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IFCS
Doutorado em Antropologia
PPGSA
Mirian Goldenberg
orientadora
Rio de Janeiro
março de 2006
ii
O GÊNERO DA TATUAGEM
Aprovado por:
___________________________________________________
Profa. Dra. Mirian Goldenberg - Orientadora
___________________________________________________
Profa. Dra. Yvonne Maggie
___________________________________________________
Prof. Dr. Michel Misse
___________________________________________________
Profa. Dra. Marta Perez
___________________________________________________
Prof. Dr. César Sabino
___________________________________________________
Prof. Dr. Everardo Rocha - Suplente
___________________________________________________
Profa. Dra. Rosilene Alvim - Suplente
Rio de Janeiro
2006
iii
RESUMO
ABSTRACT
From field work in two studios in the city of Rio de Janeiro, between 2003 and 2005, I
could observe some uses concernig tattoos. Between these uses are, specially, body
embelishment, mistic protection, expression of feelings. But also other factors, as the
perception of a higher or lower personal autonomy related to family, State and work
market. The studied universe, permed by a majority of feminine clients, has pointed to gder
eelations analogous to those seen in carioca society, which determine apropriated body
areas to de draws, as mucha as apropriated feminine and masculine draws. Thus, I observed
a continuity os uses pointed by authors about the past of the practice in Wertern world, seve
embelishment practices. At the same tme, this continuity is associated with the structural
status (position) of the tattooed before the tatto mark.
vi
“Um dos vieses através dos quais se exercem as censuras sociais é precisamente esta
hierarquia de objetos considerados como dignos ou indignos de serem estudados.”
Pierre Bourdieu
vii
AGRADECIMENTOS
Ao CNPq pela dotação de bolsa de pesquisa, sem a qual o presente trabalho não seria
possível.
Ao PPGSA, na forma de seu corpo de docentes e funcionários, cujo apoio foi fundamental
no bom desenvolvimento desta pesquisa.
A todos os estúdios visitados, em especial aos estúdios onde a observação de campo foi
realizada, ao seu apoio, à sua atenção e ao seu interesse. A todos os profissionais que me
abriram as portas, que dedicaram seu tempo a me prestar informações e que se interessaram
por este trabalho. A Lúcio, Rai, Lia, Alex, Marcus, Magathi, Marquinho, Leco, Dani,
Nilson, Wagner, Alda, Gi, Mariana, Emerson.
A Laura e Jane, que com suas presenças mágicas fizeram as portas dos estúdios se abrirem
para mim. A Dax e Ângelo que lembravam carinhosamente de mim toda vez que
conheciam uma pessoa tatuada ou um tatuador, fornecendo indicações ou me colocando em
contato com os mesmos.
A todos os amigos que puderam contribuir, de alguma forma, com o presente trabalho, com
seu apoio, atenção e carinho, em discussões antropológicas ou em caras palavras de
incentivo, que foram cruciais. Neste sentido, preciso agradecer especialmente a Márcia
ix
Anute e Christian Lynch, Rodrigo Rosistolato e César Sabino. A César agradeço também
pela constante troca de idéias, que se fez terreno fértil para que as análises florescessem.
A Dax agradeço, ainda, a dedicação das leituras e correções, das discussões intermináveis,
de toda a inspiração que seu próprio trabalho me ofereceu e de sua mera presença física,
que foi fundamental.
À minha família que acreditou em minha capacidade para viver de Ciências Sociais no
Brasil.
x
SUMÁRIO
Introdução 01
TABELAS:
GRÁFICOS:
Gráfico n. 2 – Percentual dos bairros da Zona Norte onde mais freqüentemente residem os
clientes do estúdio pesquisado 94
Gráfico n. 3 - Percentual dos bairros da Zona Sul onde mais freqüentemente residem os
clientes do estúdio pesquisado 95
Gráfico n. 12 – Desenhos mais populares sem distinção por gênero, em percentuais 143
QUADROS:
INTRODUÇÃO
uma visão da prática como individual, vivida subjetivamente. Esta subjetividade não é, de
meu ponto de vista, o cerne da explicação do uso de tatuagens. As marcas não são fruto da
expressão de uma individualidade, simplesmente, mas de uma busca por se viver
plenamente esta individualidade frente a um contexto social que é experimentado pelo
sujeito como restritivo a sua autonomia pessoal.
A problemática da autonomia, que aqui é a hipótese para o crescimento do uso de
tatuagens entre mulheres, surgiu de estudos sobre o uso de tatuagens em meio prisional
(SCRADER, 2000). Esta idéia foi utilizada para explicar a atual popularidade da tatuagem
em todo o Ocidente, por meio do conceito de posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON,
2002). A posse de si é a marca de uma individualidade, uma autonomia pessoal, na forma
de marca pessoal de propriedade sobre o próprio corpo. É o exercício, a tentativa de
exercício ou o enunciado/comunicado de que o sujeito, dentro do corpo marcado, é
soberano sobre si. Corpo e subjetividade fundem-se e foram separados aqui, segundo a
tradição ocidental (corpo versus mente), apenas por questões analíticas. A posse de si não é
a posse do corpo, mas a posse do indivíduo como um todo, corpo e mente.
Imbricados em uma sociedade que ainda não permite o mesmo grau de autonomia
para homens e mulheres, jovens e adultos, mulheres e jovens foram percebidos neste
trabalho como em busca justamente da posse de si. Mesmo os adultos aqui estudados vivem
mudanças na vida que parecem retirar deles o controle que talvez sentissem exercer sobre si
mesmos.
Devo mencionar, ainda, a forte influência da obra de Gell (1993) sobre a tatuagem
polinésia como fonte rica de inspiração para a abordagem da popularização da tatuagem e
sua mudança de público, não como assentada sobre uma subjetividade individual de cada
tatuado, mas em processos sociais mais amplos. A obra do autor, formulada a partir de
elementos constitutivos das sociedades polinésias e de sua comparação, permitiu uma
análise que tenta percorrer o mesmo objetivo: verificar o que há na sociedade atual que
permitiu a explosão (o autor diria “epidemia”) do uso de tatuagens.
* * *
3
O ponto de partida foi uma lembrança de adolescência, das tardes em que fui levada
a um dos estúdios pesquisados por uma amiga interessada em tatuagens, surfistas, rock na
Rádio Fluminense FM e namorados. 14 anos de idade e nenhuma idéia do que era ser
tatuada. Não adquiriu a marca, que eu saiba. Uma vida acadêmica depois, encontrei-me
discutindo com a então orientadora do mestrado, o que gostaria de estudar. Surgiu, então, a
idéia: “todo mundo se tatua hoje em dia. Eu gostaria de saber o por que”. Eu também
queria. Já havia pensado sobre o assunto sobre o viés das teorias da identidade do sujeito
moderno, abordagem que foi abandonada muito cedo em prol de uma mais antropológica.
Eu havia feito uma tatuagem anos antes, um processo extremamente doloroso,
sangrento, caro e cujo resultado final foi de gosto duvidoso. Saí da casa do tatuador com
um pedaço de papel de pão fixado na pele com fita crepe e sangrando tanto que não podia
tocar no encosto da poltrona do ônibus que tomei de volta para casa. Se a camiseta que usei
no dia não fosse negra, talvez tivesse uma dimensão mais justa do quanto sangrei. Minha
mãe, ao ser testemunha da marca da aventura, repetiu o que descobri mais tarde que tantas
mães repetem nestas horas: “ah, tá bom... mas é a última, né?”. Esperara anos para ser
tatuada e só tive o ímpeto às custas do exemplo de uma amiga e do desconto de 50% que o
tatuador me concedeu (um aprendiz). E ainda assim amava profundamente aquele rabisco
borrado na pele. Orgulhava-me dele e de mim. Por quê? Fazia sentido a pergunta.
Retornei ao estúdio das lembranças de adolescência, adquiri três novas tatuagens ao
longo destes outros tantos anos, acho que sei um pouco mais sobre como funciona esse
universo e talvez possa responder por que as pessoas se tatuam. Só não sei dizer porque me
tatuei, mas mantenho um firme amor pelo primeiro borrão na pele.
Mantendo minhas lembranças sobre o universo das tatuagens, parecia-me que se
tratava de um mundo essencialmente masculino. Minha segunda marca foi adquirida muitos
anos depois da primeira, mas antes de sequer pensar em doutorado. Fora, então, à casa de
um tatuador recomendado no boca-a-boca. Ele mantinha um cômodo da casa, próximo à
porta da rua, como estúdio. Havia sofá, mesa, espelho, muitos desenhos pelas paredes e
uma estufa para esterilizar o material. Os desenhos em questão representavam caubóis,
índios, mulheres seminuas, animais selvagens, surfistas. Nada ali presente retratava algo
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que eu julgasse parte do universo feminino. Não obstante, eu não era a única cliente
mulher. Apenas o local não estava voltado para as mulheres como público.
Duas tatuagens depois, eu ainda não tinha a menor idéia de como funcionava um
estúdio nem de quem eram os tatuados. Faço esta observação porque “os tatuados” não
formam um grupo social como “os funqueiros”, “os surfistas”, “os índios” e mesmo “as
mulheres”. Se nem todos os funqueiros são iguais, se “as mulheres” é uma terminologia que
encobre as diferenças de geração, cor, classe, orientação sexual, entre outros, mesmo essa
generalização não faz sentido quando se trata dos tatuados. Não são um grupo social porque
não apresentam uma cultura comum, relacionada à prática da tatuagem. Pode-se ter mais de
uma marca e ainda assim não saber como esse universo funciona, quais são seus valores,
suas crenças, suas hierarquias, etc. Os “donos” deste cosmo são os tatuadores, profissionais
desta arte de embelezar a pele. Juntam-se a eles apenas alguns poucos interessados,
normalmente extensamente marcados, com mais de 10 tatuagens pelo corpo. Estes
freqüentaram os estúdios por tempo suficiente para aprender algo da prática. Foi
freqüentando os estúdios, então, que aprendi muitas coisas também.
A memória de um mundo masculino norteou uma de minhas primeiras hipóteses, a
ser rejeitada pelo campo, em um primeiro aprendizado nos estúdios: o universo dos
tatuadores é masculino, mas a maior parte de sua clientela hoje é formada por mulheres.
Para elas, os estúdios passaram a oferecer maior privacidade. Para elas, foi desenhada toda
uma gama de representações da feminilidade. Elas movimentam financeiramente os
estúdios, mas são os desenhos maiores, habitualmente escolhidos pelos homens, aqueles
mais valorizados e considerados artísticos. Segunda lição do campo: ser a maioria não faz
de você um elemento valorizado.
Uma segunda hipótese era a de que o uso de tatuagens estava relacionado a grupos
jovens, as conhecidas tribos urbanas. Mais uma hipótese que o campo derrubou. Nada nos
estúdios pesquisados indicava que o público por excelência das tatuagens fosse formado
por roqueiros, surfistas, moderninhos, skatistas, ou quaisquer outras vertentes. Em um dos
estúdios pesquisados, a presença de surfistas era forte, mas nunca a maioria do público
local. As tribos urbanas utilizam tatuagens, é fato, mas não são elas que movimentam os
estúdios. O campo demonstrou, ainda, que uma boa parcela do público da tatuagem carioca
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nem ao menos pode ser considerado “jovem”. Há uma faixa acima dos 30 anos que se tatua
tanto quanto os “jovens”.
Rejeitadas as primeiras hipóteses, oriundas claramente de um senso comum sobre a
tatuagem, coube a tarefa de compreender quem era o público dos estúdios pesquisados, o
quanto a prática estava disseminada por diferentes classes sociais, gerações, gêneros.
Perguntava-me, ainda, quais os significados que os tatuados davam às suas marcas,
algumas vezes tão criteriosamente escolhidas, outras vezes oriundas de um ímpeto de
momento.
Observei, então, que o universo da tatuagem estava segmentado em função do
gênero. “Desenhos femininos” se contrapõem a toda uma gama de estilos de tatuagem,
normalmente pensados como “para os homens”, embora sejam minoria nos estúdios.
Desenhos menores, típicos das mulheres, não são valorizados, pois levam o estúdio a ser
escolhido pelo preço mais do que pela qualidade do profissional, uma vez que o tamanho
diminuto inviabiliza os detalhes que dão qualidade mais ou menos artística à tatuagem. Os
locais do corpo são criteriosamente escolhidos pelos clientes em função de sua associação
com o feminino e o masculino, raramente operando-se inversões. Assim, foi construída
uma visão de que braço é lugar de homem, por exemplo, enquanto lombar, pé e nuca são
lugares de mulher. Tatuagem grande é coisa de homem e pequena “de mulherzinha”.
Homem tatua dragão, tribal, pitbull. Mulher tatua flor, borboleta, estrela.
Na visão masculina reinante, a “mulherzinha”, que não quer sentir dor, faz uma
tatuagem pequena. Elas reclamam da dor nos estúdios, pedem pausas, fazem caretas. São
vistas como fracas, “frescas”, sem coragem. Ignoram estes homens que elas tatuam locais
dolorosos, como o pé. Ignoram ainda que a extensão dos desenhos tem uma correlação
direta como esta visão de que a mulher é sempre menos do que o homem. Mas não ignoram
que seu silêncio nos estúdios é parte de sua prova de virilidade, pois “homem de verdade”
se submete à dor calado, demonstrando força e coragem. E assim foi que percebi que tudo
em um estúdio de tatuagem se refere a uma estrita divisão entre os gêneros que reproduz,
como em nossa sociedade, valores e hierarquias entre homens e mulheres sobre o
masculino e o feminino. Esta hierarquia chega à própria atuação como tatuador, profissão
masculina. As mulheres dominam apenas as recepções e aplicações de piercings, atividade
que não é considerada artística, portanto de menor valor.
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1
Todos os nomes são fictícios, exceto o de seu Nelson.
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fichas eram material para que o contador fechasse as contas mensais do estúdio da Tijuca, o
mesmo não ocorria em Copacabana. Assim, as fichas se tornaram lá um procedimento
meramente formal, sem utilidade para o estúdio. Em segundo lugar, observei que não era
hábito fazer com que clientes antigos, que eram a maioria enquanto efetuei a observação de
campo, preenchessem tais fichas.
Concluí que a consulta a este cadastro não forneceria material que possibilitasse
formular um perfil fiel à clientela do estúdio. Abandonando, portanto, a idéia de compará-
los por meio das fichas, esta comparação restou limitada aos procedimentos observáveis em
campo, ou seja, à forma de se organizar o estúdio como negócio, o grau de amizade entre
tatuador e cliente, o custo dos trabalhos efetuados, entre outros pontos. O estúdio contava
com dois tatuadores e um piercer. Observei que a freqüência de clientes era menor do que
aquela no estúdio da Tijuca. O grau de amizade entre proprietário e clientes também era
distinto. A relação entre tatuador e proprietário também era significativamente outra.
Em Copacabana, o proprietário tatuava mais clientes do que o segundo tatuador
(COSTA, 2004), situação que não foi vista na Tijuca. O segundo tatuador usufruía de um
tempo livre maior. Assim, a quase totalidade das conversas entre tatuador e cliente
observadas no estúdio de Copacabana foram travadas entre o proprietário e clientes antigos
da loja. Com o segundo tatuador, conversei várias vezes, conversas de natureza mais
informal sobre a profissão, os sonhos do profissional, o início da carreira.
Tornei-me próxima dos profissionais deste estúdio de uma forma que não ocorreu
na Tijuca. Observei, portanto, que reproduziam comigo a relação que mantinham com os
clientes, menos introspectiva, mais falante e mais próxima a uma amizade. Mesmo a
esterilizadora do estúdio passava as tardes conversando comigo, tocando inclusive em
assuntos de sua vida pessoal, de conhecimento de todos no estúdio. O piercer, atendendo
também a poucos clientes, tirava minhas dúvidas sobre o funcionamento do estúdio e me
mostrava na Internet, empolgado, as novas possibilidades da técnica. Conheci toda uma
rede de amizades lá, que incluía relações de compadrio. Em um universo menor, habitado
por uma quantidade menor de clientes, muitos eram amigos entre si e quase todos amigos
do proprietário. Fui tratada igualmente como uma amiga.
Aproveitando-me da relação, pude questionar mais os clientes, intrometendo-me nas
conversas que mantinham com o tatuador e efetuando minhas próprias perguntas. Se as
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fichas de clientes não puderam ser utilizadas, as conversas foram conduzidas de forma mais
pessoal. Não tinha receio de estar constrangendo ou sendo inconveniente, pois sentia os
clientes mais abertos a falarem de suas vidas pessoais, suas expectativas, suas idéias.
Todas estas diferenças entre os estúdios me pareceram menos assentadas na divisão
Zona Norte e Sul do que em formas distintas de organização de um negócio, que se
aproximariam do que Weber (1971) chamou de familiar e burocrático. Assim, este foi o
ponto privilegiado da comparação: um estúdio com filiais, fichas de clientes organizadas,
contador, advogados, clientes amigos e não amigos e nove profissionais atuando, de um
lado, e um estúdio com dois profissionais, sem filial, sem fichas de clientes sistematizadas,
sem contador, sem advogado e repleto de turistas e amigos do proprietário como clientela
majoritária, de outro.
Em Copacabana, o proprietário contava que viajava para trabalhar no Caribe a fim
de lucrar mais, pois no Brasil mal conseguia sanar as contas da loja. Na Tijuca, o
proprietário anexava a loja contígua e comprava mobília nova para o estúdio. O
crescimento do negócio, a tatuagem como empreendimento, era vivido na Tijuca, enquanto
em Copacabana o negócio era quase familiar, artesanal, sem grandes investimentos. Este
pareceu o lado mais rico da comparação, lado que se refere, na verdade, a distintas
estratégias de sobrevivência em um mercado em expansão, que tem gerado uma
concorrência que não existia.
Como os casos relatados são oriundos da observação de campo, e não de entrevistas
em profundidade ou mesmo de questionários aplicados, não há informações completas
sobre os sujeitos mencionados. Desta forma, forneço as informações que me foram
possíveis obter em campo. No estúdio pesquisado de Copacabana, eventualmente eu podia
complementar algumas delas fazendo perguntas ao tatuador, amigo de muitos de seus
clientes e, portanto, a par de suas vidas pessoais. Mas nem sempre este método se mostrou
eficiente, uma vez que as perguntas eram interrompidas pela dinâmica do cotidiano do
próprio estúdio e ficavam sem resposta.
Ao longo do presente trabalho, inseri, ainda, uma série extensa de tabelas e gráficos
oriundos das mesmas, de forma a dar visibilidade ao material quantitativo coletado. Embora
relativamente pequeno, pois construído a partir de apenas três meses e de apenas um dos
estúdios pesquisados, o da Tijuca, o material quantitativo permitiu indicar mais claramente
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tendências que poderiam ser consideradas difusas quando apontadas com base apenas na
observação participante. É um material que esclareceu e enriqueceu este trabalho.
Há, também, quadros ilustrativos, que foram limitados à indicação de categorias e
classificações nativas, de forma a permitir uma análise mais profunda sobre as associações
entre determinadas crenças e valores dos sujeitos observados.
Em anexo, incluí uma série de exemplos de estilos de tatuagens, pois a mera
descrição textual não parece conveniente a um repertório imagético tão vasto quanto o da
tatuagem ocidental contemporânea.
No primeiro capítulo, apresento uma síntese sobre o desenvolvimento histórico da
tatuagem ocidental a partir do contato entre ingleses e nativos do Pacífico Sul. Este contato
incorporou a prática da tatuagem entre os marinheiros e deste grupo espalhou-se por outros
grupos europeus, e além da fronteira européia dando início ao processo de popularização
atual da prática. Neste sentido, minha visão da tatuagem contemporânea está permeada por
este desenvolvimento histórico. Creio que a atual popularidade da prática, conquanto se
inscreva em um determinado culto ao corpo belo, é um momento final de um processo
histórico que se inicia séculos antes. Neste processo, a tatuagem é utilizada por diversos
grupos, rompendo progressivamente as barreiras de classe, geração e gênero.
No capítulo II, apresentarei uma reflexão teórica a partir dos principais conceitos
utilizados ao longo da tese. Foram estes conceitos e idéias que possibilitaram o desenho da
presente linha de análise.
No capítulo III, começo a apresentar o material de campo, os próprios estúdios e
seus profissionais, indicando a escolha dos estúdios a serem pesquisados e a metodologia
adotada.. A forma como estão divididos espacialmente, a maneira como se organizam
administrativamente, sua localização na cidade e nos bairros onde se encontram, as
diferenças entre os profissionais e funcionários, a forma de remuneração e pagamento dos
trabalhos executados, a forma como a organização do próprio campo profissional da
tatuagem se apresentou a mim. Este capítulo visa, portanto, situar o leitor sobre os estúdios
pesquisados, de onde provém a maior parte do material qualitativo e todo o material
quantitativo analisados, mas também apresentar algumas regras deste universo, apontando
para uma supremacia do tatuador no processo de tatuagem e sua capacidade de influenciar
os clientes.
14
No capítulo IV, apresento o perfil do público dos estúdios pesquisados. Cor, faixa
etária, sexo e local de residência são os dados principais. Como este perfil foi construído
principalmente a partir de material quantitativo de um dos estúdios observados, tento
apontar que estes dados correspondem, em comparação com dados de outros autores, a um
perfil que parece ser, na verdade, brasileiro, e não apenas carioca ou do estúdio pesquisado.
Neste sentido, foi possível perceber uma predominância feminina e a presença de uma
clientela não jovem da prática.
No capítulo V, descrevo os desenhos mais freqüentemente tatuados a partir do
mesmo material quantitativo, identificando um corte de gênero tanto quanto aos desenhos
como quanto aos locais do corpo a serem tatuados. Apresento, as relações entre os desenhos
e significados expressos por alguns tatuados observados em campo e, ainda, a relação entre
a marca, que pode envolver o desenho escolhido ou não, e o grupo com o qual o tatuado se
identifica, consistindo, portanto, em espécie de marca de pertencimento ou de imitação
prestigiosa (MAUSS, 1994). Neste aspecto, identifico como a imitação é mal vista pelos
tatuadores, que pensam na tatuagem como expressão artística, portanto indigna de cópia,
mas também a relacionam à expressão de uma individualidade que deve ser original ou
autêntica. Aqui se percebe como noções de subjetividade, individualismo, expressão
pessoal e, ao contrário, cópia, imitação e pertencimento constituem uma dicotomia presente
na escolha pelos desenhos a serem tatuados, escolha esta que segue, ainda, uma
diferenciação entre os gêneros.
No capítulo VI, aprofundo esta diferenciação entre os gêneros, indicando situações
observadas nos estúdios em que as atitudes de homens e mulheres são distintas e como se
espera que seja esta distinção a partir do ponto de vista dos tatuadores e dos clientes.
Discuto a liberdade de opção pela marca, influenciada pela família e pelo mercado de
trabalho, o enfrentamento da dor causada pelo procedimento e a idéia de tatuagem
relacionada ao embelezamento do corpo e seu conseqüente uso como arma de sedução.
Neste capítulo, o material de campo permitiu que fosse mais claramente exemplificada a
dinâmica entre revelar e esconder uma tatuagem, conforme apresentada no capítulo
anterior, em função da localização dos desenhos no corpo.
No capítulo VII, descrevo as tatuagens de amor, conforme observadas nos estúdios.
Forma de expressão dos sentimentos, as tatuagens de amor estão amparadas na idéia de um
15
“Antigamente, tatuagem era tida como coisa de bandido, mas hoje nossos filhos fazem.”
Rubem Vasconcelos, presidente da empresa de construção civil Patrimóvel.
1
Não raro os tatuadores apresentam a tatuagem sob a categoria de arte, sem indicar exatamente o que a faz
uma arte. É, desta forma, uma categoria nativa.
19
costume nativo primeiro, tornando-o uma espécie de moda entre os marinheiros a partir de
então. Foram tatuados por mãos nativas e aprenderam a técnica, que depois utilizaram a
bordo. Muitos tatuadores ocidentais dos séculos XIX e XX eram ex-marinheiros. Segundo
Gilbert (2000), já na metade do século XVIII os principais portos britânicos tinham pelo
menos um tatuador profissional2. Muitos marinheiros, ao se aposentarem, estabeleciam-se
nas cidades portuárias como tatuadores (BOREL, 1992; GILBERT, 2000). E assim a
tatuagem começou seu longo caminho de popularidade no Ocidente.
Diz-se recorrentemente nos estudos sobre tatuagem que foi a partir deste contato
que a tatuagem ressurgiu na Europa, após um período de quase desaparecimento durante a
Idade Média. Este desaparecimento tem sido contestado na medida em que fontes históricas
indicam determinados usos populares da tatuagem européia, sobretudo religiosa e
profissional, embora os historiadores ainda não tenham concluído qual a parcela de
influência estrangeira em tais costumes3. A pergunta mais importante para o antropólogo,
contudo, não é esta. Que a tatuagem foi observada como um costume importado é fato. Mas
antes do encontro entre europeus e nativos tatuados do Pacífico Sul, houve um encontro
similar que não resultou na importação de tal técnica: o encontro entre europeus e nativos
do continente americano. Torna-se necessário perguntar, então, porque um desses encontros
resultou na chamada tattoo craze4, e o anterior não. Note-se que alguns arquipélagos
colonizados a partir do século XVIII já haviam sido “descobertos” por espanhóis no século
XVI, como é o caso das ilhas Marquesas, mas não colonizados (GILBERT, 2000).
No encontro entre europeus e ameríndios é possível observar que não apenas a
tatuagem não foi importada como técnica como tampouco o foram os nativos americanos
tatuados. Quando os europeus desbravaram os mares do Pacífico e, sobretudo, os ingleses,
vários foram os nativos que ao longo das décadas foram levados à Europa como souvenirs
ou como espécimes de História Natural por serem tatuados. A percepção científica que
moveu alguns naturalistas no Pacífico não estava presente nas Grandes Navegações, e creio
que esta mudança de mentalidade explica em parte a diferente posição frente aos nativos.
Mas eu gostaria de sugerir que quando a tatuagem se tornou um elemento identificador do
2
Profissional é uma categoria nativa dos tatuadores que se opõe a amador. A construção desta diferença não
está bem clara, mas a narrativa escrita dos tatuadores indica que enquanto a tatuagem não é o único ofício, ela
é considerada amadora.
3
Para acompanhar de perto o debate, sugiro a leitura de CAPLAN (2000).
4
“Loucura pela tatuagem” ou “febre da tatuagem”, em tradução livre.
20
Outro e de seu exotismo5, ela foi apagada da memória nacional do Eu, embora existisse e
sua existência não fosse ignorada. Em outras palavras, um novo imaginário sobre a
tatuagem a associou ao exótico e ao selvagem, minimizando o uso europeu da técnica. Este
novo imaginário foi construído a partir de uma determinada percepção britânica sobre os
habitantes do Pacífico Sul, no século XVIII. É certo que nem a mudança de mentalidade
nem a construção de um imaginário moderno sobre a tatuagem explicam porque no século
XVI e depois ela não foi adotada no contato com os ameríndios, e a partir do século XVIII
ela foi adotada no contato com nativos do Pacífico Sul. De qualquer forma, a percepção da
tatuagem que se origina a partir do século XVIII é a raiz da atual visão ocidental da
tatuagem e, portanto, é sobre ela que devo me concentrar.
É preciso dizer, ainda, que a tatuagem na Europa não estava desaparecida quando
marinheiros trouxeram o costume do Pacífico. Havia, como indicam diversos autores
(BOREL, 1992; CAPLAN, 2000; GILBERT, 2000; ROSECRANS, 2000), uma tradição
religiosa da tatuagem européia, relacionada à peregrinação a locais sagrados, incluindo
Loreto, na Itália, e Jerusalém. O que os marinheiros fizeram, de fato, foi retirar o costume
deste universo religioso cristão e torná-lo um costume profano popular, no sentido de
camadas populares e no sentido de ter sido disseminado. O renascimento da tatuagem no
Ocidente é um fenômeno que diz respeito a sua disseminação entre camadas sociais
determinadas, a partir do contato entre marinheiros e nativos do Pacífico, fora de seu
escopo anterior de prática religiosa cristã.
5
Para uma discussão maior sobre a ênfase no elemento exótico, a curiosidade e o papel do Outro da formação
de uma identidade nacional européia, ver GUEST (2000).
21
força logo após a captura. Foi promovido a chefe e os maori lhe ofereceram noivas. Casou-
se com duas filhas de um chefe. Participou das atividades nativas até ser resgatado em
1826, levado em um navio americano até o Havaí, onde se casou com outra princesa nativa.
Após um ano, retornou à Inglaterra, onde iniciou a carreira artística. Dizia que o fazia com
desgosto, a fim de conseguir dinheiro suficiente para retornar a Otaheite. A partir de 1830
não foi mais visto.
A descrição acima é de Gilbert (2000), que parece levar Rutherford a sério. A
história é falsa (OETTERMANN, 2000), mas lançou as bases de um imaginário sobre
europeus tatuados por nativos que envolvia, acima de tudo, o elemento do ordálio. Como
visto, em histórias verídicas sobre europeus vivendo tatuados entre nativos, a tatuagem não
era uma tortura aplicada após a captura, mas um sinal de pertencimento.
Em 1873, surge o Príncipe Constantino (GILBERT, 2000), o tatuado mais famoso
do século XIX (OETTERMANN, 2000). Apresentava a si mesmo como ladrão e dizia ser
admirado pelas mulheres. Este detalhe sugere o exercício de uma atração sexual pelo corpo
tatuado. Exibido seminu, ele atraía o olhar e a imaginação. Constantino era grego e foi
tatuado em Burma com a intenção de tornar-se artista. Fez muito sucesso, pois suas
tatuagens eram bastante elaboradas, inclusive cobrindo grande parte de seu rosto
(GILBERT, 2000). Segundo Oettermann (2000), ele dizia pertencer a uma raça selvagem
dos Bálcãs ou apresentar-se como “o homem tatuado de Burma”. Também dizia ser
contrabandista de armas e caçador de tesouros capturado na terra dos Mougongs e tatuado à
força.
La Belle Irene entrou para o circo em 1890. Embora suas tatuagens tenham sido
executadas por dois famosos tatuadores da época, seguia a tradição do circo e dizia ter sido
tatuada no Texas, um lugar selvagem onde as marcas serviam para afastar os índios
(GILBERT, 2000). O pai teria tido a idéia de tatuar as filhas para afastar o risco de rapto
pelas tribos sioux. Não foi a primeira mulher tatuada no circo americano, mas a primeira na
Europa (OETTERMANN, 2000).
A partir de La Belle Irene, as mulheres entram no negócio da tatuagem circense, um
mercado que podia ser extremamente lucrativo6 (OETTERMANN, 2000). A maior parte
6
Tão lucrativo que famílias inteiras se apresentavam tatuadas, até mesmo alguns animais como cachorros e
vacas.
22
das mulheres tatuadas, no entanto, mantinham ligação conjugal com os tatuadores ou outros
artistas circenses. No caso das esposas de tatuadores, serviam de propaganda para o
trabalho do marido. Desta forma, também puderam aprender o ofício de tatuadoras. Em um
universo masculino, a ligação conjugal facilitava a entrada na profissão. Apenas após os
anos 1960 e o movimento da contracultura7 as mulheres ocidentais conseguiram abrir
caminho como tatuadoras sem depender do apadrinhamento marital (MIFFLIN, 1997).
Embora Mifflin (1997) não fale sobre o escândalo da exposição do corpo feminino
entre os séculos XIX e XX, por mais suave que fosse esta exposição (apenas pernas, colo e
braços, estando os seios, barriga e nádegas cobertas) nem sempre era bem vista.
Oettermann (2000) afirma que as tatuadas passaram sutilmente à prostituição quando a
concorrência aumentou. A exposição dos corpos teria, sugere o autor, um elemento erótico,
enquanto a tatuagem se tornara um fetiche. Até a década de 1960, enquanto o circo
manteve tatuados, a exposição corporal feminina se tornou cada vez maior, assemelhando-
se ainda mais a um espetáculo erótico.
Great Omi é o último exemplo que eu gostaria de tratar aqui. Quando decidiu
tornar-se artista de circo, procurou um famoso tatuador da época e elaborou uma
padronagem de listras negras que cobriam todo o seu corpo, de modo a tornar-se o “homem
zebra”. Começou a carreira em 1927, com as tatuagens ainda incompletas (GILBERT,
2000; OETTERMANN, 2000). Este caso é interessante, pois marca o início de uma
modificação corporal explicitamente animal. A mulher tatuada com manchas bovinas
(GOLDENBERG & RAMOS, 2002) e a mulher-tigre (MIFFIN, 1997) contemporâneas
seguem o exemplo do Great Omi. A mulher-tigre apresenta-se dentro da tradição circense,
mas a mulher-vaca não. Esta pretende uma abordagem artística, em termos de body art, que
não estava presente nas reflexões circenses.
Além da entrada dos tatuados no universo do espetáculo por meio do circo, houve
outras conseqüências do primeiro marco histórico do renascimento da tatuagem no
7
Contracultura é o termo que Mifflin (1997) utiliza para demarcar o que classifica como um segundo
renascimento da tatuagem.
23
4. Nobreza européia
5. A juventude e a contracultura
2000). Quando a nobreza européia adotou a tatuagem, em parte por suas relações com os
corpos militares nacionais (e vice-versa), alguns milionários americanos passaram a adotá-
la também, aparentemente seguindo a moda londrina. Gilbert (2000) apresenta mais uma
vez o caso de Hori Chyo, o famoso tatuador japonês que, perseguido pelo governo de seu
país, teria se auto-exilado em Nova York sob a proteção de um milionário local, Max
Bandel.
Entre os criminosos, parece que a tatuagem fez sucesso entre os mais jovens, sob a
égide da delinqüência juvenil. Steward (1990) relata o interesse e a procura destes rapazes
por tatuagens. Sua loja ficava localizada, como a maior parte das lojas de tatuadores de
Chicago na década de 1950, em uma região freqüentada por gangues, onde a polícia
extorquia alguns bandos e procurava os tatuadores para saber o paradeiro de certos
fugitivos. Muitos dos clientes do autor eram ex-presidiários, a ponto de Steward ficar
conhecido na penitenciária local pelo volume de condenados que haviam se tatuado em sua
loja.
