização da história: o receptor da revelação aprende tudo o que
acontecerá no mundo até o fim dos tempos, mas o leitor do texto que contém a revelação está no último
espaço de tempo antes do fim escatológico”.
39
religiosa estarão em jogo. Por enquanto, podemos pensar como Elaine Pagels que o livro de
Daniel não tenta a todo custo imaginar um inimigo sectário e nem tampouco condena a maioria
de seu povo como apóstatas. Enquanto o livro de Daniel reafirma a identidade tradicional de
Israel e, contrariamente, os outros livros destacavam uma minoria significativa, isto quer dizer
Talvez seja por isso que facilmente encontramos no livro de Daniel com duas fortes
partir de um olhar futurista e inserido num contexto social de opressão que estava sendo
enfrentado.82
No livro aramaico de Daniel nos deparamos com a grande reputação de Daniel como
79
PAGELS, Elaine (1996: 84-85).
80
H. H. Rowley, no seu livro The Relevance of Apocalyptic (A importância da Literatura Apocalíptica:
um estudo da literatura apocalíptica judaica e cristã de Daniel ao Apocalipse publicado pelas Paulinas),
no primeiro capítulo apresenta uma revisão dos diversos estudos acerca das origens da apocalíptica,
girando em torno dos dois últimos séculos a.E.C. e o primeiro E.C. Rowley julga a apocalíptica autêntica
sucessora da profecia e que é difícil contrapor a idéia de que a apocalíptica seja filha da profecia. Porém,
na linha de Robert Henry Charles, busca estabelecer as diferenças entre profecia e apocalipse; o profeta
fala do ponto de vista do presente, enquanto que o apocalíptico se interessa pelo futuro. Apresenta uma
explicação acerca da pseudonímia, que é utilizada pelos autores apocalípticos e, principalmente pelo autor
do livro de Daniel. Ver DELCOR, Mathias (1987).
81
Cf. VANNI, Ugo. (1989: 10). Vale salientar que a pseudonímia (constante nos escritos apocalípticos)
não aparece no Pastor de Hermas. Ver AUNE, David. (1996: 512).
82
Cf. CROATTO, José Severino (1990: 8-9).
40
parede). No conjunto de interpretações de sonhos, Daniel tem grande influência política, pois é
Numa primeira aproximação ao conteúdo do livro de Daniel, percebemos que ele pode
ser dividido em duas partes. Na primeira parte (capítulos 1-6) deparamos com narrativas de
dominadores (de Nabucodonosor a Dario e Ciro). Esta primeira parte, narrada em terceira
descrição dos sonhos e visões de Daniel com uma forte conotação futurista.85 Porém, tomando
capítulos 1,1 – 2,4a + 8 – 12 e, do outro, 2,4b – 7,28. Hans de Wit propõe que o texto aramaico
seja dividido em duas partes (2,4b – 6,28 e 7,1-28) enquanto que outros autores sugerem que o
capítulo 7 foi acrescentado para servir de ponte e eixo entre as duas versões: 1, 1 – 2,4a
entramos num matagal sem fim se tomarmos o rumo das discussões de cada proposta de
83
Esta conotação podemos encontrar em WOUDE, A. S. van der (org.). (1993: 352-355).
84
Ver DE WIT, Hans (2000: 138).
85
Os capítulos 1-6 basicamente são compostos de histórias, nas quais a referencia a Daniel se dá na
terceira pessoa; enquanto que os capítulos 7-12 são ostensivamente revelações sobre o futuro,
apresentadas por Daniel em primeira pessoa. Outro aspecto que corrobora esta divisão está presente nas
referências cronológicas: os capítulos 1-6 estão situados nos reinados de Nabucodonosor (caps. 1-4),
Baltazar (cap. 5) e Dario, o medo (cap.6); os capítulos 7-8, embora revertam para o reinado de Baltazar,
seguidos na seqüência por Dario (cap.9) e Ciro da Pérsia (cap.10). Ver COLLINS, John Joseph (1984:
28).
86
DE WIT, Hans (2000: 138): “Do ponto de vista gramatical e lexical os cap. 2-6 formam uma unidade
coerente. São produto de um processo redacional sofisticado e deliberado (Wesselius: 208). Expressões
características de 1-6 faltam no cap.7 ((kol-qobel encontra-se 20 vezes em 2-6 e falta em 7). A análise
literária demonstra que os cap. 2-6 provêm de um círculo cultural determinado e pode ter sua origem
entre os judeus da diáspora oriental, pois têm elementos gramaticais que se encontram também em textos
‘orientais’ do século V, a época dos aquemênidas (530-330 a.C.). Os cap. 7 e 8-12 obedecem a outro
contexto, certamente mais tardio (Folmer: 754-755)”.
87
Destacam-se duas opiniões: a primeira, que tem um grande consenso, de que o livro foi composto no
segundo século com a finalidade de fortalecer a resistência do povo de Israel/Judéia frente a perseguição
de Antíoco IV Epífanes (dominação selêucida nos anos 167-142 a.E.C.). O livro escrito nesta época
impulsiona o povo a permanecer fiel a Deus e acreditar na vitória sob o império selêucida. Cf. RUSSELL,
D. S. (1997: 7): “sugeriu-se que o (s) autor (es), em torno do ano 165 a.C., escreveu (eram) no aramaico
41
divisão do livro, pois aparecem aquelas que partem por uma hipótese cronológica88, outras que
formação do livro90. Além, da idéia de que todo o livro de Daniel foi escrito em aramaico no
período dos Macabeus e que as partes que nos chegaram em hebraico, nada mais são do que
uma antiga tradução do aramaico.91 Uma síntese destas propostas aparece no comentário aos
Julgo importante, antes de passarmos adiante, atentarmos para dois aspectos: primeiro,
que há um certo consenso de que o capítulo 7 funciona como eixo e interlocução entre os textos
aramaico e hebraico.93 Portanto, é o que veremos nesta primeira parte de nossa pesquisa: as
vernáculo as narrativas populares contadas nos capítulos 2-6 transmitidas de tempos anteriores
provavelmente em forma oral, tendo concluído sua narrativa com o capítulo 7 que, observamos tem
bastante em comum com o capítulo 2. em seguida, como uma espécie de comentário ao capítulo 7,
recordaria (m) suas visões do “fim” e do Reino vindouro, contidas nos capítulos 8-12 em hebraico a
língua sagrada, atribuindo estas ao herói das narrativas, indicando assim autoria comum. Finalmente,
teria (m) escrito em hebraico uma introdução ao conjunto até o ponto onde se narra que os caldeus
falavam “em aramaico” (2,4)”. A segunda opinião é a de que o livro foi escrito no sexto século, na
Babilônia, por um judeu exilado, cujo nome é Daniel e que conseguira êxito e exerce a profecia das
previsões para o futuro. Cf. BRADSHAW, Robert I. (2001: http://www.biblicalstudies.org.uk/daniel.pdf
retirado em 14/08/2001): apresenta os argumentos de alguns autores acerca da datação do livro de Daniel
no sexto século. Primeiro, há quem se guie pelo próprio texto, no qual Daniel faz varias referências aos
acontecimentos do sexto século na qualidade de testemunha (cf. Dn 7,2,; 8,1. 15. 27; 9,22; 10,2. 7 e 12,5)
e outros julgam que as informações históricas ali contidas são desconhecidas de um autor que está
vivendo no segundo século. Porém, estes argumentos podem valer também para a posição de quem
defende a hipótese do segundo século, pois o livro contém informações históricas equivocadas.
88
G. Hölscher propõe que os capítulos 1-6 (todos em aramaico) foram escritos no terceiro século, depois
este livro aramaico foi no mesmo século alargado para os capítulos 1 – 7 e, finalmente foi expandido para
os capítulos 1 – 12 no período da guerra dos Macabeus. Apud COLLINS, John Joseph (1984: 29).
89
O. H. Steck lança a hipótese de uma coleção original composta pelos capítulos 2 – 6, num segundo
estágio foi incluído o capítulo 7 e provavelmente em aramaico 1,1 – 2,4a e, num último estágio, a
inclusão dos capítulos 8 – 12 em hebraico e a tradução ou nova composição de 1,1 – 2,4a para o hebraico.
Apud COLLINS, John Joseph (1984: 29).
90
J. G. Gammie que demonstra o processo de formação do livro em três níveis: primeiro o texto aramaico
de 2,4b – 7,18 (exceto 7,7b-8.11a.12); segundo, a introdução 1,1 – 2,4a e os capítulos 10 e 12,1-4 e, o
último nível, os capítulos: 7,19-28; 8 – 11; 12,5-13; 7, 7b-8.11a.12. Apud. COLLINS, John Joseph (1984:
29)..
91
R. H. Charles apud. ROWLEY, Harold Henry. (1980: 85).
92
Cf. ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1261-62): a) a obra original foi
escrita em hebraico, e uma parte dela foi traduzida para o aramaico, língua corrente daquela época; b) o
original era aramaico, e alguns dos capítulos foram traduzidos para o hebraico; c) o autor do livro
empregou, por razões desconhecidas, ambas as línguas; d) existia uma coleção aramaica de relatos sobre
Daniel (caps. 1-6 ou 1-7); um autor posterior traduziu o cap. 1 e acrescentou em hebraico as visões dos
caps. 8-12; e) as narrações dos caps. 2-6 circulavam oralmente em aramaico; o autor do livro recopilou-as
e as reelaborou nesta mesma língua; acrescentou depois o sonho do cap.7, redigindo-o igualmente em
aramaico, e completou o conjunto com os caps. 8-12, escritos em hebraico.
93
RICHARD, Pablo. O povo de Deus contra o Império. Daniel 7 em seu contexto literário e histórico. In:
AAVV (1990: 26-27) vai dizer que o capítulo 7 é o coração do livro de Daniel, pois não só retoma as
42
três versões ou livros de Daniel: o livro aramaico (2,4b-7,28), o livro hebraico, que forma uma
certa moldura do texto aramaico (1,1-2,4a + 8-12) e o livro grego (3,24-90 e 13-14).
Segundo, o livro de Daniel, pode ser considerado como um mosaico94 produzido nos
limites entre profecia e apocalíptica, história e ficção, interpretação da história e relato moralista
de caráter sapiencial95, que vai aglutinar uma mistura de gêneros literários e, sobretudo, trazer
uma das marcas fundamentais dos textos apocalípticos: a descrição dos sonhos ou visões que
foram testemunhados por um vidente, o qual descreve o sonho (na primeira pessoa). Grande
parte desses textos é de autoria anônima, ou seja, não dá para saber com exatidão quem de fato
o escreveu. Por isso, são atribuídos a certos indivíduos, em sua maioria figuras lendárias, tais
como, Adão, Enoque, Abraão, Moisés, Esdras, Daniel e outros. A pseudonímia, é vista como um
recurso que visa promover a aceitação do texto (livro). Para John Joseph Collins o nome de
século a.E.C. 96
protagonista a partir de uma coleção de histórias sobre judeus bem sucedidos na corte
conflitos com o helenismo e, finalmente o livro grego produz uma leitura das imagens
imagens do capítulo 2, bem como, contribui para a construção dos capítulos 8 – 12. Com isso, os
capítulos 2, 7, 8, 9 e 10-12 formam os cinco apocalipses do livro de Daniel.
94
Ver FRYE, Northrop (2004: 244): “A Bíblia é, em primeiro lugar, um mosaico, para usar uma palavra
não menos precisa do que a feitio, neste caso. Ela é um mostruário de mandamentos, aforismas,
epigramas, provérbios, parábolas, enigmas, excertos, dísticos em paralelismo, fórmulas, contos do
populário, oráculos, epifanias, ‘gattungen’, sentenças, fragmentos ocasionalmente em verso, glosas
marginais, lendas, aparas de documentos históricos, leis, correspondência, sermões, hinos, visões
extáticas, rituais, fabulas, listas genealógicas, e por aí afora. Todos esses elementos, para valermo-nos
de uma expressão de Milton na Aeropagitica, são contíguos, não contínuos; de nada adianta
procurarmos em meio a eles uma consistência de continuidade, daquela que encontramos em verso ou
prosa controlados por uma única mente”.
95
Cf. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 411).
96
Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 101).
43
44
CAPÍTULO 1:
Sabemos que alguns dos textos hebraicos da Bíblia são, de fato, traduções e versões de
um texto aramaico original, o que sugere que a introdução do livro de Daniel (1,1 – 2,4a) escrita
em hebraico seja recriação de um texto aramaico.97 E estes escritos aramaicos originais que
foram conservados na Bíblia Hebraica aparecem em Esdras 4,8 – 6,18 e 7,12-26; Daniel 2,4b –
7,28; Jeremias 10,11 e Gênesis 31,47. Nos livros de Esdras e Daniel o fragmento aramaico é
introduzido com o termo tymir_ a' ] / ´árämît, indicando, assim, a sua delimitação (Esd 4,7: “E nos
Para Aage Bentzen, o fato de Daniel não aparecer no capítulo 3 demonstra que essas
num ciclo. Diante de algumas inconsistências e relações estabelecidas entre estes capítulos,
Bentzen aponta para a não correspondência da data de 1,1-2 com a de 2,1; bem como, o
anteriores.
“Além disso, algumas legendas são variantes do mesmo motivo, por ex., os caps.
2 e 4; 3 e 6 (ver ainda a história apócrifa de Bel e o Dragão). De outro lado, uma
série de fenômenos em 1-6 mostra que essas legendas foram unidas e
unificadas. O cap.5 se refere ao cap.4 (5.20 ver 4.6). No cap.2, onde Daniel é o
principal ator judeu, são, não obstante, mencionados seus amigos... Por
conseguinte, é preciso que encaremos 1-6 como um ciclo de legendas que
exortam os ouvintes a se manterem fiéis à religião judaica. Mas o sonho do
97
Cf. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 414): “Os aramaísmos do hebraico encontram-se sobretudo em Dn
1, o que leva a pensar que esse capítulo foi traduzido do aramaico, embora não haja rastro de um
material original aramaico”.
45
cap.7, sendo escrito em aramaico, parece estar ligado de alguma forma com 1-
6”.98
diversos que foram compilados, colecionados por um ou mais autores, numa clara tentativa de
descrever os problemas enfrentados pelo povo judeu durante o exílio na Babilônia. Com certeza,
históricas o que foi a realidade de muitos judeus deportados para a Babilônia por
Nabucodonosor; porém, ao relatarem os casos ao redor de Daniel e dos seus companheiros que
estavam a serviço da corte babilônica, acabaram, nas entrelinhas, dizendo algo da conjuntura
Os casos narrados nos capítulos 2-6 + a visão do capítulo 7 descrevem Daniel e seus
companheiros como judeus fiéis à tradição e às crenças mosaicas mesmo estando a serviço de
um rei “gentio”. Estamos diante de narrativas que estão entrelaçadas: o capítulo 3 traz três
judeus que se arriscam à morte mas não adoram a estátua (ídolo ou divinização do poder)
levantada pelo rei; no capítulo 6 é a vez de Daniel arriscar a vida e não abandonar a sua prática
de oração diária; nos capítulos 2 e 4 Daniel e o seu Deus são capazes de revelarem os mistérios
dos sonhos do rei; no capítulo 5, Daniel crítica duramente o rei que desagrada ao Deus do povo
fim do reinado; e, finalmente, o capítulo 7 que interpreta a visão dos animais e projeta uma
reviravolta social à luz do sonho do capítulo 2. Esta parece ser a temática que acabou sendo
98
Cf. BENTZEN, Aage (1968b: 221).
99
Talvez nesta perspectiva é que poderemos entender não só a proximidade temática do livro de Daniel
com a novela de Ester, como também a sua localização lado a lado dentro do Cânon hebraico.
46
1. A Organização do Livro
e 7 no tocante ao esquema dos quatro reinos, formando assim uma estrutura em forma de
atas de martírio e, o miolo do livro, se concentra nos capítulos 4 e 5 nos quais encontramos
Um esquema mais detalhado é elaborado por José Severino Croatto que parte de duas
100
Ver TORREBLANCA, Jorge. Jeremias: uma leitura estrutural. Revista de Interpretação Bíblica
Latino-Americana: Os livros proféticos. A voz dos profetas e suas releituras. no. 35/36, Petrópolis:
Editora Vozes, São Leopoldo: Editora Sinodal, pp.77-92. Na página 79 o autor apresenta o seguinte
aspecto acerca da análise estruturalista: a aproximação de um texto através de um método onde se perceba
a sua estrutura literária, visando as recorrências, as relações (de identidade e de oposição) e as imagens
que vão surgindo, requer descobrir no texto a sua simetria. Esta pode ser na forma de paralelismo (os
elementos aparecem na mesma ordem ou na mesma posição – A B C D – A’ B’ C’ D’), na forma de
enquadramento de certos elementos, palavras ou frases e, na forma concêntrica ou de quiasmo (duas
ocorrências aparecem na segunda oportunidade na ordem invertida – A B C D – C’ B’ A’).
101
Parece-me que o paralelismo entre os capítulos 2 e 7 , 3 e 6 e 4 e 5 já é um consenso nos mais variados
comentários sobre o livro de Daniel. Vou mencionar alguns a título de exemplo: COLLINS, John J.
(1989); DE WIT, Hans (1990); RICHARD, Pablo O povo de Deus contra o Império. Daniel 7 em seu
contexto literário e histórico. In: AAVV (1990: 22-40); AAVV. Apocalpsismo. Coletânea de Estudos.
(1983); SILVA, Rafael Rodrigues da (2001: 82-100); DELCOR, Mathias (1987); PIERCE, Ronald W.
(1989: 211–222) e WOODRUFF, Archibald Mulford (1990: 1-23). É interessante a proposta de estrutura
literária do livro de Daniel feita por Robert I. Bradshaw num estudo baseado no comentário de David W.
Gooding (The Literary Structure of the Book of Daniel and its Implications. Tyndale Bulletin, 32 (1981:
43-79), onde ele elenca alguns temas comuns e organiza o livro em duas seções paralelas: No capítulo 1
Daniel e seus companheiros são promovidos a altos cargos na Babilônia por recusar seguir os costumes
impostos pelo rei, obtendo com isso a simpatia dos funcionários da corte e no capítulo 6, Daniel é
restabelecido como alto funcionário por recusar a cessar de praticar a sua religião diante das intrigas feitas
contra ele pelos funcionários da corte. Nos capítulos 2-3 e 7-8 nos deparamos com uma avaliação da
história e da ação dos impérios. Os capítulos 4 e 9 tematizam a disciplina de Deus e a arrogância humana.
Finalmente, os capítulos 5 e 10-12 estão entrelaçados pelo tema do tempo do fim do império e da
desolação. In: http://www.biblicalstudies.org.uk/daniel.pdf (retirado na Internet em 14/08/2001).
47
detalhe: enquanto no capítulo 7 há uma visão interpretada por um anjo, há no capítulo 2 o sonho
interpretado por Daniel, e, o capítulo 7, funciona como ponte entre as duas partes do livro de
Daniel (1-6 + 7-12); favorece, neste sentido, uma intercomunicação no nível de sua significação
Dn 2 Dn 3 Dn 4 Dn 5 Dn 6 Dn 7
À luz deste esquema vejamos a coerência e a unidade deste livro em sua forma literária
e no seu conteúdo.
O relato de Daniel 2,1-49 coloca em evidência uma crítica aos impérios e ao mesmo
tempo procura apresentar a conjuntura político-econômica e social em Judá. Mesmo que alguns
autores apostem na hipótese de que os capítulos 2-7 de Daniel sejam fruto da leitura e análise
que brotou dos judeus da diáspora na época do exílio na Babilônia, podemos inferir o quanto
102
Cf. CROATTO, José Severino (1990/3: 143).
48
este texto serviu para uma leitura dos sérios conflitos com os generais selêucidas. Conflitos
estes que culminaram na guerra dos Macabeus entre 167 a 142 a.E.C. O texto, simbolicamente,
a 538 a.E.C.). A narrativa do sonho do rei e a interpretação de Daniel estão emolduradas pelo
(vv.46-49). Duas figuras são centrais na construção do texto: o rei e Daniel. De um lado, o rei
que tem um sonho que lhe tira o sono, e que o deixa com o espírito perturbado e desejoso de
conhecer o significado deste sonho. Daniel e seus amigos serão engrandecidos quando o
inicialmente, dizer que eles formam uma unidade narrativa. Percebemos num rápido olhar que
estamos diante de um texto compilado em dois grandes blocos que realçam a intervenção de
Daniel seja junto a Ariok, o chefe designado pelo rei para matar os sábios; seja junto ao próprio
rei, descrevendo o sonho que este teve e a sua interpretação. Vale lembrar que a narrativa faz
um jogo entre guardar segredo e revelar, pois, o rei guardou segredo acerca do sonho e
esperava que algum sábio ou adivinho revelasse não apenas os sentidos do sonho mas que
“A visão de Daniel 2 está emoldurada por uma narrativa. Segundo esta narrativa,
o rei neobabilônico Nabucodonosor teve um sonho que muito o inquietou e que
nenhum de seus adivinhos conseguiu interpretar, uma vez que já nem
conseguiam cumprir a sua exigência de que lhe narrassem o sonho, sem que ele
lho contasse. Somente Daniel, que fazia parte dos judeus deportados por
Nabucodonosor para a Babilônia, é que conseguiu, em virtude da sabedoria
divina a ele concedida, anunciar-lhe o sonho e sua interpretação”. 103
103
Cf. NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV
(1983: 81).
49
Introdução (1-2)
Diálogo entre o rei e os caldeus (2-12)
Decreto do rei e intervenção de Daniel (13-16)
Revelação para Daniel (17-24)
Intervenção de Daniel junto ao rei (25-28a)
Daniel descreve o sonho do rei (28b-36a)
Interpreta o sonho (36b-45)
Conclusão (46-49)
onde a parte inicial está relacionada com a parte final e, conseqüentemente, as outras partes vão
sento costuradas de maneira circular. De um lado, a abertura do texto (vv.1-2) apresenta o tema
do sonho e a perturbação do rei e, no outro, a conclusão do relato (vv.46-49) que aponta para as
benesses que o rei dá a Daniel por este ter revelado e interpretado o sonho. A segunda costura
gira em torno dos diálogos de Nabucodonosor, sendo o primeiro diálogo entre este e os seus
sábios (vv.3-12) e, o segundo, é o da grande fala de Daniel na qual descreve-se o sonho e a sua
interpretação (vv.28b-45). Esta palavra de Daniel tem dois momentos: a descrição do sonho
diante do decreto de extermínio promulgado pelo rei (vv.13-16 e 25-28a). A parte central (vv.17-
24) está fora do âmbito do palácio, e se desenvolve na casa de Daniel, onde recebe a revelação
104
Notemos que no v.28b a palavra de Daniel é dirigida ao rei Nabucodonosor, pois o diálogo entre os
dois tem o seu início no v.26. E toda a descrição do sonho e da sua interpretação é dirigida ao rei, como
podemos notar nos vv.29,31 e 37.
105
A combinação de reinos e metais na imagem da estátua implica num gradual declínio da ordem
política do Oriente Próximo. A destruição da estátua implica na subordinação de todos estes reinos ao
reino de Deus. As implicações escatológicas do sonho numa leitura presente no material tradicional
adaptado pelo autor de Daniel 2. No contexto de Daniel 2 a primeira ênfase recai na habilidade de Daniel
para dizer e interpretar o sonho do rei, enquanto os homens sábios (caldeus) falham. O rei reage com
admiração para este feito, mas não presta qualquer atenção para o conteúdo da interpretação, qual a força
que pode se esperar de sua consternação. O foco da história está muito mais na revelação do mistério do
que mostrar a iminência da intervenção divina. COLLINS, John Joseph (1997b: 135-136).
50
Esta análise das costuras do texto mostra que o centro (miolo) está nos versículos 20-
A introdução da narrativa do sonho da estátua tem por objetivo apresentar três aspectos,
que de alguma maneira vão permear o conjunto do texto: uma informação cronológica, uma nota
sobre o sonho e a perturbação do rei e a convocação feita por este a todos os sábios para que
textos106. Isto não significa que os capítulos e a conjuntura do livro de Daniel estejam
106
Cada capítulo vai de certa forma apresentar uma espécie de informação cronológica: Dn 1,1: “No ano
terceiro do reinado de Joaquim, rei de Judá, veio Nabucodonosor, rei de Babilonia, a Jerusalém, e a
sitiou”; Dn 2,1: “E no segundo ano do reinado de Nabucodonosor...”; Dn 4,1: “Nabucodonosor rei...”; Dn
51
Daniel 1-7 uma certa confusão nos dados históricos. Por exemplo, no final do capítulo 5 é
informações que recebemos na história da transição dos babilônicos aos persas108, pois
Belsazar era filho de Nabonidus e não era um descendente direto de Nabucodonosor como o
livro de Daniel quer informar. Da mesma maneira, quem acaba vencendo a Babilônia, que estava
sob o governo de Nabonidus, foi Gobryas, general de Ciro. É provável que a referência a Dario,
o medo, seja uma confusão com Dario I, que reinou na Pérsia entre os anos 522-486 a.E.C.109.
texto sobre os sonhos. Aliás, a palavra sonho (helem / ~lx e termos derivados) aparece 15
vezes em todo o texto110. A informação sobre o sonho do rei não está separada da menção à
perturbação e perda do sono: “e perturbado111 seu espírito e seu sono112 se foi113 sobre ele”.
5,1: “O rei Belsazar deu um grande banquete...”; Dn 5,30-31: “Naquela mesma noite foi morto Belsazar,
rei dos caldeus. E Dario, o medo, ocupou o reino, na idade de sessenta e dois anos”; Dn 6,1: “E pareceu
bem a Dario constituir sobre o reino a cento e vinte presidentes, que estivessem sobre todo o reino” e Dn
7,1: “No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia...”
107
Cf. BENTZEN, Aage (1968b: 222), as inúmeras inexatidões históricas corroboram para uma rejeição
da data tradicional das narrativas.
108
Este é um dos pontos do debate entre Porfírio e Jerônimo acerca da autenticidade de Daniel. O debate
muito se centrou na questão da historicidade de Dario, o medo e na possibilidade de uma profecia de
previsão. De certa maneira, Nabucodonosor e Ciro são figuras inquestionáveis, porém os fatos e
acontecimentos em que estão envolvidos no livro de Daniel não são efetivos. Podemos dizer que
discussões acerca da autenticidade de Daniel de uma maneira ou de outra estarão ao redor dos problemas
cronológicos que encontramos no livro. Ver COLLINS, John Joseph (1984: 28-29).
109
Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 68-69).
110
2,1: ~l;x: sonhou / tAm+l{x: sonhos; 2,2: wyt'_mlo x{ : seus sonhos; 2,3: yTiml. x'_ ' ~Alx: sonhei um sonho / ~Al)xh] -; ta: o
sonho; 2,4.5.6.7.9.26.36:. am'lx. :, o sonho e 2,28: %m'lx. :, teu sonho.
111
~[,Pt' T. wi :: conjunção aditiva ou adversativa (W: e, mas) + verbo hithpael 3ª pessoa imperfeita feminino
singular (~[P). No qal tem o sentido de empurrar, golpear e no hithpael a conotação de uma inquietude
interna. Tomando as condições descritas no final do versículo em que se encontra o rei, devemos traduzir
por: estar perturbado; sentir-se perturbado. No v.3 tem o sentido de estar perturbado e aqui no v.1:
sentir-se perturbado. Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter. (1985: 771) e HOLLADAY,
William L. (1988: 295).
112
Atn"vW. : Conjunção aditiva ou adversativa (W:e, mas) + substantivo comum feminino singular construto com
sufixo em terceira pessoa masculina singular ( hn"v,e an"v,e tn"v:. dormida, sono, sono profundo).
113
ht'yh> n. :I verbo niphal na 3ª pessoa feminino singular: hyh: ser, acontecer, ocorrer. Este verbo aqui é
incomum, pois o sentido é: ele perdeu o sono. Na tentativa de buscar um melhor entendimento Walter
Baumgartner (autor das notas do Livro de Daniel na BHS) propõe à luz de Dn 8,27 e 6,19 que este verbo
seja substituído pelo verbo ddn: fugir, escapar, mover, agitar, afugentar. Aqui temos o sentido de alguém
que se movimenta e se agita de um lado a outro por falta de sono. Assim, ganha força a interpretação de
que Nabucodonosor perdeu o sono por causa do sonho e por este motivo não conseguia dormir novamente.
52
O último aspecto está relacionado à convocação feita pelo rei a todos os magos,
astrólogos, encantadores e caldeus para que pudessem mostrar o sonho para o rei e, conclui
com a apresentação destes diante do rei (v.2). É interessante perceber nesta introdução, a
magos (~jorx> ); 114, os astrólogos (@v;a) 115, os encantadores (~ypiVk. ;ml. ) 116 e os caldeus(~yDIfK. ) 117.
Estes versículos estão organizados ao redor do verbo responder (hn[) que aparece nos
versículos 5,7,8 e 10. Neste sentido, podemos dizer que se trata de um diálogo que aconteceu
entre o rei e os caldeus que foram convocados para revelar o sonho e sua interpretação.
Justamente é esta a leitura e/ou interpretação que encontramos na tradução da Septuaginta: evge,neto avpV
auvtou/ e na Vulgata: fugit ab illo. O contexto sugere: “o seu sono terminou” ou “o seu sono se foi”. Ver
KEIL, C. F. e DELIZSCH, F. (1975: 86-87).
114
~yMijru x> l; :({; artigo (l: os) + ~jorx> ; masculino plural absoluto: magos, sacerdotes adivinhos, astrólogos. Indica
a prática de magia dos sacerdotes, os magos sagrados do Egito e os homens sábios da Babilônia. Ver
KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 333) e OSBURN JR., William (1982: 94).
115
~ypiVa' l; w(' :> w conjunção; l artigo; @V'a; substantivo plural masculino comum absoluto emprestado do akádico
(isippu) e do aramaico (@va). Designa os encantadores ou aqueles que invocam os espíritos.
116
~ypiVk. m; l. w(; > – @vK verbo piel particípio masculino plural absoluto: no piel quer designar aquele que pratica
a feitiçaria. AAVV. (2000: 106). Para Robert L. Alden os feiticeiros “são agrupados junto com os
Hákämîm, “sábios”, e os Hartummîm, “magos”... em Daniel 2,2. À semelhança do faraó, o rei
Nabucodonosor convocou seus “feiticeiros” juntamente com seus “magos” (Hartummîm), “encantadores”
(´ashshäpîm, q.v.) e “caldeus” (kasdîm q.v”. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason e WALTKE,
Bruce K. (1998:1051-52).
117
~yDIfK. l; w; :> conjunção (w) + preposição (l) + substantivo próprio absoluto (~yDIfK. ); . Em grande parte indica
os habitantes da Babilônia. “Caldeus” é um termo antigo para se referir aos babilônicos e à região da baixa
Mesopotâmia. Porém, kasdîm significa também aqueles que praticam a astrologia (astrólogos). Para
Koehler e Baumgartner em Dn 2,2.4 kasdîm representa os astrólogos e os sábios. KOEHLER, Ludwig e
BAUMGARTNER, Walter (1985: 458). Ver também HOLLADAY, William L. (1988:165-166). Nos
Manuscritos de Qumran encontramos a seguinte formulação: ~yyDIfK. / kasdîîm. No sentido de demonstrar
uma classe social bem qualificada que a Septuaginta traduz por: Caldai,wn. O texto estabelecido a B.J.
registra que: “O termo ‘caldeu’ aqui designa todo aquele que pratica a arte da adivinhação, supostamente
originária da Caldéia...”, p.1681. Ver 2Rs 24,2; Is 43,14; Ez 23,14 e 2Cr 36,17. Em Ez 11,24 encontramos
a forma m'yDI’fk. ; – indicando povo e território (caldeus e Caldéia).
53
O objetivo do rei é simplesmente saber acerca do seu sonho; porém, apresenta as suas
medidas (reação) caso seja corretamente revelado e interpretado o sonho. O rei promete e
ameaça. O versículo 3 abre as conversações com a enunciação do problema que aflige o rei:
saber o sonho. Podemos notar que o narrador quer que o leitor esteja atento para a reação do
rei que ordena a execução de todos os sábios de Babilônia (v.12). As palavras do versículo 5
estão carregadas de ameaças aos sábios da Babilônia: se não conseguirem dizer o sonho e a
sua interpretação: suas casas serão assoladas e eles mesmos serão destruídos118. No entanto,
dizer o sonho e sua interpretação. Este versículo tem na abertura e fechamento a mesma
118
O tom das ameaças deixa transparecer uma descrição dos feitos de Nabucodonosor durante da invasão a
Judá/Jerusalém em 597/587 a.E.C. Aliás a descrição do exílio da Babilônia é marcada por destruição,
devastação e deportação. O cativeiro iniciado por Nabucodonosor é o ponto inicial das histórias populares
no livro de Daniel.
54
Do outro lado, encontramos nas palavras dos caldeus todo um enlace ao redor do não
diálogo para que o rei revele o sonho e, com isso, eles possam interpretá-lo. As duas primeiras
falas/respostas dos sábios (vv.4 e 7) têm a mesma intenção: que o rei diga o sonho para eles
apresentarem a interpretação. Porém é na fala dos versículos 10-11 que o narrador praticamente
O fato de Nabucodonosor descobrir as intenções dos seus sábios tem um tom irônico e
sarcástico na narrativa, pois demonstra a impotência daqueles que faziam parte da corte123. A
enigmas e segredos. Primeiramente dizem que não existe homem que seja capaz de mostrar o
que o rei pede; bem como não existe rei, príncipe ou chefe que tenha feito pedido semelhante.
Depois confirmam a sua total incapacidade afirmando que somente os deuses são capazes de
119
!n"Tm. ä; n – plural de hn"Tm. ;\ – presente, donativo, doação (conferir em Dn 2,48 e 5,17).
120
hB'zb> ni W> – Conjunção (w) conjunção + substantivo comum feminino singular absoluto (hB'zb> ni )> : recompensa,
retribuição e presentes (ofertas). Sempre acompanhado por hnTm (conforme Dn 2,6 e 5,17). Ver
KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985:1097).
121
rq"y.> – Honra, estima, consideração. Ludwig Koehler e Walter Baumgartner propõem dignidade, nobreza
tomando como referência que este substantivo aparece em Dn 2,37; 4,27.33; 5,18.20 e 7,14.
122
!WlB.qT; . – verbo (lbq) pael imperfeito 2a. pessoa masculina plural: recebereis.
123
Cf. STORNIOLO, Ivo (1999: 25).
124
Para Airton José da Silva nos v.1-13 são encontradas algumas oposições: “o poder absoluto e
despótico do rei se contrapõe ao servilismo e à impotência dos sábios babilônicos, que são seus servos.
Contrapõe-se igualmente o poder dos deuses, que tudo podem e sabem, à limitação dos homens, que não
podem saber os pensamentos do rei. Ainda: o despotismo real aparece fortemente no poder do rei de fazer
alguém viver em grande honra ou morrer em grande desgraça”. Retirado do site:
http://www.airtonjo.com/apocaliptica02.htm (no dia 24.04.2003).
55
Tudo indica que o v.13 funciona como “dobradiça”, ou seja, a primeira parte conclui este
bloco sobre o diálogo do rei com os sábios e culmina com a promulgação do decreto do rei: “E
saiu a sentença para os sábios serem mortos” (13a). Já a segunda parte do versículo introduz o
leitor ao bloco seguinte que dará inicio à intervenção de Daniel. Porém é preciso saber que a
intervenção de Daniel em favor dos sábios tem a ver com a sua situação de também perseguido
e ameaçado pelo decreto de morte: “e buscaram a Daniel e seus companheiros para serem
mortos” (13b).
Daniel...” (v.14) e laYEnDI ") !yIda: / / “Então Daniel...” (v.17). O narrador quer deixar bem claro
como Daniel interveio para transformar a situação. Nos vv.14-16 Daniel busca informações com
o chefe da guarda do rei encarregado de cumprir o decreto; enquanto os vv. 17-24 põem em
evidência as estratégias de Daniel. Neste bloco causa estranheza o v.16 que dá a entender que
Daniel está diante do rei e pede tempo para interpretar o sonho, porém somente nos vv. 25-28a
é que Daniel é introduzido na presença do rei para dizer o sonho e apresentar o seu significado.
Neste sentido, muitos consideram os vv.16-23 um adendo ao texto125. Para Louis F. Hartman os
vv.14-23 são uma inserção posterior neste capítulo, pois o v.24 encaixaria bem depois do v.13;
bem como, os vv.25-26 não concordam com o v.16, que pressupõe os vv.18-20. A menção aos
companheiros de Daniel, que não aparecem em nenhum outro lugar deste capítulo é outro
125
Ver COLLINS, John Joseph (1984: 49).
126
HARTMAN, Louis F. (1971: 299).
56
Daniel foi para a sua casa e noutro encontra-se com Ariok. No entanto, o v. 24 está em
É interessante observar que a revelação do segredo/enigma (hz"rß ' - räzâ)127 a Daniel vai
revelação, pois a intenção é fazer com que o leitor/ouvinte acompanhe atentamente a descrição
do sonho (28-36) e a interpretação (36-45) apresentada por Daniel. A grande marca destes
versículos está na louvação, liturgia, doxologia e teologia apresentada por Daniel. A reza
confiante e agradecida nos versículos 20-23 é uma apresentação das características do Deus de
Esta reza e louvação tem a estrutura bem simples: no v.20 o grande enunciado da
oração e hino de louvor: a evocação do nome de Deus bendito, que é introduzido pelo “Falou
Daniel e disse”. Nos vv.20c – 22 encontramos a descrição das ações desse Deus (motivação
para o louvor e para o ato de confiança) e no v.23, a conclusão da oração com palavras de
agradecimento.
127
Nos versículos 17-24 não aparece a palavra sonho e sim a palavra zr': segredo, enigma. A Daniel foi
revelado o segredo. No v.24 apenas menciona: “faze-me entrar diante do rei e a interpretação para o rei
mostrarei”. Aqui a interpretação está relacionada ao segredo e não ao sonho como aparece nos versículos
anteriores.
57
O que marca o encontro de Daniel com Ariok (v.24) é o pedido para que o chefe da
guarda não coloque em prática a ordem do rei. A palavra de Daniel é incisiva e propositiva: “não
128
%r;bm' . ah'la' -/ yD Hmev. awEhl/ , - Esta doxologia nos remete para Jó 1,21: %r"b) om. hw"hy> ~veyî hiy> (aconteça nome de
Iahweh bendito).
129
at'mk. x. ' - Uso semelhante ao hebraico (Hokma / Hokmot), podendo significar conhecimento técnico e
capacidade profissional (nas construções do templo e do palácio, nas guerras e nas atividades políticas da
corte). Porém, na maioria das vezes, relacionada com os sábios e anciãos, significa conhecimento
adquirido e experiência. Para George Fohrer a Hokma aparece, por um lado, como mediadora de
revelação, já que intervem com a sua proclamação como o profeta e, igual a este, atribui a si mesma a
máxima autoridade e, por outro lado, como revelação da vontade divina com respeito ao homem, já que
oferece ao homem a vida e indica que sua aceitação equivale à aceitação da vontade divina. Apud in:
JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus (eds.). (1985a: 788).
130
Aqui o pronome possessivo independente é formado pelo pronome relativo (yDI)î seguido pela preposição
(l): ayhi-( Hle( yDIî at'rW> bg>W at'mk. x. ' / a sabedoria e o poder são dele. ROSENTHAL, Franz (1983: 20).
131
‘aY"nD: [' i anEvh. m; . aWhw>û - Dois substantivos são utilizados para descrever o tempo: !D:[* :I tempo (ano, momento) e
!m:z* :> tempo determinado, prazo (muito usado para indicar tempo sagrado, festas, calendário, etc.). Neste
sentido João Ferreira de Almeida traduz assim: “Ele muda os tempos e as horas”; e a Bíblia de Jerusalém
traduz da seguinte maneira: “É ele quem muda tempos e estações”. A Septuaginta traduz por kairou.j kai.
cro,nouj. Veja o comentário de KEIL, C.F. e DELITZSCH, F. (1975: 99).
132
ykilm. ; hDe[h. m; . aY"nm: z. wI > - O verbo hd[ no hafel significa a ação de tirar fora, remover e destronar.
133
!ykil_ m. ; ~yqEhm' W. - O verbo ~wq no hafel tem o significado de erguer para cima, estabelecer, ser colocado de
pé. Aqui tem a conotação de suscitar um reino ou de estabelecer/entronizar reis. Ver AAVV. (2000: 299).
134
hn"y) bi y[edy> l" . ['Dn> m> W; - No âmbito da sabedoria em Israel a conjugação de [dy (conhecer) e hnyb (discernir) está
relacionada com a vivência e experiência de vida que é transmitida na casa/clã.
135
at'r_ T' s. m; W. at'qy' Mi[; aleG" aWh± - O verbo aleG" muitas vezes é traduzido pelo verbo avnakalu,ptw: desvelar,
descobrir.
136
arev( . HMe[i ar'yhinW> - Luz, brilho, iluminação. Muitas vezes está relacionado com a sabedoria ou iluminação
da mente. A Septuaginta interpreta dizendo que com a luz ele dissolve a escuridão (avnakalu,ptwn ta.
baqe,a kai. skoteina. kai. ginw,skwn ta. evn tw/| sko,tei kai. ta. evn tw/| fwti, kai. parV auvtw/| kata,lusij).
58
lado, reforça a questão levantada pelo rei acerca da capacidade dos sábios em dizer o sonho ou
até mesmo de sonhar o que ele sonhou. E, de outro lado, reforça a confiança e teologia de
Daniel de que só existe o Deus dos céus que pode revelar o segredo e, conseqüentemente, os
acontecimentos.
Os versículos 28b-30 introduzem o relato (aWh) hn"D> %b"Kv. m. -i l[;( %v"are ywEzx> w, >
e visão de tua cabeça e sobre tua cama é esta...) reforçando que as visões e os sonhos são uma
maneira das divindades revelarem os acontecimentos futuros. “Tu, ó rei, teus pensamentos
sobre tua cama subiram137 o que acontecerá depois disto. Aquele que revela o segredo te faz
saber o que acontecerá. E eu não na sabedoria que existe em mim de todos os viventes, o
segredo este revelou para mim, mas para que a interpretação para o rei faça saber e conheças
E o versículo 36a conclui o relato através da fórmula: am'lx. , hn"D,> este o sonho. Os
versículos 31-35 se encarregam de descrever o sonho, utilizando uma fórmula introdutória
(t'yw> h
: ] hzEx' aK'l.m; hT.n. a>. ,; Tu, ó rei, estavas vendo...). Os vv.31-33 apresentam uma
descrição da estátua com as suas várias partes139; enquanto que os vv.34-35 retomam a visão,
137
Ou surgiram.
138
ynEAy[.rw; > : !Ay[.r; substantivo plural construto masculino: pensamentos. A Septuaginta traduz: u`pe,labej th/|
kardi,a| / o que entende / imagina teu coração.
139
“La estatua es una sola, los cinco elementps (oro, plata, bronce, hierro y barro) presentes en cinco
partes (cabeza, pecho y brazos, vientre y muslos, piernas, pies) forman una sola imagen, son parte de lo
mismo, constituyen un solo cuerpo. Del aspecto de la imagen no se nos dice mucho, solamente que hay
cierta dualidad, pues es terriblemente impactante y, al mismo tiempo, impactantemente terrible. Desde
arriba para abajo desde la cabeza a los pies, (cabeza de oro, pies de barro) la estatua se va
deteriorando, debilitando y va perdiendo esplendor. Lo que debiera haber sido el elemento más firme, los
59
elemento de mudança que é a “pedra sem mãos” que destruirá a imagem (estátua) e esta se
pies y las piernas, resulta ser una extraña mezcla de un material que jamás podrá sostener el resto del
cuerpo”. DE WIT, Hans (1990: 118).
140
Imagem / estátua. Como no hebraico ~lec. Significa imagem, figura, reprodução, estátua, escultura (Nm
33,52; 1Sm 6,5.11; 2Rs 11,18; Ez 7,20; 16,17; 23,14; Am 5,26). ALONSO SCHÖKEL, Luis (1997:
561). Acir Raymann acrescenta “modelo” e “desenho”. In: AAVV. (2000: 205). A gramática de
Hollemberg-Budde simplesmente considera imagem, ídolo como significado de ~lec.. Ver:
HOLLEMBERG, W., HOLLEMBERG, J., BUDDE, K. e BAUMGARTNER, W. (1996: 403). Uma
visão geral do termo ~lec. na Bíblia Hebraica cf. RIBEIRO, Osvaldo Luiz (2003: 103-128).
141
br; – adjetivo masculino singular absoluto: grande. Aqui tem o sentido figurado: grande em poder. Tem
a conotação de engrandecimento, exaltação. Muito usado para designar número de destacamento militar.
142
wyzI – brilho / esplendor / cor / aparência.
143
lyxiD( > – verbo peal passivo: temer / amedrontar. Aqui tem a conotação de uma imagem que causa medo
/ amedronta / terrível / medonha. A Septuaginta traduz pelo adjetivo fobera, : terrível / assustador.
144
Ou abdômen.
145
Ou bronze.
146
O verbo rzG (cortar) no hithpeel tem o sentido de algo que é cortado em duas partes. No hebraico este
verbo também significa ser separado e daí a relação com o vocábulo decidir (cortar fora).
147
Algumas versões propõem que seja acrescentada depois de ‘!b,a, (pedra) o verbo arwjm : atingir, tocar,
mirar. Assim dando a conotação de que a pedra que foi lançada e atingiu a imagem tinha uma mira.
148
Uma variante gramatical propõe que o verbo qqD (conjugado no peal perfeito em 3a.pessoa masculina
plural: WqD' – esmigalharam) pode ser lido com um sujeito plural indefinido: wQD: - eles esmigalharam. Pode
ser traduzido também como: “eles foram esmigalhados”.
60
v.45 conclui: “e seguro149 o sonho e digna de confiança sua interpretação”. Podemos dizer que
os vv.28b a 45 funcionam como uma unidade. Estes versos apresentam a longa fala de Daniel
diante do rei, que consiste na descrição do sonho e a sua conseqüente interpretação. Aqui, o
relato já demonstra a ação de Daniel (no diálogo com o rei) que está em oposição ao diálogo do
rei com os caldeus. Daniel diz e interpreta o sonho enquanto os sábios não conseguem revelá-lo
e nem decifrá-lo. As palavras de Daniel podem ser divididas em dois momentos: descreve e
interpreta os significados das partes (metais) que compõem a estátua parte por parte (vv.37-43)
149
byCiy: – adjetivo masculino singular absoluto: seguro, verdadeiro, certo, confiável (de confiança), bem
estabelecido. A Septuaginta traduz por avkribe.j (avkribh,j, e,j): exato, com precisão.
150
NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV (1983:
81-2).
61
A interpretação do sonho dada por Daniel na qual descreve a sucessão de quatro reinos
dominadores165 é algo claro no texto e não suscitou muita discussão entre as várias leituras e
151
!sex/ – força, poder do rei. Palavra associada ao verbo tomar posse, daí a conotação de riqueza. Walter
Baumgartner apresenta os seguintes significados para esta palavra: Força, lugar seguro, armazém,
tesouros, fortificado, poder, riqueza. In: KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 1076-
77).
152
Fortalecer-se. Como termo derivado: poder, ser forte.
153
rqy – honra – tem a mesma conotação no hebraico: “ser precioso”.
154
A nota da BHS aponta que o adjetivo a[r;a] pode ser usado adverbialmente ([r;a)]
155
a repetição do adjetivo yrIxa\ ' (outro) tem o objetivo de ajudar o ouvinte/leitor a distinguir e separar as
partes da imagem e/ou reinos.
156
@yQiT; – Substantivo comum feminino singular absoluto: força. Relacionado com ações de poder: fazer
cumprir ordens, decretos. Também tem o sentido de endurecer-se. Este substantivo aparece igualmente
no versículo 42.
157
qqD verbo hafel – triturar, esmagar, pulverizar, fazer em pedaços.
158
Lvx – verbo peal: esmagar, esmoer, esmigalhar. Tem também o sentido de ser reduzido, ser
comprimido, subjugado, oprimido e, ainda, ser rachado ou danificado.
159
[[;r. – esmagar, quebrar em pedaços, despedaçar.
160
glP – verbo peal passivo: ser dividido. Em Dn 7,25 aparece em estado construto: metade.
161
!yji Substantivo comum masculino singular absoluto: barro (molhado), lodo, argila. Quando aparece
junto com @s;x] quer indicar artefato de barro ou cerâmica.
162
[B;ca. :, dedos da mão ou do pé.
163
[r;z> – semente, descendência. Como no hebraico é um substantivo que é utilizado em quatro categorias:
1) época da semeadura; 2) a semente que é semeada; 3) semente no sentido de sêmen e 4) a semente como
descendência (por exemplo o texto clássico da promessa de Deus a Abraão). Veja HARRIS, R. Laird,
ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 409-411).
164
br[ – verbo hithpaal (misturar) particípio masculino singular absoluto: misturado.
165
Na alegoria do livro de Daniel, os impérios são os seguintes: 1) cabeça de ouro: império
neobabilônico; 2) peito e braços de prata: reino medo; 3) ventre e coxas de bronze: império persa e 4)
pernas de ferro e pés de ferro/argila: império grego de Alexandre (ferro), depois dividido entre Ptolomeus
62
comentários do texto de Daniel, vale observar que “o esquema de quatro sucessivos impérios,
ou ‘reinos’, mundiais era bem conhecido no antigo Oriente Próximo, mas nas mãos do
macabeu – , ele adquiriu novo significado”166. No entanto, para Martin Noth a visão de Dn 2 tem
uma forte relação de dependência com tradições preexistentes que relacionam metais com eras
sucessivos é uma concepção original do livro de Daniel”.167 Certamente, o autor das narrativas
de sonhos e visões do livro de Daniel utilizou várias fontes e materiais, mais adiante, vamos nos
no início: perturbado, desejoso de saber sobre o sonho e seu significado e que ordena a
matança dos sábios. Agora, rende homenagem a Daniel (v.46), louva o Deus de Daniel (v.47) e
o promove e aos seus amigos a cargos de extrema confiança. A breve doxologia no versículo 47
reforça a teologia de Daniel e amarra o grande tema da narrativa que é a revelação de segredos
e mistérios. O Deus de Daniel é para o rei, Deus dos Deuses e Senhor dos reis. É Aquele que é
capaz de revelar segredos. Dizer que Daniel estava às portas do rei é reforçar a imagem de
O capítulo 7 de Daniel nos apresenta sob a forma de sonho e visão as ações dos
impérios na história.168 São animais ferozes e estranhos que dilaceram, esmagam e engolem o
povo. Eles não existem fisicamente (leão com asas de águia, urso com costelas na boca,
leopardo com quatro asas e quatro cabeças e um animal terrível com dentes de ferro e dez
chifres), mas estão inseridos no contexto da vida do povo. Pois, além de ter amplos poderes,
devoram e fazem em pedaços as suas presas. Daí, podemos dizer que na experiência de
opressão que o povo estava vivendo nos anos 200 a.E.C em diante, esses animais passam a
representar situações concretas da dominação que o povo estava sofrendo. O texto nos convida
a dar maior atenção ao quarto animal, que é terrível, pois além de triturar tem um chifrinho
poderoso dotado de olhos e boca. Eis uma das imagens que o texto utiliza para descrever as
Um aspecto importante que descobrimos no texto é o jogo com três palavras que se
aproximam pela sonoridade: hzx (( Házâ): visão; hyx (Hayâ): vida e aw"yxe (Hêwä´): animais.
Evidentemente que estas palavras não têm nenhuma correlação em seus significados, mas na
sonoridade e vocalização acabam prendendo a atenção do ouvinte. São palavras que seguram o
texto e aguçam a percepção do ouvinte e leitor (usando uma imagem popular: é como o prego
relativamente simples. Ele compreende duas partes bem distintas, mas complementares. Numa,
168
Ver RICHARD, Pablo (1990: 22-40).
169
hzx (( Házâ): significa visão, ver. Associada à ~l,xe (sonho) indica a atividade do visionário. Esta palavra
está presente nos seguintes versículos: 7, 1. 2.4.6.7.9.11 (2x).13 e 21. Muitas vezes está conjugada com o
verbo aw"h; ou hw"h; (acontecer, ser, estar), que aparece em: 7,2.4.6.7.8.9.11 (2x).13 e 21. Termo correlato
que aparece neste capítulo é Wzx/ (visão, aparição, aparência), que podemos conferir em 7,1.2.7.13.15.
Somente em 7,20 tem o significado de aparência (Hw:zß x> ), .
64
temos a descrição da visão (vv.2b-14) e na outra, a sua interpretação (vv.15-27). Estas duas
partes são amarradas por uma introdução (vv.1-2a) e por uma conclusão (v.28). Como indicam
os vv.1 e 28, este capítulo tem a forma literária de uma visão que é colocada por escrito.
A – INTRODUÇÃO – vv.1-2a
1. Cronologia: No primeiro ano de Belsazar, rei de Babilônia (v.1a)
2. Apresentação do conteúdo: Teve Daniel, na sua cama um sonho e visões (v.1b)
3. A escrita do sonho (v.1c)
4. Fórmula para introduzir o relato do sonho e visão: Falou Daniel e disse: (v.2a)
B – VISÕES – vv.2b-14
A VISÃO DOS QUATRO ANIMAIS – vv.2b-7
a. Expressão introdutória das visões: Eu estava olhando... e quatro animais subiam
do mar (vv.2b-3)
b. O primeiro era como leão (v.4)
c. Continuei olhando e eis que o segundo animal (v.5)
d. Continuei olhando e eis outro (v.6)
e. Continuava olhando... e eis aqui o quarto animal (v.7)
A VISÃO DE UM CHIFRE PEQUENO – v.8
Estando eu considerando os chifres... subiu outro chifre pequeno
A VISÃO DO TRONO – vv.9-10
Eu continuei olhando até que foram postos uns tronos... e um ancião de dias se
assentou...
A VISÃO DO JULGAMENTO – vv. 11-12
1. Então estive olhando... as ações do pequeno chifre (v.11a)
2. Estive olhando até que animal foi morto... Destruição dos animais (vv.11b-
12)
A VISÃO DO FILHO DO HOMEM – vv.13-14
1. Eu estava olhando nas minhas visões da noite e eis... um como Filho do
Homem (v.13)
2. Descrição do seu domínio e reino (v.14)
Gerard van Groningen apresenta uma proposta de estrutura do capítulo 7 de Daniel (ver
o quadro abaixo), na qual a primeira unidade (vv.2-14) está integrada de maneira seqüencial,
A segunda seção se refere a estas quatro partes, mas não na mesma seqüência
7.19-21 – a quarta
besta guerreira
7.22 – Ancião de
dias faz julgamento
7.23-26 – a tirania e
o fim da quarta 7.27 – o triunfo do
besta reino
presente em outros capítulos (cf. 2,1). Escrita na terceira pessoa do singular, tenta situar o leitor
importância dessas visões, dizendo que a escrita171 da visão é para que ela não seja esquecida
e, com isso, possa fortalecer a memória (“então o sonho escreveu (de) cabeça”).
170
VAN GRONINGEN, Gerard (2003: 770).
171
O verbo btK (escrever, ser escrito) que aparece no início do relato da visão de Daniel (7,1) quer
exprimir o sentido de dois vocábulos hebraicos: bt;K. (escrito, documento, edito) e bT;K.mi (escrito, texto).
Nesta perspectiva podemos pensar na composição de um pequeno texto contendo os elementos principais
da visão. Tanto que o redator tomou cuidado em dizer no início do capítulo que “Daniel escreveu o sonho
66
Evidentemente a cronologia apresentada pelo redator não tem valor histórico, mas sim
uma intencionalidade teológica e, de certa maneira, deseja ajudar o leitor ou ouvinte a entender
o presente, falando do passado ou do futuro. Isto significa que o livro de Daniel tem valor literário
capítulo carregado de imagens constrói uma representação de tempo e espaço fictícios, como
podemos perceber na menção ao reinado de Belsazar e aos animais esquisitos, que, de fato,
Na descrição das visões (vv.2b-14) encontramos cinco blocos: a visão dos animais
(vv.2b-7); o chifre pequeno (2,8); o trono (vv.9-10); o julgamento (vv.11-12) e a visão de “um
como filho do homem” (vv.13-14). Estas visões são costuradas com as seguintes expressões:
ay"l+ y. le-( ~[i ywIzx> B, . tywEh] hzEx' vi acontecer em visões na noite (v.2b)
ay"ly. le( ywEzx> B, . tywEh] hzEx' ûhn"D> Depois disto vi acontecer na visão da noite (v.7)
rt:aB'
aY"nr: q> B; . tywEh] lK;’T;fm. i Observando aconteceu nos chifres (v.8)
ay"ly. le( ywEzx> B, . ‘tywEh] hzEx' Estava vendo em minhas visões da noite (v.13)
de cabeça” (7,1) e no final, diz: “e conservei tudo isto em meu coração” (7,28). O redator cria uma
relação entre vare (cabeça) e bb;l. (coração).
172
A apocalíptica utiliza-se de mitos e da ironia (em alguns textos proféticos, como por exemplo
Sofonias, aparece como caricatura) para transmitir formas diferenciadas de compreender o mundo e se
aproximar da vida “velada”. Por isso, a característica fundamental de um apocalipse é a “revelação” (des-
cobrir o que está encoberto).
67
Estas expressões vêm acompanhadas pelas locuções adverbiais: Wra]w: (e eis que)
Wla]wû: (e eis que) e yDI’d[; (até que), dando um caráter de vivacidade aos traços dos animais
Outro aspecto importante na descrição dos animais é que eles são esquisitos, e têm
correspondência com o poder e violência exercida pelos reis e/ou imperadores. Simbolicamente
as partes do corpo (pés, costas, olhos, boca, coração, cabeça) podem indicar o alcance das
ações de domínio desses animais sobre a vida e, conseqüentemente, revelam uma situação sem
perspectiva de saída e solução. Os três primeiros animais são descritos “à semelhança de...”
seguido de um detalhamento de suas características: “era como um leão” (v.4); “era como um
urso” (v.5); “era como um leopardo” (v.6); enquanto que o quarto animal, o mais violento, é
descrito de forma direta e incisiva: “e eis que animal quarto terrível173 e terrível174 e sua força
extraordinária e tinha grandes175 dentes de ferro e come e tritura e o resto com seus pés pisa e
ele se diferencia de todos os animais de diante dele e chifres176 dez para ele”(v.7).
grandes feras contra o humano) que se traduz na resistência das comunidades (povo fiel e justo)
173
hl'yxiD:> termo derivado do verbo temer, amedrontar, meter medo a alguém (cf. Dn 4,2). No particípio
passivo quer significar: medonho, terrível.
174
Adjetivo feminino: terrível. No hebraico ~ya': pavoroso.
175
Hipólito acrescenta: kai. oi, o[nucej au.tou/ calkoi/ (vxn yd hyrpjw): e suas garras de bronze. Esta inserção
está relacionada com o v.19: vx'n-> yDI( Hyr;pj. wi .
176
!r<q< significa chifre (de um animal) ou trombeta (instrumento feito com chifre de animais) e tem o
mesmo sentido no hebraico. “O vocábulo denota basicamente o chifre de diversos animais (carneiro, boi
selvagem)... Uma denotação derivada que ocorre com certa freqüência tem que ver com força, orgulho e
vigor. L. Schmidt acertadamente declarou: No AT o chifre não é apenas uma expressão de força física na
ação simbólica dos profetas (1Rs 22,11) ou na descrição visionária do poder que dispersou Israel (Zc
2.1-4); é um termo direto para poder”. Schmidt assinala ainda que, conquanto dentes, boca e garras
transmitam a imagem do exercício violento da força, o chifre denota o poder e a capacidade física...”.
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1374-75).
68
contra os impérios177. Já é notório nas várias interpretações deste capítulo de Daniel que os
quatro animais representam os impérios babilônico, medo, persa e grego178. Por detrás da
descrição de cada animal, são afirmadas as imagens e marcas da opressão experienciada pelos
coração humano e representa a repressão e o medo. Vemos que o texto de Daniel não se fixou
num rei específico, mas quer descrever o medo e o grande poder babilônico. Parece que esta
imagem (Dn 7,4) quer ilustrar a descrição do poder e glória de Nabucodonosor: "Ó rei! Deus, o
por causa da grandeza, que lhe deu todos os povos, nações e línguas tremiam e temiam diante
177
É muito importante perceber as semelhanças entre Daniel e o livro de Henoc (principalmente o Livro
dos Sonhos - 1 Henoc 83-90) no tocante à descrição das ações dos impérios e dos animais que devoram e
impõem medo.
178
"O livro de Daniel tem dois erros históricos: põe Baltazar como filho de Nabucodonosor e o império
medo como posterior ao babilônico (...) em termos gerais, o império medo não é sucessor mas coetâneo
do império babilônico: os medos ao norte e os babilônicos ao sul". Pablo Richard. Opus cit., p.34.
179
Cf. PAGELS, E. (1996: 85). COHN, Norman (1996: 224) diz o seguinte: “O significado dos quatro
animais monstruosos é explicado no mesmo capítulo 7: como as quatro partes da estátua no segundo
capítulo, eles representam as potencias imperiais que haviam dominado os judeus. O quarto monstro,
muito mais terrível que seus predecessores, é identificado com o império de Alexandre e os Estados que o
sucederam; os dez chifres são os diversos monarcas, com Antíoco sendo representado tanto pelo décimo
chifre como pelo “chifre pequeno”. Porém, há muito mais nesse simbolismo”.
180
Esta imagem se encontra nas reproduções de arte assírio-babilônicas. Conhece-se, por exemplo, a
existência de leões alados que guardam a entrada dos palácios de Assurbanipal. Veja DELCOR, Mathias
(1968: 290-312).
69
dele: a quem queria matava, e a quem queria dava a vida; e a quem queria engrandecia, e a
quem queria abatia" (Dn 5,18-19). O leão e a águia representam o império que exibe o seu
poder, intimida o povo pela brutalidade, age com violência e derrama muito sangue181.
O urso (7,5) se levanta para devorar ainda mais. É um animal que precisa de mais
comida para saciar a sua fome de “expansão”182. Eis um animal terrível: abraça, agarra e
esmaga. Assim, a apocalíptica quer descrever as marcas das ações do império medo-persa.
Representa os inícios das ações de Ciro e de Dario. Estes causaram grande impacto no meio do
leopardo com suas quatro cabeças pode representar o império persa com toda a sua
extraordinariamente forte: tem dentes de ferro que tritura e devora e pisoteia com os pés o que
sobrava. Este animal representa o domínio helênico de Alexandre Magno. Os gregos chegam
com audácia e com a grande estratégia militar de Alexandre Magno. Este sabe a arte de
dominar! A perseguição a Dario III realizada por Alexandre alarga o avanço e a conquista dos
territórios. Assim, a sua estratégia militar consistia na não captura de Dario III, pois a fuga de
181
Na profecia de Jeremias encontramos uma comparação das ações de um leão com os impérios assírio e
babilônico: "Cordeiro desgarrado é Israel: os leões o afugentaram. O primeiro a devorá-lo foi o rei da
Assíria; e por último, Nabucodonosor, rei de Babilônia, lhe quebrou os ossos" (50,17; cfr. 49,19).
182
Em termos econômicos refiro-me ao projeto expansionista dos impérios antigos e se olharmos a partir
de uma perspectiva geopolítica, estamos falando de expansão em termos de tomada e invasão de território
e de divisas. Estas são práticas muito comuns nos impérios antigos (Egito, Assíria, Babilônia, Media,
Pérsia, Grécia e Roma).
183
Entre as benesses oferecidas pelo império medo-persa aos habitantes da Judéia está a autorização de
viver e praticar a sua religião, o financiamento para a reconstrução da cidade de Jerusalém e do Templo e,
em alguns momentos a isenção dos tributos.
184
Ver KELLNER, Wendelin (1987: 26). Para a descrição das ações do império persa, ver NOTH, Martin
(1966: 275-318) e HERRMANN, Siegfried (1985: 381-432).
70
Dario demarcava as novas conquistas. Com as conquistas de Alexandre, a língua grega ficou
dominante, a filosofia e a visão de mundo dos gregos foi penetrando nas outras culturas. Aí
germina o helenismo.
