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Manoel Constantino
ARDÊNCIAS
Manoel Constantino
ARDÊNCIAS
Ângelo Monteiro.
Brinquedo
Nunca mais
Clowns
Portas
Ao abrir a porta
estarei frente a poesia
com olhos e coração
de um grande bandido.
A palavra,
língua da minha língua,
dói hoje diferente:
mais bruxa
mais abismo.
Plurais
Desempate
Para Celina de Holanda
Paralelas
Caminho
Segundo fragmento
Retalhos
Comportas
Arrecifes
Tem horas que fico faiscando.
Arrecifes
nunca devem ser lapidados
por isso sonho coisas
cheias de mar e sargaços:
Recife não me quer manso.
A radiola de ficha
quase à beira do cais
nunca mais adeus
nem flor de papel crepom.
Recife, pedra minha,
um dia te encontro desprevenida
e então contarei uma lenda
com cheiros de frutos e flores
só para te encabular.
Detalhes
Vontades
Escalas
Varanda
Nunca pensei
no peso das palavras.
Hoje elas caíram da estante
e eu só tinha duas mãos
o susto do sol
pulando para os olhos
o canto do galo
espiando
o dia.
Reunião. Gato Dentro D'água.
Confissões de Um Pecador.
Tópicos de Matemática.
Noticiário. A Mão Extrema
e A Paixão Medida.
São tantos sentimentos
escapulindo dos homens
que olhei para a cidade
e a amei lívido.
O coração é uma passagem
aberta na margem do rio.
Silêncio
Mergulho no Recife
sem argumentos.
Mão
e contra-mão
adiante
o silêncio branco
que se incrusta em mim
- entre a vida e cidade erguida -
branco.
Para reter o sonho
como o alvo se entrega à flecha
será preciso amor,
a paz ferida
e avenidas latejantes.
A casa
Curta-metragem
Para Sílvia Melo
A vida é curta
eu sei.
Apodrece como qualquer fruta.
Nasci assim
uma mistura
de pedra
e água,
subindo
e descendo
as ladeiras da Ribeira do Panema
- terra que borbulha no meu sangue -
água e pedra.
Mas não me desespero
com o final do século.
Procuro a matéria-prima
para talhar um sorriso.
Fura-bolo,
cata-piolho.
Moleque, insisto no cotidiano:
doce
e
dilacerante
O menino
Não haverá o segundo ato.
Só a canção, a dança final,
os aplausos,
a poltrona vazia:
o menino fugiu
misturando caos e calma
para não sentir
o mistério
dos caminhos cruzados
nem a sensação antecipada
das cortinas fechadas.
Cansaço
Estou no caminho
da
montanha
e
ainda
não
sei perdoar.
Tatuagem
Os pássaros
Os pássaros quase sem fôlego
descortinam o mundo.
Apesar de tanta dor,
da falta de rumos
o coração é o mesmo:
ritmo alucinado
de querer mais
beijar mais tudo e todos.
O sonho do poeta
galopa por ruas
assombradas do Recife.
A multidão não responde
nem olha.
Que estranha forma é essa
de percorrer caminhos tão secos?
O que me resta:
a lua me desgoverna
e os grilos cantam.
Dose dupla
Criar.
Recriar.
Repetir em doses duplas
a vida.
Que importam os abismos?
Que importam tantos sinais
truncando sonhos e desejos?
À invasão de poemas
no cotidiano das minhas ruas!
Respiro o mundo com a urgência
dos mortais
mas detenho-me nos fins-de-tarde
a contemplar certos sorrisos soltos, à toa.
nas mesas dos bares.
Restam asas
e
a possibilidade do vôo.
Mar arregaçado
Em cores de arara
meu corpo espera.
Meus olhos são os olhos do Recife
estranhos vigilantes de um cais ferido.
Rasgada a garganta de espanto
meus gritos são farpas elétricas adormecidas.
O coração,
mar arregaçado,
espera dias e noites.
Ualri revelou os segredos
e há trezentos e sessenta luas
que não canto.
Memória
Barco à deriva
nos mares de amores perdidos.
Vejo, através de espelhos
quebrados em mim,
largos ancoradouros vazios:
não quero mais
olhar através dessas retinas
nem procurar nos dicionários
o significado das cartas
marcadas no revólver da vida.