Na década seguinte, quando Steward (1990) se mudou para a Califórnia, seu
publicou se tornou outro. Era muito procurado pelos motociclistas Hells Angels, cujos
costumes envolviam a tatuagem como um elemento fortemente presente. Alguns dos
desenhos que se tornaram famosos entre os americanos têm sua origem neste grupo, como
o número 13 indicando o uso de maconha bem como o hábito das mulheres dos
motociclistas serem tatuadas com “propriedade de...”8, a lacuna sendo preenchida pelo
nome do grupo ou, mais freqüentemente, do companheiro. Neste momento, a tatuagem
americana parece estar no limite entre as gangues e a cultura jovem.
Mifflin (1997) indica que a contracultura americana e os hippies eram movimentos
formados por pessoas de camadas baixas da população. Mantém-se, desta forma, a prática
da tatuagem entre estas camadas. Foi apenas na década de 1980, segundo a autora, que a
classe média americana com curso superior passou a fazer uso da tatuagem como adorno
corporal. Interessante notar que esta é a década em que o culto ao corpo se dissemina no
Ocidente. A tatuagem pode ter se tornado um elemento a mais no emergente culto ao corpo
contemporâneo, surgido nas camadas médias-altas.
8
A expressão em inglês é “property of...”.
29
Para Pereira (1992), a contracultura engloba uma série de práticas distintas, tanto
políticas quanto religiosas, unidas pela idéia de uma crítica às instituições ocidentais,
sobretudo aquelas que são a base de reprodução do capitalismo e de seus valores
dominantes. Disseminada entre a juventude de camadas médias na década de 1960, a
contracultura teria alguns pontos de expressão nos festivais de música, como o de
Woodstock, e nas rebeliões estudantis como a de Maio de 1968, na França. Da forma como
é apresentada pelo autor, a contracultura é um movimento de crítica reflexiva sobre a
modernidade.
O percurso da tatuagem nos Estados Unidos é muito próximo ao percurso da
tatuagem na Europa, após o seu renascimento. É importante lembrar que a tatuagem nunca
chegou a desaparecer na Europa. Antes da adoção da prática por meio do encontro cultural
com o Pacífico Sul, a tatuagem européia era usada de forma religiosa, utilizada como marca
de peregrinações a lugares santos, um uso que não foi perdido. Gilbert (2000) recolheu
informações que indicam que pelo menos até a década de 1950 havia um tatuador que
marcava os peregrinos de Jerusalém, embora não indique se os europeus eram a maioria,
como após as Cruzadas. O hábito de tatuar a “cruz de Jerusalém” parece ter se
30
9
Lacassagne, na França, e Lombroso, na Itália, descreveram a tatuagem como elemento da criminalidade, no
sentido de que demonstrava quem estava mais propenso a cometer um crime. Esta teoria obteve um impacto
profundo na medicina legal da época, e pode ter sido responsável pelo afastamento das elites locais desta
prática corporal. Por outro lado, obras sobre tatuagem nestes dois países, à época em que a teoria lombrosiana
era dominante, podem ter apagado registros do uso de tatuagem em camadas superiores.
31
1
Os “modern primitives”, como LE BRETON (2002) menciona, relacionam estas técnicas a sociedades
tribais e as utilizam para transformar o corpo, tentando com isso uma crítica à sociedade ocidental
contemporânea.
33
1. Tatuagem no Brasil
2
Como, por exemplo: ALENCAR NETO, Dr. Meton de; NAVA, Dr. José. Tatuagens e pseudo-desenhos
cicatriciais em menores – as modificações intencionais da pele. Rio de Janeiro: Imprensa nacional, 1944. esta
obra, ao modo de Lacassagne, apresenta fotos dos desenhos e comenta-os. Há também: LISBOA, Dr. Nuno de
34
Souza Santos. Tatuagens. Rio de Janeiro: s/n, 1942. Ambas as obras são produzidas no contexto de uma
medicina-legal lombrosiana. Daí que os autores assinem como “doutores”.
35
“Menino do Rio
Calor que provoca arrepio
Dragão tatuado no braço
Calção, corpo aberto no espaço
Coração de eterno flerte
Adoro ver-te.”
exclusão, em uma ordem individualista, atinge aqueles segmentos subordinados que não
atingiram uma plenitude em termos de individualização, como as mulheres e os jovens,
tutelados pelo Estado e pela família. Não se trata, tampouco, de uma exclusão em termos de
classes sociais.
Foi baseada nesta relação entre tatuagem e grupos marginais que formulei a
hipótese principal deste trabalho. Encontrei em artigo de Schrader (2000) sobre o uso da
marca no sistema penal imperial russo uma teoria sobre a tatuagem como forma de
resistência a processos de controle social do indivíduo. Foi a partir desta idéia que percebi
que se a marca pode ser uma forma de resistência então sujeitos tradicionalmente sob
controle seriam o público privilegiado da tatuagem. Os dados do campo pareciam
confirmar a hipótese. Mulheres estão sendo apontadas, em diversas fontes, como a maioria
do público dos estúdios (LEITÃO, 2002), e sabe-se que o controle dos corpos femininos é
exercido de uma forma que não se opera sobre os homens (BOURDIEU, 2003). Os jovens,
igualmente, um público privilegiado da prática, embora não necessariamente constituindo
uma maioria, têm sua autonomia regulada pela família e pelas instituições escolares. Entre
os grupos historicamente vinculados à tatuagem no Ocidente, marinheiros, militares,
presidiários, delinqüentes juvenis e prostitutas estão todos sob um controle social estrito,
uma vigilância e eventualmente sob algum estigma (GOFFMAN, 1975) ou regime
disciplinar. Enfim, são grupos excluídos, marginalizados e cujas redes de sociabilidade
muitas vezes se fecham em si mesmos.
A marca corporal punitiva existiu em diversas sociedades. Na Grécia clássica,
marcavam-se os criminosos com stigma, palavra utilizada simultaneamente para marcação
por ferro quente (branding) e tatuagem, mas que manteve o significado de marca negativa.
Jones (2000) afirma que na maior parte dos casos a palavra refere-se à tatuagem. A
marcação corporal do criminoso com uma tatuagem, cuja principal característica é a
permanência, indica que esta é uma condição permanente, e que não se imagina que possa
37
ser modificada. O stigma3 era efetuado em local visível do corpo, de modo a informar
visualmente a condição de seu portador bem como o tipo de delito cometido.
A prática grega foi assimilada pelos romanos, que marcavam certos tipos de
condenados com tatuagem (GUSTAFSON, 2000). Como entre os gregos, a tatuagem era
marca de degradação. Os escravos, sobretudo, eram marcados, o que leva Gustafson (2000)
a concluir que mais do que a natureza do crime era o status social que determinava a
marcação.
Em qualquer caso de marcação punitiva, o que está em jogo é o poder de controle da
autoridade sobre o indivíduo. A marcação é um meio de estigmatizar e identificar
(ANDERSON, 2000). Se ela é permanente, significa que a identidade atribuída por meio da
marca também é pensada como permanente por aquele que produz a marca. Gustafson
(2000) afirma que a marca é envolta em um processo pedagógico que visa alterar a
mentalidade, a noção de si e o poder pessoal.
Durante o Império, o sistema penal russo utilizou largamente a marcação corporal.
Segundo Schrader (2000), até o governo de Catarina, a Grande, punições corporais que
incluíam mutilações eram utilizadas em todas as camadas sociais. Embora estas práticas
tenham sido questionadas na virada do século XVIII para o XIX, a inscrição corporal era
fundamental no sistema penal russo, pois atribuía os indivíduos a grupos de status, com a
finalidade de um maior controle oficial. Impondo uma determinada identidade sobre os
prisioneiros, a marca feita com ferro quente (branding) era utilizada por estes como fator de
construção de sua subjetividade, segundo o autor. Estes grupos de status visavam não
apenas ao controle penitenciário, mas ao controle social. Como forma de resistência, certos
indivíduos optavam por uma vida nômade4, escondendo suas identidades, trocando de
nome, e escondendo o pertencimento a determinado grupo de status. Os fugitivos deviam
esconder também as marcas corporais que denunciavam sua condição. Para o autor, este
tipo de estratégia desafiava o poder classificatório estatal.
Uma das fontes da prática de marcação punitiva russa foi, segundo indica Schrader
(2000), a marcação de objetos para atestar sua propriedade pelos camponeses. O autor
3
Embora GOFFMAN (1975) tenha utilizado o termo com sentido próximo, deve-se observar que aqui aponto
para seu uso original. Surpreendentemente, o autor não menciona a tatuagem como fator de estigmatização.
4
O autor chama a atenção para a tradição do nomadismo na Rússia, especialmente na Sibéria, cujo
significado vai além da resistência ao controle estatal.
38
sugere que a marca corporal era apenas mais uma forma de o Estado russo marcar sua
propriedade, exercendo controle sobre ela e determinando seu status. Neste sentido, não
apenas criminosos eram marcados, mas recrutas e desertores também o foram. Desta forma,
aqueles que resistiam ao poder controlador do Estado foram os que receberam as
marcações.
No caso dos condenados, as identidades eram utilizadas também para a formulação
de uma hierarquia construída por eles, dando a certos criminosos maior status do que a
outros e formando corporações. Assim, novas marcações eram efetuadas pelos próprios
indivíduos, numa forma de resistência que, segundo o autor, “transformou uma prática que
marcava sua alienação social em uma fonte de orgulho e pertencimento corporativo”
(SCHRADER, 2000, p. 185). A maior parte das tatuagens em criminosos era realizada na
prisão, de forma voluntária.
A partir desta constatação, Schrader (2000) demonstra como os condenados deram
novo significado à lógica oficial de marcação e encarceramento, opondo marca punitiva à
marca de bravura, tornando o exílio na Sibéria um sinal de honra criminosa, formando
corporações próprias. Ao se apropriarem da lógica oficial de controle e transformá-la para
uso próprio, os condenados resistiam a este controle, demonstrando que a criatividade
social pode construir novos grupos e formas de pertencimento, mesmo em situações de
forte controle. A própria automarcação do corpo, nestas circunstâncias, indica que o
controle estatal não é total, e que o corpo é o derradeiro locus na luta entre controle externo
e autocontrole. Marcando a si mesmos, estes sujeitos indicavam que seu corpo não era uma
propriedade alienável.
Além de Schrader (2000), Benson (2000) também indicou como o corpo,
especialmente a pele, é o lugar da afirmação de uma posse de si5. Embora esta autora se
refira ao uso contemporâneo das tatuagens, o caso russo pode ser pensado a partir de sua
reflexão. Sobre a contemporaneidade, ela afirma:
5
BENSON (2000, p. 249) afirma que “(...) inscribed on the skin will be the marks of self-possession, not
defeat”.
39
6
“What is distinctive in contemporary tattoo practices is the linking of such assertions of permanence
to ideas of the body as property and possession – ‘a statement of ownership over the flesh’, as one
individual put it – indeed as the only possession of the self in a world characterized by accelerating
commodification and unpredictability (...)”.
7
Máfia japonesa.
8
Onde a tatuagem é uma marca punitiva, sua remoção é tentada. JONES (2000) e GUSTAFSON (2000)
fazem menção a esta situação, bem como GILBERT (2000).
40
“descoberto” deixavam dúvidas sobre quem ele realmente era. Esta situação indica que por
mais que o Estado e o sistema penal tentem exercer um controle efetivo sobre os indivíduos
criando marcas em seus corpos ou identificando marcas já existentes, este controle pode ser
burlado.
Da mesma forma que identifiquei uma relação análoga entre a marca polinésia e a
marca ocidental contemporânea, aqui vista no contexto carioca, gostaria de efetuar esta
transposição a partir da marca punitiva. A tatuagem como marca punitiva fornece
elementos para se pensar que seu uso pode ser relacionado a contextos de resistência a um
controle exercido sobre os indivíduos.
É verdade que as marcas punitivas descritas foram impostas sobre os sujeitos, da
mesma forma que no contexto polinésio. Contudo, observei em campo o quanto as marcas
atuais são vistas por diversos tatuados como uma forma de afirmação da individualidade.
Benson (2000) teve a mesma sensação e forneceu, assim, uma espécie de elo de ligação
entre estes três escopos teóricos utilizados que, de meu ponto de vista, são facetas de uma
mesma realidade.
Gostaria, então, de aprofundar a noção de posse de si, que foi encontrada em dois
autores: a americana Susan Benson (2000) e o francês David Le Breton (2002). Ambos
utilizam a noção de posse de si correlacionando-a a um contexto de individualismo e
autonomia. Schrader (2000), conforme apresentado acima, é o autor que usa mais
fortemente a idéia, relacionando a marcação corporal diretamente à busca de uma
autonomia.
Benson (2000) situa sua argumentação em duas linhas mestras: de um lado, a
oposição interno/externo, conforme construída por Gell (1993); por outro, as idéias de
autonomia e individualismo características do contexto ocidental. Embora a autora perceba
que há uma ideologia culturalmente determinada operante nos significados que damos aos
processos corporais, ela não consegue fugir a esta determinação, e indica sistematicamente
que o processo privilegiado no Ocidente é aquele em que a tatuagem exprime o Eu interno,
operando segundo a oposição mente (alma, espírito)/corpo.
O Ocidente é visto como uma sociedade cujo significado atribuído ao indivíduo está
localizado nas idéias de autonomia pessoal e separação (em oposição a uma união no
sentido de um coletivismo). Neste contexto, as idéias de auto-realização e auto-domínio são
41
percebidas como centrais para o indivíduo, que é concebido em termos do que repousa
‘dentro’ mas não é ‘do’ corpo – como as noções de alma, espírito, mente – e onde,
historicamente, a relação entre superfície e profundidade foi formada como a relação entre
aparência e essência. Nestas culturas ocidentais, sugere a autora, a pele, zona de fronteira
entre o Eu e o mundo social, é pensada como envolvendo o Eu, como uma membrana que
protege – idéia formulada por Anzieu (1989 apud GELL, 1993) –, mas pode também lacrar,
no sentido de uma não-abertura ao mundo social e um fechamento do Eu em si mesmo.
Neste marco teórico, a marca na pele é vista pela autora como uma marca que tanto
protege quanto indica o que há “dentro” (a alma ou uma espécie de Eu essencializado) do
indivíduo, mas também como uma afirmação de que o corpo é uma propriedade do Eu
(que se refere, aponta ela, paradoxalmente, tanto para o próprio corpo quanto para a
alma/mente/espírito). Segundo ela, a tatuagem pode ser ligada tanto a uma
supervalorização de certos aspectos das idéias contemporâneas ocidentais do Eu –
sobretudo as idéias de autonomia e estilo próprio – quanto a sua transgressão. Em
comparação com o passado da prática, afirma que agora a tatuagem é vista como uma
afirmação de si, enquanto antes se dizia ter sido tatuado bêbado ou em um impulso, de
forma que se negasse a intencionalidade da marca mal vista.
O trecho em que Benson (2000) indica, claramente, a idéia de posse de si foi transcrito
acima. Ali, a autora aponta como esse contexto de individualismo pode ser posto em xeque
por uma ordem econômica em que o homo economicus se torna, ele mesmo, um bem, uma
mercadoria. Frente a esta objetificação do sujeito, o corpo pode se tornar o lugar de
resistência. Resistência apontada também por Schrader (2000). Envolta no dilema de um
Eu essencializado e corporificado, Benson (2000) não se permite ver aí um individualismo
talhado por instâncias de controle, como o mercado, embora as reconheça. A autora dá
indícios para que se saia deste falso dilema entre mente/corpo, que, como ela mesma
aponta, não passa de um paradoxo ocidental, uma vez que a mente não existe nem é visível
senão corporificada.
Benson (2000) sugere uma ligação entre um contexto de capitalismo tardio, onde as
identidades não são fixas, e a necessidade dessa fixidez, alcançada por uma marca do Eu
interno. Esta marca é, ao mesmo tempo, visível e permanente, dando ao sujeito algo ao
qual se agarrar, uma espécie de sentido, de ponto fixo, que é, de fato, ele mesmo. A partir
42
das idéias da autora, pode-se pensar em uma terceira reflexão que é a noção de posse de si,
não em seu sentido de marca identitária, mas sim de afirmação de um individualismo
acirrado, que diz ao mundo inconstante e objetificador que o corpo pertence a alguém. Em
última instância, pertence à alma que o habita. Se, como Schrader (2000) faz, troca-se o
mercado que objetifica por outra instância de controle dos sujeitos, compreende-se que a
noção de tatuagem como elemento de um processo de posse de si pode ser utilizada como
uma resposta, uma forma de resistência a este controle.
Benson (2000) trabalha com a noção tipicamente ocidental de que o Eu interno,
também referido na literatura antropológica sobre o corpo como mente/alma/espírito, é
dado em cada indivíduo, tornando-se assim uma essência pessoal. Prefiro as abordagens
que indicam que o Eu é uma construção social determinada pela posição social que se
ocupa e, portanto, não é uma essência, mas fruto de relações sociais (LEMMERT, 1994).
Assim, abordo este uso da tatuagem como posse de si a partir desta visão relacional,
determinada a partir da posição social ocupada e não de um Eu subjetivo fluido.
Especificamente no contexto brasileiro que, como mostra DaMatta (1991), é
relacional, um Eu essencializado não faz sentido. Portanto, no contexto brasileiro, a idéia
de que a tatuagem reflete o Eu interno só pode ser parcialmente aproveitada, na medida em
que esse Eu interno é, de fato, um Eu relacionalmente construído. Isto quer dizer que as
escolhas que parecem internas, conforme foi observado em campo, refletem noções
socialmente compartilhadas e foram observadas em mais de um sujeito, como idéias de
distinção de gênero, de pertencimento, de autenticidade, de mudança de status, de
expressão de sentimentos.
Le Breton (2002) indica como o corpo é locus de uma “bricolage identitária” que
serve para afirmar a existência do sujeito. Ao longo de sua obra, visões da tatuagem como
um elemento que aflora do Eu interno e visões da tatuagem como um elemento que pode
transformar este Eu se alternam, sem um desfecho final.
O autor afirma que a tatuagem é uma marca que serve para “tomar posse de si”,
situada em um contexto onde o conflito geracional entre adolescentes e pais opõe o desejo
pela marca à sua não aceitação. O autor afirma que, enquanto os pais percebem a busca de
autonomia dos filhos no desejo pela marca, ao mesmo tempo a associam a seu passado
relacionado à delinqüência. Aos filhos, contudo, resta a idéia de que “os corpos legados
43
pelos pais devem ser modificados para se fazerem definitivamente seus”9 (LE BRETON,
2002, p.172). Em Le Breton (2002), a idéia de posse de si se traduz, mais fielmente, na
forma de uma conquista individual de autonomia frente a instâncias sociais controladoras.
Diz ele, “a marca corporal assinala o pertencimento a si. Rito pessoal para se
transformar a si transformando a forma de seu corpo”10 (LE BRETON, 2002, p.175). Aqui
os dois processos são claros. Primeiro, a idéia de que a marca sobre o corpo indica um
pertencimento a si, uma forma de posse ou propriedade de si mesmo quando em um
contexto de controle. Ou seja, tanto uma busca quanto um processo de construção de
autonomia pessoal. Segundo, demonstra como o autor identifica alternadamente esta busca
dentro do sujeito e fora dele ao mesmo tempo, sem indicar uma origem ou concluir qual
deles é preponderante. É mudando a forma do corpo que se muda a si, mas é o desejo de
mudar a si, ao Eu, que leva à mudança do corpo. É da superfície que se chega à
profundidade.
Foi efetuando uma analogia entre a marca como resistência e a posição social
ocupada pelo sujeito, ou grupo, que observei – de dentro dos estúdios – que a questão do
controle e da autonomia é uma que se coloca para quem quer uma tatuagem, seja na
oposição da família à marca, seja nas preocupações com o mercado de trabalho, visto pelos
tatuados como instância na qual a marca se torna um estigma (GOFFMAN, 1975). O viés
teórico adotado fornece apenas uma visão, que não explica porque as pessoas se tatuam.
Creio, contudo, que a busca de autonomia e individualidade é uma das explicações da
popularidade da prática entre jovens e mulheres.
Como um contraponto da popularidade da tatuagem entre as mulheres, observei que,
entre os homens, a prática está revestida por um determinado ethos masculino que faz com
que a tatuagem seja uma marca de virilidade, obtida após uma espécie de rito em que a dor
desempenha o papel principal, em conjunto com a noção de coragem. Não se furta,
portanto, à idéia de autonomia pessoal.
9
“les corps legue par lês parents est à modifier pour lê faire définitivement sien”.
10
“la marque corporelle signe l’appartenance à soi. Rite personnel pour se changer soi em changeant la
forme de son corps”.
44
3. Dentro e fora
Gell (1993) apontou, sobre o contexto polinésio, que a tatuagem é uma marca que se
relaciona a processos de inclusão/exclusão sociais, conquanto eles estejam muita mais
vinculados à sacralidade do sujeito, o que poderia ser visto como uma forma de
estigmatização, embora a tatuagem sirva, de fato, para amenizar esta emanação contagiosa
e perigosa. A sua própria característica de estar dentro do corpo e ao mesmo tempo visível
é sui generis. Torna a tatuagem um procedimento que representa as situações em que se
está fora/dentro de determinadas posições sociais. Observei, na teoria de Gell (1993), uma
outra explicação para o uso da marca nos grupos historicamente relacionados a ela, todos
em situação ambígua, dentro e fora da sociedade ao mesmo tempo. Relacionando estes
grupos ao atual público da tatuagem, foi possível utilizar a reflexão do autor como um
ponto importante de análise e formulação tanto de um olhar sobre a tatuagem carioca atual,
quanto de uma tentativa de explicação dos fatores envolvidos nesta prática.
Foi o contato de europeus, na figura dos marinheiros, com nativos polinésios que
deu origem ao renascimento (MIFFLIN, 1997) da tatuagem no Ocidente. A análise de Gell
(1993) está centrada no cotidiano do Pacífico anterior a estas. Ao longo da apresentação de
instituições e contextos sócio-políticos, econômicos e religiosos, bem como da cosmologia
nativa relativa à prática da tatuagem, o autor passa de um arquipélago a outro na tentativa
de construir uma unicidade que relacione a extensão da prática, o modelo político e os
sistemas sociais.
O autor empreende uma abordagem que relaciona o surgimento, o uso e a
manutenção/reprodução da tatuagem ao contexto sócio-político de cada sociedade polinésia
analisada. Embora a tatuagem desempenhasse um papel integral na organização e no
funcionamento das instituições sociais mais importantes, ela é uma conseqüência destas
instituições, e não sua causa, não sendo independente destas, mas transformando-se com
elas.
O autor aponta que o uso de tatuagens exprimia hierarquias e dominações,
contribuindo ainda para a produção da noção de pessoa e do Eu, perfazendo uma espécie de
empoderamento, e, ainda, relacionada com o ciclo de vida. Fazia parte da produção de
sujeitos políticos. Seus significados não são universais nem mesmo entre os arquipélagos
45
que constituem o mundo polinésio, que foi classificado em tipos ideais para efeito de
comparação. Na qualidade de representações, o autor observa a tatuagem antes como uma
família de representações, um código corporal onde as forças sociais se fazem registrar
como parte da pessoa assim marcada.
O autor utiliza dois eixos centrais na compreensão da tatuagem polinésia: a) serve
como espécie de escudo de proteção; b) controla o tapu, a energia sagrada que é contagiosa
e perigosa. Para desenvolver a idéia de tatuagem como proteção, o autor utiliza
simultaneamente a cosmologia nativa, os significados de determinados desenhos tatuados e
a teoria de Anzieu (1989 apud GELL, 1993). Para desenvolver a idéia do controle de tapu,
o autor analisa a posição social dos tatuados, mas sobretudo a cosmologia, certas normas
quanto à manipulação de comida e a percepção polinésia do sangue.
Segundo Gell (1993), as percepções ocidentais sobre a pele envolvem a idéia de que
ela está no exterior do corpo, e o que está externo é sempre menos importante (ou
verdadeiro ou real) do que o que é interno. Desta forma, a pele no Ocidente é pensada como
não traduzindo o que a pessoa realmente é. Gell (1993) compara a visão ocidental sobre a
pele com a de sociedades melanésias descritas por Turner (1980 apud GELL, 1993) e
Strathern (1979 apud GELL, 1993 ). Nestas sociedades, a pele está no exterior do corpo:
este exterior é a parte pública e que mantém contato com outras pessoas. Uma percepção de
que as pessoas são a soma total de suas relações com outras pessoas induz à percepção de
que a pessoa é a pele. Pode-se concluir, a partir desta comparação, que a relação entre
sujeito e pele está determinada pela percepção social sobre o sujeito, pessoa, indivíduo ou
self.
Operando como mediadora entre o Eu interno e o Mundo externo, a pele é duplicada
pelo processo de tatuar, quando se produz uma pele artificial, fabricada, que opera como
uma camada protetora. Neste sentido, o autor parte da noção de skin ego formulada pelo
psicanalista Anzieu (1989 apud GELL, 1993) para constituir os usos relativos à tatuagem
em uma espécie de modelo universal que parte, na verdade, dos usos da pele em sua
dimensão psico-sociológica.
Para Anzieu (1989 apud GELL, 1993), a pele é, de várias formas, a pessoa social.
Esta afirmação é mais bem compreendida quando se toma a pessoa pela soma das relações
que mantém com outras pessoas, onde a mediação exercida pela pele nestas relações a
46
transforma na pessoa, ou vice-versa. Desta forma, é a pele social que corresponde à pessoa
social. Apresentando um “lado” externo e um interno, embora se trate de uma única
estrutura, além de mediadora na comunicação entre estas duas esferas, a pele protege o Eu
interno, é sensível ao Mundo externo e acumula marcas oriundas da relação do Eu com o
Mundo.
A partir desta posição privilegiada da pele, Anzieu desmembrou-a em nove funções,
indicadas a seguir, que Gell (1993) toma como um “esquema básico da tatuagem”.
Função 1 – Suporte: serve à criação de um envelope substituto envolvendo uma
persona social – que de outro modo estaria exposta – em uma espécie de abraço protetor.
Função 2 – Contenção: a tatuagem “segura”/contém o Eu interior. Ao mesmo tempo
em que comunica ao externo aquilo que vem do interno, sela aquilo que contém. Poder-se-
ia sugerir aqui novamente uma função protetora que, conforme será visto, é largamente
explorada por Gell (1993).
Função 3 – Proteção: a pele tatuada é reforçada por esta cobertura, ao mesmo tempo
em que se torna locus de poderes que impedem ferimentos. Tatuagens de proteção são
vistas por Gell (1993) como uma forma de controlar perigos, por imporem uma espécie de
pré-enfrentamento de uma tarefa árdua e violenta. A tatuagem é também encarada por ele
como uma armadura que defende a pessoa social e, simultaneamente, num nível mais
elevado, como um componente da pessoa social como um todo, na forma de uma estrutura
defensiva. Protege e constitui a pessoa.
Função 4 – Individuação: a tatuagem é capaz de criar a identidade pessoal, embora
Gell (1993) aponte que esta função é mais forte no Ocidente. Os desenhos testemunham a
singularidade do sujeito, suas relações pessoais únicas, suas aquisições e gosto pessoal. Ao
mesmo tempo em que se busca esta individuação, com um forte sentido de diferenciação
mais do que de individualismo, diz o autor, adota-se emblemas de filiação grupal que
indicam a identidade social em face de estranhos e inimigos.
Função 5 – Intersensorialidade – e Função 6 – Excitabilidade sexual: devem ser
observadas à luz do lugar onde o desenho é tatuado no corpo.
Função 7 – Recarga libidinal: a tatuagem possui propósitos eróticos e de expressão
da sexualidade, sobretudo na sua função de embelezamento do corpo.
47
Esquema fundamental:
Aqui a tatuagem serve para o controle de tapu (energia sagrada, espécie de mana),
por uma dessacralização efetuada a partir do sangramento, que toma o contorno de uma
espécie de mutilação ritual. A tatuagem impõe uma barreira entre o Eu secular e a
divindade, tornando-se o emblema de humanização, que só é retirado na morte. Morto, o
tatuado tem sua pele removida e retorna ao divino, sem seus traços humanos.
48
Sociedades cônicas:
Sociedades devolved:
Apenas neste tipo de sociedade o rosto é tatuado, o que leva o autor a efetuar uma
comparação entre a tatuagem facial e a máscara, apontando para uma maior visibilidade e
maior requinte da tatuagem neste tipo sócio-político, ao mesmo tempo em que ela é mais
individual/biográfica, sem fases etárias pré-definidas para sua aquisição. Apresenta ambos
os usos de proteção e de remoção de tapu.
Sociedades feudais:
Neste tipo, visto pelo autor como o mais próximo do uso ocidental, a tatuagem é
incorporada como um significante flutuante-livre, em uso para a elaboração privada de um
Eu público. Este uso não está relacionado a rituais. É onde a tatuagem é mais fortemente
um artefato, uma mercadoria.
É preciso destacar que a classificação que o autor utiliza para as sociedades
polinésias não pode ser utilizada para as ocidentais, uma vez que reflete o contexto local
específico. Da mesma forma, os usos polinésios acima indicados não se relacionam aos
49
usos ocidentais, a não ser pelas sociedades polinésias feudais. De qualquer forma, estas
sociedades foram transformadas pela colonização européia, e transformaram algumas de
suas características conforme descritas pela etnografia utilizada pelo autor, referente
sobretudo aos séculos XVIII e XIX.
Importa mais nesta análise a relação entre tatuagem e instituições sócio-políticas.
Assim, o autor ensaia uma visão da tatuagem ocidental como uma na qual as instituições
sócio-políticas não apresentam nenhuma relação com a busca por tatuagens, mas o contexto
social sim. Conquanto o seu “esquema básico da tatuagem” seja desprovido de indicadores
sociológicos, os usos da tatuagem são explicados a partir das práticas sociais e não dos
significados subjetivos de cada tatuado, embora eles existam em maior ou menor grau.
Sobre o Ocidente, Gell (1993) limita-se a analisar grupos sociais como marinheiros,
criminosos e prostitutas (também nobres e alguns integrantes das forças armadas) como
aqueles nos quais a tatuagem ocidental foi mais popular, apontando ainda o impacto, nesse
sentido, das teorias de Lombroso.
A tatuagem é vista, então, como particular a dois universos distintos: aquele das
sociedades tribais e a das minorias reprimidas no Ocidente. Maertens (1978 apud GELL,
1993) afirma, neste sentido, que a tatuagem ocidental floresce em grupos marginais
confinados/excluídos. A tatuagem seria utilizada, entre eles, como uma forma de
compensação pela existência desgarrada, constituindo, ainda, uma aceitação fatalista da
exclusão social.
A observação de Maertens (1978 apud GELL, 1993), embora não permita maiores
considerações acerca do porque, efetivamente, de uma compensação, ou se esta é existente
de fato na mentalidade dos grupos tatuados, apresenta um ponto indicado em minha
argumentação, exposta no capítulo anterior, onde aponto elementos desta história do
desenvolvimento da tatuagem ocidental após o contato com o Pacífico, e também em toda a
tese, na medida em que creio que este sujeito ocidental excluído ainda é o sujeito
privilegiado da tatuagem. Antes, este sujeito foi constituído a partir de um corte de classe e
étnico-cultural (imigrantes), como bem aponta Do Rio (1997). Depois, constituiu-se um
corte geracional, como aponta Marques (1997), que era simultaneamente um corte de
gênero, com predominância masculina por todo o período. Hoje, segundo as pesquisas
realizadas (LEITÃO, 2002), o corte de gênero tem privilegiado as mulheres, o que acredito
50
inserir-se, ainda, nesta dinâmica entre a prática da tatuagem e o meio social, de maneiras
que serão apresentadas ao longo do trabalho.
O que Gell (1993) aponta serem duas das variáveis operantes na dinâmica da
tatuagem polinésia, isto é, gênero e geração, são variáveis presentes igualmente na
dinâmica ocidental: são marcadores de posições de inclusão ou exclusão social dentro de
uma determinada hierarquia. Observe-se, apenas, que a marcação corporal na Polinésia,
como em todas as sociedades tradicionais, não é uma opção do sujeito. Em contexto
ocidental, ao contrário, trata-se de uma escolha individual orientada por diversos fatores.
Em uma comparação entre os usos sociais da tatuagem em Fiji, Tonga e Samoa,
Gell (1993) conclui que o sujeito tatuado é aquele que está em uma posição ritual, ou
simbólica, de menor status. A posição ritual costuma não se sobrepor à posição política,
exceto para determinadas lideranças, que não são tatuadas. Neste caso, a mesma díade
dentro/fora pode ser utilizada para análise. O gênero que está fora das posições rituais mais
elevadas, ou seja, o gênero que é ritualmente de menor status, é o tatuado. Isto não significa
que a tatuagem seja uma forma de inclusão social pura e simples, pois outras marcações
poderiam ser utilizadas. Segundo o autor, o processo da tatuagem envolve crenças
polinésias a respeito do sangue e pode ser comparado a certos rituais onde o sangramento é
o ponto em questão. O caráter mais ou menos sagrado do sujeito também está em jogo
quanto ao gênero a ser tatuado.
4. Reflexões preliminares
11
Basicamente em contexto moderno-individualista, pois, como apontam RODRIGUES (2001) e
FOUCAULT (1997), em contexto pré-moderno não há esta construção individualista do corpo e seus usos e
percepções são distintos.
52
com outros fatores intervenientes. Todos eles serão observados, em maior ou menor grau, a
partir desta idéia de resistência e controle, fundado também nas corporalidades e no status
social.
53
“Antigamente tinha um acordo de não abrir estúdio a menos de 500 metros um do outro.”
Proprietário do estúdio pesquisado na Tijuca
1. Profilaxias e técnicas
A tatuagem como é praticada hoje nos estúdios é uma técnica que consiste na
perfuração da pele com agulhas apropriadas, acopladas a uma máquina elétrica, por meio
da qual pigmentos especiais são introduzidos na camada mais profunda da pele, de modo
que ali permanecem. O uso da máquina elétrica contrasta com procedimentos tradicionais
de tatuar, como utilizados por diversos povos ao redor do mundo. Nestes casos, não há
máquina, mas uma haste de sustentação da agulha, que pode apresentar diversos tamanhos
e espessuras. Os pigmentos utilizados variam segundo cada cultura (GILBERT, 2000).