Gente é mercadoria (por que matar se posso vender185). Esta é a ação dos generais helênicos
(tanto ptolomeus quanto selêucidas). Estes são os dez chifres do animal.186 No entanto, o sonho
do livro de Daniel quer chegar mais perto dos dias vividos pelos seus contemporâneos; quer
descrever a grande imaginária de violência no cotidiano dos grupos perseguidos e oprimidos ("os
Santos do Altíssimo"187): a imagem do chifre que derruba outros três e que tem olhos e boca e
que fala com arrogância. Este "chifrinho" é Antíoco IV Epífanes, filhote do domínio grego e um
assegurar que o animal será morto, seu corpo destruído e queimado no fogo; enquanto que os
outros animais simplesmente perderão o poder. A descrição da morte do tirano era um anseio
presente em alguns textos produzidos e/ou lidos no ambiente da guerra dos macabeus. Nos
Livros dos Macabeus encontramos três narrativas diferentes acerca da morte de Antíoco IV
seus exércitos na luta contra os judeus. Diante de tais notícias ficou apavorado, atordoado e
triste. Teria morrido de depressão? Em 2 Mc 1,11-17 se diz que ele foi morto a pedradas. Mas 2
185
Em 2 Macabeus 8,10 vemos que uma das intenções do general opressor é conseguir judeus para vender
e pagar as suas dívidas com os romanos.
186
É comum interpretar estes dez chifres como sendo os reis/generais helênicos que oprimiram o povo.
187
Em Daniel há indícios de que os "Santos do Altíssimo" são o povo judeu. "Em Daniel há indicações de
que esse povo é formado pelos judeus que seguiram os ensinamentos dos 'sábios', ou seja de visionários
tais como o autor do livro de Daniel. Com esses 'sábios', eles terão aprendido a técnica da resistência
não-violenta, mantendo-se firmes sob a perseguição, terão passado por uma purificação e um
refinamento interiores, de modo a se tornarem 'alvos'. Também terão conhecido a técnica da
interpretação escatológica, aprendendo a relacionar tanto a Torá como as experiências visionárias com
o 'tempo do fim'." COHN, Norman (1996: 228).
188
Detalhes acerca da dominação de Antíoco IV Epífanes e dos conflitos entre Ptolomeus e Selêucidas
ver: HERRMANN, Siegfried (1985: 433-466); NOTH, Martin (1966: 321-356) e MESTERS, Carlos
(1987: texto manuscrito).
71
Mc 9 transforma a morte de Antíoco num acontecimento macabro. O perseguidor não pode ter
morte comum, natural. Precisa ser desconjuntado, ter seu organismo todo desfeito, cheirar mal,
apodrecer ainda vivo. E termina quase dizendo “o feitiço virou-se contra o feiticeiro”: o cruel
Antíoco, “assassino e blasfemo”, morre em meio a dores terríveis: “seu final foi desastroso, da
pavorosas (leão com asas de águia, urso com costelas na boca, leopardo com quatro cabeças e
o animal com dez chifres) quer representar no imaginário popular um olhar sobre a conjuntura
econômica e política e sobre o ambiente de forte violência e opressão. É importante para o (s)
autor (es) deste capítulo central do Apocalipse de Daniel descrever o desejo de um fim a esta
situação vivida e, com isso, projetar a necessidade de reconstrução de uma nova ordem/mundo.
Nesta perspectiva, os vv.9-14 estabelecem uma espécie de tribunal através das visões
do trono, do ancião de dias e o filho do homem. São visões de um julgamento marcado pelo
conflito e oposição entre o poder dos animais (que sobem do mar) e o reino do ancião, que é
entregue a “um como filho do homem”. Vamos nos deter um pouco nesta imagem do “filho do
homem”.
ay"ly. le( ywEzx> B, . ‘tywEh] hzEx' 13 Estava vendo em minhas visões da noite
vn"a/ rb:K. aY"mv; . ynEn[" -] ~[i e eis que numa190 nuvem do céu como filho
homem
‘Wra]w:
‘aY"mA; y* qyTi[-; d[;w> hw"h+ ] htea' estava vindo e até ancião de dias
189
Ver VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004).
190
O texto grego revisado por Orígenes vai acrescentar e.pi, (sobre, em cima de) e o Códices Venetus traz
meta (depois, além... com, no meio de). Walter Baumgartner no aparato crítico da Bíblia Hebraica
Stuttgartensia sugere a comparação destas duas versões revisadas do texto no grego com os Evangelhos e
Apocalipse. No Evangelho de Mateus vamos encontrar evpi. tw/n nefelw/n tou/ ouvranou/ (sobre as nuvens
do céu - Mt 24,30 e 26,64), e no Evangelho de Marcos e no Apocalipse a seguinte expressão: meta. tw/n
nefelw/n tou/ ouvranou/ (com as nuvens do céu - Mc 14,62) e meta. tw/n nefelw/n (com as nuvens - Ap 1,7).
72
Wkl.mW; rq"ywI ‘!j'lv. ' byhiy> Hlew> 14 E para ele foi dado domínio191 e honra192 e reino
Hleä aY"nV: l' wi > aY"ma; u aY"m;m[. ;( e todos os povos, as nações e línguas para ele
lkow>
hDe[y. < al'-yDI( ~l;[' !j"lv. ' HnEjl' v. ' Temerão193 o seu domínio, domínio eterno que não
será tirado
Wx+lp. y. I
`lB;x( t; t. i al'-yDI HteWkl.mW; e seu reino que não será destruído194
Para Maurice Casey, vn"a/ rb; “filho do homem” é um termo ordinário para ‘homem',
‘ser humano’, de uso inadequado como título cristológico e sem um significado qualificativo.195 E
nesta mesma direção Mark S. Smith, toma Jó 25,6 onde vAna/ (´énôš) e ~d'a (´ädäm) são
termos paralelos e observa o seu uso no ugarítico de “bn adm” com um sentido de “um ser
humano”, conclui que Dn 7,13 aponta para “um ser humano”.196 Para José Roberto Cristofani
humano. Por isso, pode ser traduzida por “filho da humanidade” ou, simplesmente, “um homem”.
Cristofani propõe a seguinte tradução para o v.13: “Vi acontecer na minha visão da noite e eis
191
!j'lv. ' – aparece três vezes neste versículo e significa: domínio, soberania e em alguns casos reino. É um
termo derivado de jlev:. ter poder, dominar. A Bíblia de Jerusalém traduz este termo por “império”. Penso
que devemos seguir a sugestão do aramaico e até mesmo da Septuaginta (que traduz por evxousi,a).
192
rq'y> - significa honra, estima, dignidade, majestade. Literalmente tem a conotação de “ser
precioso/valioso”. Ver HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998:1699).
Claus Westermann diz que “da raiz yqr aparecem no aramaico bíblico as formas nominais yaqqīr,
“difícil” (Dn 2,11), “estimado” (Esd 4,10), e yeqār, “honra” (Dn 2,6.37; 4,27.33; 5,18.20; 7,14), ambos
termos que também aparecem em hebraico – junto a yqr qal, “ser difícil, valioso” (9x), hifil, “ser
valioso, raro” (2x), e yāqār, “raro, valioso” (35 x, excluindo Is 28,16) – como arameismos (yaqqīr, Jr
31,20, “caro, valioso”; yeqār 17x; cf. Wagner N. 120a/121).” In: JENNI, Ernst e WESTERMANN,
Claus (1985a:1090).
193
O verbo significa temer, venerar, servir.
194
Alguns propõem antepor Wkl.m:; reino.
195
Cf. CASEY, Maurice (2002: 3-32). Nesta mesma direção encontramos a leitura de Charles D. Isbell
que aponta para má interpretação deste termo como fonte da designação que Jesus faz de si mesmo,
“Filho do Homem”; talvez a interpretação correta e defendida por muitos de que essa expressão de Daniel
7,13 significa simplesmente “homem”, como acontece com ben ’ādām (Ex 2,1; etc.) em hebraico e com
benê ’ănāshā’ (Dn 2,38; 5,21) em aramaico. Apud in: HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e
WALTKE, Bruce K. (1998: 1673-1674).
196
Mark S. Smith. Apud. GRONINGEN, Gerard van (2003:772).
73
que junto com as nuvens do céu, um como filho da humanidade veio a ser, e até que diante do
“ou esse ‘um como Filho do Homem’ é apenas um símbolo para os ‘santos do Altíssimo’, ou é o
representante deles – o anjo Miguel ou talvez o futuro soberano messiânico. Em ambos os casos
ele personifica o sentimento de eleição, a certeza de uma futura redenção e exaltação dos
judeus – isto é, dos judeus aos quais se dirigia o autor do Livro de Daniel”.198
Para Crossan na visão de Daniel 7, “um como filho de homem” não representa um título
e sim uma expressão que é utilizada para opor os três impérios à figura sobrehumana “que é
como um ser humano que vem das alturas do céu”. Juntamente com os “santos do Altíssimo” e o
“povo dos santos do Altíssimo representam três níveis diferentes de uma realidade
multidimensional.199
visionário e a necessidade de um intérprete (da mesma maneira que o rei Nabucodonosor nos
capítulos 2 e 4 necessita de Daniel para interpretar o seu sonho; aqui é Daniel que precisa de
alguém para interpretar o sonho que lhe perturbou o espírito). O anjo é o mediador entre Daniel e
do poder dos reis. Na explicação do sonho é enxertada, quase de maneira abrupta, a narrativa
da guerra movida pelo chifre pequeno contra os “santos do Altíssimo” e, depois volta a falar do
quarto animal de dez chifres. Nas idas e vindas do texto, transparece o interesse do redator em
fortalecer a vitória dos santos sobre o domínio do quarto animal e, de modo especial, sobre as
197
Cf. CRISTOFANI, José Roberto (2000: 35).
198
Cf. COHN, Norman (1996: 227).
199
CROSSAN, John Dominic (1994: 276).
74
Transparecem nessas imagens dois momentos muito fortes: um, amarrada a uma
história passada no que se refere à trajetória e ação dos quatro animais e, o outro, na descrição
da história presente atrelada às ações do pequeno chifre. Ou seja, os quatro animais representa
marcado pela opressão de Antíoco IV Epífanes. Daí apresentar um texto amplamente aberto e
existido como narrativas isoladas (independentes). Porém, estão inseridas no contexto das
intrigas palacianas. Aliás, tanto os três companheiros (Dn 3,12) quanto Daniel (Dn 6,3)
companheiros de Daniel vão parar na fornalha de fogo; agora, Daniel é lançado na cova dos
leões. Ser lançado no crematório ou na cova dos leões é sinal de afronta e desobediência
aos decretos reais. Os três amigos serão lançados no fogo porque não se prostraram
perante a imagem de ouro de Nabucodonosor e Daniel será lançado na cova dos leões
porque fizera pedido e orações a outros deuses, pois deveria fazê-los somente ao rei. Nos
dois relatos deparamos com a desobediência aos decretos do rei. Fornalha e cova dos leões
sua relação com o capítulo 6. O herói do livro, Daniel, não é mencionado no texto, pois os
heróis são Sadraque, Mesaque e Abednego. Para o texto Daniel não existe. Aage Bentzen,
200
Ver o meu ensaio sobre a desconstrução das imagens de poder e a construção de um imaginário de
esperança no livro de Daniel: SILVA, Rafael Rodrigues da (2001: 82-100).
75
das narrativas.201 Será que podemos imaginar que existam outros interesses para o redator
não mencionar ou não adicionar o nome de Daniel à narrativa? Penso que na construção
vv.13-18 – Interrogatório
vv.19-23 – Condenação
vv.24-25 – Admiração do rei por ver quatro homens soltos e sem lesão
201
Cf. BENTZEN, Aage (1968b: 221).
76
Analisando as grandes partes que compõem este capítulo, Hans de Wit202 aponta para a
fornalha de fogo como o lugar central; bem como, de onde parte toda mudança e transformação
B: vv.2-7 o decreto
C: vv.8-12 acusação
Este conto da corte tem, por um lado, um caráter hiperbólico, como podemos notar
na descrição da altura da estátua, na menção aos gêneros e instrumentos musicais, entre outros
e, por outro lado, um tom sarcástico e irônico frente ao poder dos reis. De um rei irado e raivoso
para um governante pasmado que chega até a confessar a superioridade do Deus dos judeus.
Muitos comentários exegéticos e hermenêuticos revelam que esta narrativa (também o capítulo
6) tem uma grande afinidade com as legendas de martírio. Basta comparar este nosso texto com
Outra característica deste conto reside nas histórias sobre conflitos palacianos a
exemplo das histórias de José, Ester e outros. John Joseph Collins a propósito destes relatos,
observa que em grande parte, são construídos e estruturados sob cinco aspectos: (a) os heróis
da narrativa estão numa situação de prosperidade; (b) daí correm perigo por causa das ações
202
DE WIT, Hans (1988: 40) e DE WIT, Hans (1990: 134).
77
planejadas por seus conspiradores; (c) que resultam na condenação à morte ou prisão; (d)
porém, por várias razões, os acusados são libertos; (e) e, por fim, não só têm a sua sabedoria e
Não podemos esquecer que esta legenda está carregada de elementos religiosos e
cultuais. De um lado, o tom miraculoso da preservação e libertação dos três judeus do meio da
promulgação de um decreto proibindo qualquer blasfêmia contra o Deus dos judeus (eis os
aspectos cultuais do texto: a estátua de ouro que representa o rei – divinizado – ou alguma
judeus não servem aos deuses do rei; o desafio do rei; a resposta dos judeus; a conversão do rei
John Joseph Collins apresenta seis aspectos constituintes de Daniel 3: (1) a mensagem
do arauto nos vv.4-5 aparece na forma de uma ordem ou decreto; (2) a acusação a Sadraque,
afirmação de que eles não agem de acordo com a ordem do rei; (3) as interrogações do rei
constituem um elemento típico das narrativas de martírio; (4) a doxologia colocada na boca de
Nabucodonosor representa uma espécie de síntese de um hino de louvor e ação de graças; (5) o
decreto real no v.29 é uma composição que tem semelhança com outros decretos ( Esd 4-7;
Dn 2; (6) finalmente contém listas: dos oficiais (vv.2-3), dos instrumentos musicais (vv.5, 7,10 e
liberdade de adoração e culto e o decreto contra as blasfêmias ao Deus dos judeus. 2o) A não
203
Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 55).
204
Cf. COLLINS, John Joseph. (1984: 56).
78
adoração da estátua é crime contra a majestade e a punição para aqueles que cometem tal
delito é a morte numa fornalha de fogo ardente (crematório). 3o) Na salvação miraculosa dos
judeus que transgrediram o decreto do rei aparece a figura de alguém como um !yhil( a' -/ rb;
“filho de Deuses”205 e o martírio e salvação desses três judeus produz uma grande ironia: da
decreto.207
Vale salientar que se tem sugerido que esta legenda é simultaneamente uma espécie de
midrash208 de Is 43,2 onde Javé é o Goel que resgata (liberta) o seu povo das águas e do fogo:
“Quando passares pelas águas estarei contigo, e quando pelos rios, eles não te submergirão;
quando passares pelo fogo não te queimarás, nem a chama arderá em ti”.
motivos que configuram os conflitos dentro da corte palaciana estão, de um lado, na recusa dos
205
Quem é este companheiro dos três amigos que aparece na fornalha ardente? Muitas hipóteses já foram
apresentadas para identificar esta quarta pessoa na fornalha: uns interpretam !yhil( a' -/ rb;l. / lübar-´élähîn
(filho de deuses) como referência a um anjo ou sendo um termo para se referir ao Cristo pré-encarnado;
outros o vêem como uma teofania ou epifania de uma deidade; outros apelam para as inserções apócrifas
para dizer que é preciso considerar esta imagem à luz da composição dessas histórias de martírio e, por
fim aqueles que concordam com a importância do livramento, porém saber quem é a quarta pessoa é algo
irrelevante. Ver GRONINGEN, Gerard van (2003: 766-67).
206
“Bendito seja o Deus de Sadraque, Mesaque e Abednego, que enviou o seu anjo, e livrou os seus
servos, que confiaram nele, pois não quiseram cumprir a palavra do rei, preferindo entregar os seus
corpos, para que não servissem nem adorassem algum outro Deus, senão o seu Deus. Por mim pois é
feito um decreto, pelo qual todo o povo, nação e língua que disser blasfêmia contra o Deus de Sadraque,
Mesaque e Abednego, seja despedaçado e suas casas sejam feitas um monturo, porquanto não há outro
Deus que possa livrar como este”. (vv.29-30)
207
DE WIT, Hans (2000: 141).
208
Com relação ao Targum (versão interpretativa do texto hebraico ao aramaico) o midrash é “a
ampliação de um texto ou passagem até tornar um novo relato. Um e outro obedecem a normas
hermenêuticas, só que o midrash tem mais possibilidade de expandir-se e, portanto, de atualizar um
texto.” Cf. CROATTO, José Severino (1986: 32).
209
Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 71).
79
três judeus em adorar a estátua (Dn 3) e, do outro, na destruição dos magistrados que
vv.12-20 - Condenação
A – espionagem e denúncia dos ministros (vv.12-14)
B – a impotência do rei diante do decreto assinado e da pressão dos ministros
(vv.15-16)
C – Daniel é lançado na cova dos leões (vv.17-18)
D – reação do rei: jejum, perda do sono e vai até à cova de madrugada (vv.19-20)
É possível perceber algumas costuras na construção desta narrativa. Por isso, alguns
210
Tomo como notas para esta proposta de estrutura de Dn 6 os comentários de COLLINS, John Joseph
(1984: 70-71) e DE WIT, Hans (1990: 157-163).
80
Esta narrativa evoca a tomada da Babilônia em 539 nos dias de Ciro; porém não
um tanto quanto exagerado. As satrapias não ultrapassam o número de 20 e não 120 como
escreve a história a partir de sua experiência: o justo que agora sofre inocentemente.
Neste sentido, podemos intuir que uma das metas do autor esteja relacionada com uma
forçar os judeus (tanto da diáspora quanto da Judéia) a romper com a fidelidade a Javé e
prestar culto ao soberano divinizado. A não obediência a tal decreto resultaria em martírio.
Esta não parece ter sido uma prática corrente nos tempos de domínio persa (tomando
211
GRELOT, Pierre (1995: 26) e COLLINS, John Joseph (1984: 72).
212
Uma das marcas da ação dos persas na Judéia e Samaria está na imagem de um povo “tolerante” com a
cultura e as práticas religiosas dos povos dominados. Esta imagem acaba escondendo as ações violentas e
opressoras do império. A escassez e a pobreza obrigaram muitos a recorrer à lei do restolho ou à prática
de recolhimento do resto da colheita (Rt 2,2), e, uma constante perda da terra (Rt 2,3; 4,3.9). O alvo
principal dos persas é a ampliação do seu poder econômico com o auxílio/ajuda e colaboração dos
deportados que perderam suas raízes, sua identidade e religião. O Edito de Ciro (Esd 1,2-4; 6, 3-5 e 2 Cr
81
se que a partir de 169, o rei Antioco IV Epífanes quis obrigar todos os súditos a participarem
do culto ao deus dinástico Baal Shamêm, identificado com o deus grego Zeus Olimpo, do
o fato tenta ajudar o ouvinte ou leitor a estabelecer uma ponte com o seu tempo. Talvez,
"estes sátrapas" !yLeai aY"nP: r. D> v; x. a; ] (v.3); "aqueles homens" %Leai aY"rb; G. U (vv.6, 12, 16
e 25); estes presidentes e sátrapas" !Lea‘i aY"nP: r. >Dv; x. a; w] : aY"kr; s> ' (v.7); "esse Daniel"
hn"D> laYEndI l' . (v.4, 6 e 29), etc. No entanto, a imagem da vitória de Daniel sobre os
conspiradores (Daniel sai ileso da cova dos leões enquanto que os conspiradores e seus
familiares são devorados pelos leões) vai servir de força e conforto para outros grupos, que
numa outra conjuntura, estejam enfrentando dura perseguição. A saída de Daniel da cova dos
leões vai ser considerada uma releitura do Salmo 57 (especialmente os vv.4-6213) e esta imagem
36,22-23) que muitas vezes lemos como ato de benevolência dos persas para com o povo, no entanto, faz
parte dos projetos econômicos do novo império. Os persas querem controlar a nova rota comercial: do
ouro e da prata (rota comercial que liga o comércio da Arábia e o Mar Egeu). A religião do templo está
totalmente dominada pela ideologia persa. E este passou a funcionar como local do câmbio. O produto do
povo vira moeda. Neemias 5,1-5 apresenta o grande clamor do povo diante da situação em que foram
submetidos. É um protesto a partir das marcas e chagas profundas advindas da dívida e do projeto persa.
"Subiu um grande clamor dos homens do povo e suas mulheres contra seus irmãos judeus". A cada grito
nos deparamos com os agravamentos sociais do processo de dívida. Junto com o aumento gradativo da
fome vem a perda da terra e da casa. Outros irão gritar contra a situação de penhora dos campos e de
tomar dinheiro emprestado para pagar os tributos do rei. Este texto descreve a crise econômica que fora
instaurada no meio do povo pela política econômica dos persas. De um lado, o grande lucro dos chefes e
dos nobres que escravizam os filhos e filhas dos camponeses, exploram e vivem das benesses adquiridas
através da política de aliança e de “tolerância” imposta pelo império. E, do outro, um grande contingente
de empobrecidos esperneando e gritando contra os seus opressores. A dominação helênica (333 – 63)
soube aproveitar da organização já instaurada pelos persas. Os generais Lágidas e Selêucidas, entre outras
inovações na arte de dominar, criaram o aluguel da cobrança de impostos e deram uma possibilidade para
a emancipação da aristocracia local (leiga).
213
“Ele dos céus enviará seu auxílio e me salvará do desprezo daquele que procurava devorar-me (Selá.
Deus enviará a sua misericórdia e a sua verdade. Minha alma está entre leões, e eu estou entre aqueles
que estão abrasados, filhos dos homens, cujos dentes são lanças e frechas, e cuja língua é espada afiada.
82
estará presente nos Livros dos Macabeus (1Mac 2,60214 e nos apócrifos 3Mac 6,7215 e 4Mac
Enfim, estas duas narrativas ao redor do martírio e da vitória do justo inocente que
desmascaramento do tirano.
são libertos. Segundo John Dominic Crossan, estes dois relatos fazem parte das narrativas
Sê exaltado, ó Deus, sobre os céus: seja a tua glória sobre toda a terra. Armaram uma rede aos meus
passos, a minha alma ficou abatida; cavaram uma cova diante de mim, mas foram eles que nela caíram.
(Sela)”. Tradução de João Ferreira de Almeida. Edição Revista e Corrigida, 1969.
214
“Daniel, por sua retidão foi libertado da boca dos leões”. No versículo 59 encontramos a referência a
Dn 3: “Ananias, Azarias e Misael, por terem tido fé, foram salvos das chamas”. (Tradução B.J.)
215
su. to.n diabolai/j fqo,nou le,ousi kata. gh/j r`ife,nta qhrsi.n bora.n Danihl eivj fw/j avnh,gagej avsinh/ –
“Tú , que a Daniel, arrojado bajo tierra a los leones por envidiosas calumnias, como pasto de fieras, lo
sacaste ileso a la luz”. Tradução de I. Rodríguez Alfageme. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 500).
216
4Mac 16,3: kai. ouvc ou[twj oi` peri. Danihl le,ontej h=san a;grioi ouvde. h` Misahl evkflegome,nh ka,minoj
labrota,tw| puri, w`j h` th/j filotekni,aj perie,kaien evkei,nhn fu,sij o`rw/san auvth/j ou[twj poiki,lwj
basanizome,nouj tou.j e`pta. ui`ou,j – “Ni la fiereza de los leones de Daniel ni la voracidad del horno de
Misael eran tan fuertes como el ardor del amor maternal em aquella mujer al ver a sus siete hijos
torturados.” e 16,21: kai. Danihl o` di,kaioj eivj le,ontaj evblh,qh kai. Ananiaj kai. Azariaj kai. Misahl
eivj ka,minon puro.j avpesfendonh,qhsan kai. u`pe,meinan dia. to.n qeo,n – “El justo Daniel fue arrojado a los
leones; Ananías, azarías y Misael fueron precipitados en un horno de fuego. Y todos lo soportaron por
Dios”. Tradução de M. López Salvá. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1982: 161-162).
217
GRELOT, Pierre (1995: 44).
218
Cf. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 428).
83
inocente diante de um tribunal; 2) é vítima de uma acusação falsa; 3) recebe uma injusta
(vv.19-23), ao passo, que o centro da ironia de Dn 6, está na figura de um rei triste, que faz
penitência e quase tem a certeza de que o Deus vivo de Daniel é capaz de livrá-lo da boca dos
leões. Interessante que em Dn 3, Nabucodonosor lança o desafio de que não há Deus que
possa livrar os três companheiros de Daniel da fornalha e de suas próprias mãos e no final, este
rei é obrigado a reconhecer o Deus deles como o único capaz de tal livramento.
Este é o teor da louvação e declaração epistolar do rei para todos os povos, nações e
línguas que moram em toda a terra. Primeiramente declara a razão do escrito (v.32: “pareceu-me
bem fazer conhecidos os sinais e maravilhas que Deus, o Altíssimo, tem feito para comigo.”) e
depois apresenta a sua louvação (v.33: “Quão grande são os seus sinais, e quão poderosas as
suas maravilhas! O seu reino é um reino sempiterno, e o seu domínio de geração em geração.”).
Podemos conferir a relação destes versículos com o capítulo 6: a saudação do v.31 está em
paralelo com 6,25 e a louvação acerca dos sinais e maravilhas do v.33 tem correlação com 6,27.
Com isso, podemos perceber o quanto estes dois capítulos estão totalmente entrelaçados.
No capítulo 4 vamos encontrar um relato que faz uma releitura da parábola da árvore
apresentavam para os súditos e dominados. Eis uma árvore grande no centro da terra; com suas
folhagens, seus frutos e sombra que ela fornece aos animais e às aves que fazem ali seus
219
CROSSAN, John Dominic (1994: 423-24). O autor analisa os modelos de relatos de julgamento que
possam estar na origem da narrativa da paixão. O autor apresenta o esquema presente nos relatos de
resgate de inocente (situação; acusação; condenação; libertação e restauração) na saga de José em Gn 37-
50 e Sl 105,16-22; na saga de Tobias (1,18-22); na narrativa de Daniel na cova dos leões (Dn 6) e de três
judeus na fornalha de fogo ardente (Dn 3); na novela de Ester, no caso de Susãna e na narrativa dos
judeus egípcios em 3 Macabeus.
84
ninhos (vv.11-12). Na interpretação, a árvore que cresceu, que se fez forte (com suas folhas e
frutos abundantes) e que se tornara morada para todos os animais do campo e aves do céu, "és
tu, ó rei, que cresceste, e te fizeste forte; a tua grandeza cresceu e chegou até ao céu, e o teu
domínio até à extremidade da terra" (4,22). Eis um exemplo de como era descrito o grande
poderio de Alexandre.
Olhando o texto em sua forma, podemos de maneira geral dividi-lo em duas partes: dos
traduções inserem neste capítulo a louvação do rei que aparece em 3,31-33, abrindo a narrativa
3,31-33 – O imperador vai narrar os sinais e prodígios e afirma o reinado eterno do Deus Altíssimo
A – INTRODUÇÃO: vv.1-5
1. O rei está tranqüilo e o sonho o deixa perturbado – vv.1-2
2. Decreto convocando os magos e adivinhos para interpretar o sonho e estes não deram a
conhecer a interpretação – vv.3-4
3. Apresentação de Daniel, o príncipe dos magos, em quem está o espírito dos deuses dos
santos – vv.5-6
O intróito da narrativa tem algo em comum com o capítulo 2, por exemplo, o sonho que
deixa o rei perturbado, o decreto e convocação dos magos e de como estes não dão a saber a
nos apresenta a pedra sem mão e aqui aparece o vigilante e no final do texto: uma voz que caiu
aquele a quem foi revelado o segredo; aqui neste capítulo, é apresentado como aquele que tem
o “espírito dos Deuses dos santos” e como “chefe dos magos”. Porém, aqui aparece um detalhe
diferente dos outros contos: este é um relato escrito em forma de carta (testamento) ou proclama
do rei220 que trata de sua estranha visão e da perturbação que sentira; além disso, o sonho não
se refere a uma projeção do futuro dos impérios, mas quer tratar do destino do rei, que ficará
louco e viverá como um animal durante sete anos. “O caráter legendário da história é
demonstrado pelas freqüentes intrusões das maravilhas: o sonho, a vos que cai do céu e a
O sonho está descrito nos vv.7-14, já nos vv.7-9 encontramos a visão da grande árvore
no centro da terra e a descrição de suas folhagens, seus frutos e a sombra que fornece aos
animais e aves que fazem ali seus ninhos e que alimenta a todos. Esta visão tem uma forte
relação com Ezequiel 31,3-17. Parece que estes versículos fazem uma releitura apocalíptica de
220
Cf. COLLINS, John Joseph (1984: 61).
221
Idem., p.62.
222
Cf. FRYE, Northrop (2004: 183): “Seguidamente a Bíblia parodia imagens e motivos de outras
mitologias, quando o seu contexto é o de uma paródia demoníaca. Em todos os cantos do mundo
mitologias apresentam não só uma árvore da vida ou símbolo de uma fonte de alimentos, mas uma
86
céu. No Livro de Henoc encontramos várias referências aos vigilantes, ora indicando “anjos
caídos do céu” ora “os que não dormem”.223 Três aspectos encontramos na fala do vigilante: a
derrubada da grande árvore; ficarão na terra o toco e as raízes com cadeias de ferro e bronze; e,
O v.16 faz a ponte entre a descrição do sonho e a interpretação apresentada por Daniel.
palavra enigmática do intérprete: %yIr[; l' . Hrevp. Wi %yIan; f> l' . am'lx. , – “o sonho para os que
te odeiam e sua interpretação para teus adversários”. Porém, carregada de ironia se tomarmos a
expressão usada por Daniel: yair>m' – “meu senhor!”. Levando em conta que a perturbação do
rei é porque não sabe o significado do sonho e a de Daniel é porque o entende, podemos
suspeitar que esta afirmação-resposta deste último é mero gesto de cortesia.225 No entanto, se
a intenção do relato é a de humilhar o governante (o rei), como aparece explicitada nos v.22s.,
estamos diante de uma narrativa que ridiculariza o grande poder e o desconcerta ao apresentar
‘árvore do mundo’ – algumas vezes identificada com a árvore da vida e às vezes não. (...) No capítulo 31
do Livro de Ezequiel há uma vívida descrição dos poderes da Assíria, associada ao Egito, através da
figura de uma tal grande árvore. Mas ela deve ser cortada por um inimigo mais forte, e ‘todas as árvores
do Éden (...) deverão ser cortadas nas partes fundas da terra’ (31,16). Uma árvore já tardia no Livro de
Daniel, sem dúvida derivada da árvore de Ezequiel, e que alcançava o céu, sendo visível nos confins da
terra, é identificada com Nabucodonosor e seu poder de curta vida na Babilônia (Daniel, 4:10 e
seguintes).”
223
DIEZ MACHO, Alejandro (1984/b: 40). “Vigilantes: se traduce así tradicionalmente el et. teguhan,
“constantes (servidores)”, epíteto usual de algunos ángeles. En el AT aparece solamente en Dn
4,10.14.20 (ar.: `îrîn; gr.: egregoroi). Aquí, en 10,9.15; 12,4; 13,10; 14,13; 15,2; 16,1.2; 91,15 (ángeles
caídos). Arcángeles, 12,2.3; 20,1; 39,125; 61,12; 71,7 (en estos tres pasajes la expresión literal es “los
que no duermen”)”. Ver também GRELOT, Pierre (1995: 40) e B.J, nota i, pp.1690-1691: “Isto é anjo,
sempre em vigília para o serviço de Deus. Comparar com as rodas “cheias de olhos (ou de ‘reflexos’) ao
redor”, Ez 1,18; e o título de “olhos do Senhor” dado aos anjos em Zc 4,10b. O termo “Vigilante”,
exclusivo de Dn na Bíblia, é bastante freqüente nos apócrifos, notadamente no Livro de Henoc, nos
Jubileus e nos Testamentos dos Patriarcas, bem como no “Documento de Damasco”: ele designa os
arcanjos, e muitas vezes os arcanjos decaídos. Na tradição posterior, os Vigilantes são os anjos da
guarda”.
224
Cf. FRYE, Northrop (2004: 230): “A estória de Daniel, em que Nabucodonosor se torna uma espécie
de Behemot, é um paralelo muito claro com a identificação, em Ezequiel, do Leviatã com o Faraó do
Egito”.
225
ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1297-8).
87
da árvore e a sua interpretação: os vv.17-18 retomam a descrição da árvore que fora narrada
nos vv.7-9: eis uma árvore grande e vigorosa, com uma altura que chega aos céus e com uma
vista que abrange toda a terra, com bela folhagem e frutos abundantes, alimenta a todos e
`a['r( a> ; @Asl. %n"jl' v. 'w> aY"mv; l. i tj'mW. tb'r> %t"Wbr>W T.pq. t+E .W tyb;r> yDIî aK'lm. ; aWhå hT'na> ;
– “tu, (és) esta [a árvore] ó rei, que te engrandeceste e te tornaste forte e tua grandeza cresceu
declaração e ação deste sobre a árvore. O v.21 faz a passagem da segunda para a terceira
vv.22-23 (que a meu ver constituem a terceira camada de interpretação), e, tem por objetivo
anunciar ao rei a sua expulsão e que viverá como animal e não perderá totalmente o seu reino (o
toco e as raízes da árvore que ficarão), porém, a garantia de recuperação do reino só acontecerá
%t"w) l> ve l. i hk'ra> ; awEh/T, !hE± !yIn[+" ] !x:mBi . %t"yw" [" w] : qrup. hq"dc> Bi . %y"jx' w] : – “e teus
palavras ainda estavam na sua boca quando (vv.28-29) cai uma voz do céu, aprovando a
interpretação feita por Daniel no que se refere à fala do Vigilante. O v.30 é o cumprimento da
palavra, enquanto que nos versículos finais (31-34) o rei recupera a razão e a sua ação resulta
88
Deus dos judeus. Estas orações de louvor são inspiradas em Is 40,17.22-24; 45,9; Jó 9,12; Ec
Qual o grupo que conserva esta tradição de comparar o crescimento do império com
uma árvore grande que chega aos céus? Qual o grupo que conserva a tradição de falar da
mudança do coração do rei em coração de animal? Penso que estamos diante de uma tradição
empreendida por Antíoco III ( 223 a 187 a.C.)? (pelo menos, no que se refere à árvore que
cresceu e se tornou forte). Pelos louvores e reza no final do capítulo, podemos pensar num
grupo ligado à reza nas sinagogas e que estariam transmitindo esta tradição.
Por fim, este capítulo descreve o que a comunidade pensa concretamente acerca da
Neste sentido, a esperança do grupo apocalíptico que está por trás do texto talvez esteja na
apresentadas no livro de Daniel, veremos que os autores não tinham como objetivo dar lições e
conhecimentos de história, pois no próprio relato há uma certa confusão ao redor de Baltazar e
Assim, não podemos ler esta narrativa como se esta fosse uma testemunha ocular da
caída da Babilônia. No entanto, a queda do império é um referencial desta escritura que aparece
na parede e que necessita de interpretação, pois o contexto deste escritor (ou compilador do
A – INTRODUÇÃO: v.1-6
1. O banquete de Baltazar e os seus convidados – v.1
2. Descrição do banquete, profanação dos utensílios e idolatria – vv.2-4
3. Os dedos da mão e a escritura – v.5
4. A reação do rei: medo – v.6
226
Idem., p.1298.
90
Como podemos ver a narrativa é muito simples: o rei Baltazar oferece um grande
banquete a seus maiorais e em meio ao calor da bebida aparecem dedos de mão de homem que
escrevem na parede do palácio real. Assim, o rei ordena que tragam os astrólogos, os caldeus,
os adivinhos para ler e interpretar o escrito (mene, mene, tequel urparsin). Estes não conseguem
ler e nem interpretar; ao passo que Daniel é apresentado ao rei e consegue decifrar o enigma.
anEm. anEm. (mene mene Teqel ûparsîn). Estas palavras podem ser lidas como contar, contar,
pesar e dividir. Eis um jogo de palavras cuja interpretação demonstra o fim do império: "Mene:
contou Deus o teu reino e o acabou. Tequel: pesado foste na balança e foste achado em falta.
Peres: dividido foi o teu reino e deu-se aos medos e aos persas" (vv.26-28). Estas palavras
também podem ser lidas como unidades monetárias (mina, siclo e meio-siclo), porém, são
interpretadas por Daniel como verbos "contar", "pesar" e "dividir".227 O rei vê seu reino medido,
reino que caminha para o fim; pesado, e não tem o peso suficiente (ser pesado, segundo a
Justiça procede de uma antiga noção egípcia e se encontra em vários textos do Antigo
Testamento: Jó 31,6; Sl 62,10; Pr 16,11 e outros); reino dividido: dado aos medos e aos persas.
No imaginário desta comunidade, que resiste à opressão está a certeza que o império de
227
“O texto aram. repete Mane (contra LXX, Teod., Vulg., Josefo e os vv.26-28 que parecem supor três
termos e não quatro) e tem a forma Parsin em vez de Farés. Na forma desses vocábulos misteriosos
reencontram-se os nomes de três pesos ou moedas orientais: a mina, o siclo e a meia-mina (parás), e os
termos se prestariam à série de trocadilhos dos vv.26-28, mane sugerindo o verbo maná (medir), tecel, o
verbo shaqal (pesar), e parás, ao mesmo tempo o verbo paraç (dividir) e o nome dos persas. Não há
unanimidade sobre o sentido da seqüência: alusão ao valor decrescente dos três impérios que se sucedem
(babilônios, “medos”, persas), ou dos três reis: Nabucodonosor, Evil-Merodac e Baltazar (ou ainda:
Nabucodonosor, Baltazar e os reis dos “medos e persas”) ou, enfim, algum provérbio antigo cuja pista
se perdeu”. Nota v. da B.J., p.1694. Ver também SCHMIDT, Werner H. (2002: 280).
91
Antíoco terá o mesmo fim do império de Baltazar. O império que nos oprime será contado,
pesado e dividido!
fazermos esta pergunta estamos querendo ampliar a compreensão do livro, numa tentativa de
perceber as influências literárias exercidas sobre o autor, que podem ser tanto bíblicas quanto
outros livros dentro do cânon hebraico. “O autor usa imagens do AT e de fora dele. Em algumas
e tradições usados por outros autores bíblicos (...) imagens narrativas como a da árvore, a
grande estátua de ouro, a fornalha, etc., certamente são parte da imaginação popular e do
folclore de Israel”.229
Pentateuco (Gn 37-50). John Collins enumera os seguintes paralelos entre Daniel e José: Dn 1,4
e Gn 39,6; Dn 1,15 e Gn 41,2; Dn 1,3 e Gn 39,1; Dn 1,20 e Gn 41,24; Dn 2,1 e Gn 41,8; Dn 1,20
que chegam a considerar o livro de Daniel como um midrash da novela de José.231 Por exemplo,
para Pierre Grelot, no capítulo 2 “a menção aos “mágicos” (hartummim, palavra egípcia) lembra
a história de José (Gn 41,24): é pela decifração dos sonhos do faraó que José adquire reputação
228
Esta é uma das perspectivas apontadas por DELCOR, Mathias (1968: 290-312 e 1987:133-99).
229
Cf. DE WIT, Hans (2000: 143-44).
230
Apud. ASURMENDI, Jesús M. (2004: 419).
231
A caracterização de Daniel 1-6 como midrash tem sido utilizado especialmente pela escola francesa
(por exemplo, Delcor, Gaide, Lacocque, ver, a propósito, também Hartmann e DiLella). COLLINS, John
Joseph (1984: 43).
92
de “sabedoria” (Gn 41,39)”.232 Mathias Delcor distingue dois gêneros fundamentais no livro de
Daniel: apocalipse e midrash. Evidentemente, que o autor está caracterizando os capítulos 1-6
como midrash e, conseqüentemente, os capítulos 7-12 como literatura apocalíptica. Devemos ter
presente que não é tão fácil definir o gênero literário midrash, bem como, afirmar que os
capítulos 1-6 de Daniel colocam em prática tal gênero. Em poucas palavras, podemos dizer que
o midrash é a releitura, oral ou escrita, de um texto canônico fixo. Por isso, no midrash
encontramos a citação do texto fixo (aceito canonicamente e com livre circulação) a explicação,
De modo geral, midrash designa a interpretação dos textos sagrados feita pelos rabinos
sagrado, de atualizá-lo e, por fim aplicá-lo às situações concretas com o objetivo de solucionar
os problemas (principalmente aqueles que não são mencionados no texto sagrado).233 Um outro
gênero literário ou hermenêutico (como é considerado por muitos) é o pesher, que, de modo
geral, reúne um conjunto de interpretações, de caráter escatológico e enigmático. Por isso, são
abundantemente em Dn 2,1-45; 4,4-27 e 5,5-17 e o seu verbo correlato no hebraico rtP (Ptr :
232
GRELOT, Pierre (1995: 34).
233
Cf. Renee Bloch. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 32). Para Dockery, midrash tem o significado de
comentário, com o objetivo de tornar a Escritura contemporânea a fim de aplicá-la ou torná-la
significativa para a situação atual do intérprete. Cf. p. 33. José Severino Croatto faz a seguinte distinção:
“O targum é a versão do texto hebraico ou aramaico, porém com algumas liberdades hermenêuticas que
introduzem naquele atualizações imprescindíveis da mensagem. O pescher é um comentário a um texto
bíblico, versículo por versículo ou escolhendo passagens específicas. Cita-se o versículo e o comentário
começa dizendo: pesher ou pishrô, ‘explicaçao’ ou ‘sua explicação’ é... Nos rolos do Mar Morto, este
gênero literário pareceu como característico. É uma forma de releitura do texto canônico. O midrash,
conforme falamos acima, é a ampliação livre de um texto bíblico na forma de uma história nova. O
midrash é parte da literatura rabínica que remonta, senão antes, pelo menos à época de Jesus. Existem
muitos midrashim. O midrash, porém, além de ser um gênero literário, é um método hermenêutico usado
para explorar o sentido profundo de um texto bíblico. Neste nível é denominado de derash”. Cf.
CROATTO, José Severino (1986: 44-5).
93
interpretar) que aparece várias vezes em Gn 40,5-22 e 41,8-18. Neste sentido, os grandes
intérpretes de sonhos serão José, Daniel e o Mestre da Justiça (Qumran), que alcançavam a
interpretação através da revelação divina. O midrash tem o sentido de atualizar o texto; enquanto
que o pesher visa ter clareza dos cumprimentos das promessas e profecias apocalípticas. Um
Porém, com relação à hipótese do livro de Daniel ser um midrash da novela de José em
Gn 37-50, Jesús M. Asurmendi argumenta que “em Daniel não se trata em caso nenhum de
nova. A influência do Gênesis é um dos elementos, entre muitos outros, da formação dos relatos
(de Daniel) (...) O “midraxe” como gênero literário e como procedimento de interpretação não
No tocante ao sonho da estátua (Dn 2), Martin Noth parte em busca do material da
tradição que foi essencial para o apocalíptico fazer a sua análise dos impérios. São conhecidas
as referências-fontes que designam as eras mundiais pelos metais ouro, prata, bronze e ferro: de
um lado, Hesíodo e, de outro, a tradição iraniana. Com isso, vemos que o autor apocalíptico
sucessivos teve suas primeiras formulações no período persa através da obra de Ktesis (médico
do rei Artaxerxes II) sobre a história persa, dividida em três momentos: no primeiro a história do
reino assírio, depois do reino medo e, por último, do reino persa. Esta obra está conservada em
234
ASURMENDI, Jesús M. (2004: 419).
235
Cf. NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV
(1983: 82-83). Ver também HERRMANN, Siegfried (1985: 485-487): “La apocalíptica del libro de
Daniel contempla casi exclusivamente la gran historia universal y se introduce simbólicamente en Dan 7
con la imagen de los cuatro animales que surgen del mar caótico y representan los cuatro reinos. Se
trata de la reelaboración de un esquema tradicional; originalmente fue la representación de las edades
del mundo, que fue asumida por Israel y que descansa probablemente en antiguos modelos griegos
(Hesíodo) e indo-iranianos. El mismo esquema subyace en la tradición reelaborada en Dan 2, donde la
sucesión de los reinos no se representa con la presencia de diversos animales, sino con los diversos
materiales de una estatua (el “coloso de los pies de barro”)”.
94
fragmentos e, também, de maneira indireta. Isto leva a supor que o autor apocalíptico e,
posteriormente, os autores romanos, tiveram acesso a esta tradição que tratava da divisão em
Yasn ou Bahman Yasht, que combina seqüência de metais e reinos de uma maneira semelhante
a Daniel 2.237
Com relação ao outro texto de Daniel (Dn 7) que apresenta uma periodização dos
impérios, desde 1895, Hermann Günkel já apontava para o poema babilônico Enuma Elish
como material fonte para Dn 7,2-14 (Em direção parecida Maurice Casey aposta numa tradição
mitológica como fonte para o texto de Daniel). As teses de Günkel acerca das semelhanças
entre Dn 7 e o Enuma Elish não foram levadas a sério e somente com as descobertas de textos
Ugaríticos é que foram retomadas. Basta olharmos para os comentários de Anne E. Gardner239,
percepção das fontes e tradições por trás deste importante capítulo de Daniel.
236
Cf. NOTH, Martin. A concepção de história no apocalipsismo do Antigo Testamento. In: AAVV
(1983: 87).
237
Conferir as indicações de COLLINS, John Joseph (1989: 74-78).
238
Cf. COHN, Norman. (1996: 288-89).
239
GARDNER, Anne E. (2001: 244-252).
240
LUCAS, E. C. (2000: 66-80).
241
DELCOR, Mathias (1987: 133-160).
95
aponta para as seguintes semelhanças entre os dois textos: (1). em ambos há referência à
agitação do mar pela ação dos quatro ventos; (2) em Daniel 7 os animais que vêm do mar
causam perigo, e, em Enuma Elish os monstros que vêm do mar transtornam Tiamat; (3) a
relação entre Qingu e a quarto animal de Daniel (que não tem caracterização conhecida); (4) o
grande problema que enfrentam é a sobrevivência dos animais (monstruosos); (5) nos dois
textos o último animal é o mais terrível; (6) o último animal que em Daniel é morto pelo fogo é
uma referência à festa do ano Novo Babilônico; e (7) O poder que é passado para o Filho do
Homem em Daniel segue paralelo no poema de Enuma Elish ao poder que é transmitido para
Marduk.242 Há que se considerar que a frase em Dn 7,2 sugere influência direta da Babilônia —
“os quatro ventos do céu”. E numa forma mais curtas “os quatro ventos”, também aparece na
literatura Akadiana e ugarítica. Na Bíblia Hebraica encontramos esta frase somente em Daniel
(7,2; 8,8; 11,4) e em Zc 2,10; uma variante mais curta aparece em Ez 37,9 e Jr 49,36.243
Muitos autores, além de E. C. Lucas e Anne E. Gardner, apontam como fonte para Dn
7 os textos canaanitas, de modo especial, o mito de Baal e Yam. Para John Joseph Collins a
figura de “um como Filho do Homem” que vem nas nuvens é uma imagem que pode estar
associada à imagética teofânica de Baal, principalmente do Baal que nos mitos cananeus é
representado como o “cocheiro das nuvens”. De certa maneira, o autor de Daniel está muito
distante do mito cananeu, mas utiliza-o como instrumental para a leitura dos conflitos entre os
judeus e Antíoco Epífanes, justamente porque o mito gira em torno do conflito entre Baal e Yam.
econômico entre judeus e seleucidas.244 Vale salientar, que se entendermos os mitos enquanto
relatos (textos em seus diversos sentidos) que interpretam uma dada situação que o povo estava
242
GARDNER, Anne E. (2001: 247-49).
243
LUCAS, E. C. (2000: 69-70).
244
COLLINS, John Joseph (1989: 81). Ver também GARDNER, Anne E. (2001: 244-246) e DELCOR,
Mathias (1968: 290-312).
96
vivendo, na qual os seus autores se inserem, podemos dizer que os mais diferentes relatos
minorias canaanitas presente no mito de Baal ou a resistência de variados grupos nas periferias
do império babilônico produzindo a sua leitura dos mitos criacionais e diluvianos. Por isso,
devemos trabalhar com a hipótese de que, em grande parte, se apresenta nos relatos míticos
Para John Emerton tanto a figura de “um como Filho do Homem” e o “Ancião de dias”
derivam da mitologia canaanita sobre o conflito entre Baal e El. É sintomático que em Dn 1-6,
Daniel seja apresentado como homem sábio, com sua ideologia religiosa superior aos sábios da
Babilônia. Evocam, assim, a superioridade de Daniel e de seu Deus, pois são capazes de revelar
segredos e mistérios.245
Mundo Inferior). H. Kvanvig é quem propõe a relação entre os dois textos, apontando para cinco
o mitológico Apsu, as subterrâneas águas profundas, era visto como a morada de estranhas
criaturas composta de diferentes formas. Esta imagem deve ter influenciado a visão do homem
quatro animais e estes são análogos aos 15 Deuses da visão descrita no texto akádico; 3) em
ambas as visões, Deus está no trono para julgar; 4) o julgamento é visto como um ato de Deus
como juiz; e 5) o governo ideal é designado como um homem. Em suma, para Kvanvig em
ambas as visões há a aparição de criaturas híbridas, uma figura humana, um Deus em seu trono
e a cena de julgamento.246
245
J. A. Emerton. Apud. COLLINS, John Joseph (1997b: 140).
246
H. Kvanvig. Apud. COLLIS, John Joseph (1997b: 146-150).
97
Nas atas de martírio (Dn 3 e 6) percebemos, no tocante a ajuda do Deus de Israel aos
três jovens e a Daniel (adoradores fiéis) que enfrentam o perigo de morte iminente, uma forte
influência da leitura dos profetas que lutaram contra a manipulação da religião e os poderes
Parece-me que Dn 3 está muito influenciado por Is 2,1-5, elaborando uma inversão do relato
profético. Se em Daniel a estátua é colocada no vale; em, Isaías, o templo é colocado sobre os
fogo para quem não adorar a estátua), ao passo que, na profecia de Isaías as armas (espadas e
adoração ao Deus do povo por todos os povos voluntariamente e, o outro texto, fala da adoração
da alegoria da árvore em Ezequiel para os novos tempos. Porém, na descrição e ironia do que
irá acontecer com o rei (Nabucodonosor) encontramos forte paralelo na oração de Nabônides,
descoberta na gruta 4 de Qumran. Vejamos este texto e como tem estreita ligação com Daniel
4248:
247
Luis Alonso Schökel e José Luis Sicre Diaz apontam para as influências da tradição da escola de Isáias,
de modo especial, o Deutero Isaías. (1991: 1291-92).
248
O texto aparece fragmentado. Por isso encontramos os sinais de colchetes numa tentativa de
reconstrução do texto.
98
foste atingido de úlcera peri [gosa e permaneceste em] Teima, [foi sobre
a palavra de Deus. E tu,] durante sete anos, tu pedi[as diante de todos os
deuses] prata e ouro, [bronze, ferro,] madeira, cerâmica, porque [tu
pensavas] que eles [eram] deuses...”249
Um texto, escrito no primeiro século E.C., o capítulo 4 da Vida dos Profetas, vai utilizar
as imagens do capítulo 4 ao falar da vida de Daniel junto à corte de Nabucodonosor; 250 e isto
Em suma, podemos dizer que o livro aramaico de Daniel tem as suas fontes e tradições
de Israel e na literatura persa. Porém, temos que ter presente que este livro tem as marcas de
uma das chaves da literatura apocalíptica é escrever "para que os fatos não se apaguem, para
que a memória não seja varrida pelo vento" frente à desmesurada violência. Assim, esta
249
GRELOT, Pierre (1995: 41-42).
250
“Era de la tribu de Judá, de una familia que se distinguía por su servicio al rey; pero, siendo aún
infante, fue deportado de Judea al país de los caldeos. Había nacido en Bet-Jorón de arriba. Era un
hombre en sus cabales hasta el punto de que los judíos creían que era un eunuco. Se lamentó mucho por
la ciudad, y en sus ayunos se privó de todo alimento apetecible. Era un hombre de aspecto adusto, pero
embellecido por la gracia del Altísimo. Imploró mucho por Nabucodonosor, cuando se convirtió en
bestia y en animal, para que no pereciera, pues se lo pidió por favor Baltasar, su hijo. Sus partes
delanteras junto con la cabeza eran de buey; y los pies y las partes traseras de león. Al santo (Daniel) le
fue revelado, a propósito de este misterio, que se había convertido en animal por su ansia de placer y por
su obstinación. Y esto tienen de particular los poderosos, que en su juventud se ponen como el buey bajo
el yugo de Beliar y a la postre se convierten en fieras, dan zarpazos, destruyen, matan y golpean. El santo
conoció, a través de Dios, que comía hierba como un buey y se le convertía en alimento de naturaleza
humana. Por eso también Nabucodonosor después de la digestión, convertido en ser humano, suplicaba
al Señor entre sollozos pidiéndole cuarenta veces por día y noche. Entonces le sobrevenía un espíritu
animal, y se olvidava de que había sido hombre. Su lengua había perdido la capacidad de hablar. Al
darse cuuenta, se echaba a llorar. Sus ojos se ponían al rojo vivo de llorar. Y muchos salieron de la
ciudad para contemplar-lo. Sólo Daniel no quiso verlo, porque durante todo el tiempo de su
metamorfosis había estado en oración por él. Decía que se convertiría de nuevo en hombre, pero no le
creían. Daniel consiguió que los sete años – los “siete tiempos” que había dicho – se convirtieran en
siete meses. El secreto de los siete tiempos se cumplió en el rey, porque en siete meses se rehízo y los seis
años y seis meses restantes estuvo sujeto al Señor y reconoció su impiedad. Después de perdonarle su
iniquidad, le devolvió el reino. Mientras se arrepentía no comió pan ni carne ni bebió vino, porque
Daniel le había ordenado aplacar al Señor con legumbres a remojo y verduras. Por eso le llamó
Baltasar, porque había querido constituirlo coheredero junto con sus hijos. Pero el santo dijo: “Lejos de
mí abandonar la herencia de mis padres y unirme a las herencias de los incircuncisos”. Hizo también
muchos milagros para los otros reyes de los persas que no se pusieron por escrito. Murió allí y fue
enterrado solo y con todos los honores en la cueva del rey. Hizo también un presagio en las montañas
que están encima de Babilonia: “Cuando eche humo la montaña del norte, llegará el fin de babilonia;
cuando arda como un fuego, vendrá el final de toda la tierra. Pero si la montaña del sur mana agua,
volverá el pueblo a sua tierra; si mana sangure, la matanza de Beliar se extenderá por toda la tierra”. Y
el santo se durmió en paz”. Vida dos Profetas 4,1-22. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 517-18).
99
literatura figura como resistência (com os seus símbolos e metáforas) que articula a realidade
fazendo audível o inaudito e devolvendo o verdadeiro sentido de textos fechados que serviam
apenas para legitimar a grande resignação251. O livro de Daniel é uma coleção fascinante de
histórias populares sobre a resistência dos judeus numa época de colonização e diáspora252.
É quase consenso entre os comentadores do livro de Daniel que o conjunto aramaico foi
colecionado no período anterior à guerra dos Macabeus. Pelo simples fato desses capítulos não
aos conflitos armados entre selêucidas e macabeus como uma releitura do capítulo 2. Aliás, joga
toda a sua atenção para pequeno chifre que fez muitos estragos e persegue os “Santos do
Altíssimo”.
homens do trono, circularam entre o final do período persa e chegada do império grego até os
Apontaremos alguns aspectos produzidos por este livro de Daniel no imaginário popular.
Para E. C. Lucas as histórias populares (Dn 1-6) que giram em torno da interpretação de
quando do domínio persa; já as visões (Dn 7-12) sugerem o contexto dos conflitos entre os
Macabeus e o poder de Antíoco Epifânes IV.253 Ágabo Borges de Sousa sugere que os
251
DE WIT, Hans (1988: 29-47).
252
Ver DE WIT, Hans (2000: 136-152).
253
Cf. LUCAS, E. C. (2000: 66).
100
capítulos 2-6 de Daniel representam uma referência ao período exílico, enquanto “contos de
corte” que foram trazidos pelos que retornavam e serviu como uma espécie de aparato para se
A língua e a linguagem usadas no livro são de uma época tardia ao período exílico. O
texto aramaico vem de uma língua que só aproximadamente em 400 a.C. começou a surgir e
que no período dos Macabeus era a língua de comunicação comum. Além do aramaico temos no
Ágabo Borges de Sousa apresenta alguns aspectos do minucioso trabalho de Rainer Albertz,
que compara o texto da Septuaginta com o texto aramaico, chegando à conclusão de que o texto
aramaico – que é considerado a parte mais antiga do livro – está baseado em uma versão mais
antiga ainda, que originalmente teria sido “contos de corte”. Estes escritos poderiam ser a
“contos de corte” teriam sido colecionados e passados para o aramaico em um período pós-
cativeiro babilônico, sendo então retrabalhados em uma redação final mais ou menos no século
II a.C.255
Deus e que exigia do povo a fidelidade e a crença e, do outro, a Aliança, na qual o povo colabora
e é livre, porém exige fidelidade e observância.256 Podemos notar este aspecto nas inúmeras
referências aos judeus fiéis e observantes da lei no texto aramaico de Daniel (questões muito
próximas aos livros de Ester e Baruc). Assim sendo, o fracasso das instituições organizativas do
254
SOUSA, Ágabo Borges de (1998: 24).
255
Idem. pp.24-28. Conferir também: SOUSA, Ágabo Borges de (1997: 72-77).
256
Os paradoxos: gratuidade – exigência; liberdade – fidelidade e observância; graça – lei aparecem com
muita força na literatura deuteronômica e na literatura bíblica do pós-exílio. Pode soar estranho você
conjugar liberdade com observância ou graça e prática da lei; porém, na cultura de Israel e da Judéia é
algo muito comum na dinâmica da observância da Torá e na relação com Javé.
101
cativeiro, fez surgir um sentimento de que a Aliança fora quebrada, mas a promessa continuava
através da Nova Aliança criada por Deus. A exigência desta Nova Aliança é a prática e
Olhando para os projetos de reconstrução do povo depois do exílio veremos que isto não
deu certo: com Esdras e Neemias a Aliança foi sufocada pela lei; no período dos generais
Lágidas (do Egito) acreditou-se que aconteceria um processo de abertura, mas nos deparamos
com as fortes influências do helenismo, e, na época dos generais selêucidas, houve muita
Alexandre Magno, que chegou ao poder em 336 a.C., aos vinte anos de idade. Seu governo
terminou em 323 a.C. e foram treze anos que mudaram o Mundo Antigo. Quer dizer que havia
um vazio que devia ser preenchido. E foi com esta perspectiva que os generais de Alexandre
passaram a brigar pelo poder. E foi em vista deste vazio de poder, que os judeus liderados pelos
Este poder relâmpago e esta rápida difusão se deve a alguns fatores: o helenismo antes
de chegar pelas armas, veio através do comércio e das idéias, além disso, cooperou o gradativo
cansaço do império Persa (depois de mais de 200 anos de domínio estes se transformaram num
rumos da sua própria história foi crescendo no meio dos povos dominados. Porém, o que mais
suas boas estratégias e a imagem mítica que foi sendo construída durante o seu reinado.
Podemos conferir de certa maneira a descrição do poderio de Alexandre Magno nas imagens da
grande estátua de Dn 2, nos animais de Dn 7 e na grande árvore que chega aos céus em Dn 4.
102
E se atentarmos bem para essas imagens de Daniel, descobre-se que as legendas e narrativas
populares de Daniel querem descrever os impérios em declínio. Há nas entrelinhas uma leitura
A grande mudança na vida do povo foi provocada pela rápida transformação dos
costumes trazida pelo helenismo. Podemos dizer que aconteceu na Judéia uma grande crise de
De muitas maneiras a cultura helênica se espalhou pelo mundo daquele tempo. Através
gradativo dos tributos. Também esta cultura foi difundida através da criação de novas cidades
helênicas com estádios, teatros, escolas e ginásios e de uma política de favores, onde a
domínio religioso cultural, tais como, as festas e adorações). Tudo isto regado com uma boa
estrangeiras e é mais sábio do que os habitantes nativos. Eis um quadro positivo do rei bárbaro.
Pode até ser uma medida de comparação com os generais selêucidas e lágidas. Um exemplo
Este “vento novo” deve ter provocado a simpatia e a esperança daqueles cujos ideais
foram negados e ignorados pela reforma de Neemias. Igualmente trouxe tensões e conflitos
internos, principalmente a partir do ano 323 a.C., depois da morte de Alexandre, pois os seus
generais lutam pelo poder. Os generais que queriam manter a união do império saem perdendo,
enquanto que os generais-governadores das províncias que queriam dividir o bolo, saem
ganhando. Além das lutas pelo trono em Alexandria, cidade nova, a colônia judaica se abre aos
valores do helenismo. E esta tensão toma proporções mais amplas: grupos ligados à diáspora da
Babilônia na defesa de Jerusalém contra a mentalidade da diáspora do Egito, que tem o apoio
dos Ptolomeus (generais da província do Egito). Além disso, cresce a exploração, sobretudo, na
época selêucida (generais da província Síria-Babilônia), pois os reis têm necessidade de dinheiro
e roubam os templos. Isto começa a provocar uma reação progressiva nos camponeses e nas
pessoas que vivem nas regiões afastadas das grandes cidades. No capítulo 5 de Daniel
encontramos uma rápida menção à profanação dos costumes e à cultura religiosa judaica na
crítica que Daniel apresenta às ações do rei Baltazar. Aliás, a crítica do profeta resulta na
As guerras são constantes entre Síria e Egito, alternadas com tratados de paz e
casamentos. Antes de 301 a.E.C., os Ptolomeus invadiram a Judéia cinco vezes e durante a
dominação exercida por eles houve cinco guerras “Sírias”. A segunda guerra (260 a.C. a 253
a.C.) terminou com um tratado de paz e com um casamento. Talvez aqui esteja a referência à
tentativa de misturar ferro com barro ou na interpretação da visão de que a mistura do ferro com
barro seja uma tentativa fracassada de casamento conforme lemos em Dn 2. Antíoco II repudiou
a própria mulher Laodice e seus dois filhos e se casou com Berenice, filha de Ptolomeu II. Isto foi
257
HENGEL, Martin (1974: 29).
104
em 253 a.C. Mas o tratado de paz durou pouco tempo. Antíoco II e Ptolomeu II morreram quase
no mesmo tempo. Aí Laodice mandou matar Berenice e a criança e colocou o próprio filho como
rei da Síria, que é Selêuco II. Ptolomeu III declara guerra para vingar a irmã Berenice. Invade a
província (da Síria até à Babilônia) e traz de volta as imagens que foram roubadas. Daí recebe o
O povo estava vivendo a forte onda da diáspora voluntária e a saída de judeus para
lugares nos quais poderiam viver e observar as próprias tradições, costumes e lei. Podemos
elencar alguns fatores que favoreceram esse movimento de exílio: as constantes guerras desde
época de Esdras e Neemias), que, com a sua atitude intolerante para com os estrangeiros e os
Além disso, continua o exílio forçado. De um lado, as ações de Ptolomeu I (305 - 285
a.E.C.) e Seleuco I (305 – 280 a.E.C.) que promoveram muitas deportações e, de outro, continua
o constante comércio de escravos e o emprego de judeus como soldados mercenários (cf. 2Mc
8).