Olhos ancestrais
O agudo
Acabei de respirar o oco de mim.
O corpo dança,
o coração suspira
sou o agudo do agudo
e por isso precipito:
o mais -que- perfeito
não previu
o verbo que desejo.
A busca
Feriado
Por enquanto perdi
os parâmetros
do trânsito
e tudo fica esquisito.
Miar nos telhados
- o céu é uma multidão -
e o chão da cidade
é o outro lado.
Aqui não há entrelinhas:
O mundo é uma grande besteira
por isso me enfeito
ponho o paletó preto
saio engomado
pronto para conquistas tolas
em dia de feriado.
Há alguma coisa
que mortifica:
sair por aí
na pressa de ser encontrado.
Transitoriedade
Ah! Meu amor
estou em trânsito.
Nunca cavalguei
tantos mistérios,
nunca desvendei
tantos segredos,
estranhos locatários,
guardados em mim,
enovelados.
Ah! Meu amor
só agora ouvi o ranger
dos portões.
Só agora percebi
que vivo te atravessando
e te amando há séculos.
Estou em trânsito,
bebendo, precipitado
de invernos.
Amanhã, nem sei se nos veremos
e entre notícias de jornais
rasgo gritos, vaidades,
taças quebradas:
jogos nos quais nos perdemos.
Coração terrorista
Nas entrelinhas
Outra vez sento-me
em tua mesa.
Os copos transbordando
guerras antigas
e silenciosas.
A paixão contida
revelada somente
nas entrelinhas
das bocas
dos olhos.
Pactuamos diante do tremor
súbito de nossas mãos.
Canso-me e recolho
todas as armas.
Não sei até quando
estarei enfermo de amor
e, por isso, estremeço.
Golpes
No meio da noite
planejo golpes certeiros
preparo como um perito
mais de uma navalha.
A vida?
A vida é bem amolada.
Qualquer esquina
pode ser o local do crime
e à beira dos semáforos
espero, em guarda,
atrás de qualquer poste.
Num salto irrecusável de felino
darei a minha boca
a fotografia preferida
e o corpo amadurecido.
Paixão avessa
Quando te vejo assim tão vulgar
meu corpo, meu coração
em réstias de luz tropeçam
mas tens a beleza que ainda não compreendo
e o ar, os ventos, as árvores,
as coisas mais sensatas
perdem os seus significados.
Vagueio pelas noites
com gosto de vida de vidro na boca.
E corta.
Quando te vejo chegar pela janela do quarto
invadindo lençóis,
brincando com o meu pênis ereto,
deixo-me entregue à cidade.
Quando te vejo chegar e partir
a vida fica ausente
e eu, perplexo e vulgar.
Visitas
Trilhas
As horas passeiam
avisando-me do tempo.
O que somos está grudado nas paredes
dos meus olhos,
no gosto que trago na boca.
Lanço-me para além do mundo
em pele de animal uivando.
O que importam os semáforos, verde, vermelho,
amarelo
quando nem sequer chegamos ao abismo
de nossa palavra?
A paixão tem medida?
Não te olho através das sombras.
Vejo-te em "outdoor", em revistas semanais.
nos filmes de fins-de-semana,
em certas coisas: a xícara de café,
a toalha ainda molhada, os cheiros da manhã,
a cama desarrumada.
As horas passeiam.
Não te olho através das sombras.
Vejo-te e me espelho
sem a dor de me saber partido ao meio.
O caminho é longo
e há curvas que me ferem.
E te convido.
Sempre.
INTERPOÉTICA - um espaço alternativo para a poesia
www.interpoetica.com
ARDÊNCIAS
Manoel Constantino
Ardências
Somos vagalumes na noite
envergados por todos as cores
num jogo louco
de mar e rio
desaguando amor e amor
estuários e arrepios.
Somos o fogo.
Ponho-me de joelhos.
Agradeço a Deus
tanto desejo e gozo.
Tudo é elétrico.
O mundo é apenas o mundo.
Nós somos abundantes
como as trovoadas.
Aprendiz
Beba um pouco de mim
enquanto atravesso a cidade.
Em cada rua à meia luz
um beijo de aprendiz
abraços mais fortes
de pernas e mãos selvagens.
Beba um pouco de mim
já que sou insaciável.