As cores utilizadas hoje são diversas e as tintas para tatuagem, adquiridas prontas de
fornecedores especializados, podem ser misturadas entre si para se criar novas cores. As
agulhas, por sua vez, são soldadas pelo próprio tatuador, na forma de um pente. Para cobrir
áreas extensas do corpo com uma única cor, utiliza-se uma quantidade maior de agulhas, de
forma que a operação seja agilizada e, conseqüentemente, a dor seja reduzida. Para os
contornos dos desenhos, é comum utilizar-se um mínimo de três agulhas soldadas.
Para a segurança do cliente, os tatuadores seguem um processo de higienização e
esterilização dos materiais utilizados. Limpa-se a bancada onde ficarão os materiais
necessários com álcool hospitalar, que em seguida é coberta com filme plástico e papel-
toalha. Sobre o filme plástico, são colocados os botoques, presos por uma porção pequena
de vaselina, que também é utilizada sobre a pele do cliente. Os botoques são recipientes
descartáveis, de plástico, que contém algumas gotas da tinta necessária ao desenho. A
agulha é embebida na tinta desses recipientes, de modo que eles entram em contato com o
sangue do cliente. Os recipientes de álcool, os tubos de tinta e os recipientes de água com
sabão, usados constantemente para limpar a pele do excesso de tinta, são cobertos com
sacos plásticos, descartados a cada cliente. Se o local da tatuagem fica em contato com uma
almofada, num banco ou cadeira, a mesma também é embalada em filme ou saco plástico,
posteriormente descartado. O material que entra em contato com o sangue1 do cliente é
todo descartado.
1
A maior parte das tatuagens causa algum grau de sangramento, em algum ponto da pele, já que o processo
envolve a perfuração da mesma.
55
2
Procedimento observado no estúdio da Tijuca, mas não no de Copacabana.
3
Conhecidas como descarpacks.
4
Aparelho que esteriliza bicos de máquina e agulhas por altas temperaturas.
5
Desodorante em bastão.
56
decalque fixe o desenho na pele. Sobre o decalque, o tatuador passa pigmento preto, já com
a máquina de tatuar, no contorno. Por último, a tatuagem recebe outras cores, se for o caso.
Uma tatuagem pode ser realizada em uma ou várias sessões, segundo a resistência
do cliente à dor, sua disponibilidade financeira e o tamanho e/ou complexidade do desenho.
A dor faz parte da operação de tatuar, mas é tolerada e experimentada de formas diferentes
pelos clientes. Recomenda-se que uma sessão não ultrapasse três horas, de forma que, nesse
tempo, um cliente pode se submeter a uma ou várias tatuagens. Os desenhos maiores são
mais caros e é comum que os clientes paguem sessões mensais ou quinzenais até que a
tatuagem esteja completa, de forma que o gasto financeiro é diluído.
Finda a sessão de tatuagem, deixa-se a marca eliminar fluidos. Após cinco ou dez
minutos, ela é coberta por uma espécie de curativo. Há alguns anos, usava-se papel-toalha,
preso à pele por fita crepe. O papel colava sobre a tatuagem, em função da eliminação de
fluidos, e tinha que se retirado com o auxílio de água. Hoje, passou-se a utilizar o filme
plástico de cozinha, pois o mesmo não cola sobre a pele e é de mais fácil retirada. Contudo,
o filme plástico não permite a respiração da pele e não é considerado ideal.
O cliente é orientado sobre as precauções que deve tomar no período de
cicatrização. A cicatrização é um processo que demora de 5 a 10 dias, variando segundo
cada organismo. Neste momento, o corpo produz sobre a área tatuada uma cobertura que
eles chama de “casquinha”. Costuma ser uma “casquinha” fina, que os tatuadores orientam
não ser retirada em hipótese alguma, pois isto compromete a tatuagem. Ela deve soltar-se
naturalmente. Durante este processo, é normal o surgimento de coceira na área. Se a
“casquinha” é puxada ou retirada bruscamente, o desenho fica comprometido, os pigmentos
não permanecem na pele e ocorre o que chamam de “falha”. Nestes casos, a tatuagem deve
ser retocada. Orienta-se, ainda, manter a região seca, lavando-a apenas uma vez ao dia. Sol,
água do mar e de piscina, bem como atividades físicas, são desaconselhados até a total
cicatrização. Uma pomada cicatrizante também é recomendada.
Durante a observação de campo, pude perceber que os tatuadores têm opiniões
distintas sobre o melhor processo de cicatrização de uma tatuagem. Produtos diversos
podem ser utilizados ou recomendados para este fim. De um modo geral, todos os
tatuadores da casa recomendam a mesma pomada. Contudo, sei que há tatuadores que
57
2. Variações sazonais
Tijuca. Contudo, o dinheiro vindo de fora (dos turistas) reafirma a idéia de que o público
local fica descapitalizado nos grandes feriados, poupando dinheiro para viagens.
É visível que existem variações sazonais na prática da tatuagem, embora não esteja
clara essa associação com o clima. Os tatuadores com quem conversei apresentaram o
dinheiro como fator relevante para as altas e baixas financeiras da profissão. Após longos
feriados, ou na véspera destes, o movimento cai. Se a lógica fosse a da mera exposição dos
corpos adornados, os feriados poderiam ser momentos de maior procura pela tatuagem,
mesmo levando-se em conta o tempo de cicatrização da mesma, o que não ocorre. Por outro
lado, se há variações em Porto Alegre em função exclusivamente do clima, esta é uma
variável a ser considerada. Optaria, então, por apontar um equilíbrio entre os dois fatores,
observando-se que a possibilidade de exposição corporal é fundamental, mas sem dinheiro
ela não passa de uma fantasia.
3. Localização: Tijuca
6
Na própria Praça Saens Pena há um shopping center. Há dois quarteirões desta existem outros dois
shoppings.
60
4. Localização: Copacabana
clientes ainda perguntam pelo proprietário anterior e alguns trazem notícias dele. O atual
proprietário reformou o estúdio, que ocupava duas lojas, e reduziu-o para o espaço de uma
loja. Funcionam no estúdio, além do serviço de tatuagem, também serviços de piercing e
alargamento de lóbulo auricular, ambos executados pelo piercer.
Este estúdio está localizado no limite entre os bairros de Copacabana e Ipanema, a
poucos metros das duas praias mais famosas da cidade. Em frente à galeria, encontra-se um
hotel. Há um movimentado comércio na região, embora se trate de área residencial. Nas
proximidades há também bares e restaurantes. Devido a esta localização, há um diferencial
quanto ao público: muitos clientes saem da praia e vão ao estúdio, outros são surfistas e há,
ainda, uma freqüência de turistas estrangeiros, sobretudo europeus, em busca tanto de
tatuagens quanto de piercings, uma vez que estes são mais baratos no Brasil do que no
exterior.
5. O espaço físico
5.1. Tijuca
O estúdio pesquisado apresenta dois momentos distintos em seu espaço físico, pois
durante a pesquisa houve uma obra de expansão. A loja contígua ao estúdio foi comprada, o
que gerou a necessidade da obra, que na verdade operou uma reformulação estética total no
estúdio, incluindo novas cores, novo layout externo, novos móveis, bem como espaços
internos antes inexistentes.
Ao começar a pesquisa de campo, em novembro de 2003, o estúdio ocupava o
espaço de uma loja na galeria. A frente, toda em vidro, permitia ver de fora o que ocorria na
62
recepção. Neste espaço, havia duas prateleiras à direita com muitos álbuns de desenhos7;
um balcão de recepção à esquerda, onde o recepcionista atendia os clientes; um sofá de dois
lugares em frente às prateleiras dos álbuns; vários desenhos emoldurados e pendurados na
parede. Atrás do balcão da recepção, uma porta levava à área onde a tatuagem era
executada. Do sofá, na sala de espera, era possível ouvir o barulho das máquinas de
tatuagem funcionando.
Na frente da loja, no corredor da galeria, há um banco sem encosto que funciona
como sua extensão. Nesse banco, os clientes olham desenhos quando o estúdio está cheio,
os tatuadores conversam e os amigos ou parentes de clientes aguardam. Toda a
movimentação daquele pequeno espaço se dá em função do estúdio. O banco era, de fato,
sua extensão, uma área de sociabilidade tanto de clientes quanto de tatuadores. O estúdio
parecia dividido em três: o banco no corredor, a sala de espera e a sala de tatuar.
Na sala de tatuar, a parte interna do estúdio, havia bancadas de madeira e armários
em três paredes, com espelhos em todas elas. Uma pia servia de lavatório e, ao lado desta,
ficava um aparelho para destruir agulhas usadas e o descarpack, caixa para materiais
infecciosos. Na entrada da sala, encontrava-se um cabideiro na parede, um bebedouro de
garrafão e uma estante com livros e CDs, com um aparelho de som. Nesta parte interna
havia, ainda, um banheiro.
Com esta disposição, o estúdio podia atender até quatro clientes ao mesmo tempo, o
que significa dizer que até quatro tatuadores podiam trabalhar simultaneamente. Os
tatuadores utilizavam o espaço nas bancadas de madeira para organizar o material
necessário à tatuagem: água pura ou com sabão, tintas, papel-toalha, vaselina. Cada cliente
sentava-se em uma cadeira ou banco (algumas vezes era necessário deitar o cliente numa
maca) mais apropriado ao trabalho, enquanto o tatuador sentava-se em outra cadeira.
Embora muitos estúdios utilizem uma cadeira reclinável como a dos dentistas, esse não era
o caso do estúdio pesquisado. Espelhos nas paredes, dispostos acima das bancadas,
permitiam uma visão em vários ângulos, enquanto a tatuagem estava sendo executada e
depois de pronta.
7
Os álbuns são pastas com folhas plásticas onde são guardadas as folhas com desenhos para que os clientes
escolham o que será tatuado.
63
Após a obra de reforma, a recepção ganhou novos móveis, mas sua disposição
permaneceu a mesma. Acima das prateleiras de álbuns foi colocado um espelho. A frente
da recepção permaneceu em vidro, mas a frente externa da loja anexada foi coberta com um
painel em que várias fotos de tatuagens executadas no estúdio formam uma espécie de
mosaico. Ouvi tatuadores reclamando que de longe não é possível discernir nem os
desenhos nem a qualidade dos trabalhos no painel, o que, nas suas opiniões, deveria ser o
objetivo de tal recurso: uma espécie de portfolio gigante.
A divisão interna do estúdio foi alterada e mais clientes puderam ser atendidos ao
mesmo tempo. À direita, no espaço referente à loja anexada, localiza-se a sala de tatuar,
dividida em quatro bancadas diferentes, em granito, com armários embaixo, que formam
espécie de baias. Há também uma sala íntima, chamada de box, com porta, em que se
atendem preferivelmente clientes cujas tatuagens serão localizadas em partes íntimas do
corpo, como seio ou virilha, mas que é utilizada regularmente quando não há esta demanda.
Seu espaço interno é maior que o das baias. Acima de cada bancada, há um espelho, e há
outro, ainda, em uma parede em que não há bancada. Desta forma, como na disposição
antiga, o cliente pode ver sua tatuagem de vários ângulos diferentes.
À esquerda da entrada, no espaço que correspondia à loja antiga, o proprietário do
estúdio reformou o banheiro, e construiu dois novos ambientes: uma sala de televisão, com
aparelhos de videocassete e DVD e um sofá para que os tatuadores tenham um lugar
quando não estão tatuando e, eventualmente, para que algum cliente espere. Atrás do
aparelho de televisão, uma parede divide o espaço em outro ambiente, com armários,
prateleiras e uma bancada em madeira, onde são guardados materiais diversos do estúdio,
incluindo documentos e adesivos de propaganda.
A cor predominante, após a reforma, passou a ser o branco. As cadeiras e sofás são
da cor laranja. Porta-papéis, também na cor laranja, foram afixados às paredes, próximo a
cada baia de tatuar. Na recepção, uma das paredes também foi pintada em laranja.
Comentei com o proprietário que, após a reforma, o estúdio ganhou um ar de hospital,
lembrando uma clínica médica. Ele me disse que sua intenção fora essa: queria dar uma
impressão de limpeza e assepsia para tranqüilizar os clientes quanto aos procedimentos
envolvidos.
64
8
O Japão apresenta uma técnica e padrões de tatuagem considerados sofisticados em relação à tradição
ocidental, que incorporou largamente sua influência.
65
5.2. Copacabana
Sul carioca, em que as modelos aparecem com os próprios rostos tatuados. Na verdade,
trata-se de um desenho executado pelo proprietário do estúdio, que foi posteriormente
sobreposto às modelos em computador.
A recepção dá caminho para um corredor, pelo qual se chega à sala de tatuagem e
piercing, à escada para o mezanino, ao banheiro e ao centro de esterilização. A sala de
tatuagem e piercing é composta por dois lavatórios, duas cadeiras reclináveis elétricas,
como aquelas de consultórios odontológicos, e dois espelhos redondos. Uma persiana
garante a visibilidade ou privacidade do que ocorre dentro dela. Já a sala de tatuar
localizada no mezanino não tem lavatório. Há apenas a cadeira reclinável, mesas de apoio
para o tatuador e um espelho retangular, maior do que os encontrados na sala de baixo.
Embora todas as salas tenham recipientes para sabão líquido e porta-papel-toalha afixados à
parede, os mesmos não estão em uso. O papel-toalha é cortado, dobrado e acondicionado
em outros recipientes. Não observei, nas salas de tatuar, nem o descarpack, nem o aparelho
de destruição de agulhas.
O centro de esterilização é uma sala separada, ao final do corredor, ao lado do
banheiro, onde se encontra o autoclave e todo o material necessário ao procedimento de
esterilização, bem como o estoque de material descartável utilizado no estúdio.
O estúdio foi decorado em preto, branco e vermelho. Como em outros estúdios que
visitei na cidade, há a presença de ladrilhos em xadrez preto e branco, mas não no piso
como é costume e sim na parede. O piso do estúdio é composto por três materiais
diferentes, com marcas de rodapés não mais existentes.
Três meses depois de iniciada a pesquisa de campo, foi aberto outro estúdio na
Praça Saens Pena, a menos de um quarteirão de distância do estúdio observado, uma filial
de um famoso estúdio de Copacabana. Nos últimos anos, o Rio de Janeiro tem sido palco
de uma expansão de estúdios de tatuagem e piercing. Estúdios de renome na cidade têm
aumentado sua área de atuação em busca de novos clientes, o que sugere uma alta procura
pelos seus serviços. O primeiro local desta expansão foi a Barra da Tijuca, bairro da Zona
Oeste da cidade. O próprio estúdio pesquisado abriu, anos atrás, sua filial na Barra, onde
67
atendia com ou sem hora marcada, o concorrente só atendia com hora marcada mediante
pagamento antecipado de R$50. Havia apenas um tatuador trabalhando na casa e os álbuns
de desenhos disponíveis eram xeroxes em preto e branco de outros desenhos, de modo que
mal se podia identificar certas figuras e, sem as cores, não se podia ter idéia de como a
tatuagem ficaria na pele.
O discurso do proprietário do estúdio pesquisado traz algumas informações
relevantes para se compreender o universo dos estúdios de tatuagem. Primeiro, embora haja
um Sindicato dos Tatuadores na cidade, ele não foi mencionado em nenhum momento, e
parece não servir como agente regulador em causas que ele considerou como éticas.
Segundo, a qualidade do trabalho dos tatuadores é o grande diferencial de um estúdio. Há
tatuadores especializados em tipos de desenhos diferentes. Idealmente, o cliente deve optar
por um estúdio e um tatuador que seja especialista no desenho que ele deseja tatuar. Como
exemplo, há um tatuador no estúdio pesquisado especialista em motivos orientais, como
dragões, e em retratos. Nem todos estes trabalhos são executados por ele, mas ele é
normalmente indicado tanto pelo recepcionista quanto por seus colegas para executar tais
trabalhos quando há demanda por parte de um cliente. A qualidade do trabalho do tatuador
traz inúmeras reflexões que serão vistas adiante, pois constrói a idéia de ser um
profissional, bem como a idéia de que a tatuagem é uma forma de arte.
O proprietário indica, ainda, como os estúdios têm lidado com a expansão da
demanda por tatuagens na cidade. A procura acentuada pelos serviços dos tatuadores é o
que possibilita a expansão dos estúdios, uma vez que a tatuagem é um serviço caro. A
concorrência não é vista com maus olhos, a não ser que seja desleal, como na cobrança de
preços abaixo do mercado. Há uma grande variação de preços entre os estúdios, e entre
estes e tatuadores que atendem em suas residências.
Além do preço, o cliente de tatuagem também se preocupa em buscar um local
limpo, tatuadores qualificados e um repertório de imagens que lhe agradem. De fato, nem
todos têm essa preocupação: desenhos podem ser obtidos fora do estúdio, em revistas,
livros e na Internet; a qualificação do tatuador é difícil de ser medida, e normalmente
constrói-se uma reputação a partir do boca-a-boca, da indicação de ex-clientes ou por
trabalhar em um estúdio famoso; a limpeza e profilaxia utilizadas, apesar de todas as
possibilidades de contágio, nem sempre é uma preocupação, visto que há ainda tatuadores
69
que trabalham nas ruas, onde nada indica que o material utilizado esteja devidamente
esterilizado.
Há que se observar, ainda, que o proprietário fala em propostas diferentes dos
estúdios. O estúdio pesquisado pareceu-me, ao longo de um ano de observação, sem um
público definido em termos de uma tribo urbana, ou alguma cultura juvenil. O proprietário
do estúdio parece procurar um público ligado ao rock. Como observei acima, o estúdio está
localizado em uma galeria em que funcionam três lojas de discos voltadas a este gênero
musical. O rock é a música preponderantemente ouvida pelos tatuadores dentro do estúdio e
percebi em campo que freqüentam também shows de rock. Por este perfil, o proprietário
escolheu uma rádio FM de rock para veicular anúncio do estúdio de tatuagem e da loja de
piercing, que funciona no mesmo andar na galeria.
9
Trata-se de um painel anexado ao vidro traseiro dos ônibus que circulam pela cidade.
10
As fichas são dadas aos clientes para que preencham campos como nome, endereço, telefone, profissão,
data de nascimento, estado de saúde, tatuador, desenho e sua localização no corpo.
70
manter o inferno bonito? Tatuados são religiosos? São cristãos que acreditam no inferno?
São pessoas más que vão para o inferno?
Acredito que a utilização da idéia de inferno remete não à expressão de uma
religiosidade do tatuado, mas é uma referência à religiosidade preponderante no Brasil, que
é de viés cristão. Dentro desta referência, o slogan trata da associação entre tatuagem e
desvio, com a idéia de que tatuados são desviantes. Talvez mais do que desviantes,
marginais. Em suma, o tatuado, que aparece aqui como um tipo de rebelde, estaria passível
das punições infernais. Trata-se de um slogan que faz uso de um determinado imaginário
sobre a tatuagem que ainda a vincula ao mundo do crime e do desvio, quando hoje o
público dessa prática é mais heterogêneo. Neste sentido, convém observar que o slogan
fazia propaganda de um estúdio de tatuagem, e não de um tatuador de cadeia. Esta
oposição estúdio/cadeia é, na verdade, uma oposição entre o profissional e o amador,
efetuada pelos próprios tatuadores conforme será visto adiante.
O tatuado, no slogan em questão, é percebido pelo próprio tatuador como um
desviante, mas eu sugeriria que se trata de um desvio na forma de uma vanguarda, dado o
público do estúdio em questão, conforme será indicado a seguir. Desde a contracultura,
pelo menos, não estar de acordo com algumas normas socialmente estabelecidas pode ser
visto como um dado positivo, quando estas são vistas como burguesas, caretas,
conservadoras. Uma tatuagem pode ser, neste sentido, uma espécie de rebeldia, de não
aceitação das normas vigentes quanto à estética corporal preponderante. O que desejo
demonstrar no presente trabalho, contudo, é que essa associação já não é tão forte, uma vez
que a tatuagem parece estar fazendo parte da estética corporal dominante na sociedade
carioca. Observe-se, neste sentido, que a tatuagem já é explicitamente tratada como uma
forma de embelezamento do corpo no outro slogan.
Por que o slogan está em inglês? É necessário indicar que este antigo estúdio, hoje
de portas fechadas, vendido a outro tatuador e reformado dando origem a um novo estúdio
que foi pesquisado e analisado neste trabalho, localizava-se entre Copacabana e Ipanema,
região bastante valorizada da cidade, contando com uma população de alto poder
aquisitivo. Uma população que possivelmente dava origem a um público capaz de entender
a língua inglesa. Ao mesmo tempo, utilizar o inglês torna-se uma forma de distinção de
72
8.1. Tijuca
11
Tatuagem que cobre um desenho anterior.
12
Entre os meses selecionados para o levantamento, setembro era o único em que constavam os valores pagos
pelos clientes.
75
de R$330, 14 clientes. Muitas vezes este valor é parcelado no cartão de crédito ou ao longo
de duas ou três sessões. Há um equilíbrio entre as faixas de valores: o preço mínimo e a
faixa de valores mais altos apresentam praticamente a mesma quantidade de clientes, assim
como a faixa de R$90 a R$150 apresenta praticamente a mesma quantidade de clientes que
as duas sucessivas somadas, de R$160 a R$300.
acima de R$330
R$221 a R$330
R$160 a R$220
R$90 a R$150
R$80
0 15 30 45 60 75
Devo observar aqui uma distinção entre gerência e administração, segundo utilizo
os termos: o recepcionista do estúdio é, também, uma espécie de gerente, enquanto o
proprietário é um administrador. O recepcionista orienta os clientes quanto à técnica de
tatuar, os melhores locais do corpo para certos desenhos, a possibilidade de mudanças nos
desenhos, o preço dos mesmos, a duração da operação e os cuidados com a tatuagem, e
marca os horários para aqueles que querem agendar o serviço de um tatuador. Além disso,
ele gerencia o estoque de material, repassando ao proprietário as necessidades indicadas
pelos tatuadores. É o recepcionista, ainda, quem recebe e repassa os pagamentos relativos
aos trabalhos executados. O estúdio conta, também, com o serviço de um office boy, que
sob orientação do proprietário e do recepcionista efetua pagamentos e eventualmente
compra materiais necessários.
O proprietário do estúdio aparece, então, como um empresário do ramo,
administrando dois estúdios de tatuagem e uma loja de piercing, onde trabalhavam sua
esposa e sua cunhada. É ele quem decide sobre a expansão do estúdio, preços, formas de
pagamento, bem como atendimento a menores de idade. Em nenhum momento, contudo, eu
o vi supervisionar o trabalho dos tatuadores. Pelo contrário, os profissionais têm liberdade
para atuar, embora estejam submetidos às regras de funcionamento do estúdio, referentes,
sobretudo, a formas de pagamento, horário de funcionamento, cuidado com a manutenção
do espaço físico, higiene do material, entre outros. Os tatuadores são menos empregados do
que amigos do proprietário. Por isso, na obra de expansão da loja da Tijuca, ele teve o
cuidado de mandar construir um espaço de espera e descanso para os tatuadores, com um
sofá, televisor e aparelhos de videocassete e DVD.
Este não é o seu primeiro estúdio. Antes de comprá-lo, foi proprietário de um outro
em Ramos13, bairro da Zona Norte carioca. Alguns tatuadores que trabalharam com ele em
Ramos foram convidados a trabalhar na Tijuca. O sonho de muitos profissionais da área é
ter seu próprio estúdio, conforme aponta Costa (2004). Ter um estúdio é uma maneira de
ter renome. É por isso que muitos estúdios levam o nome de tatuadores. Um dos
profissionais da casa saiu, durante a pesquisa, para abrir seu próprio estúdio, em uma outra
13
Em conversas com o proprietário do estúdio e outros tatuadores fui informada de que o estúdio pesquisado
era de propriedade de dois irmãos, ambos tatuadores, cujo gerenciamento do negócio era precário: não sabiam
administrar as contas, deixavam clientes esperando e abriam a loja quando queriam, sem ter horário fixo e
77
galeria comercial, vários quarteirões de distância, mas ainda no mesmo bairro, numa região
já com um outro estúdio de tatuagem. O proprietário não parece ter se aborrecido, mas
ficado contente com a ascensão profissional do amigo.
Ser proprietário de um estúdio é, portanto, parte do imaginário e das aspirações de
muitos tatuadores. O que torna distinta a posição do proprietário do estúdio pesquisado é
que, ao expandir os negócios, ele se tornou muito mais um administrador do que um
tatuador. São outros os profissionais que fazem nome em seu estúdio, ao mesmo tempo em
que a qualidade desses profissionais dá renome ao estúdio. Neste sentido, há uma troca
constante.
Os tatuadores consideram sua técnica, na maior parte das vezes, como uma arte: a
arte de desenhar sobre a pele. O domínio da arte de desenhar é, no universo dos tatuadores,
um valor positivo, invejado e almejado. Aparentemente uma contradição, nem todo
tatuador é bom desenhista. Desenhistas normalmente criam novos desenhos em papel, que
são vendidos a outros tatuadores e estúdios, ou sobre a pele diretamente.
O tatuador profissional considera-se um artista. O termo profissional, aqui
empregado, deve ser compreendido não apenas no sentido da profissão de tatuar, mas,
sobretudo, no sentido da qualidade da obra tatuada. O profissional é um bom tatuador,
como observa Costa (2004). Em oposição a ele, estaria o tatuador de cadeia, considerado
uma espécie de amador, cuja obra não tem valor artístico. De cadeia é um termo utilizado
no universo da tatuagem com o sentido de obra mal realizada, sem técnica, de baixa
qualidade, amadora, como demonstra Leitão (2003). As tatuagens realizadas ainda hoje nas
prisões, sem tintas ou material adequados, com agulhas ou máquinas improvisadas, não têm
valor artístico para eles. Falta-lhes uma técnica, que o tatuador aprende e domina ao longo
da carreira, tornando-se conhecido por sua experiência e bons resultados.
8.2. Copacabana
uma rotina pré-estabelecida. Durante três anos o atual proprietário sanou problemas financeiros, até tornar-se
dono da loja.
78
(COSTA, 2004), que atende prioritariamente àquela parte da clientela que não é formada
pelos amigos do proprietário, que são tatuados exclusivamente por ele. Esta divisão entre
amigos e não-amigos orienta boa parte dos procedimentos do estúdio. Como o estúdio
trabalha principalmente com o sistema de hora marcada, pede-se aos clientes novos que
paguem um adiantamento de R$50,00 pela reserva do horário. Aos amigos, contudo, não se
faz tal pedido. De fato, os amigos-clientes não costumam faltar às sessões de tatuagem e
estão sempre em contato com o estúdio, por telefone ou pessoalmente, para confirmar
horários e desmarcar sessões caso haja necessidade. O estúdio, por sua vez, se torna mais
flexível, desmarcando sessões quando necessário pois se trata de um negócio entre amigos,
em que boa parte da clientela é conhecida entre si. Normalmente as sessões são marcadas
com uma semana de antecedência, segundo a disponibilidade de agenda do proprietário.
O segundo tatuador, atendendo a clientes novos, tem poucos agendados. Fica,
portanto, restrito àqueles que vão ao estúdio sem uma indicação precisa de qual dos dois
profissionais requisitar. Dificilmente ele recebe clientes indicados por outros clientes ou
profissionais, como ocorre com o proprietário. O “boca-a-boca”, tão fundamental no
universo da tatuagem, não funciona para o segundo tatuador. Para ele, a clientela vem do
fato de estar trabalhando em estúdio, ao invés de em sua residência ou sem local fixo.
Durante a observação de campo, notei que o segundo tatuador passa muito mais tempo
ocioso do que ocupado e tem mais tempo ocioso do que o proprietário. No sábado, contudo,
o segundo tatuador trabalha sozinho. Segundo o proprietário do estúdio de Copacabana,
costumava trabalhar no sábado, abrindo o estúdio ao meio-dia, como durante a semana. Os
clientes, porém, só apareciam após as 17 horas, vindos diretamente da praia, o que o levava
a fechar a loja tarde da noite, depois das 22 horas. Cansado, desistiu de trabalhar aos
sábados.
Sábado é, no estúdio pesquisado na Tijuca (e, segundo o proprietário, também em
sua filial na Barra da Tijuca, na Zona Oeste), o dia mais lucrativo. É tão movimentado, que
me pediu que jamais fosse pesquisar aos sábados, pois eu seria um transtorno, dada a
quantidade de clientes.
Como todo profissional da área, o segundo tatuador deseja ter seu próprio estúdio.
Certa vez, contou-me que desejava abrir um em Vila Isabel, onde eu residia na época, na
Zona Norte carioca. Bairro com forte comércio de rua e desprovido de estúdios, parecia-lhe
79
um bom empreendimento. Permanecia na Zona Sul, contudo, pois queria ganhar mais
experiência e renome. Conforme apontei anteriormente, o atual proprietário deste estúdio
fora segundo tatuador até conseguir o ponto comercial para si. Trabalhando no mesmo
local, ele manteve a mesma clientela do estúdio anterior. Ao contrário do proprietário do
estúdio da Tijuca, portanto, este não é um administrador, mas um profissional atendendo a
uma clientela formada em anos de trabalho.
Como a maior parte dos clientes é formada por amigos do proprietário, não existe
uma atitude de “venda” de tatuagens, pois isto não é necessário para garantir o ganho
mensal. O segundo tatuador recebe 50% do preço de uma sessão e a recepcionista não é
comissionada. O proprietário, contudo, disse-me que também recebe apenas 50%,
separando o que considera “o dinheiro da loja” para os custos de manutenção desta. Como
o proprietário tem mais clientes do que o segundo tatuador, seus ganhos são maiores.
O proprietário deste estúdio costuma passar vários meses do ano viajando. É
convidado para trabalhar no Caribe, onde conhece tatuadores. Disse várias vezes que ganha
mais trabalhando fora do país. Embora seja, para ele, um prazer sair da cidade por alguns
meses, encara o trabalho no exterior também como uma necessidade, pois disse que teve
que enviar dinheiro de fora para arcar com o custo de funcionamento do estúdio. A
recepcionista, sua namorada, viaja com ele. Enquanto está fora, o segundo tatuador trabalha
sozinho. Os clientes-amigos do proprietário não procuram os serviços do segundo tatuador,
mas esperam até que retorne de viagem.
O preço mínimo da tatuagem é R$100,00. Ao contrário do que observei na Tijuca, a
barganha por um preço menor não é comum. Os clientes-amigos muitas vezes não
perguntam o preço da tatuagem. Muitos chegam ao estúdio sem sequer ter escolhido o
desenho e mesmo sem nenhum preferência. Muitas vezes o desenho é elaborado na hora e
tatuado antes que se discuta o preço. Neste sentido, estar na Zona Sul, área mais rica da
cidade, faz diferença.
Ao longo da observação, verifiquei que a maior parte dos trabalhos executados nos
amigos-clientes é considerada de tamanho grande, o que significa dizer que são também
caros. Quando há mais de uma sessão, cada uma custa em média R$300,00. Muitas vezes
são realizadas duas ou três sessões por mês no mesmo cliente. Mesmo desenhos
80
Sobre a idéia da tatuagem como arte e do tatuador como um artista, gostaria de fazer
uma comparação. Price (2002), estudando a percepção ocidental sobre a arte primitiva,
indica que esta é uma classificação que envolve certos critérios, entre eles, a falta de um
autor. Em outras palavras, a arte primitiva não é “assinada” por um artista, mas é vista
como a arte de um povo, de uma cultura. A tatuagem ocidental era tratada da mesma forma
até o século XIX: não havia nomes conhecidos de tatuadores, apenas a idéia genérica de
tatuagem, quando alguns tatuadores, considerados de elevada técnica, fizeram não apenas
seu nome, mas se tornaram uma espécie de mito, principalmente aqueles que tatuaram a
nobreza européia da época, de onde advém este renome. Em contato com camadas
superiores, eles ascenderam e o mundo da tatuagem ascendeu com eles.
82
14
Como exemplos pesquisados, cito http://www.neoarte.net/historia.htm, em 25/07/2002, e
http://www.terra.com.br/jovem/especiais/tatuagem/historia.htm, em 25/07/2002. A primeira é produzida por tatuadores,
a segunda constitui matéria especial do provedor Terra, direcionada ao público jovem.
84
em 1975. O universo dos tatuadores é competitivo. Acusar algum tatuador de não ser
profissional é uma maneira de colocá-lo à margem. Marques (1997, p.219) afirma que
Observando esta relação por outro viés teórico, amadores e profissionais constituem
categorias de alteridade. Ser um profissional é não ser um amador, e vice-versa.
Para a presente análise, é interessante observar o campo da tatuagem, ou dos
tatuadores, como uma espécie de campo artístico. Para Bourdieu (1992), o campo artístico é
constituído na e pela recusa, ou inversão, da lei do ganho material. Por isso, eu sugeriria,
tatuagens para concursos são, muitas vezes, realizadas de graça em “modelos” que as
aceitam em troca da exposição da obra em convenções de tatuagens. São, normalmente,
desenhos grandes, sobretudo painéis, cujo preço ultrapassa mil reais. A escassez de clientes
dispostos a desembolsar tais quantias dificulta a exposição deste tipo de trabalho. No
estúdio pesquisado na Tijuca, observei um caso desses, um rapaz que era tatuado de graça
por um dos profissionais da casa para ser exposto na convenção de São Paulo, a principal
do país. Nos concursos, o que se avalia é justamente a qualidade artística da tatuagem e,
portanto, a qualidade artística do tatuador.
A idéia de tatuagem como uma forma de arte engendra, ainda, conseqüências para
as relações de gênero na profissão. Tenho indicado que se trata de uma profissão
eminentemente masculina, um tipo de ocupação onde se encontram mais homens do que
mulheres. Estas são mais visíveis nas recepções dos estúdios ou trabalhando como piercers.