Uma questão ainda resta sobre este livro de legendas (Dn 2,4b-7,28): quem são os seus
autores? Qual o ambiente no qual foram produzidas tais palavras e histórias populares? Qual o
grupo político-religioso que elaborou com tamanha precisão um livro de ironias ao poder
circulava na época podemos pensar num grupo que tem amplo conhecimento. Muitos
comentadores do livro de Daniel lançam a hipótese (entre estes destaco a leitura de John
Joseph Collins) do grupo dos maskilim. Quem é este grupo e qual o seu papel e influência junto
105
ao povo no IIo século a.E.C.? ~yliyKifm. ; – vem da raiz hebraica lkf que significa:
compreender, ver, ter introvisão, perceber; tornar prudente ou ser perspicaz e inteligente; dar
entendimento; ter sucesso; agir com devoção e piedade (mostrar-se devotado).258 Indica
descritos como hm'kx. -' lk'B. ~yliyKifm. ( (maSkilim bekol hokmah) “instruídos em toda
sabedoria”. No capítulo 11, eles aparecem como um grupo que atua na instrução do povo
(população) em meio ao processo de perseguição (cf. vv.33 e 35). A instrução que eles dão é
presumivelmente a visão do mundo revelado nas profecias de Daniel. Isto demonstra que eles
os conflitos com a nova cultura e a guerra dos macabeus, não podemos imaginar somente dois
grupos judaicos opostos: de um lado a aristocracia representada pelos sacerdotes e altos oficiais
e, de outro, o grupo liderado por Matatias e pelos irmãos macabeus. São muitos grupos e
tendências.259 Os maskilim são um grupo de elite ou popular? Sua literatura e sabedoria podem
ser descritas como esotérica ou se inclina para uma leitura de classes? Podemos pensar que o
lugar social e a identidade deste grupo têm ligação com as antigas escolas de escribas que
inferem suas idéias, projetos políticos de resistência em Daniel, Henoc e outros heróis
pseudônimos; bem como, há uma mistura nos escritos apocalípticos de uma grande gama de
materiais e tradições antigas, tais como os mitos canaanitas, judaicos, mesopotâmicos e textos
ugaríticos.260
Com certeza, o grupo dos maskilim é totalmente distinto do grupo dos macabeus e
imprime toda a sua tradição nos capítulos 1-6 de Daniel. É um grupo marcado pela fidelidade à
258
AAVV. (2000: 238).
259
Ver VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004).
260
Ver COLLINS, John Joseph ( 1997b: 67-68).
106
lei em meio à grande perseguição e pela expectativa escatológica de uma grande reviravolta
CAPÍTULO 2:
capítulos. Extraindo a versão aramaica deparamo-nos com os textos escritos em hebraico que
compreendem os capítulos 1,1 –2,4a e 8,1 – 12,13. Estes textos têm, por um lado, a finalidade
de continuar os casos narrados junto à corte (Dn 2-6) e, por outro, a partir da visão de Dn 7,1-28
Esta introdução narrativa de abertura do livro de Daniel é composta por duas partes: 1,1-
judeus fiéis à tradição e à lei; enquanto que 2,1-4a introduz o relato do sonho que perturbou o
rei. Assim, ao comentarmos o sonho da estátua (Dn 2) necessariamente tivemos que acoplar
Vejamos, então, como está organizado este capítulo de abertura do livro de Daniel:
imposição ideológico-cultural do império ao relatar o recrutamento de jovens pela corte (Dn 1,3-
4) em meio à história de Daniel (Dn 1,8-9.17) e dos quatro jovens (Dn 1,6-7.17.19). Eis um texto
que tenta ler as marcas da opressão no tempo presente fazendo uma incursão no contexto de
costumes e tradições. Esta ação invasora contou como grande instrumento ideológico o
recrutamento de jovens com a finalidade de quebrar com a transmissão das tradições263. Este
recrutamento para servir ao rei no palácio segue alguns critérios: serem formosos na aparência,
palácio e sem defeito físico (1,3-4). Porém, o grande objetivo deste acolhimento é que sejam
"ensinados nas letras e na língua dos caldeus", ou seja, devem apreender uma nova cultura e
tradição. Outra marca da opressão ligada à invasão cultural consiste na mudança dos nomes. Os
seus nomes eram carregados de significado teológico e enraizados na tradição do povo: Daniel
(meu juiz é Deus), Hananias (Iahweh é benevolente), Misael (aquele que é de Deus) e Azarias
(Iahweh ajuda); agora têm outros nomes impostos pelo dominador: Beltessazar (Bel guarda a
sua vida ou Bel-shar-uçur = Bel proteja o rei), Sadraque (de língua hurrita), Mesaque (nome de
261
Vamos considerar a leitura deste capítulo dentro do conjunto do livro de Daniel, mesmo sabendo que se
trata de um capítulo acrescido posteriormente pelos redatores na compilação e junção dos capítulos 2-7 e
7-12.
262
É comum dizer que a primeira parte do livro de Daniel (Dn 1-6) se configura como uma série de
releituras desde a época persa e que servem para introduzir a segunda parte (Dn 7-12) que contém visões
apocalípticas. Porém "o autor de Daniel re-usa narrativas que na época dos persas tinha uma mensagem
transparente para a comunidade em que circulavam. O autor de Daniel redige e escreve sua obra nos
últimos anos do rei Antíoco IV (Epífanes), momento em que aparece impossível alterar a ordem reinante,
como se vê pelos capítulos 7-12 do mesmo livro". Ver DE WIT, Hans (1988a: 31). As narrativas dos
capítulos 1-6 de Daniel quase podem ser lidas como narrativas independentes e revelam grande
conhecimento dos costumes mesopotâmicos na época persa. Ademais, encontramos nestes relatos tanto
em aramaico quanto em hebraico a formulação de termos próprios do mundo persa, o que nos faz crer que
estas narrativas não são anteriores ao amplo domínio persa. Os nomes gregos dos instrumentos musicais
no capítulo 3 (vv. 4.7.10 e 15) sugerem um período posterior ao processo de helenização (mesmo que seja
ao redor ou um pouco antes do grande poderio de Alexandre Magno).
263
Vale salientar que um dos belíssimos textos da sabedoria que apresenta a oposição entre os projetos da
casa (clã) e a invasão cultural é Provérbios 1-9.
109
um povo localizado na Ásia Menor) e Abednego (servo de Nabu). A mudança dos nomes implica
perda de identidade.
Neste capítulo a ironização ao poder está no fato de Daniel e seus companheiros não se
enquadrarem no projeto do rei, não comerem da porção do manjar do rei e serem dez vezes
mais conhecedores que os astrólogos e magos. Pois, "a estes quatro jovens Deus deu o
todas as visões e sonhos" (v.17). Permanecem fiéis, não aceitam a submissão e a dominação.
Quando o mundo todo se dobra diante do dominador, Daniel e seus companheiros não aceitam
Podemos imaginar que este capítulo de abertura do livro de Daniel quer alimentar a força
helênica. Nesta perspectiva, a narrativa de Daniel diante das ordens do rei evoca a resistência
do povo através da arte de driblar as ordens do opressor (Dn 1.12). Cabe neste fortalecimento
da resistência que o texto quer apresentar para o povo a altercação sobre a função social da
religião ou da teologia obstinada do justo fiel. Daniel e seus companheiros representam uma
caminho e busca da justiça. Nesta perspectiva entendemos o porque os nomes de Daniel e seus
companheiros estão carregados de teologia em seu significado. Por fim, não podemos esquecer
que a resistência do povo, que tem como uma das bandeiras a luta para instaurar a justiça,
Este livro das visões265 compreende três partes que estão interligadas e apresentam
264
ANDERSON, Ana Flora e GORGULHO, Gilberto (1991: 100-101).
265
As visões não são novidades nos textos da Bíblia Hebraica se compararmos com os textos proféticos
(cf. Is 6; Jr 1 e 24; Ez 1-3 e 8-11; Am 7-9; Zc 1-8 entre outros). Porém, aqui no livro de Daniel, além de
caracterizar a experiência de um determinado grupo social e comunitário, representa uma forma de
110
interpretação feita pelo anjo Gabriel; no capítulo 9 encontramos rezas e releituras das palavras
visionário, que se encontra em 10,1 – 12,13. Vejamos estas três partes do livro das visões.
A – INTRODUÇÃO – vv.1-2
1. Cronologia: v.1
2. Indicação do lugar da visão: “E vi na visão... eu estava na cidadela de Susã”: v.2
3. Outra indicação de lugar: “vi, pois na visão... eu estava junto ao rio Ulai: v.2
comunicação com um mundo extra-humano ou divino. Podemos perceber no livro de Daniel três aspectos
fundamentais que o diferencia das visões proféticas: primeiro, a presença de um anjo intérprete que
apresenta para o vidente a compreensão da visão; segundo, a mensagem da visão vai para além de uma
imediaticidade; e, terceiro, uma linguagem carregada de simbolismo e miticismo. Ver ASURMENDI,
Jesús M. (2004: 421-22).
111
Numa leitura rápida podemos ver que este capítulo tem uma estrutura bem simples: uma
revelação (vv.15-26); e a conclusão do relato (v.27). Podemos notar uma mesma base estrutural
para os capítulos 7 e 8, o que demonstra uma visão dependente do capítulo 7.266 A introdução
do relato já aponta para esta relação: “depois daquela que me apareceu no princípio”. Assim, a
visão é descrita dentro de uma progressão. Primeiro a imagem do cordeiro que crescia de
maneira magnífica; depois o bode que também crescia. Na seqüência da visão do bode,
A grande marca deste texto está no v.16 ao utilizar a palavra ha,r( M> ; / mar´è para
designar visão e não a palavra usual !Azx' (Dn 8,13.15.17 e 26). Percorrendo a Bíblia Hebraica
encontramos poucas referências que utilizam a palavra ha,r( M> ; para descrever visão: Gn 41,4;
Ex 3,3; 1Sm 3,15; Ez 11,24; 41,21; 43,3; Dn 8,16.27 e 10,7.8.
Não podemos afirmar que a visão de Dn 8 seja um sonho, porém pelos seus elementos
espírito para junto ao rio Ulai tem um paralelo com as narrativas do livro de Meditação profética
266
Ver REID, Stephen Breck (1989: 93-94). O autor apresenta os seguintes aspectos da estrutura do
capítulo: (1) uma introdução para a revelação (v.1-2); (2) uma alegoria em forma de animais (v.3-12); (3)
uma audição (v.13-14); (4) uma interpretação da revelação por meio de uma hierofania (v.15-19); (5) uma
profecia dinástica (v.20-25); e (6) um pós-escrito (v.27).
112
de Ezequiel.267 Para Louis F. Hartman não é seguro que o termo hebreu ´ûbal deva traduzir-se
por “rio”; quiçá deva ler-se ´äbûl e ser traduzido por “porta da cidade” (originário do acádico
Podemos perceber também que esta visão do livro de Daniel utiliza material alegórico e mítico.
Um exemplo é a epifania do anjo interpretador, que, aliás, aparece de maneira mais elaborada
no capítulo 10 e em Ezequiel 8.
outros textos que estão na dependência ou que influenciam a sua elaboração. Um primeiro texto,
texto aramaico para o texto hebraico. Outra influência vem do livro de Ezequiel, seja na imagem
semelhança humana; bem como no termo que é utilizado para se referir à figura do profeta, que
é usada amplamente no livro de Ezequiel: ~d'a-' !B, – “filho do homem”.270 A terceira influência
vem da profecia do “tempo do fim” de Habacuque 2,3. Nesta perspectiva entendemos porque Dn
8,17 e 19 utiliza os termos !Azx'; ha,r( M> ; e #q sugerindo que a visão está inserida dentro do
“tempo do fim”.
267
Daniel é transportado em visão para a cidadela de Susã (Shushan), a residência de inverno do rei
Dario, no distrito de Elam (cf. Nee 1,1 e Est 1,2). É provável que este transporte ação esteja imitando
Ezequiel (Ez 8,3 – 11,24; 40,2s; cfr. Ap 17,3), vale observar ainda que Daniel se encontra junto ao rio
Eulaeus [Ulai] (cf. 10,4; 12,5; Ez 1,1; Gn 41,1). Ver a propósito HEATON, E. W. (1956: 192).
268
HARTMAN, Louis F. (1971: 315).
269
ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE DIAZ, José Luis (1991: 1317).
270
Ver Ez 2,1.3.6.8; 3,1.3.4.10.17.25; 4,1.16; 5,1; 6,2; 7,2; 8,5.6.8.12.15.17; 11,2.4.15; 12,2.3.9.18.22.27;
13,2.17; 14,3.13; 15,2; 16,2; 17,2; 20,3.4.27; 21, 2.7.11.14.17.19.24.33; 22, 2.18.24; 23,2.36; 24, 2.16.25;
25,2; 26,2; 27,2; 28,2.12.21; 29,2.18; 30,2.21; 31,2; 32,2.18; 33,2.7.10.12.24.30; 34,2; 35,2; 36,1.17;
37,3.9.11.16; 38,2.14; 39,1.17; 40,4; 43,7.10.18; 44,5 e 47,6.
113
Nos versículos 17-18 podemos perceber a costura de três diferentes tradições: Primeira,
a resposta por meio de uma hierofania do encontro e confrontação entre Daniel e o anjo Gabriel
(há paralelos em Ez 1,28; 2,1; 43,3); segunda, a figura do “filho do homem”, evidentemente,
diferente daquela apresentada em Dn 7 (vn"a/ rb:) representa de certa forma a categoria dos
“Santos do Altíssimo”; enquanto que neste capítulo o “filho do homem” (~d'a-' !B,) é uma
A partir dos verbos279 que aparecem nestes três versículos podemos notar o tom irônico
e estilizado empregados para tratar de Antíoco IV Epífanes. A descrição do rei como tendo rosto
271
REID, Stephen Breck (1989: 96-97).
272
tyrIxa] ; - fim, resultado. Tem um tom escatológico como “fim dos dias” (cf. Gn 49,1; Nm 24,14; Dt
4,30.31; Is 2,2; Jr 23,20; 30,24; 48,47; 49,39; Ez 38,16; Os 3,5; Mq 4,1; Dn 8,19.23; 10,14; 12,8). Ver
KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 33).
273
~mT verbo hiphil infinitivo construto: completar, terminar, acabar (cf. Is 33,1). Idem., p.1032.
274
~ynIPß -' z[; - 1.rosto forte, poderoso; 2. rosto feroz, violento, furioso, ameaçador, raivoso, insolente,
impudente e atrevido. (cf. Dt 28,50 e Dn 8,23). Idem., p.692.
275
lk,f, – Discernimento, compreensão clara e prudência. Idem., p.922.
276
hm'rm> i – engano, fraude, falsidade, dolo, engodo (cf. Gn 27,35; 34,13; Is 53,9; Jr 5,27; 9,7; Os 12,1; Sf
1,9; Sl 5,7; 17,1; 34,14; 36,4; 43,1; 50,19; 55,12.24; 109,2; Pr 12,5.17; Jó 15,35; 31,5; Dn 8,25; 11,23).
Idem., p.567.
277
hw"lv. ; – bem-estar, tranqüilidade, sossego. Usado também para indicar prosperidade e viver em
segurança.
278
rbv verbo niphal: ser quebrado, destruído, feito em pedaços, enfraquecido. Idem., pp.944-945.
114
feroz só aparece duas vezes na Bíblia Hebraica (Dn 8 e Dt 28,50), o que sugere que o autor
utilizou a tradição deuteronômica para estilizar o rei Antíoco. Segundo Stephen Breck Reid o
termo ~ynIP-' z[; também descreve uma pessoa (ou pessoas) que é (são) inaceitavelmente
cruel (cruéis). Nesta perspectiva devemos ver os crimes de Antíoco de maneira ampla, pois a
sua insolência é um crime teológico associado à blasfêmia, porém ao estar ligado também à
Este apocalipse pode ter existido isoladamente e a sua principal temática é a profanação
do lugar sagrado. O panorama é desolador, pois o tirano tem sucesso e rapidamente o projeto
dos justos desmorona. Mesmo que o tirano tenha cara feroz e seja violento, o apocalipse de Dn
8 retoma a imagem da pedra sem mão que destrói a estátua (Dn 2) para dizer que o tirano
chegará ao fim sem intervenção humana. E a esperança apocalíptica é de que esse tempo não
A visão do carneiro (vv.3-4) que tinha dois chifres e dava chifradas para o ocidente e
para o norte e “não havia quem pudesse livrar-se da sua mão”282 é interpretado pelo anjo no
v.20 como representando os reis da Média e da Pérsia. O bode (vv.5-12) com os seus chifres e
que engrandeceu fortemente é interpretado nos vv.21-25 como sendo o poder grego chegando
Eis que um carneiro estava diante do rio, o qual Aquele carneiro que viste com dois chifres são
tinha dois chifres... (v.3-4) os reis da Média e da Pérsia (v.20)
Eis que um bode vinha do ocidente sobre toda O bode peludo é o rei da Grécia; e o chifre
a terra... tinha um chifre notável entre os olhos grande que tinha entre os olhos é o rei primeiro
279
Levantará (2 vezes), fortalecerá, destruirá (três vezes), aumentará (duas vezes), fará, engrandecerá e
quebrará.
280
REID, Stephen Breck (1989: 98-99).
281
Ver DE WIT, Hans (2000: 142).
282
Em Dn 3,15 o rei questiona os três judeus que se recusam a adorar a estátua questionando que não
existe Deus que possa livrá-los de sua mão (yd'y( -> !mi !Akßnb> zi y> vey( > yDeî Hl'a/ aWhå-!m;W E quem é o Deus que poderá
livrá-los de minha mão?) e em Dn 8,4 ninguém conseguia se livrar da mão do carneiro (Ad=Y"mi lyCim; !yaew> - E
não existe quem possa livrar-se de suas mãos).
115
(v.5) (v.21)
Aquele grande chifre foi quebrado e subiram no O ter sido quebrado, levantando-se quatro em
seu lugar quatro também notáveis, para os lugar dele, significa que quatro reinos se
quatro ventos do céu (v.8) levantarão da mesma nação, mas não com a
força dela (v.22)
E de um deles saiu um chifre muito pequeno, o No fim do seu reinado... se levantará um rei,
qual cresceu muito... até ao exército do céu... e feroz de cara... e se fortalecerá sua força e
se engrandeceu até ao príncipe do exército, e destruirá maravilhosamente e prosperará e fará
por ele foi tirado o contínuo sacrifício e o lugar o que lhe aprouver e destruirá os fortes e o
do seu santuário foi lançado por terra... (v.9-12) povo dos santos... e na tranqüilidade destruirá
muitos e sobre príncipe dos príncipes se
levantará e no fim mão o quebrará (v.23-25)
Esta visão orienta os leitores e ouvintes para o momento presente ou para a conjuntura
que estavam vivendo. Na descrição do pequeno chifre que se engrandeceu até o príncipe do
exército (ab'Ch
' -; rf:)) o (s) autor (es) quer com este termo tratar dos confrontos entre os
exércitos de Antíoco IV Epífanes e o dos Macabeus. Aliás, o termo hebreu rf, usado muitas
vezes na Bíblia Hebraica, designa: capitães, chefes (Nm 21,18; 1Sm 22,2), vassalos, nobres e
oficiais do rei com funções de administradores e conselheiros (Gn 12,15; 1Rs 20,14-17),
soberanos e magistrados de alguma região (2Cr 32,31) ou administradores de uma cidade (Jz
9,30; Nee 7,12); comandantes (Gn 21,22.32); chefes (cabeça, líder) de um grupo ou oficiais (Nee
4,10; Sl 68,28; Dn 1,7-11.18) e até mesmo para designar líderes com função religiosa (Esd
8,24.29; Is 43,28) ou pessoas com elevada condição econômico-social (Sl 45,17; Is 23,8). Como
podemos ver, este termo tem um uso muito diversificado. No entanto, em grande parte das
referências bíblicas, sar é preferencialmente aplicado aos comandantes militares. Vale salientar
que na linguagem apocalíptica este termo muitas vezes se refere aos poderes de oposição a
Deus.283
trezentas tardes e manhãs e o santuário será purificado – v.14), que para muitos intérpretes
283
Ver KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 929-930), PLÖEG, J. van der. “Les
chefs du peuple dIsraël et leurs titres”. Revue Biblique 57 (1950), p.40 e SHEA, William H. (1983: 225-
249). Sobre a constituição dos exércitos em Israel ver o livro de Carlos Artur Dreher. A constituição dos
exércitos no Reino de Israel. São Leopoldo/São Paulo: Editora Sinodal/Paulus, 2002.
116
setembro de 167 a 14 de dezembro de 164), o que indicaria que a composição deste texto tem
como data a dedicação do altar reconstruído e purificado.284 Assim, o “tempo do fim”, não trata
da descrição de um fim do mundo, mas do fim do tempo de provação à qual o culto dos judeus
I - Introdução (vv.1-2)
Data: primeiro ano de Dario – v.1
O tema: a leitura da profecia de Jeremias – v.2
Muitos autores consideram a oração (na primeira parte deste capítulo: vv.3-19) como um
acréscimo realizado no período da compilação final do livro, pois demonstra algo fora do
contexto das visões de Daniel, além disso, o início e o final da oração são marcados por
284
GRELOT, Pierre (1995: 51).
285
SCHMIDT, Werner H. ( 2002: 280-1).
117
duplicações que emolduram a oração (vv.3-4a e 20-21a).286 Uma outra possibilidade consiste
que o autor quis introduzir a revelação do anjo Gabriel ao lado da oração de Daniel (v.4-19) e da
vergonha do povo fazem a costura desta oração de confissão. Lendo atentamente esta oração
especial, percebemos um grande paralelo com a oração que aparece no livro de Baruc.288
Colocando as duas orações num quadro comparativo perceberemos que elas têm
muitas semelhanças. Não dá para saber qual oração influenciou a outra. No entanto, o
importante é termos ciência que as orações de súplica tinham grande circulação entre o povo
e, também, perceber que não se trata simplesmente de uma mera cópia. Tudo indica que a
tradição apocalíptica de Daniel e a tradição profética de Baruc beberam de uma mesma fonte.
Estas duas orações têm um nascedouro comum, porém, têm leitores, rezadores e ouvintes em
286
HARTMAN, Louis F. (1971: 317). Sugere que os v.3-19 de Dn 9 representam o trabalho de um
escriba que encontrou a possibilidade de inserir uma antiga oração, escrita num hebraico muito melhor do
que aparece no restante do livro; bem como não é a oração de um indivíduo, mas de toda uma
comunidade e, além disso, não contém uma só petição para iluminar a compreensão da profecia de
Jeremias, que o tema do capítulo.
287
COLLINS, John Joseph (1984: 90-91).
288
Sobre a oração do livro de Baruc veja SILVA, Rafael Rodrigues da (2003: 45-60). Os dois textos
seguem a tradução da Bíblia Edição Pastoral.
289
Idem. pp.46-47.
118
Esta oração (Dn 9,4b-19) tem uma estrutura bem simples que entrelaça a partir de
Escrituras para lembrar o passado e insiste para que Deus dê ouvidos ao suplicante e o
perdoe. Assim:
dos erros do povo ao não cumprir os mandamentos e a lei. Assim, temos as lembranças do
passado e o desejo que Deus possa dar ouvidos ao pedido de súplica da comunidade orante.
290
Cf. DE WIT, Hans. (1990:184).
120
v.14: Por isso o Senhor vigiou sobre o mal; porque justo é o Senhor nosso Deus
v.15: Na verdade, ó Senhor, nosso Deus, que tiraste o teu povo da terra do
Egito...
vv.16-19: Ó Senhor, segundo a tua justiça, aparta-se a tua ira e o teu furor da tua
cidade
Agora pois, ó Deus nosso, ouve a oração do teu servo e as suas súplicas
Inclina, ó Deus meu, os teus ouvidos; e ouve
Ó Senhor, ouve; ó Senhor, perdoa; ó Senhor, atende-nos...
“Ah,agora! Senhor, ó Deus grande e que inspira temor que cuida a aliança e a
solidariedade para com os que te amam e cuidam os teus mandamentos” (v.4b). Estas palavras
abrem a oração apresentando três imagens teológicas que circulavam na tradição de Israel.
Primeira, o Deus que é lAdG" – grande, em geral utilizado para descrever crescimento físico,
Deus, quer se referir na maioria das vezes, à grandeza de Deus (veja 2Sm 7,22) e até mesmo
guarda caráter messiânico (podemos conferir em Mq 5,4 a descrição que o messias será grande
até os confins da terra).291 Este é um atributo teológico muito freqüente nos Salmos e Hinos da
Bíblia Hebraica. Segunda imagem teológica: Deus é ar'AN – verbo ary no niphal que atribui à
divindade o caráter de “ser terrível”, “o temido”, “aquele que causa espanto, temor, medo”.
291
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 247-48).
121
Muitas vezes, associado a Javé quer indicar aquele que causa grande surpresa, espanto ou
observar, prestar atenção; 293 o sinônimo mais próximo é rcn: vigiar, guardar, cuidar, esconder
e resguardar294. E dois são os objetos deste cuidar e guardar: a tyrIB. / aliança, pacto e a
ds,x, ( hesed: solidariedade, bondade amorosa, misericórdia). Estes dois substantivos tem o
seu principal uso em Dt 7,9.12 e encontramos os seus ecos em 1Rs 8,23; 2Cr 6,14; Nee 1,5;
9,32 e Dn 9,4 e “caso este par de vocábulos seja traduzido por ‘amor da aliança’ ou ‘aliança e
amor’, deve-se lembrar que o amor está por trás da aliança. Essa idéia é ilustrada por Jeremias
2,2, onde a hesed que Israel demonstrou na sua juventude é comparada ao amor de uma
noiva”.295
visionária (mágica e curandeira) representada por Elias e Eliseu apresenta a luta por justiça
inteiro/paz). Basta acompanharmos nas narrativas de Elias (1Rs 17-21 e 2Rs 1-2) a luta contra
292
Idem. pp.654-57.
293
Idem., pp.1587-88.
294
KOEHLER, Ludwig e BAUMGARTNER, Walter (1985: 631).
295
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 499-503). O texto citado
é da p.502.
296
A justiça (hqdc [sedaqah]// vem da raiz qdc [sedeq = sdq]) aparece muitas vezes entrelaçada com a
prática do direito (jPvm [mishpat]// vem da raiz jPv [shapat]). A mishpat quer exprimir o direito e ao
mesmo tempo pode simplesmente designar a prática da justiça. A mishpat muitas vezes aparece
relacionada aos julgamentos e às sentenças dos juízes; enquanto que a sedaqah em alguns momentos quer
indicar equidade nos julgamentos. Na tentativa de evitar confusões entre estes dois termos caros para a
profecia, para a sabedoria e para as leis na Escritura hebraica é que muitos estudiosos buscam definir
sedeq como ordem justa e sedaqah como comportamento reto ou retidão. Assim, é preciso desprender o
significado de justiça e direito dos conceitos de aliança, fidelidade e salvação para uma compreensão de
cunho mais social.
122
os profetas de Baal, o conflito com Acab e Jesabel e a sua crítica ao projeto assassino do
palácio diante do projeto clânico de Nabote (cf. 1Rs 21). As narrativas de curas ao redor de
Eliseu apontam para denúncias de dívidas, fome e guerras. São os profetas radicais do oitavo
século em diante que travam uma luta incessante contra os abusos do poder, a degradação
(~ymixr
] ; raHámîm) que vem da raiz ~xr (raHám e reHem: ventre e útero); indicando,
Bíblia hebraica é utilizado como referência a Deus.300 Do mesmo modo, a compaixão está
(contra) o mal” (v.14). O verbo dqv (šaqad) “possui cognatos tanto em fenício quanto em
siríaco. Às vezes šaqad e šamar, “guardar”, “vigiar”, se sobrepõem, e são usados lado a lado.
Neste último verbo recai sobre a atenção diligente e sobre a ação de preservar, enquanto que
o povo praticou a iniqüidade, agiu injustamente e se apartou dos mandamentos, ao não dar
ouvidos à palavra dos profetas. A oração chama a atenção para o povo que não andou nas leis
297
Para Sicre Diaz as virtudes exigidas pelos profetas aparecem numa clara contraposição à opressão em
defesa das vítimas da injustiça e na denúncia dos responsáveis pela injustiça. SICRE DIAZ, José Luis
(1996: 357-380).
298
Conferir a reflexão apresentada por Crossan: “O caráter de seu Deus”. CROSSAN, John Dominic
(2004: 605-616).
299
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1417-20).
300
Idem., pp.1044-45.
301
Idem., pp.1610-11.
123
de Javé, ou seja, não se guiou pelos caminhos da Torá. Eis o sentido que a oração quer dar para
a “confusão de rosto” (v.7 e 8). Notemos que no texto de Baruc, aqueles que terão a confusão de
rosto são nomeados como: homens de Judá, habitantes de Jerusalém, e a todo o Israel (os de
perto e os de longe), reis, príncipes e nossos pais (cf. vv.7-8). De certa maneira, neste momento
o povo não conhece mais reis nem príncipes, pois desde o exílio da Babilônia, Judá não existe
como Nação; e, agora, a Judéia não passa de um distrito pertencente a uma das províncias do
império helênico. No entanto, quem está reproduzindo esta oração conhece muito bem as
autoridades locais que estão a serviço dos dominadores sírios (selêucidas) e egípcios
(ptolomeus).
Jeremias (Dn 9,2) e que está presente na palavra do anjo (vv.24-27). Vejamos alguns detalhes
desta releitura.
Daniel 9,24-27 faz parte do conjunto da resposta do anjo Gabriel para Daniel,
evidentemente relacionada com o v.2: “eu, Daniel entendi pelos livros que o número de anos, de
que falou Javé ao profeta Jeremias, em que haviam de acabar as assolações de Jerusalém, era
de setenta anos”. Como vimos, anteriormente, esta palavra do anjo aparece depois de uma
longa oração de penitência e súplica de Daniel (vv.3-19). É interessante notar, a partir deste
versículo, que o autor do livro hebraico de Daniel ou deste capítulo, conhece um conjunto de
utilizados por Daniel para que possamos entender as palavras (rbd) da profecia de Jeremias.
Outro fator importante, é saber onde estão estas palavras de Jeremias acerca da profecia dos
124
setenta anos. Dois textos em Jeremias provavelmente serviram de referência para a releitura
302
Ver comentário de COLLINS, John Joseph (1984: 89-96) e PIERCE, Ronald W. (1989: 211–222).
303
Algo horrível, algo aterrador, algo apavorante, algo terrível (dito da devastação); pavor,horror,
assombro, pasmo, espanto. Cf. AAVV. (2000: 255). Ver também a definição de Hermann J. Austel. In:
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1583): “O livro de Daniel
traz quatro passagens que empregam a forma polel do verbo meshomëm e shômëm). Aqui há uma força
causativa (ou melhor, factitiva) semelhante ao uso do hifil, com a diferença de que o hifil geralmente
envolve uma devastação física, ao passo que o polel aparentemente ressalta o fato de que alguém
profanou o santuário ou altar, desse modo deixando-o imprestável para a adoração e o serviço a Deus.
Essas passagens são Daniel 8.13; 11.31; 9.27; 12.11”.
304
Estar cheio de; de dias: completar-se, cumprir-se, estar no fim.
305
rebelar-se, transgredir, revoltar-se.
306
Este verbo no qal pode significar: fazer verificar/ chamada, verificar, inspecionar, recrutar, passar em
revista, examinar, pesquisar, visitar, procurar, preocupar-se com, castigar, vingar, guardar
307
“Este verbo aparece apenas no grau passivo (nifal) e somente em Daniel 9,24, a famosa passagem das
“70 semanas”. Em hebraico rabínico a raiz htk tem o significado básico de “cortar”, daí a tradução
“decretar”em várias versões”. Robert L. Alden. In: HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e
WALTKE, Bruce K. (1998: 551).
308
Verbo hifil: erguer, levantar, pôr de pé, colocar, estabelecer; cumprir, executar; mandar ou fazer
levantar; sustentar (de pé), manter; comissionar, designar, confiar uma tarefa; providenciar. Cf. AAVV.
(2000: 212-13).
125
criativamente a profecia de Jeremias acerca dos setenta anos de exílio. Na sua releitura busca
a.E.C. profanado por Antíoco IV Epífanes. “Através de um cálculo engenhoso (uma espécie de
pésher, que conhecemos tão bem da exegese judia) o autor do cap. 9 chega ao ano 164 aC, o
profética o autor esteja utilizando um jogo de palavras. Por exemplo, em 9,27: ~mev( (sömëm)
pode estar relacionado com Baal Shamem (“Deus dos céus”, Deus sírio identificado com Zeus)
que foi colocado no altar do templo de Jerusalém. Assim, na opinião de Pierre Grelot, Baal
312
Dádiva, presente; respeito, veneração; agradecimento, homenagem; amizade (política); tributo; oferta;
sacrifício; oferta de manjares, oferenda. AAVV. (2000: 131).
313
Este verbo no nifal tem o significado de: questão / aniquilação / destruição decidida, fim decidido.
AAVV. (2000: 78).
314
Ou desolação.
315
DE WIT, Hans (2000: 143).
316
“Em três lugares, com expressões ligeiramente diferentes, o livro de Daniel refere-se à “abominação
da desolação”... instalada pelo rei perseguidor sobre o altar do Templo (Dn 9,27; 11,31; 12,11). O
primeiro livro dos Macabeus menciona esta profanação com frase tomadas de Daniel (1Mc 1,54). Mas
2Mc 6,2 precisa que o Templo é assim dedicado a Zeus (Júpiter) Olímpico, cuja estátua é erigida sobre o
altar. Zeus Olímpico é identificado ao ídolo siríaco Baal Shamem, “O Baal dos céus”, com um jogo de
palavras sobre Baal shamem e shiqquç meshomem (Dn 9,27)...”. GRELOT, Pierre (1995: 55). Schökel e
Sicre Diaz vão na mesma linha de interpretação e concluem que este jogo pode ser uma zombaria aguda
daquele que se intitulava manifestação de Deus = epiphanes. ALONSO SCHÖKEL, Luis e SICRE
DIAZ, José Luis (1991: 1328).
127
texto acerca da restauração do Santo dos Santos e o desejo de que aconteça o fim das
estes estão emoldurados pelo tema da justiça; por exemplo, no capítulo 91,1-11 + 18-19
apresenta uma fala de Matusalém para os seus filhos sobre a justiça e no capítulo 92,1-5 há
menção ao livro escrito por Henoc e à evocação da imagem de um Justo que se levantará do
sonho e andará por caminhos de justiça e todo o seu andar será na trilha do bem e na clemência
eterna. E, após o Apocalipse das Semanas, o autor apresenta um capítulo de exortações, que
iniciam da seguinte maneira: “Agora, vos digo, filhos meus, amai a justiça e andai por ela, pois os
desaparecem” (94,1).
forma de midrash ou pesher de Jr 25,11-12 e 29,10; bem como o esquema das setenta semanas
de anos provavelmente é sugerido pelo sistema do ano sabático presente no Levítico 25, que
estipula um ano jubilar depois das sete semanas de anos. Klaus Koch entende que este número
extrapola se levarmos em conta a história de Israel. Por exemplo, se partirmos do êxodo até a
construção do templo teremos uma somatória de mais ou menos 480 anos e, daí até a
destruição do templo e de Jerusalém (no período do exílio), atingimos cerca de 430 anos.
Contudo, o tempo total do êxodo até a restauração do templo e de Jerusalém, tem a soma de
980 anos. Daí as especulações sobre a divisão da história em dois momentos de 490 anos.317
Vale salientar que Daniel converte os setenta anos de Jeremias em setenta semanas de anos,
dando um total de 490 anos, onde cada semana corresponde a um período de sete anos.
Podemos dizer que o autor do capítulo 9 de Daniel atualiza uma antiga profecia e não tem a
317
E. W. Heaton apresenta a seguinte sugestão na contagem dos 490 anos: (1) 7 semanas = 49 anos, de
586 a 538 (v.25); (2) 62 semanas = 434 anos, de 538 a 171 (v.25s); (3) 1 semana = 7 anos, de 170 a 164
(v.27) compreendendo: (a) meia semana = 3 anos e meio, de 170 a 167; (b) meia semana = 3 anos e meio,
de 167 a 164”. (1956: 210).
128
Hans de Wit na sugestão que apresenta para a interpretação dos cálculos de Daniel319,
Segundo De Wit, Livro de Daniel tem a intenção de dizer para a sua comunidade e os grupos
sociais que leram e receberam este texto (em meio a um período de perseguições) de que o
No entanto, John Collins afirma que este midrash se insere numa periodização sob a
forma de prophetia ex-eventu, onde a história passada e conhecida é anunciada como futura e
que o autor de Daniel desenvolveu independentemente o seu esquema das setenta semanas.320
A intenção do autor consiste em decretar o fim das transgressões e das iniqüidades através do
esquema das setenta semanas. Basta atentarmos para a utilização do termo ~[;Z" (zä’àm :ira,
indignação) no livro hebraico de Daniel: Dn 8,19 e 11,36. Este termo, usado de maneira diferente
Agora, temos na última parte (seção) do livro hebraico de Daniel uma mescla entre
318
Exemplos de leituras posteriores aparecem na tradição judaica que tenta aproximar as setenta semanas
à conjuntura da destruição do Templo de Jerusalém pelos romanos no ano 70 E.C. Também na tradição
cristã, muito se aplicou esta simbologia ao processo da morte de Jesus.
319
Cf. DE WIT, Hans. (1990: 188-89). “1. As primeiras sete semanas (49 anos) abarcam o período 587
a.C. (destruição do templo) até 538/7 a.C. (a chegada a Jerusalém do sumo sacerdote Josué, o “messias,
o “ungido” – no texto). Aqui o ponto de partida é o ano 587. 2. As sessenta e duas semanas (434 anos)
abarcam o ano 605 a.C. (momento em que Jeremias profetiza sobre os 70 anos) até o ano 171 a.C.
(momento do assassinato do sumo sacerdote Onías III, “o ungido inocente” do verso 26). O ano 605 é o
segundo ponto de partida. 3. A última semana abarca 171 a.C. – 164 a.C., é a época em que (Antíoco)
fará aliança firme com, ou segundo dizem outros comentaristas, contra muitos... Uma semana inteira, 7
anos (171-164) será tempo de cataclismo, guerra e destruição. 4. Na última metade desta semana (168/7
a.C. – 164 a.C., - três anos e meio -, se fará cessar o sacrifício e será posto o ídolo abominável no templo
(verso 27). No ano 164 a.C. o templo será purificado e inaugurado”. Ver também COLLINS, John
Joseph (1989: 86-87).
320
COLLINS, John Joseph (1984: 91-2).
129
I – INTRODUÇÃO – 10,1
Cronologia: no terceiro ano de Ciro, rei da Pérsia
Tema: foi revelada palavra a Daniel... e teve entendimento da visão
II – VISÃO E EPIFANIA DO ANJO – 10,2-9
III – DIÁLOGO COM O ANJO – 10,10 – 11,1
IV – DISCURSO DO ANJO – 11,2 – 12,4
V – CONCLUSÃO: VISÃO SOBRE O TEMPO DO FIM E INSTRUÇÕES PARA O
VISIONÁRIO – 12,5-13
Tomando como base uma proposta de estruturação de Hans de Wit, podemos visualizar
321
DE WIT, Hans (1990: 194-95). O autor utiliza o martírio e as dores/angústias dos que estavam
sofrendo perseguições e ultrajes como chave de leitura para o capítulo 10 de Daniel.
A – A PALABRA TERRÍVEL É CERTA (10,1)
a: Recepção da palavra (10,2-4)
a’: Figura celestial majestosa (10,5-6)
b: Daniel fica só, enfermo, em letargia (10,7-9)
b’: Figura celestial que o levanta e lhe diz: Eu luto também (10,10-14)
B– c: Daniel (todavia) mudo (10,15)
c’: Figura celestial que lhe toca a boca (10,16a)
d: Angústia, Daniel está “sem alento”(10,16b-17)
d’: Figura celestial que o conforta e lhe diz: “não temas” (10,18)
e: Daniel recobra forças (10,19)
e’: Figura celestial: Eu luto também (10,20)
A’ – A PALAVRA ESTÁ ESCRITA NO LIVRO DA VERDADE (10,21)
130
reinado de Ciro, rei da Pérsia. Na segunda parte deste primeiro versículo, temos o cerne desta
seção: a palavra (rb'D)' revelada a Daniel, que é palavra verdadeira sobre uma guerra grande
(lAdg" ab'c'); porém, o entendimento desta palavra se dará mediante uma visão (ha,r( M> ); . O
autor parece dizer que a única maneira de compreender a palavra é vendo-a. Ou seja, somente
aqueles que conseguem vê-la entenderão a visão e serão capazes de compreender as palavras
sobre a guerra322, provavelmente, uma alusão às guerras helenísticas que serão o assunto de
Dn 11,5-45. Ou, talvez seja a leitura deste apocalipse em meio aos confrontos militares que
Os vv.2-4 descrevem o lugar e o estado em que se encontra Daniel: triste por três
semanas e sem comer (prática de jejum). No dia 24 do primeiro mês, Daniel se encontra à borda
do grande rio Hidequel (Tigre). A data mencionada faz alusão à grande festa da Páscoa e dos
Ázimos, no mês de Nisã. E Daniel, a exemplo do profeta Ezequiel, encontra-se junto ao rio. O
jejum pode ter duas conotações: preparação do vidente para receber a revelação e visão ou
epifania que será acompanhada do discurso do anjo. Este é um homem (dx'a-, vyai) vestido de
linho, tem os lombos cingidos com ouro fino de Ufaz (zp'W( a)324 e seu corpo era como uma pedra
preciosa (vyvirt
> )); : rosto (relâmpago: qr'b)' , olhos(tochas de fogo: vaeê ydeyPil); , braços e pés
322
O termo utilizado para indicar uma guerra grande é ab'c': ir à guerra, servir, alistar, lutar, recrutar:
serviço militar, exército; tropa; serviço compulsório. AAVV. (2000: 202) e HARRIS, R. Laird, ARCHER
JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1865-68).
323
Ver COLLINS, John Joseph (1984: 96-99) e GRELOT, Pierre (1995: 56)
324
Localização incerta na Arábia. A versão Siríaca e o Targum mudam para Ofir, pois consideram um
erro na grafia. RpIAa / zp'W( a.
131
(bronze polido: ll'q_ ' tv,xno )> e voz (voz barulhenta: !Am)h' lAq325). Com certeza esta visão
epifânica tem influências de Ezequiel 1 e 8-10 e a descrição apresenta certas características das
roupas sacerdotais. No entanto, somente Daniel fora capaz de ver, pois, os seus companheiros
além de não conseguirem, fogem e escondem-se com grande medo e tremor (hl'dgo > hd'rx' )] .
Podemos ver que os vv.7-9 demonstram de demonstrar as reações diante desta visão. De um
lado, os companheiros que fogem e não conseguem ver e, de outro Daniel, que mesmo
conseguindo ver, fica sem forças, tem o semblante mudado e cai profundamente adormecido
Os versículos centrais (10-14 e 16a +18) giram em torno do toque (h['gn> " – nä’g`â)326:
O primeiro toque faz Daniel mover os joelhos e as palmas das mãos e isto serve para
resposta ao emudecimento de Daniel (v.15), pois tocou os seus lábios e, o último, produz
conforto e consolo. Entre os dois primeiros toques está a palavra do homem vestido de linho que
fala ao visionário acerca do que há de acontecer ao povo nos últimos dias. Esta palavra que
provoca o emudecimento de Daniel está relacionada com o confronto entre o príncipe do reino
da Pérsia (sr;P' tWkl.m; rf:) e Miguel, primeiro dos príncipes (~yrIFh' ; dx;a; laeky' mi)327.
325
!Am)h:' agitação, tumulto, animação, ruído, cortejo, pompa, multidão, gasto, riqueza, barulho, rugido,
sonido.
326
Este verbo no qal significa: tocar, apalpar; machucar, ferir, lesar; estender-se até, alcançar, atingir. Cf.
AAVV. (2000: 150). O sentido básico de näºga` é “tocar”. Pode referir-se a uma coisa tocando
(encostando) em outra (Is 6,7; 16,8; Os 4,2), a um homem tendo contato com uma coisa (Ex 19,12) ou
entrando numa área (Est 6,14), e a Deus tocando num homem (Dn 8,18) ou numa coisa (Sl 144,5). Cf.
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1293).
327
Esta visão da figura dos anjos como “príncipes do exército de Javé” talvez venha de uma leitura de Js
5,13-15: “E sucedeu que, estando Josué ao pé de Jericó, levantou os seus olhos, e olhou; e eis que se pôs
em pé diante dele um homem que tinha na mão uma espada nua: e chegou-se Josué a ele, e disse-lhe: És
132
É intrigante observar que aqui temos o confronto entre uma categoria político-militar real, ou
seja, o príncipe do reino da Pérsia, e uma categoria religioso-celestial, o anjo Miguel (Quem
como El). Para manter o confronto na esfera mitológica é que as traduções deste versículo nas
versões gregas traduzem sr;P' tWkl.m; rf como “príncipe dos reis da Pérsia”. Daí a
equiparação deste príncipe com a figura do anjo Miguel. Todavia, aqui podemos perceber o jogo
que o texto apocalíptico faz entre a realidade de confrontos e de guerras que perfazem a
conjuntura dos anos 167-142 a.E.C. com toda a categorização e simbologia de um confronto
celestial.328
visionário: com dores (ryci: convulsão, dor), sem forças e sem fôlego de vida (hm'vn' )> . Daí que
das anteriores. Por isso o v.19 se contrapõe ao vv.2-4; agora, cria coragem e ânimo e no início
estava carregado de tristeza. Se nos vv.5-6 lhe aparece de maneira esplendorosa e majestosa a
figura do homem celestial, no final o visionário tem a compreensão da sua vinda e manifestação:
tu dos nossos, ou dos nossos inimigos? E disse ele: Não, mas venho agora como príncipe do exército do
Senhor. Então Josué se prostrou sobre seu rosto na terra, e o adorou, e disse-lhe: que diz meu Senhor ao
seu servo? Então disse o príncipe do exercito do Senhor a Josué: Descalça os sapatos de teus pés, porque
o lugar em que estás é santo. E fez Josué assim” (tradução de João Ferreira de Almeida).
328
Gary G. Cohen ao analisar o substantivo rf: (príncipe, chefe, comandante, governante, governador,
encarregado, comandante-em-chefe, mordomo, senhor) afirma que nas tradições antigas de Israel pode
denotar líderes e chefes clânicos tanto quanto a idéia de comandante militar ou chefe de exército. Porém,
nos trechos hebraicos do livro de Daniel este substantivo aparece nada menos do que 17 vezes: “príncipe
dos eunucos” (1,7), do “príncipe do exército”celestial (8,11), “príncipes de Israel” (9,6) e dos príncipes
angelicais da Pérsia e da Grécia, que contendem com Miguel, “o grande príncipe” (10,13.20.21; 12,1). In:
HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1493-94).
133
O capítulo 11 é a palavra/ discurso do anjo para Daniel. Palavra que tem a finalidade de
animar (qzx: animar, tornar forte, firmar) e fortalecer (zA[m': refúgio, segurança, fortaleza = com
Este discurso, que é o centro deste último apocalipse do livro hebraico de Daniel, tenta
martírio. Para o autor ninguém se salva e nenhum imperador é bom, pois todos foram artífices da
maldade e do caos. Vejamos os principais momentos dos confrontos e da guerra descritos pelo
texto:
vv.1-4: descreve a época persa até o domínio de Alexandre Magno – de 539 a 323 a.E.C. Nestes
vv.5-9: do domínio dos ptolomeus até a subida ao poder de Antíoco III – de 323 a 223 a.E.C.
vv.10-20: de Antíoco III a Seleuco IV – de 223 a 175 a.E.C. Relata como paulatinamente o
território da Judéia passa para as mãos dos selêucidas e chama a aristocracia local de “homens
violentos”.
vv.21-45: o domínio de Antíoco IV Epífanes – de 175 a 164 a.E.C. Descreve os anos turbulentos
As palavras finais do livro representam uma breve reflexão sobre a ressurreição, como
instrumento evocador de resistência. São as palavras dos sábios para aqueles e aquelas que na
Judéia com coragem e ânimo caminham na esperança de um tempo de livramento para todos
que estiverem escritos no Livro. E “os entendidos pois resplandecerão, como resplendor do
134
eternamente”. (Dn 12,3). Porém, o livro convoca os fiéis a esperarem até o fim dos dias.
Eis alguns aspectos do difícil e confuso período que levou à guerra civil ou “revolta dos
Macabeus”. Este é um momento obscuro pelo simples fato de não se ter certeza sobre quem é
intenções dos diferentes grupos, visto que foram escondidos sob a estampa de um grande
conflito religioso.
É interessante notar que a concepção da Lei apresentada pelos grupos fiéis ao projeto
de Esdras segue o mesmo princípio dos sacerdotes helenizantes. No projeto de Esdras a Lei de
Deus é a lei do rei (“Quem não obedecer à lei do seu Deus, que é a lei do rei, será castigado
rigorosamente, com morte ou exílio, multa ou prisão” Esd 7,26) e no período de Antíoco IV
Epífanes muitos obedecem ao seu decreto, seja por causa do decreto de morte em caso de
desobediência, seja pela convicção de que a lei do rei é lei de Deus (veja 1Mc 1,41-50).
Além disso, podemos perceber, neste momento uma divisão interna entre os grupos,
329
VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004: 8).
135
interesses pode ser percebido, por exemplo, nas lutas pelo poder entre Jasão e seu irmão Onias;
nos confrontos travados até a morte entre Menelau e Jasão; nos conflitos entre os helenizantes
Onias e Tobias que, por interesses econômicos, aliam-se aos generais rivais para conseguirem
mais poder. Onias coloca-se ao lado dos generais egípcios (Lágidas ou Ptolomeus) ao passo
que Tobias fica ao lado dos generais sírios (Selêucidas); nos conflitos acerca da pertença à
linhagem sadocita para se tornar sacerdote, como é o caso de Alcimo que é aceito pelos
Macabeus e os próprios irmãos macabeus que não sendo sadocitas faziam-se sacerdotes; na
separação entre os hassidim (homens piedosos) e os Macabeus devido à condução da luta dada
por Judas e Jônatas (no início dos conflitos unidos a Judas – 1Mc 2,42 e depois separam-se –
1Mc 7,14); e na incoerência dos observantes da lei que lutaram contra os helenizantes e num
dado momento lutam a favor e com apoio do general grego para prender Judas (2Mc 15,2).
Numa leitura das ações dos vários grupos fica claro que cada tendência se guia pela
busca da realização da Aliança através de sua fidelidade. Cada grupo bate no peito e se diz fiel
ao plano de Deus. Nesta perspectiva, a ideologia do zelo pela lei e a atribuição de ser povo eleito
fazem aumentar a separação. É pela lei que se julgam povo separado, puro e escolhido por
Deus.
Contudo, mesmo diante de uma incessante busca de fidelidade e de zelo à lei aparecem
contradições. Sacerdote e escriba são funcionários de um rei de “fora” e este não aceita a
menos por um determinado tempo, poder divino ao rei. Assim, a situação parece tranqüila
quando o rei legitimava a Lei de Deus do passado (herança de Esdras e Neemias) e a crise
estoura quando alguns querem que a Lei de Deus seja a lei do Rei. Daí em diante, só há tensão
e crise.
136
O Primeiro Livro dos Macabeus cita como primeiro fato a decisão de alguns de quererem
ser como os outros, de acabar com a “separação” (1Mc 1,11) e usar o ginásio (gumna,sion:
ginásio ou praça de esportes330) para isso (1Mc 1,14). Já o Segundo Livro dos Macabeus, após
as introduções e cartas (2Mc 1-2), cita como primeiro fato o desacordo entre Simão e Onias a
respeito das finanças do templo e a incalculável soma de dinheiro aí acumulado (2Mc 3,1-12 –
este fato é repetido em 2Mc 4,1ss, e Onias é obrigado a se explicar junto ao rei: 4,5). O Sumo
Sacerdócio começa a ser leiloado a Jasão (2Mc 4,7-10), depois a Menelau, irmão de Simão
(2Mc 4,23-24).
Flavio Josefo (37 – 110 d.E.C)331, um historiador que escreve a história dos Judeus, diz
que Menelau estava com a família dos Tobias, ao passo que o povo estava mais do lado de
Jasão. Eles procuram uma integração cultural-política que vai culminar em 167 a.E.C. com a
instalação de Zeus Olimpos no Templo. Ou seja, Javé passa a ser chamado com o nome de
“Deus dos Céus” é um Deus eqüidistante, indiferente aos grupos rivais em luta. Isto
exigirá a abolição dos costumes próprios que separam o povo fiel dos outros povos. Deus é
neutralizado e apresentam um monoteísmo sem cor, um Deus sem definição frente ao drama da
330
“Lit. ‘ginásio’: instituição esportiva e também cultural onde os jovens atletas, chamados ‘efebos’,
exibiam-se completamente nus (gr. Gymnós – nu) nos vários exercícios de corrida, luta, lançamento do
disco e do dardo. Consistia numa vasta praça rodeada de pórticos, com vários anexos cobertos.
Conforme 2Mc 4,12, foi o próprio sumo sacerdote usurpador, Jasão, quem construiu o ‘ginásio’ de
Jerusalém”. BJ (1985: 788-9, nota i).
331
“Historiador judeu nascido em Jerusalém em 37 d.C.; morreu em Roma em 110 d.C. De descendência
aristocrática e com boa formação, Josefo já tinha visitado Roma na década de 60. Ele participou da
revolta contra os romanos na Palestina, mas acabou passando para o lado romano. Depois da guerra,
morou em Roma como um homem de letras sob a proteção imperial. Escreveu quatro trabalhos ( em
grego): uma autobiografia, uma defesa da religião judaica (Contra Apião), um relato histórico da guerra
judaica contra os romanos (Guerra Judaica) e uma história dos judeus na Antiguidade baseada
principalmente no Antigo Testamento (Antiguidades Judaicas)”. OTZEN, Benedikt (2003: 299-300).
137
Diante disso começa o levante dos Macabeus, que querem que sejam preservadas as
leis dos pais (1Mc 2,19-20) e, por isso, se revoltam abertamente contra o rei (1Mc 2,19-20;
2,34.46; 4,47) enquanto que os “outros” seguem o rei (1Mc 2,19; 6,21-23; 9,23-25; 10,14).
É inegável que existe toda uma motivação religiosa por trás da luta dos Macabeus. Mas
não podemos esquecer que, no fundo, a luta era também econômica e social.
Além disso, podemos perceber que a intenção dos gregos não era combater a religião e
cultura judaicas. Os generais gregos queriam a obediência dos súditos, a tranqüilidade do reino,
costumes, cada povo podia viver segundo as suas tradições. O que acontece na Judéia está
ortodoxos e os liberais. O general selêucida pressionado por uma crescente dívida com os
romanos e por uma luta para se manter no trono, se vê obrigado a apoiar um grupo contra o
outro para assim ter mais força nas lutas sucessórias e ter acesso às grandes riquezas
armazenadas no Templo. Deste modo, em vez de solucionar, ele acentua o conflito interno entre
os judeus. O general intervém para ajudar o seu grupo aliado, tenta assim tranqüilizar a situação,
residência para gregos (2Mc 11,2), tributar o Templo (2Mc 11,3) e pôr à venda, ano após ano, a
138
função do Sumo Sacerdócio (2Mc 11,3). Tributar o Templo é uma importante fonte de renda e,
além disso, transformar Jerusalém numa cidade grega e com o projeto político de leilão do
sacerdócio, seria um bom instrumento para quebrar a resistência. Antíoco contava com a força
Entre os esforços de Lísias (1Mc 3,34-36) para quebrar a resistência dos judeus, vemos
que ele busca extirpar as forças e focos de resistência que ainda restavam em Jerusalém (3,35),
ocupar o território colocando estrangeiros em todas as terras e estabelecendo uma nova divisão
general podia muito bem arrendá-la aos seus amigos e ex-combatentes (3,42-43 e 2Mc 8,9).
Uma outra medida que aparece neste momento, transparece nas intenções de Nicanor e
Górgias, combatentes e chefes militares de Lísias, que convoca os comerciantes para comprar
escravos judeus. Querem levantar a quantia de 2000 talentos através da venda de escravos para
saldar dívida com Roma (2Mc 8,10-11; 1Mc 3,41; 2Mc 8,25-34).
O povo reage contra Nicanor. A reação do povo das aldeias (camponeses) contra o
poder que os veio aniquilar. É o dia da vitória que tem de ser lembrado e comemorado como dia
de festa:
Uma das estratégias de resistência está baseada na solidariedade. Judas se infiltra nas
seu grupo é invocada e acordada a antiga solidariedade tribal. Neste espírito juntou 6000 para
defender o direito à terra, vida, trabalho e comida (ver 2Mc 8). Na luta aparece a grande
139
motivação de pertença ao grupo e defesa de uma causa comum. “Lutem hoje por seus irmãos!”
(1Mc 5,32). “Os inimigos confiam nas armas e nos seus atos de bravura. Nós, porém, confiamos
palavras do livro hebraico (ou versão hebraica) de Daniel. Começando pela sugestiva ironia do
capítulo de abertura do livro, que reflete sobre a dominação cultural atrelada à mudança dos
nomes e hábitos alimentares. Em certo sentido, este capítulo quer demonstrar os riscos e as
marcas de um domínio que está levando o povo e, de modo especial, as autoridades a perderem
Ao passo que os capítulos 8-12 em forma de visões tentam descrever as ações dos
generais em meio a esta conjuntura: agem como animais, fazem guerra até os últimos dias (ou o
332
Cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004: 20).
140
Podemos suspeitar que o livro de Daniel (na sua versão hebraica) é fruto da análise e
participação dos hassidim no levante dos Macabeus? Quais os indícios desta hipótese?
Os hassidim são definidos nos livros dos Macabeus como grupos de judeus piedosos e
fiéis à lei, que “se juntaram aos macabeus como ‘reunião (synagogé) dos piedosos’ e
~ydsx (hassidim) vem da raiz dsx que significa piedade, bondade. O adjetivo dysx
(HásìD) normalmente traduzido por fiel, piedoso quer indicar aquele que pratica a bondade. Por
exemplo em Jr 3,12 Deus é designado como um HásìD. Neste sentido, este adjetivo acontece
em paralelo com o qydc ‘(caDDìq): o justo. Além disso, é empregado para designar aquele que
tem atitude piedosa e em sua origem é um conceito marcadamente coletivo e nas comunidades
de Israel era um modo de designar aqueles que pertenciam à comunidade de Javé. E quem fazia
parte do grupo dos HasìDìm era consciente de estar relacionado com Javé e que a sua ação é
um princípio que vale para todo o povo. Assim sendo, quem exercia a piedade podia ser um
HasìDìm; porém, isto nos leva a perceber que no contexto pós-exílico (de modo especial no
período ao redor dos conflitos com o helenismo e a guerra dos Macabeus) cada vez mais este
adjetivo quer indicar a organização de um grupo seleto de fiéis que se opõem aos ímpios e por
praticarem a piedade e lutarem para se manter na fidelidade. Daí terão a conotação de grupos
dos “honrados” e dos “devotos”. Por isso no grego serão chamados de Asidaioi (1Mc 2,42;
Baseando-se em Dn 11,45 ("E armará as tendas do seu palácio entre o mar grande e o
monte santo e glorioso; mas virá ao seu fim, e não haverá quem o socorra”) e 12,3 (“Os
justiça refulgirão como as estrelas sempre e eternamente”) muitos comentadores buscam afirmar
333
STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. (2004:176).
334
Cf. JENNI, Ernst e WESTERMANN, Claus (ed.) (1985a: 832-861)
141
uma origem assidéia para os capítulos 7 –12 de Daniel.335 Daniel 11 parece confirmar a
evoca a vitória contra os dominadores através de uma linguagem de fortalecimento daqueles que
Este grupo dos hassidim mais tarde vai se desdobrar em diferentes grupos que tentamm
viver a lei: fariseus, essênios e zelotas. Aliás, estes diferentes grupos vem de uma raiz muito
antiga. Podemos remontá-los desde a época da dominação persa sob a liderança de Esdras e
Nehemias.336
O período após os conflitos que estouraram na guerra dos Macabeus foi um tempo muito
confuso e complexo, onde vai aparecer toda a contradição interna, sem solução, do sistema de
335
Cf. DELCOR, Mathias (1987: 33-38).
336
Cf. DONNER, Herbert (1997: 508): “O partido dos ‘piedosos’ (hasidim), que provavelmente é mais
antigo do que o movimento dos macabeus, estava satisfeito com o alcançado e nada mais desejava senao
poder praticar sua religião sem estorvos. Dele provieram, mais tarde, os fariseus.”
142
de raiz comum, e opostas entre si: Fariseus, Saduceus, Essênios e os Zelotas (surgiram tempos
depois). Neste período aparece o trágico de uma luta sem solução e alternativa. O que começou
como luta contra a invasão helenista com um levante popular, acaba num conflito de chefes
A situação política, econômica e social depois da guerra dos Macabeus até a chegada
dos romanos vai ser marcada por três fortes tendências: no campo político, as constantes brigas
dos grupos ou partidos que brigam para deter o poder; no campo econômico, grande exploração
exercida pelos Hasmoneus e pelos “novos ricos” que controlam o comércio e a produção dos
todo o poder nas mãos do rei (neste momento não existe mais monarquia e todo o poder político
estava centralizado nos sacerdotes. É o poder político exercido pela religião). A politização do
sacerdócio (cf. 1Mc 14,41) provoca uma ruptura com a tradição, que vai desembocar na
dissidência dos hassidim, essênios e fariseus. Vale lembrar que no período da regência de
Alexandra Salomé (76 – 67 a.E.C.) vai implantar uma separação entre Sacerdócio e governo e
restauração do país, vai se fortalecer mediante a política dos Hasmoneus que não
representavam a defesa do Templo e da Lei, e, sim, uma política expansionista orientada para a
conquista do poder e acúmulo de riqueza e luxo. Do ponto de vista econômico, o povo do interior
do país não era mais obrigado a pagar tributos a um poder estrangeiro, mas pagam taxas,
337
Ver VASCONCELLOS, Pedro Lima e SILVA, Rafael Rodrigues da (2004: 7-30) e SILVA, Rafael
Rodrigues da (2003: 21-26).
143
impostos e dízimos aos reis-sacerdotes. Além disso, os Hasmoneus mantiveram o sistema fiscal
montado desde os Lágidas, agora de acordo com os seus interesses. Do ponto de vista
reliigioso, instaura-se uma crise no povo: antes, no exílio, o sofrimento se explicava como castigo
de Deus pela falta de observância. Agora, são perseguidos e sofrem por causa da observância.
passado o messianismo esteve ligado ao ungido da dinastia davidica, agora toma formas
variadas. Uma dessas formas encontramos na apocalíptica. Daí, podemos inferir o quanto o
livro de Daniel (nas suas versões aramaica e hebraica) foi lido por esses grupos e, em certo
em que os apocalípticos desejam a destruição dos impérios e seus sistemas de controle. Daniel
reconhece que a maldade (iniqüidade) aumentou em toda parte do mundo (12,4.10), mas no
“fim” Javé vai triunfar sobre todas as forças do mal, juntamente com as burocracias do império e
144
aqueles que estão a seu serviço.338 Daí a expectativa da destruição do poder hegemônico pelas
mãos de Javé.
338
Cf. BERQUIST, Jon L. (1995: 177-192).
145
CAPÍTULO 3:
Diz uma antiga tradição que a Bíblia (Escritura Hebraica) foi traduzida para a língua
grega por setenta e dois sábios (escribas). Daí o nome de Septuaginta339 para a tradução grega
da Bíblia Hebraica. “O nome ‘Setenta’ aplica-se antes de tudo à tradução grega da Lei. Em
seguida veio a ser usado para a tradução grega de todas as sagradas Escrituras”.340 Esta
tradição aparece na carta341 de um tal Aristéias (ou Aristeu) a seu irmão Filócrates, na qual se
relata as circunstâncias e os motivos do rei Ptolomeu II Filadelfo (285 – 246 a.E.C.) em querer
traduzir os textos sagrados dos judeus. O rei pede duas coisas: uma cópia autêntica da Lei
judaica para ser traduzida para o grego e os sábios de Jerusalém que irão executar tal tarefa.
Daí que o sacerdote escolhe setenta e dois deles (escribas ou sábios) que se encarregarão
desta empreitada. Por que setenta e dois? O próprio texto trabalha com a descrição de seis
membros de cada tribo de Israel (seis de cada uma das doze tribos).342 Pelas informações deste
livro, o seu autor provavelmente foi um judeu alexandrino. Trata-se podemos conjecturar que é
judeu visto que dá grande ênfase às práticas cultuais, pela valorização ao sumo sacerdócio e
339
A edição mais conhecida da Septuaginta é a estabelecida por Alfred Rahlfs, Württembergische
Bibelanstalt Stuttgart. Esta é a edição que utilizaremos para a análise do livro de Daniel.
340
SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 54).
341
Nos textos antigos existem várias maneiras de apresentar a Carta de Aristéias: Por exemplo, Flavio
Josefo fala de “livro de Aristéias”, Eusébio, fala de “a tradução da lei dos judeus”. E nos manuscritos
mais aintigos simplesmente o texto começa com a epígrafe: “Aristéias a Filócrates”.