Quero vida
e vida
e vida
seiva bruta
esbraseada.
Beba um pouco de mim
para que eu possa
atrapalhar a morte
que em cada esquina
se anuncia e me provoca.
Ultimo trago
O tempo é estranho
quando estamos vagos.
As paredes do apartamento
guardam as sombras
os gestos
da última paixão.
Num canto do quarto
reencontro de corpos:
uma peça íntima resoluta
sob um velho par de sapatos.
Vou
até a janela,
não a escancaro
mas mergulho na paisagem
bebendo a presença retida,
recomposta na memória
como o último
e definitivo trago.
Entrega
Certas manhãs
possuem a tua audácia
denunciada na cama
entre silêncios
e longos arrepios.
Te dou meu verso
como te dou meu corpo
até mesmo em certas manhãs
quando revelamos ausências
e a cidade denuncia sombras
em cortes e cacos
de vidros.
O filme
A lâmina, a poeira, a cinza dos cigarros
o uísque bebido às pressas,
roupa azul na cadeira,
sapatos desencontrados no chão...
feridas propositalmente esquecidas,
confessei a paixão,
a mais imediata de mim.
Somos protagonistas de um filme antigo
com desejos em "close",
depois detalhes,
um corte brusco
denunciando o grande final,
sem despedidas.
No cenário vazio
apenas as luzes dos holofotes
continuarão acesas.
Quase camuflado
fiquei só,
sem espelhos, sem medidas.
Lá fora
os edifícios fazem sombras
a platéia muda e transeunte
inventa um outro dia.
Fragmento V
É estranho beijar
breve e ríspido
como uma ordem-do-dia
para depois seguir
a rota
nos mares da cidade.
Abismo
Ao amigo Eduardo Diógenes
Lição
Fim de jogo
Eles caminham pausadamente
um ao lado do outro,
tudo flui fácil e veloz,
uma arara grita no parque
do meu coração.
Vídeo game
É estranho pensar:
amanhã escreverei uma longa carta.
É tudo tão rascunhos!
A cidade me escapa
em videoteipe remendado.
A paixão se quebra
no meio da emoção.
Depois, só ruídos e máquinas.
Gostaria de apagar as luzes
embrenhar guloso
na escuridão da estrada.
Lição de casa
Alegria rubra
Sonhei conhecer uma mulher
saída do mar
rasgando terras.
Uma mulher vermelho-amarelada
que me ensinava os segredos
das réstias que ferem as janelas.
Sonhei conhecer
e pertencer
a uma mulher publicamente
e então uma rubra alegria
me fez despetalar
o tempo.
Fragmento
Com as cores nas mãos
apostei:
atravessaríamos as pontes
antes que o sol se pusesse
em sagitário.
Você mergulhou no Capibaribe
- uma flecha em ânimo para o alvo -
pensando ser, os reflexos, Paris.
Abobalhado
comecei a procurar os girassóis
para me encadear às margens,
pássaro do infinito
abandonado.
Mas considerando a lógica
tomei-me um alucinado
de jugular saliente
e andar encharcado.
À Celina de Holanda
Ao Emanuel Cavalcanti
Solidão
A gente inventa
sonhos
para morrer
todos os dias.
Outras vezes,
esquecemos palavras,
endereços,
para morrer diferentes:
cada um no seu deserto.
Algemas
Por que essa demora
em quebrar as algemas
enferrujadas
e frias?
Há ratos roendo a espera
- estação de desejos -
e uma cigarra
rompe a vida
diante do espelho.
Dia de festa
A palavra
Percorro os caminhos
da pedra e do riso.
Certas palavras
não deviam ser escritas,
já dói a dor
de senti-Ias.
O resto de nós é compreensível.
Silêncios
Decreto
Ontem foi um dia comum,
meio morto,
vago e indelicado.
O mundo solta muitos
suspiros,
o homem sonolento
atravessa por atravessar
suas próprias ruas
e o olhar não é mais o olhar:
decreto então o riso
como sentença
e o espelho, como o outro lado
- o que está invisível dentro de mim -
porque os mesmos gestos
me cansaram.
Eu quero o poema
tomando-me a noite,
revirando o dia
ultrapassando o tempo
reiventando-me
de intensa alegria e gozo.
O músico