Na medida em que a tatuagem é um processo que pode ser visto como arte, enquanto
desconheço debates sobre a prática do piercing como um processo artístico, aquela se torna
uma ocupação (ser tatuador) mais valorizada do que esta (ser piercer). Assim, os piercers
costumam trabalhar nos estúdios de tatuagens, e não em lojas dedicadas exclusivamente ao
piercing, por se tratar de uma forma de modificação corporal menos valorizada e que,
portanto, entende-se que não exista sozinha. Ser praticado em estúdios de tatuagem coloca
o piercing em uma posição não apenas inferior, mais baixa, mas submetida. Com tantas
características femininas (BOURDIEU, 2003), não é por acaso que tenha se tornado um
terreno de mais fácil ingresso para mulheres.
86
15
Agradeço as considerações e esclarecimentos de ordem jurídica prestados por Christian Edward Cyril
Lynch e Dax Moraes.
87
mesmo em companhia dos pais, como pude presenciar. Penso que, na verdade, esta
Resolução torna oficiais procedimentos que os tatuadores já adotavam antes dela.
Conforme reportagem de Magalhães (2004) para O Globo, o Sindicato dos
Tatuadores assessorou a Prefeitura na formulação de tais normas, o que é provavelmente
responsável pela adequação da maior parte dos estúdios a priori. Contudo, creio que a
oficialização de tais procedimentos, com as punições cabíveis pelos órgãos estatais, é mais
uma parte do processo de diferenciação observado no universo da tatuagem entre os
profissionais e os amadores. Forma-se, a partir desta Resolução, um campo oficial da
prática da tatuagem e do piercing na cidade, que passa pela intervenção do Sindicato dos
Tatuadores, que com isto ganha prestígio e se lança como intermediário e porta-voz dos
profissionais da área, adensando a separação entre estes e os amadores, que são excluídos
do campo de atuação.
A Resolução cumpre, portanto, várias funções. Ao mesmo tempo em que torna o
Estado uma instância efetivamente reguladora de questões de saúde relativas a estas duas
práticas na cidade do Rio de Janeiro, torna instância reguladora igualmente o Sindicato dos
Tatuadores. Associados na forma de um sindicato, fenômeno que não é visto em todo o
Brasil16, os tatuadores cariocas estão operando uma forma de distinção em seu campo de
atuação profissional e construindo uma instância reguladora própria, com legitimidade
suficiente para ser consultora do próprio Estado. O Estado, na verdade, tornou oficiais
práticas já adotadas pelos tatuadores profissionais, que agora contam com o aparato da
Vigilância Sanitária para afastar de seu campo os amadores, ou seja, aqueles sem
infraestrutura adequada para a execução do trabalho: sem autoclave, sem alvará, sem
construção sólida, entre outras requisições. Isto não quer dizer que os tatuadores de estúdio
estejam sendo privilegiados, pois os tatuadores e piercers que trabalham em suas próprias
residências podem igualmente manter-se dentro das requisições e recomendações da
Resolução municipal.
A regulamentação da prática por instância governamental traz novas reflexões sobre
a tatuagem. Primeiro, há uma preocupação da ordem de saúde pública, o que implica um
certo discurso médico sobre a prática. Por outro lado, limita-se a idade a ser tatuado, o que
por sua vez implica uma certa concepção sobre o bem-estar e a autonomia de crianças e
16
COSTA (2004) se refere a uma Associação dos Tatuadores em Florianópolis, e não a um sindicato.
89
na área turística da cidade, recebe um constante fluxo de turistas estrangeiros, o que não
ocorre na Tijuca. Por outro lado, seu público majoritário é formado por amigos do
proprietário. Isto ocorre porque há 12 anos o profissional atende no mesmo ponto
comercial, antes como segundo tatuador e depois, comprando o estúdio onde trabalhava,
como proprietário. Trabalhando quase metade do ano no exterior, sua presença na cidade
concentra os clientes fiéis, já considerados amigos.
Na Tijuca, a profusão de profissionais na casa não permite a freqüência exclusiva de
amigos. O sucesso e o crescimento do negócio – o estúdio abriu loja específica para
piercing na Tijuca e filial na Barra da Tijuca – tornaram o proprietário um administrador,
que gerencia as lojas, faz propaganda dos estúdios e raramente tatua. A própria organização
dos dois estúdios pesquisados, neste sentido, mostrou-se distinta: o estúdio de Copacabana
apresenta uma característica mais familiar, enquanto o da Tijuca assemelha-se mais a um
modelo burocrático (WEBER, 1971).
Essa diferenciação na organização administrativa dos estúdios é reflexo do
crescimento na clientela de tatuagens na cidade. A expansão para outros bairros do que
ainda é um negócio estritamente regionalizado, que atende fundamentalmente a um público
do bairro, demonstra este crescimento. Embora o estúdio pesquisado em Copacabana
sofresse quedas de receita, sanadas pela freqüência de turistas estrangeiros ou pela remessa
de dinheiro pelo proprietário quando trabalhando no exterior, creio que isto se deve menos
a uma retração da clientela de Copacabana, que como visto gasta em média mais do que
aquela observada na Tijuca, do que a uma administração que não tem tido sucesso em
aumentar a clientela.
Em outras palavras, se o proprietário do estúdio de Copacabana sente necessidade
de trabalhar fora do país para recuperar um lucro que não tem aqui, isto se deve menos à
retração de uma clientela para as tatuagens na cidade do que ao gerenciamento de seu
próprio negócio. Na medida em que ele atrela sua clientela a uma relação de amizade, faz
com que o estúdio seja mais freqüentado quando está presente, o que produz seu
esvaziamento quando está ausente, levando a uma queda de receita. Trata-se, portanto, de
uma forma de gerenciamento que não está permitindo a sobrevivência do estúdio em um
cenário novo para este negócio na cidade, um cenário de expansão e concorrência.
91
Estar na Zona Sul ou na Zona Norte carioca não é o fator principal da resposta dada
por cada estúdio para o novo cenário de concorrência. Parece, antes, haver um ethos
diferente de administração, uma opção efetuada pelo proprietário por quem será o público e
qual será a estratégia para alcançá-lo. É a conjugação destes dois fatores que parece
influenciar o sucesso ou fracasso do estúdio como empreendimento, em termos de
lucratividade, medido aqui na abertura de filiais e, conseqüentemente, aumento no número
de tatuadores trabalhando no estúdio.
No estúdio pesquisado em Copacabana, ao mesmo tempo em que os amigos são a
clientela majoritária, sua presença está concentrada nos períodos do ano em que o
proprietário está no país. Estes clientes-amigos dão ao estúdio um ethos relacional, de
empreendimento familiar executado entre pessoas conhecidas. Na Tijuca, ao contrário, a
impessoalidade e a grande quantidade de profissionais deram ao proprietário um ethos de
administrador, quase burocratizado, o que se mostrou estratégia mais exitosa de sobreviver
à concorrência.
92
1. Área de residência
A partir das fichas de cadastro, foi possível determinar a região de residência dos
clientes do estúdio pesquisado na Tijuca. 70% dos clientes é oriunda da própria Zona Norte.
94
A Tijuca, onde o estúdio está localizado, responde por 42.2% da clientela desta região, e
forma entre 25% e 30% do público total do estúdio. Nenhum outro bairro da Zona Norte
apresenta um contingente tão grande de clientes. Os outros bairros mais freqüentemente
citados são: Grajaú (8.9%) e Vila Isabel (6.3%), bairros contíguos à Tijuca. Como a Zona
Norte é uma região extensa que abrange diversos bairros, muitos deles apresentam apenas
um cliente, o que representa menos de 1% do público.
45,00%
40,00%
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
Tijuca Grajaú Vila Isabel
A Zona Sul representa 12% a 15% do público mensal do estúdio. Botafogo (21%),
Flamengo (17.5%) e Copacabana (14%) são os bairros mais citados, representando 52.5%
da clientela residente na Zona Sul. A Zona Oeste representa 7% do público do estúdio,
incluindo-se a Barra da Tijuca, onde o estúdio mantém uma filial. A região do Centro foi a
que apresentou a maior variação entre os meses pesquisados. Em setembro de 2003,
formava quase 7% dos clientes. Em dezembro de 2003, a percentagem caiu para 3%,
embora em números absolutos a freqüência de residentes da área seja apenas ligeiramente
menor (uma queda de 11 para 8 indivíduos). Em janeiro de 2004, apenas um cliente
residente na região procurou o estúdio, o que representa 0.6% da clientela.
95
Gráfico n. 3 - Percentual dos bairros da Zona Sul onde mais freqüentemente residem
os clientes do estúdio pesquisado
25%
20%
15%
10%
5%
0%
Botafogo Flamengo Copacabana
Outros Municípios
Centro
Zona Oeste
Zona Sul
Zona Norte
2. A predominância feminina
Observe-se que as mulheres formam cerca de 70% dos clientes, número observado
por outros tatuadores em outros estúdios, como Emerson, tatuador da Rocinha1, que
afirmou ao site Beleza Pura2 que 70% de seus clientes são mulheres (LEAL, 2005).
1
Antiga “maior favela da América Latina”, hoje com status de bairro, encravada no morro entre os bairros da
Gávea e São Conrado, Zona Sul carioca, áreas extremamente valorizadas da cidade.
2
Ligado ao site do projeto Viva Favela do Viva Rio, ONG carioca. O projeto privilegia as comunidades de
favelas e assim o faz também o Beleza Pura, mas voltado ao universo da estética.
98
jan/04
Mulheres dez/03
set/03
Homens
3
Ver Capítulo 1.
99
A grande maioria do público da tatuagem é branca. Esta cor de pele permite o uso
de qualquer tipo de traço e cor, como uma tela de pintura para o artista. Quanto mais escura
a pele, maiores são as limitações no uso de cores. A pele negra não é propícia à tatuagem.
As peles mulatas só permitem o uso de tinta negra. Para peles bronzeadas prefere-se a
utilização de cores quentes, como vermelhos e laranjas. Desta forma, não é de se estranhar
que o público seja majoritariamente branco. Quando utilizo a categoria “branco”, estou
fazendo menção a características que, no Brasil, são associadas a este grupo. Os tatuadores,
no entanto, parecem utilizar uma outra classificação para a cor da pele, que não envolve
características raciais, mas apenas a cor.
No início do trabalho de campo, enquanto realizava as observações a partir da sala
de espera do estúdio da Tijuca, observando o ir-e-vir de clientes e curiosos em geral, pude
presenciar a classificação de cor da pele elaborada pelos tatuadores em ação. Um casal foi
ao estúdio querendo tatuar-se. Eram brancos, jovens, aparentando idade não muito superior
aos vinte anos. Estavam bronzeados, apresentando a pele queimada e avermelhada pelo sol.
Conversavam com o tatuador sobre o desenho desejado e o local do corpo escolhido para
ser marcado. O rapaz perguntou ao tatuador se deveriam optar por uma tatuagem colorida
ou apenas em preto, ao que o profissional lhe respondeu que “vocês não são brancos” e que
nesse caso não era recomendável uma tatuagem colorida, pois as cores não “apareceriam”.
“A pele morena não pega cor muito bem”, disse ao casal.
O casal em questão era loiro e de cabelos lisos, longe do que o senso comum
brasileiro considera como “moreno”. No universo da tatuagem não é a concepção racial que
é utilizada, mas uma outra categoria definida exclusivamente pela cor da pele em função
das possibilidades da própria prática de tatuar. Trata-se de classificar a cor de pele apenas
pela cor visualmente percebida, independente das classificações raciais, de status ou de
posição social.
Em outra ocasião, quando passei a observar os clientes sendo tatuados, presenciei
situação semelhante. Uma moça de 25 anos, cabelos alisados e olhos claros, foi ao estúdio
4
MARQUES (1997) afirma que o primeiro estúdio profissional de tatuagem do Rio de Janeiro foi aberto em
Ipanema por uma tatuadora, Ana Velho.
100
acompanhada da mãe para fazer sua primeira tatuagem, um presente de aniversário que
conquistou junto à família. Tatuava um personagem de desenho animado, colorido em azul
e branco, na região lombar. O tatuador, classificando-a como “morena”, sugeriu que não
utilizasse o branco no desenho, pois a pele não seria capaz de absorver pigmento tão claro.
No momento em que foi classificada como “morena”, a cliente respondeu ao tatuador que
era branca e dizendo que apenas estava bronzeada de praia. Uma de suas principais
preocupações ao ser tatuada era justamente a extensão do período em que teria de ficar
afastada da praia e do sol. O sol é um dos grandes “inimigos” da tatuagem, pois queima não
apenas a pele, mas os próprios pigmentos utilizados, alterando o tom e o brilho das cores.
Para se tomar sol, é necessário cobrir a tatuagem com uma camada espessa de filtro solar.
No estúdio pesquisado em Copacabana a classificação em ação é a mesma. Para
peles negras, mais ou menos escuras, diz-se que são “morenas”, e informa-se que a
utilização de cores não é ideal. Para aqueles bronzeados de praia, da mesma forma, sugere-
se pouca cor, ou tons mais escuros.
4. Perfil etário
Dos 16 aos 25 anos, tem-se um total de 230 casos (39.9%). Acima desta faixa, ou
seja, dos 26 em diante, há um total de 349 casos (60.1%), conforme o Gráfico n. 7 acima.
Se o cálculo fosse efetuado com um grupo de 16 aos 29 anos, este total se alteraria para 338
casos (56.9%), contra 250 casos (43.1%) a partir dos 30 anos, conforme o Gráfico n. 8
abaixo. A faixa entre 26 e 29 anos, portanto, é o diferencial para se definir se a tatuagem é
hoje procurada por jovens ou não jovens. Fugindo à possível polêmica sobre o que é, afinal,
a juventude, o que é ser jovem, pode-se observar no quadro acima que o público
preponderante está entre os 20 e os 39 anos, com uma ligeira vantagem para as faixas entre
102
20 e 25 anos e entre 30 e 39 anos. Esta última faixa é, a meu ver, aquela que causa alguma
surpresa, pois os trinta anos não costumam ser considerados no escopo de possibilidade de
definição do que seja juventude. Para outros, contudo, mais surpreendente pode ser a
existência de casos de tatuagem em indivíduos acima dos 60 anos.
90
80
70
60
50 set/03
40
dez/03
30
20 jan/04
10
0
16- 18-19 20-25 26-29 30-39 40-49 50-59 60 ou
17anos anos anos anos anos anos anos mais
26 anos e acima
16-25 anos
30 anos e acima
16-29 anos
“’Como estou me aproximando dos 30, tenho a tendência a me sentir um pouco mal
porque eu me digo que não é mais a minha geração. É um pouco como ver uma senhora
de salto agulha.’ (Maryse, 27 anos, estudante)
‘Eu escolhi uma tatuagem discreta na parte de baixo das costas porque a pele não pára de
envelhecer e eu poderei escondê-la mais tarde, quando eu tiver filhos.’ (vendedora, 22
anos)”5
Com relação ao público dos estúdios pesquisados, não observei a mesma percepção.
É certo que, como o autor aponta, a preocupação com a velhice se expressa também no Rio
de Janeiro mais entre as mulheres do que entre os homens, mas se trata aqui de uma velhice
avançada, percebida esteticamente (a pele flácida) e não em termos de compromissos
sociais (ter filhos), como na França. A tatuagem é vista, entre o público observado, como
estranha para um corpo enrugado e flácido, e não para uma pessoa idosa. A juventude,
portanto, é pensada na França como um momento de menos compromissos sociais,
enquanto no Brasil ela é percebida com um aguçado senso estético, em função do viço da
pele e da beleza do corpo.
5
“’Comme j’approche de la trentaine, j’ai tendence à me sentir um peu mal à l’aise parce que je me dis que
ce n’est plus ma generation. C’est um peu comme de voir um vieille à talons aiguilles.’ (Maryse, 27 ans,
étudiante); ‘J’ai choisi um tatouage discret e dans lê bas du dos car la peau ne se détendra pas em
vieillissant et je pourrais le cacher plus tard quand j’aurai des enfants.’ (vendeuse, 22 ans).”
104
Como exemplo, posso citar uma tarde no estúdio da Tijuca em que observei duas
irmãs, acompanhadas da mãe, que iriam ser tatuadas. As filhas aparentavam vinte anos,
talvez com uma diferença pequena de idade entre elas. A mãe aparentava cinqüenta ou
mais. A mãe consertava eventuais erros de proporção nos desenhos escolhidos pelas filhas,
dava palpites na localização das tatuagens e dizia estar lá para dar apoio moral às moças.
Dizia não ser contra tatuagens e pensava em um dia fazer uma, mas sentia-se “muito velha”
para tal. Sabia, inclusive, qual desenho gostaria de ter tatuado e em que parte do corpo:
queria um “olho de Hórus” na nuca (Figura 15, p. 236). “Se eu fosse mais nova”, disse,
“faria uma cobra de alto a baixo da coluna. Mas agora que estou velha, as pelancas caindo,
não sei”. Uma das filhas se manifestou: “a minha aqui também vai cair um dia.”
A concepção de velhice da mãe era a mesma da filha, referindo-se à estética
corporal. Para a filha, contudo, a velhice, pensada em termos da “queda” da pele, ou como
a mãe definiu, a “pelanca”, a pele flácida e mole, não era um problema na decisão de
adquirir uma tatuagem. A filha não pensava em uma realidade ainda distante, mas
demonstrava que a reflexão não lhe escapou. A mãe, por outro lado, sentindo-se já velha,
observando seu corpo sem o mesmo viço da juventude, demonstrava preocupação com uma
realidade imediata e não vindoura.
Na França (LE BRETON, 2002), os 30 anos marcam o começo do envelhecimento,
porque marcam também a idéia da formação da família, sobretudo entre as mulheres. Não é
apenas com a estética envelhecida que a marca não combina, mas com as responsabilidades
de um sujeito adulto. A juventude emerge, ao contrário do caso carioca, como a antítese do
mundo adulto.
No estúdio da Tijuca, observei muitos clientes acima dos 30 anos fazendo tatuagens,
e muitas vezes a primeira. O envelhecimento não era, para eles, uma preocupação. O
elevado número de clientes de 30 anos ou mais (43.1%) parece se dever, portanto, também
a uma percepção em que a tatuagem não é vista como uma prática apenas da juventude,
mas como uma prática corporal disponível a quem dela queira fazer uso. Além dessa
dissociação, creio que a existência de um público acima dos 30 anos envolve questões tanto
financeiras, porque a tatuagem é uma prática cara, quanto questões estruturais que defino
no conceito posse de si (BENSON, 2000; LE BRETON, 2002). Segundo esta idéia, os
tatuados marcam seu corpo como uma forma de afirmação de propriedade sobre ele. Como
105
será visto na discussão sobre gênero, para as mulheres é difícil e parece necessário declarar
essa posse de seu próprio corpo, regulado constantemente pela família, sobretudo por
maridos e pais.
Sem as fichas de clientes, tornou-se difícil elaborar um padrão etário para o estúdio
de Copacabana. A maior parte da clientela parece estar abaixo dos 30 anos, embora haja
clientes assíduos acima desta faixa etária. Certa vez, um senhor aposentado chegou ao local
para sua primeira tatuagem, influenciado pelo filho, cliente do estúdio. Descrevo este
cliente em outro capítulo, pois sua concepção mística das tatuagens gerou uma análise
sobre os desenhos e suas significações pessoais para os tatuados.
perguntou-se à menina o que ela desejava tatuar: “uma estrela”, ela disse. O dono do
estúdio relaxou, pois concordou que era um desenho difícil de causar arrependimento.
Há uma representação social sobre a adolescência presente nas histórias acima que
parece ser um dos fatores de preocupação quanto à tatuagem em menores. O adolescente é
visto como uma força transformadora, mas também como um elemento desordenado e
caótico: não pensa no futuro, não pensa em seu ingresso no mercado de trabalho, e por isso
pode se arrepender de se tatuar em locais visíveis, ou mesmo de se tatuar; sua mentalidade
e interesses podem mudar, pois é um ser incompleto e inexperiente, que viveu poucos anos.
Enquanto ele muda e a juventude passa, a tatuagem permanece. Por isso deve-se pensar
bem, escolher com cautela e refletir. Mas, como indica Almeida (2001), mesmo para pós-
adolescentes nem sempre a tatuagem é o resultado de um processo reflexivo.
6. Mudança de status
cogumelo, mas pediu ao tatuador que diminuísse o desenho. Escolheu as costas (por trás do
ombro) para tatuá-lo.
A panturrilha que Mônica escolheu tatuar é um local tão visível quanto as costas
(por trás do ombro) onde Márcia e Marcela fizeram suas primeiras tatuagens. Sendo a
tatuagem um adorno corporal, que o tatuado entende como uma espécie de embelezamento
de seu corpo, convém perguntar se a primeira marca não é escolhida justamente em algum
lugar de fácil visibilidade, para que esteja à mostra, identificando o antes não tatuado a um
agora-tatuado.
A idéia de ser tatuado pode envolver idéias de autenticidade, de que o tatuado é uma
pessoa alheia às imposições sociais, que tem personalidade para ir contra elas, o que de fato
nem sempre ocorre, dada a preocupação em se poder esconder os desenhos. Ao mesmo
tempo em que a panturrilha de Mônica e as costas de Márcia e Marcela podem ser
facilmente deixadas à mostra, também podem ser escondidas pelas roupas.
Para Marcela e Mônica, os 18 anos foram marcados pela idéia de liberdade: a
liberdade de se tatuarem, a autonomia sobre seus corpos, a liberdade de fazerem dele o que
quisessem, sem a presença de nenhum responsável, mas com o apoio de uma amiga ou um
namorado. Ou seja, liberdade e autonomia, mas não um isolamento. As duas pareciam
igualmente realizadas por passarem por aquele processo, como se ele fosse a prova que
mostrava ao mundo o novo status recém-adquirido. Tatuadas, estavam informando, por
meio de seus corpos, que eram pessoas “maiores”, com um grau de autonomia antes não
existente.
A fim de aprofundar a idéia de autonomia relacionado ao uso jovem da tatuagem, é
interessante retomar a forma como Le Breton (2002) utiliza a noção de posse de si quando
analisa o uso de tatuagens entre os jovens franceses, apontando para uma tensão entre
diferentes gerações: os pais tentando controlar seus filhos e estes tentando fugir a tal
controle. A partir desta visão, torna-se mais clara a relação entre tatuagem, juventude e
autonomia.
Por outro lado, o uso jovem da tatuagem parece envolver a idéia de autenticidade,
que pode estar vinculada a noções de autonomia, individualidade e originalidade. É
necessário apontar aqui que estas idéias parecem caminhar juntas no uso atual das
tatuagens, até certo ponto tornando-se indissociáveis. A noção de originalidade, quase
109
7. Conflitos geracionais
6
Para um aprofundamento da discussão, ver LEMMERT (1994).
110
irmão fosse tatuado, a mãe de ambos não poupava críticas à escolha do filho e Joyce
pretendia fugir às críticas maternas ocultando a marca.
De dentro do estúdio, de fato, é mais difícil observar posições familiares contrárias à
prática da tatuagem. Na sociedade, o conflito pode se tornar mais evidente, mas, como esse
conflito se desenrola na esfera privada, ele se mantém ainda invisível.
Em reportagem de capa para a revista Vida de agosto de 2004, veiculada no Jornal
do Brasil, sobre a Resolução municipal carioca, o conflito geracional se torna mais
evidente, mesmo que se trate do uso do piercing e não da tatuagem. Apresentados na
reportagem como grupos geracionais em conflito, creio antes que se está diante de um
embate entre a percepção médica do corpo e os usos que os sujeitos fazem dele.
Ao longo da reportagem, percebe-se que os pais entrevistados, embora apelem para
questões de “risco à saúde”, nem sempre estão preocupados com os malefícios físicos que
tal prática pode vir a trazer, mas sim com as suas implicações morais, nunca mencionadas
diretamente. Apenas o risco à saúde é caracterizado, conquanto os pais se refiram a
“problemas”, nunca especificados, o que leva a uma idéia de que ou não há argumentos
substanciais e a noção de risco está vinculada a um medo não especificado, ou se trata de
uma alusão a possíveis estigmas (GOFFMAN, 1975) tampouco determinados.
Na revista, apenas adolescentes do sexo feminino são entrevistadas. Um único rapaz
é mencionado, primo de uma das entrevistadas, todas menores de 18 anos. Ao final da
reportagem, as opiniões de um médico e de um psicólogo dão pistas sobre as diferentes
visões: de um lado os pais e o discurso médico se alinham em uma voz quase uníssona; de
outro, os filhos e o psicólogo apresentam as modificações corporais como fruto da
sociedade e da cultura.
A professora Maristella Almeida Cunha, mãe de uma adolescente que fez um
piercing aos 13 anos, contou à revista Vida como se preocupou com o que considerou
“despreparo para algum imprevisto. Não havia kit de primeiros socorros, nem um
profissional de saúde (...)” (p. 17), apesar de ter considerado o local bastante asséptico.
Logo após, ela conclui: “Não considero o piercing um adorno bonito. Ao contrário, acho
vulgar” (p. 17).
O designer gráfico Cláudio Novaes, pai de uma adolescente de 14 anos que teve a
jóia colocada em seu umbigo, tinha como argumentos contra a prática “perigos [não
111
elas. Ela se coloca em posição desprivilegiada para decidir sobre algo que pode marcá-la
por toda a vida, como a tatuagem, mas não para decidir sobre o piercing, por sua qualidade
não-permanente.
No conflito de gerações, noções de gosto parecem exprimir os prós e contras para
piercings e tatuagens – e possivelmente outras práticas de modificação corporal. Quando o
gosto adolescente e o gosto paterno entram em conflito, lança-se mão dos “riscos à saúde”
para coibir as intenções dos mais jovens. Em sujeitos acima desta faixa etária, não há como
proibir a prática, mas a atuação repressiva da família opera mais diretamente com a noção
de gosto, conforme será visto adiante.
Um cliente do estúdio pesquisado de Copacabana indicou como viveu processo
familiar contrário à tatuagem. Morando sozinho desde seus 19 anos, tatuou-se sem o
conhecimento de seus pais. O desenho gravado no braço era escondido pelas mangas de
camisa. Quando se tornou mais confiante de seu desejo por novas marcas, o cliente tornou-
se, ao mesmo tempo, mais relaxado no encobrimento da tatuagem. A mãe, ao perceber a
marca, disse-lhe que era bonita, mas que esperava que fosse a única. A cada nova tatuagem,
contou o cliente, a mãe reforça o desejo de que não se tatue mais. Seu pai, por outro lado,
foi mais enfático na crítica ao filho: disse-lhe que “quem pinta o corpo é índio”, indicando a
velha diferenciação entre hábitos civilizados, de bom gosto, e hábitos selvagens, que devem
ser evitados.
Não se pode dizer a quais grupos urbanos, jovens ou não, pertencem os tatuados
cariocas. Para tanto, seria necessário pesquisar cada um deles, tarefa exaustiva e impossível
no presente estudo. Observando-se os dados levantados, contudo, pode-se traçar um perfil
mais geral dos tatuados cariocas. Hoje esse público tem sido formado prioritariamente por
mulheres, não necessariamente nos estratos etários considerados como juventude. Essa
constatação quebra com um imaginário da tatuagem que a relacionava ao universo
masculino e à juventude.
O que um dia foi, de fato, uma prática masculina já não é mais. Essa mudança
reflete não apenas novos caminhos do feminino e do corpo em nossa sociedade, mas
possibilita uma visão analítica da marca que busca um ponto comum entre a atual
113
família pelo desejo de ser marcado, mulheres e jovens constróem aí este espaço de
autonomia pessoal. Eu sugeriria, embora os dados de campo não me permitam afirmar, que
esta busca por autonomia é anterior à marca.
115
Este capítulo trata dos desenhos mais freqüentemente procurados pelo público e
regiões do corpo a serem tatuadas. Os desenhos são classificados em estilos, o que
envolve tanto uma noção estética quanto de técnica a ser empregada. Os estilos aqui
apresentados foram compilados do que foi observado em campo e na literatura da área.
Para uma análise dos desenhos, contudo, apliquei uma classificação minha que destaca
o elemento central que desejo analisar. Os dados sobre desenhos mais procurados e
locais do corpo mais freqüentemente tatuados são oriundos de fichas de clientes
pesquisadas no estúdio observado na Tijuca.
Após o levantamento destes dados, observou-se que a região a ser escolhida e o
desenho a ser tatuado estão intrinsecamente relacionados às diferenças de gênero. Os
desenhos preferidos pelos homens se mostraram aqueles relacionados ao que
classifiquei como um ethos guerreiro, pois evocam elementos associados à morte, à
agressividade e à destruição. Os desenhos preferidos por elas, ao contrário, são aqueles
considerados delicados: são pequenos, coloridos e representam a idéia de fragilidade,
como as flores e as borboletas. Os locais tatuados raramente se confundem. Os homens
tatuam sobretudo os braços, ressaltando a força muscular como característica masculina
e componente deste ethos guerreiro. As mulheres, por outro lado, buscam áreas menores
e por vezes escondidas, como a nuca, o pé e as costas.
A escolha por um desenho envolve uma gama variada de motivações. Nem
sempre a escolha está claramente disposta de forma lógica como “quem tatua o Cristo é
religioso” ou “quem tatua gnomos acredita neles”. O processo de escolha de um
desenho pode ser longo, durando anos e envolvendo uma pesquisa por parte do tatuado
sobre a imagem e o seu significado, ou pode ser curta, quase instantânea, a partir dos
desenhos disponíveis em um estúdio.
Entre os aspectos desta escolha, estão as noções de distinção e pertencimento.
Muitas vezes, uma tatuagem é realizada em função da imitação e do pertencimento a um
116
1. Estilos de tatuagem
O desenho a ser tatuado pode estar dentro do repertório fornecido pelo estúdio,
pode ser levado por quem quer ser tatuado ou pode ser desenhado na hora pelo tatuador,
em papel ou direto na pele do cliente1. Existem, em qualquer estúdio, vários álbuns de
desenhos, que o cliente pode consultar. Os álbuns costumam ser classificados em
diferentes categorias, ou ao menos os desenhos costumam ser divididos segundo algum
critério. As categorias mais comumente encontradas são: tribais, caveiras, guerreiros,
animais selvagens, flores, desenhos femininos, dragões e desenhos orientais.
A classificação que os tatuadores fazem do repertório iconográfico de seu
universo é, contudo, maior. Na homepage de um estúdio carioca2, encontrei a seguinte
classificação: tradicionais, new school, tribal, cartoon, femininas, realismo e cover up.
Tentarei delinear os principais traços de cada estilo, embora não tenha percebido, em
campo, uma homogeneidade do uso de tais classificações. Na própria homepage citada,
algumas tatuagens poderiam estar em mais de uma categoria.
O que é chamado de tradicional, envolve um repertório de imagens bastante
populares nas décadas de 1940 e 1950, mas também imagens populares nas décadas
seguintes. Parece-me que a idéia de uma iconografia tradicional contrasta, na verdade,
com uma nova forma de desenhar tatuagens, mais contemporânea, chamada de new
school. Em revistas estrangeiras de tatuagem, o que é chamado aqui de tradicional
1
Técnica conhecida como free hand, a mais valorizada no universo da tatuagem. Utiliza-se lápis cópia para
marcar o desenho na pele, ao invés do papel, segundo as curvas do corpo do cliente. Para esta técnica, o
domínio de desenho é fundamental. Segundo COSTA (2004) e conforme pude também observar em campo, o
domínio da arte de desenhar é uma das habilidades mais valorizadas pelos tatuadores.
2
SUPERNOVA TATTO, <http://www.supernova.com.br>, acessado em 14 set. 2002.
117
digerindo os pigmentos lentamente, que se infiltram até camadas cada vez mais
profundas da pele, conforme um tatuador me informou, e podendo mesmo chegar aos
ossos (GILBERT, 2000).
Para se cobrir uma tatuagem que não se quer mais com uma nova, é aconselhado
optar por desenhos “carregados na sombra”, conforme ouvi uma tatuadora dizer, ou
seja, de cores escuras. Durante a observação de campo, vi muitos clientes em busca
dessa técnica. Eles eram aconselhados a tatuarem cabeças de cachorro ou tatuagens
orientais, pois as mesmas utilizam bastante a cor negra.
Existem outros estilos que não foram mencionados na citada homepage, como
celta, azteca (ver Figura 7), biomecânico, oriental. Os dois primeiros são inspirados nas
referidas culturas, o último é inspirado em elementos orientais em geral, sobretudo
japoneses. Inclui-se nesta categoria as “letras” japonesas e chinesas, mas também
carpas, samurais, dragões e toda sorte de iconografia oriunda da tatuagem tradicional
japonesa (ver Figura 9). Esta apresenta características próprias, normalmente tomando
uma vasta região do corpo e muitas vezes aproximando-se da forma de uma roupa, já
que foi criada como uma espécie de imitação do tecido (BOREL, 1992).
O estilo biomecânico envolve a reprodução, sobre a pele, de seres cibernéticos,
metade orgânicos, metade máquinas. É um estilo que flerta com elementos da ficção
científica.
2. Os “desenhos femininos”
e golfinhos. Há uma procura muito grande, nos últimos tempos, por flores, borboletas e
estrelas. Fadas, unicórnios e outros elementos mitológicos também são procurados.
Não ter um desenho que remeta ao repertório masculino, nem localizá-lo numa
região do corpo considerada masculina, parece ser uma preocupação das mulheres que
buscam tatuagens. Como exemplo, posso citar o caso de uma cliente do estúdio da
Tijuca que, aos 26 anos, fez sua primeira tatuagem. Bronzeada de praia e apaixonada
pelo mar, queria tatuar um tubarão, mas fora desaconselhada por parentes e amigos
porque o desenho seria agressivo e masculino. Optou então pela sua versão comics, e
tatuou o personagem Tutubarão na região lombar.