342 47
“ Y son de la primera tribu: José, Exequias, Zacarías, Juan, Exequias y Eliseo. De la segunda: Judas,
Simón, Somoel, Adeo, Matatías y Esclemías. De la tercera: Nehemías, José, Teodosio, Baseas, Ornías y
Dacis. De la cuarta: Jonatán, Abreo, Eliseo, Ananás, Cabrías... De la quinta: Isaac, Jacob, Jesús,
Sabateo, Simón y Leví. De la sexta: Judas, José, Simon, Zacarias, Somoel y Selemías. De la séptima:
Sabateo, Sedecías, Jacob, Isaac, Jesías y Nateo. De la octava: Teodosio, Jasón, Jesús, Teódoto, Juan y
Jonatán. De la novena: Teófilo, Abrahán, Arsamo, Jasón, Endemías y Daniel. De la décima: Jeremias,
Eleazar, Zacarías, Baneas, Eliseo y Dateo. De la undécima: Samuel, José, Judas, Jonates, Caleb y
Dositeo. De la duodécima: Israel, Juan, Teodosio, Arsamo, Abietes y Ezequiel. En total setenta y dos. Tal
fue la respuesta escrita de parte de Eleazar a la carta del rey”. Cf. DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 27).
146
grande admiração pelo templo. É alexandrino por apresentar uma certa familiaridade e
É muito comum afirmar que a Septuaginta é uma versão da Bíblia Hebraica que foi
sendo elaborada entre os séculos IIo e Io a.E.C. na Alexandria, Egito, para os judeus que ali
vivam (diáspora) e que já não entendiam suficientemente o hebraico. Para Stephen Pisano “a
compreensível aos hebreus residentes no Egito, sobretudo em Alexandria, onde havia uma
A maioria dos comentadores consideram que a Carta de Aristéias seja do IIo. século
a.E.C. e outros preferem estipular o ano 100 como a data provável de sua escrita.345 Também é
um livro que tem problemas de ordem literária, demonstrando que a sua formação se deve a
uma autoria variada. Porém, não deixa de ser um material sugestivo para se pensar a
aceitar a hipótese de que a Carta de Aristéias esteja se referindo à Septuaginta; bem como à
tradução grega do Pentateuco, pois somente no IIo século de nossa era é que aparece dentro da
Sinagoga a leitura continuada do Pentateuco.346 Aliás, o que foi traduzido da Bíblia Hebraica,
“La finalidad principal de la carta es defender la traducción de los LXX, como fiel
reflejo del original hebreo, frente a los ataques de los judíos de Palestina, para
quienes sus hermanos de la diáspora utilizan una traducción inexacta. Según
parece, nunca se dio verdadera oposición entre la teología judía de la diáspora y
la de Palestina. La verdad es que la versión de la ley judía al griego fue el medio
343
Idem. p.12.
344
Cf. SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 53-4).
345
Cf. MONDÉSERT, Claude (dir.). (1984:21).
346
Idem., p.23.
347
DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 14): “La carta es un escrito de propaganda que quiere informar
sobre la traducción del Pentateuco al griego. Su finalidad es, pues, apologética y probablemente
didáctica. Más difícil de precisar es el destinatario principal: los propios judíos (de Palestina o de la
diáspora), los griegos (con el fin de hacerles partícipes del pasado glorioso de Israel) o la corte de los
Tolomeos.”
147
con que el judaísmo alejandrino se defendió del helenismo, del mismo modo
que en Palestina se reaccionó mediante la producción de la literatura
apocalíptica”.348
leitura e aprovação por parte da Assembléia.349. Interessante é que nos §§ 308-311 este
documento deixa transparecer que há uma exigência para que se mantenha a tradução intacta e
Voltando ao Prólogo do Livro de Jesus Ben Sirac (utilizado na abertura desta primeira
parte da pesquisa351) encontramos uma outra alusão à tradução da Bíblia Hebraica para o grego.
Porém, o texto aponta para uma questão importante ao tratarmos de uma tradução: mesmo
querendo ser o mais fiel ao texto original, algumas expressões são enfraquecidas quando
traduzidas para outra língua. Nos vv. 19-26352 aparecem com clareza questões ao redor da
tradução do texto hebraico para outra língua, nestas o autor deixa entrever a existência de uma
tradução da Lei (hrwt), dos Profetas (~yaybn) e dos Escritos (~ybwtk); porém, apresenta os
348
Idem. p.15.
349
Ver os §§ 301-321. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 59-63).
350
Idem. pp.60-1.
351
Veja o texto na nota n.6.
352 19
evfV oi-j a'n dokw/men 20 tw/n kata. th.n e`rmhnei,an pefiloponhme,nwn tisi.n tw/n le,xewn avdunamei/n 21 ouv
ga.r ivsodunamei 22 auvta. evn e`autoi/j Ebrai?sti. lego,mena kai. o[tan metacqh/| eivj e`te,ran glw/ssan 23 ouv mo,non
de. tau/ta 24 avlla. kai. auvto.j o` no,moj kai. ai` profhtei/ai 25 kai. ta. loipa. tw/n bibli,wn 26 ouv mikra.n e;cei
th.n diafora.n evn e`autoi/j lego,Mena.
148
limites de uma tradução e utiliza os termos meta,gw e e`rmhnei,a com a intenção de deixar bem
Estes termos entre outros são constantes na Carta de Aristéias. A questão aí presente
gira em torno da tradução de um texto sacro para uma língua diversa (albabeto, gramática e
compreensões diferentes). Na Carta de Aristéias § 30353 temos que a intenção não se reduz
simplesmente a uma tradução da lei, mas fala-se de recopiar e transcrever. A Carta de Aristéias
ao utilizar vários termos para indicar a tradução está pensando em cópia e tradução da lei ou em
Vale lembrar que ao redor do IIo século existiam várias versões do texto grego e ao nos
depararmos com uma tradução do texto hebraico com desigualdades de tradução muitas vezes
no mesmo texto (livro) é reconhecível que se trata de uma tradução realizada a muitas mãos e
durante um longo tempo. Daí não termos uma forma original (formas originais) da Septuaginta.
Para P. Kahle existia um Targum grego que continha várias traduções parciais que eram usadas
353
“Faltan los libros de la ley de los judíos junto con otros pocos. Se leen con caracteres y
pronunciación hebreos, pero estan escritos de forma descuidada y no como son en realidad, según
aducen los expertos, pues les ha faltado la supervisión real”. Carta de Aristéias § 30. In: DIEZ MACHO,
Alejandro (1983: 24).
354
Cf. STEMBERGER, Günter (2000: 64-80).
355
Cf. BENTZEN, Aage (1968a: 90).
149
nas sinagogas helenísticas com finalidades litúrgicas.356 Outros estudiosos (entre eles podemos
dos termos, mas a sua tradução vem acompanhada de uma transferência de sentido e, com isso
Por exemplo, no Primeiro relato da criação (Gn 1,1-2,4a) de acordo com o texto hebraico as
obras são concluídas no sétimo dia enquanto que na Septuaginta lemos que “ao sexto dia Deus
conduziu o término de sua obra”. Outro exemplo encontramos no acréscimo em Cantares 3,1:
evka,lesa auvto,n kai. ouvc u`ph,kouse,n mou: eu o chamei, mas ele não me respondeu”.358 É a
mesma frase que aparece em 5,6, tanto no texto hebraico quanto no texto grego. Podemos dizer
que a Septuaginta não só fez o acréscimo em 3,1, mas os tradutores procuraram harmonizar e
criar uma coesão no texto (evidentemente que seguindo os seus critérios de leitura e
interpretação).
Iríamos longe em vários exemplos em toda a Bíblia.360 Porém, aqui nos toca ver as
Mas antes de passarmos para o livro de Daniel, é preciso apontar dois aspectos que
a transcriação.361
356
Um resumo da teoria de P. Kahle encontramos em BENTZEN, Aage (1968a: 95-100).
357
SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 54-5).
358
Ver nota do aparato crítico da BHS, p.1328.
359
SIMIAN-YOFRE, Horacio (org.). (2000: 55-6).
360
Ver outros exemplos de tradução e interpretação em CROATTO, José Severino (1986).
361
Estou utilizando aqui um termo cunhado por Haroldo de Campos.
150
Para pensar a tradução da Septuaginta como uma reescrita do texto hebraico é preciso
ter presente que os sábios e escribas em Alexandria tinham uma foma de manipulação dos
textos que oscilava entre uma conotação conservadora e inovadora. Nesta perspectiva,
percebemos em certos livros as marcas de uma reescrita do texto que aponta para aspectos
novos na compreensão do próprio texto e noutros fica patente uma tendência conservadora.362
helenistas, entre judeus arraigados à tradição e judeus abertos para a nova cultura e que até
pela Carta de Aristéias, constataremos que não ocorreram conflitos como estes e nem tampouco
Setenta, está a que diz que é obra projetada por um rei estrangeiro e nunca se menciona a
362
Mais adiante podemos evidenciar estes aspectos na tradução grega do livro de Daniel.
363
A. Lefevere. Apud. LAGES, Susana Kampff (2002: 76).
151
grega, pois era considerada uma Torá não válida, pois uma tradução da Torá era impossível e tal
A reescrita do texto hebraico para o grego tende a ser transparente, pois não encobre o
texto original e nem tampouco o tira da luz, como diria Walter Benjamin.365 Se colocarmos sob a
forma de sinopse os textos hebraico e grego iremos perceber o quanto a versão grega em
sentido do texto, alheio ao seu leitor, para transmiti-lo de acordo com o seu contexto.
transcriação do texto hebraico que já não era compreensível para as comunidades da diáspora.
Portanto, a versão grega da Bíblia não tem como procupação primeira a de traduzir palavra por
palavra do texto hebraico, mas em grande parte tenta buscar o entendimento para fornecer ao
leitor núcleos de sentido, por isso faz deslocamentos nos textos dentro de um livro e até mesmo
quanto à organização dos livros dentro do cânon verificamos no deslocamento do livro de Rute,
Deuteronomista e os Profetas.
“A versão dos LXX tende a ser mais literal em uns livros que em outros. É
preciso estudar as características da tradução de cada livro em separado. Há
ocasiões em que inclusive as seções diferentes do mesmo livro podem
oferecer características diferentes que, se antes se explicavam por atribuições
a diferentes tradutores, agora são atribuídas a diversas recensões da versão
original.” 366
364
“Setenta anciãos escreveram inteiramente a Torá para o rei Talmai em língua grega, e este dia para o
Israel foi nefasto como o dia em que eles construíram o bezerro (de ouro). Porque a Torá não pode ser
traduzida inteiramente, como teriam sido necessários. Nisto eles mudaram treze passos...” (Sefer Tora
I,6). Cf. STEMBERGER, Günter (2000: 69-70).
365
Walter Benjamim. Apud. LAGES, Susana Kampff (2002: 224).
366
Cf. BARRERA, Julio Trebolle e CARO, José M. Sánchez. O texto da Bíblia. In: AAVV. (1994:463).
152
tomar um conjunto literário hebraico compreensível para o grego. Com isso, podemos dizer que
os sábios e escribas no IIo século a.E.C. em diante produziram um outro livro, com aspecto
Agora, vamos ao trabalho destes sábios e escribas no livro de Daniel. Proponho três
14.
Não é a nossa intenção passar por todos os pormenores e as mínimas diferenças entre o
fundamentais e conceituais. Por exemplo, se no hebraico existe dois termos para dizer a terra:
#r,a' (terra enquanto país, território, cidade) e hm'd( a' ] (terra enquanto espaço agricultável,
roçado), além do termo lWbG. (território, fronteira, limite); a tradução grega simplesmente
traduzirá estes termos por gh/n (terra). No entanto, a Septuaginta também utiliza este termo
367
Não podemos simplesmente dizer como muitos comentadores de que a tradução da Septuaginta é um
texto de menor importância, que contém erros de tradução e representa uma interpretação falível. É
importante ressaltar que “a versão dos LXX, além de valor intrínseco da tradução, tem outros valores
extrínsecos, como são a contribuição que oferece para a análise crítica do texto hebraico e para o estudo
histórico da exegese do A.T.” Ver: BARRERA, Julio Trebolle e CARO, José M. Sánchez. O texto da
Bíblia. In: AAVV. (1994:463).
153
aramaico.369
(wyh'l
_ a{ / tyBe) que aparece logo depois da referência a terra de Shinear (r["nv> i-#r,a)(, , a qual
é traduzida por Babulw/na. Aqui os tradutores optam pelo nome comum e rejeitam tanto o nome
que era usado para se referir a região (Shinear) e o nome hebraico (Babel) que é uma
no texto grego é Abiesdri (Abiesdri) talvez tentando traduzir o nome hebraico (yrIz) [
> h, (' ybia] ou
rz<[y, bia] conforme Jz 8,32). Aliás, na Septuaginta este nome só aparece em Dn 1,3.11.16 e Jz
8,32.
enfatizando a comparação entre a aparência de Daniel e seus companheiros com relação aos
Em Dn 2,18 a septuaginta traduz o termo z"rß ' (segredo, enigma) que só aparece em
Daniel (2,18.19.27.47) e que está presente nas ações dos sábios e adivinhos, pelo termo
368
Cf. HARRIS, R. Laird, ARCHER JR., Gleason L. e WALTKE, Bruce K. (1998: 1669): “[r;a] (´ára`):
terra, mundo, chão. Usado de modo semelhante ao cognato hebraico ´ereTs, mas o sentido de ‘país’ não
está confirmado. Uma forma alternativa, ´áraq, é empregada em Jeremias 10,11a. Em aramaico o tsadeh
hebraico pode ser representado por `ayin ou por qoph”.
369
Um exemplo claro encontramos em Jeremias 10,11: Texto na BHS: `hL,ae( aY"ßmv ; . tAxïT-. !miW a['²ra> ;me( Wdb;aó yE Wdb;[_ ]
; -. yDI( aY"hë l; aä' / ~Ahêl. !Wråma. Te ‘hn"d>Ki – Texto na LXX: ou[twj evrei/te auvtoi/j qeoi, oi] to.n ouvrano.n kai.
al'ä aq"rß a> w; > aY"mï v
th.n gh/n ouvk evpoi,hsan avpole,sqwsan avpo. th/j gh/j kai. u`poka,twqen tou/ ouvranou/ tou,tou.
370
Ver: METZGER, Bruce M. & COOGAN, Michael D. (orgs.). (2002: 29): “Babilônia é tradução do
acádio Babilum (Babilim), a cidade que por séculos serviu como capital da ‘terra de Babilônia’. Fontes
cuneiformes interpretam seu nome como bab-ilim, ‘portão da divindade’. A Bíblia rejeitou essa
etimologia popular em favor de uma mais grosseira, que associava o nome à confusão das línguas (hebr.
Balal, ‘confundido [por Deus]’), e por isso a cidade é chamada Babel”.
154
musthri,ou (mistério), tendo muito mais um aspecto teológico. E no v.34. que narra a pedra sem
mãos que atingiu os pés da estátua, a septuaginta acrescenta evx o;rouj (do monte) fazendo
uma clara ligação deste versículo com a interpretação que é dada por Daniel no v.45.
e;touj ovktwkaideka,tou (no décimo oitano ano) e uma nota sobre o domínio e poder de
Nabucodonosor: dioikw/n po,leij kai. cw,raj kai. pa,ntaj tou.j katoikou/ntaj evpi. th/j gh/j
avpo. Indikh/j e[wj Aivqiopi,aj (controlou cidades e províncias e todos os habitantes da terra, da
Índia até a Etiópia). Esta nota sobre o poder de Nabucodonosor tem paralelo em Est 1,1 e 8,9.
Dn 4,1 (que na Septuaginta é Dn 4,4) traz mais uma referência cronológica do reinado
décimo oitavo ano de seu reinado, Nabucodonosor disse). Nos capítulos 4 – 6 de Daniel é que
iremos encontrar muitas variações entre o Texto Massorético e a Septuaginta: vários versículos
Além disso, há uma mudança na ordem do material. Por exemplo, no capítulo 5 faltam os
construção do texto e não é o nosso propósito abarcar toda a série de mudanças do livro de
Daniel. Aliás há estudos e análises que fazem uma sinopse do texto hebraico e grego de
Daniel.371 Com isso, gostaria de passar à questão das mudanças interpretativas na tradução da
Septuaginta.
371
Ver: COLLINS, John Joseph e FLINT, Peter W. (eds.) The Book of Daniel: Part 1: Composition and
Reception. Vetus Testamentum Supplements 83, Leiden: Brill, 2001 e The Book of Daniel: Part 2:
Compsotion and Reception. Vetus Testamentum Supllements 83.2: Formation and Interpretation of Old
Testament Literature, Leiden: Brill, 2001 e KOCH, Klaus e RÖSEL, Martin (eds.). Polyglottensynopse
zum Buch Daniel. Neukirchen: Neukirchener Verlag, 2000.
155
os !yhil
ê a' ,/]=? (deuses) que podem revelar o sonho do rei como sendo anjos ou mensageiros de
Deus (a;ggeloj).
espécie de sinopse do que este capítulo contém. Os cinco versículos que a Septuaginta
acrescenta tira o enlace e expectativa que o texto aramaico de Daniel dá à narrativa no que se
refere à tradução das palavras escritas na parede. Estes versículos na Septuaginta apresentam
372
GRELOT, Pierre (1995: 72).
156
neste resumo: primeiro, a indicação do banquete e dos convidados do rei juntamente com a
exaltação do vinho e os louvores a outros deuses e, segundo, os dedos e a escritura com a sua
interpretação. No entanto, no texto aramaico não existe nenhuma menção dos objetivos do
grande festim oferecido por Baltazar. Aqui, os tradutores interpretam como sendo a grande festa
de consagração da resistência do rei. Outro fator nesta interpretação, é que transparece uma
carga maior na crítica à idolatria através dos verbos gloriar (kauca,omai) e louvar (evpaine,w), bem
E logo no v.1 nos duas versões percebemos as diferenças: enquanto o texto aramaico
fala do número de magistrados ou nobres (mil), a versão grega não se preocupa com o número e
Mas a diferença maior está no v. 3, onde o tradutor faz os cortes na repetição tão comum
no texto aramaico.
As diferenças vão aumentando a partir do v.4, no qual aparece no texto aramaico uma
Enfim, dá para perceber que não aparece simplesmente neste livro de Daniel uma
tradução palavra por palavra dos tradutores da Septuaginta, mas ora uma tradução de
aproximação, ora uma completa mudança e interpretação do texto que estão traduzindo. Muitas
correções encontramos nos doze capítulos do livro. De modo especial nos capítulos 4 a 6.
Tomamos estes poucos versículos como exemplo do como a Septuaginta está traduzindo,
A grande marca do livro de Daniel na Septuaginta está nos textos que foram
Daniel 3,24-90 pode ser dividido em três partes: O cântico de Azarias nos vv.24-45, o
cântico dos três jovens na Fornalha nos vv.51-90, e, entre os dois cânticos uma narrativa
Esta oração recolhe vários elementos que já estão presentes em outros textos da Escritura.
Aliás, o autor desta oração de louvor e bênção, com marcas de penitência e súplica, conhece
muito bem os textos da Bíblia Hebraica (Torá, Profecia e Sabedoria). “Esta oração é um texto
litúrgico composto em língua semita, provavelmente em hebraico. Seu texto primitivo confessava
159
as faltas de Israel que causaram a ruína de Jerusalém (3,26-31). Mas a adaptação do texto ao
A oração começa empregando uma invocação muito presente nos hinos de louvor
espalhados na Bíblia: euvloghto.j ei= ku,rie o` qeo.j tw/n pate,rwn (Bendito és Senhor o Deus
de nossos pais): Gn 9,26; 24,27, 1Sm 25,32; 2Sm 18,28; 1Rs 1,48; 8,15; 1Cr 29,10; 2Cr 2,11;
6,4; Esd 7,27; Tb 3,11; Sl 41,14; 72,18; 106,48; 144,1; Dn 3,52.95. A descrição das obras,
caminhos e julgamentos de Deus como verdadeiros tem paralelos com Nee 9,33; Tb 3,2-6.
súplica, na qual pede-se misericórdia, solidariedade e ação libertadora de Deus tenta resgatar as
palavras da profecia, reconhecendo que estão vivendo num tempo sem chefe, sem profeta, sem
príncipe e sem sacrifícios. No entanto, o tipo de profecia marcada pelo resgate da promessa e do
desejo de que aconteça de novo as maravilhas da ação de Deus, é aquela profecia meditativa do
pós-exílio que tem ares de sabedoria. É a profecia na qual Deus chama Abraão de amigo e
resgata a promessa de formar descendência (ser um povo). O texto relê a profecia de Is 41,8 ( E
tu Israel, meu servo, Jacó que te escolhi, semente de Abraão, meu amigo: ybih( a] o ~h'rî b' a. ;
[r;zß< ^yTir_ x> B; . rv<åa] bqO[ß y] : yDIbê [. ; laerä f' y. I ‘hT'aw; > ).
No cântico dos três jovens na fornalha (vv.51-90) temos aí uma litania que trabalha com
aspectos: os atributos de Deus (teologia do grupo que está por detrás da oração), os elementos
373
Idem., p.38.
374
É um canto que até hoje tem forte presença nas Liturgias das Horas dos grupos religiosos.
160
dos antepassados), o Deus capaz de maravilhas, aquele que livra (do Abismo, da mão da morte
e da chama da fornalha ardente), age com misericórdia e, por isso, é Deus dos Deuses. Quanto
à teologia da Criação é uma releitura de Gn 1 filtrada pelo Salmo 148. Com relação aos
aspectos da religião, penso que aqui há detalhes da atualidade do grupo ao evocarem o templo,
humildes de coração” (o[sioi kai. tapeinoi. kardi,a)| . Aqui a designação dos o[sioi é uma
tentativa da Septuaginta traduzir toda a conotação dos grupos que vivem e praticam a dysix' e
os tapeinoi. kardi,a representa uma releitura dos ~ywnI[,' enquanto aqueles que pertencem às
camadas mais baixas da sociedade, ou melhor dizendo, os que estão no primeiro nível do
processo de empobrecimento. Por isso tapeinoi. quer indicar o humilde enquanto rebaixado.
“um texto litúrgico mais antigo que enumera as obras do Criador, para convidar
a louvá-lo todos juntos. Somente o final menciona os ‘filhos dos homens’, o
povo de Israel, os sacerdotes do Templo e seus outros servidores cultuais,
todos os justos, assim como os ‘santos e humildes de coraçao’ (3,82-87). A
conclusão retoma um refrão litúrgico, para universalizar o louvor de Deus (3,89-
90). Uma simples inserção aplica o cântico à atualidade, mencionando os três
jovens que Deus preservou da morte. A fornalha ardente fornece-lhe uma
representação simbólica: não é à toa que se falará das chamas do inferno (cf.
Lc 16,23-24; Mt 3,12; 5,22; 13,42.50; 18,8-9; 25,41 etc.). A partir desta
observação, podemos dizer que o relato tem alcance simbólico que prefigura a
libertação da morte para os mártires da crise macabaica”.375
Entre os dois cânticos os autores do texto apresentam uma narrativa que realça dois
aspectos contrapostos: num extremo a repressão presente no aumento do fogo que se projetou
acima da fornalha em até quarenta e nove côvados (vinte e dois metros e aqui o numero é
375
Cf. GRELOT, Pierre (1995: 39).
161
marcado pelo simbolismo de sete vezes sete376) que atingiu a muitos caldeus que estavam perto
no qual Azarias e seus companheiros não se sentem incomodados com o fogo, pois um Anjo do
Senhor que expeliu para fora o fogo e soprou para o interior da fornalha um vento de orvalho
firme convicção de que os males e as perseguições que sofrem, por mais terríveis que sejam,
são passageiros. Ou, melhor falando, que têm um termo decretado por Deus. Por isso é preciso
resistir até o fim. Aquele que agüentar ganhará. Não por cansaço ou aborrecimento do inimigo,
mas porque o poder do inimigo é limitado, restrito pelo Dono e Senhor da História.”377
2. Susana ( Dn 13,1-64).
A história de Susana é um relato edificante378 que conta a vida de uma judia que segue
os valores da cultura e sendo fiel à Lei de Moisés será julgada e enfrentará o poder dos anciãos.
Para Shigeyuki Nakanose e Maria Antônia Marques esta é uma história de origem semítica
popular que posteriormente foi aprofundada nos círculos farisaicos, implicando num protesto e
sátira contra os grupos dominantes no sinédrio.379 Porém, esta história chega até nós em duas
versão de Teodocião vai ressaltar a figura do Deus que protege ao acusado injustamente. O
texto está centralizado na prática de piedade da vítima e na solicitude de Deus. Tendo como
tema o julgamento o texto faz alusão ao significado do nome de Daniel (“Deus julga”).
376
Idem., p.39.
377
ASURMENDI, Jesús M. (2004: 432).
378
Cf. GRELOT, Pierre (1995: 62-65). O autor apresenta um quadro sinótico com as duas versões gregas
da narrativa de Susana: o texto da Septuaginta e a recensão de Teodocião.
379
NAKANOSE, Shigeyuki e MARQUES, Maria Antônia (1996: 28).
380
Teodocião é uma figura não muito conhecida e que tem a sua tradição ao redor do IIo século E.C. e que
segundo Irineu, era um prosélito judaico de Éfeso e conforme Epifânio, foi um seguidor de Marcião. O
fato é que a sua recensão da Septuaginta tem grande prestígio e muitos dos seus manuscritos substituíram
a Septuaginta. A história de Susana que temos hoje em nossas traduções segue a versão de Teodocião.
Aliás, a Vulgata (tradução de São Jerônimo) vai seguir a recensão que Teodocião apresentou do livro de
Daniel. Tornou-se o texto de uso ordinário. E muitas citações do texto grego no Testamento cristão
reproduzem o texto de Teodocião. Ver: BARRERA, Julio Trebolle e CARO, José M. Sánchez. O texto da
Bíblia. In: AAVV. (1994:461-463).
162
Daniel, e tem caráter propriamente introdutório para todo o livro e para o grande herói. Portanto,
a versão da Septuaginta vai jogar a atenção do leitor para o comportamento exemplar de Susana
em contraposição ao poder das autoridades e dos anciãos. Não é à toa, que a Septuaginta
63 dia. tou/to oi` new,teroi avgaphtoi. Iakwb evn th/| a`plo,thti auvtw/n kai.
h`mei/j fulassw,meqa eivj ui`ou.j dunatou.j newte,rouj euvsebh,sousi ga.r
new,teroi kai. e;stai evn auvtoi/j pneu/ma evpisth,mhj kai. sune,sewj eivj
aivwn/ a aivwn/ oj.
Por causa disto os jovens são amados de Jacó na sua sinceridade
(simplicidade), também a nós os conservaremos como filhos poderosos jovens
piedosos porque jovens e neles existe espírito de ciência
(conhecimento/experiência) e entendimento pelos séculos dos séculos.
A narrativa é marcada pela dinâmica do grito ou clamor (boa,w) que aparece diretamente
nos vv. 24, 42, 46 e 60. Conforme a sugestão de Shigeyuki e Maria Antônia este verbo é a
grande chave de leitura do texto. Os autores propõem uma estuturação do capítulo do seguinte
modo: 381
O relato é totalmente crítico aos dois anciãos, que são qualificados como autoridades
iníquas, conforme a própria palavra de Deus: “a iniqüidade saiu de Babilônia, dos anciãos, que
Susana. E como ela era muito bonita, era desejada pelos dois homens. Porém, ambos tinham
vergonha de declarar a paixão que sentiam por Susana. Porém, num belo dia eles ficam à
381
Cf. NAKANOSE, Shigeyuki e MARQUES, Maria Antônia (1996: 35).
163
espreita e vão espiá-la tomando banho e no momento oportuno eles a assediam e ameaçam
denunciá-la dizendo que estava com outro homem, e por isso, ela tinha despedido as meninas
que a acompanhava. Porém Susana não se entrega à proposta dos dois anciãos e grita em alta
voz. Chegam os empregados e os anciãos apresentam a sua versão dos fatos. Eis o grito de
Susana que não aceita a proposta indecorosa dos anciãos, que usam da autoridade e do falso
testemunho para obter o que desejavam: ter relações sexuais com a bela Susana. Vale lembrar
que o nome Susana (Sousanna), costumeiramente traduzido por açucena ou lírio, vem do
hebraico (hN"vA; v), possivelmente representa uma planta afrodisíaca muito utilizada nos antigos
Nos vv.28-41 vai ser instaurado o julgamento contra Susana. O v.28 já de início
determina a mudança na narrativa: tempo e lugar: “No dia seguinte, ao reunir-se o povo na casa
de Joaquim”. Na cena do julgamento (tribunal) o redator sutilmente lança mais uma ironia contra
as autoridades (os anciãos) dizendo que na apresentação de Susana diante do povo eles
pediram para que fosse levantado o véu, “a fim de poderem fartar-se da sua beleza”. Depois de
apresentarem o testemunho contra Susana, a assembléia creu neles, porque eram juízes
(aqueles que administravam a justiça na porta das cidades e vilas). Assim, Susana foi julgada ré
de morte. Para Shigeyuki e Maria Antônia o choro do povo diante da situação em que estava
Susana representa o grito silenciado do povo que não podia fazer nada para salvá-la.
O v.42 dá o tom da cena seguinte. É o grito em alta voz de Susana que apela a Deus
que sabe que é falso o testemunho levantado contra ela. Este grito e protesto de Susana nos
Para Shigeyuki e Maria Antônia, os dois anciãos que levantam o falso testemunho contra
piedosos e fiéis à Lei de Moisés. E Daniel é a voz da profecia que está junto com estes anciãos
na resistência contra as autoridades oficiais.382 E Daniel é o jovem que detém o que próprio da
ancianidade. Tanto que nos vv.50-59 Daniel julgará as duas testemunhas e fará com que pela
boca deles seja descoberto o falso testemunho. Daí que o povo reunido em assembléia
(sunagwgh.) vai clamar (gritar) a Deus que poupou sangue inocente (vv.60-64).
Eis uma bela narrativa que segue estão inseridos na mesma dinâmica dos contos de Dn
1-6. aqui fica evidente o caráter sapiencial do profeta, mas principalmente do piedoso fiel em
suas crenças e observante da Lei e da Tradição. Gostaria de concluir esta história de Susana,
Asurmendi:
382
Idem., p.34.
165
Este texto na Septuaginta tem como título: “Da profecia de Habacuc, filho de Josué,
da tribo de Levi”. Não só podemos dizer que o texto tem muita semelhança com o capítulo 6
de Daniel, de modo especial os vv.28-42, bem como, representa uma releitura do texto
aramaico, principalmente quando Daniel se encontra na cova entre os leões. Nas entrelinhas
deste texto conclusivo deseja-se ressaltar que “Deus protege os fiéis que arriscam suas
O texto ironiza as práticas religiosas e o culto a Bel na Babilônia (cf. vv.3-22). Por
divindade verdadeira (aqui podemos lembrar da antiga tradição da disputa entre o profeta
Elias e os profetas de Baal narrada em 1Rs 18). No centro da disputa está a teologia
antiga profecia o profeta ironiza porque Baal não conseguiu consumir o holocausto; aqui os
sacerdotes de Bel agem com leviandade, pois “haviam feito uma entrada secreta debaixo da
mesa: por ela introduziam-se diariamente e surrupiavam as coisas” (v.12). Porém, mentira
tem pernas curtas e logo, Daniel e o rei descobriram as pegadas de homens, mulheres e
filhos e, estes foram presos e confessaram que consumiam o que estava sobre a mesa
entrando pelas portas secretas. Termina a narrativa com a morte dos sacerdotes e a
383
ASURMENDI, Jesús M. (2004: 434).
166
destruição de Bel e do seu templo. Enfim, o texto ironiza e descreve o fim do culto sacrificial
que ele prepara para a divindade. “O alimento dos deuses era uma das funções essenciais
nos templos tanto na Mesopotâmia quanto no Egito”.384 Daniel não adora o dragão porque
não o considera um Deus vivo. Prepara, então, um alimento que estoura e comprova para o
A parte final do texto gira em torno das ameaças dos babilônios ao rei e sua família
caso não lhes fosse entregue Daniel. Daniel é colocado numa cova de leões. Idêntica à
condenação de Daniel no capítulo 6, porém aqui as motivações para tal condenação são
Babilônia, aqui ele é levado para a cova dos leões porque é um empecilho para a
continuação da prática religiosa dos babilônios. A narrativa de Daniel em meio aos leões nos
Isto sugere que já naqueles tempos circulavam diferentes relatos sobre Daniel na cova dos
leões.
justo inocente diante do instrumento de repressão. No entanto, o diferencial neste relato está
na presença do profeta Habacuc que é transportado para a Babilônia onde está Daniel, a
exemplo do que é descrito na profecia de Ezequiel que é transportado por Deus para junto
dos cativos que estavam nas margens do rio Qebar (ou Cobar). O profeta representa as
forças do campo, pois no relato diz que “ele havia acabado de cozinhar um caldo e de dividir
384
Idem., p.434.
167
pães em pedaços numa cesta, e se dispunha a ir ao campo a fim de os levar aos ceifeiros”
texto aramaico é muito forte as marcas que revelam um grupo ligado aos maskilim (sábios), já o
texto hebraico, dada a conjuntura da guerra macabaica, vislumbramos ali algumas questões
voltadas para os interesses e lutas dos grupos dos hassidim (piedosos). E quanto ao texto
grego? Podemos seguir a hipótese de que ao redor do ano 100 a.E.C. em meio aos conflitos de
grupos e partidos com as suas respectivas tendências, (período confuso da dinastia dos
piedosos e dos justos fiéis às leis e tradições dos pais. São as testemunhas (como encontramos
no Segundo Livro dos Macabeus) capazes de enfrentar o fogo da fornalha com orações e
louvores e as covas de leões. O livro de Daniel na versão grega tem como pano de fundo os
A dinastia de Aristóbulo (104-103 a.E.C.) e Alexandre Janeo (103-76 a.E.C.) vai ser
marcada por muitos confrontos e disputas por poder. Aristóbulo investe na reconquista da
Judéia. E Alexandre Janeo faz um governo longo e agressivo e um de seus maiores conflitos se
dá com os fariseus. É hostilizado pelos fariseus e aumenta a sua força com o apoio dos
sacerdotes (saduceus) e de forças mercenárias. Com essas alianças enfrenta os fariseus, que
385
As três versões de Daniel (que convencionamos chamar de livros de Daniel), a aramaica (Dn 2,4b –
7,28), a hebraica (Dn 1,1-2,4a e 8-12) e a grega (a tradução de Dn 1-12 e os acréscimos de 3,24-90 e 13,1
– 14,42).
168
contavam com o apoio do povo. Os grandes massacres provocaram uma grande ruptura
irreparável entre Fariseus e Hasmoneus. É interessante observar que no final de sua vida,
Alexandre Janeo tinha consciência que se os sucessores quissessem conservar o poder teriam
que fazer a paz com os fariseus. É o que faz Alexandra Salomé (76 – 67 a.E.C.) ao implementar
uma política de separação entre governo e sumo-sacerdócio e pede que os fariseus ajudem a
organizar o país conforme a Lei, mas ao mesmo tempo, entrega aos saduceus e aos
mercenários o controle das fortalezas. Ou seja, os grupos que no governo de Alexandre Janeo
Com isso, os fariseus passam a fazer parte do Sinédrio386 e começam a influir nos
costumes do povo. São contrários à violência e acreditam que a instauração do reino virá pela
observância da lei. Alexandra, a rainha-mãe, não resolveu o poblemas, simplesmente adiou, pois
monarca apoiado por saduceus e mercenários, passa por cima da lei ao se proclamar rei e
abaixo, perguntando sobretudo, pelas reações populares e/ou de grupos afinados com as
386
O sinédrio (“sentar juntos”) provavelmente tem suas origens na época persa e representa uma grande
assembléia de anciãos e que foi instituída como poder no governo de João Hircano (134 – 104 a.E.C.)
seguindo o modelo de governo das cidades gregas. A sua função consistia em força de apoio e assistência
ao Sumo Sacerdotes, o qual era o seu presidente. Contava com a participação de 71 membros: anciãos,
sacerdotes, Sumo sacerdotes, saduceus e, desde Alexandra Salomé, os fariseus e escribas. No período da
dominação romana funcionavam como uma espécie de Suprema corte de Justiça que tinha o papel de
julgar os crimes contra a lei e fixar a doutrina. Só não detinham o poder de executar sentença de morte.
169
Quais as evidências no livro que nos leva a dizer que as palavras refletem este contexto
de confrontos entre os mais variados grupos e tendências políticas? Vou ressaltar três aspectos:
distantes das cidades que diante das frustrações dos rumos políticos instaurados pelo governo
hasmoneu irão buscar a solução no deserto e nas montanhas. Cresce aí a tendência dos
“separados” que projetam como único caminho de solução viver a Lei de Móisés. Conhecemos
Cristão apenas alguns desses grupos, tais como, os essênios e os fariseus. Podemos encontrar
algumas impressões desses grupos no livro grego de Daniel, seja na tradução do texto que
ressalta por exemplo, uma teologia do Deus que vem proteger o justo. É notória nesta
a concepção de que aqueles que serão “salvos” constituem o “povo santo do Altíssimo” (cf. Dn
7).
170
para a fome: migrar para as cidades que fazem parte do eixo comercial, viver de salários pagos
pelos grandes donos de terra, alugar a própria força para servir em tropas mercenárias ou ainda,
texto grego de Daniel aparece, mesmo que rapidamente, os grupos de pobres que buscam o
que perderam suas terras e que irão caminhar rumo a um profetismo ambulante, na busca de
messias.
Daniel não só a figura dos judeus fiéis à Lei e a tradição, mas aqueles que organizam o povo e
julgamento e decisão das questões junto a comunidade, conservação das tradições e costumes
são práticas anciãs que podemos conferir no livro de Provérbios). Estes são os ~yjipê v. o
(sophetim). o
387
Sobre a esperança dos pobres na profecia de Sofonias Ver: SILVA, Rafael Rodrigues da Silva. A
crítica aos opressores em Sofonias 1,7-2,3. São Bernardo do Campo: UMESP (Tese de Mestrado), 1996 e
“Resta esperança para o resto de Israel. Projetos de esperança em Sofonias”. Estudos Bíblicos. n.62,
Petrópolis: Editora Vozes, São Leopoldo: Editora Sinodal, 1999, pp.16-30.
171
SEGUNDA PARTE:
Pensar na circulação do Livro de Daniel para além de seu círculo e em outros tempos é,
enquanto construção de um projeto político (da produção dos textos à interpretação e leitura de
uma dada realidade)389; manifestação das lutas sociais e do jogo de poder390; e, como uma
maneira de perceber a sociedade391, veremos que os fatos históricos (enquanto fatos passados)
foram transmitidos e circularam pela boca e pelos ouvidos e junto aos pequenos grupos e
comunidades. Nem de longe pensar que cada grupo teria ou deveria ter em mãos um livro de
388
“O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo de espelhos
onde o ‘verdadeiro’ e o aparente se mesclam, estranha composição onde a metade visível evoca qualquer
coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo como objeto de estudo é desvendar um segredo, é
buscar um significado oculto, encontrar a chave para desfazer a representação do ser e parecer”. Cf.
PESAVENTO, Sandra Jatahy (1995: 24). Nesta perspectiva, o imaginário nada mais é do que um
conjunto de imagens e de suas relações que compõem um sistema de idéias que revela uma visão de
mundo. O ser humano transmite a sua visão de mundo e a sua vida através de símbolos, ritos, crenças,
representações alegóricas, discursos e imagens figurativas. Cf. DURAND, Gilbert (2002). Falar em
imaginário de resistência é concebê-lo como a projeção de uma sociedade totalmente outra. A
apocalíptica é impulsionadora de uma esperança que joga os seus membros para a busca de um mundo em
tudo melhor do que o mundo real. Ver também LE GOFF, Jacques (1994); PATLAGEAN, Evelyne. A
história do imaginário. In: LE GOFF, Jacques (org) (1998: 291-318) e CASTORIADIS, Cornelius
(2000).
389
Jorge Pixley no seu artigo: "O aspecto político da hermenêutica". In: Revista de Interpretação Bíblica
Latino-Americana n.32 (1999: 85-100) nos apresenta a política tanto na produção dos textos quanto na
sua leitura e apropriação dentro da própria Bíblia, no interior das igrejas e na prática pastoral de
interpretação bíblica na América Latina.
390
Numa leitura de Pierre Bourdieu descobriremos que as representações são manifestações de lutas
sociais e jogo de poder e todo discurso contém estratégias de interesses determinados, pois a autoridade e
a eficácia simbólica de um discurso consiste no poder concentrado do grupo que o enuncia e na pretensão
de agir sobre a realidade (O poder simbólico, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1988).
391
CHARTIER, Roger (1990: 17 e 19): “As percepções do social não são de forma alguma discursos
neutros: produzem estratégias e práticas que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, a suas
escolhas e condutas... Pode-se pensar uma história cultural do social que tome por objeto e
compreensão das formas e dos motivos - ou, por outras palavras, das representações do mundo social,
que, à revelia dos atores sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e
que, paralelamente, descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse”.
172
Daniel. O livro circula na oralidade. Esta faz com que o livro seja cada vez mais nômade. Usando
uma imagem de Paul Zumthor, podemos dizer que a circulação do livro de Daniel seria uma
“Escritura em nomadismo”.392
Quase podemos seguir as trilhas da leitura que Soren Kierkegaard fez sobre a imagem
do espelho em Tiago 1,22-24393, o qual apresenta uma reflexão acerca da Palavra de Deus
alertando o leitor para que o seu olhar ultrapasse o mero examinar o espelho sem, contudo,
olhar-se no espelho. para a perspectiva que existe algo no texto que reflete uma realidade
do leitor.
“Aquele que ouve a Palavra de Deus e a segue é como uma pessoa que se olha
no espelho e passa a se lembrar do que vê dali em diante. Que tipo de olhar
sobre si mesmo no espelho da Palavra de Deus, pergunta ele, é necessário a
fim de que se receba uma bênção verdadeira? Ele responde que só se beneficia
do olhar em direção à Palavra aquele que vai além de observar apenas o
espelho para ver a si próprio. Assim, a parábola de Tiago ‘alerta contra o erro de
se passar a examinar o espelho, em vez de olhar-se no espelho’.” 394
Nesta perspectiva vamos descobrir que dentro dos cristianismos originários395 não só
circulou o livro de Daniel, bem como, foi propulsor de novas leituras diante das situações de crise
e perseguição. É importante observar que o livro de Daniel com as suas imagens, simbolismo,
resistência. Pensar a força dos movimentos apocalípticos no período de dominação romana para
392
Zumthor, Paul. 2005. Escritura e nomadismo: entrevistas e ensaios. São Paulo: Ateliê Editorial.
393
“E sede cumpridores da palavra, e não somente ouvintes, enganando-vos com falsos discursos.
Porque, se alguém é ouvinte da palavra, e não cumpridor, é semelhante ao varão que contempla ao
espelho o seu rosto natural; porque se contempla a si mesmo, e foi-se, e logo se esqueceu de que tal era”.
(Tg 1,22-24).
394
VANHOOZER, Kevin (2005: 18-19).
395
Conceituação defendida por biblistas, exegetas e escritores que se reúnem anualmente nos encontros
de biblistas, nos quais definem a produção do Comentário Bíblico Latino-Americano e da Revista de
Interpretação Bíblica Latino-Americana. Sob o tema dos Cristianismos Originários produziram duas
revistas: número 22 em 1995 que abordou a história dos anos 30 a 70 E.C. e a de número 29 em 1998 que
analisou os cristianismos extrapalestinos nos anos 35 a 138 E.C.
173
daí projetarmos as hipóteses da circulação de um livro como o de Daniel, faz-se necessário levar
em conta a visão de mundo em que estão assentadas as expectativas dos grupos e/ou
político-religiosa.
“O perigo pode ser real ou imaginário: o que conta é a maneira como ele é
percebido... Ele pode ser interno ou externo: pode implicar na reação de um
grupo que já ocupou uma posição de poder e status, mas que agora está
marginalizado e desprivilegiado; ou pode ser a reação de toda uma sociedade
colonizada dentro de um contexto imperialista”.396
Isto tudo nos leva a crer que o livro de Daniel constitui nestes ambientes como um texto
aberto.
396
CROSSAN, John Dominic (1994: 139-140).
174
CAPÍTULO 4:
cristianismo ou a existência de vários cristianismos originários. Eis uma discussão sem fim se
nos conduzirmos pelas trilhas da doutrina eclesiástica. O que nos interessa neste capítulo é
suas marcas na construção das imagens de um Jesus apocalíptico elaboradas por comunidades
Uma primeira constatação da circulação e utilização do livro (ou dos livros) de Daniel
está num contexto bem próximo, ou seja, o da escrita da obra dos Macabeus. De um lado está
toda a leitura da guerra e do pós guerra nestes livros que tem vários jeitos de contar a história.
Do outro, um livro apocalíptico que anima a resistência do povo e projeta tempos de mudança.
No entanto, no livro historiográfico iremos deparar com a citação de uma imagem própria do livro
de Daniel. É a imagem da “abominação da desolação” (Dn 11,31; 12,11 e 9,27) que aparece em
1Mc 1,54. Também o Segundo Livro dos Macabeus na sua contraposição a esta abominação,
vai contar histórias de coragem a exemplo dos jovens que enfrentam a fornalha e Daniel na cova
dos leões.
resistência do povo percebemos uma forte presença do livro de Daniel seja na descrição do
dominador enquanto bestas (Dn 7), ou o monarca que se transforma em animal como vimos em
exaltação que o texto de 3Mc faz aos que se mantiveram fiéis à sua piedade:
“25 De volta ao Egito, deu alimento a sua maldade com a ajuda dos referidos
amigos e camaradas, homens distantes de toda a justiça. Não contente 26 com
seus inumeráveis vícios, chegou a tal grau de ousadia que inventava palavras
de mal presságio nos lugares de sacrifício, e muitos de seus amigos, atentos à
intenção do rei, o seguiam em seus desejos. 27 Se propôs como fim extender
uma pública maledicência contra a raça judía. Fez erigir com esta finalidade
uma estela na torre que dá ao pátio, na qual inscreveu: 28 ‘Nenhum dos que
não sacrifiquem entre aos templos e que todos os judeus sejam censados e
reduzidos à condição servil. Contra os que se opõem empregue a violência até
a perda da vida, 29 e os registrados sejam também marcados a fogo no corpo
com o selo, na forma de folha de hera, de Dionisios, ficando assim reduzidos à
condição acima proclamada’. 30 porém para que não resulte manifesto que lhes
odiava a todos, fiz inscrever debaixo: ‘se alguns, dentre eles preferirem unir-se
aos iniciados segundo os ritos, tenham os mesmos direitos de cidadania que
os alexandrinos’. 31 Alguns, que aborrecíam evidentemente os fundamentos da
piedade do povo, se entregaram facilmente, com a idéia de que iam participar
de grande fama graças à sua futura associação com o rei. 32 Porém a maioria
resistiu com nobre ânimo e não abandonou sua piedade. Propuseram, dando
seu dinheiro em troca da vida, livrar-se dos censos; 33 mantinham por sua vez a
esperança de lograr ajuda, faziam objeto de opróbrio aos que se tinham
separado deles, lhes julgavam inimigos da raça e lhes privavam de seu favor e
trato comum”. (3 Macabeus 2,25-33)397
Na oração de Eleazar aparece claramente a memória (lembrança) da resistência dos
397
. “25 De regreso a Egito, dio pábulo a su maldad con la ayuda de los antedichos amigos y camaradas, hombres
alejados de toda a justicia. No contento 26 con sus innumerables vicios, llegó a tal grado de osadía que inventaba
palabras de mal agüero en los lugares de sacrificio, y muchos de sus amigos, atentos a la intención del rey, lo
seguían en sus deseos. 27 Se propuso como fin extender una pública maledicencia contra la raza judía. Hizo erigir a
este fin una estela en la torre que da al patio, en la que inscribió: 28 ‘Nadie de los que no sacrifiquen entre a los
templos y que todos los judíos sean censados y reducidos a condición servil. Contra los que se opongan empléese
la violencia hasta la pérdida de la vida, 29 y los registrados sean también marcados a fuego en el cuerpo con el sello,
en forma de hoja de hiedra, de Diónisos, quedando así reducidos a la condición arriba proclamada’. 30 pero para que
no resultara manifiesto que les odiaba a todos, hizo inscribir debajo: ‘si algunos, de entre ellos prefirieran unirse a
los iniciados según los ritos, tengan los mismos derechos de ciudadanía que los alejandrinos’. 31 Algunos, que
aborrecían evidentemente los fundamentos de la piedad del pueblo, se entregaron fácilmente, con la idea de que
iban a participar de gran fama gracias a su futura asociación con el rey. 32 Pero la mayoría resistió con noble ánimo
y no desertó de su piedad. Intentaron, dando su dinero a cambio de la vida, librarse de los censos; 33 mantenían a la
vez la esperanza de lograr ayuja, hacían objecto de oprobio a los que se habían separado de ellos, les juzgaban
enemigos de la raza y les privaban de su favor y común trato”. (3 Macabeus 2,25-33). In: DIEZ MACHO,
Alejandro (1983: 491).
176
“Tu, que aos três amigos que voluntariamente entregaram a vida ao fogo por
não servir aos falsos deuses, esfriaste o forno ardente, livrastes os inocentes
até o último cabelo e enviastes uma labareda a todos seus inimigos. Tu, que a
Daniel, arrojado sob a terra aos leões por invejosas calúnias, como pasto de
feras, o tirastes ileso à luz”.398
Em 4 Macabeus, obra de caráter apologético, encontramos uma grande reflexão sobre o
martírio, na qual é evocada a resistência de Eleazar, dos sete irmãos Macabeus e da mãe
(claramente os autores elaboram uma releitura reflexiva de 2 Mc). O texto traz a lembrança da
ação dos mártires e depois apresenta um grande elogio. Justamente no elogio aos irmãos
Macabeus (capítulo 13) os autores colocam no momento em que os irmãos estavam sendo
apresentam-na como “mãe do povo, defensora da piedade, aquela que ampara a lei e vencedora
da batalha interior”. E na seqüência faz algumas comparações para mostrar a força e nobreza
desta mulher. Na primeira comparação estão os três jovens e Daniel: “Ni la fiereza de los leones
de Daniel ni la voracidad del horno de Misael eran tan fuertes como el ardor del amor maternal
en aquella mujer al ver a sus siete hijos torturados” (4Mc 16,3)400. Mais adiante, os autores
colocam nas palavras de ânimo desta mãe para os filhos a lembrança de Daniel na cova dos
leões e dos três na fornalha como testemunho de que suportaram tudo por Deus (cf. 4Mc
16,21401). Também na conclusão do livro há nova alusão a Dn 3 e 6: “Nos hablaba del celoso
398
“6Tú, que a los tres amigos que voluntariamente entregaron la vida al fuego por no servir a falsos
dioses, enfriaste el horno ardiente, los libraste indemnes hasta el último cabello y enviaste una llamarada
a todos sus enemigos. 7 Tú, que a Daniel, arrojado bajo tierra a los leones por envidiosas calumnias,
como pasto de fieras, lo sacaste ileso a la luz”. 3Mc 6,6-7. In: DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 500).
399
“8Ellos, formando un coro santo de piedad, se animaban diciendo: 9 – ¡Hermanos, muramos
fraternalmente por la ley! ¡Imitemos a los tres jóvenes de Siria, que despreciaron un horno semejante! 10
¡No seamos cobardes ante la prueba de nuestra piedad!” 4 Macabeus 13, 8-10. In: DIEZ MACHO,
Alejandro (1982: 157).
400
Idem., p.161.
401
“El justo Daniel fue arrojado a los leones; Ananías, Azarías y Misael fueron precipitados en un horno
de fuego. Y todos lo soportaron por Dios”. Idem., p.162.
177
Notemos que o livro de Daniel circulou também como material que animou e fortaleceu a
casos de vitória sobre os instrumentos de repressão (os três judeus lançados na fornalha e
Daniel na cova dos leões) fortaleceu uma mística e/ou espiritualidade de resistência através do
martírio. Evidentemente que a memória dos atos heróicos dos fiéis judeus (protagonistas) do
livro de Daniel
romano na Galiléia, justamente depois que passaram cinco anos da chegada dos romanos, que
vieram para “pacificar” a região diante das dificuldades do governo dos Hasmoneus. Mas em
poucos anos, o povo que vivia no interior começou a experimentar a política romana, ou seja, o
controle das terras e do comércio e altos tributos, surgiram assim, grupos de camponeses
nas estradas comerciais, bem como as grandes propriedades. O grande líder dessa época era
Ezequias, chamado por Flávio Josefo como o “salteador-chefe”. Aliás, as lideranças camponesas
da Galiléia e da Judéia serão classificadas pela linguagem de Flávio Josefo como “bandidos” (é
402
Idem., p.165.
403
Termo que é utilizado por Flavio Josefo para descrever os revoltosos. Uma boa análise deste termo e a
tentativa de uma reconstrução dos movimentos populares no tempo de Jesus é o livro de HORSLEY,
Richard A. e HANSON, John S. Bandidos, Profetas e Messias: Movimentos populares no tempo de
Jesus. .
178
Será que as imagens do livro de Daniel animaram o povo a resistir, defendendo as suas
tradições e enfrentando o domínio romano? É curioso e previsível que Flávio Josefo (historiador
discursos anti-gregos e anti-romanos; bem como uma repulsa pela apocalíptica e pela profecia
radical.405 Não podemos simplesmente supor que Josefo desconhecia os livros e textos de teor
circulavam em meio aos resistentes, seja na ação daqueles que levam muitos a se armarem
mudança (grupos que caminham para o deserto na busca de viver conforme a Lei de Moisés).
404
Eis uma breve apresentação sobre Flávio Josefo feita por Crossan: “Josefo, historiador judeu, nasceu
em 37 E.C. e era membro da aristocracia sacerdotal de Jerusalém. Em 64 E.C., esteve na presença de
Nero para defender alguns sacerdotes colegas seus e ao voltar tornou-se ‘general’ da revolta judia na
Galiléia, mas acabou se rendendo a Vespasiano em 67 E.C.[...] Ele provavelmente morreu no final do
século I. Assim, pelo menos na primeira guerra romano-judaica, ele foi um participante ativo e uma
testemunha dos dois lados. [...] A primeira obra de Josefo foi a ‘A guerra dos judeus’, cujas primeiras
seções foram apresentadas a Vespasiano já entre 75 e 79 E.C. Os seis primeiros volumes foram
publicados no governo de Tito, entre 79 e 81 E.C., e o sétimo acrescentado durante o reinado de
Domiciano, provavelmente ainda no início da década de 80 E.C. Depois veio ‘Antiguidades judaicas,
obra em 20 volumes, bem mais longa do que a ‘A guerra dos judeus’, mas não tão bem escrita, cuja
primeira edição completa foi publicada entre 93 e 94 E.C. A ‘Autobiografia’, inserida nesta obra na
forma de um breve apêndice autobiográfico, pode ter sido parte da primeira edição, ou ter sido
acrescentada numa versão revisada, provavelmente antes de 96 E.C. Por fim, os dois volumes de ‘Contra
Ápion’, ou “Sobre a antiguidade dos judeus’, foram escritos depois das ‘Antiguidades, provavelmente já
durante o governo do imperador Nerva, entre 96 e 98 E.C.” Cf. CROSSAN, John Dominic (1994: 128-
9).
405
Eis uma palavra de Josefo, no seu livro Guerra dos Judeus sobre os “bandidos”, a oposição ao Império
e a pregação de salvação de alguns grupos: “uma nova espécie de bandidos estava surgindo em
Jerusalém, os chamados sicarii, que cometiam assassinatos à luz do dia, dentro da cidade e, tendo
cometido seus crimes com adagas curtas que traziam escondidas, juntavam-se ao choro e indignação
gerais, nunca sendo descobertos [...] E além desses havia outro grupo de malfeitores, de mãos mais puras
e intenções mais ímpias, que contribuíram tanto quanto os assassinos para o fim da paz na cidade.
Mentirosos e impostores, fingiam inspiração divina ao pretenderem mudanças revolucionárias, e
persuadiram a multidão a agir de modo insensato, guiando-a ao deserto sob a crença de que lá Deus
mostraria os sinais da salvação. Félix, considerando isso o prenúncio de uma insurreição, enviou contra
eles cavalaria e infantes pesadamente armados, e matou muitos”. (II, 254-260). Apud. DOBRORUKA,
Vicente (2004: 163-4).
406
Em Antiguidades Judaicas X, Flavio Josefo interpreta e diz algo sobre Dn 2 e 7 sobre a descrição dos
impérios. Na interpretação da pedra que atinge a estátua, ele vai dizer o seguinte: “E Daniel também
revelou ao rei o sentido da pedra, mas não achei apropriado relatar isso, posto que esperam que eu
escreva do que é passado e está feito e não do que virá”. Apud. FLUSSER, David (2001/2: 106).
179
Com certeza, é um longo caminho a ser trilhado na pesquisa sobre os grupos populares, suas
No meu trabalho gostaria de ressaltar que em meio às ações desses grupos messiânico-
populares, provavelmente, deve ter circulado o livro de Daniel e /ou algumas de suas narrativas
e visões. Penso que o livro de Daniel circulou em meio ao milenarismo literário que produziu este
texto e em meio ao milenarismo popular que resultou em “ações”.408 Infelizmente não temos
nenhum registro dos discursos, das falas desses líderes populares, tais como Ezequias, Simão,
Judas, Atronge e o profeta egípcio entre outros. A memória desses líderes nos chega
fragmentada e filtrada pelo registro dos homens da elite e segundo o ponto de vista dos ricos e
poderosos, dos letrados e intelectuais. Muitos desses líderes são lembrados em menções na
história dos judeus escrita por Flávio Josefo. Podemos dizer que temos através do texto Flávio
Josefo uma memória filtrada das ações desses líderes. No caso, é preciso também fazer uma
leitura pelo avesso do que aponta Josefo, pois sua pregação é de que os judeus foram
derrotados pelos romanos devido a um pequeno grupo de baderneiros e quase classifica todos
estes grupos como sendo da linha dos Zelotas e Sicários. À luz da análise de Horsley e Hanson,
(assaltantes que agem em bandos e saqueiam os mercados e que desempenham papel político
na guerra contra Roma), os profetas (que pregavam tempos de mudança de cunho político-
Eis um dos textos de Flávio Josefo que mistura estes três grupos:
407
Uma boa análise panorâmica dos grupos revoltosos e uma de reconstrução dos movimentos populares
no tempo de Jesus é o livro de HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. (1995). Uma leitura destes
grupos conectada com dinâmica religiosa e messiânica temos o livro de SCARDELAI, Donizete.
Movimentos messiânicos no tempo de Jesus. Jesus e os outros messias. São Paulo: Paulus, 1998. Um
resumo das intuições de Richard Horsley e John Hanson está no artigo de MESTERS, Carlos (1988: 72-
80). Uma leitura fantástica situando Jesus em meio à essas lideranças e ressaltando a sua vida com relação
à vida dos camponeses é o livro de CROSSAN, John Dominic. O Jesus Histórico. A vida de um
camponês judeu do Mediterrâneo.
408
Esta conceituação de milenarismo literário e milenarismo popular estou tomando de John Dominic
Crossan.
409
Cf. HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. (1995).
180
“Nem a nação samaritana estava livre de distúrbios. Pois um homem que não
tinha escrúpulos em praticar fraudes e livremente lançava mão delas para
agitar a multidão ordenou que essa subisse com ele, em grupo, o monte
Garizim, que para eles é a montanha mais sagrada. Prometeu mostrar-lhes,
quando lá chegassem, os vasos sagrados enterrados no lugar em que Moisés
os colocara. Aqueles que acharam o seu discurso convincente vieram com
armas e estacionaram numa aldeia chamada Tiratana. Ali chegaram os
retardatários para subirem a montanha numa grande aglomeração. Mas,
Pilatos agiu rapidamente, impedindo sua subida, com um contingente de
cavalaria e infantaria armada. Atacaram os que se haviam reunido antes na
aldeia, mataram alguns, dispersaram outros e prenderam muitos como
escravos. Deste grupo Pilatos mandou executar as cabeças e os mais hábeis
entre os fugitivos” (Antigüidades Judaicas 18.85-87).410
Gostaria de citar como ele descreve Simão e o profeta egípcio:
410
Flavio Josefo. Apud. HORSLEY, Richard A. e HANSON, John S. (1995: 147).
411
Flávio Josefo. Apud. SCARDELAI, Donizete (1998: 130).
412
Flávio Josejo. Apud. CROSSAN, John Dominic (1994: 200).
181
Entre os profetas populares413, destaca-se João Batista que aparece por volta de 20 E.C.
Um texto sintomático na linha da resistência que aborda a morte e martírio de João Batista
conectados com a dominação romana, via Herodes Antipas é o de Mc 6,17-18. Neste texto é
relatada a causa da morte de João: as duras críticas ao relacionamento ilícito entre Herodes e
Herodíades. Na versão de Flávio Josefo para este episódio, João Batista é descrito como um
homem que em suas pregações fala da prática da justiça e da piedade em relação a Deus e, por
sinal, atraía muita gente. E este é um dos motivos para o seu assassinato, pois Herodes temia
aparece mais tarde o profeta Teudas (Atos 5,35-37) que organiza um movimento de voltar para o
deserto e que aos olhos do imperialismo representava uma ameaça política. Ele foi capturado,
decapitado e sua cabeça levada para Jerusalém. Outros profetas que seguem na mesma direção:
Judas, o Galileu (At 5,37), o egípcio (At 21,38), os sicários de mãos mais limpas (50 E.C.) e Jesus
Para Crossan, a ida ao deserto pode tomar a forma de uma invasão militar ou a espera
de uma intervenção divina, mas de qualquer maneira esta ação implicaria num projeto de
mudanças sociais e que também pode ser tomado como de cunho popular. Daí as reações
Numa leitura contraposta ao que nos apresenta Flávio Josefo poderíamos dizer que textos com
413
Ver: CROSSAN, John Dominic (1994: 203-241).
414
Jesus, filho de Ananias é um camponês que segundo Flávio Josefo começou a gritar em pé em frente
ao Templo a frase: “Uma voz do leste, do oeste, dos quatro ventos; contra Jerusalém e o santuário, contra
o noivo e a noiva, contra todas as pessoas”. Dia e noite berrava as mesmas palavras, numa atitude que
irritou os cidadãos mais ilustres, que mandaram o prender e castigar. Nunca falou uma palavra em sua
defesa ou para os que o feriram, apenas continuando com os mesmos gritos a cada chibatada: “Desgraça
para Jerusalém”. Albino, o governo, o soltou após concluir que tratava-se de um maníaco. Esta situação
continuou por longos 7 anos e meio, sem que sua voz se enfraquecesse nem sua força exaurisse, até que
morreu por uma pedrada, durante sua ronda costumeira. Flávio Josefo. In: CROSSAN, John Dominic
(1995: 75-77).
415
CROSSAN, John Dominic (1994: 197).
182
forte teor profético, escatológico, apocalíptico e sapiencial tenham circulado em meio a esses
grupos. Vale, mais uma vez, acentuar que a circulação desses textos é marcada por uma forte
tradição oral. E o texto que é transmitido é na realidade o oral. Por isso, a citação de um outro
texto acontece pelas aproximações do conteúdo, do simbolismo, das imagens e de alguns termos
É muito comum supormos que a Judéia e a Galiléia daqueles tempos era altamente
torno das escrituras. No entanto, são poucas as evidências de que os camponeses e as camadas
desfavorecidas detinham a escrita. Pode-se até argumentar que pelo uso de textos da Mishná os
freqüentadores das sinagogas sabiam ler; mas devemos contra-argumentar que uma das muitas
Mishná. E uma das funções primordiais dos pais na educação dos filhos consistia na recitação de
cor das tradições das escrituras. E esta máxima valia até mesmo para os letrados.416 Vale
lembrar que nas culturas antigas as diferenças entre oralidade e literariedade eram bem
oralidade, pois o seu surgimento é devido à riqueza da tradição oral e a sua comunicação à
aumento do poderio romano provocou a busca de novos anseios e novos “textos” (mesmo
batendo na mesma tecla dos textos antigos). Um exemplo disto é o das benções messiânicas do
livro dos Jubileus que proclama um tempo em que a geração dos que praticam a justiça alcançará
416
Ver: HORSLEY, Richard A. (2000: 140-142).