Segundo Bourdieu (2003), as diferenças culturais entre os gêneros estão inscritas
em seus corpos, segundo a noção de habitus. O habitus é uma disposição corporal
construída pela sociedade e pela cultura, ou seja, uma lei social incorporada. Desta
forma, pode-se observar o corpo como locus de diferença sexual, não por suas
disposições biológicas, mas socialmente construídas. A força simbólica que a sociedade
exerce sobre o indivíduo, diz ele, exerce também e, sobretudo, sobre os corpos. Assim,
os corpos femininos e masculinos se diferenciam quanto a uma série de movimentos,
posições e posturas que traduzem as diferenças pensadas e construídas sobre os gêneros,
ou pelo menos se observa os corpos como tendo estas diferenças.
As sociedades são, para Bourdieu (2003), organizadas segundo uma
diferenciação entre os gêneros que dispõe o masculino como preponderante, o que
chama de dominação masculina. Esta dominação impõe uma visão androcêntrica de
mundo, onde o que é masculino é visto como neutro, sem necessidade de ser enunciado
em discursos que visem legitimar esta visão. A dominação masculina cria estruturas
práticas de diferenciação entre os sexos tanto quanto estruturas mentais.
É a partir desta forma de conhecimento sobre o mundo, que se pode perceber a
experiência feminina do corpo como diferente da experiência masculina. O corpo
feminino, diz o autor, é, sobretudo, um corpo-para-o-outro, um corpo objetificado pelo
olhar e pelo discurso de outros. Sendo objeto de olhares, a mulher é tomada pela lógica
da dominação e passa a exercer, sobre este olhar, uma contrapartida, na idéia de atrair a
atenção e agradar, traduzidas na coqueteria feminina. Contudo, o olhar dos outros cria
uma distância entre o corpo real e o corpo ideal.
A partir desta idéia de Bourdieu (2003), é possível perceber porque existem
“desenhos femininos”, enquanto seu análogo “desenhos masculinos” jamais foi
encontrado em campo. Sendo neutro, o masculino não precisa ser diferenciado. Da
120
O que emerge nos estúdios de tatuagem, contudo, ainda é uma visão de mulher
segundo o modelo “mulherzinha”. Os “desenhos femininos” são aqueles que expressam
delicadeza e fragilidade. Sem adentrar, aqui, em discussões mais profundas sobre a
identidade feminina atual, pode-se indicar diferentes modelos operando no imaginário
feminino.
Lipovetsky (2000) aponta a construção de três modelos de mulher no imaginário
ocidental que podem ser úteis para a presente análise. A “primeira mulher” é aquela que
constitui o estereótipo da bruxa, diabolizada e desprezada. A “segunda mulher”, ao
contrário, relaciona-se à idéia de uma maternidade ou virgindade idealizadas e
sacralizadas. A “terceira mulher”, contemporânea, é autônoma e livre para escolher seu
próprio destino, sem as amarras destas construções tradicionais.
Estas visões do feminino se confundem com visões da beleza feminina: por um
lado destruidora e por outro virginal. A antítese se resolve, segundo o autor, numa
relação dialética que cria a pin up, cujas expressões principais são Brigitte Bardot e
Marilyn Monroe. Na pin up, a beleza adolescente e juvenil é erotizada, mas não se torna
destruidora.
Estes modelos descritos por Lipovetsky (2000) parecem os mesmos modelos em
uso no universo da tatuagem. A puta/mulher vulgar confunde-se com a “primeira
mulher”, possuindo um tipo de beleza vamp, conforme terminologia do autor. A
tatuagem da mulher vamp é aquela que atrai atenção para os atributos femininos
corporais de beleza e erotismo, supervalorizando aquilo que já é foco de atenção
normalmente e, por isso, criando a idéia de vulgaridade. A tatuagem da “segunda
mulher”, se é que se pode imaginá-la tatuada, é a tatuagem da “mulherzinha”, infantil,
pequena, doce e sem erotismo. A “terceira mulher”, a que não tem nome mas constitui o
modelo de equilíbrio, tatua-se buscando a beleza dialética da pin up, erótica sem jamais
se considerar vulgar, abusando do jogo de olhares que é utilizado na dinâmica entre
revelar e esconder a marca.
3. O ethos guerreiro
Se a classificação “desenhos masculinos” não existe, isto não significa que não
haja desenhos elaborados para os homens. Estes desenhos encerram uma idéia de
agressividade e destruição. Estas características estão de acordo com o que chamo aqui
de ethos guerreiro, um aspecto de um determinado modelo de masculinidade que
122
3
Sobretudo no caso da tatuagem, onde os desenhos comunicam mensagens, há que se ver tais desenhos
como simbolicamente agressivos.
123
exato momento portava uma submetralhadora escondida nas roupas – o que comprovou
levantando ligeiramente a camisa – e dizia se tratar de uma necessidade para sua
segurança.
Havia ido ao estúdio para uma nova tatuagem. Possuía cinco e a última havia
sido executada quinze dias antes, naquele mesmo estúdio. O novo desenho seria uma
rosa em negro, com um motivo tribal ao fundo, acima de dois fuzis cruzados e uma
flâmula com os dizeres: “o prêmio da guerra é morrer como homem”. Ao longo da
tarde, contudo, desistira de tatuar os fuzis. Folheava os álbuns de desenho em busca da
rosa negra que havia gostado.
João demonstra um tipo de masculinidade relacionado intrinsecamente à idéia de
guerra e combate. Uma identidade de gênero tão forte que havia sido desenhada pelo
corpo e constantemente reforçada por novos desenhos. O epíteto dessa masculinidade
seria inscrito em sua pele, evocando a guerra, a morte e a virilidade. Embora a guerra
não traga prêmios materiais – e no caso de João menos ainda, pois sua guerra é ao
crime, sobretudo ao narcotráfico, conforme relatou –, ela traz um prêmio que não pode
ser medido materialmente: ser um verdadeiro homem, traduzido na noção de “morrer
como homem”. Não há aí nenhuma apologia à guerra em si, mas à atividade guerreira
como uma atividade eminentemente masculina.
Os outros desenhos que tinha pelo corpo estavam todos dentro de seu ethos
guerreiro. A primeira tatuagem de sua vida, adquirida dez anos antes e localizada no
peito, era um cavalo junto a um berimbau, pois praticava capoeira e fora apelidado de
“cavalo”, animal forte e ágil, sempre associado aos homens e raramente às mulheres,
pois encerra características relacionadas tradicionalmente ao masculino. Além desta,
possuía outras nos braços: um ideograma chinês e abaixo deste um samurai em preto,
tatuagem que pretendia aumentar, desenhando uma paisagem de fundo para o guerreiro.
No outro braço, apresentava um esqueleto vestido com um capuz e manta negros,
segurando uma foice. Era acima desta que pretendia localizar o novo desenho. Nas
costas, a última tatuagem: um anjo com capuz, sentado em uma ruína, com braços
abertos e asas semi-abertas. Contou que queria tatuar um anjo, mas não encontrava um
desenho que lhe agradasse, até que se deparou com este em uma camiseta exposta numa
loja de rock. Tratava-se da reprodução da capa de um CD de uma banda de heavy metal.
4
Como CECCHETTO (2004) aponta, os jogos, especialmente os jogos de combate, são espaços regrados
para o ethos guerreiro, onde a disputa e a destruição tomam lugar de forma civilizada.
124
João comprou o CD e foi ao estúdio ser tatuado. Segundo ele, “os anjos simbolizam
força e garra”.
A princípio, achei que o anjo e a rosa destoavam dos outros desenhos, tão bem
arranjados sobre um único tema: o da força e da capacidade de destruição. Contudo,
quando João falou sobre o que os anjos representavam, percebi que o desenho não
estava fora das idéias representadas na iconografia sobre sua pele. Se o anjo é força,
pois representa a figura de um guerreiro celeste, então está plenamente de acordo com
toda a iconografia de João. A rosa, por sua vez, negra e lúgubre, diferente das rosas
vermelhas que as mulheres costumam tatuar, posicionada acima de uma flâmula
representando o pensamento do guerreiro, parecia uma espécie de homenagem aos
mortos, como as flores que se depositam nas lápides.
Sobre a postura masculina com relação à tatuagem, gostaria de apresentar um
outro caso. Um rapaz de 28 anos, com o escudo do Flamengo tatuado na parte interna de
um dos braços, queria tatuar um índio norte-americano na parte interna do outro braço.
O trabalho custou R$450,00. O rapaz foi deitado na maca para facilitar ao tatuador o
acesso à região a ser marcada. Perguntei porque tatuava um índio. “Sei lá, eu me
identifico, tem a ver comigo, acho maneiro” e, mostrando o escudo do Flamengo,
completou: “essa aqui nem precisa perguntar por que, né?”. “Já está pronta?”, perguntei
sobre o índio. “Não”, parecia ofendido, “falta toda essa parte de cima aqui, esse preto
vai até aqui”, falou, apontando para o cocar. “Tatuagem nessa região tem que ser
grande, sei lá, tem que tomar o espaço inteiro. Se for pequena...”, o silêncio durou cerca
de três segundos, “...pequena é coisa de mulher, sabe? De mulherzinha”, concluiu.
Mesmo que não haja dados sobre a atividades deste cliente, a iconografia
escolhida por ele está de acordo com aquele que relaciono ao ethos guerreiro. O
pertencimento a torcidas organizadas de futebol, embora não esteja claro se o cliente
fazia parte de uma delas ou não, é uma das formas em que a masculinidade guerreira
emerge (CECCHETTO, 2004), onde a briga aberta entre torcidas de times diferentes ou
de um mesmo time fornece espaço para a realização do ato fundante desse tipo de
masculinidade: o exercício da guerra. O índio, por sua vez, se apresenta como um
guerreiro, da mesma forma que o samurai. Seja ele um jovem a cavalo ou um ancião
com cocar de chefe, há aí uma qualidade de exercício de poder típica do masculino.
O tatuador havia dado uma pausa que, uma vez cessada, ganhou reclamações do
cliente. Não gostava da posição em que tinha de permanecer para ser tatuado. Ficava
torto na maca, com um dos braços esticados. Perguntei-lhe se estava doendo. “Não, aqui
125
não dói muito não. É a posição que me incomoda”. Reforcei a pergunta: “Aí não dói
não?”. “Não é que não dói, toda tatuagem dói, mas é suportável”. Conforme será visto
adiante, a idéia de suportar a dor é crucial no processo de ser tatuado entre os homens.
As mulheres demonstram abertamente quando a operação é dolorosa, pois nem sempre
o é, enquanto eles silenciam o que sentem.
O encobrimento da sensação de dor é mais uma característica da masculinidade
guerreira. Os embates físicos dos quais os homens afinados com esse tipo de modelo
participam envolvem, muitas vezes, danos físicos bem maiores do que o de uma
tatuagem, como cortes profundos, fraturas e hematomas. Esta é uma forma de
masculinidade em que a insensibilidade à dor e ao sofrimento deve ser demonstrada
tanto com relação ao outro quanto com relação a si mesmo. Cecchetto (2004) demonstra
como, entre os lutadores de jiu-jitsu, a tolerância à dor é parte do próprio treinamento da
arte marcial. Entre os funqueiros, por sua vez, os corredores onde Lado A e Lado B se
enfrentam nos bailes são o espaço de demonstração tanto de força física quanto de
resistência aos ataques das galeras inimigas. Quando machucados, os funqueiros apelam
para as improvisadas enfermarias dos bailes, apenas para tomar fôlego e retornar ao
embate.
Ainda sobre representações masculinas da tatuagem, um terceiro caso revela que
as cores utilizadas podem ser um problema. Um dos tatuadores da casa retocava uma
fênix que fizera na parte superior da coxa de um rapaz branco, magro, aparentando 22
anos, acompanhado da namorada, aparentando a mesma idade. A tatuagem fora colorida
em rosa, azul e amarelo. O cliente confessou que não havia gostado da idéia do rosa na
tatuagem, mas convencido pelo tatuador e pela namorada, aceitara, estando satisfeito
com o resultado final. O proprietário do estúdio elogiou o trabalho e brincou com o
tatuador dizendo que ele adorava colorir de rosa as tatuagens que executava. A
namorada do cliente não deixou a brincadeira passar em branco e disse ao tatuador que
lhe faria uma bolsa rosa de tricô, como a que usava na ocasião. “Me traz mesmo! Você
vai ver como a sua tatuagem vai sair barata e sem dor”, respondeu rindo, pois a moça
desejava retocar uma tatuagem nas costas. Como em outros âmbitos de nossa sociedade,
no universo da tatuagem o rosa não é cor para homens.
Sabino (2004), descrevendo tatuagens em freqüentadores assíduos de academias
de ginástica e musculação localizadas nas Zonas Norte e Sul da cidade do Rio de
Janeiro, aponta para uma construção de masculinidade semelhante. Entre estes
marombeiros, cuja finalidade última do exercício físico é a obtenção de tônus muscular,
126
entendido como boa forma, as tatuagens são uma maneira de chamar a atenção para o
corpo exercitado, já compreendido aqui como um corpo construído, também, para o
olhar alheio.
Entre 310 entrevistados (200 homens e 110 mulheres), em faixa etária de 16 a 55
anos, o autor aponta a existência de tatuagens em um terço destes, em proporção similar
à observada no estúdio pesquisado na Tijuca: 70% em mulheres e 30% em homens. Nos
homens, os desenhos mais encontrados foram os animais selvagens, enquanto entre
mulheres foram borboletas, anjos, fadas, beija-flores, rosas, lua, localizados nas mesmas
regiões observadas no estúdio pesquisado, conforme será indicado abaixo. Entre os
homens, o cachorro da raça pitbull emergiu, especialmente, como símbolo de
agressividade e violência, espécie de emblema do ethos guerreiro. Segundo um dos
entrevistados (SABINO, 2004, p. 268-9 ):
“A tattoo dessa fera aqui, no braço..., nesse braço aqui, é do meu pitbull...eu me
identifico com essa raça de cachorro, tem um movimento aí que quer acabar com eles,
já ouviu falar, né? Dizem que o bicho é violento e coisa e tal... mas não vão conseguir, a
gente que luta, que malha, que gosta de esporte radical, a gente se amarra nesse bicho...
vamos continuar criando... ele é nosso símbolo... forte. A mordida dele tem mais de uma
tonelada de pressão, é isso aí, quero que meu soco também fique com uma tonelada de
pressão...” (João. 28 anos. Comerciante).
A partir da análise das fichas de cadastro dos clientes da Tijuca, foi possível
construir uma tabela com os desenhos mais procurados, segundo o gênero, conforme
pode ser visto abaixo. Os meses analisados foram setembro e dezembro de 2003 e
127
janeiro de 2004. A tabela não traz a discriminação dos desenhos mais procurados a cada
mês, pois não há variações relevantes.
A tabela acima foi construída a partir da análise das fichas preenchidas pelos
clientes do estúdio. Embora cada ficha represente um cliente, nem sempre representa
apenas uma tatuagem. Presume-se que todos os clientes tenham preenchido a ficha.
O número de mulheres é sensivelmente superior ao de homens, conforme
amplamente observado em campo e por outros pesquisadores (LEITÃO, 2002). Nos três
meses analisados, há um total de 431 mulheres para 173 homens, ou seja, mais que o
dobro. Como nem todos os clientes especificam o desenho tatuado, as respostas
contabilizadas na tabela acima somam 349 mulheres e 132 homens, em um total de 481
respostas.
16 13,7 14,4
14 12,9
11,5 11,4
12 10,6
Homens
10 Mulheres
8 5,7
6 4,9
4 2,3 2,3
2 0,75
0
0
Estrela Borboleta Flores Letra Tribal Letra
japonesa
Estrelas, sol e lua, bem como suas possíveis combinações, foram agrupadas sob
a categoria “corpos celestes” (ver Figura 11 e Figura 13) . Planetas, estrelas cadentes,
cometas ou quaisquer outros elementos espaciais não foram encontrados entre o
repertório de desenhos tatuados. Estes motivos são mais populares entre mulheres do
que entre homens, compondo parte do que se designa como “desenhos femininos”. Le
Breton (2002) indica que o que chamei de “corpos celestes” é um motivo iconográfico
tipicamente feminino.
130
Nos anos recentes, a estrela tem sido um desenho favorito das mulheres,
agrupada em conjuntos de três ou mais, com cinco pontas e coloridas por dentro em tons
como azul, vermelho, laranja ou amarelo, normalmente cada uma apresentando uma cor
diferente. As “estrelinhas”, como são chamadas, se tornaram mais populares, em
processo chamado por Mauss (2003) de imitação prestigiosa, depois que a atriz Mel
Lisboa, em début na televisão, deixou aparentes suas estrelas tatuadas por trás da orelha.
Associado a uma pessoa considerada modelo a ser seguido, o desenho foi copiado,
embora a parte do corpo tatuada não, podendo-se observar as “estrelinhas” em várias
regiões distintas como nuca, costas, pulso, barriga ou pé.
O sol, por outro lado, parece gozar também de alguma popularidade, embora não
tão grande quanto a das estrelas. Sol e lua, bem como lua e estrela, aparecem também
como desenhos tipicamente femininos, embora menos procurados. Normalmente são
desenhos que envolvem uma aura mística, possivelmente escolhidos por indivíduos
envolvidos neste universo ou interessados nele. Em várias vertentes da Nova Era, os
corpos celestes desempenham papel crucial, como na astrologia, por exemplo, mas
também em suas vertentes religiosas, como cultos neopagãos.
Enquanto 19.4% de mulheres buscam este motivo, apenas 6.85% de homens se
interessam por ele, sendo três vezes mais popular entre elas do que eles, graças às
estrelas. Em termos gerais, computando-se ambos homens e mulheres, este motivo
apresenta 15.9% da preferência do público. É interessante notar que, entre os corpos
celestes, o sol é o único desenho procurado na mesma proporção (2.3%) por homens e
mulheres (3.4%). Apresentando popularmente características masculinas (fogo, vigor,
força, luz, razão), enquanto a lua apresentaria características femininas (sonho, magia,
loucura, emoção) o sol é visto pelos homens como o mais apropriado dos corpos
celestes para seus corpos humanos.
outro lado, podem ser encontrados em outras vertentes da Nova Era, como ordens
maçônicas e a ordem Rosa-Cruz. Misticismos diversos são, ainda, popularmente ligados
ao Egito e constantemente explorados em filmes de cinema, por exemplo. Nesse
sentido, o ankh e o olho de Hórus são os símbolos egípcios mais populares.
Os motivos indianos, por sua vez, apareceram apenas recentemente na tatuagem,
na última década. Consistem em desenhos com divindades indianas, ou símbolos
vinculados a fragmentos da cultura indiana, como a prática da ioga. O om, som nasal,
corresponde a uma palavra em sânscrito. Poderia estar sob a categoria “alfabeto”, mas
não creio que seja pensada como uma palavra mais do que como um símbolo. A
mandala, por outro lado, parece ter conquistado vida própria na Nova Era, sendo
utilizada em diversos tipos de práticas terapêuticas, embora seja um elemento da cultura
indiana.
Creio que a aparição de todos estes elementos deve-se à influência da Nova Era
no cotidiano urbano. Não é possível afirmar que estes desenhos signifiquem o
alinhamento do tatuado a tais práticas, mas esta parece a alternativa mais provável.
Estes elementos estão disseminados por um âmbito grande de manifestações culturais,
religiosas ou terapêuticas, impossibilitando uma generalização, pois são elementos de
fácil acesso, não estando restritos a grupos específicos.
4.3. Oriente-se
Entre as mulheres, são o quarto tipo de desenho mais popular, perdendo apenas
para as flores, borboletas e estrelas. Entre os homens, é o desenho mais procurado.
Neste sentido, é necessária uma reflexão maior. 23.45% dos homens optaram por este
motivo contra 8% das mulheres. Observe-se que é um dos motivos mais populares,
contabilizando, entre homens e mulheres, 12.25% da preferência do público. Creio que
este motivo é mais procurado pelos homens porque enseja relações com atividades
guerreiras, como as artes marciais, constituindo-se uma marca do ethos guerreiro, como
ele é observado no universo da tatuagem.
35,00%
30,00%
25,00%
20,00%
15,00%
10,00%
5,00%
0,00%
Ideograma Tribal Letra desenhos
associados a
agressividade
A tatuagem tribal foi muito popular na década de 1990, e parece manter sua
popularidade, embora não seja a mais procurada atualmente. Atinge um público tanto
feminino quanto masculino, mas proporcionalmente tem havido uma preferência maior
135
masculina. São 12.9% das escolhas masculinas e 6.6% das femininas, quase a metade.
Agrupando-se ambos os gêneros, são 8.2% da escolha do público. Menos procuradas,
portanto, que japonesas/orientais, insetos e os corpos celestes.
A preferência masculina por essa tatuagem se deve, a meu ver, à preponderância
de traços negros, com espirais e retas pontiagudas. As retas, na forma de espinhos, dão
ao desenho uma agressividade buscada pelos homens na tatuagem. Como a coloração é
neutra e as formas são abstratas, pode ser utilizada igualmente pelos dois sexos.
As tribais se tornaram tão populares que foram misturadas a diversos outros
desenhos. No estúdio pesquisado, há muitas flores, devidamente coloridas, com traços
tribais em negro perpassando o fundo do desenho. Em alguns casos, a mistura se dá com
elementos celtas, chineses ou de quaisquer outras origens. A criatividade levou os
tatuadores a desenvolverem também desenhos menos abstratos com traços tribais, como
rosas negras com traços pontiagudos.
O sucesso da tribal não foi apenas carioca. Le Breton (2002) indica que na
França o motivo foi também popular e sugere que as revistas americanas de tatuagem,
como a pioneira Tattootime, lançaram a moda em todo o mundo. Na França, o autor
associa a popularidade das tribais, bem como a disseminação de certas práticas de
modificação corporal, como a tatuagem e o piercing, entre outras, à emergência do que
chama de “primitivos modernos”. Estes são indivíduos que criticam a sociedade
ocidental, incorporando formas de adorno corporal e mesmo estilos de vida que julgam
contrários a esta sociedade, tomando culturas tradicionais longínquas, que classificam
como “primitivas”, como fonte de inspiração. Estas culturas são vistas como mais
espiritualizadas, mais conectadas com os corpos. Apesar da crítica, diz o autor, os
“primitivos modernos” não têm a intenção de abandonar o Ocidente e desfrutam de
todas as comodidades que este pode produzir.
Creio que o sucesso da tribal aqui se deve ao seu uso em países modernos. Trata-
se de mais uma forma de importação cultural, copiando-se o que se faz fora do país, em
sociedades que se tornam de alguma forma modelos para o país, inclusive em nossas
manifestações culturais, mesmo no universo da tatuagem.
magia, como a bruxa e o mago. São tatuagens sobretudo femininas, à exceção do mago
e do centauro. Contudo, durante a observação de campo, pude perceber que o centauro é
igualmente procurado por mulheres. As sereias, que compõem parte do repertório
tradicional, e antes adornavam corpos masculinos, são hoje procuradas também por
mulheres. Os desenhos “mitológicos” são 3% das escolhas masculinas e 4.7% das
femininas, uma diferença devida à popularidade das fadas entre elas. A fênix é o único
desenho que apresenta uma mesma procura por homens (0.75%) e mulheres (0.6%). No
total, os “mitológicos” são escolhidas por 4% do público.
Como os desenhos sob a categoria “corpos celestes”, os “mitológicos” envolvem
uma idéia de misticismo ou magia, de seres encantados como fadas e duendes, seres que
podem atuar sobre a vontade alheia, como magos, bruxas e o cupido, ou ainda de seres
fantásticos, como a fênix, a sereia e o centauro. É um universo lúdico, onde o sonho
predomina sobre a realidade. Torna-se, desta forma, um universo infantil, o que
caracteriza muitos dos “desenhos femininos”.
Quando adornam corpos masculinos, sãos os atributos masculinos aqueles
visados pelos clientes nestes desenhos: a força da fênix, que jamais morre; o aspecto
guerreiro do centauro, metade humano, metade animal; a sedução feminina da sereia,
outra forma tradicional de representação das mulheres como tema na tatuagem.
8.1% dos clientes opta pelo motivo escrito, número próximo ao de clientes que optam
pelas tribais.
filme Assassinos por Natureza (Natural Born Killers), de Oliver Stone, de 1994, em que
a protagonista apresentava um escorpião tatuado na barriga. Na época, lembro que uma
amiga tatuou um escorpião no mesmo lugar em função do filme. Não creio que hoje ele
seja motivação para tanto, pois se passaram dez anos, mas o escorpião entrou para o
escopo de tatuagens femininas.
O beija-flor e o golfinho são os animais mais populares após a borboleta.
Segundo Marques (1997), o beija-flor viveu o auge de sua popularidade na década de
1980. O golfinho teve, também nesta época, o seu momento. De fato, os “bichos” são
parte da moda, que trabalha principalmente com as peles animais e o grafismo natural
de onças, tigres e zebras. Nas tatuagens, os bichos são outros, mas a idéia de moda, em
que um sucede ao outro, está presente.
Entre os animais domésticos, segundo observação de campo, o cachorro é o mais
popular, embora gatos sejam também procurados. O cachorro é utilizado na forma de
tatuagem chamada cover-up, devido à possibilidade de utilização de cores escuras. Nem
sempre o bicho tatuado é uma reprodução do animal de estimação.
Enquanto apenas 0.75% dos homens optam por tatuar flores, este motivo
representa 11.5% das escolhas femininas. No total, representam 8.5% das escolhas dos
clientes. Embora a borboleta seja o desenho mais procurado (13.7% das mulheres), se
somarmos todos os elementos vegetais que agrupei sob a categoria “flores”, como
“motivo/estilo”, tem-se um total de 17% das escolhas femininas, superando, portanto, a
popularidade das borboletas. Se nos encontros amorosos o imaginário apresenta as
mulheres como aquelas que gostam de ser presenteadas com rosas vermelhas, no
universo da tatuagem elas parecem preferir outras flores, que elas mesmas escolhem e
que carregam para sempre em seus corpos. A orquídea, flor frágil e sofisticada,
apresenta apenas dois casos: não é uma flor popular.
A flor é um tema considerado tão feminino, que a minoria masculina que opta
por este tipo de desenho pode ser alvo de chacotas. Durante observação no estúdio
pesquisado em Copacabana, um cliente confidenciou que foi alvo das brincadeiras dos
amigos por conta das suas duas sakuras5 tatuadas no braço, abaixo de seu dragão
5
Sakura é uma palavra japonesa que designa um tipo de flor utilizada nas tatuagens japonesas.
140
vermelho, apenas um dos três que têm tatuados no corpo. As tatuagens orientais
costumam fazer largo uso de flores, como crisântemos, peônias e as sakuras. Mesmo se
tratando de um elemento constituinte de um desenho maior, envolvendo um tema
tipicamente masculino (o dragão oriental), a presença de flores foi suficiente para
permitir a dúvida sobre a masculinidade do cliente, mesmo que apenas em tom jocoso
em seu círculo de amizade. Este é mais um exemplo da estrita repartição entre temas
femininos e masculinos no universo da tatuagem.
rapaz contava que o amigo havia tatuado o personagem Geléia, fantasma verde do filme
Os Caça-Fantasmas, que posteriormente se tornou desenho animado. Tatuagem que
depois foi devidamente coberta por outra porque, segundo o rapaz, tratava-se de um
“modismo”. O tatuador concordou: “Ih, essas meninas moderninhas aí, tudo tatuando
Meninas Superpoderosas e Hello Kitty. Daqui a 10 anos ninguém sabe o que é isso!”. O
problema dos “modismo” é a relação contraditória entre a fugacidade do sucesso de um
produto de consumo de massa e a permanência da tatuagem.
Os desenhos que classifiquei como infantis apresentam elementos desse universo
de crianças. São, portanto, elementos do universo feminino, como a Hello Kitty,
personagem infantil, ao contrário de Betty Boop, mais adulta e que pode ser encontrada
em novas versões que não a original, vestida de forma mais contemporânea, conforme
iconografia apresentada por Mifflin (1997). Escolhido por 0.6% das mulheres, sem
nenhuma incidência masculina, representa apenas 0.4% da escolha do público.
4.13. Os outros
Desenhos que não pude dispor em nenhuma outra categoria foram agrupados sob
a noção genérica de “outros”. Formam 3% das escolhas deles e 3.7% delas. Representa
3.5% da escolha do público. Aqui, o coração é o desenho mais popular, registrando-se
12 casos, todos entre mulheres. Presumo tratar-se, portanto, de corações apaixonados,
embora o coração de Cristo seja uma tatuagem religiosa encontrada em revistas
específicas da área, mas freqüentemente vista em homens.
Ainda na anatomia humana, há o registro de uma língua. Em alguns casos,
refere-se à boca vermelha com a língua de fora, símbolo ligado à banda de rock Rolling
Stones. Se for este o caso, a tatuagem deve ser classificada no grupo “música”.
O bracelete é um tipo de tatuagem que envolve a parte superior do braço, como a
jóia que lhe dá nome. É uma tatuagem caracteristicamente masculina. Como será visto
adiante, o braço é uma região tipicamente masculina em se tratando de tatuagens.
metade dos desenhos escolhidos por elas. Estes são desenhos que evocam idéias de
feminilidade: frágeis, delicadas, pequenas. As flores, agrupadas em todos os desenhos
encontrados, representam 17% das escolhas femininas, enquanto os insetos agrupados
representam 16%. Desta forma, as flores se tornam mais populares do que as borboletas.
As tatuagens mais populares entre os homens são os ideogramas japoneses
(14.4%), as tribais (11.4%) e as letras (10.6%). Os desenhos orientais agrupados
formam 23.45% das escolhas. Os desenhos tribais agrupados e as letras, frases e escritas
formam 12.9% das escolhas cada um. Isto torna as tatuagens orientais as mais
procuradas pelos homens.
As letras, normalmente, referem-se a iniciais de nomes, mas como a
classificação utilizada foi a dos próprios tatuados, pode-se tratar de frases cujo conteúdo
é desconhecido. Os ideogramas, por sua vez, só podem ser decodificados com o auxílio
do próprio tatuado. Sua mensagem fica, para nós, também desconhecida. As tribais, por
outro lado, têm sido uma tatuagem popular desde a década de 1990, quando surgiram.
Suas linhas “farpadas”, protuberantes em “espinhos”, podem ser associadas a elementos
simbólicos de agressividade. Os ideogramas, por sua vez, podem ser associados ao
universo das artes marciais. Nestes dois casos, mantém-se a predominância de
elementos de um ethos guerreiro como os mais procurados entre os homens. É
interessante observar que ambos os motivos são tatuados predominantemente em preto,
cor sóbria.
0%
36%
44% Orientais
Letras, frases e escrita
ethos guerreiro
20%
totem, centauro, brasões de clubes de futebol, tubarão, cachorro, tigre, onça, leão,
escorpião, aranha – formam 28.65% dos desenhos escolhidos por homens. Ou seja, os
desenhos relacionados a temas de agressividade, morte e destruição são os mais
procurados por eles.
Contabilizando-se o total de homens e mulheres juntos, as tatuagens mais
populares, sem distinção entre os gêneros, são: a estrela (10%) e a borboleta (10%),
graças à sua popularidade entre as mulheres; a flor (8.5%), também mais popular entre
as mulheres; e os ideogramas japoneses (8.1%), quase três vezes mais populares entre
homens (14.4%) do que mulheres (5.7%).
Agrupados os desenhos em motivos/estilos, conforme disposto na coluna 1 da
tabela, observa-se que os corpos celestes são os mais populares, contabilizando 15.9%
da preferência do público, seguidos pelos insetos e flores, cada um com 12.4%. Logo
atrás estão as japonesas/orientais, com 12.25% da preferência.
22% 28%
Estrela
Borboleta
Flor
Ideogramas
23%
27%
23%
31%
Corpos celestes
Insetos
Flores
Orientais
23%
23%
144
5. Desenhos e subjetividade
Todo tatuado ou aspirante a tatuado enfrenta alguns dilemas ao optar pela marca:
qual desenho tatuar e em que parte do corpo? Esconder ou mostrar a tatuagem? Para
alguns, a escolha do desenho pode ser muitíssimo criteriosa, envolvendo anos de
pesquisa e busca por algo que se considere ideal. Para outros, a escolha é rápida, como
se a marca fosse mais importante do que o desenho. Em outros casos, ainda, o fascínio e
a sedução que a tatuagem exerce é grande o bastante para que o “tema” seja escolhido
anteriormente e o desenho em si decidido de forma rápida. Para cada uma destas
opções, apresentarei um caso.
Em janeiro de 2005, fui convidada por uma amiga, Fátima, para acompanhá-la a
um estúdio. Faria sua primeira tatuagem. Enquanto um dos tatuadores preparava-se para
tatuar, eu conversava com o outro, proprietário do estúdio, localizado também na
Tijuca. Ele contou-me dois casos opostos. Abriu seu portfolio e me mostrou uma
tatuagem de um pássaro em negro, dizendo:
“Esse sujeito aqui demorou seis anos para encontrar esse desenho. Ele procurou
até encontrar exatamente o que ele queria. Agora você vê, teve uma moça que veio
aqui se tatuar e ela já tinha um escorpião na barriga. Eu perguntei se era o signo
dela, mas ela disse que era Áries. Contou que fez a tatuagem com 14 anos e o pai
dela estava com pressa, então disse para ela escolher logo qualquer desenho e ela
escolheu um escorpião.” (Tatuador de estúdio visitado na Tijuca)
“Eu entrei no estúdio, folheei os álbuns e vi esse [desenho]. Pensei ‘ah, esse é
bonitinho’, e escolhi assim, rápido”. (Cliente do estúdio pesquisado em Copacabana)
145
A primeira citação apresenta dois casos opostos. Fátima, por sua vez, constitui o
terceiro caso. Jamais havia me dito que desejava se tatuar. Enquanto caminhávamos
pela rua em direção ao estúdio, eu questionava sua fascinação repentina pela marca.
“É, eu nunca quis... mas é engraçado, quase todo mundo que eu conheço está fazendo
ou querendo fazer uma. Impressionante!” (Fátima)
Ela me listou o nome de quem havia se tatuado há pouco tempo ou havia lhe
confidenciado o desejo por uma tatuagem. A lista envolvia cinco pessoas, pelo menos.
Uma delas havia lhe indicado o estúdio, em função principalmente do preço. Fátima
pensava em tatuar uma cobra ou uma fada, na nuca, no pé ou na lombar, mas queria um
desenho pequeno.
Quando chegamos ao estúdio, o tatuador desenhava uma fada para ela. Não
havia nenhuma nos álbuns de desenhos, mas as revistas de tatuagem disponíveis no
estúdio apresentavam pelo menos uma cada. Ela ficou encantada com o “desenho
personalizado”, conforme suas próprias palavras, e nem folheou as revistas para saber se
desejava algo diferente. Escolheu a cor do cabelo e perguntou minha opinião sobre a cor
do vestido. Queria que as asas fossem bem coloridas e sugeri algumas cores. Não pediu
nenhuma alteração e ficou satisfeitíssima de chegar ao estúdio e encontrar o tatuador
desenhando sua fada (uma amiga havia dito ao profissional que ela desejava tatuar uma
fada). Queria levar o desenho consigo para que ninguém mais o tatuasse, pensando que
seria só seu, mas, cedendo aos pedidos do proprietário, permitiu que uma foto do
trabalho já concluído fosse disponibilizada na Internet, na homepage do estúdio.
“Eu me sinto uma fada. Eu não quero uma borboleta, beija-flor, nada disso. Eu acho
que eu sou uma fada, sabe? É um desenho comum, muita gente tem. Eu penso nisso.
Mas essa [fada] aqui expressa o que eu estou sentindo agora. Ela está voando, em
movimento, e eu estou também. Eu quero coisas melhores, eu quero mudar. Esse ano
[2005] vai ser muito bom.” (Fátima)
expressassem, além das representações costumeiras sobre o que uma mulher pode ou
deve tatuar, uma preocupação estética que estava em grande parte, é verdade, permeada
por essas representações de gênero. Ao contrário de tantos casos que presenciei nos
estúdios pesquisados, Fátima não estava preocupada em esconder a marca. Como
professora de dança, seu corpo está normalmente à mostra. Seguia a lógica de
localização dos desenhos nos corpos femininos, onde nuca, pé e lombar são áreas
bastante procuradas.
Como minha amiga, Fábio, um senhor aposentado, cabelos brancos, projetava no
desenho tatuado uma íntima relação com seu momento de vida. O próprio desenho foi
escolhido em função de sua significação mística. Morador de Brasília, estava no Rio de
Janeiro para visitar o filho, um integrante de uma banda de rock de sucesso e cliente do
estúdio de Copacabana. Sob a influência do filho, Fábio decidiu se tatuar. Contou-me
que seu filho costumava fazer uma nova tatuagem para representar cada novo momento
de vida. Quando o proprietário do estúdio tatuou uma estrela no rapaz, a banda começou
a fazer sucesso. Fábio disse que a tatuagem não apenas marcava a nova etapa de vida,
como aposentado, como lhe traria felicidade nessa nova etapa. Para tanto, escolheu uma
cobra, cuja cor foi discutida com o tatuador, que a desenhou na hora. Foi feita sobre o
braço, como um bracelete, em verde e coral.
“A cobra simboliza a vida, os recomeços. Por isso ela está naquele emblema da
medicina. Eu pesquisei isso, porque eu queria um símbolo para essa minha nova
vida.” (Fábio)
Não há como imaginar que os desenhos escolhidos por cada sujeito não
representem, de alguma forma, valores individuais, preferências, aspirações, como no
caso de Fátima e Fábio, ou marcos de vida, como no caso de Fábio e, segundo ele,
também de seu filho. Para a moça que escolheu o escorpião com pressa, talvez apenas a
marca fosse importante e não o desenho, no sentido de que não necessitava de uma
reflexão longa e uma busca pelo desenho ideal, como o cliente que procurou por seis
anos o pássaro negro que gostaria de tatuar. Contudo, creio que em muitos casos a
tatuagem não está relacionada diretamente às características mais evidentes de uma
pessoa. Fátima, professora de dança, não tatuou nada que lembrasse seu ofício. Neste
sentido, gostaria de apresentar o caso de seu Nelson.
147
“Eu pesquisei muito, sabe? Eu fui saber que têm vários tipos de dragões, como se
fossem raças diferentes: do ar, do fogo, e tal. E eu só faço dragão oriental. Eu não
quero cobrir, sabe? Meus amigos, eu vejo, se arrependem e têm que cobrir. Tem
um camarada meu que tatuou um Geléia dos Caça-Fantasmas no peito, assim todo
verde! Pô cara... Geléia!? Qual o sentido disso? Agora quer cobrir!” (Francisco)
“Uma coisa assim, podia ser, um Netuno. Mas esse aqui mó galera tem. Eu não
quero, vou ficar igual a todo mundo.” (Cliente do estúdio pesquisado em
Copacabana)
149
“Mandei esse dragão porque todo o pessoal que conheço tem tatuagem na academia,
e no tatame, os caras mais ‘feras’ têm as mais ‘iradas’, as mais ‘maneras’... aí mandei
esse dragão no braço... agora quero fazer um Pitbull aqui nas costas.” (Carlos. 23
anos. Estudante, fisiculturista amador e lutador de jiu-jitsu)
“Esse duende no meu braço direito tá ‘carburando’ [fumando maconha], tá vendo? E
aqui no esquerdo eu tenho a planta [vira mostrando um desenho de uma folha de
cannabis], fiz as duas quando tinha dezoito anos porque desde moleque eu gosto de
punk e rock pesado, tenho uma banda e todo mundo lá da banda fuma de vez em
quando, eu não podia ser diferente...” (Rafael. 28 anos. Economista)
“Ah, fiz a borboleta na nuca ano passado... a galera toda lá do curso tinha, aqui na
academia as garotas todas têm tattoo e piercing, cê sabe, né? É moda, sei lá... aí eu
151
mandei essa aí na nuca e depois botei o piercing no umbigo... minha mãe reclamou
muito, não me deu o dinheiro p’ra fazer, aí eu comecei a vender uns colares e
pulseiras que eu mesma fazia e juntei dinheiro e fiz.” (Tatiana. 18 anos. Estudante)
“Eu tava a fim de fazer porque sempre achei bacana; aí, minhas amigas todas fizeram
e os namorados acharam ‘manero’; aí juntei dinheiro e fui na Banzai e fiz essa flor
aqui na virilha [vira abaixando um pouco a bermuda de lycra e mostrando a
tatuagem]. Doeu muito, cara, uma dor horrível, mas valeu a pena.” (Carol. 24 anos.
Advogada)
localização no corpo. Elas consideram o braço como uma região masculina. Creio que
os homens operam esta distinção da mesma forma que elas, fugindo de desenhos
considerados femininos e localizando as tatuagens em regiões que não sejam igualmente
consideradas típicas das mulheres.
A partir da análise das fichas de cadastro de clientes do estúdio pesquisado na
Tijuca, referentes aos meses de setembro e dezembro de 2003 e janeiro de 2004, foi
possível elaborar a tabela abaixo, que apresenta as regiões do corpo escolhidas para
serem tatuadas, divididas segundo o gênero.
0,7
61,70%
0,6
0,5
Homem
0,4 Mulher
0,3 26,40%
23,60%
0,2
14,10%
0,1 9,50%
0 2% 2,20%
0
pé/calcanhar pecoço/nuca costas braço
A região mais tatuada pelas mulheres é a das costas (26.4%), seguida pelo
pescoço/nuca (23.6%), e pelo calcanhar/pé (9.5%). Observe-se que as costas e o
pescoço/nuca correspondem à metade das tatuagens femininas (50%). As costas são a
segunda região corporal mais procurada pelos homens para a tatuagem (14.1%).
Constitui-se, assim, em uma das regiões prediletas para tatuar, contabilizando um total
de 118 ocorrências. É importante observar, neste aspecto, que é a região corporal mais
extensa, onde se pode executar tatuagens maiores, como os painéis, típicos da tatuagem
japonesa, que tomam toda a extensão das costas. No entanto, os painéis são raramente
procurados, pois o investimento financeiro necessário é muito alto e a tatuagem é
demorada, necessitando-se de várias sessões.
Apesar das costas serem mais procuradas por mulheres (26.4%) do que homens
(14.1%), não creio que se trate de uma região feminina, na medida em que os homens a
tatuam em larga escala. A região preferida por eles, no entanto, é o braço. As costas
ficam em segundo lugar na preferência deles. O braço é o local masculino por
excelência (61.7%), apresentando uma porcentagem de incidências superior à das costas
e pescoço/nuca juntas nas mulheres (50%). Contudo, algumas mulheres optaram por tal
região a ser tatuada. Essa incidência pequena de mulheres que tatuaram o braço é, não
obstante, superior à incidência de mulheres que tatuaram outras regiões do corpo, sem
incidência de tatuagens em homens, como a cintura, a orelha ou o quadril. O total de
casos de tatuagem no braço, tanto masculinos quanto femininos, é de 100,
apresentando-se, assim, como o segundo lugar preferencial para se tatuar o corpo.
A região denominada aqui como braço envolve, ainda, o antebraço, mas não o
pulso. O antebraço é mais raramente tatuado, uma vez que as camisas de mangas curtas
o deixam à mostra. O braço, por sua vez, enseja uma idéia de força. Sabino (2000)
observa que, entre praticantes de musculação em academias de ginástica na cidade do
Rio de Janeiro, o braço musculoso, torneado em aparelhos e séries de exercícios físicos,
154
é muitas vezes adornado com tatuagens, especialmente aquelas que tragam alguma idéia
de agressividade, como animais selvagens.
A região do pescoço/nuca está em segundo lugar na preferência das mulheres
(23.6%), apresentando uma incidência baixa de casos masculinos (2%). Outros autores,
como Almeida (2001), já haviam apontado a região como tipicamente feminina.
Segundo a autora, as mulheres optam pela região pela facilidade em usar os cabelos
longos como uma forma de esconder a marca – creio que como um véu que revela ou
esconde o desenho, segundo as necessidades e intenções do sujeito. Conforme observei
muitas vezes em campo, os tatuados em geral apresentam uma forte preocupação em
esconder a marca, devido à crença de que o mercado de trabalho não está apto a lidar
com a tatuagem, ainda vista como sinal de marginalidade e má conduta, como um
estigma (GOFFMAN, 1975). Os homens, sem a predominância dos cabelos longos, não
têm a mesma facilidade de esconder a marca nesta região. O pescoço ou a nuca tatuados
em um homem ficam, se os cabelos são curtos, sempre visíveis.
Eu sugeriria que a nuca e o pescoço se tornaram áreas femininas por outras
razões, além da possibilidade de se esconder a marca. Por um lado, como a região é
pouco extensa, permite tatuagens menores, tipicamente femininas, muito embora as
costas sejam uma região extensa e bastante procurada por elas. Por outro lado, a
possibilidade de revelar/esconder a marca utilizando o véu formado pelos cabelos
longos faz com que apenas poucas pessoas tenham acesso à visão da tatuagem, o que a
torna um elemento mais valorizado, de difícil acesso.
Sendo, normalmente, pequena a marca nessa região, a visão só é permitida – ou,
melhor dizendo, o desenho só é identificado – de perto. Isto significa que, para ter
contato visual com marca, o indivíduo deve estar fisicamente próximo à região do
pescoço, ou seja, ao rosto da pessoa, o que, por sua vez, indica que está próximo à
pessoa em si, e não apenas ao seu corpo, numa interação mais íntima. Não se trata,
portanto, de chamar a atenção para a região tatuada, mas de revelar, num possível jogo
de sedução e na abertura da intimidade a um outro sujeito, elementos sobre si que ficam,
de outro modo, resguardados. A marca no pescoço é um elemento de sedução
secundário, pois só é realmente percebido depois de uma aproximação, e só é revelado
se for intenção da tatuada.
A feminilidade é, ainda hoje no Ocidente, resguardada, protegida de toques e
olhares. Conforme Sabino (2000) aponta, as tatuagens femininas não apenas são
pequenas em tamanho, mas se localizam em regiões do corpo onde podem ser
155
O pulso, algumas vezes designado pelos tatuados como punho, é outra região
tipicamente feminina. A tatuagem no pulso requer bastante habilidade da parte do
tatuador, devido à quantidade de vasos sanguíneos na região. A agulha não pode
perfurar a pele em profundidade. Nesta região, a marca fica constantemente visível e
funciona, em sua qualidade de adorno, como uma espécie de jóia, da mesma forma
como se utilizam pulseiras ou relógios para adornar a região. Não estou dizendo, com
isso, que o pulso seja tatuado em sua parte interna e externa. Existem tatuagens nesta
região que circundam todo o punho, tomando efetivamente a forma de uma pulseira,
mas há outras que tomam apenas a parte interna. Conforme uma cliente do estúdio me
contou, tentava esconder o pequeno pássaro tatuado em seu punho com pulseiras
grandes e relógios. A tentativa era feita em função de sua atuação profissional.
Tatuagens nos dedos são raras. Nestes casos podem tomar também a forma de
uma jóia, como um anel. Algumas vezes letras são tatuadas nos dedos, para que se leiam
palavras de quatro ou cinco letras. Em outros casos, pequenos desenhos dão a impressão
de que seu portador usa um anel. Neste caso específico, a marca fica apenas
parcialmente visível, pois é necessário um olhar mais atento para se distinguir a
tatuagem da jóia. Como no caso das tatuagens no pulso, um anel verdadeiro pode ser
utilizado para encobrir a marca.
Embora a mão não tenha aparecido no escopo de regiões tatuadas entre os meses
analisados, é possível encontrar pessoas com tatuagens nas mãos, normalmente na sua
parte superior, próximo ao polegar. Em visita a um outro estúdio da Tijuca, vi a
fotografia de uma tatuagem executada na palma da mão. Constitui uma parcela pequena
das regiões tatuadas por estar demasiadamente à mostra.
A orelha e a extensão de pele que fica atrás da mesma, recobrindo o crânio
abaixo dos cabelos, são áreas que apenas as mulheres tatuam. Como a tatuagem na nuca
ou pescoço, sua visibilidade fica a critério do sujeito, que encobrir a marca com os
cabelos. Opera-se a mesma metáfora de feminilidade em jogo no pescoço/nuca,
observando que os cabelos curtos dos homens deixariam a tatuagem à mostra. Esta é
uma tatuagem quase invisível, ainda mais escondida que a da nuca.
Tatuagens no peito, quadril, cintura e costela referem-se a porções do tórax
outras que a barriga. Quadril e cintura são áreas análogas à barriga e à lombar,
tipicamente femininas, pois as roupas de cintura baixa as deixam à mostra. Barriga,
cintura e quadris associam-se, ainda, à região do ventre. São elementos femininos por
excelência, que ressaltam o ventre, hoje à mostra devido à moda. A cintura fina, os
158
quadris largos e a barriga reta são, no Brasil, parte do modelo de beleza atual. Tatuar
uma dessas regiões é chamar a atenção para a mesma, valorizando o portador da marca
se as formas corporais estiverem de acordo com os padrões de beleza vigentes. De outra
forma, a marca funcionaria de modo negativo, chamando a atenção para o desvio do
modelo de beleza.
Costela e peito, embora com alguma incidência em mulheres, aparecem no
levantamento como zonas preferencialmente masculinas. A costela é uma região
dolorosa para se tatuar, pois não há músculo ou carne, apenas pele e osso, onde o
tatuador deve ter uma grande habilidade, pois, conforme fui informada em campo, é
uma região de pele elástica. Deve-se fazer um cálculo visual sobre o tamanho desejado
para o desenho. A tatuagem é executada com o cliente mantendo seu braço erguido, o
que torna o desenho aparentemente maior. Contudo, quando o braço é abaixado, o
desenho “encolhe”, pois a pele estava esticada. Torna-se uma tatuagem cara, também,
em função destas dificuldades. Os desenhos masculinos nas costelas, como é regra
geral, costumam ser maiores do que os femininos.
O peito, por sua vez, pode abranger a área dos seios tanto quanto o colo, região
superior a estes. É, igualmente, uma área onde a sensibilidade é maior, causando mais
desconforto ao ser tatuada. O seio já foi, conforme Marques (1997) aponta, um local
preferencial para a tatuagem em mulheres. Nos homens, o tórax musculoso pode ser
adornado com uma tatuagem no peito. Esta região, normalmente coberta por roupas, se
torna mais visível nos homens do que nas mulheres, dada a convenção social que
permite a eles a nudez desta parte superior do corpo, enquanto veta a mesma às
mulheres.
8. Revelar e esconder
consegui por intermédio do que faço... então mandei escrever isso aí, p’ra todo
mundo ver... ainda quero mandar escrever o nome da minha mãe nas costas, ela p’ra
mim é mulher mais importante da minha vida.” (Pedro, 30 anos. Instrutor de
musculação)
“Eu tatuei na minha pele o que tenho na minha mente: a palavra Deus em inglês...
tatuei porque acho que tenho que lembrar a todo instante dele, agradecer o que tenho,
saúde p’ra correr atrás do que preciso, por isso tatuei no pulso... também p’ra todo
mundo ver que me protejo, sei lá é meio amuleto também... um poder superior que
você carrega no seu corpo.” (Carol. 18 anos. Estudante)
9. O gênero da tatuagem
“O corpo é meu, o dinheiro é meu e ninguém tem nada a ver com isso.”
Clientes mulheres do estúdio pesquisado na Tijuca.
levava a uma falta de espaço, que era solucionada com o uso do espaço normalmente
vago do box, que estava aparelhado com o necessário para o exercício de tatuar.
Segundo, nem sempre o cliente considerava que o local escolhido para tatuar deveria ser
escondido dos olhares curiosos.
Neste sentido, é preciso lembrar que a sala de tatuar é constantemente invadida
por amigos ou antigos clientes dos tatuadores, havendo uma circulação de pessoas que
não apenas aquelas que estão sendo tatuadas. Esta é uma dinâmica do estúdio
pesquisado, que pode não estar presente em outros estúdios. Restringir o acesso de
outras pessoas à sala de tatuar, ou tatuar um cliente de cada vez, é a solução mais
comum para se resguardar de olhares indesejados durante a operação. Esta solução não
poderia ser utilizada no estúdio pesquisado, pois lá trabalham cinco ou mais tatuadores
simultaneamente. A criação de uma sala isolada foi a solução mais fácil para o
problema.
O que é considerado um local íntimo ou de exposição indesejada do corpo a
olhares que não o de amigos, parentes ou do próprio profissional é bastante subjetivo.
Por três vezes, quando estava observando os clientes serem tatuados, vi casos parecidos
em que a sala poderia ser utilizada e não foi. Na primeira vez, uma jovem submetia-se a
uma tatuagem nas costas, do alto da coluna a sua parte inferior, com o intuito de cobrir a
cicatriz de uma cirurgia. Para que a tatuagem fosse desenhada1, as costas tinham que
estar livres. A moça tinha que segurar a blusa na parte da frente de seu corpo para cobrir
os seios. Estava despida, mas coberta. Em outra situação, outra jovem cliente tatuava
um dragão tribal na região superior à dos seios, entre o pescoço e o seio esquerdo. Havia
ido ao estúdio com uma blusa de mangas, que deixava a região coberta. Por não ter
vestido uma roupa adequada, como uma blusa ou bustiê tomara-que-caia, teve de torcer
a blusa, abaixando uma das mangas, para não ficar vestida apenas com o sutiã.
Um terceiro caso que presenciei foi mais interessante. Uma moça foi ao estúdio
tatuar a virilha. É costume, nesses casos, conforme presenciei algumas vezes, que se
vista um biquíni e uma saia que possa ser suspensa ou abaixada. Mesmo usando o
biquíni, reparei que é comum que os clientes homens presentes observem uma tatuagem
na virilha ser executada com uma atenção maior que outras tatuagens em mulheres ou
homens. Neste caso, o tatuador ofereceu à moça uma sala no estúdio de piercing, onde
praticamente só há mulheres, pois o box estava sendo utilizado. A moça disse-lhe que
1
Optou-se pelo free hand, para que a cicatriz fosse devidamente coberta.
168
não tinha “essas frescuras” e que não se incomodava em ser tatuada entre as baias. O
tatuador abriu a maca e ela se deitou. Normalmente, este tipo de tatuagem é feito com a
cliente recostada em um banco alto, quase de pé. Ao deitar-se na maca, a moça
suspendeu a saia e pude notar que usava uma calcinha preta transparente que permitia a
qualquer um ver sua genitália.
Este último caso representa o quanto noções de pudor podem ser subjetivas, ao
menos dentro do estúdio. O tatuador é como um médico: profissional que, presume-se,
não olha o corpo com intenções sexuais. Contudo, se a sala de tatuar não está ocupada
apenas pelo cliente e pelo tatuador, não há garantias de que outros clientes ou mesmo
outros tatuadores não lancem olhares ao corpo exposto. Neste sentido, paqueras e flertes
podem ocorrer. Enquanto a cliente que queria cobrir suas cicatrizes era tatuada, um
antigo cliente da casa, que voltara para retocar as tatuagens nos braços, flertava com ela,
conversando e trazendo revistas para distraí-la (ou chamar sua atenção), que folheava
sentado a seu lado. Ao perceber o possível incômodo que o rapaz poderia estar
causando à moça, os tatuadores começaram uma brincadeira, pedindo a ele, em tom
jocoso, que parasse de flertar com ela e sugerindo que era um sedutor.
A linha que separa a exposição controlada dos corpos da exposição que suscita o
olhar sexualizado é tênue. São os tatuadores que exercem esse controle sobre possíveis
situações de flerte mais aberto, que vão além de um olhar. O controle do olhar, contudo,
não é possível neste estúdio, uma vez que pode haver mais de oito pessoas na sala e que
esta é decorada com espelhos em várias paredes, o que permite a observação de vários
ângulos a partir de um mesmo ponto fixo.
O controle e a exposição dos corpos femininos nas sociedades de dominação
masculina foram analisados por Bourdieu (2003). Uma das formas de controlar os
corpos femininos que pode ser observada de dentro do estúdio de tatuagem é a
companhia materna no momento de se tatuar. Enquanto observava os clientes e
interessados na recepção do estúdio, não raro vi moças irem acompanhadas de suas
mães. Observando o estúdio apenas na sala de tatuar, é mais difícil perceber quem está
acompanhada e quem não está, uma vez que as mães são constantemente deixadas
esperando na recepção. Segundo fui informada pelo recepcionista, alguns pais também
acompanham filhos e filhas desejosos de adquirirem uma tatuagem. A moça que tatuava
o dragão tribal, por exemplo, fora ao estúdio acompanhada da mãe e da irmã, que
também se tatuava.
169
homens devem dar a si mesmos e ao mundo de um modo geral requer esta auto-
conservação da intimidade em situações em que ela está sendo posta à prova, como no
momento de suportar a dor física ao ser tatuado.
O controle sobre os corpos femininos se torna visível a partir do universo da
tatuagem ainda de uma outra forma: nas censuras de maridos sobre o desejo de suas
mulheres pela tatuagem.
“Meu marido também não gosta de tatuagem. Eu disse para ele ‘vou fazer outra’. Ele
não é contra, mas sempre me diz que, por ele, eu não faria nenhuma. Mas eu faço. O
corpo é meu, o dinheiro é meu e ninguém tem nada a ver com isso”. (Célia, 28 anos,
cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)
“Não, mas eu não quero nem saber. O corpo é meu, o dinheiro é meu, ninguém tem
nada a ver com isso. Agora você vê... eu tenho 38 anos e não posso tomar minhas
próprias decisões.” (Cândida, 38 anos, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)
Cândida não havia avisado ao marido que havia tomado a decisão e que iria ser
tatuada naquele dia. Ele tomou conhecimento da situação pelo telefone.
Nas situações acima, o marido aparece como alguém que pode gerar conflitos na
opção de se tatuar. A família é a instância que critica ou apóia uma decisão individual:
ao que tudo indica, os maridos criticando e as mães apoiando, o que sugere uma relação
mais profunda da tatuagem com o universo feminino, como se ela já fizesse parte de
uma cultura feminina, em que as mulheres se apóiam mutuamente. Mas porque os
maridos são contrários à tatuagem em suas esposas? Segundo Bourdieu (2003), sendo as
mulheres e seus corpos objetificados pela dominação masculina, tornados objetos de
uma economia de bens simbólicos, seu principal local de troca diz respeito ao mercado
matrimonial. A intervenção da família na vida das mulheres opera não apenas quanto à
salvaguarda de um objeto valioso para a reprodução da própria família como quanto à
idéia de que as mulheres devem ser dirigidas por seus homens (pai, irmão, marido).
No caso de Célia, ela informou ao marido sua decisão, mas não levou em
consideração suas críticas ou gosto pessoal, argumentando que o gosto a ser levado em
consideração era o dela, uma vez que o corpo a ser adornado era o dela. O fato de seu
172
marido não gostar de tatuagens não apenas não a incomodava, como não a inibia de
fazer mais algumas (fazia sua terceira marca). Só pensava em retirar a mais antiga, pois
aquela incomodava a ela mesma. Incômodo que não se originava no fato de estar
envelhecida, feia e desbotada, mas no fato de lhe causar transtornos no mundo do
trabalho. A tatuagem nova que adquiria na nuca não lhe causaria transtornos, pois
poderia escondê-la com os cabelos, conforme contou. Já Cândida não parecia
preocupada em revelar ou esconder sua tatuagem. Antes disso, precisou lidar com a
insatisfação de sua família. Mas há uma diferença entre Cândida e Célia: uma avisou ao
marido o que estava pretendendo fazer, e a outra não.
Em observação no estúdio de Copacabana, uma cliente, Carla, desistiu da
tatuagem que desejava fazer em função da proibição do namorado. Havia marcado hora
para tatuar uma tulipa na virilha, mas aproveitou a sessão para retocar um sol em preto
que havia tatuado há algumas semanas nas costas. Mantivemos o seguinte diálogo:
Carla - Meu namorado não quer de jeito nenhum [que eu tatue a virilha]. Como é
início de namoro, a gente finge que obedece.
Pesquisadora – Ele acha vulgar?
C - Não, ele fica perguntando aonde o tatuador vai se apoiar!
P - Então você deveria ter dito que era uma mulher que iria te tatuar.
C - Minhas amigas me disseram a mesma coisa, que eu deveria ter dito que era uma
mulher, mas eu não sei mentir, eu ia rir e estragar tudo!
A proibição não fora gerada pela tatuagem em si, mas pela localização escolhida.
O receio do rapaz era a exposição do corpo da namorada ao toque de outro homem,
mais do que ao olhar. Carla se submetia às restrições geradas pelo ciúme do namorado
pensando em fortalecer o namoro. Pensava que enfrentá-lo naquele momento poderia
abalar a relação. Esperava que estivesse fortalecida para fazer valer suas opiniões e
desejos sobre o próprio corpo. Nem cogitou mentir para o namorado, tão preocupada
estava com o relacionamento.
Quando se trata das tatuagens de amor, a reflexão sobre a quem, de fato,
pertence o corpo feminino – se à própria mulher ou ao seu marido ou namorado – se
torna mais evidente. Pretendo desenvolver este tema em outro capítulo, mas é
importante mencionar, aqui, que há situações contrárias, em que o marido ou namorado
pede para que seu nome ou as iniciais de seu nome sejam tatuados. Trata-se de uma
tatuagem de amor na forma de uma marca de propriedade sobre o outro.
173
Cláudia entrou no estúdio da Tijuca logo após Cândida viver seu episódio
familiar. Pareciam ter a mesma idade. O tatuador desenhou uma série de três querubins
segurando um coração.
“Eu sofri uma parada cardíaca há três semanas. Morri e voltei. Eu quero marcar
isso.” (Cláudia, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)
Pensava em tatuá-los no tornozelo, mas não queria que ficassem expostos, pois
no trabalho tinha “mais ou menos” problema. Depois chegou à conclusão de que, se
alguém visse o desenho, não se importava. Cláudia trabalhava como curadora de
exposições. Esta iria ser sua primeira tatuagem, mas também faria uma pomba na nuca
naquele mesmo dia.
Cláudia me confidenciara que ninguém em sua família sabia que estava para se
tatuar. A experiência de doença que levara ao desejo de se tatuar havia sido tão forte
que não quisera compartilhar a decisão. Tatuava-se, segundo ela, apenas em função da
experiência ocorrida, marcando na pele algo que a alma não seria capaz de apagar. Não
se preocupava com a reação ou o conhecimento prévio da família. Queria apenas se
tatuar em regiões do corpo que pudessem ser escondidas no mundo do trabalho.
Gostaria de tomar estes casos como ponto de partida para uma reflexão. A
família, especialmente o marido e também o namorado, aparece em todos como uma
instância controladora. Sendo membro de uma família, o corpo do indivíduo fica sujeito
às pressões familiares. Não levando em consideração a opinião da família, o que o
indivíduo demonstra é que seu corpo é propriedade e responsabilidade exclusivamente
suas e qualquer decisão por ele tomada, nesse sentido, é expressão de seu desejo
pessoal.
Há, na relação do indivíduo com a família, algo que permite a manifestação
dessas vontades individuais. No universo do trabalho, contudo, a pressão exercida é
sentida de forma muito maior.
tatuado”, ou contra a tatuagem, a solução é optar por áreas do corpo que são pensadas
como menos expostas ao olhar. Nem sempre, contudo, a tatuagem está totalmente
escondida. Observa-se, então, o aparecimento de uma espécie de jogo entre a tatuagem
percebida pelo tatuado como um potencial problema em sua vida, o desejo de ser
tatuado ou fazer novas tatuagens, e a solução para esse conflito, que é manter os
desenhos escondidos na esfera profissional.
Em uma tarde de observação na Tijuca, ouvi a história de Célia, 28 anos, casada,
mãe de dois filhos, micro-empresária. Estava fazendo sua terceira tatuagem. A primeira,
contou, fizera aos 13 anos. Já estava desgastada e pensava em retirá-la com laser. Não
queria retocá-la nem cobrí-la com outro desenho, pois achava a região tatuada exposta,
à mostra com certos tipos de roupa. A tatuagem localizava-se nas costas, perto do
ombro. Segundo disse, esteve em um evento com clientes de sua empresa e, sentindo
calor, retirou o casaco. O vestido que usava deixava a tatuagem à mostra, o que foi
observado por algumas pessoas e automaticamente se transformou em assunto entre
elas. O comentário que recebeu e reproduziu para mim foi o seguinte: “Nossa, você tem
tatuagem? Mas nem parece!”.
A tatuagem executada sobre a adolescente de 13 anos passou a ser vista como um
transtorno quinze anos depois, em função das exigências do mercado de trabalho. O ato
de tatuar-se, contudo, não causou nenhum arrependimento, visto que Célia fez mais
duas tatuagens. A diferença era, apenas, na escolha da região do corpo: tatuava-se em
regiões em que pudesse esconder a marca.
Cláudia, que se tatuava em função da experiência de quase-morte provocada por
uma para cardíaca, fora ao estúdio da Tijuca sem o conhecimento de sua família.
Preocupava-a menos a reação desta do que a do mercado de trabalho. Queria se tatuar
em regiões do corpo que pudessem ser escondidas. Optou, então, pela nuca e pelo
tornozelo, ainda pensando se o último não era exposto demais. Na dúvida, exclamou:
“ah, se não gostarem também que se dane”. No universo do trabalho, a pressão é sentida
de forma muito maior do que no âmbito familiar. Há um cálculo, como demonstra
Cláudia, sobre o quanto este universo aceitará ou não o desejo individual.
Em outro dia, conversei com Cora, cliente assídua do estúdio da Tijuca. Já a
havia visto por lá em outras ocasiões. Cora tem 45 anos, é advogada, casada, mãe de
dois filhos. Segundo contou, tem oito tatuagens pelo corpo e inúmeros piercings nas
duas orelhas. Perguntei se as tatuagens e piercings não lhe atrapalhavam em questões
profissionais. A orelha, contou, cobria com o cabelo. As tatuagens dos pés se tornavam
175
invisíveis com calçados fechados, bem como as do corpo, cobertas pelas roupas. A
tatuagem do pulso era escondida com o relógio. Enquanto conversávamos, a tatuadora
formava opinião distinta daquela de Cora, dizendo que “no trabalho não pega tanto
assim”, mas Cora discordou e disse que “pegava sim”. Havia sido tatuada recentemente:
um desenho estilo comics de um homem com duas crianças, que ela dizia ser o marido e
os filhos, localizado nas costas, logo abaixo da nuca. Seu marido também é tatuado e
gostou da homenagem, bem como os filhos. Ela estava no estúdio naquele dia para
colorir um dragão que tatuou subindo do pé até o meio da canela direita.
Embora Cora diga que utiliza o vestuário para esconder suas tatuagens, muitas
permaneciam visíveis. Os sapatos não encobriam os desenhos dos pés tampouco as
pulseiras e relógios o do pulso. Esta observação me levou a questionar o quanto o medo
de preconceito e retaliações no mundo profissional é real e o quanto ele é parte do
imaginário sobre a tatuagem em nossa sociedade. Se o preconceito fosse tão forte
quanto é pensado pelos tatuados, eles provavelmente não alimentariam a atual
proliferação e profissionalização dos estúdios e seus tatuadores. Parece que o medo
quanto ao mercado de trabalho é alimentado por uma associação ainda presente no
senso-comum, conforme visto sobre os piercings, entre marginalidade e tatuagem.
Em outra ocasião, observei duas irmãs sendo tatuadas no mesmo dia,
acompanhadas pela mãe. Carmem, de 20 anos, tatuou um dragão pequeno, em preto,
estilo tribal, entre o ombro e o pescoço, um pouco acima do seio. Pensei que esta seria
considerada uma região bem aparente, mas Carmem havia escolhido o local segundo a
lógica do revelar/esconder.
“Aqui eu mostro quando eu quiser. Se não quiser, não mostro, ninguém vê. Eu me
preocupo com o meu trabalho, que é uma coisa que eu quero fazer também”.
(Carmem, 20 anos, cliente do estúdio pesquisado na Tijuca)
Não era a sua primeira tatuagem, que foi retocada no mesmo dia: uma minúscula
meia-lua com uma estrela atrás da orelha esquerda.