183
mil anos e não haverá nenhum mal e nem demônio; no entanto, este tempo não chegou a ser
alcançado porque o mal destruidor e o demônio não foram aniquilados. Nem tampouco, os
“santos do Altíssimo” receberam o reino que não tem fim descrito na visão de Dn 7.
Contudo, a confusão política e econômica desde a dinastia dos Hasmoneus levou muitos
grupos a reler e a criar novos textos apocalípticos e messiânicos. Como vimos no final da primeira
parte, é neste período que se dá a tradução (ou traduções) do livro de Daniel e o surgimento de
outros textos pseudonímicos como os Salmos de Salomão, escrito por escribas e com forte teor
didático. O livro de I Enoque (Primeiro Livro de Enoque ou Livro das Parábolas ou Similitudes de
Enoque),418 escrito entre os anos 20 a.E.C. e 20 E.C., produz uma releitura da imagem do Filho
do Homem que vem de Dn 7.419 Este Filho do Homem é descrito da seguinte maneira:
417
“26En esos días, los niños comenzarán a examinar las leyes y a estudiar los mandamientos, volviendo
al camino de la justicia. 27 Irán multiplicándose y creciendo las vidas de esos hombres, generación tras
generación y día tras día, hasta que se acerquen sus vidas a los mil años y a muchos años de muchos
días. 28 No habrá anciano ni quien se canse de vivir, pues todos serán niños e infantes; 29 pasarán todos
sus días en salud y gozo, y vivirán sin que haya ningún demonio ni ningún mal destructor, pues todos sus
días serán de bendición y salud. 30 Entonces curará el Señor a sus siervos, que se alzarán y verán gran
paz. Se dispersarán sus enemigos, y los justos verán y darán gracias, regocijándose por los siclos de los
siclos vioendo en el enemigo todo su castigo y maldición. 31 Sus huesos descansarán en la tierra, su
espíritu se alegrará sobremanera, y sabrán que existe un Señor que cumple sentencia y otorga clemencia
a los centenares y miríadas que lo aman. 32 Y tú, Moisés, escribe estas palabras, pues así está escrito y
registrado en las tablas celestiales como testimonio de perpetuas generaciones.” Jubileus 23, 26-32. In:
DIEZ MACHO, Alejandro (1983: 137-8).
418
“Embora o I Enoque não faça parte da Bíblia, nem mesmo dos Apócrifos, nos séculos imediatamente
anteriores e posteriores a Jesus esse texto era amplamente conhecido e desfrutava de imenso prestígio.
Nos séculos II e I a.C., nada menos que onze manuscritos dele foram produzidos somente pela
184
“Este é o Filho do Homem, de quem era a justiça e a justiça vivia com ele. Ele
revelará todos os tesouros do oculto, pois o Senhor dos espíritos o escolheu, e
é aquele cuja sorte é superior a todos eternamente pela sua retidão diante do
Senhor dos espíritos. Este Filho do Homem que você viu levantará os reis e
poderosos de seus leitos e aos fortes de seus assentos, soltará as orlas dos
poderosos e destruirá os dentes dos pecadores. Lançará aos reis de seus
tronos e reinos, porque eles não o exaltam e nem louvam, nem dão graças por
se lhes deu o reino. Humilhará o rosto dos poderosos e os encherá de
vergonha: a escuridão será sua habitação; gusanos, seu leito: e não terão
esperança de levantar-se dele, porque eles não exaltam o nome do Senhor dos
espíritos. Estes são os que erigem como árbitros dos astros do céu, levantam a
mão contra o Altíssimo, pisoteiam a terra e vivem nela mostrando iniqüidade
em todas as suas obras. Sua força está em sua riqueza, e sua fé, nos deuses
que forjaram com suas mãos negando o nome do Senhor dos espíritos,
perseguindo suas casas de reunião e aos crentes que se apegam ao nome do
Senhor dos espíritos”.420
Com isso, podemos dizer que o livro de Daniel com o seu imaginário circulou entre as
bem como, está presente em outras obras apocalípticas do milenarismo literário. Para Norman
Cohn o livro de Daniel “não é um manifesto macabeu. Não tem como objetivo recrutar tropas,
mas encorajar a população civil – ou melhor, uma elite pertencente a esta população – a suportar
comunidade de Qumran, e com certeza era conhecido em círculos muito mais amplos: os autores de
apocalipses posteriores, do final do século I d.C., ainda estavam familiarizados com o texto. [...] Os
fragmentos de Qumran sugerem que quase todo I Enoque foi composto em aramaico, embora parte dele
possa ter sido escrita em hebraico. Nossa principal fonte , contudo, é uma tradução etíope feita entre os
séculos IV e VI para a Igreja cristã da Etiópia. Esta versão baseia-se sobretudo em uma tradução grega,
da qual sobreviveram fragmentos. Independentemente do idioma, a obra é conhecida como I Enoque,
para distingui-la de um texto muito diverso conhecido pelos títulos de II Enoque, Os Segredos de Enoque
ou Enoque eslavônico”. Cf. COHN, Norman (1996: 231-2).
419
Muitos comentadores estabelecem uma relação entre o Livro de Daniel e o Livro de Enoque, entre os
quais estão: John Collins, Stephen Breck Reid, Michael E. Stone e George Nickelsburg.
420
“Este es el Hijo del hombre, de quien era la justicia y la justicia moraba con él. El revelará todos los
tesoros de lo oculto, pues el Señor de los espíritus lo ha elegido, y es aquel cuya suerte es superior a
todos eternamente por su rectitud ante el Señor de los espíritus. Este Hijo del hombre que has visto
levantará a los reyes y poderosos de sua lechos y a los fuertes de sus asientos, aflojará las bridas de los
poderosos y destrozará los dientes de los pecadores. Echará a los reyes de sus tronos y reinos, porque no
lo exaltan ni alaban, ni dan gracias porque se les ha dado el reino. Humillará el rostro de los poderosos
y los llenará de vergüenza: la tiniebla será su morada; gusanos, su lecho; y no tendrán esperanza de
levantarse de él, porque no exaltan el nombre del Señor de los espíritus. Estos son los que erigen como
árbitros a los astros del cielo, levantan la mano contra el Altísimo, pisotean la tierra y moran en ella
mostrando iniquidad en todas sus obras. Su fuerza está en su riqueza, y su fe, en los dioses que forjaron
con sus manos negando el nombre del Señor de los espíritus, persiguiendo sus casas de reunión y a los
creyentes que se apegan al nombre del Señor de los espíritus”. Livro I de Enoque 46, 3-8. In: DIEZ
MACHO, Alejandro (1984b: 71-2).
185
com firmeza a perseguição”.421 Tudo bem que o livro de Daniel não é manifesto de luta e que tem
por objetivo o encorajamento do povo a manter-se fiel às leis e tradições; porém, uma questão
discutível está na afirmação de que o livro prestou este serviço a uma elite. Quem é esta elite?
São os macabeus? São os hasmoneus? Norman Cohn não chega a definir quem faz parte desta
elite. Penso que não podemos simplesmente dizer que este livro circulava nas mãos daqueles
que detinham o poder econômico (o controle das terras, do templo e dos palácios). Sendo assim,
teríamos que dizer que o livro de Daniel foi transmitido pelos Hasmoneus e sadocitas. Acho que
não é isto que Norman Cohn esteja querendo dizer. Porém, devemos pensar aqui numa elite
cultural (escribas que foram juntando as mais variadas tradições). Provavelmente uma elite
letrada que foi colecionando e compilando as tradições que vinham das gentes iletradas.
Sobre esta discussão não resolvida acerca da apocalíptica enquanto produção dos
letrados ou iletrados, Martinus de Boer tece alguns comentários tomando como referência a
opinião de Richard Horsley de que a literatura apocalíptica foi produzida por literatos (uma elite
cultural e não econômica) ao passo que o movimento de Jesus pertencia ao dos camponeses
iletrados que cultivavam suas próprias tradições israelitas e comunidades aldeãs. Ele toma Q
10,21-24, no qual “Jesus dá graças ao Pai que ‘revelou’ (apekalypsas) todas estas coisas às
‘crianças’, ou seja, ao povo simples, e de fato as escondeu da elite sapiencial, a elite de escribas
e sábios profissionais que cultivavam e recebiam ‘revelações’.” Este texto nos leva a supor que o
Evangelho das Sentenças Q é fruto de um movimento popular oposto à elite política e cultural
421
COHN, Norman (1996: 226).
422
Richard Horsley apud. DE BOER, Martinus (2000: 21-22).
186
No entanto, não podemos simplesmente reduzir o documento Q como uma mera fonte
Portanto, podemos supor que o livro de Daniel circulou entre os camponeses iletrados
(milenarismo popular) e os escribas e a elite cultural (milenarismo literário). Para Richard Horsley
a literariedade estava com a administração urbana. Por isso, conclui que “é pouco provável que
423
CROSSAN, John Dominic (1994: 467) Na última camada do documento Q é que se postula a imagem
de um Jesus defensor da estrita observância da Torá.
424
ANDERSON, Ana Flora, GORGULHO, Gilberto, SILVA, Rafael Rodrigues da e VASCONCELLOS,
Pedro Lima (2005: 54-55).
425
DE BOER, Martinus (2000: 23-24).
426
HORSLEY, Richard A. (2000: 142).
187
Não é nossa intenção entrar nas discussões acerca do Jesus histórico427, no entanto é
preciso ter presente que os Evangelhos não devem ser lidos como biografia de Jesus428, pois
representam muito mais uma releitura da história de Jesus a partir dos caminhos e da vida das
apresentar uma imagem de Jesus, a partir dos dados que foram recolhidos pela memória e
atualizados pelos contextos nos quais foram produzidos. Os Evangelhos têm a intenção de
oferecer indicações para o agir da comunidade frente ao mundo social, político e cultural que a
rodeia.429 A tradição e a transmissão oral acerca da vida e ação de Jesus de Nazaré reflete o
olhar das comunidades cristãs que buscavam responder às suas necessidades. Com isso não
temos muita certeza sobre a origem das tradições orais no contexto da vida de Jesus, pois os
evangelhos não são biografias, mas testemunho da fé e da constante busca das comunidades em
responder aos problemas cotidianos. Também devemos ter presente que o texto não é a
composição feita por uma pessoa, mas são compilações coletivas de pequenas unidades
literárias que foram compiladas e organizadas nos evangelhos. Vale lembrar que tudo o que
sabemos sobre Jesus é mediado pela ótica das comunidades. E boa parte dos Cristianismos
427
Diferentes perspectivas e maneiras de estudar o Jesus da história. Vejamos alguns exemplos: Rudolf
Bultmann aborda muito mais um Jesus da fé e que os Evangelhos representam a identidade de Jesus
transmitida teologicamente pelos cristãos. Gerd Theissen, na linha de um estudo da sociologia das
comunidades cristãs busca reconstruir o Jesus histórico desde o ponto de vista da construção social das
comunidades itinerantes. Quase nessa direção temos a leitura de Richard Horsley, John Hanson, Seán
Freyne e Wayne A. Meeks. Helmut Koester se aproxima das discussões sobre o Jesus Histórico num
trabalho de reconstrução da história e desenvolvimento da literatura cristã do Io século. Numa perspectiva
antropológica e cultural desponta o comentário de Bruce J. Malina. A visão de um Jesus sábio radical
relacionado com a vida dos camponeses no mediterrâneo é apresentada por John Dominic Crossan. Na
tentativa de aproximar o Jesus histórico das tradições judaicas temos os trabalhos de Marcos Borg e
David Flusser. E numa exegese mais tradicional temos o trabalho de John Meier. E poderíamos continuar
numa longa lista de trabalhos e perspectivas na busca do Jesus Histórico. Uma visão geral sobre as
discussões acerca do Jesus Histórico Ver: BARTOLOMÉ, Juan J. (2001: 179-242).
428
Cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima. A boa notícia segundo a comunidade de Lucas. São Leopoldo:
CEBI, 1988. “A questão é que justamente os evangelhos não são uma “biografia”, uma “reportagem” a
respeito de Jesus, uma “gravação” de suas palavras. No evangelho Jesus fala, sim, mas principalmente é
uma comunidade que fala sobre Jesus! Cada um dos evangelhos apresenta Jesus a partir de uma
determinada realidade. Melhor dizendo, cada evangelho apresenta Jesus partindo da vida e dos desafios
de uma certa comunidade.”
429
Notas retiradas de ANDERSON, Ana Flora, GORGULHO, Gilberto, SILVA, Rafael Rodrigues da e
VASCONCELLOS, Pedro Lima (2005: 53).
188
Originários ao afirmarem a crença de que Jesus de Nazaré era o Messias, interpretaram sua
vida, suas palavras, suas ações e sua morte; bem como, as esperanças que depositavam em seu
(documentos fontes que vem da oralidade) sobre Jesus estão situados num contexto apocalíptico.
Por exemplo, na camada apocalíptica do Evangelho das Sentenças Q, Jesus é o juiz justiceiro
Nas discussões sobre a possível composição dos escritos que circularam e foram
produzidos por cristãos seguidores de Jesus na Galiléia é que se lança com força a hipótese de
Q, não só como uma fonte utilizada pelos Evangelhos de Mateus e Lucas (além da fonte comum
que era Marcos), mas como um evangelho com seu dinamismo e intencionalidades. Pena que
não podemos avançar e se esquivar dos evangelhos de Mateus e Lucas para buscar uma
iremos entrar no mérito das discussões acerca das descobertas e debates entre os especialistas
que este evangelho provém da Galiléia (ao redor do lago de Genesaré na opinião de Leif E.
Vaage, enquanto uma tentativa de responder à realidade local desta região, ou seja, uma
Galiléia na metade do primeiro século que deu origem a este evangelho radical. Aqui se encaixa
430
Talvez seja nesta perspectiva que Ernst Käsemann tenha afirmado que a apocalíptica é a mãe de toda a
teologia cristã.
431
Ver estudo de MACK, Burton L. 1994. O Evangelho perdido. O livro de Q e as origens cristãs. Rio de
Janeiro: Imago Editora LTDA.
432
VAAGE, Leif E. (1995: 84-108).
189
radicalismo ético presente na tradição das palavras de Jesus, que se evidencia num discurso de
“As palavras de Jesus representam uma ética da pessoa sem pátria, sem
querência. O chamado do seguimento significa: renúncia à stabilitas loci (i.e.,
posição estável). Os chamados abandonam barco, roças, posto alfandegário,
casa. Um seguidor recebe de Jesus o seguinte aviso: ‘... As raposas têm seus
covis e as aves do céu, ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a
cabeça’ (Mt 8,20). Essa existência apátrida não era vivida somente durante o
tempo de vida de Jesus. A Didaqué, por exemplo, sabe da existência de
carismáticos cristãos itinerantes. Acerca deles, fala que praticavam o tropous
kyriou, o modo de viver do Senhor (Didaqué 11.8)”.434
propriedade como podemos ler em Mt 6,25-34 e Lc 12,22-31. À luz dessas palavras, Theissen
Para Richard Horsley no Documento Q aparece uma oposição aos governantes e seus
13,34-35) e os textos que buscam medidas para resolver conflitos entre os habitantes rurais,
433
THEISSEN, Gerd (1985:13-40; 1987: 36-55).
434
THEISSEN, Gerd (1987:39).
435
Idem., p.41.
190
como podemos conferir nos discursos que pregam a generosidade (Q 6,29-30), a anulação das
dívidas (11,2-4); amor aos inimigos (6,27-28)436, perdão (17,3-4) e acordo sobre as disputas
(12,58-59).437
julgamento através da figura de “o que vem” (o` evrco,menoj) em 3,16 (“Eu vos batizo com água,
mas o que vem atrás de mim é mais poderoso que eu, de quem não sou capaz de desatar as
correias de suas sandálias; este vos batizará com Espírito Santo e fogo”); 7,19 (“... por seus
discípulos... enviou... disse-lhes: És tu o que vem ou esperamos outro?”) e 13,35 (“Eis aqui,
vossa casa está abandonada. Digo-vos: não me vereis até que digais: ‘Bendito o que vem no
nome do Senhor’”). Evidentemente que esta frase não pode ser entendida ou reduzida a um
título messiânico, mas vai na esteira das correntes cristãs que viviam a expectativa da vinda
trabalhada nos textos de Daniel 7 e 1Enoque. Eis os ditos do Evangelho Q que se refere à figura
do “filho do homem”:
7,33-34 Veio pois João Batista não comendo pão nem bebendo vinho, e dizeis:
demônio tem. Veio o filho do homem comendo e bebendo, e dizeis: eis um
homem comilão e beberrão, amigo de cobradores de impostos e de
pecadores.
9,57-58 E indo eles no caminho disse alguém para ele: seguirei a ti aonde fores. E
disse a ele Jesus: as raposas covas têm e as aves do céu ninhos, mas o
filho do homem não tem onde a cabeça recline.
436
Ver: VAAGE, Leif E. (1991: 71-84)
437
HORSLEY, Richard. Sociology and the Jesus Movement. Apud. VAAGE, Leif E. (1995: 100).
191
11,30 Como pois se tornou Jonas aos ninivitas um sinal, assim será também o
filho do homem à geração esta.
12,8-9 Digo a vós: todo o que se declarar por mim diante das pessoas, também o
filho do homem se declarará por ele diante dos anjos de Deus, mas o que
tiver negado a mim diante das pessoas será negado diante dos anjos de
Deus.
12,10 E todo o que disser palavra contra o filho do homem será perdoado, mas ao
que contra o Santo Espírito tiver blasfemado não será perdoado.
12,39-40 Isto porém conhecei que se soubesse o dono da casa em que hora o ladrão
vem, não permitiria ser arrombada a casa dele. Também vós estai
preparados, porque em que hora não supondes o filho do homem vem.
17,23-24 E dirão a vós: eis ali, ou eis aqui, não saiais nem sigais. Pois como o
relâmpago relampejando de um lado sob o céu a outro lado sob o céu
brilha, assim será o filho do homem no dia dele.
17,26-28 E como aconteceu nos dias de Noé, assim será nos dias do filho do homem.
Comiam, bebiam, casavam, eram dadas em casamento, até o dia em que
entrou Noé na arca e veio o dilúvio e destruiu a todos. Semelhantemente
como aconteceu nos dias de Ló: comiam, bebiam, compravam, vendiam,
plantavam, construíam.
“ainda deixa ver a história de sua composição literária, marcada por uma visão
‘quase’ apocalíptica, que esperava a chegada de um filho do homem também
conhecido como “o que vem”, que reflete a experiência de alguns conflitos
sociais, os quais aparentemente não podia resolver, com um grupo de pessoas
que chama de ‘esta geração’, contra a qual polemiza e ameaça com um juízo
divino iminente”.438
grande tradição oral e um complexo literário dos ditos de Jesus, tal como a Fonte Q)
438
VAAGE, Leif E. (1995: 107).
439
Cf. CROSSAN, John Dominic (1994: 274).
192
Evidentemente que esta questão nos leva a pressupor que nos ambientes cristãos estes textos e
outros devem ter tido uma ampla circulação e provocado uma dinâmica de releitura das imagens
uma salvação coletiva (beneficiando o grupo de fiéis), terrestre (realizada neste mundo),
iminente (surgirá em pouco tempo), total (transformará totalmente a vida na terra e criará uma
nova ordem) e realizada por agentes conscientemente encarados como sendo de origem
sobrenatural.441 Vale lembrar que as promessas de uma reviravolta social (questão de tamanha
importância para grupos apocalípticos) estão presentes nas variadas formas de resistência que
lendas arcaicas do povo), a militante (que parte para uma luta santa contra os invasores), a
messiânica (prega uma total intervenção divina que irá expulsar os invasores e restaurar o país e
sua independência) e a proselitista (busca a conversão dos infiéis). Assim, na Galiléia que
objetivo de por fim à exploração econômica e aos distúrbios sociais, bem como, proteger a lei, a
religião e as tradições.442
Uma das imagens que aparece nos Evangelhos é a do Jesus apocalíptico, relacionada
em grande parte com os discursos escatológicos, a pregação sobre o Reino de Deus e a figura de
Jesus como o “Filho do Homem”. Para Charles H. Dodd a profecia do Filho do Homem de Dn
7,13 não aparece explicitamente, porém está presente em Mc 13,26 e 14,62 (cf. também Ap 1,7).
440
Neste aspecto temos de convir que os movimentos apocalípticos do Oriente Médio e do Mediterrâneo
prefiguram como os mais elaborados em termos literários e que representam, em certo sentido, um
movimento de reação às ameaças a integridade cultural e a ordem político-religiosa e sócio-econômica.
441
CROSSAN, John Dominic (1994: 140).
442
Uma reflexão sobre a apocalíptica como resistência ou passividade encontramos em: ELLIOTT, Neil.
The “Patience of the Jews”: Sapiential and Apocalyptic Strategies of Resistance and Accommodation to
Imperial Cultures. In: ANDERSON, Janice Capel; SELLEW, Philip H. e SETZER, Claudia J. (ed.).
Pauline conversations in context – Essays in Honor of Calvin J. Roetzel. Journal for the Study of the New
Testament – Supplement series 221. London: Sheffield Academic Press, 2002, pp.32-41.
193
São várias as imagens de Jesus que estão presentes nos Evangelhos. Do Jesus profeta
ao Jesus milagreiro, do Filho de Deus a um dos antigos profetas. Algumas dessas imagens estão
presentes no famoso texto de Mt 16, 17-19, no qual Jesus pergunta para os discípulos o que
andam dizendo sobre ele. Uma das fortes questões apocalípticas na vida das comunidades era a
expectativa da vinda de um grande profeta. Não é à-toa que Jesus aparece associado ao Profeta
Elias que subiu ao céu num “carro de fogo”. Esta profecia popular de Elias evoca a espera dos
tempos messiânicos: João Batista é apresentado como aquele profeta que “caminhará à sua
frente, com o espírito e o poder de Elias, a fim de converter os corações dos pais aos filhos e os
rebeldes à prudência dos justos, para preparar ao Senhor um povo bem disposto” (Lc 1,17).
Bultmann e Martin Hengel apontam a conotação de que a vida de Jesus era “não –
messiânica”, através da constatação de que Jesus nunca utilizou para si próprio o título de
Messias e sempre fala do “Filho do Homem” em terceira pessoa, como se não estivesse falando
dele.444 Ao passo que para David Flusser, o título Filho do Homem é utilizado por Jesus com três
significados:
“O terceiro tipo era por ele utilizado, como no discurso hebraico atual,
simplesmente como um termo para ‘homem’. No segundo tipo, ele
evidentemente referia-se a si próprio como o “filho do homem’ enquanto
circunlóquio eufemístico. Temos ainda que considerar o primeiro significado da
expressão, no qual ele anunciou o vindouro Filho do Homem como uma figura
escatológica”.445
443
DODD, Charles H. (1986: 65-66).
444
Apud. FLUSSER, David (2002: 98-99).
445
Idem., p.100.
194
fiéis que estavam sendo perseguidos, faz-se necessário que tenhamos presente que o grande
desejo das visões de Daniel é que o império seja julgado e destruído. E o “Filho do Homem“
expressa a força de enfrentamento aos animais terríveis (cf. Dn 7). Crossan vai dizer que a
expressão “Filho do Homem” seria “um circunlóquio para o ‘eu’ no aramaico da época de Jesus.
Seria uma maneira oblíqua de se referir à própria pessoa do falante. Quando Jesus dizia ‘filho do
Em 1Ts 4,13-18 não aparece o título ou expressão “Filho do Homem”, porém lendo
Jesus, a voz do arcanjo e a trombeta de Deus. A relação com Dn 7 está presente ao dizer que os
vivos serão resgatados com os mortos e Jesus que está “nas nuvens”. Porém, quase que somos
conforme a opinião de Crossan, Paulo em 50 E.C. via a volta de Jesus como a realização da
profecia de “um como Filho do Homem”.447 O que leva a dizer que o texto de Paulo não está
simplesmente utilizando mais um título para Jesus, mas construindo uma expectativa apocalíptica
As origens desta expressão “Filho do Homem” nos ensinamentos de Jesus são muito
de que esta expressão é utilizada de diferentes formas. No entanto, surge a pergunta: o Jesus
histórico realmente utilizou todas estas formas? De acordo com Bart D. Ehrman para
446
CROSSAN, John Dominic (1994: 277-8).
447
Idem., p.280. O autor apresenta quatro divisões do Inventário das Sentenças sobre o Filho do Homem:
Sentenças sobre o Filho do Homem Apocalíptico; Sentenças sobre o Filho do Homem Terreno; Sentenças
sobre a Ascensão do Filho do Homem Sofredor e Sentenças de João sobre o Filho do Homem. Idem.,
pp.490-492 (Apêndice 4). A sua opinião é de que as tradições antigas também incluíam textos em que
Jesus empregava a expressão “filho do homem” em sentido genérico ou indefinido e a que a presença
desses textos facilitou a transição de Jesus como juiz apocalíptico de Daniel 7,13 para Jesus enquanto
Filho do Homem de Daniel 7,13. Cf. pp. 274-301.
195
entendermos essa expressão em suas diferentes formas nos ensinamentos de Jesus faz-se
448
“Tuvieron [ los miembros del pueblo de Dios] gran alegría, bendijeron, alabaron y exaltaron [ a
Dios], pues les había sido revelado el nombre de ese Hijo del hombre. Y se sentó sobre su trono de gloria
y fue dada la primacía del juicio al Hijo del hombre, que quitará y aniquilará a los pecadores de la faz
de la tierra y a los que corrompieron el mundo. Con cadenas serán atados, serán encerrados
conjuntamente en un lugar de perdición, y toda su obra desaparecerá de la faz de la tierra. Y ya no habrá
nada que se corrompa, pues ese Hijo del hombre ha aparecido y se ha sentado en el trono de su gloria.
Todo mal se irá y desaparecerá ante él, y las palabras de ese Hijo del hombre serán firmes ante el Señor
de los espíritus”. (1 Enoque 69,26-29). “Mientras yo seguía mirando, el viento trazó algo parecido a la
figura de un Hijo del hombre que salía del corazón del mar. Y vi que este hombre volaba con las nubes
del cielo; y donde quiera que giraba su rostro para mirar, todo lo que había bajo su mirada temblaba
[...] Cuando vio la embestida de la multitud que se acercaba, ni levantó su mano ni empuñó una lanza ni
un arma de guerra; lo único que vi fue cómo lanzaba de su boca como un río de fuego y de sus labios un
aliento flamígero [... que] cayó sobre la multitud que estaba preparada para luchar y los quemó a todos,
de forma que de repente no quedó nada de la innumerable multitud y sólo se veía el polvo de las cenizas
y sólo se percibía el olor del humo” (IV Esdras 13,1-11). In: EHRMAN, Bart D. (2001:186).
449
“Parece que Jesús compartió esta visión apocalíptica fundamental y llamó a este juez venidero el
‘Hijo del hombre’. Según su visión, en el juicio que éste traerá, los que en la actualidade son oprimidos
196
Dentro desta perspectiva a tradição cultural israelita a partir da Bíblia Hebraica a busca
tradição do êxodo à literatura produzida pelos círculos farisaicos). Aí se insere em grande medida
a literatura apocalíptica. O “Filho do Homem” em Daniel vai sentar no tribunal, julgar e instaurar o
reino que não terá fim (Dn 7). Textos paralelos circularam e foram utilizados pelas comunidades
cristãs (ou pelos cristianismos originários). O julgamento está presente no Apocalipse das
a vinda de Deus como sinal da vingança dos que foram martirizados e nos Salmos de Salomão o
ungido filho de Davi reunirá o povo santo e o conduzirá com justiça.450 Conectado com o desejo
do fim dos malvados fala-se de tempo de bênçãos, a volta ao Paraíso, como encontramos no
serán rehabilitados y los que ejercen el poder serán derribados. De hecho, éste es un tema general de la
enseñanza apocalíptica de Jesús: cuando el Reino llegue tendrá lugar un cambio de suertes radical. Los
que ahora sufren serán recompensados; los que ahora ejercen el poder serán derrocados. Y este cambio
radical venidero debería afectar a la forma en que la gente vive y quiere vivir, en el presente”. Idem.,
pp.186-7. Nas páginas seguintes o autor apresenta o apelo de mudança radical nos discursos de Jesus e
nos milagres.
450
“Olhai-os, Senhor, e suscitai-lhes um rei, um filho de Davi, no momento em que tu escolhas. Ó Deus,
para que reine em Israel teu servo. Rodeai-lhe de força, para quebrantar aos príncipes injustos, para
purificar a Jerusalém dos gentios que a pisoteiam, destruindo-a, para expulsar tua herança com tua justa
sabedoria aos pecadores, para quebrar o orgulho do pecador como vaso de oleiro, para triturar com
vara de ferro todo o seu ser, para aniquilar as nações ímpias com a palavra de sua boca, para ante sua
ameaça fujam os gentios de sua presença e para deixar convictos aos pecadores com o testemunho de
seus corações. Reunirá [ o Rei] um povo santo ao que conduzirá com justiça; governará as tribos do
povo santificado pelo Senhor seu Deus. Não permitirá em diante que a injustiça se assente entre eles,
nem que habite ali homem algum que cometa maldade, porque saberá que todos são filhos de Deus. Os
dividirá em suas tribos sobre a terra; o migrante e o estrangeiro não habitará mais entre eles; julgará
aos povos e as nações com justa sabedoria”. Salmos de Salomão 17,21-29. In: DIEZ MACHO,
Alejandro. (1982: 52-3).
197
Também no diálogo entre Esaú e Jacó no Livro dos Jubileus encontramos uma boa
“Se os lobos fazem a paz com os cordeiros e já não os devoram, não lhe fazem
nenhum dano e seus corações querem fazer-lhes só o bem, então também
haverá em meu coração paz contigo. Se o leão se faz amigo do touro e se
deixa cangar com ele a um só jugo, então também eu farei a paz contigo”
(Jubileus 31,21-22).
fazem de Jesus colide com o imperialismo e a sua desordem mundial.453 A pregação do reino
pode ter diferentes facetas: pode ser entendido por alguns como a expectativa de mudança da
vida religiosa, através da realização de um novo tempo (novos céus e nova terra), pode ter um
sociais.454
No Evangelho segundo Marcos tanto Jesus como João Batista são apresentados como
profetas apocalípticos. O início da atividade pública de Jesus envolve um conflito com Satan (Mc
1,21-28), no qual o exorcismo praticado por Jesus causa o embate acerca do ensinamento e
autoridade de Jesus. Outro texto é a controvérsia sobre Belzebu (Mc 3,22-30) e a resposta de
Jesus que trata do simbolismo do reino de Satan. No capítulo 4, quando os discípulos querem
451
“... después comenzará a revelarse el mesías... y la tierra producirá diez mil veces más sus frutos; en
una vid habrá mil racimos, un racimo tendrá mil granos y un grano tendrá mil pepitas, que producirán
cantidad de vino. Los que tienen hambre se saciarán en abundancia; y todos los días verán prodigios. De
mí saldrán vientos para transportar todos los días el perfume de los frutos aromáticos y al final del día
nubes que harán destilar el rocío fecundante. En todo momento caerán de lo alto las provisiones de
maná; y ellos se alimentarán en aquellos años, pues han conocido el final de los tiempos”. Apud.
SCHMITHALS, Walter (1994:150).
452
“El abrirá las puertas del paraíso, alejará la espada que amenazaba a Adán, y dará de comer a los
santos del árbol de la vida”. Idem., p.150.
453
Ver: HORSLEY, Richard A. (2004).
454
Henri Desroches vai apontar três aspectos importantes na constituição de um movimento messiânico: a
escolha de um personagem ou líder, a esperança de um reino e a definição de um tempo de mudança. Cf.
DESROCHES, Henri (1985).
198
saber sobre as parábolas, Jesus diz: “a vós foi dado o mistério do Reino de Deus”. O termo
“musth,rion“ (mistério) aparece em Dn 2, 19.27. 28. 29. 30. 47 traduzindo o termo hz"r'
(segredo, enigma). Para Horsley, a fator preponderante para designar o evangelho de Marcos
discurso escatológico de Jesus que tem paralelos em Lc e Mt) e que tem como pano de fundo o
Jesus a restauração de Israel.455 E o livro de Daniel através da figura do “Filho do Homem” que
irá instaurar um novo império é sinal de esperança para as comunidades que esperam a parusia
opinião comumente difundida já faz algum tempo. Porém, a descoberta de textos que ficaram por
povo nos inícios das comunidades cristãs e nos ambientes em que foram escritos os
grande acervo da literatura cristã. Evidentemente, não estamos querendo afirmar que os textos
da tradição cristã são apocalípticos, mas que em meio à crise e perseguição imperial, muitos
da literatura apocalíptica, pelo simples fato de ela ser produto e se endereçar a situações e
455
HORSLEY, Richard A. The Kingdom of God and the Renewal of Israel. In: COLLINS, John Joseph
(1998: 1, 304-307).
199
sobre Judá. De certa maneira é neste contexto que se assentam as revelações apocalípticas do
Nestas revelações a vitória sobre o domínio e/ou solução para a crise histórica se dará
através da intervenção divina que irá julgar o poder imperial e os dirigentes indignos e, com isso,
restaurar a vida do povo fiel. Também acontecerá a vingança daqueles que foram martirizados
pelo esforço em manter as antigas tradições. Três elementos vêm com força para os ambientes
cristãos (que estão presentes em Dn 10-12): derrota do poder opressor, restauração do povo e
vingança dos mártires. Vale salientar que o grau de iminência destas expectativas, obviamente,
vai variar de texto para texto, de comunidade para comunidade. A idéia do “Filho do Homem” e a
visão do trono presente no livro do Apocalipse tem suas raízes no livro das similitudes de 1
Enoque? Ou vem do sentido que é apresentado pelos evangelhos sinóticos? Ou de uma releitura
de Dn 7,13? Ou ainda, da figura humana que constitui na figura da glória de Deus na merkabah
da visão de Ez 1?
baseado no vn"a/ rb:ï de Dn 7,13. No entanto, é preciso considerar que esta imagem circulante
na conjuntura de crise e perseguição que as comunidades cristãs estavam enfrentando provém
de diferentes materiais e não só do livro de Daniel (mesmo que este livro tenha exercido uma
forte influência). Para Maurice Casey Apocalipse 14,14 não depende do livro de Daniel e que
“um como Filho do Homem” é uma figura Angélica.456 Talvez seja a intenção do autor (ou
Deus e não propriamente uma identificação com ele, na execução do seu julgamento. Com isso
a figura do Trono de Glória no qual será executado o julgamento tenha influências de 1 Enoque
62,2-16. Contudo, podemos dizer que a passagem do Filho do Homem no Apocalipse provém
456
Cf. CASEY, Maurice (1979: 148-149).
200
inicialmente da concepção de que Jesus era amado e representado pelas comunidades cristãs
como sendo o Filho do Homem da tradição de Daniel. Ou seja, as diversas comunidades cristãs
Mas ao transitar nos ambientes da tradição cristã somos levados a levar em conta uma
apocalíptica é obra de círculos letrados enquanto que Jesus e seus companheiros são parte do
campesinato analfabeto. Há quem aposte nas tentativas dos escribas (grupo letrado e elitista
produtores de uma tradição escrita) de fazerem aceitas nos grupos de camponeses as suas
tradições, visão de mundo, etc. Há também, quem aposte que aconteceu uma aproximação
ressurreição de Jesus e a sua vinda gloriosa (parusia), no entanto, como algo presente, se
“reino de Satanás” e o “juízo divino” conectado com a “ressurreição dos mortos”. É preciso,
também, levar em conta que a visão de mundo subjacente nesta antecipação escatológica que
no mundo existem males e que, por isso, contradizem com o projeto do Reino. Tomando as
ações profético-curandeiras de Jesus nos evangelhos iremos perceber que neste contexto os
males estão associados às enfermidades, fome, pobreza, morte e outros problemas enfrentados
pelo povo e pelas comunidades cristãs. As perspectivas de uma possível saída da situação de
crise estão presentes nas ações de cura, bem como, nas atitudes acolhedoras, solidárias e de
abertura de Jesus e seus seguidores. Nesta perspectiva o juiz escatológico se faz presente no
próximo necessitado como podemos ler em Mt 25,31-46. Neste sentido encontramos dois
interesses dos poderosos ao afirmar que “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os
escatológicos sobre o “Filho do homem” e a sua vinda tenha sido uma forma arcaica de
Porém, é preciso levar em conta que por trás do discurso escatológico elaborado criativamente
apocalíptica presente nos evangelhos e nos demais textos da Escritura Cristã (podemos conferir
“Como é bem sabido, a apocalíptica foi uma literatura de crise, que surgiu de
uma situação em que o povo de Deus carecia de todo poder político ou
mundano e se via acossado pelos possuidores de tal poder, capazes de
despregar contra si inclusive a violência física. Era tradicional desde os
tempos arcaicos de Israel descrever as conjunturas críticas ou perigosas como
um eventual regresso do caos primordial com perturbações de caráter cósmico,
e, por conseguinte, atribuir-lhe a ação salvífica de Deus repercussões no céu e
na terra; isto não está presente somente no relato do dilúvio, senão também
nas tradições épicas sobre a batalha de Gabaón (Js 10, 12-14), no cântico de
Débora (Jz 5,4-5; e ver Sl 68 (67), 7-8), e inclusive na ação de graças de um rei
guerreiro (Sl 18 (17), 5-17) ou na súplica de um enfermo (Sl 69 (68), 2-3.15-
16). Na literatura apocalíptica acontecem duas coisas importantes em torno a
descrição com imaginação cósmica das tribulações do povo de Deus: por um
lado, há uma evidente "desmesura" imaginativa (já anunciada por Ezequiel e
que contém certos tópicos recorrentes), que, no NT, se pode ver no
"Apocalipse sinóptico" (Mc 13 e paralelos), numa carta de Paulo (1 Tes 4, 15-
17), na 2 Tes (2, 1-12), e principalmente no Apocalipse de João (passim); por
outro lado – e isso é mais importante–, o desencadeamento das "tribulações"
passa a ter o caráter de uma espécie de "elemento constitutivo" do advento
escatológico. E este é o papel que desempenham tais "tribulações" nos textos
do NT. As palavras que o autor dos Atos dos Apóstolos põe na boca de
Barnabé e Paulo, resumem exatamente o pensamento dominante do NT: "Por
457
VILLEGAS M., Beltrán. 2000. El fin del mundo en el Nuevo Testamento. Teología y vida. Chile:
Facultad de Teología: Pontificia Univesidad Católica de Chile, vol.41 n.1.
202
muitas tribulações teremos que passar para entrar no Reino de Deus" (At 14,
22)”.458
Júlio Zabatiero e Josué Adam Lazier apresentam o eixo fé, esperança e caridade como
conversão de Paulo, por exemplo, encontramos o aspecto visionário: em Marcos 1,9-11 nos
deparamos com a descrição do céu se abrindo e em Gálatas 1,12-16 Paulo utiliza uma imagem
típica dos círculos proféticos para descrever a sua experiência (cf. Jr 1,5 e Is 49,1).
Evidentemente que é necessário ter presente que os textos (enquanto memórias das
sentir o jogo de interpretações tanto do autor quanto do leitor. Este aspecto coloca o visionário
intérpretes.
seu texto muitas das idéias e textos da apocalíptica judaica. A referência aos anjos, as vozes
458
“Como es bien sabido, la apocalíptica fue una literatura de crisis, surgida de una situación en que el
pueblo de Dios carecía de todo poder político o mundano y se veía acosado por los poseedores de tal
poder, capaces de desplegar en su contra incluso la violencia física. Era tradicional desde los tiempos
arcaicos de Israel describir las coyunturas críticas o peligrosas como un eventual regreso del caos
primordial con perturbaciones de carácter cósmico, y, por consiguiente, atribuirle a la acción salvífica
de Dios repercusiones en el cielo y en la tierra; esto no está presente solo en el relato del diluvio, sino
también en las tradiciones épicas sobre la batalla de Gabaón (Jos 10, 12-14), en el cántico de Débora
(Jue 5,4-5; y ver S 68 <67>, 7-8), e incluso en la acción de gracias de un rey guerrero (S 18 <17>, 5-17)
o en la súplica de un enfermo (S 69 <68>, 2-3.15-16). En la literatura apocalíptica suceden dos cosas
importantes en torno a la descripción con imaginería cósmica de las tribulaciones del pueblo de Dios:
por una parte, hay una evidente "desmesura" imaginativa (ya preludiada por Ezequiel y que contenía
ciertos tópicos recurrentes), que, en el NT, se echa de ver en el "Apocalipsis sinóptico" (Mc 13 y
paralelos), en una carta de Pablo (1 Tes 4, 15-17), en la 2 Tes (2, 1-12), y máximamente en el
Apocalipsis joánico (passim); por otra parte –y eso es más importante–, el desencadenamiento de las
"tribulaciones" pasa a tener el carácter de una especie de "elemento constitutivo" del advenimiento
escatológico. Y este es el papel que desempeñan tales "tribulaciones" en los textos del NT. Las palabras
que el autor de los Hechos de los Apóstoles pone en boca de Bernabé y Pablo, resumen exactamente el
pensamiento dominante del NT: "Por muchas tribulaciones tenemos que pasar para entrar en el Reino de
Dios" (Hch 14, 22)”. Idem.
459
ZABATIERO, Júlio Paulo Tavares e LAZIER, Josué Adam (1989: 3-10).
203
divinas, a preocupação com a revelação das coisas ocultas. Podemos perguntar de que modo
e em que circunstâncias o livro de Daniel foi apropriado pela apocalíptica das comunidades
cristãs. O livro do Apocalipse é devedor do livro de Daniel seja na visão de “um como Filho do
Homem” (Ap 1) ou na visão na qual o império é descrito como besta (descrição dos impérios
como animais), além de todo o caráter de uma profecia do futuro ou descrição das coisas que
que falta completamente, a não ser no capítulo 17, ao narrar que um dos anjos acompanha o
visionário e explica a visão da Babilônia. A mais sutil semelhança entre Dn 7 e Apoc 13 talvez
Daniel em meio às comunidades apocalípticas nos Cristianismos originários, está nos contos
irônicos e satíricos de Dn 1-6. Histórias de resistência do justo fiel que não se dobra aos
enfrentamento e leitura critica quanto aos efeitos das ações do império. Aparece uma completa
rejeição ao poder e os efeitos da ação do império e, ao mesmo tempo, uma total confiança no
triunfo (vitória) de Deus e das suas testemunhas fiéis. Da mesma maneira que percebemos
Apocalipse que estão de acordo com as duas partes de Daniel 7 (os animais que sobem do
460
ROWLAND, Christopher. “Los que hemos llegado a los fines de los tiempos”: lo apocalíptico y la
interpretación del Nuevo Testamento. In: BULL, Malcolm (org.). (2000: 54).
204
mar) e a visão messiânica do Filho do Homem. A águia de 4Esd 12,11 tem correspondência
com o quarto animal de Daniel, ao passo que no Apocalipse a besta que surge do mar
Daniel, no livro do Apocalipse a besta que surge do mar (Ap 13) incorpora as características de
Podemos quem sabe perceber alguma semelhança com Ap 17 no que se refere às expectativas
escatológicas e a espera de um reinado messiânico seguido por um novo tempo histórico (cf. 4
messiânico que irá preceder a visão de um novo céu e uma nova terra (Ap 21).
Numa leitura atenta do livro do Apocalipse logo nos daremos conta que estamos diante
de uma tradição visionária que recebe influências da profecia meditativa do livro de Ezequiel e
das narrativas de sonhos e visões do livro de Daniel. Isto demonstra o quanto as comunidades
tradição judaica. Olhando rapidamente o livro do Apocalipse não podemos negar o uso que se
Conforme John Joseph Collins a visão da história presente nos textos apocalípticos, de
modo especial no livro de Daniel, gira em torno de uma total reviravolta social através da
apresentação de uma seqüência de quatro impérios mundiais que são suplantados por um reino
Nabucodonosor de uma grande estátua representada pelos metais que serão destruídos por
uma “pedra sem mãos” que se transformará numa grande montanha. O texto nos informa que
esta montanha “representa um reino estabelecido por Deus que nunca será destruído ou deixado
205
para outro povo”.461 Em Dn 7 estes reinos (Babilônia, Média, Pérsia e Grécia) representados por
animais são sujeitos ao julgamento divino do Filho do Homem e dos Santos do Altíssimo, que os
atira ao fogo.462 Para Collins este esquema analítico dos impérios mundiais é “revolucionário”.
O discurso de fim do mundo entre os cristianismos é marcado por duas vertentes: uma
que tenta expressar as expectativas de uma antecipação escatológica do reino e outra que
cristologia de exaltação da vitória de Jesus sobre as forças malignas, Luigi Schiavo apresenta a
narrativa da tentação de Jesus (Q 4,1-13) como um rico material que contém convergências,
comunidades cristãs, pode-se intuir a partir de suas imagens e linguagem simbólica uma
de muitos comentadores que o consideram uma espécie de midrash das narrativas de provações
do povo de Israel no deserto ou uma síntese das expectativas messiânicas do tempo de Jesus
(“Quem como Deus”) definido como chefe militar que trará a libertação e salvação no tempo do
fim465. Além disso, os maskilim (sábios e fiéis piedosos) “resplandecerão, com o resplendor do
firmamento; e os que ensinam a muitos a justiça, hão de ser como as estrelas, por toda a
eternidade” (12,3). Este grupo representa os justos que foram perseguidos e mortos pelos
461
Cf. COLLINS, John Joseph. Temporalidade e política na literatura apocalíptica judaica. In: Oracula.
v.1, n.2, São Bernardo do Campo: UMESP, 2005, pp.7-8.
462
Visão similar de um julgamento aos impérios encontra-se no Quarto Livro de Esdras. Porém,
interpreta e dá ênfase no quarto animal como sendo o império romano. Conferir o trabalho de David
Flusser sobre o esquema dos quatro impérios nos Oráculos Sibilinos.
463
Ver: VILLEGAS, Beltrán M. (2000). El fin del Mundo en el Nuevo Testamento. Teología y Vida. Vol.
41, n.1, Santiago, pp.
464
SCHIAVO, Luigi. A Apocalíptica Judaica e o Surgimento da Cristologia de Exaltação na Narrativa da
Tentação de Jesus (Q 4,1-13). Oracula, v.1, n.1, São Bernardo do Campo: Umesp, 2005: 1-51.
465
“Nesse tempo, levantar-se-á Miguel, o grande Príncipe, que se conserva junto dos filhos do teu povo.
Será um tempo de tal angústia que jamais terá havido até aquele tempo, desde que as nações existem.
Mas nesse tempo o teu povo escapará, isto é, todos os que se encontrarem inscritos no livro” – Dn 12,1
206
dominadores.
Um aspecto importante que está presente na literatura apocalíptica cristã e que advém
encontramos na religião e literatura dos povos antigos. No Livro de Daniel, em meio aos conflitos
com o domínio selêucida, vamos nos deparar com os confrontos entre o Filho do Homem e as
feras e, de modo especial, o anjo Miguel, que além de ter funções especiais é o protetor de
Israel, aquele que vigia o povo e o representa na assembléia dos céus (Cf. Dn 10-12). Anjo
guerreiro (recebe o qualificativo de um chefe de exército: ab'Ch' ; rf:) que lidera os anjos na
batalha em defesa do povo de Israel. Interessante que em 1 Enoque 89-90 aparece a figura de
um anjo protetor e defensor do povo que vai interceder em favor do povo perseguido, pedindo a
Deus justiça. No entanto, o livro de Enoque ressalta como função do Anjo Miguel como aquele
Porém, convém lembrar que a recepção de textos apocalípticos não é tão simples, pois
estamos num período em que aparece com força o conflito entre comunidades cristãs e o
judaísmo formativo ao redor dos anos 80 e, internamente, o choque entre dois modelos de
um outro por comunidades anti-hierárquicas e livres da prisão da ortodoxia. Podemos dizer que
estamos num ambiente marcado pelos conflitos entre heresias.467 Mesmo, o livro do Apocalipse
sendo reconhecido como um livro que alimenta a resistência e que exerceu influências nas
memórias de mártires nos cristianismos primitivos, recebeu forte oposição das comunidades
466
Por exemplo os combates entre Marduk e Tiamat (Mesopotâmia); Ahura Mazda e Angra Mainyu
(Zoroastrismo); Indra e Vidra (Índia); Baal, Yam e Mot (Canaã); Javé, Leviatã e Raab (Israel/Judá).
467
Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (1992b: 35-46; 1994: 29-37)
207
hierarquizadas. E, de modo especial, por ter livre circulação entre as comunidades gnósticas468,
resultou não só numa longa rejeição, mas foi considerado um livro suspeito. Imaginemos que
junto com o livro do Apocalipse tenha circulado os livros de Daniel, Enoque, Oráculos Sibilinos,
Testamento dos Doze Patriarcas, Apocalipse de Moisés e tantos outros que foram carimbados
como apócrifos (ou pior como deuterocanônicos) e que foram perseguidos como heresia.469 E
de certa maneira muitos textos que circulavam entre comunidades que sofriam oposição de
“Grande Igreja”.471
mundo, reinado de Deus, profecia ex-eventu, ressurreição, restauração, juízo final, entre outros
presentes nas comunidades cristãs primitivas. Muitas das idéias apocalípticas abordadas num
texto ou outro demonstram uma circulação e divulgação de temas comuns nas mais variadas
correntes do cristianismo. A Grande Igreja não passa de uma heresia que saiu vitoriosa frente às
outras heresias472.
468
Muitos definem o gnosticismo presente no interior das comunidades cristãs a partir de seu caráter
doutrinal e filosófico. Por exemplo, eis a definição de Cláudio Moreschini e Enrico Morelli: “o
gnosticismo insere a primitiva reflexão cristã numa estrutura de pensamento sistemático cujas linhas
mestras provêm largamente de tradições intelectuais e religiosas anteriores e estranhas ao próprio
cristianismo... O aspecto característico da gnose é o interesse por uma salvação do ser humano que é
posta em dependência de um conhecimento reservado a poucos eleitos” (1996: 243-244).
469
Para Elaine Pagels os conflitos entre os grupos cristãos no IIo século era menos por doutrina que por
poder, pois ortodoxia e heresia foram se definindo no jogo de forças tal como ele se foi dando com o
passar do tempo. In: Os evangelhos gnósticos. Um exemplo aparece na trajetória cheia de percalços do
evangelho das comunidades joaninas. Ver: VASCONCELLOS, Pedro Lima (2002: 121-144).
470
Termo utilizado na leitura sociológica de Hans-Josef Klauck sobre os conflitos nas comunidades
joaninas: “Opositores de dentro: tratamento dos separatistas na primeira epístola de João”. Concilium. no
220, Petrópolis: Editora Vozes, 1988, pp.54-63.
471
Este é um conceito associado às pesquisas sobre o cristianismo desenvolvidas desde o século XIX.
Para alguns simplesmente é uma expressão que dá conta de ler o processo de formação das estruturas das
igrejas apostólicas. Paulo Nogueira vai dizer que esta expressão indica o “processo de uniformização
teológica, de uma opção por uma ética e uma práxis política mais harmônica com a sociedade e da
exclusão da autoridade carismática e feminina em favor de cargos hierárquicos” que foram sendo
travados no seio do cristianismo no final do primeiro século. NOGUEIRA, Paulo augusto de Souza
(1992b:36).
472
NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza, OTTERMANN, Monika e FILHO, José Adriano (2002: 178):
“Se tivéssemos apenas os paralelos do Apocalipse de João, poderíamos dar menos valor para as
208
irão representar uma outra prática cristã no seio dos cristianismos em conflito com o cristianismo
hegemônico (a “Grande Igreja”)473. Montano que dá inicio a um movimento junto com duas
profetisas, Priscila e Maximila, provocou a ira dos defensores da ortodoxia ao apresentar uma
leitura do evangelho de João e por fazer circular idéias apocalípticas (entre as quais podemos
Daniel representam o perfil daquelas comunidades cristãs que acabavam “remando contra a
Daniel com a sua leitura contra os impérios (projeta a queda da estátua e a morte dos animais e
proclama o surgimento de um monte e de um reino que não terá fim) não deve ter sido livro
acomodada. Por certo o livro de Daniel e outros tantos textos apocalípticos não fizeram parte do
sendo produzida uma hermenêutica dos textos visando a construção de uma base ética e
eclesial para a complicada conjuntura das comunidades cristãs, principalmente aquelas que
afirmações na VisIs, considerando este tipo de leitura marginal, quase ‘herética’, e considerar a entrada
do Apocalipse de João no cânon como um gesto de boa vontade dirigido àqueles círculos ‘exóticos’ de
cristãos que insistiram em expressar a sua fé através destes tipos de manifestações. Mas as experiências
místicas da viagem ao céu e uma boa parte dos ensinamentos apresentados nela proliferam também nas
experiências e nos ensinamentos do próprio apóstolo Paulo, bem como nas cartas dêutero-paulinas
(escritas por discípulos dele), nas Cartas de Pedro e na Carta aos Hebreus, além do Evangelho de João”.
473
Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (1992b: 35-46).
474
“No Apocalipse o império é visto como o mal maior, como o espaço de atuação de satanás por
excelencia. Roma é a soma das bestas de Daniel (13,1-2), é a grande prostituta que se alia com os reis da
terra e que se embebeda com o sangue dos mártires (17 e 18). Para João a chegada do reino de Deus é
celebrada quando Roma/Babilônia for aniquilada, ela é o grande empecilho para que Deus estabeleça a
sua justiça no mundo (19,1-2). A política de enfrentamento do Apocalipse não permite qualquer
planejamento da vida dos seus leitores na sociedade”. Cf. NOGUEIRA, Paulo Augusto de Souza (1994:
34).
209
exclusão do poder político, econômico e eclesial. Imaginemos o quanto estas comunidades não
produziram uma leitura na qual se opõe: a estátua e a pedra que se transforma num monte, os
animais e o Filho do Homem, a grande prostituta e a Jerusalém celeste. Com certeza, muitas
leituras foram produzidas por várias comunidades e movimentos de resistência, que ficaram por
anos escondidas (como por exemplo o rico material encontrado em Nag Hammadi) ou que
bíblicos e produziam aos olhos da hierarquia leituras suspeitas e heréticas, é que aos poucos a
Grande Igreja busca evitar as múltiplas interpretações impondo a leitura dos textos bíblicos
textos canônicos) e tantos apocalipses rejeitados pelo cânon torna-se difícil e, ao mesmo tempo,
hipotética. Assim sendo, do IIIo século vamos encontrar aqui e acolá a presença e a influência da
num grande fenômeno religioso e enquanto tal vai ser fortemente rebatido pela Grande Igreja,
Eusébio de Cesaréia na sua História Eclesiástica ao tratar das heresias vai dizer o
enganar, que haverá mil anos de festa nupcial... E como ele era sensual e
completamente carnal, sonhava que este reino consistiria no que ele
ambicionava: satisfação do ventre e da parte inferior, isto é, alimento, bebida,
prazer carnal e também realidades que dariam aspecto mais honroso a estes
prazeres: festas sacrifícios, imolação de vítimas” (Livro III, 28).475
Irineu reúne um conjunto de textos com um forte cunho de promessas para sustentar os
seus ataques àqueles que eram condenados por suas heresias. Na sua polêmica contra os
gnósticos vai girar em torno da “ressurreição dos justos” que foi colocada em dúvida pelas
interpretações alegóricas e espiritualizantes dos textos de promessas. Por isso, conclui dizendo:
“E tudo isto não pode ser interpretado alegoricamente, mas se deve crer tudo verdadeiro, certo e
Dionísio, Dídimo), a qual tem uma forte tendência apologética. Porém, as idéias escatológicas e
escola exegética Alexandrina (Clemente, Orígenes, Dionísio, Dídimo) com sua tendência
suas idéias. Orígenes com seu método exegético vai buscar na Bíblia o seu sentido espiritual ou
cristão primitivo”478 Por exemplo, a sua interpretação de Mt 24-25 vai de cheio rebater a
Oriente, enquanto que no Ocidente cristão bárbaro vai circular o mito do Último Imperador do
Mundo, no qual coincide o final da história do mundo com a figura messiânica de um imperador
que reina sobre o mundo e sobre a Igreja.479 A tradição escatológica e apocalíptica presente em
texto conhecidos como “sibilinas cristãs” demonstra que uma boa parte dos apocalipses
“A tradição sibilina ajudou assim a fixar nos espíritos a figura do Anticristo. Esta
amalgamou elementos vindos essencialmente de três fontes: a) o livro de
Daniel: ‘Ele proferirá insultos contra o Altíssimo’ (7,25); ‘Ele [o rei mau] se
exaltará e se elevará acima de todo Deus, e contra o Deus dos deuses dirá
coisas espantosas. Será bem-sucedido até consumir-se a cólera’ (11,36); b) a
segunda epístola aos tessalonicenses: ‘Primeiro deve vir a apostasia e
manifestar-se o Homem da impiedade, o Filho da perdição, aquele que se
levanta contra tudo que chamam Deus ou adoram, a ponto de sentar-se em
pessoa no templo de Deus e de proclamar que é Deus’ (2,3-4); c) o Apocalipse,
no qual o nome do Anticristo não aparece mas onde se lê: ‘foi lhe dado fazer
guerra aos santos e vence-los, e foi-lhe dado o poder sobre toda tribo, povo,
língua e naçao’ (13,7). O Anticristo, gigante do mal, é assim descrito como o
bode de dois chifres do livro de Daniel que ‘faz cair por terra [...] uma parte das
estrelas’ que ele espezinha (8,10), e como o Dragão ‘vermelho-fogo’ do
Apocalipse ‘que sobe do abismo’ (11,7) e que varrerá ‘um terço das estrelas do
céu’ e as precipitará na terra (12,4)”.481
Tudo indica que as profecias sibilinas ao redor do mito do imperador dos últimos dias
tenham inspirado as diferentes cruzadas dos pobres, tanto no seguimento a Pedro, o Eremita e a
outros que guiavam o povo pobre a uma volta às origens. Estamos no momento áureo dos
478
H. Desroche. Apud. DELEMEAU, Jean (1997: 32).
479
Cf. RUSCONI, Roberto. 2003. La historia del fin: cristianismo y milenarismo. Teología y Vida, Vol.
XLIV, pp. 209-220.
480
DELEMEAU, Jean (1997: 32).
481
Idem., pp.35-36.
212
muitas das aspirações da humanidade ao longo dos séculos. Suas convicções religiosas e
cristãos. A sua leitura da Escritura tem ecos na América colonizada através da teologia e do
482
“Joaquín de Fiore comenzó, hacia 1181-1183, cuando se retiró a la abadía de Casamavi, dos
comentarios al Apocalipsis, que no estarían terminados hasta 1199. Su meditación sobre el Apocalipsis
fue, pues, un trabajo lento y muy laborioso, al que dedicó casi un tercio de su vida. Ambos comentarios
(uno corto y otro largo) fueron editados conjuntamente por las Juntas de Venecia, en 1527, con el título
único de Expositio in Apocalypsim, figurando el comentario corto como introducción al comentario más
extenso. En esa edición veneciana, el corto se titula: Praephatio sive liber introductorius in expositionem
Apocalipsis [sic]. El segundo: In expositione Apocalipsis [sic].” SARANYANA, Josep Ignasi (2003:
225).
483
Ver: PROSPERI, Adriano (2003: 196-208)
213
TERCEIRA PARTE:
EVOCAÇÃO DE HERESIAS
lançar dos chicotes e açoites, a teologia da servidão484. Nesta direção a Bíblia consolida-se
diferentes épocas e circunstancias”.485 Porém, uma coisa é a Bíblia ser traduzida a partir de uma
língua que apenas alguns conseguiam ler e entender, outra é ser entendida e lida por fiéis
alfabetizados e outra ainda, ser entendida pela boca e leitura do pregador. Assim, a Bíblia na
América por muito tempo foi instrumento dos detentores do poder religioso e da palavra de Deus,
que só chegava aos fiéis pelo filtro sacramental e homilético. Mas, como ela pode significar
coisas diferentes para pessoas diferentes em variados lugares sociais, não podemos esquecer
da tradição, leitura e transmissão da Bíblia pelo viés das heresias. A Bíblia latina era, por assim
dizer, propriedade exclusiva dos círculos eruditos; enquanto que as histórias da Bíblia e as
484
Ver RAMOS, Antônio Dari (2001: 92): “A cruz era um símbolo cristão da vitória de Deus sobre os
‘infiéis’. É por esse motivo que foi posta como um signo de identidade dos cristãos. Ela acompanhava o
missionário desde o momento da implantação da redução”.
485
Cf. HILL, Christopher (2003: 26).
214
ouvintes.
modo especial no Brasil), é marcado por três fatores: primeiro o interesse lusitano é estritamente
senhores e escravos); segundo o modelo eclesiástico era preciso estabelecer uma nação
católica487 ( a Terra de Santa Cruz devia constituir-se como uma Cristandade católica); e,
terceiro, todo o poder e controle religioso passava pelas mãos do rei (escolha de bispos,
do desterro e a teologia da paixão. Perpassa nestas teologias o princípio de que fora da Igreja
luso-brasileira. A igreja passa a ser o povo escolhido por Deus e, por isso, é preciso sujeitar os
486
VASCONCELOS, Simão de. Apud. AZZI, Riolando (2001: 17).
487
Cf. PRIEN, Hans-Jüergen (1985: 248). A América Latina constituía neste momento um terreno mais
propicio para o modelo de Igreja tridentino: “Con la recepción de las disposiciones tridentinas por medio
de las monarquias ibéricas, surgió en América latina una sociedad religiosament más uniforme que la
que había existido en la Europa medieval. Con la ausencia de herejías, se formó un catolicismo cultural,
al que bastava el mantimiento de las formas exteriores de religiosidad.”
488
Cf. AZZI. Riolando. La teología en el Brasil. Consideraciones históricas. In: AAVV (1981: 41-79).
215
aparecem algumas vozes dissonantes (pelo menos em certos aspectos) com relação à
Cristandade e seus pregadores e, de modo especial, estarão afinados com uma dimensão
489
Idem., p.45.
490
Cf. BESSELAAR, José van den (2002: 348-354): São Metódio, bispo de Olimpo e de uma cidade
vizinha chamada Pátara (na Lícia) e morreu mártir na cidade de Cálcide da Celessíria sob o poder de
Diocleciano (311/312). Escrever tratados dogmáticos e ascéticos em forma de diálogos. A sua obra mais
famosa foi Simpósio. É um autor equilibrado que se empenhou em manter o meio-termo entre história e
alegoria. No final do Séc VII aparece uma história apocalíptica atribuída a São Metódio, que vai da
criação de Adão e Eva até o fim do mundo. O que destaca-se desta história é a sua descrição dos Impérios
de que fala Daniel e que teriam suas raízes históricas nos quatro filhos de Noé. E o mais famoso destes
imperadores foi Alexandre Magno, fundador do Império Romano. O seu texto que foi objeto de inúmeras
revisões e redações. No texto Esperanças de Portugal, Vieira faz menção de ter consultado na Biblioteca
Antiga dos Santos Padres a obra de São Metódio e, que, aliás, era também uma referência para os
sebastianistas. Um das frases do texto de Pseudo-Metódio que se refere ao “despertar de um Rei com
grande furor, como de vinho, a quem os homens tinham por morto. Este irá sobre os filhos de Ismael do
Mar de Etiópia” é utilizada por Manuel Bocarro, pelos sebastianistas e por Antônio Vieira. Além disso,
vale lembrar que Vieira faz várias menções a São Metódio (Defesa perante o Tribunal do Santo Oficio
(Tomo I, pp.205-206, 218, 324 e Tomo II, p.16; Defesa do Quinto Império, Cartas), principalmente
porque suas palavras tornaram-se viciadas nos cartapácios dos sebastianistas. Tudo indica que Vieira
estava por dentro das controvérsias ao redor do texto de São Metódio. Eis como aparece a leitura,
correção e interpretação de Vieira na Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício (In: CIDADE, Hernani.
1957: 206): “Ouve quem reparou na palavra quasi, dizendo que se não podia entender delRey Dom João,
pois não he quasi morto senão verdadeiramente morto. Assy interpretão as couzas os que as tomão mais
pello sonido que pello sentido. Quasi alli quer dizer utpote, assy como no texto – vidimus gloriam ejus
quasi Unigeniti a Patre, onde o quasi não quer dizer, quasi Unigenito, senão cono verdadeiro Unigenito.