O grau de preocupação com os transtornos que uma tatuagem pode oferecer no
mundo do trabalho parece ser mais subjetivo do que objetivo. A nuca, escondida pelo
cabelo de Célia e Cláudia, não é um problema. A orelha de Cora, cheia de piercings, e a
orelha tatuada de Carmem tampouco as preocupavam. Cora, de fato, não parecia
preocupada em absoluto, embora pensasse que o universo do trabalho não a aceitaria
176
como advogada sendo uma mulher tatuada. O universo policial onde Carmem queria
ingressar, segundo ela, tampouco a aceitaria se as tatuagens fossem aparentes.
É no mundo do trabalho que se deve sempre esconder as tatuagens. Logo, o local
escolhido para as mesmas deve permitir que, nestes ambientes, elas sejam ocultadas,
enquanto em outros elas possam ser reveladas. O mundo do trabalho é visto como lócus
de controle sobre os sujeitos e seus corpos. Possuindo tal qualidade, é um universo onde
a expressão do Eu só é possível de forma limitada. Neste campo, o sujeito deve
esconder sinais que indiquem que ele não é o que se espera que seja. A tatuagem é vista
como uma forma de estigma (GOFFMAN, 1975) que deve ser encoberta, pois pode
alterar a percepção sobre os sujeitos que possuem a marca.
Em reportagem para o caderno Boa Chance do jornal O Globo de 1o de maio de
2005, Calaza (2005) ouviu a opinião de certos segmentos do mercado para entender até
que ponto ter uma tatuagem e um piercing podem ser prejudiciais à carreira ou ao
emprego. De fato, áreas mais tradicionais como o setor de saúde e o comércio são
contra a visibilidade de tatuagens para funcionários, em grande parte por receio da
reação do público. Em áreas mais inovadoras, como a publicidade, ambos os adornos
não são mal-vistos.
Reproduzo, a seguir, os comentários publicados na reportagem. Estes foram
divididos por áreas de atuação: comércio, saúde, construção civil, administração estatal
e propaganda. O primeiro deles é de João Carlos de Oliveira, presidente da Associação
Brasileira de Supermercados (ABRAS):
Para o presidente da ABRAS, a grande restrição recai sobre aqueles que lidam
com o público. A tatuagem é vista como um estigma: ela “pode agredir” quem a vê.
Para evitar essa agressão, deve ser escondida. Não julga, ainda, que tatuagem e boa
apresentação, boa aparência, caminhem juntas. Fica claro, na fala acima, que o mercado
de trabalho tem o poder de “enquadrar”, controlar, dissuadir e punir aqueles que não
correspondem às expectativas de perfil para preenchimento de funções e cargos.
177
“Acho normal. Antigamente, tatuagem era tida como coisa de bandido, mas hoje
nossos filhos fazem. Não choca mais. Desde que não seja agressiva, no corpo
inteiro.” (Rubem Vasconcelos, presidente da empresa de construção civil
Patrimóvel)
178
Na primeira fala, o mérito emerge como fator mais importante para a contratação
ou manutenção de um profissional. Contudo, o público, novamente, ente difuso e sem-
rosto, é o grande vilão. O público não aceita ser atendido por pessoas tatuadas. Na
segunda fala, a tatuagem é vista como normal em comparação com seu status no
passado. Sendo normal, ela não choca mais. Mas normal significa restrita. A tatuagem
de corpo inteiro é vista como agressiva, mesmo termo utilizado na fala de João Carlos
de Oliveira, da ABRAS.
Aponta-se, ainda, para o novo status da marca, o de normal, como o produto da
apropriação que uma nova geração fez dela: “nossos filhos”. De fato, ver o filho
tatuado, saber que a tatuagem não alterou seu bom caráter, pode ser um dos caminhos
para a transformação desse difuso e nada preciso “preconceito”. A popularização da
tatuagem torna-se, então, um meio de extinguir as restrições a quem utiliza o adorno.
As falas mais liberais quanto aos tatuados vêm das áreas da propaganda e da
administração estatal que, a princípio, poderia ser um campo restritivo, dada a
formalidade da burocracia. Contudo, como esta é baseada no mérito e no
comprometimento com a execução de funções (WEBER, 1971), diluindo o ocupante do
cargo em uma impessoalidade, inverte-se o esperado, e a administração estatal se
apresenta como um ambiente mais liberal.
Washington Olivetto, diretor da agência publicitária W/Brasil, uma das mais
famosas do país, afirmou que:
“Tanto para a W/Brasil como para mim, o que importa numa pessoa é sua cabeça e
não o que ela tem no seu corpo. Um funcionário talentoso, de bom caráter e com
muita vontade de trabalhar pode usar o que quiser. Até entendo que existam
restrições para alguns setores. Mas nosso ambiente é de pura informalidade.”
(Washington Olivetto, diretor da agência publicitária W/Brasil)
4. Beleza e sedução
“Pra homem eu acho que no braço é o mais bonito, porque essa parte do braço é uma
coisa tão masculina sabe... musculosa, bonita, forte, se ele tem uma tatuagem bonita
assim... só acrescenta.” (Carla)
“Pra mulher eu acho lindo no peito...Ai no seio é lindo, tu usa um decote e fica coisa
mais linda, super sensual, bem mulher fatal... e no pescoço... Aí prende o cabelo,
deixa cair aqueles fiapinhos... ai, e aquela tatuagem linda...” (Carla)
Sabino (2004) tem reflexão semelhante, não apenas com relação à tatuagem
feminina, mas a toda a construção física dos marombeiros. O vigor muscular, adornado
ou não por tatuagens, visa também a sedução. A localização das tatuagens é, neste
sentido, uma forma de valorizar determinadas regiões do corpo. Conforme uma das
entrevistadas de Sabino (2004, p. 270 ):
“...a gente faz tatuagem na nuca, na virilha, perto do bumbum... é claro, né? São
lugares de mulher fazer tattoo... por quê? Porque dá um tchan, um destaque naquela
parte que você acha que você tem de legal, que atrai os caras e deixa as mulheres
com inveja, que te dá aquele charme... entende? Se a mulher tem uma cintura bonita,
fininha, um quadril largo, ela manda logo uma tribal no cóccix, se ela tem um peitão
bacana manda uma no peito, e aí vai... sacou? Muita mina diz que faz na nuca, no
cóccix que é p’ra não enjoar da tattoo, porque ali ela não fica vendo o desenho o
tempo todo, tudo bem, pode até ser, mas é muito mais p’ra dar um destaque naquela
parte do corpo que ela acha legal.” (Juliana. 20 anos. Estudante).
do olhar para aquelas regiões do corpo que, em nossa cultura, se tornaram a própria
definição do corpo feminino, sobretudo a sua parte inferior.
Se o corpo feminino foi reduzido a seios e nádegas, o corpo masculino parece ter
sido reduzido a braços. Quero indicar aqui relação análoga à feminina, pois não são
apenas as mulheres a fazerem uso de tatuagens para atrair o olhar. No caso dos homens,
a região preferencial para ser tatuada é o braço. Não necessariamente um braço
musculoso. O braço masculino se tornou epíteto da própria masculinidade, pois é um
símbolo de força, que por sua vez se tornou a definição do masculino conforme
observado no presente trabalho.
A forma como o tatuado lida com a dor causada pelo processo da tatuagem pode
ser bem diferente segundo o gênero. Como aponta Le Breton (1995), os meninos são
criados, tanto na família quanto na escola, para se fecharem à dor, negando-a ou não a
demonstrando, enquanto as meninas são encorajadas a demonstrarem seus sentimentos.
Para eles, esse é parte do aprendizado de “ser um verdadeiro homem”.
Embora eu tenha recolhido relatos de tatuados, em conversas informais, que me
garantiam que o ato não é doloroso, outros afirmam que o processo envolve sua porção
de sacrifício. Os que negam a dor afirmam que existe uma sensação de queimação ou
ardido enquanto a agulha deposita os pigmentos abaixo da pele. Importa menos medir o
grau de resistência à dor de cada indivíduo do que os discursos relativos a ela: porque é
negada e porque é reificada.
Entre povos que se tatuam ou se tatuaram, a dor parece ter servido como
elemento que demonstra a coragem daquele que se submete ao processo. Esteja o
tatuado em silêncio ou aos berros (Gilbert, 2000), a sua atitude demonstra que ele é
corajoso o suficiente para submeter-se a um processo doloroso. A dor não é negada,
nestes casos, mas sim parte do ritual. Há que se esclarecer, contudo, que a técnica
contemporânea tem sido recorrentemente descrita (Gilbert, 2000; Schiffmacher, 2001)
como menos dolorosa do que a tradicional. A tatuagem tradicional, ou artesanal, é
realizada com instrumentos de poucas agulhas. A partir da invenção da máquina de
tatuar elétrica no final do século XIX, o processo se tornou mais rápido e por isso
menos doloroso. As agulhas são soldadas juntas e acopladas à máquina. Desta forma,
182
uma extensão de pele pode ser coberta de pigmento de forma mais rápida, pela
velocidade da máquina e pela quantidade de agulhas utilizadas.
A mão do tatuador pode oferecer sensações distintas de dor. Vulgarmente
descrita como mão leve ou mão pesada, a técnica do tatuador pode fazer o tatuado sentir
mais ou menos dor. A diferença está na pressão exercida sobre a máquina, a
profundidade em que as agulhas perfuram a pele. Quanto mais profundo, mais doloroso.
A técnica tradicional japonesa envolvia, segundo Gilbert (2000), três posições de mão.
A posição considerada melhor era aquela que provocava a menor dor, mas apenas os
tatuadores mais experientes conseguiam mantê-la.
Como a tatuagem é um processo que envolve algum desconforto físico – se não
a dor, ao menos o ardido –, poder-se-ia supor que masoquistas e adeptos de
sadomasoquismo se interessassem pela prática. Na literatura da área, apenas um autor
mencionou o fato. Steward (1990), que foi tatuador, menciona poucos sadomasoquistas
que foram seus clientes. Aparentemente, o prazer na dor de ser tatuado não lhes atrai,
uma vez que não há uma interação sexual ou erótica com o tatuador. Entre os
entrevistados por Leitão (2003), há mesmo os que dizem que querem uma tatuagem mas
não querem sentir dor. De fato, a tatuagem como é praticada contemporaneamente, pode
ser dissociada, na visão de alguns tatuados, da dor. Uma não tem que ser,
necessariamente, sinônimo da outra.
Mais recentemente, outras práticas de modificação corporal têm procurado
diretamente a experiência da dor. Em reportagem disponível em março de 2003, o site
IG (Jordão, 2003) mostra o exercício da “suspensão”, quando o indivíduo é erguido do
chão por ganchos colocados diretamente na carne, em perfurações mais profundas que
as utilizadas na técnica do piercing. A prática é descrita juntamente com outras práticas
de modificação corporal por corte ou queimadura, incluindo a tatuagem. Segundo uma
entrevistada, a dor não é uma busca, mas uma conseqüência da necessidade de
expressão pessoal através do corpo. A autora da reportagem afirma que para outros
praticantes a dor é um desafio a ser superado.
Buscada ou não, a dor é um elemento de inúmeras práticas corporais atuais.
Parece-me que ela é negada em certas situações e supervalorizada em outras. O esforço
físico da musculação pode resultar em uma dor que se prolonga por horas. A dor da
tatuagem é sentida apenas no momento da operação. A dor do piercing pode se manter
por alguns dias. Em qualquer caso, a dor é uma experiência pessoal subjetiva que não
pode ser medida, mas seus significados sociais podem ser analisados.
183
como sensações não tão ruins quanto a dor. Trata-se, portanto, de uma forma de
minimizar a sensação desagradável vivida no ato de ser tatuado.
Quando os tatuados dizem “não dói”, o que querem dizer, de fato, é que não se
trata de dor, mas de outras sensações. Neste sentido, retomo o relato de um cliente do
estúdio pesquisado na Tijuca, discurso colhido enquanto tinha a parte interna do braço
tatuada:
Pesquisadora – Aí dói?
Cliente - Não, aqui não dói muito não. É a posição que me incomoda.
P – Aí não dói não?
C - Não é que não dói, toda tatuagem dói, mas é suportável.
No relato acima, a dor existe, mas ela é minimizada e tratada como suportável.
Quando se utilizam termos como ardência, choquinho, cosquinha e queimação o que se
está fazendo, de fato, é minimizar a dor e representar o processo como de um incômodo
físico suportável.
Le Breton (1995), em livro sobre a dor, distingue a “dor aguda” da “dor
crônica”. Esta, incessante, sobrevivendo às medicações e tratamentos, é aquela que
perturba o sujeito a ponto de lhe roubar a própria identidade, jogando-o em um
rodamoinho existencial que envolve estados de depressão e sofrimento. Não é o caso da
dor como observada na tatuagem. Para alguns tatuados, ela nem mesmo poderia ser
considerada dor. Decorre disto que a postura esperada no estúdio, seja de homens ou de
mulheres, é o silêncio. Dá-se às mulheres, contudo, o privilégio de uma demonstração
pública da sensação de dor, enquanto esta é negada aos homens. É possível observar que
este silêncio é, muitas vezes, acompanhado de posturas corporais, indicando algum grau
de tensão em função do desconforto do procedimento. Entre a dor e a não-dor teríamos,
portanto, o silêncio.
185
de que, na época, um outro cliente a incentivava. Ele fazia um desenho grande em outra
região do corpo, enquanto ela escolhera um desenho pequeno, e supunha-se que a
comparação na extensão e no tempo da tatuagem fizesse com que ela se sentisse mais
confortável. Mesmo assim, disse-me que sentiu muita dor. Observei uma outra cliente
sendo tatuada no pé e toda a expressão corporal da moça demonstrava o quanto a
tatuagem era dolorosa. Ela segurava a mão do namorado com tanta força que ele
reclamou. Contorcia o rosto em inúmeras caretas, mas não pediu nenhuma pausa ao
tatuador, nem tampouco reclamou.
As pessoas que sentem dor e a expressam pedem mais pausas ao tatuador do que
ele gostaria de lhes dar, pois isto alonga o tempo do processo. Estas pessoas, em sua
maioria mulheres, também costumam dizer o quanto a tatuagem está sendo dolorosa.
Eventualmente, alguns homens expressam dor, mas jamais com a mesma intensidade
que as mulheres, que fazem caretas, torcem o corpo e pedem pausas. Em uma tarde no
estúdio pesquisado na Tijuca, observei um rapaz de menos de 30 anos que chegava para
colorir uma tatuagem na parte da frente da canela, região considerada dolorosa. Ele
havia tatuado um elefante em preto, com sombras em cinza, e voltara para que o
tatuador colorisse o animal com um tom de rosa envelhecido e colorisse a água do lago
em que ele estava de pé. Em determinado momento, o rapaz reclamou que “isso não
doía assim”. O tatuador fez uma pausa por conta própria, para fumar um cigarro,
embora o rapaz quisesse continuar.
A dor pode ser minimizada com o uso de uma pomada anestésica, raramente
indicada pelos tatuadores no estúdio da Tijuca mas freqüentemente utilizada no estúdio
de Copacabana. Clientes aparentemente apavorados quanto à possibilidade de dor,
utilizam a pomada. Testemunhei um caso destes quando surgiu no estúdio da Tijuca
uma moça que queria tatuar uma estrela de cinco pontas abaixo do pescoço. Estava bem
nervosa e o tatuador parecia irritado com seu nervosismo2. Disse-me que sempre quis
uma tatuagem, mas não tinha coragem. Depois que a irmã mais nova fez a sua segunda
2
LEITÃO (2003) descreve a mesma reação em um tatuador de Porto Alegre, que se referiu à
sensibilidade de uma cliente como “frescura” e se referia à sensibilidade à dor da tatuagem, de um modo
geral, como “coisa de mulherzinha”.
187
“Você escreveu aí que essa porra dói para caralho?3 Quando chega no osso, dói para
caralho.” (Tatuador do estúdio pesquisado na Tijuca)
“Já usei sim... vou sentir dor à toa? Eu não! Mas é mais para região dolorosa mesmo,
tipo coluna e canela. Braço assim por fora, não tem necessidade. Não é que não
dói... cara, tatuagem dói, entende? Não tem o que fazer. Mas têm regiões em que é
tranqüilo, você vai.” (proprietário do estúdio pesquisado em Copacabana)
3
Um cliente de Copacabana, um senhor aposentado fazendo sua primeira tatuagem, localizada no braço,
teve a mesmo reação que o tatuador ao saber que eu estava no estúdio realizando uma pesquisa. Disse:
“escreve que isso dói, viu?”.
189
se a dor não tem significado em si, ela ganha sentido na postura adotada para se lidar
com ela. Em outras palavras, não se busca a tatuagem para sentir dor, mas lidar com a
dor é peça fundamental no processo, especialmente para os homens. No lidar com a dor
a masculinidade se torna alvo de observação e teste.
A pomada anestésica faz parte da gama de novos medicamentos criados para o
combate à dor. Conforme aponta Le Breton (1995), uma das principais preocupações
médicas é a diminuição da dor dos enfermos. A utilização de anestésicos cresceu,
também, em função da diminuição na tolerância individual à dor. Observa-se a dor hoje,
segundo o autor, como algo sem sentido, uma espécie de tortura. O mesmo ocorre nos
estúdios de tatuagem. Contudo, é necessário observar que a resistência à dor apresenta
um elemento de classe. Entre as camadas mais baixas da população, ela é mais bem
tolerada do que entre as camadas altas. O uso extensivo da pomada no estúdio de
Copacabana, ainda que muitos dos clientes desconhecessem totalmente o medicamento,
ao contrário de seu uso pouco existente no estúdio da Tijuca, indicam um componente
de classe operando no universo dos estúdios de tatuagem.
5.2. Coragem
“Ah não, se não for hoje eu perco a coragem.” (Cliente do estúdio pesquisado na
Tijuca)
“Me faltou coragem. Se não doesse, faria uma outra.” (Cliente do estúdio pesquisado
na Tijuca)
Mas sentia muita dor, o que a desencorajava. Ainda assim, disse que talvez
fizesse outra no ano seguinte.
É interessante que os relatos sobre ter ou não ter coragem são sempre de
mulheres. Está implícito aqui uma variável de gênero que seria constitutiva da própria
masculinidade: a coragem é um atributo masculino. Ela pode faltar às mulheres, mas
jamais aos homens. Mesmo quando o tatuador alerta que a região do corpo é dolorosa –
como observei no estúdio quando um rapaz desejava tatuar a costela e foi recomendado
que utilizasse uma pomada anestésica –, jamais um homem remete à sua falta de
coragem. A pomada, conforme visto, não é receitada normalmente na Tijuca, ao
contrário do que observei em Copacabana. O rapaz em questão, ao retornar ao estúdio
para a tatuagem, não havia feito uso da pomada. Conforme será visto a seguir,
reclamações masculinas sobre a dor do procedimento, quando consideradas pelo
tatuador como excessivas, são sinônimos de covardia, de fraqueza, de falta de
masculinidade.
Entre povos que se tatuam ou se tatuaram, a dor parece ter servido como
elemento que demonstra a coragem daquele que se submete à operação. Esteja o tatuado
em silêncio ou aos berros (GILBERT, 2000), a sua atitude demonstra que ele é corajoso
o suficiente para submeter-se a um processo doloroso. A dor não é negada, nestes casos,
mas sim parte do ritual. Há que se esclarecer, contudo, que a técnica contemporânea tem
sido recorrentemente descrita (GILBERT, 2000; SCHIFFMACHER, 2001) como
menos dolorosa do que a tradicional. Como será visto adiante, essa ritualística parece ter
sido mantida pelos homens tatuados nos estúdios observados.
Se a dor for muito intensa, é comum que se opte por várias sessões. Contudo, o
cliente pode deixar a tatuagem inacabada ou demorar anos para terminá-la. Conheci um
cliente que queria finalizar um desenho feito naquele mesmo estúdio há anos atrás: uma
onça mordendo o cabo de uma guitarra. O tatuador proprietário do estúdio comentou
que o desenho estava ruim, com os traços de contorno se tornando mais grossos por não
191
ter sido finalizado e que teria de refazer certas partes. Achou melhor não colorir o
desenho e o cliente também.
Ele não havia terminado a tatuagem em função da dor. Disse-me que na época
estava em jejum e a dor fez com que sua pressão arterial abaixasse. Disse, ainda, que
por ser gordinho sentia mais dor e que quando a agulha picava a gordura doía muito.
Dessa vez, comentou, havia passado a pomada anestésica. O desenho localizava-se no
bíceps direito, local que não é considerado doloroso. Este cliente, um homem moreno,
gordo, alto, cerca de 40 anos, é músico profissional. Em sua banda, contou, todos são
tatuados e ele, dizendo-se vaidoso, resolveu fazer a sua. Como não terminou, foi motivo
de piada.
A chacota quanto à dor é comum entre os clientes homens. Vale ainda a máxima
de que “homem não chora”, traduzida no mundo da tatuagem para a idéia de que os
homens não devem reclamar da dor. Comentários masculinos sobre a dor são comuns,
mas reclamações em excesso geram impaciência nos tatuadores. Pude presenciar a
reação dos tatuadores às diferentes condutas numa mesma tarde de observação na
Tijuca. Um dos tatuadores da casa atendeu um cliente: um rapaz magro e alto, branco.
Tinha um painel nas costas, que começara há dois anos: uma mulher lutando contra um
dragão, imagem retirada da capa de um livro. Havia passado a pomada anestésica e
falou que não suportava a dor. Havia tatuado um Demônio da Tasmânia, personagem de
desenho animado, na parte interna do braço esquerdo há 10 anos e não sentira dor. O
diálogo entre cliente e tatuador tomou a seguinte forma:
“Se me perguntarem se dói, eu falo ‘dói’. Não vou dizer outra coisa. Tem gente que
diz que não... Eu reclamo, faço cara feia mesmo... não vai sair daqui! Não tem
problema, ninguém vai ficar sabendo mesmo!”. (Cliente do estúdio pesquisado na
Tijuca)
Cliente 1 - Você [referindo-se ao cliente 2] vai ter clientes aqui. Tendinite é doença
de tatuador
Tatuador - [Um dos profissionais mostrou os pulsos para o rapaz] O que eu tenho
aqui?
Cliente 2 – É um calo ósseo. Você sente dor?
193
T – Não.
C2 - Mas é melhor tirar
T - E isso dói?
C2 - Menos que uma tatuagem!
A partir dos dados levantados, foi possível observar que os desenhos tatuados e
as regiões do corpo que apresentam tais desenhos seguem uma lógica de diferenciação
de gênero análoga àquela encontrada na sociedade brasileira de um modo geral. Os
desenhos femininos remetem a noções de fragilidade e delicadeza, enquanto os
desenhos mais procurados pelos homens, ao contrário, remetem a noções de violência e
força. Esta distinção presente no universo da tatuagem carioca corresponde a
representações de gênero da própria sociedade onde o masculino é sinônimo de força e
o feminino de fraqueza, reificando uma ordem masculina em que o feminino é
submetido e subjugado.
Estas diferenças são percebidas conscientemente pelos clientes dos estúdios,
tanto quanto pelos tatuadores, que buscam manter tais distinções. Assim, animais
agressivos e potencialmente vistos como masculinos, como o leão e o tubarão, adornam
os corpos femininos após passar por uma transformação em que são retirados os traços
de agressividade. As mulheres, zelosas de sua feminilidade tanto quanto os homens de
sua masculinidade, não gostam de desenhos considerados masculinos e fogem, via de
regra, de regiões do corpo consideradas como típicas dos homens.
As regiões do corpo tatuadas, também classificadas como femininas e
masculinas, apontam para esta mesma noção do masculino como sinônimo de força e do
feminino como sinônimo de fragilidade e delicadeza. Assim, eles tatuam os braços com
desenhos considerados grandes, “coisa de homem”, enquanto elas escondem desenhos
pequenos em regiões discretas como a nuca, por exemplo. Esta discrição não encobre,
contudo, uma determinada visão do feminino como algo menor, encolhido, que não
195
deve estar à mostra ou à vista, a não ser quando da sua função de sedução, de elemento
que embeleza e agrega valor ao corpo feminino. Se uma tatuagem pode transformar o
homem, agregando-lhe masculinidade, os desenhos femininos agregam beleza e
capacidade de sedução, direcionando o olhar para áreas estratégicas do corpo. Torna-se
mais homem no estúdio, isto é, adquire-se mais masculinidade, pois, como indicado,
submeter-se à tatuagem é submeter-se a um ato de sacrifício em que a dor deve ser
suportada de forma a servir como prova de virilidade.
Por outro lado, se às mulheres não se impõem a prática como prova de coragem
e força, não deixa de ser necessária alguma determinação, não apenas no enfrentamento
da dor, mas sobretudo no enfrentamento de posições contrárias à marca da parte do
marido e da família. Emerge, assim, o ato de ser tatuado, para elas, como espaço de
decisão individual sobre o próprio corpo e o próprio destino, ambos submetidos à
opinião e desejos de terceiros, a todo momento dispostos a cercear suas preferências
pessoais. O corpo controlado da mulher é seu destino controlado. Neste sentido, tomar a
decisão de tatuar-se é tomar as rédeas de seu próprio destino, expresso no símbolo de
autonomia em que se transforma a própria tatuagem.
196
outra tatuagem, apenas ela toma uma forma que parece direcionar-se para longe da
construção de uma autonomia ou resistência. Nesse sentido, a experiência da tatuagem de
amor não é a da construção ou percepção de um espaço de autonomia pessoal, mas sim da
sua falta, na forma de uma recusa a esta autonomia em prol de uma relação que é pensada
como mais importante do que a unidade individual, e portanto mais valorizada. Enquanto a
tatuagem parece operar a partir de um processo de ganho de autonomia pessoal, as
tatuagens de amor funcionam ao contrário: o apaixonado exprime a perda de autonomia
pessoal na marca de propriedade sobre seu corpo.
As tatuagens de amor não são a forma mais popular de tatuagem, nem entre homens
nem entre mulheres. Não foi possível, nos estúdios, obter dados quantitativos sobre a
freqüência de tal prática. Como as tatuagens de amor referem-se tanto a fotografias (estilo
realista) quanto a iniciais e nomes, torna-se difícil a análise dos dados, uma vez que jamais
é indicado que o tipo de tatuagem executado foi “de amor”. As fotografias e tatuagens
realistas podem se referir a uma gama variada de temas, enquanto as “escritas” ou “letras”,
como são classificados os nomes e iniciais, podem se referir ainda a frases ou palavras que
nada tenham a ver com provas de amor. Por outro lado, o nome da pessoa amada pode não
ser escrito em nosso alfabeto, mas em ideogramas chineses ou japoneses.
Pretendo discutir aqui como este tipo de tatuagem se relaciona a concepções sobre
as relações amorosas como sendo eternas e como, muitas vezes, a marca de amor toma a
forma de uma marca de propriedade. Para tanto, serão analisados casos observados durante
a pesquisa de campo. Em um deles, duas mulheres se submetiam à marca de amor: uma a
pedido do namorado, a outra como um presente a seu marido. No outro estúdio, um casal
recém-casado decidira tatuar o nome um do outro, enquanto um rapaz tatuava o rosto da
companheira a seu pedido.
A permanência do procedimento, em conjugação com a idéia de um amor para
sempre, parece ser uma das razões que levam a este tipo de tatuagem. Por outro lado,
parece estar em jogo também uma noção de que a relação afetiva é composta por dois
sujeitos, mas baseada em uma unidade indivisível entre eles, o que permite que o nome ou
retrato do Outro seja marcado no Eu.
Quando a relação termina, o estúdio é novamente buscado para que se cubra a
tatuagem de amor com outro desenho. No estúdio de Copacabana, observei alguns casos:
um rapaz desejava desenhar sobre o nome da ex-namorada o animal que era o seu apelido
(Rato); uma mulher separada pensava em cobrir o nome do ex-marido; um homem tatuava
o nome da atual namorada, mas recusava-se a apagar o de sua ex, por quem ainda nutria
fortes sentimentos; uma viúva que fora obrigada a ser tatuada pelo marido, após descobrir
que ele tivera duas amantes durante o casamento, esperava um novo amor que lhe pedisse
para retirar a marca. Um outro caso surgiu, ainda, em conversa com um tatuador do estúdio:
um cliente que decidiu não cobrir os nomes das ex-namoradas, mas riscá-los com uma linha
horizontal, mantendo-os visíveis porém indicando o final das relações.
199
No grupo que optou pela tatuagem de amor estão: Jorge, Joaquim, José, Joana, Júlia
e Joyce. Destes, três estavam casados: Jorge, Joana e Joyce. Nenhum deles obteve prova de
amor igual de seus cônjuges, ou seja, uma tatuagem de amor, enquanto fiz a observação nos
estúdios. Joaquim mantinha relação clandestina com Roberta, ao passo que José e Júlia
estavam namorando quando fizeram as tatuagens de amor. José possuía já o nome de uma
antiga companheira tatuado no mesmo braço em que dispôs o nome de sua atual namorada.
Joaquim e Júlia, por sua vez, tatuavam-se a pedido de seus parceiros. Enquanto Júlia se
questionava sobre a validade da prova de amor, Joaquim teve a tatuagem paga pela
parceira, Roberta.
Foram nomeados com a letra R os parceiros presentes nos estúdios, mas que não
optaram, em contrapartida, por submeterem-se a tatuagens de amor. São eles: Roberta, que
mantinha relacionamento com Joaquim; e Rosa, esposa de Jorge.
Entre aqueles que pensavam em cobrir a marca estão Paula, Pedro e Patrícia. Paula
estava separada de seu marido, mas morava na mesma casa com ele e as filhas. Pedro
estava separado de sua namorada. Patrícia era viúva e descobrira, após a morte do marido,
que ele tinha duas amantes, as quais também fez tatuar com as iniciais de seu nome. As
motivações para cobrir a marca foram as mesmas: o fim da relação. O grau de decisão e
indecisão quanto à nova tatuagem, contudo, é diferente para cada um deles. As mulheres
pareciam mais indecisas do que Pedro, mas não creio que esteja em jogo aqui uma questão
de gênero, e sim a natureza da relação, pois Pedro era o único não casado.
Quando a relação termina, pode-se optar, ainda, por não apagar a marca. Foi o caso
de José. Ele tatuava o nome da atual parceira, mas não pretendia apagar o nome de sua
antiga companheira. Apagar a marca, portanto, não é inevitável. A partir desta constatação,
torna-se um pouco mais clara a indecisão que rondava Paula e Patrícia. Resgatar a relação,
de igual modo, nem sempre é a melhor explicação para esta indecisão, uma vez que o
parceiro de Patrícia estava morto. Há, nesta decisão, uma complexa relação entre a
memória do que foi vivido, o tipo de relação que foi mantida, com diferentes graus de
compromisso, o sentimento nutrido pelo ex-parceiro e as aspirações para os futuros
relacionamentos.
Pode-se observar, então, preliminarmente, que existem algumas motivações para a
prova de amor: dominar/conquistar, aqui quase sinônimos, o parceiro, o que tornam claras
200
as relações de poder em jogo na relação afetiva, mas, por outro lado, pode haver uma
resistência a este poder exercido, conforme será observado no caso de Joaquim. Outras
motivações são, conforme apresentarei, a vontade de doação de si, que é parte da
compreensão sobre a própria dinâmica da relação afetiva.
mulheres, por sua vez, submetem-se a estas práticas pois também operam dentro da lógica
da dominação masculina, tratando seus corpos, muitas vezes, como objetos frente aos
homens, sobretudo nas práticas de embelezamento, quando o olhar alheio é fundamental.
O local escolhido, aparente ou não, revela outros aspectos da dominação masculina.
Quando a marca está aparente, então a relação é posta em público, ganha visibilidade. Seja
ela socialmente aceita ou não, para as duas partes da relação esta é legítima e vivida desta
forma. Se o local tatuado está próximo de zonas erotizadas do corpo, como é o caso dos
seios e coxas, ou ainda quadris e nádegas, entre outros, então a marca de amor indica não
apenas uma relação de poder mas esta relação ganha um cunho de privilégio sexual, pois
marca regiões sexualizadas do corpo com o nome do parceiro.
Steward (1990) aponta como, algumas vezes, o rapaz ou a moça apresentava-se
sozinho ao tatuador para ter o nome da pessoa amada tatuado, havendo uma relação já
estabelecida ou não. Nestes casos, a prova de amor é utilizada como uma estratégia de
conquista, pois exprime no corpo uma relação desejada e ainda não obtida. Observe-se que
o nome tatuado inicia a relação, associando o casal, mesmo que não haja envolvimento
amoroso a princípio. No caso das relações afetivas já estabelecidas, apresentar-se sozinho
no estúdio pode apontar tanto para a surpresa, a tatuagem de amor como uma prenda dada
ao ser amado, quanto para a doação de si. No caso em que os casais comparecem juntos, a
marca de amor pode ser vista como uma estratégia de manutenção da relação.
No material iconográfico apresentado por Mifflin (1997), há tatuagens de amor
entre lésbicas. Estas são compostas pelo nome de uma no corpo da outra e vice-versa.
Como ambas são tatuadas, ao contrário dos casais observados em campo, sugere-se a
hipótese de que as relações entre mulheres sejam permeadas por uma situação maior de
igualdade, por um equilíbrio das relações de poder. Não se pode concluir que as relações
lésbicas não contenham dominação ou exercício de poder, mas a marca conjunta exprime,
ao seu modo, que o poder está sendo compartilhado, sem o seu exercício unilateral, em que
há dominação/submissão, aqui visto na forma da marca de propriedade.
Bourdieu (2003) apresenta duas formas de amor: um amor fati, entendido como
amar aquilo que se apresenta como o destino socialmente demarcado para o sujeito, onde a
dominação é aceita e não é percebida como tal; e um “amor puro”, onde haveria uma
suspensão da luta simbólica, o reconhecimento de si no outro e vice-versa e uma noção de
202
fusão ou comunhão entre as partes envolvidas. Segundo ele, o amor pode romper a ordem
comum instaurada, mas não de uma só vez e sim por um esforço contínuo, onde os
seguintes “milagres” podem ser operados: não-violência, reciprocidade, abandono e
retomada de si mesmo, reconhecimento mútuo, justificação do próprio existir, desinteresse.