De maneira que vem a ser o sentido de S. Methodio: que era reputado como verdadeiramente morto, &
por isso estimado como inútil, assy como o são os mortos, que não prestão nem servem para cousa
alguma, quanto mais para huma empreza tam grande. E daqui mesmo se confirma a verdade deste
sentido; porque do quasi mortuum não se segue bem o inutilem esse, pois sabemos que muitos depois de
quasi mortos forão muito uteis & prestarão para muito. Exemplo seja o mesmo Rey Dom João, que antes
de sua restituição esteve quasi morto de huma febre malina & depois de recebidos os sacramentos, disse
a Deos: Si populo tuo sum necessarius non recusolaborem. E este quasi morto foy o libertador do Reyno.
Ezechias, depois de quasi morto, fez grandes acçoens, & Alexandre, depois de quasi morto, acquirio o
nome de Magno & sogeitou o Mundo. Assy que ElRey Dom João hoje está morto na realidade, & como
morto na opinião , porque cuidão os homens delle o mesmo que dos outros mortos, isto he, que não pode
ser de utilidade nem de proveito. E este he o sentido das palavras de S. Methodio, posto que não seja elle
o sogeito de quem o santo falle. Quem quiser mais prova deste veja os comentários de Ribera sobre
aquellas palavras do Apocalypse – Agnum statem quasi occisum”.
491
Veja as notas sobre Joaquim de Fiori em: DELUMEAU, Jean (1997: 40-49) e BESSELAAR, José van
den (2002: 429-446). Vieira tinha uma grande veneração pelos textos de Joaquim de Fiori e em cartas a
Dom Rodrigo de Meneses, pede que sejam enviadas as profecias de Joaquim, pois as considerava úteis
para a elaboração da História do Futuro. Numa das cartas diz assium: “Beijo a mão a V.S.a pelos
216
ainda, Frei Juan de Guadalupe; Frei Toribio Motolinia; Frei Jerônimo de Mendieta493 e Francisco
de la Cruz entre muitos que transmitiram esperanças escatológicas de mudança e leram a partir
Vamos nos ater à leitura e exegese que o Padre Antônio Vieira, da Companhia de
fragmentos de Santo Isidoro. Também me chegou, quase no mesmo tempo, o livro do Abade Joaquim, que
estimei quanto não sei escrever a V. S .a, porque vêm no mesmo livro obras várias de outros autores
daquele tempo, que eu tinha curiosidade de ver, e por não me parecer que se podiam achar, deixava de
fazer diligências por elas.”
492
Cf. DELUMEAU, Jean (1997: 176-215)
493
Eis um dos textos críticos de Mendieta: “Si los españoles cuando conquistaron á los índios pretendian
dejar-los en su infidelidad y idolatria en que los hallaron envueltos, bien caía el intitularse cristianos
para diferenciarse de los que no lo habían de ser. Pero si era su intento traer á los índios al
conocimiento y confesión de la fe de nuestro Señor Jesucristo, y á que fuesen cristianos, como ahora lo
son, no debieran entrar con este renombre, sino con el de su nación de españoles, y no afrentarse sino
antes gloriarse de él, y juntamente pudieran añadir que eran mensajeros de un solo y poderosísimo Dios,
que á todos nos crió, y venian á dárselo á conocer, pues no lo conocian, como yo he aconsejado lo hagan
los que ahora van al descubrimiento que llaman del Nuevo México.[...] Quién dubda sino que haciendo
visto y viendo los indios (como ven cada día) muchos españoles de muy mala vida y costumbres, y que sin
respeto de alguna caridad ó projimidad, sin propósito alguno los aperrean y maltratan, y les toman sus
hijas y mujeres, y por fuerza les quitan lo que tienen y hacen otros semejantes insultos, y ven que á estos
tales los llaman cristianos, dirá el indio con mucha ocasión y razón: "Si á estos llamais cristianos,
viviendo como viven y haciendo lo que hacen, yo me quiero ser indio como me llamais, y no quiero ser
cristiano.”
217
CAPÍTULO 5:
veio para o Brasil (Bahia, 1614)495. Parece que seu pai foi trabalhar como escrivão. Estudou em
colégio jesuíta (fundado em 1590) que zelava pelo princípio da Ratio Studiorum, isto é, tinha
como pilares o estudo da História, da Retórica, da Poética e da Filosofia. E aos 15 anos ingressa
na Companhia de Jesus. Segundo Hermisten Maia Pereira da Costa, Vieira foge de casa e é
acolhido na Companhia de Jesus pelo padre-reitor Fernão Cardim (que convivera com José de
Anchieta).496 Contradizendo-o, Aníbal Pinto de Castro diz que Vieira ingressa na milícia inaciana
494
Encontramos muitas biografias sobre o Padre Antônio Vieira: vale citar, entre outros, João Lúcio de
Azevedo. Historia de Antonio Vieira. Com factos e documentos novos. 2 Tomos (1918 e 1921) e Luís
Gómez Palacín. Vieira: Entre o Reino Imperfeito e o Reino Consumado. São Paulo: Edições Loyola,
1998.
495
“Do Reino saíra este, para a Bahia, aos seis anos de idade, e entre nós permaneceu até aos 33,
quando tornou a Portugal, já amadurecido na idade e no engenho. De modo que aqui transcorreu o
período agudo e verdadeiramente decisivo de sua formação espiritual”. HOLANDA, Sérgio Buarque de
(1996: 323).
496
COSTA, Hermisten Maia Pereira da (1997: 1).
497
CASTRO, Aníbal Pinto de. António Vieira – uma síntese do Barroco Luso-Brasileiro. Apud. PIRES,
Alves (1998: 265).
218
Vieira, mestre incontestável na arte da palavra, pelo ritmo, cadência, ajustamento das
ponto de ser considerado o maior pregador do século dezessete e patrimônio de dois mundos.
No entanto, as suas pregações são vistas sob dois enfoques: de um lado, está o combate aos
No entanto, a sua figura histórica sempre foi controvertida. André de Barros (1746) o
descreve como jesuíta modelo, santo e dedicado; em contrapartida, Francisco Alexandre Lobo
Tomando, História do Futuro, Verney vai dizer o seguinte: “ainda que fosse verdade que
498
Idem., p.266.
499
Ver MELO, Gladstone Chaves de (1997: 267).
500
Cf. Eduardo Hoornaert. Teología y acción pastoral en Antonio Vieira SJ: 1652-1661. In: RICHARD,
Pablo (1981: 165).
501
Luís Verney. Apud. LOURENÇO, Helena. A negação da Retórica do P. António Vieira no Verdadeiro
Método de Estudar de Luís Verney – contributos para uma (re) leitura da VI Carta. Retirado na Internet
no dia 29/04/2005, do site: http://www.fl.ul.pt/eventos/congresso_retorica/papers_aceites.htm
219
Para outros, Antônio Vieira foi um político (Hernani Cidade: 1955), missionário (Maxime
Haubert: 1964), pregador (Luis Gonzaga Cabral: 1901) e teólogo (Raymond Cantel: 1960). E
Para José van den Besselaar, Vieira foi um grande praticante da Palavra do Evangelho; porém,
não como um ermitão, mas, como alguém que saia a pregar e transmitir a palavra. Seja nos seus
“Era um autor activo e militante que pegava na pena para fazer propaganda das
suas idéias, para interferir no mundo e para combater as opiniões que
considerava nefastas à sociedade em que vivia. A palavra e a escrita eram para
ele, uma poderosa alavanca para levantar as massas inertes, mostrando-lhes o
caminho para um futuro menos rotineiro e mais humano”.504
“Jesuíta ilustre, exemplo da mais fina oratória barroca, conhecedor dos sertões
brasileiros, dos palácios e dos cárceres da Inquisição, Vieira formulou nada
menos que um sistema profético que predizia a fundação do Quinto Império do
Mundo liderado por d. João IV. Leitor e defensor de Bandarra como profeta
português, a formulação de Antônio Vieira fez do herdeiro dos Bragança o
Encoberto esperado, operando a transfiguração sebastianista já iniciada por
Manuel Bocarro”.505
502
Idem.
503
Luís Verney. Apud. BESSELAAR, José van den (1981: 88)
504
Cf. BESSELAAR, José van den (1981: 9).
505
Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 21).
220
Deus elegerá, segundo o jesuíta a Lusitânia para ser o “novo Israel”, passou, a partir, de 1653,
Destes esforços, conseguiu da Coroa leis favoráveis aos índios o que provocou sérias reações
de repúdio dos colonos que sentiam-se prejudicados com a ação dos jesuítas.
Podemos dizer que em Antônio Vieira nos deparamos com diversos aspectos: arte da
fiança de uma história futura. “Ao revelar esse futuro e torná-lo presente em sua própria
perfeição, tal arte antecipadamente participa de sua existência e assegura a sua vinda”.508
No entanto, na sua defesa à causa indígena, Vieira pode ser visto como um missionário
inspirado pela mensagem de Jesus e sensibilizado pelo sofrimento dos pequenos e humildes,
506
Serafim Leite na sua História da Companhia de Jesus no Brasil apresenta o Padre Vieira como um
grande apologético.
507
Eis um trecho de uma das cartas de Vieira: “Ah, fazendas do Maranhão, que se esses mantos e estas
capas se torcessem, haveriam de lançar sangue. El-Rei poderá mandar que os cativos sejam livres e que
os livres sejam cativos. Mas não chega lá sua jurisdição. Se tal proposta fosse ao Reino, as pedras da rua
se haveriam de levantar contra os homens do Maranhão”. Apud. MATOS, Henrique Cristiano José
(2001: 152).
508
Cf. PÉCORA, Alcir (2001: 139).
509
Cf. HOONAERT, Eduardo (1992: 127; 1991: 27).
510
“O barroco inaciano brasileiro é missionário, lição vívida dos mistérios da fé, tornada atraente pelo
impacto estético maior, no espírito mesmo do barroco da Contra-Reforma. Barroco na arquitetura dos
templos, na escultura mais que na pintura de imagens, barroco também nos métodos de pensamento,
todos, juntos, fundamentais para o começo da mentalidade brasileira”. Ver: Vamireh Chacon. O plano
Jesuíta para o Brasil. In: KONINGS, Johan (2001: 46). Ver também MELO, José Raimundo (1997: 310).
O barroco “não representou tanto uma inculturação da liturgia em si, porque estamos em plena época de
221
Igreja advindas da Patrística: a leitura simbólica e literal.511 Sérgio Buarque de Holanda aponta
“Um exemplo significativo de Vieira, invocado pelo sr. Antônio Sérgio, é aquele
onde, a propósito do cerco da Bahia pelos holandeses, lembra o de Jerusalém
por Senaqueribe. O episódio bíblico anunciava o contemporâneo, assim como o
papel de Davi, na Palestina, prefiguraria o de Santo Antônio na Bahia. Com
efeito, se o Senhor prometera salvar Jerusalém, com igual motivos salvaria a
Bahia, que de seu nome próprio já é a cidade do Salvador. E a correspondência
entre Davi e Santo Antônio explicável quando se considerasse que ao saial
corresponde a samarra, à corda a funda, à voz ‘formidável do demônio, a harpa,
etc”.512
No tocante, ao uso da Bíblia nos sermões é preciso ter presente que a pregação
sagrada tem a grande característica de parafrasear o Evangelho e até mesmo permitir que ele
seja representado nos altares ou nos átrios das igrejas. E nos ambientes conventuais a
influxo tridentino, com uma liturgia oficial estruturada, protegida pela lei, imóvel, intocável, um
verdadeiro ‘monumento’. Apesar de todo este imobilismo litúrgico, o Barroco mostra a sua influência, se
não na liturgia mesmo, onde encontramos o padre celebrando cada vez mais solitário, pelo menos em
elementos mais periféricos, como os cantos, procissões, peregrinações, dramatizações, etc.”.
511
HOLANDA, Sérgio Buarque de (1996: 325). Ver também: RICHÉ, Pierre e LOBRICHON, Guy
(1984: 160): É difícil perceber o sentido histórico num livro de interpretação espiritual, quando este é
ignorado. Pois a história é o fundamento de toda a interpretação e é isto que se faz necessário em primeiro
lugar; sem isto não se pode legitimamente passar a uma outra interpretação. O segundo sentido é o
alegórico ou da tipologia que Orígenes tem particularmente ensinado. A interpretação espiritual e
figurada das narrativas bíblicas permite uma identificação de fé revelada. O terceiro sentido, moral ou
tropológico conduz à mudança de atitudes, no qual a Escritura é um espelho pelo qual cada um tem que
olhar para dirigir a sua conduta. A exegese monástica especialmente privilegiou este terceiro sentido.
Enfim o sentido anagógico conduz o cristão das coisas visíveis às coisas invisíveis, para a esperança da
Jerusalém celestial. Toda a leitura da Escritura tem o seu coroamento dentro da contemplação mística.
512
Idem., p.325.
513
Idem., p.326.
222
interpretação das Escrituras segue quatro níveis (ou sentidos): o sentido literal ou histórico, o
Se no Primeiro Século da Era Comum era forte a leitura das Escrituras através do
midrash, que era como já vimos “uma coletânea de comentário rabínico sobre as escrituras
abordagens diferentes: primeiramente, uma eisegese515, na qual o leitor insere no texto o seu
entendimento de alguma questão, símbolo ou imagem; uma segunda, consiste num método
descritivo e, uma terceira, busca entender os caminhos e princípios adotados para interpretar a
aplicados na leitura que o Padre Antônio Vieira e outros imprimiram ao texto de Daniel.
sagrados eram um rico depósito de significados, e para entendê-los era preciso levar em conta
o significado literal das palavras. Isto resultava em traduzir para vida, o que ao menos,
No tocante à leitura literal, ela consiste numa simples e aplicação conatural do texto à
vida das pessoas. Esta abordagem está muito presente na leitura dos textos legislativos, tais
como as leis deuteronômicas. Muitas vezes, as leituras dessas leis vêm acompanhadas de uma
aplicação moral. É quase o uso de excertos do texto para justificar uma questão da atualidade
do leitor e intérprete.
514
Cf. Virginia Stem Owens. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 19).
515
Cf. CROATTO, José Severino (1986: 59-73). “A entrada no texto a partir do horizonte de
compreensão do leitor. Não se opõe à exegese, mas sim, é a explicitação de um aspecto desta”.
516
Vale salientar que uma categorização da leitura judaico-cristã pode ultrapassar a essas abordagens,
bem como, se limitar a uma ou outra abordagem.
223
Nesta perspectiva, podemos dizer que por mais que o intérprete ou leitor do texto faça
uma utilização literal, ele insere em seu conjunto o seu “horizonte” e/ou o seu contexto de leitor.
Para Lowy, a interpretação direta ou uso literal das leis era nos ambientes saduceus uma forma
de ensinar e transmitir às novas gerações as leis, normas e regras.518 De certa maneira, a leitura
literal dos textos da Escritura (de modo especial das leis) era filtrada pela halakhá519 de cada
grupo social. Por exemplo, tanto fariseus, saduceus, essênios, quanto zelotas tinham a sua
halakhá. Também estava presente nas tradições desses grupos a hd’g’h:; haGäDâ uma espécie
de explicação das narrativas bíblicas com propósitos edificantes. Estes grupos utilizavam de
princípios não contemplados nas seções legislativas para a solução de problemas que não
aparecem nas Escrituras. Já o pesher, como método de interpretação das Escrituras, muito se
aproxima do midrash.521
517
Idem. p.125.
518
S. Lowy. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 32).
519
Halahá (hklh]), que consistia na interpretação das regras, das leis e normas contidas nos textos bíblicos
e que regulamentavam todos os aspectos da vida religiosa judaica .
520
Renee Bloch. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 32).
521
“O pesher é geralmente descrito como um método exegético ou uma antologia de interpretações
(pesharim) que sugere que os escritos proféticos contêm uma significância escatológica oculta ou
mistério divino que podem ser revelados ‘apenas por uma interpretação forçada e até mesmo anormal do
texto bíblico’. (...) O pesher, portanto, era uma forma de interpretação cuja solução só poderia ser
alcançada por meio da revelação divina. Podemos distinguir o pesher do midrash entendendo o midrash
224
Além disso, a prática de leitura, escrita e interpretação de textos tanto nos mosteiros,
conventos e nos colégios da Companhia de Jesus herdou uma forte tradição da Antigüidade:
E o que se pode perceber é que houve uma aplicação desta tradição na leitura e
interpretação dos textos bíblicos, pois não se tolerava que alguém que aspirasse o título de
monge continuasse na ignorância da leitura; além disse passa-se a conceber que através dos
livros também se conhece a Deus. O livro dos Salmos era utilizado como cartilha para aprender
a ler e a escrever. E gradativamente vão passando para a leitura de outros textos, tais como
vida de santos até chegarem às obras de teologia. Um bom leitor e conhecedor dos textos
torna-se um bom intérprete das Escrituras. Além disso, era muito presente no ato de ler a
como um tratamento da Escritura para torná-la contemporânea, a fim de tornar a Palavra de Deus
relevante para as circunstâncias presentes e para as situações atuais, ao passo que o pesher considerava
o material bíblico da perspectiva do cumprimento apocalíptico iminente. Podemos descrever o midrash
como ‘isto tem relevância para isto’, enquanto o pesher é ‘isto é aquilo’.” In: DOCKERY, David S.
(2005: 33-4).
522
PARKES, Malcolm. Ler escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na Alta Idade Média. In:
CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, ROGER (orgs). (2002: 103).
523
Isidoro de Sevilha vai dizer o seguinte àqueles que aspiram ao cargo de ledor na Igreja: “aquele que
vier a ocupar tal cargo deve conhecer muito bem a doutrina e os livros e dominar completamente o
sentido íntimo das palavras, para que, na análise das sententiae, ele possa compreender onde ocorrem
as delimitações gramaticais: onde a voz deve continuar, onde a frase deve terminar. Deste modo, ele
controlará sem esforço a técnica de expressão oral (vim pronuntiationis), sem defeitos na articulação, de
modo que possa mover na direçao da compreensão a inteligência e as emoções (sensus) de todos,
distinguindo os diversos tipos de tons e expressando os sentimentos (affectus) contidos na sententia: ora
225
deparar com uma cláusulas que falava da leitura assídua da Escritura; por exemplo, o capítulo
central da Regra da Ordem dos Irmãos da Bem-Aventurada Virgem Maria do Monte Carmelo
diz o seguinte: “cada um permaneça em sua cela ou perto dela, meditando dia e noite na Lei do
Senhor e mantendo o espírito alerta por meio de orações, a não ser que esteja ocupado em
Com isso a interpretação e exegese do texto têm como passo inicial a compreensão
através da leitura. Da mesma maneira que não conhecemos uma pessoa simplesmente
olhando para o seu rosto o mesmo se processa com relação ao texto da Escritura. É preciso
dialogar com o texto. O tratado Adversus Eliprandum de Beatus vai comparar o conjunto da
gramática ao corpo humano: “um homem é composto de corpo, alma e espírito, o livro também
tem de ser entendido do ponto de vista histórico, moral e místico”.525 Daí a grande influência da
exegese de Santo Agostinho no seu tratado De doctrina christiana que estimulava a busca da
texto que não tenha relação com as regras da moral e a verdade da fé, devem ser interpretados
no sentido figurado.526
no tom de quem explica, ora na maneira de quem esteja sofrendo, ora com os modos de quem está
repreendendo, ora com o jeito de exortar, ou com as emoções adequadas para a récita em questão.”
(Isidoro de Sevilha, De ecclesiasticis officiis II, 11,2, PL, LXXXIII, 791). Apud. PARKES, Malcolm. Ler
escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na Alta Idade Média. In: CAVALLO, Guglielmo e
CHARTIER, ROGER (orgs). (2002: 103).
524
Cf. WILDERINK, D. Frei Vital e MESTERS, Frei Carlos. Tradição: “Continuísmo” ou Dinamismo?
São Paulo, s/d, pp.58-59 e suplemento. Ver também: MESTERS, Carlos. A Regra do Carmo. Sua
origem, seu sentido, sua atualidade. Rio de Janeiro: Província Carmelitana de Santo Elias, 1985.
525
Apud. PARKES, Malcolm. Ler escrever, interpretar o texto: práticas monásticas na Alta Idade
Média. In: CAVALLO, Guglielmo e CHARTIER, ROGER (orgs). (2002: 113).
526
Ver: AGOSTINHO, Santo. A Doutrina Cristã. Manual de exegese e formação cristã. São Paulo:
Paulus, 2002 (Coleção Patrística).
226
não sugeria um sentido duplo para a Escritura, mas um sentido quádrupo, que
mais tarde seria adotado pelos teólogos medievais. Esses quatro sentidos
eram: 1) o literal 2) o alegórico 3) o tropológico ou moral e 4) o anagógico. [...]
Em suma, Agostinho enfatizava a prioridade da fé para a compreensão da
Bíblia. Ele achava que boa parte da Bíblia deveria ser entendida tanto de
maneira literal quanto alegórica, embora o viés histórico nunca fosse
descartado”.527
A leitura alegórica das Escrituras tem em Fílon de Alexandria o seu mais proeminente
praticante. Para ele a Escritura devia ser encarada sob dois níveis de significado: o literal e o
proximidade com a leitura alegórica, foi muitas vezes confundido e não é levado em conta como
interpretação profética enquanto predição de futuro e de uma leitura alegórica que busca os
significado histórico do texto é o seu ponto de partida. Outro aspecto importante é que a
Cristianismo primitivo) que prefiguram uma época futura que estão inseridos numa dinâmica de
revelação dos propósitos de Deus. Por exemplo D. S. Russell apresenta alguns exemplos de
527
Cf. DOCKERY, David S. (2005: 138-139.140).
528
Vale salientar que é preciso que não se confunda a alegorização como um método e a presença de
elementos alegóricos num determinado texto bíblico. Aliás, nos Evangelhos encontramos vários
exemplos.
529
Cf. RUSSELL, D. S. (1964: 283-4). Ver também Desvelamento Divino. Uma introdução à
apocalíptica judaica. 1997.
227
Na Epístola de Barnabé, provavelmente escrita em Alexandria por volta do ano 135 E.C.
lemos o seguinte: “os profetas, depois de obterem a graça dele (Jesus Cristo), fizeram suas
profecias relacionadas a ele” (5,1). E na Homilia Pascal de Melitão, escrita ao redor de 170 E.C.
ao afirmar Jesus como o verdadeiro cordeiro pascal isto significa tipologicamente que ele é o
Da exegese dos Padres da Igreja em diante vamos nos deparar com uma leitura das
Escrituras de caráter funcionalista. Ou seja, não existe a preocupação com o contexto histórico
do texto e este é utilizado com forte teor moral. Seria a aplicação do texto no contexto do leitor
“O próprio Daniel identifica exatamente o fim do quarto reino nos dedos dos pés
da estátua vista por Nabucudonosor, com os quais se chocou a pedra que se
desprendeu sem intervenção de mão humana. Ele diz assim: ‘Os pés eram
parte de ferro e parte de argila, quando uma pedra, sem intervenção de mão
humana, destacou-se e veio bater na estátua, nos pés de ferro e de argila e os
triturou completamente’. Mais adiante, na explicação, diz: ‘Os pés e os dedos
que viste, parte de argila e parte de ferro, designam um reino que será dividido;
haverá nele a estabilidade do ferro, como viste o ferro misturado à argila. E os
dedos dos pés eram parte de ferro e parte de argila’. Os dez dedos dos pés
significam os dez reis entre os quais será dividido o reino; alguns deles serão
fortes, hábeis e poderosos e outros serão fracos e ociosos e contrários, como
diz Daniel: ‘Uma parte do reino será forte e será quebrada pela outra parte. O
fato de teres visto ferro misturado à argila, indica que se misturarão por
casamentos, mas não se fundirão um com o outro, da mesma forma que o ferro
não se funde com a argila’. E sobre o que acontecerá no fim, diz: ‘No tempo
desses reis o Deus do céu suscitará um reino que jamais será destruído, um
reino que jamais passará a outro povo. Esmagará e aniquilará todos os outros
reinos, enquanto ele mesmo subsistirá para sempre. Foi o que pudeste ver na
pedra que se destacou da montanha, sem que mão alguma a tivesse tocado e
reduziu a pó o ferro, o bronze, a argila e a prata. O grande Deus manifestou ao
rei o que deve acontecer disto. O sonho é verdadeiramente este, e digna de fé é
a sua interpretação’. Se, portanto, o grande Deus deu a conhecer o futuro por
meio de Daniel e o confirmou por meio de seu Filho; se o Cristo é a pedra que
se desprendeu sem intervenção de mão alguma, aquele que deve aniquilar os
reinos temporais e introduzir o reino eterno, isto é, a ressurreição dos justos – “o
Deus do céu, diz suscitará um reino que nunca mais será destruído” – dêem-se
por vencidos e se emendem os que, rejeitando o Criador, não admitem que os
profetas foram enviados pelo mesmo Pai que também enviou o Senhor, mas
dizem que as profecias derivam de Potências diferentes. Com efeito, o que o
Criador predisse de forma idêntica por meio de todos os profetas foi o que o
228
preocupações com o contexto histórico em que o texto se insere, mas com a sua conotação
cristã. Na sua interpretação Jesus é a pedra que se desprendeu e atingiu os pés da estátua ou
seja, aniquilará os reinos temporais, que ao tempo de Irineu de Lião significava a defesa da
ortodoxia contra as chamadas “heresias”. Aliás, neste período ser clérigo era ser inquisidor, pois
Nesta utilização funcional das Escrituras podemos dizer, noutras palavras, que a Bíblia
ficou prisioneira da explicação e o seu uso no culto litúrgico. Na liturgia da palavra a Escritura é
escola Alexandrina é uma das fortes correntes de leitura bíblica nos tempos dos padres da Igreja
Esta escola, marcada pela leitura alegórica da Bíblia, tem no seu quadro grandes
Gênesis (Gn 1-3) vai dizer que os quatro rios do Éden significam a prudência, a temperança, a
coragem e a justiça (justamente as virtudes platônicas). Com isso, a escola Alexandrina entende
o texto bíblico como possuidor de uma multiplicidade de significados. Assim, cada expressão,
cada palavra, cada letra pode conter um significado. Aplicavam o sentido literal em
determinadas passagens para tratar de questões morais e uma leitura tipológica, com ênfase
530
Irineu de Lião. Contra as heresias. Denúncia e refutação da falsa gnose. São Paulo: Paulus, 1995,
pp.585-586.
229
processo por meio do qual Deus, por meio de parábolas e metáforas, gradualmente conduz
aqueles a quem Deus iria se revelar do mundo sensível ao inteligível”.531 Assim, o “sentido literal
indicava o que havia sido feito ou dito, enquanto o alegórico mostrava aquilo em que se deveria
acreditar. A abordagem alegórica, então, era adotada para fins apologéticos e teológicos”.532
Outro fator importante: a interpretação de um texto deve ser feita à luz de toda a Escritura.
Deseja-se que o intérprete tenha conhecimento não só do texto, mas também do conjunto para
que busque as semelhanças seja através de idéias, termos, palavras, nomes, números, etc.533
A interpretação de Clemente dos textos bíblicos pode ser visualizada em cinco aspectos:
uma linha literal, o profético é estritamente tipológico e os aspectos filosóficos e místicos seguem
Para Orígenes cada palavra da Escritura é inspirada. No seu famoso texto, Contra
Celso, vai dizer que o criador do mundo deu poder às palavras para dominar os homens em
todos os lugares (1,18). Orígenes toma como uma de suas grandes tarefas a de restaurar o texto
531
Clemente de Alexandria. Miscellanies, 6.15.126. Apud. DOCKERY, David S. (2005: 79).
532
Idem.
533
Cf. DOCKERY, David S. (2005: 81).
534
Idem., p.83.
535
Idem. pp.205-6: “Os pais primitivos leram o AT não em hebraico, mas na tradução grega que era
produto da obra de estudiosos judaicos de Alexandria, conhecida como Septuaginta (LXX). Orígenes
parece ter aprendido o suficiente de hebraico a ponto de capacitá-lo a apreciar as diferenças
consideráveis que existiam em alguns pontos entre a Bíblia hebraica e a Septuaginta que harmonizavam-
se da maneira mais próxima possível, mas sem abalar a autoridade que a Septuaginta havia passado a
ter para a igreja.Orígenes, quando estava em Cesaréia, compilou sua obra Hexapla. Essa obra
monumental, que teria 6 500 páginas em seis colunas paralelas, o texto em hebraico, uma transliteração
230
alegórico.536 Pois todo texto é cheio de mistério e cada texto deve ser lido de acordo com toda a
Escritura. A sua leitura literal sempre começa pela citação do texto, pois ele considera que a
Bíblia contém história importante e verdadeira (Contra Celso 3,43), edificante (Contra Celso 1,17;
18,27) e apologética (Contra Celso 7,60). O sentido espiritual do texto para Orígenes tem de
estar totalmente conectado com a leitura literal. Por exemplo ao interpretar Jr 1,10, ele vai dizer
que Jeremias “recebeu a palavra de Deus a fim de despedaçar e destruir nações e reinos”.537
interpretatur, ou seja, alguns textos que são obscuros necessitam de outros textos mais claros,
para que sejam utilizados nas comparações e na busca de semelhanças.539 Assim, para
Orígenes a interpretação alegórica demonstra ser uma fonte para as exemplificações inspiradas
na doutrina e que cada parte da Escritura, mesmo aquelas mais irrelevantes, comunicam um
sentido no presente e tem algo a ensinar para a Igreja. (Contra Celso 4,13; 6,16; 6,4 e 6,58).
Moshe de Leon, dedicado à formulação de quatro níveis de significado da Torá, vai no fundo
apontar para quatro sentidos da Escritura: Pesat ( o significado simples e literal), remez
(“mistério” – a interpretação mística).540 Estes sentidos ou níveis da leitura têm uma forte relação
contexto das pregações de Antônio Vieira, tem as marcas da adoção de um sistema de busca ou
procura do sentido oculto ou verdade moral que perpassa pelo texto. Evidentemente, que em
grande medida estamos diante de uma leitura que visa o sentido literal do texto, sem considerar
produziram o texto.541
tarefa de adaptar o texto sagrado a uma situação sem terra (a Palestina) e sem
templo (de Jerusalém), recorrendo ao método alegórico para explicar episódios
e personagens do Velho Testamento: o sentido literal tornava-se símbolo de
verdades metafísicas ou morais.”542
choques muito fortes. De um lado, a renovação das pregações com o surgimento das Ordens
no século XVI já é patente as influências renascentistas e a Reforma já faz ouvir os seus ecos
em favor das Escrituras e contra a Instituição (tem mais valor a palavra revelada do que os
Para Jorge R. Seibold, o século de Vieira viu surgir as escolas “vulgar” e “cultista”543:
542
Cf. ALBERTI, Verena (1996: 4).
543
No § V do Sermão da Sexagésima Vieira faz a seguinte afirmação acerca dos cultistas: “Já que falo
contra os estilos modernos, quero alegar por mim o estilo do mais antigo pregador que houve no mundo.
E qual foi ele? O mais antigo pregador que houve no mundo foi o Céu. (...) o estilo culto não é escuro, é
negro, e negro boçal e muito cerrado. É possível que somos Portugueses, e havemos de ouvir um
pregador em Portuges, e não havemos de entender o que diz? Assim como há Lexicon para o Grego e
Calepino para o Latim, assim é necessário haver um vocabulário do púlpito”. VIEIRA, Antônio (2001a:
39-40).
544
“La primera segue los lineamientos que le habían trazado los grandes predicadores ibéricos del siglo
XVI, aunque a veces incurrió en excesos por una extraversión a veces grotesca de sus métodos
persuasivos. La escuela ‘cultista’ adopta a sua vez dos formas ligadas entre si como son el
‘culteranismo’ centrado en el uso retórico ornamental de hipérboles, imágenes, mitos y otros
procedimientos para realzar el tema. La otra forma es el ‘conceptismo’ que estimula el ingenio y la
creatividad conceptual a fin de recrear una frase lapidaria o una sentencia para expresar la novedad de
lo tratado”. In: SEIBOLD, Jorge R. La Sagrada Escritura em la evangelización del Brasíl. In:
KONINGS, Johan (2001: 124).
233
A oratória para Vieira representava nada mais que o exercício do ministério da Palavra.
Isto percebemos no seu Sermão da Sexagésima de 1655545, no qual fala sobre a Palavra de
Deus, fazendo um jogo sobre a concepção da palavra e com certeza convertendo o ouvinte para
a palavra de Deus e transparece a sua crítica aos pregadores do seu tempo, mas, ao mesmo
Vieira diz que para converter o ouvinte à palavra é preciso três concursos: do pregador, do
ouvinte e de Deus:
Porém, uma das críticas de Vieira aos pregadores está nos sermões. Para ele os sermos
de seus contemporâneos eram palavras sem obras e eram palavras difíceis num discurso prolixo
e confuso:
“As palavras que tomei por Tema o dizem: Semen est Verbum Dei. Sabeis,
(Cristãos) a causa por que se faz, hoje, tão pouco fruto com tantas pregações?
É porque as palavras dos pregadores são palavras, mas não são palavras de
Deus. Falo do que ordinariamente se ouve. A palavra de Deus (como dizia) é
tão poderosa e tão eficaz, que não só na boa terra faz fruto, mas até nas pedras
e nos espinhos nasce. Mas se as palavras dos pregadores não são palavra de
Deus, que muito que não tenham a eficácia e os efeitos de palavra de Deus?
Ventum seminabunt, et turbinem colligent (Os. 8,7), diz o Espírito Santo: Quem
semeia ventos, colhe tempestades. Se os pregadores semeiam vento, se o que
545
Para a leitura dos Sermões de Vieira tomo a obra editada por Alcir Pécora. Sermões: Padre Antônio
Vieira. São Paulo: Hedra, 2 Tomos, 2001.
546
Idem., p.33.
234
uso das Escrituras, aqui ele apresenta a partir de um trocadilho que vai do plural ao singular
mesma idéia, e, acrescentando a cada nova repetição, elemento que melhor a defina ou mais
repetições e acréscimos.548
547
Idem., pp.36, 39 e 46-47.
548
Cf. DURÃO, Paulo (1951: 662-668).
235
No sermão de Santo Antônio, pregado em Maranhão em 1654, tomando o texto “vós sois
o sal da terra”, observa o orador que o efeito do sal é preservar da corrupção. Sendo assim, e
vendo-se por outro lado aquela terra tão corrupta, pergunta qual será a causa de semelhante
Aqui vemos nitidamente o estilo repetido, centralizado e que reforça uma só idéia ou uma
só temática. “Como se vê, no trecho citado vão se repetindo periodicamente duas idéias e, a
cada nova repetição, vai-se indicando uma forma nova de entender e interpretar a metáfora do
549
Idem., p.663.
236
Uma característica visível nos sermões de Vieira é o uso da retórica. Porém, vemos que
sua riqueza está em retirar do próprio texto a imagem com a qual construirá o seu argumento.
No sermão no qual falou sobre a Palavra de Deus e a prática dos pregadores todo o seu
trecho do sermão de Santo Antônio, a sua argumentação gira em torno da imagem do sal, tirada
do próprio Evangelho. Também, a utilização que faz dessas imagens se acentua sua leitura
tropológica ou moral da Escritura, pois a imagem ou metáfora que emprega visa fornecer
elementos para se criticar ou apontar caminhos para uma determinada ação na sociedade e na
vida cotidiana. Se a semente do Evangelho está destinada a frutificar, então, a finalidade do seu
sermão é:
550
Numa exegese da Parábola do semeador logo se distingue a Parábola, propriamente dita, que trata
sobre o semeador e a semente da sua alegoria que transforma o semeador em Deus ou Jesus e a semente
na Palavra de Deus.
551
Porque somos feitos espetáculo ao mundo, e aos anjos, e aos homens (1 Cor. 4,9). A Vulgata traz
mundo, e não Deo.
237
Deus, e saiba a mesma terra que ainda está em estado de reverdecer e dar
muito fruto: Et fecit fructum centuplum”.
Outra marca importante que aparece nos sermões de Vieira é a sua unidade teológica,
retórica e política552. Pode-se falar de uma matriz sacramental, entendida como uma boa técnica
de produção discursiva, 553 com analogias que partem da liturgia católica: as comemorações do
mistério da Encarnação e Pentecostes são temas que perpassam os sermões dos pregadores.
Quanto ao Evangelho do dia, o autor tomou como exemplo o Sermão da Primeira Dominga do
Advento que Vieira refere ter pregado na Capela Real de Lisboa, no ano de 1650. Os sermões
nascimento de Jesus, sua juventude e ministério e o Juízo Final. O Evangelho do dia foi o de
Lucas 21,25-33 que visava mover o auditório à penitência e à emenda dos costumes. Além deste
caráter parenético, este tema suscita através da teologia bíblica uma análise que contemple: a
articulação semântica entre “julgar” e “reinar”554; o alerta contra os abusos praticados pelos
552
Alcir Pécora busca um eixo teológico-retórico-político nos sermões de Vieira, tomando como ponto de
partida a organização dos sermões através do calendário litúrgico. A leitura da Bíblia em Antônio Vieira
caminha nas sombras da liturgia, seguindo uma matriz sacramental que utiliza analogias entre três linhas
semânticas: as comemorações do ano eclesiástico ou litúrgico (do Advento à Septuagésima, da
Septuagésima à Ascensão e da Ascensão a Pentecostes), as passagens escriturais do Evangelho do dia e as
circunstâncias presentes na enunciação do sermão. In: Para ler Vieira: As 3 pontas das analogias nos
sermões (http://www.georgetown.edu/sfs/programs/clas/Brazil/Alcirpecora.pdf - retirado no dia
24/01/2004).
553
Idem.: “A técnica de produção discursiva supõe ser uma ocasião favorável à manifestação da
presença divina, cuja latência nas palavras do pregador considera-se decisiva para mover o auditório.
Movê-lo, aqui, significa basicamente, em termos individuais, reorientá-lo na direção das finalidades
cristãs inscritas na natureza divinamente criada; em termos de ação coletiva e institucional, implica
dizer que o sermão deve estar apto a formular hipóteses para uma política pragmática e legítima a ser
conduzida pelos Estados católicos na história”.
554
Tais termos, aparentemente distantes numa gramática contemporânea, aparecem estreitamente ligados
na Bíblia (por exemplo, em Jz 16, 17: Então o Senhor fazia surgir juízes que os libertavam dos
assaltantes.) Essa articulação está patente também no livro dos Juízes, cujo esquema geral, segundo
Pesch, é basicamente quaternário: Israel peca/ Deus pune/ Israel se arrepende e suplica/ Deus salva por
238
Porém, a hipótese de Alcir Pécora levanta uma questão acerca das circunstâncias da
que levam em conta o lugar e a data em que foi proferida oralmente? É possível falar de
distante muitos anos do suposto ato original da pregação, com alterações enormes na situação
em que se situa o sermão é o do empenho na “reforma dos estilos” da Inquisição a fim de trazer
indígenas e nas violentas desavenças na cidade da Bahia entre as famílias Vieira Ravasco e os
Sousa e Meneses.
Neste Sermão do Advento (1650), Vieira começa por uma ponderação misteriosa,
recurso usual nos engenhosos sermões seiscentistas. Assim, Vieira pergunta pela razão oculta
sob o mistério de caberem todos os homens de todas as épocas no mesmo Vale de Josafá
(compara ironicamente o Vale do Juízo com a praça do Paço da Ribeira). Propõe como resposta
para este mistério que seus ouvintes imaginem a composição de lugar da cena do Juízo, de
modo que as autoridades ali presentes se imaginem como “réus” na expectativa do julgamento
final diante da encenação do momento dramático da separação entre os bons e os maus. Vieira
aponta três aspectos decisivos do Juízo: (1) a ressurreição na fé significará uma reparação; (2)
não haverá privilégio de “estado”, seja de nobreza, realeza ou eclesiástico e (3) reis e cortes
meio de um juiz (que pode ser “maior”, isto é, carismático, inspirado; ou “menor”, tratando-se tão
somente de ocupar o posto de líder ou governante)
239
serão objeto de juízo rigoroso por incorrerem em dois pecados: omissão (deixar de fazer o que o
cargo que ocupam obriga) e o pecado de conseqüência, isto é quando a corrupção do voto ou de
um ato inicial traz sucessivos desmazelos (governantes e ministros deverão pagar com a própria
condenação eterna os desastres em cascata causados pelas ações necessárias e justas que
deixam de fazer na hora certa e pelas errôneas e injustas que fazem quando não deviam).
mirrarão de tanto medo (“mirrar de pavor”) da sentença que se abaterá sobre eles. Assim
caberão todos.
Podemos perceber nos sermões duas grandes linhas: de um lado, sermões estritamente
religiosos e, de outro, aqueles relacionados com algum determinado assunto político e social, no
entanto, os sermões têm como ponto de partida um texto bíblico extraído das festas litúrgicas.
tribuna, na qual os textos bíblicos eram habilmente interpretados enquanto fontes que
forneceriam propostas de saídas para esta situação, em prol dos desprotegidos.556 Assim, o
púlpito não só era uma tribuna, como um verdadeiro teatro ou uma comédia (nas próprias
palavras de Vieira: “os ouvintes vêm à pregação como à comédia”). Vieira ironiza o papel dos
questões mais sólidas em termos morais do que o que se ouve nos pulpitos557.
555
BESSELAAR, J. van den (1981: 68).
556
Idem., p.69.
557
“Os ouvintes vêm à pregação como à comédia; e há pregadores que vêm ao púlpito como
comediantes. Uma das felicidades que se contava entre as do tempo presente, era acabarem-se as
comédias em Portugal, mas não foi assim. Não se acabaram, mudaram-se; passaram do teatro ao
púlpito. Não cuideis que encareça em chamar comédias a muitas pregações das que hoje se usam.
Tomara ter aqui as comédias de Plauto, de Terêncio, de Sêneca, e veríeis se não acháveis nelas muitos
240
satírico. Aliás, no berço da literatura portuguesa nos deparamos com Gil Vicente, Francisco
Manuel de Melo, Bocage, Eça de Queiroz558 e tantos outros. É possível perceber a ironização
nos sermões de Vieira a partir das fundamentações de seus temas, seja na Bíblia, na tradição
religiosa, na hagiografia e na história; bem como no lugar social de seus sermões, no púlpito,
enquanto lugar sacro e pouco propício a discursos rebuscados; e por fim, a função parenética
dos sermões, que na maioria das vezes, objetivava a criar convicções e a direcionar as ações
dos ouvintes. Isto nos leva a crer que a função do sermão caminha na contramão da ironia e do
humor.559 Portanto,
“pode-se satirizar sem ironizar, e se pela ironia sempre se satiriza, ela pode
incidir não tanto na condenação das atitudes como em novas formas de
observar e ver a realidade e a sua multiplicidade, ou as intenções verazes ou
pretendidas. A ironia supõe sempre visões diversificadas, e geralmente
engenhosas, e de extremo engenho, quer do mundo quer das pessoas, e todas
terão a sua quota parte de verdade. Ao ironizar, aquele que introduz a ironia
coloca-se a si mesmo em causa e aceita implicitamente que a sua visão seja
também objecto de crítica.” 560
processos retóricos, ao uso de alegorias e o púlpito como lugar de tribuna política e censura aos
vícios dos poderosos.561 No entanto, no conjunto dos sermões encontraremos através do jogo
Sexagésima, em 1655:
desenganos da vida e vaidade do mundo, muitos pontos de doutrina moral, muito mais verdadeiros e
muito mais sólidos do que hoje se ouvem nos púlpitos. Grande miséria, por certo, que se achem maiores
documentos para a vida nos versos de um poeta profano e gentio que nas pregações dum orador cristão
e, muitas vezes, sobre cristão, religioso!” Sermão da Sexagésima, pregado na capela real (1655),
VIEIRA, Antônio (2001a: 49).
558
Vale salientar, que a obra de Eça de Queiroz fora comentada por Mario Sacramento como uma estética
da ironia.
559
Cf. FERNANDES, M. Correia. (1998: 282).
560
Idem. pp.282-3.
561
Idem. pp.283-284.
241
“E se quisesse Deus que este tão ilustre e tão numeroso auditório saísse hoje
tão desenganado da pregação, como vem enganado com o Pregador! Ouçamos
o Evangelho, e ouçamo-lo todo, que todo é do caso que me levou e trouxe de
tão longe.
Ecce exijt, qui seminat, seminare. Diz Cristo, que saiu o Pregador Evangélico a
semear a palavra divina. Bem parece este texto dos livros de Deus. Não só faz
menção do semear, mas faz também caso do sair: Exiit, porque no dia da
messe hão-nos de medir a semeadura, e hão-nos de contar os passos. O
mundo, aos quais lavrais com ele, nem vos satisfaz o que dependeis, nem vos
paga o que andais. Deus não é assim. Para quem lavra com Deus até o sair é
semear, porque também das passadas colhe fruto. Entre os semeadores do
Evangelho há uns que saem a semear, são os que vão pregar à Índia, à China,
ao Japão: os que semeiam sem sair, são os que se contentam com pregar na
pátria. Todos terão sua razão, mas tudo tem sua conta. Aos que têm a seara em
casa, pagar-lhes-ão a semeadura: aos que vão buscar a seara tão longe, hão-
lhes de medir a semeadura, e hão-lhes de contar os passos. Ah dia do Juízo! Ah
Pregadores! Os de cá, achar-vos-eis com mais Paço; os de lá, com mais
passos: Exijt seminare.”562
ou a repetição de nomes com sentidos diversos. Vejamos duas expressões mencionadas por
Correia Fernandes: “Ainda não o comeu a terra, e já o tem comido toda a terra” e “Alguns
ministros de sua Majestade não vêm cá buscar o nosso bem, vêm cá buscar os nossos bens”. A
verbo buscar: no primeiro inciso traduz “promover, trabalhar por” e no segundo implica “tentar
o uso polissêmico do verbo tomar, onde “tomar Pernambuco” significa conquistar ou ocupar
sintomas.564
562
Cf. VIEIRA, Antônio (2001a: 29).
563
Idem.p.285.
564
“El-Rei manda-os a tomar Pernambuco, e eles contentam-se com o tomar. Se um só homem que
tomou, perdeu o Mundo, tantos homens a tomar, como não hão-de perder um Estado? Este tomar o
alheio, ou seja o do Rei ou o dos povos, é a origem da doença; e as várias artes e modos e instrumentos
do tomar são os sintomas, que, sendo de sua natureza muito perigosa, a fazem por momentos mais
mortal. E senão, pergunto para que as coisas dos sintomas se conheçam melhor: – Toma nesta terra o
Ministro da justiça? – Sim, toma. – Toma o Ministro da fazenda? – Sim, toma. – Toma o Ministro da
república? – Sim, toma. – Toma o Ministro da milícia? – Sim, toma. – Toma o Ministro de Estado? –
Sim, toma. E como tantos sintomas lhe sobrevêm ao pobre enfermo, e todos acometem à cabeça e ao
coração, que são as partes mais vitais, e todos são atractivos e contractivos do dinheiro, que é o nervo
dos exércitos e das repúblicas, fica tomado todo o corpo, e tolhido de pés e mãos, sem haver mão
242
Dentro das ironias sutis de Vieira nos sermões, encontramos a metáfora das abelhas
para criticar o ataque dos holandeses à Bahia e a criação de uma simbiose entre o
da cidade de Salvador da Bahia, até então cercada pelos holandeses, traz as marcas mais vivas
das intensas batalhas. O sermão de Santo Antônio apresenta ousadas analogias entre o tempo
Israel repetem-se nos de Portugal, até nos pormenores”. Era comum na época este tipo de
leitura da Bíblia, que procurava acomodar o texto bíblico à atualidade sem uma preocupação
Escritura, nos Santos Padres, nos teólogos, nos exegetas e nos filósofos, capazes de conduzir o
palavra de Jesus ao Bom ladrão: “Hoje estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). O argumento de
Vieira nesta primeira parte é que os reis não podem ir ao Paraíso sem os ladrões e, por outra, os
ladrões não podem ir ao inferno sem levar consigo os reis. Utiliza os dois ladrões, Dimas e
Zaqueu, para argumentar que sem a restituição do roubado não pode haver perdão. Ele busca
esquerda que castigue e mão direita que premeie; faltando a justiça punitiva para expelir os humores
nocivos e a distributiva para alentar e alimentar o sujeito, sangrando-o por outra parte os tributos em
todas as veias, milagre é que não tenha expirado”. Apud. FERNANDES, M. Correia. (1998: 286).
565
Idem. p.288.
566
BESSELAAR, J. van den. (1981: 13).
243
em santo Agostinho e São Tomás de Aquino a confirmação de que não apenas os súditos, mas
também os reis estão obrigados à restituição. Apresenta em seguida duas parábolas como
modelos exortativos: a parábola do administrador (Lc 16) e do rei que viaja e entrega a
administração aos empregados (Lc 19). E termina o seu sermão com uma invocação final:
“Rei dos Reis, e Senhor dos Senhores, que morrestes entre ladrões para pagar
o furto do primeiro ladrão, e o primeiro a quem prometestes o Paraíso foi outro
ladrão; para que os ladrões e os Reis se salvem, ensinai com vosso exemplo e
inspirai com vossa graça a todos os Reis, que não elegendo, nem dissimulando,
nem consentindo, nem aumentando ladrões, de tal maneira impidam os furtos
futuros, e façam restituir os passados, que em lugar de os ladrões os levarem
consigo, como levam, ao inferno, levem eles consigo os ladrões ao Paraíso,
como vós fizestes hoje: Hodie mecum eris in Paradiso.”567
Brasil - no século XVII (1580-1750) existia uma opção católica absolutista pela “transmissão oral
três analogias escolásticas, a possibilidade retórica de imitar uma tópica qualquer, numa
etc.”.568
teses de Martinho Lutero de que para o fiel basta ter um Bíblia e lê-la individualmente,
estabelecendo no silêncio o seu contado com Deus. É a tese da sola scriptura. O que descarta a
figura mediadora do clero, dos ritos da Igreja. No Concílio de Trento, Jesuítas e Dominicanos,
representaram as grandes vozes de condenação a esta tese como sendo herética. Neste
contexto é que instituíram a traditio (tradição) que delimita nos textos que são aceitos e
567
Cf. VIEIRA, Antônio (2001b: 413).
568
Cf. HANSEN, João Adolfo (2002: 169-170).
244
autorizados pela Igreja a verdade revelada. Assim, fica proibido o acesso à Bíblia (juntamente
com a leitura individual) e em contrapartida os fiéis devem participar dos ritos e sacramentos e
principalmente são obrigados à audição coletiva da pregação. A Bíblia vem pela boca do orador.
Portugal e no Brasil consiste no ensino da eloqüência sacra nos seus colégios. Além disso, o
púlpito se torna um forte instrumento para a afirmação da devotio moderna (teoria e prática), na
qual o aspecto principal está na pregação que tem como objetivo intervir efetivamente na vida
dos fiéis.569
O sermão sacro jesuítico (“fala dramatizada pelo pregador para a audição e visão de um
público que deve ser persuadido da verdade e validade universal da doutrina católica”) era
composto de seis partes: exórdio, narração, divisão, confirmação, peroração e epílogo. Enquanto
púlpito, que neste momento, era um dos espaços privilegiados da oratória e da poesia satírica
569
Cf. HANSEN, João Adolfo (1999: 26)
570
Idem. pp.26-27.
245
político, pois se adapta ao seu auditório e é capaz de ensinar, comover e envolver os ouvintes e,
através do consilium seus sermões conduzem o tema bíblico para as questões econômicas e
uma cultura letrada que tornava a palavra compreensível para os olhos e ouvidos analfabetos.
metáforas e as alegorias. É preciso perceber que a leitura do texto, não é propriamente uma
apropriação leitora, mas aural, feitas pelo ouvido, pois, o saber ler e escrever se restringia aos
burocráticos e clericais.573
A leitura da Bíblia em Antônio Vieira é prisioneira do tempo, que por sua vez, “subordina
como reais e o passado dos grandes personagens da Bíblia são exemplos a serem imitados pois
enfronhado pelo discurso político, é o que percebemos nas concordâncias que a palavra do
571
SILVA, Janice Theodoro da (2004:
http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livros/ab/)
572
Teológico por seguir os temas impostos pelo calendário litúrgico
573
Cf. HANSEN, João Adolfo (2002: 172).
574
HANSEN, João Adolfo (2003: 95).
246
Vieira nos seus sermões “recicla conceitos predicáveis das Escrituras, citando-os
sempre em latim, com o que compõe um destinatário letrado em Cícero ou Virgílio, conhecedor
Evidentemente que estamos lidando com algumas das categorias que vêm dos modelos
neo-escolásticos de interpretação:
Por isso muitos dos sermões são entremeados com a enunciação do texto e as
muito mais como uma hermenêutica político-religiosa e moral dos textos, seguindo o esquema
diplomata em cortes européias, defensor de cristãos novos e com igual zelo missionário no
575
Idem. p.97.
576
Cf. HANSEN, João Adolfo (2002: 178).
577
Idem. p.179.
247
Maranhão e no Pará”.578 Também foi apresentado pelo biógrafo João Lúcio de Azevedo como “o
político” e num texto não datado, o descreve como “sogeito engenhoso, de juizo sutil, e agudo
sobremodo, suposto que tem tanto quanto de doudo, muito presumido e não pouco teimoso”. 579
A imagem de Vieira política está calcada na sua apaixonada defesa dos interesses do
sistema português. No entanto, Luís Gómez Palacín nos leva a perceber que nesta defesa
apaixonada perpassa uma crítica e uma negação ao Sistema Colonial, sob dois aspectos: a) a
mercantilismo em seus inícios, como afirma Luis Palacín ou um político tolerante que busca a
Coelho.581
acolá nas entrelinhas de seus sermões e cartas. Esta impossibilidade é apresentada através de
suas críticas aos roubos e injustiças praticadas pelas autoridades. Por exemplo, como já vimos
bem/bens e a polissemia do verbo tomar. Outro exemplo de crítica ao sistema está no sermão do
bom ladrão, pregado em Lisboa em 1655, no qual Vieira analisa o verbo rápio para criticar os
roubos praticados pelos funcionários coloniais.582 A tese de Vieira é que o Sistema Colonial
578
Cf. BOSI, Alfredo. (2000: 119).
579
João Lúcio Azevedo. Apud. FONSECA, Fernando Taveira da (1997: 310).
580
Cf. PALACÍN, Luís Gómez. (1978: 31-54).
581
Cf. COELHO, Alessandro Manduco (2003: 116).
582
“Está é a lembrança que devem ter todos os Reis, e a que eu quisera lhes persuadissem os que são
ouvidos de mais perto. Que se lembrem não só de levar os ladrões ao Paraíso, senão de os levar consigo:
Mecum. Nem os Reis podem ir ao Paraíso sem levar consigo os ladrões, nem os ladrões podem ir ao
Inferno sem levar consigo os Reis. Isso é o que hei de pregar. Ave Maria. (...) Quer dizer: a rapina, ou
roubo, é tomar o alheio violentamente contra vontade do seu dono: os Príncipes tomam muitas coisas a
seus vassalos violentamente, e contra sua vontade; logo parece que o roubo é lícito em alguns casos,
porque se dissermos, que os Príncipes pecam nisto, todos eles, ou quase todos se condenariam: fere
omnes Príncipes damnarentur: Oh que terrível e temerosa conseqüência; e quão digna de que a
considerem profundamente os Príncipes, e os que têm parte em suas resoluções e conselhos! (...)
248
No sermão da Terceira Dominga da Quaresma (na Capela Real, ano de 1655) Vieira
lança uma crítica aos ministros que acumulam cargos sem a capacidade de ocupá-los e que se
elegem não por mérito, mas por relações de amizade. Roubo, falsificação de decretos, utilização
Respondo (diz S.Tomás) que se os Príncipes tiram dos súditos o que segundo justiça lhes é devido para
conservação do bem comum, ainda que o executem com violência, não é rapina, ou roubo. Porém se os
Príncipes tomarem por violência o que se lhes não deve, é rapina e latrocínio. Donde se segue, que estão
obrigados à restituição como os ladrões; e que pecam tanto mais gravemente que os mesmos ladrões,
quanto é mais perigoso e mais comum o dano, com que ofendem a justiça pública, de que eles estão
postos por defensores. (...) O ladrão que furta para comer não vai nem leva ao Inferno: os que não só
vão, mas levam, de que eu trato, são os ladrões de maior calibre e de mais alta esfera, os quais debaixo
do mesmo nome e do mesmo predicamento distingue muito bem S. Basílio Magno... Não são só ladrões,
diz o Santo, os que cortam bolsas, ou espreitam os que se vão banhar, para lhes colher a roupa; os
ladrões que mais própria e dignamente merecem este título, são aqueles a quem os Reis encomendam os
exércitos e legiões, ou o governa das Províncias, ou a administração das cidades, os quais já com
manha, já com força, roubam e despojam os povos. Os outros ladrões roubam um homem, estes roubam
Cidades e Reinos: os outros furtam debaixo do seu risco, estes sem temor, nem perigo: os outros se
furtam, são enforcados, estes furtam e enforcam. Diógenes, que tudo via com mais aguda vista que os
outros homens, viu que uma grande tropa de varas e Ministros de justiça levavam a enforcar uns ladrões,
e começou a bradar: Lá vão os ladrões grandes a enforcar os pequenos. Ditosa Grécia, que tinha tal
Pregador! E mais ditosa as outras nações, se nelas não padecera a justiça as mesmas afrontas. Quantas
vezes se viu em Roma ir a enforcar um ladrão por ter furtado um carneiro, e no mesmo dia ser levado em
triunfo um Cônsul, ou Ditador por ter roubado uma província! E quantos ladrões teriam enforcado estes
mesmos ladrões triunfantes? (...) Encomendou el-rei D. João o Terceiro a S. Francisco Xavier o
informasse do Estado da Índia, por via de seu companheiro, que era Mestre do Príncipe; e o que o santo
escreveu de lá, sem nomear ofícios nem pessoas, foi que o verbo rapio na Índia se conjugava por todos os
modos. A frase parece jocosa em negócio tão sério, mas falou o servo de Deus como fala Deus, que em
uma palavra diz tudo. Nicolau de Lira, sobre aquelas palavras de Daniel: Nabucodonosor rex misit ad
congregandos satrapas, magistratus et judices, declarando a etimologia de sátrapas, que eram os
governadores das províncias, diz que este nome foi composto de sat e de rapio: Dicuntur satrapae quasi
satis rapientes, quia solent bona inferiorum rapere: Chamam-se sátrapas, porque costumam roubar
assaz. E este assaz é o que especificou melhor S. Francisco Xavier, dizendo que conjugam o verbo rapio
por todos os modos. O que eu posso acrescentar, pela experiência que tenho, é que não só do Cabo da
Boa Esperança para lá, mas também das partes daquém, se usa igualmente a mesma conjugação.
Conjugam por todos os modos o verbo rapio, porque furtam por todos os modos da arte, não falando em
outros novos e esquisitos, que não conheceu Donato nem Despautério.” VIEIRA, Antônio (2001b: 387-
400).
583
Cf. PALACÍN, Luís Gómez (1978: 40).
249
de artifícios para favorecimento próprio são os pecados das lideranças. Nesta perspectiva,
A visão do sistema colonial como exploração das colônias perpassa pela política
econômica concebida por Vieira, a qual era decididamente mercantilista (numa primeira fase). O
comércio constitui uma verdadeira variável independente na criação da riqueza das nações:
Herman Vos585 nos apresenta o seguinte cenário para compreender a relação entre
esquecer que grande parte do século XVII Portugal será marcado por um “mal-estar” econômico;
qual Amsterdã se firma como capital financeira por suas atividades produtivas e comerciais.
584
VIEIRA, Antônio. Cartas. Apud. PALACÍN, Luís Gómez (1978: 42).
585
Cf. VOS, Herman. (1993: 568-595).
586
Paul Kennedy. Apud. Herman Vos (1993: 569).
250
com o uso de novas técnicas, que culminaram no aumento do plantio de culturas mais nobres e
de alto valor agregado. Podemos dizer que o sistema econômico holandês no século XVII se
caracteriza “por uma comercialização rural avançada e uma integração marcante entre a
Estado. Daí o caráter belicista e militar do comércio internacional, que transmitia uma visão
mercantil da sociedade.
“... O comércio tem se tornado agora a dama que atualmente está sendo mais
cotejada e celebrada que em qualquer época anterior, por todos os príncipes e
potentados do mundo, e isto com razão: porque ela não conquista seu domínio
pela face hórrida e triste da guerra, cujas pegadas sempre deixam para trás
marcas profundas de miséria, devastação e pobreza; mas com o aspecto
agradável de riqueza e opulência de todas as coisas que levam ao benefício da
vida humana e da sociedade...”588.
“E porque à nossa noticia tem chegado que, contra os missionários que neste
Estado servimos a Deus e a V.M., e contra o governo da dita missão, se têm
presentado a V.M. algumas queixas, pedimos humildemente a V.M. seja V.M.
servido mandar-nos dar vista de todas, ainda que sejam das que tocarem ao
Estado, porque a todas esperamos satisfazer de maneira, que fique conhecido
com grande clareza quão úteis são os missionários da Companhia, não só ao
melhoramento espiritual dos portugueses e índios, senão ainda ao temporal de
todos”.589
que aparece em várias de suas cartas), porém, na carta ao Marquês de Niza aponta os
interesses portugueses:
587
VOS, Herman (1993: 572).
588
Roger Coke. Apud. VOS, Herman (1993: 581).
589
Cartas do Padre Antônio Vieira. Apud. VOS, Herman (1993: 583).
251
que são condenáveis, como podemos perceber na leitura de Luís Palacín. E, de outro, deseja
propagar e implantar o Reino de Deus. Daí encontrarmos em seus sermões uma crítica à
cartas, com certa freqüência, deixa transparecer o objetivo de fortalecer o império português,
Comércio em Portugal, para tanto seria necessário aproveitar o capital dos judeus de Portugal e
590
Cartas de Padre Antônio Vieira. Apud. VOS, Herman (1993: 584)
591
Idem., p.585.
592
Idem., p.594.
252
cuidar do plantio das drogas da Índia no Brasil. A política de Vieira insere-se numa tradição
podemos perceber nas suas cartas a visão do comércio de longo curso como fonte de riqueza e
poder das nações juntamente com a visão monetária do mercantilismo que via no dinheiro o
quilombos era a alternativa vislumbrada pelo escravo numa sociedade marcada pela lei, trabalho
nas administrações locais. O poder mais amplo estava nas mãos dos governadores que eram
nomeados pelo rei; 5) o exercício da cidadania é duplamente limitado (pelo Estado e pela
juridicamente dos senhores da terra e agem, assim como seus funcionários, só mais tarde
aparecerão as figuras dos ditos padres liberais e radicais; 7) as ordens religiosas cumprem a
missão junto aos índios (projeto de expansão portuguesa); 8) a cultura letrada é rigorosamente
593
Cf. VOS, Herman (1993: 594-5).
594
Cf. MOURA, Antônio de Paiva (2003: 69).
253
sentido, aparece no Sermão de Santo Antônio (pregado na Igreja das Chagas em Lisboa, no ano
de 1642) um forte apelo à unidade do reino português aliado às questões tributárias. Vieira
propõe uma reforma tributária que provoca a reação dos agentes que eram beneficiados pelo
Antigo Regime (a nobreza e o poder eclesiástico). Por isso, utiliza no seu sermão a simbologia
remédio da corrupção, mas remédio preservativo: não remedeia o que se perdeu: mas conserva
o que se pudera perder, que é o que temos necessidade”.597 Noutras palavras, Vieira propõe
uma distribuição eqüitativa e igualitária dos tributos e, com isso, mexe com aqueles que vivem
das benesses e que só fazem lamentar diante de sua proposta. Com muita sabedoria,
correlaciona os três Estados do Reino (Eclesiástico, a Nobreza e o Povo) com os três elementos
No sermão do Santíssimo Sacramento, Vieira faz uma pregação sobre a união, na qual
propõe o entendimento do sacramento não somente como união com Cristo, mas como união
595
Cf. BOSI, Alfredo (2000: 23-25).
596
Cf. COELHO, Alessandro Manduco (2003: 116-117).
597
Cf. VIEIRA, Antônio (2001b: 319).
598
“Assim como o sal é uma junta de três elementos, fogo, ar e água, assim a República é uma união de
três estados, eclesiástico, nobreza e povo. O elemento do fogo representa o estado eclesiástico, elemento
mais levantado que todos, mais chegado ao céu e apartado da terra; elemento a quem todos os outros
sustentam, isento ele de sustentar ninguém. O elemento do ar representa o estado da nobreza, não por
ser a esfera da vaidade, mas por ser o elemento da respiração, porque os fidalgos de Portugal foram o
instrumento felicíssimo por que respiramos, devendo este reino eternamente à resolução de sua nobreza
os alentos com
que vive, os espíritos com que se sustenta. Finalmente, o elemento da água representa o estado do povo:
Aquae sunt populi – diz um texto do Apocalipse – e não como dizem os críticos, por ser elemento
inquieto e indômito, que à variedade de qualquer vento se muda, mas por servir o mar de muitos e mui
proveitosos usos à terra, conservando os comércios, enriquecendo as cidades, sendo o melhor vizinho
que a natureza deu às que amou mais”. Idem., p.326
254
entre os homens. Admoesta neste caso, sobretudo, os portugueses. Utiliza em vários momentos
a leitura de Daniel 2-3 acerca da imagem da estátua.599 A partir disto, João Adolfo Hansen
observa que:
Portugueses, ano de 1672, Vieira toma como referência Jó 10,9. Ao falar de pó levantado e pó
“Pó levantado, lembra-te outra vez, que hás de ser pó caído, e que tudo há de
cair, e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre,
599
“A estátua de Nabucodonosor de pés à cabeça era composta daquela variedade de metais que todos
sabemos. A cabeça de ouro, o peito de prata, o ventre de bronze, do ventre aos pés de ferro, os pés de
ferro e de barro. E nota o texto sagrado, que o ferro e o barro dos pés não estavam unidos: Sicuti ferrum
misceri non potest testae, etc. De maneira que o ouro estava unido com a prata, e a prata estava unida
com o bronze, mas o barro dos pés não estava unido com o ferro. Olhai por onde rendeu a estátua, olhai
onde estava a desunião; nos pés e no barro. A parte mais baixa da estátua eram os pés, a matéria mais
vil dos metais era o ferro e o barro; e onde estava a maior baixeza, e a maior vileza, ali se achou a
desunião. Pelo contrário, o mais alto da estátua era a cabeça e o peito: o mais ilustre dos metais era o
ouro e a prata, e o que na estátua era o mais alto e o mais ilustre, isso era o que estava unido. À cabeça e
ao peito, ao ouro e à prata não lhes faltavam seus altibaixos em que poder tropeçar a desunião. A prata
pudera dizer que era mais branca que o ouro; o ouro pudera dizer que tinha mais quilates que a prata; a
cabeça pudera dizer que tinha mais juízo que o peito; o peito pudera dizer que tinha mais coração que a
cabeça. Mas como a cabeça e o peito, como o ouro e a prata eram o mais alto e o mais ilustre, todos se
compunham entre si, todos estavam unidos. Quis Nabuco emendar o erro, ou melhorar a fortuna da
estátua que vira, e mandou fazer outra estátua, dos pés até a cabeça toda de ouro. Fecit statuam auream.
E esta estátua toda de ouro tinha alguma desunião? Nenhuma. Como tudo era ilustre, tudo estava unido.
Tão própria qualidade, e tão próprio atributo é da nobreza a união! Mas se esta estátua toda de ouro
(vede o que agora digo), se esta estátua toda de ouro tivera alguma desunião, ainda que a desunião fora
na cabeça, também havia de ter pés de barro. Pés de barro? Pois como assim, se da cabeça até os pés
toda a estátua era de ouro, e se a desunião, como supomos, não estava nos pés, senão na cabeça? Por
isso mesmo. Porque ouro sem união é barro; e cabeça sem união é pés. Não havemos de ir longe buscar
a prova. Quando esta mesma estátua de Nabuco se desfez em pó e foi levada dos ventos por esses ares,
diz Daniel (que é o Autor desta prodigiosa história) que se desfez o ouro, a prata, o bronze e todos os
outros metais e que todos se converteram em pó da terra: Quase in favillam aestivae areae. Aqui é o meu
reparo e grande reparo. Que os pés de barro se convertessem em pó da terra, bem está; mas o ferro
parece que se havia de converter em pó de ferro, e o bronze em pó de bronze, e a prata em pó de prata, e
o ouro em pó de ouro, ou em ouro em pó. Mas não foi assim o caso. Pois por que razão o ouro da
cabeça, e os metais dos outros membros se converteram em pó da terra como o barro dos pés? Porque
andando se desfez a estátua desuniram-se todos os membros, e desuniram-se todos os metais; e como
houve desunião, o ouro e todos os outros metais logo foram barro; a cabeça e todos os outros membros
logo foram pés...”. VIEIRA, Antônio (2001b: 165-166).
600
João Adolfo Hansen. Apud. COELHO, Alessandro Manduco (2003: 123).
255
riqueza, fama, poder; lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então de
verá o que agora não queremos ver, que tudo é pó, e pó de terra. Eu não me
admiro, senhores, que aquela Estátua em um momento se convertesse toda em
pó; era imagem de homem, isso bastava. O que me admira, e admirou sempre,
é que se convertesse, como diz o Texto, em pó de terra: In favillam aestivae
areae. A cabeça da Estátua não era de ouro? Pois por que se não converte o
ouro em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Por que se não
converte a prata em pó de prata? O ventre não era de bronze,e o demais de
ferro. Por que se não converte o bronze em pó de bronze, e o ferro em pó de
ferro? Mas o ouro, a prata, o bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em
pó de terra. Cuida o Ilustre desvanecido que é de ouro, e todo esse resplandor
em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o Rico inchado que é de prata, e
toda essa riqueza em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o Robusto o
que é de bronze, cuida o Valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante; e
toda essa fortaleza, e toda essa valentia em caindo, há de ser pó,e pó de terra:
In favillam aestivae areae... Nabuco depois de ver a estátua convertida em pó
edificou outra estátua. Louco, que é o que te disse o Profeta? Tu rex es caput:
Tu, rei, és a cabeça da Estátua. Pois se tu és a cabeça e estás vivo; olhe a
cabeça viva para a cabeça defunta: olhe a cabeça levantada para a cabeça
caída: olhe a cabeça para a caveira. Oh se Roma fizesse o que não soube fazer
Nabuco! Oh se a cabeça do mundo olhasse para a caveira do mundo! A caveira
é maior que a cabeça: para que tenha menos lugar a vaidade e maior matéria o
desengano...”601
Assim, no nível da alegoria, tanto o cotidiano dos grupos sociais como os seus desejos e
conflitos, ou são degradados ao nível do bestial ou são sublimados pelo mecanismo ideológico
de dizer uma coisa para fazer entender outra.602 Muitas vezes o discurso alegórico transmitia
através de suas imagens um juízo radical do poder e, noutras, exerce um grande poder de
persuasão que faz dele instrumento de aculturação. Para Bosi, a alegoria foi o primeiro
instrumento de uma arte para massas criada pelos intelectuais orgânicos da aculturação.603
Vale salientar que a exegese dos oradores sacros transporta para as suas
601
VIEIRA, Antônio (2001a: 62 e 64).
602
Cf. BOSI, Alfredo (2000: 80).
603
Idem., p.81.
604
Cf. VIEIRA, Antônio (2001a: 11): “A leitura dos acontecimentos históricos e suas redes de causas
exigem ser interpretados como articulações de um relato tão inspirado quanto o das Escrituras”.
605
Idem., pp.12-13. “No signo-coisa da Bíblia ou na coisa-signo da história, os objetos que se
apresentam ao intérprete têm o mesmo estatuto de figuras que precisam ser lidas como fatos históricos,
mas também como mensagem providencial. (...) Os acontecimentos são factualmente, em seu próprio
256
Assim, a leitura que apresentam do texto não passa de uma versão mais atualizada deste,
sermão enquanto “ação verbal de descoberta e atualização dos sinais divinos ocultos na
ação do mundo”.606
virtuosismo lingüístico e arranjo hiperbólico tortuoso nos quais efeitos retóricos são
de hermenêutica teológica.
Alcir Pécora termina a sua apresentação da edição dos Sermões de Vieira, dizendo
que:
processo de ocorrência a significação da verdade de que participam. Apenas por existir enquanto
movimento e ato, podem sinalizar o Ser. Os fatos históricos, desse ponto de vista, não são símbolos de
Deus: são o lugar especifico da presença que Deus lhes comunica”.
606
Idem.
607
Idem., p.14.
608
Idem., p.25.
257
A obra História de Portugal escrita por Fernando Oliveira (ou Fernão Oliveira)609, no
contexto da crise sucessória de 1580, foi aquela que pela primeira vez traçou alguns aspectos
acerca do mito das origens do reino de Portugal. Aliás, enquanto quinhentista, humanista e
historiador de uma corrente européia fascinada pelas origens, Fernando Oliveira tenta elaborar
uma historiografia mítico-política.610 A sua leitura sobre as origens do reino português tem, de
diluviana que encontramos em Gênesis 10 (o reino de Portugal tem Tubal como o seu grande
patriarca611) e, de outro, no seu conflito com o seu mestre André de Resende sobre a
antiguidade da cidade de Évora em contraposição à Roma (conflito marcado talvez pelo papel
aspecto, Vieira utiliza a leitura de Daniel 2 para condenar a visão de uma supremacia de Roma
609
Fernão Oliveira (ou numa tradução moderna: Fernando Oliveira) viveu de 1507 a 1582, escritor
humanista português se formou na cidade de Évora, no convento dos Dominicanos. Sua primeira obra
intelectual foi a Gramática da Língua Portuguesa (1536) e se debruça no período do pleito sucessório de
1580 no seu projeto historiográfico de uma história global do reino de Portugal. Este livro foi editado por
FRANCO, José Eduardo (2000).
610
Ver FRANCO, José Eduardo. Fernando Oliveira, o construtor do mito de Portugal. O mito de Portugal
no contexto dos mitos das origens das nacionalidades européias na modernidade. Cadernos do ISTA
(Instituto S. Tomás de Aquino).
611
“Pegando no legado cultural do imaginário oferecido pelos modelos de construção judeo-cristã da
história, em que a Bíblia emerge como a fonte angular, o historiador constrói uma autêntica teologia da
história do reino de Portugal, num diâmetro cultural miticamente retrotraído até à segunda idade do
mundo. Em Tubal é constituída ontologicamente a nação com um território, um povo, uma organização
política de tipo monárquico, um nome e uma missão histórica intrínseca. Reino que vai ser alvo, na sua
evolução também ela mítica, de todas as tentativas de espoliação por diversos povos estrangeiros, mas
cuja herança será salvaguardada, essencialmente, num resto de território e de povo, herdeiro biológico,
cultural e político do progenitor bíblico.” José Eduardo Franco. Fernando Oliveira, o construtor do mito
de Portugal. O mito de Portugal no contexto dos mitos das origens das nacionalidades européias na
modernidade.
612
“Évora cidade também bem antiga. De cuja antiguidade em nossos dias escreveu mestre André de
Resende, natural dela e homem havido por mui lido e amigo de antiguidades e curioso de ler pedras
romanas. Porém, porque tinha o entendimento duro como as mesmas pedras, não se sabia desapegar
delas e cuidara que em Roma se compreendiam todas as antiguidades. Mas Roma não foi a mais antiga
do mundo, nem o seu reino o melhor, como sabemos pela profecia de Daniel profeta, e contando-se o
tempo de Évora pelo de Roma não pode ser muito antiga. Mas a mim me parece que é mais antiga e
parece-me que é do tempo daquele Hércules Líbio que acima fica dito; porque Beroso diz que as suas
gentes, depois que ele morreu, povoaram, na Hespanha, certas cidades e uma delas chamaram Libora.
Esta põe Ptolemeu, na sua Geografia, junto do rio Tejo da parte sul, na comarca onde está Évora. E
258
Outro aspecto da historiografia de Fernando Oliveira relevante a ser tratado, aqui são os
paralelos entre a noção de povo eleito (Israel) com a construção do reino de Portugal; nos dois
casos, age a providência e eleição divina. Neste sentido, a eleição de Israel torna-se a
Afonso Henriques de Borgonha (também de outros monarcas portugueses) como rei messiânico,
restaurador e salvador da nação decaída.613 Evidentemente, que esta idéia, numa linha utópica,
liga-se às elaborações do mito do Quinto Império (ou Quinta Monarquia), como encontramos em
Joaquimista, ou seja, uma corrente milenarista que tem as suas origens nos escritos de Joaquim
Apocalipse).615
isto é, alimentou a idéia de uma Igreja dos contemplativos e não dos clérigos e o sonho de que
porquanto naquele sítio, nem em toda a Hespanha não há outra cidade, cujo nome se pareça com Libora
tanto como Évora, não me parece inconveniente dizer que é a mesma e que é mais antiga do que a faz
mestre André; e mais, que não mudou muito daquele nome Libora. Se me disserem que naquele sítio há
um castelo que se chama Évora Monte e que esse deve ser o antigo, direi que por ter sobrenome parece
mais novo, porque lho puseram para distinção destoutra que já estava povoada primeiro. E mais, em
Évora cidade sabemos que se acolheu o capitão Sertório e não em Évora Monte, nem de Alcobaça. E
disto de Sertório se toma um bom argumento para provar a antiguidade desta cidade, porque Sertório foi
antes dos Césares, e achou já Évora povoada e forte; e, por isso, se acolheu nela, porquanto ele não
tinha possibilidade nem vagar para a povoar e fortificar, como lhe cumpria para se defender do poder
dos Romanos”. Fernando Oliveira. Apud. FRANCO, José Eduardo (2000).
613
FRANCO, José Eduardo. Fernando Oliveira, o construtor do mito de Portugal. O mito de Portugal no
contexto dos mitos das origens das nacionalidades européias na modernidade.
614
Antônio Vieira. História do Futuro e Clavis Prophetarum.(Talvez uma das mais célebres obras do
Padre Vieira, que trata de maneira mais alongada os vários temas dos seus sermões. O seu sub-título, "De
Regno Christi in Terris Consumato", sugere a visão missionária e evangelizadora do sermonista) e Frei
Sebastião de Paiva. Tratado da Quinta Monarquia e felicidades de Portugal profetizadas.
615
“Independentemente do messianismo que cimenta e unifica a construção especulativa de permanente
solicitação, em pluridimensionamento e amplificação próprios, Vieira participa da concretude de uma
multividência do barroco, época que acentua até ao excesso confrontos e tensões. A predisposição solar
de consumação de um poder universal, optimista, de matriz cristã, em que um rei português seria
investido, não pode deixar de ser referenciada, todavia, pelo contraste das idéias tematizadas no seu
tempo, nomeadamente de uma idade de ouro versus idade de ferro, ou sublinhada, de um modo mais
pungente , quando denuncia um ‘tempo de fezes’.” Ver: José Esteves Pereira. O Sol e a Lua: desígnios
políticos de Vieira. Brotéria – Cristianismo e Cultura, vol.160, n.5/6, 2005, p.491.
259
os menos favorecidos reinariam no mundo. Estes elementos foram muito difundidos pelos
milenarista e escatológico, de modo especial, ao tratar das relações entre o homem, o tempo e a
história. O Livro Anteprimeiro da História do Futuro, escrito em meio à volta de Vieira a Portugal
depois de nove anos vividos no Maranhão, aborda a concepção política do “Quinto Império” a se
instaurar na terra. No entanto, numa primeira leitura dos Sermões de Vieira, descobriremos que
a sua pregação não é propriamente milenarista, no que se refere à crença de um futuro reinado
dans l’oeuvre d’Antonio Vieira) diz que para compreendermos o profetismo e o messianismo de
Vieira é preciso estudá-lo em bloco “não apenas na História do Futuro, na Clavis Prophetarum,
na Defesa do Quinto Império, nas Esperanças de Portugal, na Carta Apologética, mas também
616
Cf. DELUMEAU, Jean (1999) e COELHO, Alessandro Manduco (2003: 125, n.28).
617
“No cristianismo deve chamar-se de milenarismo a crença num reino terrestre vindouro de Cristo e de
seus eleitos – reino este que deve durar mil anos, entendidos seja literalmente, seja simbolicamente. O
advento do
milênio foi concebido como devendo situar-se entre uma primeira ressurreição – a dos eleitos já mortos –
e uma segunda – a de todos os outros homens na hora de seu julgamento. O milênio deve, portanto,
intercalar-se entre o tempo da história e a descida da Jerusalém celeste. Dois períodos de provações irão
enquadrá-lo. O primeiro verá o reino do Anticristo e as tribulações dos fiéis de Jesus que, com este,
triunfarão das forças do mal e estabelecerão o reino de paz e de felicidade. O segundo, mais breve, verá
uma nova libertação das potências demoníacas, que serão vencidas num último combate.” Jean Delumeau
(1997: 18-19). Sobre a interpretação dos “mil anos” ver: AAVV. Apocalipse de João e a mística do
Milênio. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n.34, 1999 e Richard Heinberg. Memórias e
visões do paraíso. 1991, pp.150-151.
618
Cf. VASCONCELLOS, Pedro Lima. A vitória da vida: Milênio e reinado em Apocalipse 20,1-10.
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana, n0. 34, 1999, pp.79-80.
260
nos seus numerosos volumes de Sermões e Cartas, e, além disto, nos escritos dos seus
grande mérito está no modo como explora as imagens e lhes dá novidade pelo sortilégio do seu
visionarismo, como afirma Raymond Cantel.620 Para João Mendes, Vieira tem a tendência de
relações entre os termos associados na figura de estilo”. E daí que “a alegoria se presta
Vieira utiliza dois termos com forte teor apocalíptico: “maravilha” e “mudança”. Assim,
“com esta tendência para o maravilhoso, não admira que haja certas passagens da Bíblia que
Nabucodonosor. O que é natural já que este era um dos textos em que mais se fundamentava a
“A profecia levou-o a acção e esta à profecia, tudo concorrendo para uma vida
intensíssima de ‘fuga’, de arrojo e de temeridade. E essa fuga realiza-se pela
alegoria profética que é domínio do tempo. O cosmos, a grande cúpula, é a
Bíblia que fecha, e ao mesmo tempo abre para o Infinito. Essa a grande
hipérbole vieirense que não é cultista ao modo de Gôngora; é religiosa,
619
Cf. LEITE, Serafim. Profetismo e Messianismo na Obra de António Vieira. Brotéria. Revista
Contemporânea de Cultura. Vol 72, n.1, Lisboa, 1961, pp.56-59.
620
Raymond Cantel. Apud. João Mendes. Vieira, Homem fantástico. Brotéria. Cultura e Informação.
Vol. 92, n.1, 1971, pp.16-43. (p.19).
621
Cf. MENDES, João (1971:21).
622
Idem., p.27.
623
Ver também MENDES, João. Vieira, homem vertiginoso. Brotéria. Cultura e Informação. Vol. 91,
n.10, 1970, pp.267-279 e Vieira e a estética do espelho. Brotéria. Cultura e Informação. Vol. 91, n.11,
1970, pp.431-444.
261
Nos sermões de Vieira sobre Juízo Final e fim de mundo, ressaltamos o Sermão da
Primeira Dominga do Advento625, pregado em 1650 na capela real, tendo como referência Lucas
21 (E, então, verão vir o Filho do Homem numa nuvem, com poder e grande glória). Este sermão
condena reis e ministros no Juízo Final por crimes de omissão,626 e conseqüentemente, serão
consumidos pela violência do fogo tudo que os homens edificaram na terra e sobrarão umas
Inquisição.627
interpretador das profecias do Quinto Império. De um lado, o jesuíta realista que mexia nas
624
Cf. MENDES, João (1971:42).
625
Cf. VIEIRA, Antônio (2001a: 365-385). O sermão da Primeira Dominga do Advento.
626
Idem, p.366. Pécora apresenta a seguinte nota introdutória: “O sermão admoesta as autoridades
temporais e espirituais portuguesas, imaginadas como ‘réus’ no dia do Juízo. Supondo o momento
dramático da separação entre os bons e os maus, o sermão afirma que: 1. A ressurreição significará uma
reparação, com arbítrio, da fortuna do nascimento; 2. Não haverá privilégio de ‘estado’, seja o da
nobreza, da realeza ou do eclesiástico: a investidura não determinará a salvação ou a condenação, mas
apenas as obras da vida; 3. Reis e cortes serão objeto de juízo especialmente rigoroso, por incorrerem
em dois pecados principais: o ‘pecado da omissão’, quando se deixa de fazer o que o cargo obriga e
onde a ocasião exige ação decidida, e o ‘pecado de conseqüência’, quando a corrupção do ‘voto’ ou de
um ato inicial traz sucessivos desmazelos”.
627
DELUMEAU, Jean (1997: 187).
628
Ver BESSELAAR, José van den (2002: 33).
262
Uma leitura do processo inquisitorial do padre Antônio Vieira terá necessariamente que
tomar como leitura os trabalhos de Adma Fadul Muhana630 e Luiz Felipe Baêta Neves631 entre
outros. A condenação de Vieira como herege pelos inquisidores, reside na leitura que fez dos
a compreensão e análise dos textos proféticos. Assim, Vieira é acusado pelos inquisidores de
leitura de Vieira e, de outro, a defesa inconteste do padre Vieira que aponta as dificuldades de se
Um dos entraves de Vieira com o Santo Ofício está na utilização das trovas de Bandarra
Isaac Abravanel, anuncia para o ano 1503 a chegada do Messias e daí passam a circular vários
uma versão popular das profecias atribuídas a Santo Isidoro que anunciava a destruição do
629
Cf. BOSI, Alfredo (2000: 15).
630
Cf. MUHANA, Adma Fadul. Os autos do Processo de Vieira na Inquisição. São Paulo, 1995.
631
Luiz Felipe Baêta Neves. Profetas, intérpretes e autoridades no processo inquisitorial do Padre
Antônio Vieira.
632
Vejamos na Introdução de Hernani Cidade ao texto de defesa de Vieira diante do Santo Ofício: “Às
profecias de Bandarra, juntavam-se, entre outras nacionais, a, do Beato Amadeu e de S. Fr. Gil de
Santarém; mas não faltavam profetas estrangeiros a fortalecer-lhe a convicção sobre a futura realidade do
Quinto Império: Santo Isidoro de Sevilha, Santa Brígida, Santo Ângelo Carmelita, Mártir, Fr, Bartolomeu
de Salucio e ainda astrólogos e visionários ou fantasistas como Tycho-Brahe, Kepler, JustoLipsio,
Jerônimo Vechietto, de todos os quais recolhe dados que, em sua pureza e acrescidos do sentido que lhes
empresta, adapta como esteios à sua atrevida arquitectura ideológica”. Antônio Vieira. Defesa perante o
Tribunal do Santo Ofício. Introdução e notas do Prof. Hernani Cidade. Salvador: Livraria Progresso
Editora, Tomo I, 1957, p.XXVI.
633
Para Hernani Cidade a conjuntura ao redor da condenação do Santo Ofício a Antônio Vieira e as trovas
de Bandarra está marcada pelas influências da cabala: “Estava em voga a cabala, perante cuja
interpretação alegórica da Bíblia, a vida de Cristo era tomada como uma alegoria da história futura da sua
Igreja”. Idem., p.XVIII.
263
Império de Carlos V por obra de um infante de Portugal. Esta publicação é intitulada como
No entanto, um dos textos que teve ampla repercussão, pelo seu caráter profético-
político e pelo modo como continuou a ser difundido apesar da proibição e condenação do Santo
processo inquisitorial do Padre Antonio Vieira, condenava veemente as trovas do Bandarra como
tocante às Sagradas Escrituras. Esta instrução determinava que Vieira fosse interrogado sobre a
parte que incorria em suspeita de heresia e se o autor persistisse em suas afirmações seria
que o assunto não fosse mais tratado nem por escrito, nem oralmente.
circulação de manuscritos das Trovas de Bandarra, na Bahia desde 1591. “Levados por cristãos
novos fugidos de Portugal, foram localizados pela primeira visitação do Santo Ofício, traduzidos
sapateiro de Trancoso e, por certo, com as suas mais variadas versões que estavam em
circulação.
da região das Beiras) no início do século XVI. Um grande leitor das Escrituras Sagradas, que
mas também no ciclo arturiano e nas profecias de Jean de Roquetaillade”. Era um grande
634
Cf. Jorge R. Seibold. La Sagrada Escritura em la evangelización del Brasíl. In: KONINGS, Johan
(2001: 132).
635
Cf. HERMANN, Jacq ueline (1998: 227).
636
Existem alguns estereótipos criados em torno dos sapateiros desde o II século, tais como, “sapateiro
filosofo” e “remendões de heresias”, conforme Peter Burke. Três são mencionados por Burke: Gonçalo
Annes Bandarra, Luís Dias, de Setúbal, e Simão Gomes, o “santo sapateiro”. Cf. BURKE, Peter (1988:
63s) e HERMANN, Jacqueline (1998: 47-48).
264
intérprete da Bíblia para os cristãos novos637 e era conhecido como sendo uma espécie de “rabi”
impediu sua impressão, mas não deteve sua divulgação oral”.638 Suas trovas versam sobre a
volta do Encoberto – rei português que guiaria todos os povos em direção a uma única fé. Estas
Alcácer-Quibir.
“Bandarra lera a Bíblia por ‘oito ou nove anos’, num exemplar que não era seu,
mas tinha ‘grande memória’, característica essencial de uma cultura marcada
pela oralidade, e com o que conseguiu guardar vivendo em meio a uma
comunidade cristã-nova; escreveu suas famosas trovas. No caso do prestígio
que conheceu o texto atribuído ao nosso sapateiro, Zumthor aponta outro
aspecto que em Bandarra parece se confirmar. Observa o autor que, quando
um poeta ou seu intérprete canta ou recita, sua voz ‘por si só lhe confere
autoridade’. Mas se o poeta ou intérprete, ao contrário, lê num livro o que os
ouvintes escutam, ‘a autoridade provém do livro’. No caso de Bandarra e de
suas Trovas, o autor e seu texto tornaram-se fonte de autoridade para o
conhecimento e interpretação do maior livro sagrado, talvez tanto cristão, a
Bíblia, como judaico, o Talmud. Ao aliar sua competência ‘em escrever trovas’ a
uma bastante desenvolvida capacidade de ‘memorização’, típica de uma cultura
não definida pelo texto escrito, a memória de Bandarra reuniria elementos das
religiosidades cristã e judaica e aspectos do maravilhoso medieval num texto
exemplar e paradigmático da ‘cultura artesã apocalíptica’ de seu tempo”.639
Bandarra. Foi escrito com a finalidade de consolar a rainha de Portugal depois da morte de João
IV. Ali, Vieira trata do tema da ressurreição do rei e marca uma nova fase do sebastianismo. O
título da obra, que aparece em caracteres floridos é: “Esperanças de Portugal. Quinto Império do
Mundo. Primeira e Segunda vida Del Rey Dom Joam o Quarto, escritas por Gonçalleanes
Bandarra”.640 Este texto escrito em forma de carta teve a sua primeira versão concluída por
Vieira em 29 de Abril de 1659, quando estava em missão pela Amazônia. Ela foi entregue a
637
“Las ‘trovas’ de Bandarra, profetizaron acerca de un rey que dominaría el mundo entero y bajo su
imperio el único Dios verdadero sería adorado. Los judíos vieron en este rey a su Mesías, y los cristianos
la realización del reino de Dios. Este mesianismo fue tan poderosamente propagado que ni siiquiera la
Inquisición logró reprimirlo.” Cf. HOORNAERT, Eduardo (1981:167).
638
Ver: DELUMEAU, Jean (1997: 182-188) e HERMANN, Jacqueline (1998: 23-72).
639
Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 50-51).
640
Ver o texto organizado por José van den Besselaar (2002: 41-108).
265
Paulo Martins Garro, que a copiou (ou mandou copiá-la), colocando capa com caracteres floridos
e enviando-a para Lisboa. Não se sabe se este irmão leigo fez outras cópias da carta e se, em
caso afirmativo, as enviou para pessoas interessadas no assunto.641 Esta carta que tem,
sobretudo, um teor de tratado doutrinário marca os inícios da polêmica de Vieira com o Santo
“(...) foi [o papel] escrito em forma de uma missiva e secreta, e pelos meios do
maior segredo que podia ser, remetendo-se por mãos do confessor da Rainha
nossa Senhora, para que não saísse delas; e se saiu e se divulgou, não foi
culpa sua [sc de Vieira]. Nem basta, para sua culpa, haver escrito e comunicado
o dito papel na sobredita forma, ainda que fora em ordem à impressa, porque
assi o fazem todos os que escrevem vidas de santos e varões ilustres ou
crônicas de religiões...”642
Numa terceira carta escrita em castelhano ao padre Squarçafigo, Vieira diz o seguinte:
“No ano de 1654 veio o P. Vieira de suas missões do Maranhão a Portugal [...] E
como o Rei não se falasse na Corte, chamado por uma carta sua, houve de ir a
Salvaterra, aonde lhe falou desavisado dos médicos. Asistia-lhe a Rainha, a
qual consolou o Padre, dizendo-lhe que Sua Majestade não havia de morrer
daquela enfermidade, porque lhe restavam ainda muitas coisas que fazer neste
mundo, e que em cosa morresse, havia de ressuscitar, porque não as podia
fazer senão vivo. Cobrou então, saúde o Rei. Porém dali a três anos veio a
morrer, estando o Padre Vieira outra vez no Maranhão, de onde lhe escreveu o
confessor da Rainha se quisesse enviar desde ali algum papel de consolação, e
assim o fez. Continuando o mesmo que havia dito da ressurreição do Rei. Este
papel era uma carta particular escrita ao confessor, O Padre Andrés Fernández,
da Companhia, bispo eleito do Japão, com advertência de que não passasse de
suas mãos, exceto aos olhos da Rainha, a qual explicaria o que necessitasse
de maior declaração”.643
641
Idem., p.33-34.
642
Cartas de Antônio Vieira. Apud. BESSELAAR, José van den (2002: 35)
643
“En el año de 1654 vino el P. Vieira de sus misiones de Marañón a Portugal [...]; y como el Rey no se
hallase en la Corte, llamado por una carta suya, huvo de ir a Salvatierra, adonde le halló desaviciado de
los médicos. Asistiale la Reyna, a la cual consoló el Padre, diciéndole que Su Majestad no había de morir
de aquella enfermidad, porque le restaban aun muchas cosas que hazer en este mundo, y que en caso
moriese, había de resucitar; porque no las podía obrar sino vivo. Cobró entonces, salud el Rey. Pero de
alli a tres años vino a morir, estando el Padre Vieira otra vez en el Marañón, adonde le escribió el
confesor de la Reyna, le quisiese enviar desde allá algun papel de consolación, y asi lo hizo, continuando
lo mismo que había dicho de la resurrección del Rey. Este papel era una carta particular escrita al
confesor, el Padre Andrés Fernández, de la Compañía, obispo electo del Japón, con advertencia de que
no pasase de sus manos, más que a los ojos de la Reyna, a la cual explicaría lo que necesitase de mayor
declaración.” Idem., p.36.
266
ortodoxos, o fato é que o seu texto correu de mão em mão. Diante das incertezas e a não
existência de uma correspondência entre Vieira e Paulo Martins Garro, é que Besselaar inclina-
se a pensar que o próprio Vieira tenha dado autorização de divulgação do seu texto, pois “não
fugia à publicidade, pois gostava de fazer propaganda de suas idéias. Previa o escândalo que
Este texto (que tem como núcleo as profecias de Bandarra) está organizado em sete
Neste silogismo, a primeira proposição é base para todo o resto e seguindo o critério
descrito em Dt 18,21-22 não se pode negar que Bandarra seja um profeta, pois, “profetizou e
escreveu tantos anos antes tantas cousas, tão exactas, tão meúdas e tão particulares, que vimos
todas compridas com nossos olhos, das quais apontarei aqui brevemente as que bastem,
sucedidas todas na mesma forma e com a mesma ordem como foram escritas”.647
644
Idem., p.37. Ver o que diz João Lúcio de Azevedo: “Mandara Antonio Vieira o escripto, em forma de
carta ao Bispo do Japão, datada de Camutá, de abril de 1659, copia do original, como de costume muito
emendado, pelo capital Paulo Martins Garro, um dos seus affeiçoados e irmão secular da Companhia.
Este, subrepticiamente ou com auctorização de Vieira – ambas as presumpções são aceitáveis – tirou
mais de uma cópia; e, já porque elle mandasse alguma para o reino; já porque o Bispo peccasse de
inconfidente, passando a outras mãos o papel destinado a ficar entre elle e a Rainha; já, o que também é
plausível, supposto o amor de Vieira pela publicidade, com seu consentimento facultasse o confessor a
outros a obra de que, pelo assumpto e pelo auctor, a noticia despertaria sôfrega curiosidade; o caso é
que dentro em pouco, por toda a parte em Lisboa, o tratado das Esperanças de Portugal se commentava
e discutia. Os sebastianistas apossavam-se d’elle para o contestar; os incrédulos zombavam do novo
desvario, que se enxertava na seita; os inimigos do auctor farejavam a heresia, e inculcavam na fé
prestada ao Bandarra suspeições de judaísmo”. In: AZEVEDO, João Lúcio de (1921: 6-7).
645
Exórdio: Introdução e o célebre silogismo de Vieira; II – Conseqüência do silogismo; III – Prova-se a
maior: “Bandarra é verdadeiro profeta”; IV – Prova-se a menor: Façanhas que o rei prometido há de
fazer; V – Resposta a algumas objeções; VI - O tempo em que se iniciará a transfiguração do mundo e
VII – Epílogo e recomendações. Idem., pp.44-45.
646
Idem., p.49.
647
Idem., p.51.
267
Daí, Vieira passa a explicar verso por verso as trovas de Bandarra. De acordo com
Aníbal Pinto de Castro, a utilização e defesa que Vieira faz das profecias de Bandarra representa
significava o advento de D. João IV e fazendo delas, por conseguinte, a base essencial da sua
fundamentado no livro de Daniel, é História do Futuro,649 tendo o início da sua escrita no ano de
1649.
Porém, antes de falarmos de História do Futuro é preciso ter presente um fator muito
importante, levantado por César Braga-Pinto sobre os textos (narrativas de viagem, poesia
mística, autos religiosos, tratados) dos séculos XVI e XVII, que são construídos como discursos
648
Aníbal Pinto de Castro. Apud. HANSEN, João Adolfo (2003: 98).
649
Para Serafim Leite a História do Futuro é uma obra organizada “com aplicação de textos sacros e
interpretações e exegese política... tem além da beleza da linguagem, o assunto à roda de Portugal, sem
esquecer o Brasil, muitas vêzes invocado, e com trechos de antologia”. LEITE, Serafim (1944: 258).
650
Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 14).
268
Tanto na obra de José de Anchieta quanto na de Antônio Vieira nos deparamos com as
representações de uma imagem do Novo Mundo, o uso dos Exercícios Espirituais de Inácio de
Na obra de Antônio Vieira nos deparamos com uma tentativa de conciliação entre a
História do Futuro tenta realizar o que muitos buscam: saber acerca do futuro. Por isso, ele faz
coincidir o futuro da humanidade com o futuro de Portugal. Se foi descoberto um Novo Mundo,
faz-se necessário descobrir uma “nova História” e comunicar os novos significados para toda a
humanidade.
inacabada ou inconclusa.652 Teve o início de sua escrita no ano de 1649 (momento em que o
651
Na obra do Padre José de Anchieta, de modo especial, nas suas peças (encenações) existe uma busca
das representações da imagem para o Novo Mundo. E nos seus discursos perpassa uma tentativa de
assimilação das culturas nativas baseada na mística da relação entre o eu e o outro (tão fortes na mística
inaciana e no misticismo que circulava no século XVI). Nesta perspectiva, encontramos em José de
Anchieta uma transposição dos métodos de conversão individual dos Exercícios Espirituais de Inácio de
Loyola para um método e estratégia para conversão coletiva de uma comunidade heterogênea. “Enquanto
os Exercícios de Loyola pediam que cada indivíduo visualizasse a luta entre o Bem e o Mal, as partes
dramáticas da peça de Anchieta procuram representar a própria imagem dessa luta para uma grande
audiência reunida em torno da cena, de modo que a conversão coletiva se realize”. A história e a
memória aparecem conectadas nas obras dos missionários jesuítas enquanto narrativas do passado e
definição das ações futuras. Assim, “era importante para os nativos aprender, antes de mais nada, como
não esquecer: seus próprios nomes, seu hábitos passados, seus inimigos, sua própria história e a história
escatológica que não era a deles próprios, mas imposta a eles por meio de um jogo de promessas e
ameaças. Em outras palavras, somente se os membros da recém-constituída comunidade se lembrassem
de seu passado doloroso (verdadeiro ou construído), poderiam manter suas próprias promessas e, mais
importante, desejar aquilo que havia sido prometido a eles. Em vez do passado factual, é antes a
projeção temporal coletiva, no futuro, dessas promessas que constitui uma cultura comum, ainda que
essas narrativas sobre o futuro emerjam de uma memória heterogênea de fatos passados”. Cf. BRAGA-
PINTO, César (2003: 71, 93 e 114). Das muitas citações bíblicas nos sermões de José de Anchieta, vale
salientar, que em grande medida, elas vem acompanhadas com paráfrases que se caracterizam como
verdadeiros comentários dos textos, além disso, utiliza com freqüência citações dos padres da Igreja,
retirados de suas leituras do Breviário e de alguns livros. Cf. SEIBOLD, Jorge R. La Sagrada Escritura
em la evangelización del Brasíl. In: KONINGS, Johan (2001: 115-118).
652
“A obra profética de Vieira vai confirmando e ampliando a destinação de seus sucessos: nas
esperanças o autor pretende falar à rainha; na História do Futuro a Portugal e, na Clavis, ao mundo.
Projetada para ser exposta em sete livros, a História do Futuro teve, além da publicação do livro
Anteprimeiro, apenas a edição dos livros Primeiro e Segundo, e, fundamentalmente, deu uma feição mais
elaborada e cuidada para as proposições expostas nas Esperanças. Nela Vieira levou às últimas
269
império português já estava em declínio pelo menos por meio século). É uma obra que tem um
plano grandioso e foi pensada como um tratado em sete livros com 59 questões. Não conseguiu
dar conta de finalizar esta grande obra. Detido em 1663 pela Inquisição, quando deveria
preparar uma apologia para a sua defesa, acaba se dedicando à redação desta obra. Parece
que neste momento, Vieira passa a considerar o que tinha redigido até o momento como uma
grande introdução ao tema da História do Futuro. Esta introdução recebeu o nome de Livro
Anteprimeiro da História do Futuro.653 O que vai escrever na continuação deste livro, será
apenas os dois únicos capítulos do seu tratado e somente três do total de 59 questões.
“A História do Futuro tinha por fim provar que há de haver no mundo um novo
Império bíblico universal, o Quinto, sob a hegemonia de Portugal e que a hora
de sua realização chegara ou estava prestes a chegar. As épocas mais
freqüentes de miséria e catástrofes sempre inspiraram os autores de
apocalipse, e as velhas teorias da retribuição temporal da virtude, segundo a
qual as nações mais fiéis deveriam ser as mais benditas por Deus.”654
“O Livro Anteprimeiro não se apresenta como obra homogênea, pois o teor dos
vários conjuntos de capítulos, quer pelo tom, quer pelo modo discursivo, quer
ainda pelo próprio conteúdo, varia como variaram certamente os destinatários.
Até o capítulo VI, Vieira dirige-se à corte portuguesa e a Afonso VI; nos
capítulos VII e VIII, à Espanha e a Filipe IV; nos restantes quatro capítulos
passa a ser mais expositivo que oratório e parece eleger como interlocutores,
agora implícitos, teólogos e exegetas. Daí a distribuição irregular e a função
variável do tema dos descobrimentos portugueses: relacionados com a
exegese dos profetas bíblicos, nos últimos capítulos; usados sobretudo como
tópico retórico e como concepto barroco, nos capítulos iniciais.”656
conseqüências o seu projeto messiânico para o comandante do império de Cristo na terra, d. João IV
ressuscitado, para dar bom termo à profecia de Bandarra.” Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 244).
653
Ver: MENDES, Margarida Vieira (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_08.html):
“Esse “retalho” introdutório contém uma parte de proposição, dedicatórias e de elogio do futuro livro
(capítulos I a VIII), e uma outra, inacabada, de validação e autorização do método que nesse livro o
pregador vai adotar: a exposição fundada não nos Padres antigos mas sim nos modernos exegetas, entre
os quais Vieira se coloca (capítulos IX a XII).
654
RODRIGUES, José Honório (1958: 328-329).
655
Idem., p.162.
656
MENDES, Margarida Vieira (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_08.html).
270
Nos três primeiros capítulos explica o porque do seu título: História do Futuro,
Esperanças de Portugal e Quinto Império do Mundo. Primeira parte de título: História do futuro
do mundo; segunda parte: os portugueses e terceira parte a divisão de toda a história. Assim
começa o livro:
A primeira menção a Daniel neste livro está no capítulo 2 ao refletir sobre a profecia da
consulta, na qual Saul vai consultar Samuel, pois não tem a resposta de Deus nem por urim,
nem por profetas e nem por sonhos (1Sm 28). E compara o texto da consulta de Saul à do rei
Baltazar a Daniel (Dn 5)658, concluindo que Saul achou a Samuel morto e Baltazar a Daniel vivo
e daí “se me não contas com Daniel entre os vivos, eu me conto com Samuel entre os mortos;
se nas letras que interpreto achara desgraças (bem poderá ser que as tenhas), eu te dissera a
Dos capítulos 4 a 8 vai explicar as utilidades do livro, entre as quais destacamos, a que
busca fortalecer o ânimo dos portugueses diante das horas difíceis que estavam se
que há-de ser afligido e purificado o Mundo, antes que chegue a esperada felicidade.”660 É
sugestivo que Vieira busque como lição na história, a luta dos Macabeus. Evidentemente, a sua
tese sobre o Quinto Império, está num contexto de guerras661, calamidades e conquistas, e por
isto, dirá que a História do Futuro, livro santo surge como luz que se oferece ao mundo, “no qual
fortaleza, tudo por meio da lição e fé das divinas promessas e consolação dos felicíssimos fins a
que todos estes trabalhos e tribulações pela providência do Altíssimo são ordenadas.”662
659
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 63).
660
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 81)..
661
O contexto da guerra contra os holandeses no Brasil, tempo dos primeiros sermões de Vieira, vamos
nos deparar com o Sermão da Quarta Dominga da Quaresma (1633) que se apresenta carregado de
elementos bélicos; o Sermão de Santo Antônio (1638) e o famoso Sermão pelas armas de Portugal. Cf.
PALACÍN, Luís Gómez (1998: 107-108).
662
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 83).
272
consumado na terra. É nesta perspectiva que dos capítulos 9 a 12 Vieira aborda o tema da
profecia. Ela é apresentada nos capítulos 9-10 como peça-chave para tratar das verdades
contidas em seu livro. Também encontramos nestes dois capítulos aspectos importantes do seu
Vamos tomar os capítulos 9 e 10 como amostra da exegese bíblica feita pelo Padre
Antônio Vieira. No capitulo 9, ele apresenta a sua interpretação de 2Pd 1,19 e 21. Podemos
663
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 81).
273
A – Texto bíblico:
2Pd 1,19 – “Temos, também, por mais firme a palavra dos profetas, à qual
fazeis bem em recorrer como a uma luz que brilha em lugar escuro, até que raie
o dia e surja a estrela d’alva em nossos corações”.664
A – Texto bíblico:
2 Pd 1,21: “pois que a profecia jamais veio por vontade humana, mas os
homens, impelidos pelo Espírito Santo, falaram da parte de Deus”.
B – Interpretação:
664
Texto retirado da Bíblia de Jerusalém.
665
“as profecias e palavras certíssimas dos profetas, as quais devemos observar e atender, usando delas
como de candeia luzente em lugar escuro e caliginoso, até que amanheça o dia. Lugar escuro e
caliginoso é o futuro; a candeia que alumeia são as profecias; o sol que há-de amanhecer é o
cumprimento delas. E enquanto este sol, que será muito formoso e alegre, não aparece, não coroa os
nossos montes, o que só agora podemos e devemos fazer é levar a candeia das profecias diante, e com a
sua luz (ainda que luz pequena) entraremos no lugar caliginoso e escuríssimo dos futuros, e veremos o
que neles se passa”. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 144).
666
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 144).
667
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 144-5).
274
livro de Jonas) e menciona todos os Livros das Escrituras como referência para a descrição dos
tempos futuros.669
D – Conclusão:
“Assim que podemos dizer em uma palavra que a primeira e principal fonte e os
primeiros e principais fundamentos de toda esta nossa História é a Escritura
Sagrada; com que vem a ser um só livro e um só Autor o que nela
principalmente seguiremos: o livro, a Escritura; o Autor, Deus. Sobre estes
fundamentos da primeira e suma Verdade entrará o discurso como arquitecto de
toda esta grande fábrica, dispondo, ordenando, ajustando, combinando,
inferindo e acrescentando tudo aquilo que por conseqüência e razão natural se
segue e infere dos mesmos princípios, no qual modo de fábrica se não perde a
primeira verdade dos fundamentos, mas vai crescendo, dilatando-se e
668
No Capítulo V, Vieira vai falar o seguinte acerca dos profetas: “É coisa muito digna de notar, que
nunca ao povo de Israel concorreram tantos Profetas juntos como antes do cativeiro de Babilónia e no
mesmo cativeiro. Antes do cativeiro profetizaram por sua ordem Oseas, Isaías, Joel e Amós; no cativeiro
profetizou Miqueas, Habacuc, Jeremias, Ezequiel, Daniel e Sofonias. De maneira que, sendo só doze os
Profetas canónicos, os dez deles tiveram por assunto e matéria muito principal de todas suas profecias o
cativeiro de Babilônia. Os quatro primeiros, que escreveram mais de seis anos antes daquele tempo,
profetizaram que o povo por seus pecados havia de ir cativo, mas que por misericórdia de Deus seria
depois restituído à sua pátria. Os outros seis, que profetizaram no tempo do cativeiro, insistiram
constantemente em que ele havia de ter fim, determinando sinaladamente o ano da liberdade. A razão
deste concurso tão extraordinário de Profetas e profecias (nunca antes, nem depois visto) foi porque
nunca o povo e reino de Judá padeceu tão grande trabalho e calamidade como o cativeiro ou
transmigração de Babilônia, sendo cativos, presos e. despojados de seus bens, arrancados da pátria e
levados a terras de bárbaros, e lá oprimidos e tratados como escravos em duríssima servidão. Ordenou
pois a providência e misericórdia divina, que naquele tempo e estado tão calamitoso, houvesse muitos
Profetas e muitas profecias, uns que as tivessem escrito no tempo passado, e outros que as pregassem no
presente, para que o povo não desmaiasse com o peso da aflição, e animado com a esperança da
liberdade, pudesse com o trabalho do cativeiro. O cativeiro e o tirano os oprimiam; os Profetas e as
profecias os alentavam. Cantavam-se as profecias ao som das cadeias, e com a brandura deste som os
ferros se tornavam menos duros e os corações mais fortes.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 83-4).
669
“Assim como os que escrevem anais ou histórias passadas e antiquíssimas, recorrem aos autores mais
antigos, e estes são os que têm maior crédito e autoridade nas cousas daqueles tempos, assim nós que
escrevemos do futuro, devemos recorrer e buscar a verdade e notícias da nossa História nos autores dos
tempos futuros, que são somente os Profetas, pois só eles os conheceram. E porque entre os outros Livros
Sagrados, também canônicos, há alguns que totalmente são proféticos, como os Salmos, os Cantares e o
Apocalipse, e todos os outros, assim do Velho como do Novo Testamento, contêm ou muitas ou algumas
cousas proféticas, ainda que sejam meramente históricos, como o Gênesis, Josué, Josias, Reis,
Paralipamenon, Esdras e Macabeus; ou meramente doutrinais, como Provérbios, Sabedoria, Eclesiastes,
Eclesiástico e as Epístolas dos Apóstolos; ou juntamente doutrinais e históricos, como o Levítico,
Números, Deuteronómio, Job e os Evangelhos, de todos estes nos ajudaremos também, quando servirem
ou puderem servir (que não será pouco) ao conhecimento e inteligência dos tempos futuros.” HISTÓRIA
DO FUTURO (1992: 145).
275
Para Vieira faz-se necessário refletir acerca do tempo de cumprimento das profecias e de
novo retoma o símbolo da lâmpada ou candeia. Este simbolismo estará atrelado ao seu discurso
sobre palavra e tempo671 e sobre os efeitos da luz da profecia: as duas lâmpadas para iluminar a
profecia.672 Aqui, vale dizer que Vieira busca referências não só na profecia bíblica e canônica,
mas também no que considera profecia nos Santos Padres e na profecia apócrifa (não
canônica).673
670
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 145-6).
671
“De sorte que, ajuntando o lume natural do discurso ao lume sobrenatural da profecia, com o
cuidado, estudo e indústria própria, lendo, disputando e meditando, vinham a estender e adiantar muito
as mesmas profecias, conhecendo delas e por elas muitas cousas que nelas imediatamente não estavam
reveladas. Bem assim como o sol ou candeia (que era a nossa comparação) não só alumeia com a luz
que está ao lume ou fogo que nela se sustenta, senão também, e muito mais, com a luz que dela se vai
produzindo, multiplicando e difundindo por todas as partes vizinhas e ainda distantes, conforme a sua
menor ou maior esfera, assim o lume natural do discurso, se vai propagando, difundindo e estendendo a
muitas cousas, tempos, sucessos e circunstâncias que nelas estavam ocultas e pela conferência e
conseqüência do mesmo discurso se vão entendendo e descobrindo de novo. Isso quer dizer: In quod vel
quale tempus. A palavra, em que tempo, significa a determinação do tempo certo em que as cousas hão-
de suceder; e a palavra no qual tempo significa as qualidades e circunstancias do mesmo tempo, isto é, o
estado dos reinos, das repúblicas, das nações, e os acontecimentos particulares da paz, da guerra, do
cativeiro, da liberdade e outros semelhantes que no mesmo tempo, ou mais vizinho ou mais distante, se
hão-de ver e suceder no Mundo.” HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 147).
672
“E pois os Profetas profetizavam para nós e as cousas nossas, razão é que nós como nossas as
entendamos. Mas porque as profecias por sua natural escuridade não sao fáceis de entender, e assim
como se há mister necessariamente a sua luz para conhecer os futuros, é também necessária outra
Segunda e nova luz para as entender a elas. Esta segunda luz serão aqueles a quem Cristo chamou luz do
Mundo: Vox estis lux Mundi, e, por outras palavras, candeia acesa: Neque enim accendunt lucernam et
ponunt eum sub modio, que são em primeiro lugar os Apóstolos sagrados, e em segundo os Padres
Doutores da Igreja e expositores das Escrituras divinas, os quais seguiremos e alegaremos em tudo o que
dissermos com estas duas luzes ou candeias: uma dos Doutores sagrados, com que alumiaremos as
profecias, e outra as mesmas profecias, com que alumiaremos e descobriremos os futuros; poderemos
entrar neste labirinto com todo o aparato e prevenção de instrumentos com que se entrava seguramente
no de Creta. Era aquele labirinto por uma parte muito escuro e por outra mui intricado; e para vencer e
facilitar estas duas dificuldades se inventou entrar nele, não só com tocha, mas também com fio: as
tochas para ver o escuro dos caminhos e o fio para entrar e sair pelo intricado deles. Por este modo
entraremos também nós pelo escuro e intricado labirinto dos futuros. As profecias e os Doutores nos
servirão de tochas; o entendimento e o discurso de fio. Isto é quanto às profecias e Profetas canônicos.”
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 148-9).
673
(...) De tudo o que fica dito ou prometido se colhe facilmente quanta será a verdade desta História;
porque as cousas que expressa e imediatamente se predizem nas profecias canônicas, de cuja inteligência
por sua clareza se não pode duvidar, ou por estarem explicadas por escritores também canônicos por
concílios, por tradições, ou pelo consenso comum dos Padres, é certo que têm toda aquela certeza
infalível e de fé, que as outras verdades sagradas que se contêm nas Escrituras. As outras cousas, que
destas verdades assim profetizadas e conhecidas, por natural conseqüência, se deduzirem, ainda que
276
eles, João Batista, Zaqueu, Daniel com o seu não entendimento das visões e parábolas de
Jesus: o tesouro e as coisas escondidas e a mulher e a dracma perdida. Neste capítulo, reflete
sobre o que há de obscuro e claro nas profecias, e emprega as imagens do homem que cava
em busca dos tesouros escondidos e da mulher que varre a casa na procura da moeda
perdida:
“Tirem o véu de sobre os olhos, e verão a luz das profecias: ainda que a
profecia seja candeia acesa, como se há-de ver com os olhos cobertos? Tire-se
o impedimento à luz, e logo se verão a candeia e mais o que ela alumeia. A
mulher que buscava a dracma perdida não só acendeu a candeia, mas varreu a
casa:...accendit lucernam, et (...) everrit domum. A candeia está acesa e muito
clara, mas a casa não está varrida; varra-se e alimpe-se a casa, tirem-se os
intervenha no discurso algum meio ou proposição científica, são verdades segundas que participam a
mesma certeza também infalível, qual é a das conclusões teológicas que, não sendo totalmente fé, nem
somente ciência, por esta parte têm evidência, e por ambas tal certeza, que não é sujeita a erro ou
falsidade, nem perigo de poderem não ser. As profecias não canônicas podem ser tão evidentemente
provadas por seus efeitos, como veremos que tenham toda a certeza moral, que é a que depois a fé e da
ciência têm no juízo humano o maior assento; e a mesma participarão, na forma que pouco antes
dissemos, todas as outras conclusões que por natural e evidente conseqüência delas se deduzirem, pois
são filhas e herdeiras da mesma Verdade de que tiveram seu nascimento.” HISTÓRIA DO FUTURO
(1992: 149-151).
674
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 157-8).
277
Conclusão:
Nestes dois capítulos Vieira deixa transparecer o seu método de leitura das Escrituras.
Primeiro, aparece nas entrelinhas do seu texto o que advém das chamadas antigas escolas de
estudo bíblico do século XII677, nestas há um tríplice caminho de aproximação ao texto bíblico: a
praedicatio. Não é por menos que ao falar da leitura e interpretação das Escrituras, Vieira
675
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 165-6).
676
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 166).
677
Um dos grandes expoentes do estudo e interpretação dos textos bíblicos neste período foi Hugo de São
Vitor que percebe na Escritura três sentidos: o histórico, o alegórico e o tropológico. No entanto, o seu
método tem em si uma finalidade contemplativa que implica na disciplina da leitura (lectio), no
ensinamento (disciplina), que conduz à meditação (meditatio), a meditação à oração (oratio), a oração à
ação (operatio) e a ação à contemplação (contemplatio). Sobre o estudo da Bíblia e a exegese neste
período, ver RICHÉ, Pierre e LOBRICHON, Guy (1984:141-298).
678
“E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é o que só achavam ou o que só escreviam,
seguindo os sentidos alegóricos e místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê
ordinariamente em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam na alegoria, tocando muitas
vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez não sem alguma impropriedade e violência.
Assim o notaram entre os mesmos Padres alguns mais modernos que antigos e outros menos antigos que
antiquíssimos: dos primeiros, é Ricardo de São Vitor, contemporâneo de S. Bernardo, no Prólogo sobre o
Profeta Ezequiel, onde confessa que se aparta de São Gregório, por se não chegar ao sentido literal do
texto; dos segundos, é o mesmo São Gregório, Padre do sexto século depois de Cristo, no Proémio sobre
o Livro dos Reis, onde diz que lhe foi necessário em algumas partes não seguir os Padres mais antigos,
por não faltar ao fio conseqüência e verdadeira interpretação da história. (...) Quer dizer que os Padres
antigos, por aplicarem toda a sua industria e engenho no sentido alegórico das Escrituras, ou passaram
totalmente em silêncio, ou trataram menos diligentemente alguns lugares mais escuros delas, sendo
certo, segundo eram dotados de altíssimos engenhos e enriquecidos de muita ciência e erudição, que, se
278
Porém, nas suas indagações acerca do Quinto Império é que aparecerá com força a sua
A primeira interpretação aparece no capítulo 6, no qual faz uma leitura dos capítulos 2, 7
e 8 do livro de Daniel, permeada pela leitura de Flávio Josefo. Assim começa a análise de Vieira:
“No mesmo templo de Jerusalém, refere “Nestas duas figuras é certo que estava
também Josefo que foram mostradas a profetizado, na primeira, o império dos Persas
Alexandre as profecias de Daniel, e Medos (como explicou o anjo a Daniel), por
particularmente aquela do cap. VIII. Conta ali o isso tinha a testa dividida em dois cornos; na
profeta que viu dois animais do campo: um, o segunda, o império dos Gregos, que no
maioral das ovelhas, com dois cornos muito princípio esteve unido em uma só pessoa, que
fortes; outro, o maioral das cabras, com um só foi Alexandre, e depois de sua morte se dividiu
corno entre os olhos (o qual depois de em quatro, que foram os quatro reinos em que
quebrado se dividiu em quatro), e que este ele o repartiu entre seus capitães. Saiu pois
segundo animal, correndo da parte do Ocidente Alexandre da parte ocidental, que é a
contra o primeiro, sem pôr os pés na terra, o Macedônia, e sem pôr os pés na terra, pela
investira e derribara e metera debaixo dos velocidade com que vencia e sujeitava tudo,
pés.”680 investiu, derribou e meteu debaixo dos pés o
império dos Persas e Medos, acabando de se
cumprir a profecia na última batalha do
Tigranes, em que venceu e desbaratou de todo
insistissem no sentido genuino e literal do texto, o poderiam conseguir mais perfeitamente que qualquer
dos modernos. (...) Os Padres antigos, que buscavam só nas Escrituras a Cristo e nesta preciosíssima
margarita empregavam todo o cabedal do seu estudo, os modernos, que se não determinam no tesouro
das Escrituras a um só gênero de riquezas, acham, além da mesma margarita, muitas outras pedras
também preciosas, e tiram daquele tesouro (como dizia Cristo) nova et vetera, riquezas novas e velhas:
as velhas, que são as notícias das verdades já passadas; as novas, que são o conhecimento das outras
futuras”.Cf. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 168 e 187).
679
Cf. MENDES, Margarida Vieira (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_08.html).
680
Cf. HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 192).
279
os seus dois chifres é o império dos Medos e Persas; já o segundo animal com um só chifre
entre os olhos e que se dividiu em quatro, representa o poder de Alexandre Magno. No entanto,
principalmente pelo comentário de São Jerônimo, enfoca o domínio de Alexandre Magno não
como o quarto animal ou o quarto metal da estátua. Alexandre passa a representar o terceiro
sentido, o objetivo de Antônio Vieira é “fazer com que a representação histórica da nação
portuguesa reflita o desenvolvimento histórico que o presente parece contradizer”.682 Daí a constante
mistura entre texto e atualidade na linguagem de Vieira como atesta António José Saraiva:
“Ora um texto é interpretado como coisa, ora a coisa como texto, ora um é o
prolongamento da outra, ora se confundem. De um texto extrai-se uma coisa; de
uma coisa uma palavra [...] O conjunto constituído pelo texto sagrado, pelos textos
681
Idem. p.192.
682
Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 170).
280
Os dois livros da História do Futuro que Vieira conseguiu escrever (depois dos 12
capítulos do Livro Anteprimeiro) giram em torno das leituras da profecia e suas interpretações,
Vejamos como o livro de Daniel é lido e interpretado por Vieira em seus dois livros da
História do Futuro.
Quinto Império? Por que recebe o número “Quinto” se existiram tantos impérios?
(...) Havendo pois ainda nesta nossa idade tantos impérios, e sendo tantos mais
os de nações bárbaras e políticas que em diversos tempos do Mundo se têm
levantado e caído, com razão se deve duvidar e desejar saber a causa pôr que
este nosso Império que prometemos recebe o numero de Quinto, e quais sejam
em ordem os outros quatro que lhe deram este lugar ou este nome. Ao que
respondemos breve e facilmente que este modo de contar não é nosso nem de
algum outro historiador ou autor humano, senão fundado e tirado das Escrituras
divinas, cuja história profética, sem fazer caso de muitos e grandes impérios que
floresceram e haviam de florescer em vários tempos e lugares do Mundo, só
trata do primeiro que se começou e levantou nele, e dos que em continuada
sucessão se lhe foram seguindo até o tempo presente, os quais em espaço
quase de quatro mil anos têm sido com este quatro. Esta sucessão e seu
princípio foi desta maneira.”684
683
António José Saraiva. Apud. BRAGA-PINTO, César (2003: 170).
684
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 243-4).
281
Vieira, no segundo capítulo traça, em linhas gerais, a constituição dos quatro impérios
mundiais. Segue uma descrição dos impérios (primeiro, os assírios e babilônicos, seguido pelos
persas, depois os gregos e chegando no império romano) à luz do que foi a interpretação feita
“Ao império dos Assírios sucedeu o dos Persas pelos anos da criação 3444.
Começou em Ciro, acabou em Dario; contou por todos catorze imperadores.
Não durou, conforme Eusébio, mais que duzentos e trinta anos. O terceiro
Império, que foi o dos Gregos, ainda durou menos, se o considerarmos como
monarquia. Alexandre o começou e acabou em Alexandre, para que vejam e
conheçam as coroas quanto é grande a sua mortalidade, pois pode ser mais
breve a vida de um império que a de um, homem. Começou este Império dos
Gregos depois pelos anos do Mundo 3672, conservou-se unido somente oito,
e, antes deles acabados, se dividiu em três reinos: o da Ásia, o da Macedônia,
o do Egito; e este (que foi o que mais permaneceu) continuou com desigual
fortuna trezentos anos, até que, governado e não defendido pela celebrada
Cleópatra, o ajuntou Marco Antônio à grandeza romana.”685
A menção a uma divisão do Império Romano em Oriental e Ocidental está mais para uma
leitura a partir da atualidade do que propriamente uma referência aos tempos antigos. Jorge R.
Seibold observa que noutros momentos do texto serão apresentados nomes atuais para se referir
Nos capítulos 1 e 2, que servem como introdução para os dois livros sobre o Quinto
Império (aliás, no plano de sua obra, o Livro I trata do nome, verdade e fundamento do Quinto
Império e o Livro II irá definir e declarar que Império é este), Vieira vai determinar os seguintes
pontos:
1. Uma questão tem de ser logo averiguada: “que impérios tenham sido ou hajam de ser os
outros quatro, em respeito ou suposição dos quais este novo de que falamos se chama
Quinto. Porque sem recorrer à memória dos tempos passados, e pondo somente os
olhos no mundo presente, conhecemos hoje nele muito maior número de impérios”.687
685
Idem. Pp.245-6.
686
Cf. SEIBOLD, Jorge R. In: KONINGS, Johan (2001:142-3).
687
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 243).
282
capítulo 2 a tentar mostrar uma contagem comprobatória para a sucessão de cinco impérios
a descrição mítica da origem dos poderosos associada à figura dos gigantes, tal como aparece
na genealogia das nações em Gn 10 (as gerações de Ninrode, do qual se diz que “começou a
“Belo, filho do gigante Nembrot (posto que não faltam graves autores que fazem
destes dois nomes o mesmo homem), reduzindo a sujeição e obediência política
a liberdade natural com que todos até aquele tempo nasciam, foi o primeiro que
ensinou ao Mundo e introduziu nele a tirania, a que depois com nome menos
odioso chamaram Império. Tantos anos tardou a ambição em romper o respeito
àquela lei com que nos fez iguais a todas a natureza. Foi este império de Belo o
dos Assírios ou Babilônios; durou, segundo Justiço, perto de mil e trezentos
anos; teve, entrando neste número Semearmos, 37 imperadores, de que foi o
último Sardanapalo.”688
Os assírios são sucedidos pelos Persas através das ações de Ciro e tem o seu fim
com o governo de Dario. O terceiro império, o dos gregos, teve como grande agente, o
imperador Alexandre (de vida breve). Ressalta Vieira nesta sua montagem cronológica a
pequena duração de Alexandre e de seu império, e a rapidez com que passou o império grego
é determinada pela divisão do império em três reinos: Ásia, Macedônia e Egito este último o de
maior duração.
sucessão, chegando até Constantino, que dividiu o império em Império Oriental e Império
Ocidental.
688
Idem. p.245.
283
Depois de descrever estes quatro impérios é preciso apontar as primeiras notas sobre o
Quinto Império.
Monarquia com a 1a. profecia de Daniel”, Vieira apresenta uma interpretação de Dn 2,1-49,
considerando esta profecia “a primeira pedra deste edifício” e Daniel vem em primeiro lugar,
simplesmente, não pelo espírito de profecia que ele carrega, mas “porque o fez Deus particular
Depois das justificativas para iniciar a sua descrição sobre o Quinto Império com o livro
de Daniel, Vieira descreve de forma resumida a narrativa do capítulo 2 de Daniel, dando realce a
alguns aspectos, mesmo considerando que não era tão necessária esta explicação, resolveu
resumir brevemente a fim de dar “crédito” à profecia. Eis alguns desses aspectos que são
689
Idem. p.247.
284
“se não podiam saber o sonho, que era coisa passada, como haviam de conhecer a
significação dos futuros, e somente lhes haviam de dar crédito no segundo e mais
dificultoso, se no primeiro e mais fácil eles mesmos confessavam sua ignorância? Que
se resolvessem a dizer logo uma e outra cousa, senão que ele e sus famílias
morreriam todas. E como os tristes sábios respondessem outra vez que não sabiam
nem podiam satisfazer ao rei no que deles queria, irado grandemente Nabuco,
mandou que os levassem de sua presença e que neles e em todos os professores das
mesmas artes se executasse logo a sentença de morte. Tão violentos são os apetites
do poder supremo, e tão arriscado não satisfazer aos reis até no impossível!”690
significado de cada uma das partes do sonho. A chave está na palavra de Daniel sobre as
diferentes partes da estátua: “Disse pois Daniel que aquela grande estátua significava a
sucessão do Império do Mundo, e os diferentes metais de que era composta as mudanças que o
690
idem. p.250.
285
41. E o que vistes, os pés e os dedos em parte de e assim como as pemas e pés são a última parte do
barro de oleiro e em parte de ferro: o reino se corpo humano, assim este é e há-de ser o último
tornará dividido e a força do ferro será para ele tudo Império dos que naquela estátua se
691
por causa do que viste, o ferro misturado com representavam.
barro, o barro cozido.
42. E os dedos dos pés em parte de ferro e em parte
cronologia dos Impérios, Vieira aponta uma justificativa e fundamentação de sua leitura do texto
de Daniel. Primeiramente diz que o que está dizendo é dito de fé, pois Daniel na sua explicação
do sonho não nomeia as nações, simplesmente alude que os três metais significavam três
“o mesmo Império que primeiro foi dos Assírios, vencidos estes por Ciro, passou
aos Persas, e o mesmo Império dos Persas, vencidos estes por Alexandre,
passou aos Gregos, e o mesmo Império dos Gregos, vencidos estes por vários
capitães de Roma, passou e se incorporou no Império Romano. E este é o
verdadeiro, certo e indubitável sentido de interpretação de Daniel, recebido,
aprovado e seguido por todos os Padres e expositores deste lugar, em que não
há discrepância nem dúvida alguma.”692
Na seqüência, Vieira joga a atenção do leitor para a interpretação dos pés e dedos de
ferro e de barro da estátua. Mais uma vez seu argumento está voltado para a divisão do Império
romano em dois: o Oriente e o Ocidente. E deixa transparecer na sua leitura o seu tempo, não só
apontando para uma concepção de como o mundo conhecido estava dividido na Antigüidade
691
Idem. pp.252-3.
692
Idem. p.253.
286
(África, Europa e Ásia), bem como, lançando luzes para a visão do Novo Mundo e a restauração
Jorge R. Seibold vai dizer que Vieira não pode aproveitar o princípio epistemológico do
tempo para interpretar corretamente as profecias, já que não contou com uma correta cronologia
histórica.
No que se refere à interpretação dos dedos da estátua como sendo a divisão do Império
Romano em dez reinos, Vieira vai dizer que esta interpretação não é nova e que se fundamenta
693
Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 188, n.42): “O nascimento da nação portuguesa está
tradicionalmente relacionado com a lenda segundo a qual Cristo apareceu para dom Afonso Henriques
durante a Batalha de Ourique, em 1139, dirigindo-se a ele com as seguintes palavras: ‘Ego aedificator et
dissipator imperiorum sum. Volo enim in et in semine tuo imperium mihi stabilire’. A lenda popularizou-
se no século XV com o Frei Bernardo de Britto. (...) Vieira faz diversas referências à lenda como prova
da escolha dos portugueses.(...)”. Ver também COELHO, Alessandro Manduco (2003: 126): “É a partir
do ‘milagre de Ourique’ que se firma em definitivo a aliança entre Deus e a nação portuguesa. Momento
primeiro da história de Portugal, no qual o próprio Cristo aparece para D. Afonso Henriques e, ao
proferir as palavras de alento e estímulo, diante a batalha em jogo, sinaliza a particularidade do Reino
que daquele instante para frente viu marcar em sua identidade a intervenção sagrada”. (...) Para
Hermann a batalha de Ourique, símbolo do futuro grandioso de Portugal, foi exatamente no século XV
que “ganhou contornos milagrosos, tendo sido até então observado apenas em sua dimensão militar.
Como traço fundador de uma história especial e sagrada do reino português, sua força encontraria
substância nas conquistas quase inexplicáveis empreendidas por um país tão pequeno e um povo tão
reduzido. Este feito poderia indicar a confirmação da vontade de Deus de fazer de Portugal um país
independente e preparado para levar a verdadeira fé aos quatro cantos do mundo.” Cf. HERMANN,
Jacqueline (1998: 24).
694
“Esto lo lleva a interpretar erróneamente los datos que proporciona Daniel en la interpretación de
sua profecía. Los dos piernas de hierro no simbolizan la división del Imperio Romano en dos Imperios,
uno de Occidente y en otro de Oriente, como tampoco los 10 dedos significan los 10 reinos en los que se
iría a dividir en su decadencia la grandeza del Imperio Romano. Vieira, incluso, llega a identificar essos
diez reinos con nombres actuales de su tiempo”. SEIBOLD, Jorge R. In: KONINGS. Johan (2001: 142-
3).
695
Vejamos uma explicação apresentada por Louis F. Hartmann: “Antes se creía que los cuatro reinos o
imperios de Dn eran el babilonio, el medo-persa, el greco-seléucida y el romano. Si bien esta teoría,
defendida por san Jerónimo, fue considerada en otro tiempo como la interpretación católica
‘tradicional’(relacionada con el intento de explicar las ‘setenta semanas de años’ de 9,24-27 como un
plazo que culmina en la muerte de Cristo), hoy se encontrarían pocos exegetas católicos dispouestos a
sustentarla”. Cf. HARTMANN, Louis F. (1971: 300).
287
“E é tão verdadeira e tão antiga esta interpretação dos dez dedos da estátua,
que já antes dos tempos de S. Jerónimo em que o Império Romano estava
íntegro e potentíssimo, sem ter perdido cousa alguma sua grandeza, era opinião
comum (como diz o mesmo santo) de todos os escritores eclesiásticos que o
Império se havia de dividir em dez reinos.”696
Mais adiante faz duas aplicações hermenêuticas acerca dos pés de ferro e barro da
estátua, relacionadas com a luta da Cristandade contra as heresias. De um lado, vai dizer que
numa leitura literal que indicar o contexto de guerras e batalhas, demonstrando tanto a firmeza
(casamentos e pactos entre imperadores e reis da Cristandade) têm suas marcas nos conflitos
696
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 254).
697
Idem. p.256: “ao pé da letra, o que se tem visto e experimentado no Império Romano, desde o tempo
de sua maior declinação a esta parte, em tantas ocasiões de guerras e batalhas contra Turcos, contra
hereges e contra alguns príncipes cristãos, nas quais em defesa da própria e da Igreja têm pelejado os
exércitos imperiais com grande valor, disciplina e constância, e alcançado de seus inimigos gloriosas
vitórias. E a mesma oposição tão bizarra com que as armas do Império nas fronteiras de Alemanha e
Hungria, e o mesmo Imperador em pessoa estão hoje resistindo às invasões do Turco e poder otomano,
que outra cousa são ainda, senão partes e partes muito sólidas daquele mesmo ferro?”
698
Idem. pp. 257-8: “Quantas vezes se intentou na Europa que entre os imperadores e reis da
Cristandade se estabelecesse uma liga firme, interpondo-se para isso a autoridade dos Sumos Pontífices,
e quantas vezes se liaram os mesmos príncipes entre si por meio de recíprocos casamentos, sem jamais se
conseguir a união desejada! Que imperador ou que rei houve na Cristandade há muitos anos que, se gota
por gota lhe distinguirem o sangue, não tenha cada um dos outros príncipes quase iguais partes nele? E
que guerras vimos ou sabemos entre estas coroas, em que o sangue que de uma e outra parte se defende,
e ainda o que se derrama, não seja o mesmo? Tão misturado anda o sangue nestas últimas relíquias do
Império Romano, mas tão resumido sempre, e por isso o mesmo império tão enfraquecido! Nasceu
juntamente com Roma esta fatal desunião contra o respeito do sangue em Rômulo e Remo; viu-se no
casamento de Pompeu com Júlia, filha de Júlio César, e no de Marco Antônio com Octávia, filha de
Octávio, quão facilmente se desatam, antes, se amarram contra si, as ,mesmas mãos que- pelo
matrimônio se uniram. Mas não são estes exemplos tão antigos os de que fala a profecia de Daniel,
porque não são os dos pés da estátua ou os dos dedos dos pés. Significam os dedos dos pés da estátua as
últimas extremidades do Império Romano e a sua duração, e, se eu me não engano, no mesmo dia em que
isto estou escrevendo se está cumprindo esta profecia. Que casa real há no Mundo mais ligada com a do
Império, que ramo há que seja mais próprio daquele tronco, e que sangue mais repetidamente unido por
multiplicados casamentos que o de Áustria e Castela? E que pessoa real há também em que mais
apertadamente estejam atados estes vínculos e mais dobrados todos estes respeitos que na de El-Rei
Filipe IV, primo do Imperador, cunhado do Imperador, genro do Imperador? Considere agora o Mundo
o estado em que o mesmo Imperador se achou no ano passado e em que se acha no presente, com os
poderosos exércitos do Turco metidos dentro na Áustria, e quase, batendo às portas de Praga, corte do
Império, os campos talados, as cidades destruídas, os homens barbaramente mortos a sangue-frio, as
mulheres e meninos cativos e transmigrados para a Turquia, os templos e pessoas dedicadas ao templo
em abomináveis sacrilégios profanados, e, depois de profanados, abrasados e feitos em cinzas; e neste
mesmo tempo em que o ferro de Espanha se havia de unir todo ao ferro do Império, vemo-lo todo
infelizmente convertido contra Portugal, mas por isso mesmo infelizmente! Se este ferro se unira ao
Império contra o Turco, fora ferro, mas, porque se desune dele em tal ocasião e se converte contra
Portugal, é barro. Barro e barro quebradiço, foi o ano passado e, por mais que se mostre ou ameace
ferro, barro há-de ser também no presente. Quanto melhor e mais católica ação fora, e quanto de maior
288
“Por um lado existem reinos que se comportam como ferro, quer dizer, com
firmeza e valor para defender os interesses da cristandade ou do império ante
os turcos, os hereges ou ante outros príncipes cristãos. Tais são, por exemplo,
as que mostram os exércitos imperiais que nas fronteiras da Alemanha e
Hungria se opõem às invasões dos Turcos e dos Otomanos. Outros reinos só
podem considerar-se de barro”.699
Porém, ainda falta a interpretação sobre a pedra “sem mãos” que atinge os pés
Aqui, Vieira simplesmente parece repetir o texto de Daniel sem avançar muito na sua
interpretação do que significa esta pedra que fora lançada contra a estátua. Aliás, ele termina
este capítulo apontando que a sua interpretação aparecerá mais adiante. Ou seja, ele vai falar
exemplo para todos os príncipes católicos e de menor escândalo para os hereges e para os mesmos
Turcos se o sangue espanhol, e tão valoroso, que de uma é outra parte se desperdiça, com lástima e
lágrimas da Igreja, no campo de Portugal e Castela, se empregara com glória imortal de ambas as
coroas em defesa da Fé, da Cristandade, da Religião, e da mesma cabeça dela, a quem tão de perto
ameaça este golpe! Mas quando todo o poder de Espanha se havia de achar unido contra o Turco em
socorro de Alemanha e Itália, despovoam-se os presídios de Itália, levantam-se os de Alemanha e
chamam-se todos a Castela contra Portugal, para que triunfem nas bandeiras otomanas as luas de
Mafoma, e se conquistem e sejam vencidas nas portuguesas - as chagas de Cristo!”
699
”Por un lado hay reinos que se han comportado como hierro, es decir, con firmeza y valor para
defender los intereses de la cristiandad o del imperio ante los turcos, los herejes o ante otros príncipes
cristianos. Tales son, por ejemplo, las que muestran los ejércitos imperiales que en las fronteras de
Alemania y Hungría se oponen a las invasiones de los Turcos y de los Otomanos. Otros reinos solo
pueden considerarse de barro”. SEIBOLD, Jorge R. In: KONINGS. Johan (2001: 143).
700
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 259).
289
do significado da pedra depois da leitura de Daniel 7. No primeiro capítulo do Livro II, é que
Vieira apresenta a seguinte leitura e interpretação sobre esta pedra que atingiu os pés da
estátua:
Notemos, que Vieira faz uma incursão sobre a Escritura na busca de referências à
pedra: Ex 17, 1-7 e Nm 20,1-13 (água da rocha no deserto de Sin); 1Sm 17,40-54 (Davi que
vence Golias com uma pedra); Zc 3,9 (a pedra de sete olhos na visão de Zacarias); Gn 28, 10s
701
Idem. pp.277-8.
290
(a pedra onde adormeceu Jacó e teve o sonho da escada); Ex 17,8-16 (a pedra que sustenta os
nestas referências da Bíblia Hebraica Vieira quer aplicar o mesmo significado que dá à pedra
que atinge os pés da estátua: para ele a pedra em várias passagens da Escritura é Cristo. Aqui
A segunda profecia de Daniel, que Vieira vai utilizar para fundamentar a sua tese sobre
o Quinto Império é a visão dos quatro animais e o Filho do Homem em Dn 7,1-28. Em primeiro
lugar, ele vai introduzir a sua interpretação, relacionando a figura de Daniel com José, vendido
pelos irmãos como escravo e que se torna ministro do Faraó. Tanto José quanto Daniel
702
Podemos conferir as oposições a Vieira no Tratado Ante-Vieira de um Anônimo Curioso (1661). Ver
BESSELAAR, José van den (2002: 139-220).
703
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 259-260).
291
Nesta visão dos quatro animais que vêm do mar, Vieira considera o mar como o cenário
teatral “em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o profeta chama
grande apresentação do texto (uma espécie de resumo breve ou apontamento das partes
importantes da visão de Daniel) e, no segundo, a sua interpretação guiada pelo próprio texto e
pela leitura de Dn 2. (Numa leitura rápida destes dois livros da História do Futuro podemos ver
que Vieira dá mais ênfase ao sonho da estátua – Dn 2 do que a visão dos quatro animais704),
porém, muitas das questões relacionadas às ações da quarta besta e o pequeno chifre e a
imagem do Filho do Homem são objeto dos outros livros da História do Futuro que não foram
Apresentação de Dn 7:
“Passados 47 anos depois daquela visão (que foi o ano 54 do último cativeiro de
Babilónia), reinando já nela Baltasar, que sucedeu a Nabuco no Império dos
Assírios ou Caldeus, viu o Profeta Daniel em uma visão de noite, (ou fosse
dormindo e em sonhos, como tem a opinião mais comum dos Doutores, ou
fosse, como outros suspeitam, acordado, velando) viu, digo, que os quatro
ventos principais se davam batalha no meio do mar e levantavam uma horrível e
furiosa tempestade; mas o mar assim perturbado e temeroso não era mais que
o teatro em que haviam de sair a representar quatro figuras horrendas, a que o,
profeta chama Bestas grandes: Ecce quatuor venti coeli pugnabant in mari
magno, et quator bestiæ grandes ascendebant de mari diversæ inter se.”705
“’Saiu a primeira besta semelhante a uma leoa com asas de águia; pôs o
Profeta nela os olhos, e não levou assim muito tempo, até que lhe foram tiradas
ao arrancadas as asas. E logo levantou as mãos da terra e se pôs em pé e ficou
704
Aliás, o próprio Vieira no início da sua interpretação de Dn 7 diz o seguinte: “até aqui o mesmo
Profeta, o qual, porém, referindo a dita interpretação, passa em silêncio algumas circunstâncias dela,
sem dúvida para não exceder a brevidade que no princípio deste capítulo tinha prometido. Daniel
somnium vidit, et somninm scribens brevi sermone comprehendit; summatimque perstringens ait. E a
razão de passar por aquelas circunstâncias tão brevemente ou foi porque as supôs bastantemente
declaradas na visão do segundo capítulo ou sonho de Nabucodonosor que acabamos de explicar, ou
certamente porque as julgou de menos importância ao seu interesse principal, que e a demonstração do
Quinto Império, exprimindo com grande particularidade e miudeza tudo o que pertence a ele, como
agora veremos.”
705
Idem. pp.261-2.
292
em figura de homem.’ Vejam lá os leões se lhes tira Deus as asas para que
sejam homens! Prima [bestia] quasi leæna et alas habebat aquilæ; aspiciebam
donec evulsæ sunt ale ejus, et sublata est de terra, et super pedes quasi homo
stetit, et cor hominis datum est ei.
‘Saiu a segunda besta semelhante a um urso, firmou-se sobre os pés e parou;
tinha três ordens de dentes, entre os quais trazia três bocados, e diziam-lhe que
comesse e se fartasse de carne’ Et ecce bestia alia similis urso in parte stetit; et
tres ordines erant in ore ejus, et in dentibus ejus, et sic dicebant ei: Surge,
comede carnes plurimas.
‘Depois desta saiu a terceira besta semelhante a leopardo, e tinha quatro asas
como ave e quatro cabeças; e foi-lhe dado grande poder.’ Post hæc aspiciebam,
et ecc alia quasi pardus, et alas habebat quasi avis, quatuor super se et quator
capita erant in bestia et potestas data est ei.
Durava ainda a noite, diz o Profeta e por fim de todas entrou ‘a quarta besta,
horrível, espantosa e muito forte. Tinha os dentes de ferro grandes com que
comia e despedaçava tudo, e o que lhe caía da boca ou não queria comer
pisava com os pés. Era mui diferente de todas as outras bestas, e tinha na testa
dez pontas’. Post hæc aspiciebam in visione noctis, et ecce bestia Quarta
terribilis atque mirabilis, et fortis nimis, dentes ferreos habebat magnos,
comedens atque comminuens, et reliqua pedibus suis conculcans: dissimilis
autem erat ceteris bestiis, quas videram ante eam, et cornua decem.”706
“Enquanto tudo isto notava, Daniel via que de entre as dez pontas da quarta
besta saía uma ponta menor que as outras, a qual obrou grandes estragos e
outras cousas prodigiosas, cuja narração e mistérios pertencem ao Livro V
desta nossa História, para onde o reservamos, como também outras
circunstâncias desta mesma visão que expenderemos em seus lugares.”707
4. O Tribunal de julgamento
706
Idem. p.262.
707
Idem pp.262-3.
293
5. O Filho do Homem
“Torna a dizer o Profeta que «ainda durava a noite e viu vir rodeado de nuvens
do céu um como filho do homem, o qual chegou ao trono do Antigo de Dias e o
ofereceram em sua presença. E ele lhe deu o poder, a honra e reino de todo o
Mundo, para que todos os povos e todos os tribos, e todas as línguas o
obedeçam e sirvam. Este seu poder será eterno, eterno também o reino, porque
nunca jamais lhe será tirado» Aspiciebam ergo in visione noctis, et ecce cum
nubibus coeli quasi filius hominis veniebat, et usque ad Antiquum dierum
pervenit; et in conspectu ejus obtulerunt eum. Et dedit ei potestatem et honorem
et regnum; et omnes populi, tribus et linguæ itsi servient: potestas ejus, potestas
æterna quæ non auferetur; et regnum ejus, quod non cortumpetur.“709
6. Conclusão
708
Idem. pp.263-4.
709
Idem. p.264.
710
Idem. p.264.
294
Interpretação de Daniel 7:
17 Estes grandes animais que são quatro, são os Primeiramente diz Daniel (ou disse a Daniel o seu
quatro reinos que se levantaram da terra. intérprete) que «aquelas quatro bestas grandes
significavam quatro reinos ou quatro impérios, que
18 E receberão o reino os Santos do Altíssimo e
sucessivamente se haviam de levantar no Mundo,
tomarão posse do reino para toda eternidade. depois dos quais se havia se seguir outro quinto
Reino ou Império, que o mesmo intérprete chama
Reino dos Santos do Altíssimo, o qual não há de ter
mudança nem variedade, nem outro reino algum ou
império que lhe suceda, porque há-de durar para
sempre.711
Esta é a interpretação em comum que deu o intérprete do Céu a toda a visão, sobre a qual nos
explicaremos mais particularmente, declarando todas as figuras dela pela mesma ordem com que foram
saindo, advertindo o que o Profeta e seu intérprete exprimiram, e suprindo com a exposição dos Doutores
o que eles calaram, coligido porém tudo imediatamente do mesmo que dizem. Não declara Daniel que
ventos fossem aqueles, nem que tempestades se levantaram no mar antes de sair nele as quatro bestas,
mas todos os expositores concordam em que o mar significava o Mundo, e os ventos e tempestades que
o alteram as alterações, movimentos, guerras e perturbações que se costumam experimentar no mesmo
Mundo, quando nele se levantam novos impérios.
Mas, antes que passemos adiante, satisfaremos um argumento que nos fica no texto de Daniel, porque
não deixemos o inimigo nas costas. Diz o texto que levantará Deus esta nova Monarquia in diebus
Regnorum illorum, nos dias daqueles impérios. Logo, esta Monarquia não é futura se não passada,
porque dos quatro Impérios já passaram totalmente os três, que são o dos Assírios, o dos Persas e o dos
Gregos, e o quarto, que é o Romano, também está na última declinação. Respondo que o Profeta na sua
interpretação se acomodou com grande propriedade à figura do enigma que declarava. Porque Deus, no
sonho de Nabucodonosor, representou todos os quatro impérios, não como quatro corpos ou quatro
indivíduos, senão como um só corpo ou um só indivíduo. Por isso viu o Rei não quatro estátuas senão
uma só estátua; e assim como dos quatro corpos dos quatro Impérios se formou um só corpo, assim das
quatro durações dos quatro impérios se há-de compor uma só duração, donde segue que com toda a
verdade se pode afirmar que sucederá nos dias daqueles Reinos o que suceder nos dias de qualquer
deles. Exemplo: a vida de um homem compõe-se de muitas idades, e o que acontece em qualquer
destas idades se diz com toda a propriedade e verdade que acontece nos dias daquele homem. Da
mesma maneira a duração da estátua dos impérios era composta de diferentes idades. A sua primeira
idade, que é o tempo dos Assírios foi idade de ouro, a segunda, que é o tempo dos Persas, foi idade de
prata, a terceira, que é o tempo dos Gregos, foi idade de bronze, a quarta, que é o primeiro Império dos
Romanos, foi idade de ferro, a quinta, que é este último tempo dos mesmos Romanos, é idade de ferro e
barro. E basta que nesta última idade, como decrépita, daquela estátua ou daqueles reinos se haja de
levantar o Quinto Império, para que com toda a verdade e com toda a propriedade se verifique havê-lo
Deus de levantar nos dias daqueles reinos; in diebus Regnorum illorum. Assim que o Império que
promete Daniel não é império já passado, senão que ainda está por vir.712
711
Idem. p.265.
712
Idem. pp.265-6.
295
cenário: o vento que agita o mar e os quatro animais que daí se levantam; mar aqui simboliza o
alterações nos movimentos; e, finalmente, os animais são os novos impérios que se levantam
em decorrência das agitações. O segundo detalhe, consiste na descrição dos animais que
na concepção que o Quinto Império não é império que já passou, mas que ainda está por vir. É
promessa do futuro.
No final do segundo Livro, apresenta uma nota sobre o Reino Universal juntando as três
profecias que ele trabalhos na História do Futuro: O sonho de Nabucodonosor (Dn 2), a visão de
“Este é o Reino universal que Daniel veio dar ao Filho do Homem (que é Cristo),
e este o Reino que Nabucodonosor também tinha visto encher o Mundo, posto
que não viu nem lhe foi mostrado a quem se havia de dar. Este é o que viu mais
distintamente que todos Zacarias na sua terceira visão; porque Nabucodonosor
viu sòmente o Reino e sua grandeza, Daniel viu o Reino e a pessoa que o havia
de dominar, e Zacarias viu o Reino e a pessoa, e o número e distinção das
coroas.”714
Outro texto exegético de grande importância de Vieira sobre o livro de Daniel é a sua
Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofício715 (na segunda representação). Vale lembrar que a
713
“Na História do Futuro, entre as fontes que Vieira utilizou para justificar a esperança do Quintio
Império a presença do onírico era evidente. Das três profecias bíblicas (do livro de Daniel, capítulos 2 e
7; e do profeta Zacarias, capítulo 6) nas quais Vieira encontra a descrição e sucessão dos quatro
impérios (Caldeu, Persa, Grego e Romano), duas foram reveladas em sonhos: o sonho da estátua de
Nabucodonosor, talvez a visao mais importante para o Quinto Império Vieirense, e o sonho dos quatro
ventos de Daniel. Outra fonte na qual Vieira bebeu grandemente, as Trovas de Bandarra, estava
organizada em três sonhos. Mais do que isso, como vimos, em Portugal, Vieira conhecia uma produção
ligada aos sonhos proféticos e aos mitos fundadores lusitanos”. LIMA, Luís Filipe Silvério (2000: 44).
714
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 363).
715
Cf. CIDADE, Hernani (1957). Uma edição composta em dois Tomos que contém: 1) Representação
primeira – dos fundamentos e Motivos que tive para me parecer provável o que escrevi acerca do spirito
profetico de Bandarra, e do mais que se inferia das suas predicçoes; 2) Representação segunda – dos
fundamentos e motivos que tive para me parecer provável o que tratava de escrever acerca do quinto
império ou reyno consumado de Christo; 3) Alguns exames feitos a Vieira na Mesa do Santo Ofício.
296
presença de Vieira diante do Tribunal não se deve simplesmente pela sua exegese das Trovas
de Bandarra, pois desde 1649 ele vinha sendo denunciado ao Tribunal por fazer comentários de
livros proibidos, pelos seus embates contra o rei e a corte no que se refere à escravidão, e
injúrias contra as ordens religiosas. Alem disso, concorre para o seu conflito com o Santo Ofício,
as intenções de Vieira junto a d. João IV para restringir drasticamente a ação do Santo Ofício,
incapaz de romper com a distância que a separa da colônia, e que no fundo vai gradativamente
se harmonizariam as crenças religiosas e as heresias sob uma mesma égide (a fé católica) num
Na resposta à primeira questão, Vieira deixa claro que os seus fundamentos não estão
naqueles que tem o espírito de profecia, nos Padres e Santos antigos e nos teólogos e autores
modernos.
Reyno. Monarchia ou Imperio que se deva chamar o Quinto?”) Vieira vai apontar as três
716
Cf. PÉCORA, Alcir (2004:178-195). Ver também CIDADE, Hernani (1957: I, VII-XL).
717
Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 244).
297
Daniel não declarou quais os impérios representados nos metais (partes) da estátua, porém,
disse que o primeiro representado na cabeça de ouro era o de Nabucodonosor (os assírios).
“Mas o tempo, que he o melhor interprete das profecias, pella mesma ordem
com que os impérios se seguirão foy declarando tambem que o segundo
imperio era o dos Persas, o terceyro o dos Gregos & o quarto o dos Romanos,
que por seu grande valor & potencia nas armas foy representado no ferro. A
este imperio, que era o ultimo da estatua, chama o texto & o Profeta
expressamente quarto: Et rewgnum quartum erit velut ferrum; segue se logo
que o imperio, que avia de vir depois, significado na pedra, he o quinto, & este
he o que eu chamo ou chamava Quinto Imperio. Tudo o que fica dito he
exposição literal de todos os Padres & comentadores deste lugar, como se
pode ver nelles.”718
Do capítulo 7 de Daniel, Vieira dirá que a identificaçao das quatro feras com os quatro
impérios é uma “sentença comum de todos os Padres, sem discrepancia, que significão
literalmente os mesmos quatro imperios dos Assyrios, Persas, Gregos & Romanos que
Império romano, Vieira argumenta a partir da descrição do pequeno chifre em Dn 7 como sendo
a imagem do Anti-Cristo (que vai aparecer no fim do mundo), como referência do Império
718
CIDADE, Hernani (1957: I, 236).
719
Idem., p.237.
720
Nas páginas 240-246 são apresentados os argumentos de Vieira.
298
Na Mesa do Santo Ofício pesa sobre Vieira um grande número de denúncias721, porém o
pretexto que foi apresentado consiste na Carta “Esperanças de Portugal, Quinto Império do
ressurreição de D. João IV. Fato é que o conjunto de obras de Vieira que interpreta o Quinto
Império (História do Futuro, Apologia das coisas profetizadas e Clavis Prophetarum) será
marcado pelo processo inquisitorial, pois estes livros incompletos estão estruturados como
resposta às objeções do Santo Ofício. Estas obras se configuram numa grande defesa do Padre
Vieira. Neste sentido, podemos entender a certa confusão ao nos depararmos com os títulos
dessas obras, por exemplo, em História do Futuro Vieira finaliza com as seguintes palavras:
“Estes são os livros e questões de que consta o livro intitulado Clavis Prophetarum”.
“Para Vieira, contudo, essas obras são a própria legitimação de sua vida — de
cortesão, orador, teólogo, profeta, e missionário. Defendê-las é defender-se,
redigindo para si uma narrativa de vida outra que não a dos inquisidores. O que
Vieira denuncia é que a Inquisição conspira contra suas sentenças neste
momento e nesses anos porque, apesar da meticulosidade com que registram-
nas impessoalmente, censuram a ele, e não a outrem, por tê-las proferido: ‘De
721
Adma Fadul Muhana enumera as denúncias contra Vieira: “Entretanto, muito antes do recebimento da
tal Carta, o Santo Ofício já possuía uma série de denúncias contra Vieira que, mais tarde, são
incorporadas a seu processo, e, note-se, não no momento das denúncias, quando Vieira ainda era
protegido por D. João iv. Desde 1649, por exemplo, denunciam Vieira: Martim Leitão, Antônio de Serpa,
Pedro Álvares, Lopo Sardinha, João Pizarro, Manuel Caldeira e Francisco de Andrade; em 1650,
Francisco de Santa Maria, Pedro de Almeida e o mesmo Martim Leitão; em 1651, Lourenço de Castro;
em 1652, Manuel Álvares Carrilho e D. Joseph de Ethi etc. Além dessas, qualificações censurando
sermões seus datam de 1651. O número e o conteúdo dessas denúncias mostram, portanto, que, quando
de sua partida para Belém, em 1652, Vieira já tinha conhecimento do cerco que a Inquisição lhe fazia.
Quando, dez anos depois, chega a Portugal expulso do Pará, a situação logo se torna favorável para a
Inquisição. A rainha regente D. Luiza, sua aliada, é obrigada a ceder o trono para o insensato D. Afonso
vi, e Vieira é afastado da corte (isso em 1662). Mandam-no para o Porto e, em seguida, para Coimbra,
em cujo Colégio da Companhia permanece como bibliotecário até ser chamado, em julho de 1663, para
o primeiro exame inquisitorial.” Cf. MUHANA, Adma Fadul (2005: http://www..letras.puc-
rio.br/catedra/revista/2sem_04.html).
722
“O Bandarra é verdadeiro profeta; o Bandarra profetizou que El-Rei D. João o quarto há de obrar
muitas cousas que ainda não obrou, nem pode obrar senão ressuscitando: logo, El-Rei D. João o quarto
há-de ressuscitar.”
299
O embate entre Vieira e a Mesa do Santo Ofício e seus oponentes é demarcada pelo
simplesmente quer saber onde está a heresia. E a resposta que obtém e que a ameaça à fé em
Vieira reside num livro que não escreveu. Por isso, passa a escrever o livro para que possa
saber onde estão os seus erros que são considerados perigosos para a Igreja.
Para Luiz Felipe Baêta Neves no processo inquisitorial de Vieira e na sua defesa
Enfim, na Defesa perante o Tribunal do Santo Ofício não iremos nos deparar com a mais
fina interpretação que Vieira imprimia aos textos da Escritura. Encontramos ali a sua palavra
unívoco. As várias imagens ou figuras de linguagem utilizadas pelo pregador é uma forma de
assim, podemos inferir que Vieira em momento algum se dobra ao Tribunal, pois não muda o
723
Cf. Cf. MUHANA, Adma Fadul (2005: http://www..letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_04.html).
724
NEVES, Luiz Felipe Baeta (2005: http://www.letras.puc-rio.br/catedra/revista/2sem_03.html).
725
Cf. THEODORO, Janice (2005: http://www.fflch.usp.br/dh/ceveh/public_html/biblioteca/livro/ab/ -
retirado em 23/junho). Ver sobre a retórica e os elementos barroco e clássico na composição dos Sermões
de Vieira in: HADDAD, Jamil Almansur (s/d: 7-70).
300
seu pensamento e nem retrata-o publicamente dizendo que errou e se confessa pecador.726 Ao
contrário, argumenta e discute a sua teoria, as suas idéias e crenças. Nesta perspectiva,
podemos entender que um dos pedidos de Vieira diante do Tribunal seja o de lhe concederem
tempo necessário para “dispor um papel em que dê a razão de todas as sobreditas coisas” e,
noutro momento (uma semana depois), redige uma petição alegando que o Advogado que lhe
fora designado não conhecia teologia e que fora obrigado (por força) a assinar o documento de
compromisso de entrega da sua defesa até a Páscoa. Nesta petição ainda aconselha que seja
realizado um Concílio e pede que entre os seus qualificadores não sejam designados os
galope, como afirma Alcir Pécora, pois o Santo Ofício manda recolher o réu num dos cárceres
justificando os erros judaicos.728 Portanto, não só a utopia de Vieira suscitou a ira dos seus
algozes, pois concorre contra Vieira o anti-semitismo do Santo Ofício, que “de velas enfunadas
no século XVII, vislumbrou, com a perspicácia feroz dos perseguidores, traços judaizantes
Santo Ofício. Primeiro que na argumentação clara, precisa e de estilo clássico e barroco, ele
726
Cf. PÉCORA, Alcir (2004: 184). Vejamos o início do 10o. Exame feito a Vieira na Mesa do Santo
Ofício: “Aos dous dias do mez de Outubro de mil & seiscentos & sessenta & seis annos em Coimbra, na
caza do Oratório da Santa Inquisição, estando ahy em audiencia da manhãa o senhor Inquisidor
Alexandre da Sylva, mandou vir perante sy ao Padre Antonio Vieyra, reo contheudo nestes autos. E
sendo presente, lhe foy dado juramento dos Santos Evangelhos, em que pôs sua mão, sob cargo do qual
lhe foy mandado dizer verdade& ter segredo, o que elle prometeo cumprir. Perguntado se cuydou em
suas culpas, como nesta Mesa lhe foy mandado, & as quer acabar de confessar & declarar a verdadeyra
tenção que teve em cometter as que já confessou para descargo de sua consciencia & bom despacho de
sua causa, disse que não tinha culpas que confessar, nem mais que declarar a respeito da tenção das que
lhe foram imputadas, como já explicou.” Cf. CIDADE, Hernani (1957: II, 299).
727
Cf. MUHANA, Adma Fadul (ed.). (1995: 106; 112 e 400-401). Ver também: PÉCORA, Alcir (2004:
180-3).
728
PÉCORA, Alcir (2004: 183).
729
Cf. BOSI, Alfredo (2002: 55).
301
derrocada (d. Maria Francisca de Sabóia alia-se ao cunhado mais novo, d. Pedro, que assume
em novembro a Regência) e muitos dos aliados e amigos de Vieira são reconduzidos ao poder.
Talvez por estes dois fatores, o Tribunal do Santo Ofício não tem mais o mínimo interesse em
Futuro de Vieira:
profecias. Vale lembrar que os projetos de conquistas eram em grande medida justificados com
conflitos entre as missões jesuíticas e os colonizadores locais com relação aos indígenas.
profecias populares, a exemplo das trovas Bandarra, que tinham ampla circulação apesar das
que em meio a esta efervescência messiânica e milenarista, Vieira representa uma síntese e a
elaboração de um discurso profético tendo como arcabouço uma teoria política, na qual se
730
“o cofre real vazio; o comércio do açúcar brasileiro a baixar de modo inquietante; o tráfico de
escravos para o Brasil nas mãos dos holandeses, senhores de Angola; o Oriente quase em ruínas, o
exército inexistente, etc. – e em breve a ofensiva geral dos espanhóis”. Cf. António José Saraiva. Apud.
BRAGA-PINTO, César (2003: 164).
731
Cf. HERMANN, Jacqueline (1998: 219-248) que fala de um “sebastianismo letrado” em Vieira.
302
soberania de Portugal para além dos interesses eufóricos e justificadores das conquistas.
5. Para Vieira as narrativas do futuro têm como alvo primeiro uma tentativa de
de messianismo judaico feitas pelo Santo Ofício e, em certo sentido, é o livro das profecias de
Antônio Vieira.
de narrativas do futuro. Ele busca não só as que estão inseridas no cânon fechado das
Sagradas Escrituras, mas, sobretudo, vai beber naquelas que eram consideradas sem valor e
sem consistência. Das meras previsões populares aos textos que sobreviviam nos subterrâneos
732
BRAGA-PINTO, César (2003: 166).
733
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 53).
303
da ortodoxia. Conhecedor da leitura que os Padres da Igreja imprimiram aos textos bíblicos e ao
mesmo tempo que bebe nas fontes de uma leitura dos textos bíblicos que vem,por um lado, das
escolas de exegese do século XII e, por outro, da famosa tradição monásticas.734 No entanto, a
sua exegese caminha na contramão da Patrística, das escolas de leitura bíblica ao propor de
maneira diferenciada uma leitura literal das profecias. Sua proposta vem da percepção de que
muitas das leituras patrísticas não correspondiam ao sentido verdadeiro do texto.735 Vejamos o
“Da parte dos mesmos Padres se deve igualmente considerar, que deixaram
de especular e dizer muitas cousas de grande importância que depois se
souberam e escreveram, porque se acomodaram à necessidade dos tempos
em que viviam. Todo o intento dos Padres antigos era provar a verdade da
encarnação do Filho de Deus e o mistério de sua cruz, a qual, na cegueira dos
Judeus (como diz São Paulo) se reputava por escândalo e, na ignorância dos
gentios, por estultícia. E como esta era a guerra e a conquista daqueles
tempos, todas armas da Sagrada Escritura se forjavam e acostavam contra
esta resistência. E por isso os primeiros Padres e seus sucessores nenhuma
cousa buscavam nos Livros Sagrados, não só proféticos, senão ainda nos
históricos, mais que os mistérios de Cristo. É bom testemunho desta verdade o
que diz Ruperto a Frederico, arcebispo coloniense, do prólogo dos seus
Comentários sobre os Profetas menores: Scito me, Pater mi, sicut in caeteris
Scripturis, ita et in volumine duodecim Prophetarum operam dedisse, ad
quaerendum Christum. E como isto é o que só buscavam para escrever, isto é
o que só achavam ou o que só escreviam, seguindo os sentidos alegóricos e
místicos e deixando ou insistindo menos nos literais, como se vê
ordinariamente em todas as exposições dos Padres, que todas se empregam
na alegoria, tocando muitas vezes só leve e superficialmente a letra, e talvez
não sem alguma impropriedade e violência.”736
Para Vieira, a leitura literal das profecias tem função de revelar a história, pois o “literal”
quer implicar na busca de um fundo histórico, ou seja, o texto tem um contexto específico. Pode-
se dizer que a exegese de Vieira vem de uma prática que remonta desde os primórdios do
Cristianismo, que no seu caráter apologético tenta demonstrar continuidade entre as Escrituras
hebraicas e a história cristã. Pois a interpretação de Vieira oscila entre o literal e o alegórico. Por
734
Não quero transformar Vieira num monge e, de modo especial, num Mendicante. Pois a sua leitura vai
mais na direção da escola Alexandrina e da escolástica do que na direção da escada dos Monges ou os
degraus da Lectio Divina.
735
BRAGA-PINTO, César (2003: 176).
736
HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 186-7).
304
isso, Vieira ao insistir na historicização das profecias quer dizer que faz-se necessário ler a
Exemplo claro desta leitura e interpretação que Vieira faz da profecia, é a sua leitura
literal e alegórica de Is 18,1-2, na qual sugere que o sentido de “gente conculcatam” (gente
pisada dos pés) é uma referência ao Brasil.739. Este tipo de interpretação transformou a profecia
num referencial.740
A História do Futuro tenta persuadir o povo português a aceitar o monarca como sendo
aquele escolhido por Deus para realizar os destinos de Portugal. Seu discurso, de um lado,
apela para uma crença e esperança no futuro, mesmo reconhecendo os limites e falhas do
737
Idem. p.51: “Para satisfazer, pois, à maior ânsia deste apetite e para correr a cortina aos maiores e
mais ocultos segredos deste mistério, pomos hoje no teatro do Mundo esta nossa História, por isso
chamada do Futuro. Não escrevemos com Beroso as antig üidades dos Assírios, nem com Xenofonte a
dos Persas, nem com Heródoto as dos Egípcios, nem com Josefo a dos Hebreus, nem com Cúrcio a dos
Macedónios, nem, com Tucídides, a dos Gregos, nem, com Lívio, a dos Romanos, nem com os escritores
portugueses as nossas; mas escrevemos sem autor o que nenhum deles escreveu nem pôde escrever. Eles
escreveram histórias do passado para os futuros, nós escrevamos a do futuro para os presentes.
Impossível pintura parece antes dos originais retratar as cópias, mas isto é o que fará o pincel da nossa
História. Assim foram retratos de Cristo Abel, Isaac, José, David, antes do Verbo ser homem. O que
ignorou o mundo antigo, o que não conheceu o moderno e o que não alcança o presente, é o que se verá
com admiração neste prodigioso mapa descrito: coisas e casos que ainda 1hes falta muito para terem ser
quanto mais antigüidade. A história mais antiga começa no princípio do Mundo; a mais estendida e
continuada acaba nos tempos em que foi escrita. Esta nossa começa no tempo em que se escreve,
continua por toda a duração do Mundo e acaba com o fim dele. Mede os tempos vindouros antes de
virem, conta os sucessos futuros antes de sucederem, e descreve feitos heróicos e famosos, antes de a
fama os publicar e de serem feitos.”
738
Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 185-6).
739
Ver: HISTÓRIA DO FUTURO (1992: 215-17).
740
Cf. BRAGA-PINTO, César (2003: 191-2).
305
passado e, do outro, a realização das profecias no presente “não deve ser definitiva, mas deve
741
Idem., pp.206-207.
306
CONCLUSÃO
Chegando ao final destas páginas temos a sensação que estamos diante de um livro que
fez uma longa história. E que o nosso conhecimento histórico-literário não é capaz de abarcar
toda a sua leitura desde os primeiros séculos a.E.C. Eis um livro que circulou entre sábios,
escribas, mestres da Lei, piedosos, rebeldes, profetas, messias e o povo que buscava ser fiel e
Livro de visões extraordinárias que a princípio enchem de medo o ouvinte e leitor, mas,
Livro de orações que evoca a prática penitente como um dos caminhos para enfrentar os
Livro que é escrito com o corpo742, mediação das imagens e da análise do presente. O
texto é corpo e o corpo é texto743: jovens judeus que protegem seus corpos da comida do rei (Dn
1); o poder representado no corpo de uma estátua que tem pés de ferro e pés de barro (Dn 2);
corpos condenados ao fogo que saem vitoriosos (Dn 3); o poder do império é um corpo
desfigurado: é um animal! é um rei louco! (Dn 4); é o corpo (dedos da mão) que escreve na
742
Ver: CERTEAU, Michel de (2000: 221-273).
743
TAMEZ, Elsa. In: AAVV. (1998/3: 74).
307
parede o destino do império (Dn 5); é o corpo do piedoso condenado por seguir as suas rezas e
sai livre da boca dos leões (Dn 6). São os impérios representados nos corpos de animais
estranhos (leão com asas de águia, urso com costela na boca, leopardo de quatro cabeças e o
animal de dentes de ferro e que tem dez chifres) e que serão derrotados pelo “Filho do Homem” e
pelos “santos do Altíssimo” (Dn 7); o anjo Gabriel toca no corpo de Daniel consolando-o e
fortalecendo-o para entender a visão do carneiro e do bode (Dn 8); o corpo de Daniel em oração
que pede piedade e compaixão (Dn 9); a visão de um homem com o corpo vestido de linho que
decreta o tempo do fim dos perseguidores (Dn 10-12); os corpos que gritam por justiça e o grande
grito de Susana (Dn 13), e, as marcas dos pés no chão denunciando os falsificadores da religião
de Bel, Daniel que explode o dragão dando-lhe um bolo para comer; e, Daniel é lançado na cova
dos leões e liberto por Deus, mas antes é alimentado pelo profeta Habacuc (Dn 14). E o livro
Livro que ajudou muitas comunidades cristãs a enfrentarem crises, fornecendo luzes para
proporem na radicalidade deste projeto do Reino e a esperança de sua volta. Livro que animou
Transformaram os animais estranhos (Dn 7) em duas bestas terríveis (Ap 13). Mas também,
Leituras que mantiveram o livro aberto e outras leituras que fecharam o livro segundo os
interesses da ortodoxia. Mas é livro irreverente e que dá longos passos na direção das
correntes milenaristas.
744
Estou usando o título do livro de Manuel Lacunza.
308
Livro que chegou à América pelas mãos dos colonizadores, mas que fez brotar no Novo
Mundo as visões do Paraíso e a busca de tempos melhores. Das caravelas à circulação na Terra
de Vera Cruz. Encontrou eco nas profecias de Bandarra que também aqui circulavam e fez
revoada na leitura milenarista de Vieira. E outros leitores, cassados e queimados como hereges,
lançaram seus olhares sobre este livro tendo nas mãos a História do Futuro. Outros leitores
produzindo sempre novas interpretações. Assim, o livro de Daniel da pena e boca de Pedro de
Rates Henequim745 até às suas primeiras palavras sofreu proibições. Livro, em determinado
sentido, arrumado para entrar no cânon; do livro ampliado (versão grega dos capítulos 3 e 13-14),
que teve as partes acrescentadas proibidas porque foram consideradas “fora da régua” ao livro
que chega em nossas mãos através das histórias sagradas. Eis um livro proibido que sofreu
percalços. No cânon cristão ou na cristandade sofreu tempos de silêncio, pois foi considerado
livro muito judaico, e para tirá-lo das penumbras foi necessário produzir leituras alegóricas,
Na América foi tirado do baú e, aos poucos, provocou impacto ao ser pano de fundo das
profecias populares. Foi proibido por tabela junto à censura das leituras das trovas de Bandarra.
Mais uma vez o livro sofre o peso da censura. No passado, de escribas; agora, dos clérigos
independente dos escribas e “letrados”; aqui na América colonizada volta à baila através da
Livro nômade que provocou novas leituras antigas, ou seja, leituras sempre novas na
reapropriação de um livro antigo. O que diz o texto continua fixado nas palavras desde os tempos
dos maskilim, dos hassidim, dos essênios, dos fariseus, dos cristãos, dos revolucionários e dos
745
Cf. ROMEIRO, Adriana. À roda da Clavis Prophetarum: a trajetória de dois leitores de Vieira. In:
ABREU, Márcia (org.). (2002: 265-6): “Pedro de Rates Henequim, português instalado nas Minas desde
1702, que , adepto da cabala, apresentou-se em Lisboa como profeta iluminado, o eleito de Deus para
penetrar no verdadeiro sentido das Escrituras. Preso pela Inquisição, permaneceu quase quatro anos nos
cárceres, submetido a longas sessões de exame e interrogatório, ao fim das quais o Conselho Geral o
declarou heresiarca – como Lutero e Calvino, o propugnador de uma nova seita”.
309
que resistem às dominações. Assim, é o livro que provocou a nova leitura de sempre. Pode ser
paradoxal. Mas quero dizer que este livro produziu novas leituras retiradas do antigo baú da
história. Usando uma linguagem própria da profecia poética do exílio da Babilônia,746 eu diria que
os autores do livro de Daniel tiraram sempre coisas novas do baú da história e talvez seja por isso
Livro interessante! Que nos desafia a ter novos olhares para a vida. É o desafio do livro
que exige novas leituras e novos olhos. Para responder a tais desafios aponto algumas
considerações:
1. Haveria que considerar o livro de Daniel nas armadilhas do tempo. O livro de Daniel
da dominação dos generais gregos, os autores deste livro evocam o seu tempo para que os
leitores passem a recompor os seus olhares sobre as suas situações concretas. Nesta
perspectiva, tanto autor quanto leitor são intérpretes por excelência. Os autores apresentam as
cotidiano. Portanto, para ler o livro de Daniel faz-se mister perceber os seus tempos. Do tempo do
livro aramaico (período da dominação dos generais) ao tempo dos seus leitores. Do tempo do
livro hebraico (período da guerra dos macabeus), que relê o livro aramaico, ao tempo de seus
leitores. Do tempo do livro grego (o período hasmoneu ou pós-guerra) ao tempo de seus leitores.
O tempo dos leitores se encaixa no tempo da escrita dos novos livros. Leitores que se
perseguição, leram o livro de Daniel, aplicando a análise do passado para o tempo que estavam
746
“Não fiqueis a lembrar coisas passadas, não vos preocupeis com acontecimentos antigos. Eis que vou
fazer uma coisa nova, ela já vem despontando: não a percebeis? Com efeito, estabelecerei um caminho
no deserto, e rios em lugares ermos”. (Is 43,18-19).
310
vivendo. Na América da cristandade o livro Daniel foi lido nas profecias populares e na
Clavis Prophetarum, como o padre Manuel Lopes de Carvalho que, em 1723, é encarcerado pelo
Santo Ofício sob suspeita de heresia.747 Mais ou menos vinte anos depois da execução do Padre
Lopes de Carvalho, outro leitor de Vieira foi para na fogueira: Pedro de Rates Henequim.
“Que a Lingoa portuguesa correcta, e pura como elle a ensina, e falla há de ser
a que se há de falar 5o. Imperio dos Portugeuses, que está proximo, e há de
ser nos Brasis no lugar do Paraiso Terreal, e que há de ser de Judeos. Que
Adão deixara escritas em Portugues a seus descendentes em folhas de certas
Palmeiras, que há no Brasil todos os documentos, que lhes erão necessarios.
Que as palavras de Christo: Regnun meum non est de hoc mundo; e as
palavras do Apocalypse: Vidi caelum novum, et terram novam, se entendem do
5o. Imperio. Que o Paraiso Terreal, em que Adão foi creado, está na America
debaixo da Linha Equinocial, e perpendicular ao lugar em q’ Deos tem o seu
Trono no Ceo; e o prova de nesta nova terra se achar tudo o que a Scriptura
diz delle; porque nella se acha o fruto da Arvore da Vida, que são as Bananas
compridas, e o da Sciencia, que são as Bananas curtas, e, frutas, rios, e
delicias; e de Adão se chamar vermelho como se chamão os filhos do
Brasil.”749
747
“A aventura da Clavis Prophetarum estava apenas começando na América portuguesa. Fiel ao desejo
de Vieira de vê-la divulgada verbalmente, ela principiava uma carreira em cópias manuscritas,
espalhadas por Jesuítas seguidores do Quinto Império, interessados em romper o circulo estreito da
Companhia. Assim, uma cópia da Clavis começa a circular em Minas, pelas mãos do jesuíta Antônio
Correia, que ali chega em missão por volta de 1715. Foi o que revelou o padre baiano Manuel Lopes de
Carvalho à Inquisição de Lisboa pouco depois, quando indagado a respeito da origem de suas idéias
sobre a reunião das tribos de Israel, a destruição de Roma e o esplendor de Lisboa como cabeça da
Igreja. Preso nos cárceres do Santo Ofício em 1723, suspeito de ser um heresiarca a arrebanhar adeptos
com uma nova seita, confessou ao inquisidor que vira aquelas proposições ‘em algumas questões’ da
Clavis Prophetarum do padre Antônio Vieira, que viu nas Minas, em um papel que tinha o padre Antônio
Correia da Companhia de Jesus e também pelo que ouviu falar de um livro que compusera o padre
Mateus Faletti”. ROMEIRO, Adriana. À roda da Clavis Prophetarum: a trajetória de dois leitores de
Vieira. In: ABREU, Márcia (org.). (2002: 260).
748
Idem., pp.266-7.
749
Henequim Teses II: 4-7. In: GOMES, Plínio Freire (1997: 166).
311
Ele associa o Quinto Império à sua visão do Paraíso, localizado no Brasil. Com isso, o
Quinto Império há de ser “nos Brasis”. Aqui aparece a sua releitura que redimensiona as noções
apresentadas por Vieira. No entanto, as suas palavras brotam da sua experiência nos trópicos,
pois este seu conhecimento os seus qualificadores não possuíam; bem como do seu estudo
assíduo das Escrituras.750 Daí, podemos dizer que tanto o padre Lopes de Carvalho quanto
Henequim não só leram a Clavis Prophetarum como devem ter tomado conhecimento da História
Como afirma Adriana Romeiro, o Livro Clavis Prophetarum condenado antes de existir,
“tornou-se uma espécie de legenda, enriquecida pelas aventuras de seu autor, e instalou-se no
inquisitoriais e a ampliar os limites da ortodoxia”.751 Neste sentido, a obra de Vieira que projetou
novas interpretações sobre o Quinto Império, impulsionou ao livro de Daniel novas leituras e
novos olhares.
2. Haveria que considerar uma leitura milenarista do livro de Daniel e sua trajetória na
Companhia de Jesus. Por exemplo o Jesuíta Valentim Estancel, convidado por Vieira para
terminar o livro da Clavis Prophetarum, escreveu aos oitenta anos um comentário do livro de
Daniel (Commentarium in Danielem). Pensemos também na leitura do livro de Daniel feita por um
dos discípulos de Vieira, o jesuíta italiano Mateus Faletto que terá influenciado outro jesuíta que
Muitos jesuítas a exemplo de Vieira enfrentaram o Santo Ofício e sofreram punições por
suas idéias e escritos serem considerados heréticos. Uns sofreram com o interrogatório da Mesa
do Santo Ofício outros foram queimados. Uma obra de grande importância e que se transformou
750
ROMEIRO, Adriana. À roda da Clavis Prophetarum: a trajetória de dois leitores de Vieira. In:
ABREU, Márcia (org.). (2002: 268).
751
Idem., p.249.
312
num livro pouco conhecido é o que foi escrito pelo jesuíta chileno Manuel Lacunza (1731-1801):
La Venida del Mesias en Gloria y Magestad. É interessante observar que a autoria do livro é de
um suposto judeu convertido ao cristianismo, cujo nome que aparece na capa do livro é: Juan
Josafat Ben-Ezra. O livro traz na abertura uma carta do padre frei Pablo de la Concepción,
Carmelita Descalço dando aprovação de publicação do livro.752 Apesar da aprovação, esta obra
de exegese (com bastante cuidado com as citações bíblicas e concordância do sentido de cada
passagem) e profecia foi parar no índice dos livros proibidos em 1824. Vale lembrar que a obra
dos impérios, a partir da leitura do livro de Daniel, concentra a sua crítica contra a cristandade753.
A sua leitura das profecias de Daniel se inserem num discurso que decreta o fim da história pela
752
Assim diz o início da carta: “Pocas cosas se han encomendado a mi cuidado que hayan puesto mi
ánimo en tanta perplejidad y angustia como la censura que Vuestra Señoría me manda dar sobre la obra
intitulada: La venida del Mesías en gloria y majestad, compuesta según aparece por Juan Josafat Ben-
Ezra, que se supone judío convertido a nuestra religión cristiana, católica, apostólica, romana. La causa
de mi angustia, señor, es la misma grandeza de la obra, y el conocerme, como en realidad me reconozco,
incapaz de dar sobre ella un dictamen firme y seguro, que deje tranquila mi conciencia, y la descargue
de la responsabilidad que se teme, ora la condene, ora la apruebe. Habrá ya como veinte años que leí
por la primera vez dicha obra manuscrita con todo el interés y atención de que soy capaz. Desde
entonces se excitó en mí un vivo deseo de adquirirla a cualquiera costa, para leerla muchas veces,
estudiarla, y meditarla con todo el empeño que ella se merece y que yo pudiese aplicar. Logré mi deseo
en efecto, y ya hay algunos años que tengo a mi uso una copia, que he releído cuantas veces me lo han
permitido las demás ocupaciones anexas al santo ministerio sacerdotal, y a los deberes de mi profesión.
Todas las veces que la he leído, se ha redoblado mi admiración al ver el profundo estudio que tenía su
autor de las Santas Escrituras, el método, orden, exactitud que adornan su obra, y sobre todo la luz que
arroja sobre los más oscuros misterios y pasajes de los libros santos.” (pp.XVII-XVIII). In: LACUNZA,
Manuel. La Venida del Mesias en Gloria y Magestad. Tomo I, Mexico: R Ackerman, Strand, 1826. Cópia
da Biblioteca Nacional do Chile: http://www.cervantesvirtual.com/ (retirado da Internet 11/Março/2005).
753
Eis um resumo apresentado por Juan Bulnes Aldunate: “O primeiro daqueles império, simbolizado
pela cabeça de ouro da estátua, foi o babilônio, como o afirma a profecia. Este império estendeu-se sob
as dinastias medas e persa. O segundo destrói o primeiro e é formado por Alexandre Magno, simbolizado
pelo peitos e braços de prata. O terceiro, que acaba com o anterior, foi o romano, representado pelo
ventre, que se divide em dois músculos e é todo de bronze. O quarto império, simbolizado pelas pernas de
ferro, com os pés e os dedos, parte de ferro e parte de barro cozido, correspondia ao conjunto de nações
que formam o que hoje chamamos “mundo ocidental cristal. Como diz a profecia, os dedos não
conseguem unir-se entre si, como o demonstra a dissemelhança de materiais. Mantêm-se unidos porque
obedecem aos mesmos interesses e mantêm ideologia comum, apesar das dissenções e guerras que se
sucedem entre as nações européias que aí estão representadas”. ALDUNATE, Juan Bulnes. Manuel
Lacunza: conteúdos teológicos e filosóficos de sua interpretação profética. In: RICHARD, Pablo (org.).
(1988: 158).
313
apresenta um milenarismo transgressor.754 Talvez por isso, sua leitura da Bíblia (nesta única
apresenta alguns dos seus objetivos, entre os quais destacamos o convite para que os
preciso perceber que o livro de Daniel seja na sua concepção, seja na dinâmica de releitura. Nos
relatos aramaicos a vida de fé dos judeus fiéis à tradição busca uma integração social e ao
mesmo tempo elabora uma crítica ao poder político através da ridicularização aos reis e
governantes. No livro das visões aponta para os leitores que é preciso discernir as ações políticas
e buscar a resistência como uma resposta urgente. No texto grego , o grito dos torturados, de
Susana e do povo chega aos ouvidos de Deus que escuta e age em favor dos fiéis e piedosos.
754
PARRA C., Fredy. (2000: ): “El milenarismo de Lacunza, no obstante sus limitaciones, afirma de un
modo negativo que la historia, a pesar de todo, tendrá un fin positivo. A diferencia de otros sistemas que
igualmente subrayaban la decadencia de la historia sin alternativas, el lacunzismo permite percibir en el
horizonte un largo período de paz y felicidad antes del término definitivo de la historia. No evita
representar lo irrepresentable, objetiva aquello que quizá escapa a toda objetivación, exponiéndose con
ello a la inconsistencia de su sistema. Con todo, afirma que para superar la tragedia de un tiempo
irredento la historia tiene que transfigurarse. Y esta transfiguración es un drama que compromete al
mismo Dios; por ello es, finalmente, un acontecimiento de Gracia. La voluntad de Dios es el poder
determinante de la historia, ya que El es el único Creador, origen de la vida y de la historia, y El mismo
es el poder consumador que llevará la historia a su plenitud dando cumplimiento a sus promesas. Es
evidente la relación con el profetismo y la apocalíptica, por un lado, y con el pensamiento utópico, por
otro. Esta doble y crítica relación genera otra crucial ambigüedad en su interpretación. Considerado
desde el profetismo bíblico, el milenarismo lacunziano podrá ser visto como transgresión ilícita por su
fuerte componente apocalíptico. Asimismo, analizado desde el racionalismo utópico moderno podrá ser
identificado como una forma "primitiva y mítica", donde la libertad lúdica y la fantasía del pensamiento
utópico aún no han conquistado su plena emancipación.”
755
“Deseo y pretendo en primer lugar, despertar por este medio, y aun obligar a los sacerdotes a sacudir
el polvo de las Biblias, convidándolos a un nuevo estudio, a un examen nuevo, y a nueva y más atenta
consideración de este libro divino, el cual siendo libro propio del sacerdocio, como lo son respecto de
cualquier artífice los instrumentos de su facultad, en estos tiempos, respecto de no pocos, parece ya el
más inútil de todos los libros. ¡Qué bienes no debieramos esperar de este nuevo estudio, si fuese posible
restablecerlo entre los sacerdotes hábiles, y constituidos en la Iglesia por maestros y doctores del pueblo
Cristiano! Deseo y pretendo lo segundo, detener a muchos, y si fuese posible, a todos los que veo con
sumo dolor y compasión correr precipitadamente por la puerta ancha y espacioso camino hacia el abismo
horrible de la incredulidad; lo cual no tiene ciertamente otro origen sino la falta de conocimiento de
vuestra divina persona: y esto por verdadera ignorancia de las Escrituras Sagradas, que son las que dan
testimonio de Vuestra Merced. Deseo y pretendo, lo tercero, dar alguna mayor luz, o algún otro remedio
más pronto y eficaz a mis propios hermanos los judíos, cuyos padres son los mismos de quienes
desciende Cristo segun la carne.” (pp.XXXIV-XXXV). In: LACUNZA, Manuel. La Venida del Mesias en
Gloria y Magestad. Tomo I, Mexico: R Ackerman, Strand, 1826. Cópia em pdf. retirada da Biblioteca
Nacional do Chile pela Internet: http://www.cervantesvirtual.com/ no dia 11/Março/2005.
314
Ler o texto bíblico politicamente é ter presente que a comunidade é o lugar privilegiado
para a leitura e que existe nas entrelinhas do texto um projeto que alimentas as esperanças de
4. Haveria que considerar a sua presença no imaginário popular. Que o livro de Daniel
carrega as marcas de um mundo letrado não é difícil de perceber. Porém, o desafio que persiste
Nesta perspectiva, o livro de Daniel tem grande assento no meio popular. Alguns anos
atrás, fui convidado para fazer um encontro bíblico com os sofredores da rua, organizado pelo
grupo Fraternidade Povo de Rua (que trabalha com sofredores de rua portadores do vírus HIV),
num salão comunitário do Brás e o tema do encontro era “Prisão na Bíblia”, por causa da
Campanha da Fraternidade daquele ano. Comecei o encontro contando alguns casos da Bíblia e
para o meu espanto os sofredores que ali estavam sabiam contar as narrativas de José vendido
pelos seus irmãos no Egito (Gn 37ss) e de Daniel na cova dos leões (Dn 6). Por este dado
podemos imaginar o quanto nos meios populares letrados ou iletrados conhecem o texto que
756
PIXLEY, Jorge (1999: 100): “Se conseguirmos reconhecer o aspecto político na construçao de livros
como, digamos, Amós ou Lucas, estaremos em melhor situação para ler estes textos como Palavra de
Deus, sem deixar que isso nos torne impositivos em relação aos que não participam de nossos projetos.
Toda leitura bíblica tem um aspecto político, assim como todo texto tem um projeeto político que afetou a
sua produção”.
757
DEWEY. Joanna. (1998/3: 28-9).
315
lhes foi transmitido de algum jeito. Neste encontro não dava para ficar lendo o texto bíblico, mas
sim contando o texto como contavam os nossos pais e avós. Eis um elemento que ainda temos
de perseguir na leitura do livro de Daniel em nosso contexto cultural. É preciso buscar a presença
do livro de Daniel nos folhetos populares, na literatura de cordel e nas histórias orais espalhadas
pelo Brasil.
Assim, termino esta pesquisa com a sensação de que há muito ainda pela frente. Muitas
povo sofrido.
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