Estas características são o oposto das relações de dominação, o que leva o autor a
falar em “milagres” suscitados pelo amor. No que se refere às tatuagens de amor, os dados
levantados em campo têm indicado justamente o contrário. Marcar o corpo para um outro,
ou por um outro, tem sido, muitas vezes, um ato interessado, que quer a marca de
propriedade sobre o outro ou a marca de uma relação. Quando esta marca é imposta ou
requisitada, a dominação fica explícita.
Ainda sobre o amor, Costa (1998) alerta que sua versão romântica, um ideal vivido
até o presente no mundo ocidental, em que pese a sua realidade para os apaixonados, é uma
criação histórica. “O amor é uma crença emocional e, como toda crença, pode ser mantida,
alterada, dispensada, trocada, melhorada, piorada ou abolida. O amor foi inventado”,
conclui o autor (COSTA, 1998, p. 12). É a partir desta noção de que o amor romântico é
uma crença, ou uma ideologia, que apresento a análise dos casos em que ele parece estar
por trás da tatuagem de amor como forma de prova de amor, dada ou requisitada.
Costa (1998) oferece uma visão do amor como marcada pelo amor fati,
principalmente quando aponta a presença de uma racionalidade constituída no meio social a
determinar estas relações, enquanto relega o “amor puro” a uma idealização. Não cabe
aqui, contudo, discutir a natureza do amor, mas tomar as características do amor romântico
e da crença no “amor puro” como fundantes para explicar a prática das tatuagens de amor.
A tatuagem de amor apresenta, ainda, uma faceta que não está diretamente
relacionada à marca de propriedade, mas à memória como fundamental à manutenção da
relação e a incorporação de uma das partes da relação pela outra, mas não no sentido de
uma dominação/submissão. Bradley (2000, p. 150), sobre tatuagens de iniciais de membros
da família entre condenados transportados do Reino Unido para a Austrália, diz:
“(...) tatuagens representam um laço entre o corpo do indivíduo e o objeto pelo qual as
emoções do indivíduo estão expressas. (...) Isto mais comumente envolvia outras pessoas.
Aqui as tatuagens agem simbolicamente como significantes emocionais, indicando a
força da união [relacionamento] e um símbolo contra a ausência. Estes significantes
203
produziram, por sua vez, dois diferentes efeitos. Em primeira instância, a tatuagem era às
vezes uma demonstração pública de união, outras vezes uma demonstração encoberta,
apontando, sob um sacrifício de sangue, que a relação penetrou sob a pele – o limite
corporal com o mundo mais amplo. Em uma segunda instância, era como se o indivíduo
tatuado estivesse se protegendo contra a separação: se esta ocorresse, então a tatuagem
agiria como uma presença física falsificada do outro ausente”1. [grifo meu]
Embora o contexto seja diferente, creio que a idéia permanece a mesma. Observe-
se, contudo, que a separação da qual o autor fala não é voluntária, mas ocasionada pelo
encarceramento prisional. No caso de separações voluntárias de casais, o mais comum é
que se cubra a tatuagem de amor com outra tatuagem, apagando a marca.
O autor aponta a tatuagem como um significante emocional, que simboliza a força
de uma união. Um casamento de muitos anos, como o que será visto no caso de Joana,
consagrado pelo nascimento de três crianças, foi a força motriz da “homenagem” ao
marido. Em outros casos, contudo, conforme relato de Steward (1990), nem sempre a união
estável é pré-requisito para a tatuagem de amor. Ao contrário, o autor pode observar como
esta era utilizada com fins de assegurar esta própria relação, no processo de conquista e
sedução do amado, sobretudo entre mulheres.
Bradley (2000) aponta, ainda, como a tatuagem se torna, neste contexto, uma
espécie de sacrifício de sangue que se faz em prol deste relacionamento já constituído. O
local do sacrifício, a pele, como vários autores recordam (GELL, 1990; BOREL, 1992), é a
camada mais externa do corpo, representando simbolicamente as relações mantidas entre o
interior (o Eu) e o exterior (o mundo). Desta forma, marcar a pele com insígnias de amor
significa comunicar ao mundo um sentimento individual. O relacionamento que penetra
“sob a pele” é, na verdade, a marca de um Outro que penetra tão fundo que pode ser
indelevelmente exposta na própria carne. Em outras palavras, se trata de trazer em si
simbolicamente um Outro, de pensar neste relacionamento como formado por duas partes
1
“(...) the tattoos represent a bond between the body of the individual and the object towards which the
individual’s emotions were expressed. (...) it most commonly involved other people. Here tattoos acted as
symbolically as emotional signifiers implying a strength of attachmnt and a token against absence. These
signifiers produced in turn two different effects. In the first instance, the tattoo was a sometimes public,
cometimes covert, display of connection, demonstrating through a blood sacrifice that a relationship
penetrated beneath the skin – the body’s boundary with the wider world. In the second instance, it was as if
the tattooed individual was protecting him- or herself against a separation: should separation occur the
tattoo then acted as a vicarious physical presence for the absent other.”
204
que jamais devem estar separadas, o Eu e o Outro, devendo-se, portanto, marcar o Outro
em si, ou seja, no Eu. O casal, os dois elementos em relação, é pensado como uma
totalidade.
O autor indica também que “as tatuagens providenciavam um substituto para as
jóias ou outras posses materiais: um meio de articular a emoção, operando ligações entre o
corpo, o Eu e os outros” (BRADLEY, 2000, p. 151). Na qualidade de prova de amor, a
tatuagem de amor não poderia ser substituída por uma jóia ou qualquer outro objeto porque
o vínculo entre os sujeitos, elaborado sob a mediação do corpo, não seria completo. Jóias
ou outros objetos podem ser perdidos ou abandonados, enquanto a tatuagem não. Esta
possibilita ainda uma marca no próprio Eu, o que um objeto não possibilita.
Gostaria de chamar a atenção para a questão da permanência da tatuagem no corpo,
como um elemento mnemônico, e para a fragilidade das relações que ela representa. Os
próprios tatuadores sabem, conforme observado em campo, que os relacionamentos
representados pela tatuagem são fugazes e terminam. Uma tatuadora do estúdio pesquisado
na Tijuca disse que muitas pessoas procuram por tatuagens de amor. “Mas esses
relacionamentos não vão durar para sempre”, comentei. “Às vezes duram”, ela respondeu.
Todos querem que seus relacionamentos durem e que se tornem permanentes, mesmo em
um tempo em que um relacionamento dá lugar a outro e assim sucessivamente. A questão
não é se eles duram ou não, mas o desejo que durem.
Depreende-se daí uma dinâmica entre transitoriedade e permanência2 que permeia a
própria prática da tatuagem, tanto na oposição modismo/originalidade, conforme será
analisado a seguir, quanto na tatuagem de amor, pois os amores, ou os relacionamentos,
têm se mostrado muitas vezes transitórios. Uma pergunta, então, pode ser formulada:
quanto mais nossa sociedade permite relações sucessivas, embora monogâmicas, mais
fugazes têm sido estas relações? Esta pergunta desenrola-se em outra: em que medida a
sensação de fugacidade nas relações está relacionada ao atual uso das tatuagens de amor?
Embora casamentos e namoros possam ter fim, a tatuagem permanece, indicando a
propriedade do corpo por alguém que não está mais, de fato, de posse do indivíduo tatuado.
Nestes casos, a tatuagem ou é removida ou é coberta por outra, na técnica chamada cover
2
Agradeço à Professora Mirian Goldenberg pela indicação deste caminho na análise sobre os usos
contemporâneos da tatuagem.
205
up. O mito do amor romântico parece estar presente nos relacionamentos atuais, levando
ainda os casais aos tatuadores, como se uma tatuagem os pudesse manter unidos, quando
nem os ritos religiosos, nem os documentos civis nem os filhos conseguem. Em um
momento em que o divórcio, o concubinato e a coabitação são a realidade dos
relacionamentos ocidentais, permanece o ideal do “amor eterno”. Surge então uma
hipótese: quanto mais a realidade dos relacionamentos ocidentais é a de não permanência,
mais surge seu contraponto, isto é, a necessidade de permanência.
3. Expressando sentimentos
Nas últimas décadas do século XX e início do XXI, a tatuagem de amor parece ter
atingido um grupo específico que popularizou o seu uso: estrelas populares, como cantores
e atores. O ator Johnny Depp, por exemplo, quando namorava a atriz Winona Rider, tatuou
o primeiro nome dela em seu braço. Quando a relação terminou, a tatuagem foi modificada.
A atriz Melanie Griffith, esposa do ator espanhol Antonio Banderas, tatuou o primeiro
nome dele dentro de um coração, na parte superior do braço. A atriz Angelina Jolie tatuou o
nome do então marido, Billy Bob Tornton, também ator, no braço, tatuagem posteriormente
retirada quando da separação do casal.
No Brasil, a cantora Kelly Key se tornou alvo de polêmica quando, em meio a uma
briga com o ex-marido e cantor Latino, descobriu-se que o rosto dele tatuado em sua perna
estava sendo removido a laser. Kelly Key e seu novo namorado, agora marido, tatuaram-se
em conjunto: no pescoço dele está escrito “vou te beijar...”, frase que é completada no
pescoço dela com “... então beija”. Embora a jura de amor tenha se tornado menos pessoal
207
do que o rosto do ex-marido, a cantora ainda tatuou um pequeno símbolo no pulso, que
afirmou na imprensa se tratar do nome do atual marido.
A tatuagem de Latino em Kelly Key se tornou alvo de polêmica porque, na época,
se publicava na imprensa uma briga entre o casal. Com uma filha em comum, a briga de
casal se tornou matéria de revistas e cadernos de jornais dedicados à vida das celebridades.
Ao apagar o rosto do ex-companheiro, e mostrar o processo frente aos flashes e câmeras de
televisão, a cantora deu provas públicas do fim definitivo da relação. Acreditando ainda no
amor eterno, verdadeiro ou romântico, aqui utilizados como sinônimos, Kelly Key mais
uma vez submeteu-se à prova de amor, marcando no corpo as juras trocadas com o então
namorado.
De fato, não é possível medir, pelos relatos de imprensa, o grau de compromisso
presente em uma relação amorosa. O surpreendente em Kelly Key não foi apagar a marca
da relação passada, mas jogar-se novamente na aventura da prova de amor, mesmo
sabendo, por experiência própria, que as relações não duram para sempre. Como será visto
em um caso observado em estúdio, a cantora não é a única a agir desta forma.
A atriz Débora Secco teve o pé tatuado com a frase “Falcão, amor verdadeiro amor
eterno”, em homenagem ao namorado, cantor da banda O Rappa. A frase escolhida pela
atriz retrata o sentimento que parece mover os apaixonados a realizarem tal prova de amor:
a noção de que o amor verdadeiro é eterno.
Débora Secco esteve envolvida, durante anos, na imprensa, em polêmicas cercando
sua vida afetivo-sexual. Era constantemente criticada pela fugacidade de suas relações, às
quais tratava sempre como suscitadas pelo amor e com profundo grau de compromisso. As
críticas se iniciaram logo após a sua separação do ex-marido para o início de uma relação
amorosa com o então colega de trabalho e ator Maurício Mattar. As críticas à atriz cessaram
a partir da demonstração de uma certa estabilidade em sua relação com o atual namorado. A
marca de amor, contudo, suscitou nova crítica, uma vez que suas relações pareciam
fugazes.
Em um estúdio visitado na Tijuca, observei fotografias de cinco clientes que
optaram por copiar a tatuagem de Débora Secco, mudando apenas o nome do
homenageado. Destas cinco, duas foram executadas sobre o pé, mesmo local tatuado pela
atriz, duas nos antebraços e uma nas costas. A tatuagem de Débora Secco não foi a única
208
Há que se observar que existe uma cultura da tatuagem que é comum aos
profissionais do ramo. A tatuagem constitui um universo, ou um campo, como diria
Bourdieu (1992), cujas regras aproximam-se das do campo da arte, uma vez que os
tatuadores consideram-se artistas. Neste sentido, organizam regras de inclusão/exclusão de
membros ao campo, operando uma distinção entre profissionais e amadores. As regras do
209
campo são regras de pertencimento, por isso compartilhadas por aqueles que desejam
adquirir ou manter status de profissionais.
No estúdio de tatuagem, o tatuador é uma espécie de juiz-sacerdote. Embora esteja
prestando um serviço remunerado, é ele quem determina o encaminhamento dos
procedimentos. Por exemplo, é a opinião do tatuador que normalmente prevalece quanto às
melhores regiões do corpo para o desenho escolhido, o seu tamanho e as cores adequadas
segundo a cor da pele. O seu conhecimento, embora técnico, contém elementos desta
cultura comum. Faz parte desta cultura dos tatuadores uma certa visão da prática que,
muitas vezes, é contrária às marcas de amor.
Steward (1990) indica como tentou demover os clientes das tatuagens de amor. Os
romances normalmente fugazes que davam origem a estas tatuagens terminavam por levar
os mesmos clientes a ele para que o nome tatuado fosse coberto por outro desenho. Entre os
exemplos que o autor fornece contra a tatuagem de amor está o de uma moça que não
namorava o rapaz cujo nome tatuou, mas que pretendia conquistá-lo com o gesto. Há o caso
de uma mulher casada que tatuou o nome do amante em meio a uma bebedeira, e cujo
marido foi à loja de Steward pedir-lhe satisfações.
Em um dos estúdios pesquisados, ficou claro como o tatuador e proprietário é contra
tais marcas. Com o corpo repleto de tatuagens, mantendo relação de coabitação com a
namorada, que trabalha como recepcionista do estúdio, nenhum de seus desenhos, contudo,
é uma prova de amor. Tampouco sua companheira apresentava tal tipo de marca. Embora
não tente demover seus clientes da opção, quando algum pedia a alteração da marca, pontos
de vista contrários à prática surgiam. Assim, quando Pedro entrou no estúdio para cobrir o
nome da namorada, o proprietário perguntou:
“Mas por que vocês fazem isso? Nome de filho ainda vai. Faz um filho! É mais barato!”
(Tatuador proprietário do estúdio pesquisado em Copacabana)
A sugestão era de que o rapaz desse à filha o nome de sua ex-namorada. Sem
perceber a contradição, pois manter o nome da moça e ainda dá-lo a uma futura prole
fortaleceria os laços rompidos ao invés de apagá-los, o que o tatuador desejava indicar era
que a única relação afetiva duradoura e eterna, digna de ser tatuada sem posterior
arrependimento e retorno ao estúdio para modificações, é a relação entre pais e filhos.
210
Um outro ponto que auxilia a compreensão deste mal-estar dos tatuadores com
relação às tatuagens de amor baseia-se na oposição originalidade/moda, compreendida
como imitação. Observe-se que atualmente a tatuagem de amor vem se tornando, para
utilizar o termo dele, um “modismo”, na medida em que várias celebridades adotaram a
prática.
opiniões, preocupado em não influenciar a escolha de Rosa, para que a tatuagem resultasse
naquilo que ela realmente desejava. Ao final, Jorge alertou a esposa que a parte central das
costas, sobre a coluna, é uma parte dolorosa: “mas não é nada que você não agüente”, disse,
encorajando-a. Rosa optou por esta localização para sua fada. A amiga também achava que
centralizado o desenho ficaria mais bonito. Quando o processo de tatuar foi iniciado, Jorge
não estava mais lá.
Observe-se que, quanto a Rosa e Jorge, a prova de amor dele não demandou a
mesma atitude da parte dela. Neste sentido, Jorge provava seu amor pela esposa não apenas
na tatuagem, mas no cuidado com a filha, cuidado pelo qual Rosa abriu mão da companhia
do marido no momento de ser efetivamente tatuada, embora ele tenha participado do
processo de escolha e encorajamento, que muitas vezes é crucial. Assim, pode-se observar
que a tatuagem de amor apresenta uma característica de doação. Ela é um presente que se
dá ao outro, embora marcado no próprio corpo. Outra cliente deste mesmo estúdio
apresentou-se com um caso similar.
Joana desejava tatuar o nome do marido nas costas, abaixo da nuca, acompanhado
de uma borboleta, tatuagem caracteristicamente feminina, bastante popular no momento da
pesquisa de campo. “A borboleta faz assim [gesticulou], dá leveza ao desenho. Uma flor ia
ficar muito achatado, sem movimento”, disse. Tinha uma tribal na barriga, que parecia
cobrir uma cicatriz de cesariana, e outra borboleta no tornozelo. Mesmo assim, não pensara
em ser tatuada naquele dia, pois estava receosa de que o local escolhido fosse doloroso.
Isaura, cliente assídua que visitava o estúdio no momento, ofereceu-lhe palavras de apoio:
“Faz logo! Aí não dói nada”. Quando descobriu que a moça tinha outros desenhos tatuados
pelo corpo, exclamou: “Você toda tatuada e está aí com medo? Fala sério!”. Joana tomou
coragem e decidiu ser tatuada. Disse que seria uma surpresa para o marido, que não sabia
que ela planejava a homenagem. “É alguma data especial?”, perguntei. Respondeu que
Tinha uma filha de 12 anos, um garoto de 2 anos e um bebê. Desejava ainda mais
um filho.
212
Joana parece relacionar a qualidade de ser especial do marido não com os anos de
casamento, como poderia sugerir a hipótese apresentada aqui sobre a dinâmica da
transitoriedade e da permanência inerente à prática da tatuagem, mas ao fato de ser pai de
seus filhos, fato corroborado pela afirmação de seu desejo de ter ainda uma quarta criança
com o mesmo homem. O compromisso do casamento não é o ponto-chave, o que indica
que não é esta noção de compromisso como um remédio à fugacidade das relações que
move a tatuagem de amor. Em outros termos, sugiro que as tatuagens de amor são
executadas por pessoas casadas ou não-casadas em função do sentimento e da necessidade
de expressão deste sentimento, e não em função do grau de compromisso mantido na
relação, que não está sendo medido aqui pela oficialização/legitimidade da união em
casamento ou mesmo coabitação. O que moveu Joana não foi o casamento, a relação
afetiva, mas o sentimento de que seu marido era uma pessoa especial em função da
importância que tem em sua vida: esta importância é, para ela, medida no fato de ser pai de
seus filhos.
É comum que as mulheres optem por se tatuarem sem comentar a decisão com seus
maridos, conforme observado em campo. No caso de Joana, o silêncio quanto à marca era
fruto do desejo de surpreender o marido com o que considerava um presente: o nome dele
em seu corpo. Desta forma, a mensagem implícita ao ato era a doação de si. Observe-se
ainda que, mesmo tatuada, hesitou em realizar a marca naquele momento. Embora o ato
não possa ser considerado impulsivo, pois fora pensado, não havia marcado hora, como a
maior parte dos clientes. A decisão foi rápida, mas não sem alguma dúvida, gerada pelo
medo da dor. A coragem veio do apoio recebido de Isaura, do desejo pela marca e da
reflexão sobre um processo já conhecido, visto que não seria sua primeira tatuagem.
Para além da idéia de objetificação do corpo, quando Joana pensa na tatuagem como
um presente, estão em jogo várias questões: o auto-sacrifício em nome de um amor/relação
afetiva; o próprio corpo como um presente, doado a quem se ama; a idéia de
relacionamento como a posse de um indivíduo pelo outro; a idéia de que a tatuagem é um
presente valioso a ser dado a quem se ama. O presente, de fato, é símbolo de uma doação
maior, uma doação voluntária de si ao Outro. Essa doação passa pelo sacrifício e pela visão
de si mesmo e de seu corpo como valores grandes o suficiente para serem doados numa
prova de amor. O sacrifício de sangue, como aponta Bradley (2000), traduz a interiorização
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da relação para um limite profundo no Eu, indicando ainda o quão forte a relação está
sendo vista por aquele que opta pela prova de amor. A idéia de força aqui, é preciso alertar,
nada tem a ver com compromisso, mas com o sentimento e a percepção de sua intensidade.
Esta intensidade do sentimento é uma das características do amor romântico, pensado como
mais forte do que qualquer outro, por isto eterno e verdadeiro (COSTA, 1998).
Ao observar outra cliente, Júlia, sendo tatuada com as iniciais de seu namorado e
um pequeno coração, pode-se perceber a contradição entre a fugacidade do amor e a
permanência da marca. Era uma mulher de 45 anos, o físico torneado pelas academias de
ginástica, bronzeada, mãe de um rapaz de 15 anos fruto de seu casamento. Havia ido ao
estúdio acompanhada de uma amiga, que a incentivava a seguir com os planos de se tatuar,
ao mesmo tempo em que a aconselhava sobre a melhor posição para o desenho. Tatuava
duas letras na virilha, correspondentes ao nome do namorado, porque ele havia lhe pedido.
A amiga conhecia o namorado de Júlia e parecia entender que a marca era importante para
ele. Mas a própria Júlia questionava a validade de tal ato, comentando que
“Depois vou ter que cobrir as letras com outro desenho mesmo, quando [a relação]
acabar.” (Júlia)
Uma outra cliente, presente no estúdio, comentou que não deveria cobrir a
tatuagem, pois ter se relacionado com tal homem fazia parte de sua história.
Júlia e a cliente aparecem com pontos de vista opostos. Em ambos os discursos,
contudo, percebe-se que a permanência emerge como algo valorizado, mesmo sabendo-se
que só é eterna enquanto dura. Após o fim do relacionamento, Júlia pensa que a marca deve
ser substituída ou apagada. A cliente, por sua vez, discorda. Se a relação terminou, a
memória desta não terminará jamais, pois o passado não pode ser apagado. Apagar a
tatuagem é apagar a própria relação, a marca servindo como uma lembrança, a memória do
que se viveu. O passado, para Júlia, deve ser apagado, deixando espaço para o presente e o
futuro, na forma de outras relações que virão. Para a cliente, o passado deve ser guardado,
como se fosse um tesouro precioso, pois não se joga fora a própria estória de vida, a própria
estória vivida, por uma relação que terminou. São concepções diferentes sobre como lidar
com as relações que terminam e que permitem compreender melhor porque se mantém ou
se apaga uma tatuagem de amor.
214
Gostaria, agora, de efetuar uma comparação entre Joana e Júlia, pois elas
apresentam posturas diferentes, quase opostas, frente à marca de amor. Júlia, mais velha,
mãe de um filho cujo pai não é seu atual namorado, sendo tatuada por um pedido deste
namorado, faz o que ele lhe pede, dá a prova de amor, marcada a sangue, mas a prova é
para ele. Ela mesma tem dúvidas de que seu relacionamento engendre uma relação mais
duradoura, de um compromisso mais profundo. Não está dando ao namorado um presente,
mas cumprindo o papel feminino tradicional de se subjugar às determinações de seu
companheiro. Ela não espera reciprocidade.
Joana, por outro lado, casada e mãe de três filhos de seu marido, desejando ainda
mais um filho, em comparação com Júlia, percebe sua relação afetiva como duradoura,
construída sobre um compromisso profundo, que tornou seu marido “uma pessoa especial”.
Essa especificidade de seu marido foi o que a levou a marcar voluntariamente o corpo,
como uma maneira de dizer a ele o quanto é especial e o quanto ela também é, pois não são
todos os casais, mesmo aqueles que compartilham o gosto pelas tatuagens, que
desenvolvem esta preferência pelas marcas de amor.
São perfis diferentes de relacionamentos que levam a atitudes distintas por parte das
duas clientes. Uma crê no futuro da relação (há tempo e amor para mais um filho), a outra
sabe que a marca em seu corpo nada mais é do que a propriedade exercida por um homem.
Talvez por isso, os locais escolhidos tenham sido tão diferentes. Júlia tatuava a virilha,
onde as pequenas iniciais ficariam escondidas a maior parte do tempo. Próxima à região
genital, sua tatuagem atesta o privilégio sexual do namorado. Joana, por outro lado, tatuava
as costas, abaixo da nuca, local de mais fácil exposição, dada a estabilidade de seu
relacionamento.
Durante a observação no estúdio pesquisado em Copacabana, um terceiro caso
apareceu. Joyce, mencionada em outro capítulo, que havia feito sua primeira tatuagem
neste mesmo estúdio em janeiro de 2005, retornou para mais duas: o nome de seu marido
no pé e uma representação de São Judas Tadeu. Devota do santo, Joyce havia tatuado seu
nome na nuca, esperando para tatuar sua imagem em outra ocasião. Na época de sua
primeira tatuagem, ainda não estava casada. Morava com a mãe, contrária aos desenhos
permanentes no corpo, e afligia-se em ter que esconder a marca. Uma vez fora da casa da
mãe, Joyce não via mais porque se preocupar. A tatuagem fora localizada na nuca devido à
215
flexibilidade do local em ser encoberto pelos longos cabelos da moça, de modo que a mãe
não tomasse ciência da marca. A representação do santo foi localizada nas costas, abaixo da
nuca, em região mais visível uma vez que Joyce não se sentia mais constrangida pela crítica
materna. O pé, talvez a área mais visível de todas as três tatuadas por ela, indica como
Joyce estava alheia à opinião da mãe. A esse respeito, o tatuador perguntou-lhe: “E a sua
mãe? Ela vai ver”. Ao que Joyce respondeu:
“Agora não importa mais. Eu não estou mais morando com ela.” (Joyce)
A respeito deste ponto, o conflito de gostos entre mãe e filha, é necessária uma
observação. Enquanto estava na casa materna, Joyce se via em uma posição onde não
desejava deixar de obter a marca em seu corpo, ao mesmo tempo em que não desejava
sofrer críticas da mãe. O respeito ou o medo da mãe não a impediram de exercer sobre seu
corpo uma certa autonomia, embora não completa, pois não pôde escolher livremente o
local de sua tatuagem, temendo o constrangimento materno. Mas, uma vez casada, ou
melhor, uma vez fora da casa de sua mãe, Joyce se viu munida de uma autonomia mais
completa, sem se preocupar com as opiniões maternas. Os locais escolhidos para as novas
tatuagens, embora mais visíveis do que a nuca, podem ser convenientemente encobertos
caso ache necessário. Há um cálculo, ainda, por parte de Joyce, mas o que chama a atenção
é a mudança de status que ela apresenta após o casamento. Joyce deixou de ser filha para se
tornar esposa. Em termos de ganho de autonomia, deixou de estar subordinada à mãe para
exercer mais livremente seu direito de escolha sobre o próprio corpo.
Retornando ao estúdio, Joyce esperava que seu marido também tatuasse seu nome
no pé, mas o rapaz não teve coragem de se submeter ao processo. O tatuador que os
atendeu contou que, como um teste, passou a máquina de tatuar, sem tinta, no pé do rapaz,
para que ele sentisse a intensidade do processo. Achando doloroso, desistiu. O tatuador,
contudo, levantou uma outra hipótese, que não apenas a covardia, para a resistência do
marido:
“Medrou. Não quis fazer não. Ou então não tava a fim de se comprometer, né.” (Tatuador
proprietário do estúdio de Copacabana)
216
Neste episódio, o marido medroso pode ter usado a covardia como uma forma de
escapar da prova de amor pela qual sua mulher prestara-se a passar, e que esperava que ele
passasse também. Observe-se que foi apenas depois do casamento e da saída da casa
materna que decidiu pela tatuagem de amor, como se a mudança de status (o casamento)
devesse ser marcada não apenas nas festividades e mudança de moradia, mas no próprio
corpo. Joyce deixou de pertencer à mãe para pertencer ao marido, gravando na pele o nome
dele. Ao mesmo tempo, o casamento parece ter providenciado o compromisso necessário a
ela para a marca permanente.
Como no caso de Jorge, Joyce demonstra que a prova de amor não demanda
contrapartida. Não desistiu da marca em função da desistência do marido em fazê-la. A
tatuagem de amor não consiste numa troca explícita, mas numa espécie de doação que
encobre relações mais complexas entre as partes envolvidas. Entre estas relações, estão a
necessidade de estar associado a alguém, a objetificação de si e de outro, a necessidade de
uma marca de propriedade que ateste a associação.
Também no estúdio de Copacabana, Joaquim tatuava nas costas o rosto da moça
que o acompanhava, Roberta, a pedido dela. O que parecia uma tatuagem de amor revelou-
se, ao longo da tarde, uma trama envolvendo interesse financeiro e uma relação clandestina.
Embora o casal visivelmente mantivesse uma relação amorosa, pois se abraçavam e se
beijavam, alguns indícios apontavam para uma relação extra-oficial, uma espécie de caso
oculto. Entre os indícios, estava a fotografia na qual a tatuagem foi baseada, que trazia
Roberta vestida de noiva ao lado de um rapaz que não era Joaquim. Ao final da sessão, ela
lhe pediu que não mostrasse a tatuagem para qualquer pessoa. Ele, residente em
Governador Valadares, Minas Gerais, estava no Rio para vê-la. Ela, residente na cidade,
passava temporadas em Londres, na Inglaterra.
Quem pagou pela tatuagem foi ela. De fato, tratou-se de um acordo entre os dois:
ela desejava que ele não apenas tatuasse seu rosto como também seu nome junto à
expressão “amor eterno”. Além de pagar pelo serviço do tatuador, havia se disposto a dar
presentes ao rapaz em troca da “prova de amor”. Pela fotografia tatuada, prometeu um
videogame do tipo play station. Pelo nome, a ser tatuado no antebraço, área extremamente
visível, havia prometido uma motocicleta. Não por acaso, a segunda tatuagem seria
comprada por um valor mais alto: seria mais visível e mais pessoal, pois o rosto pode ser
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modificado, enquanto um nome só pode ser apagado. Ao final da sessão, depois de pagar
pela tatuagem o valor de R$450, deu a Joaquim R$250 em dinheiro, dizendo “isso aqui é
para você”.
Foi interessante observar como este episódio deixou os tatuadores do estúdio em
questão constrangidos. O proprietário comentou longe do casal: “Pois é, é um ‘faz a foto
que eu te dou uma moto’”. Ocorre que, mesmo não sendo exatamente favoráveis às
tatuagens de amor, o mito do amor romântico não escapa aos tatuadores, como será visto
adiante em um comentário de um deles. Uma tatuagem de amor que não é movida pelo
amor causa um constrangimento profundo que não pode ser silenciado. Explicitamente,
trata-se de uma atitude que foi vista como reprovável. A natureza da relação entre Joaquim
e Roberta despertou constrangimentos não por sua aparente clandestinidade, mas pela
dificuldade em identificar ali traços do amor romântico que leva clientes aos estúdios para
as marcas de amor.
Não era a primeira tatuagem dele. Possuía mais duas no braço e duas nas costas. O
tatuador, em conversa com o rapaz durante uma pausa para o cigarro, descobriu que já
pensava em converter a tatuagem de amor em um desenho menos íntimo. Segundo contou,
o rapaz planejava transformar o retrato em uma índia, acrescentando-lhe um cocar.
Nesta situação, a tatuagem de amor emerge como marca de propriedade. Da parte
dela, o dinheiro servia como fator de exercício de um controle sobre ele, marcando a
sangue no corpo do rapaz o seu domínio, um domínio ao qual ele escapava, pois não
pensava no retrato sobre a pele como um ato de amor e sim como um ato de interesse.
Pensar em transformar a tatuagem recém-adquirida em outro desenho – e mais além,
comentar sua intenção com o próprio tatuador quando ainda nem havia terminado a sessão
– significa, nesta situação, fugir ao controle exercido pela moça sobre ele. É como dizer ao
mundo que ele não está sob o jugo dela, ainda que se submeta aos seus desejos em troca de
retorno financeiro.
Por outro lado, esta também pode consistir em uma estratégia de Joaquim para
conservar a idéia de que quem manda na relação é ele, isto é, manter a lógica da dominação
masculina, que opera também a partir do poder econômico. Longe de tentar subverter este
tipo de dominação de gênero, a atitude de Roberta demonstra a fragilidade da relação entre
os dois, em que a tão sonhada prova de amor tem que ser comprada. Enquanto um homem é
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capaz de “obrigar” em atos e palavras sua esposa a ser tatuada com seu nome, conforme
será visto a seguir, ela teve que recorrer ao poder econômico como força para fazer valer
seu desejo de controle sobre o corpo alheio.
Marcar o corpo de um amante, além de apresentar um claro desejo de domínio e
posse, indica também um desejo de permanência, de tornar mais palpável e permanente
uma relação que pode ter fim a qualquer momento e que é vivida a distância.
Diversas vezes ouvi Paula dizer que jamais se casaria de novo, que o casamento é
uma relação difícil de ser sustentada e que havia se separado porque ela e seu ex-marido
tinham “pensamentos” distintos – para ela, visões de mundo irreconciliáveis. “Apesar do
quê”, disse certa vez, “eu me casei para ser para sempre, né”. Um dos tatuadores da casa,
também separado, compartilhando de sua idéia de não se casar novamente, respondeu a ela:
“Todo mundo se casa para sempre. Eu também. Ninguém se casa para acabar.” (Segundo
tatuador do estúdio pesquisado de Copacabana)
O tatuador mantém hoje um namoro, mas Paula não. Sempre expressando uma
amargura profunda devido à separação e especialmente ao tratamento que recebeu do
marido quando lhe comunicou o desejo de se separar, Paula não tem namorado, não fala
sobre o assunto nem expressa o desejo de conhecer uma outra pessoa e iniciar uma nova
relação. Dorme no quarto das filhas e deixou o ex-marido no quarto que um dia foi de
ambos. Dizia que ele não tinha condições, ainda, de sair da casa, referindo-se a questões
financeiras. Por outro lado, o marido não parecia esforçar-se em fazê-lo uma vez que
tentava reconquistar Paula, chegando a mandar-lhe flores no estúdio. Quando ligou para
saber se ela as havia recebido e se havia gostado da surpresa, Paula lhe disse friamente que
não, pois não desejava participar das estratégias de reconquista traçadas por ele. Sentira-se
humilhada pelo marido quando se separaram, e por isto parecia nunca tê-lo perdoado.
Se “todo mundo casa para sempre”, Paula parecia mais disposta do que outros a
manter esta idéia. O casamento estava acabado, a vida conjugal, no entanto, havia apenas se
modificado. A permanência do marido na casa de Paula expressa a permanência de um laço
entre eles, mesmo que atualmente baseado no ressentimento e na dor. Não buscar alguém
novo demonstra o quanto ela ainda está presa à relação. Dormir no quarto das filhas
inviabiliza a intimidade com o ex-marido, mas de igual forma inviabiliza a intimidade com
qualquer outro homem em sua casa.
A idéia do “casamento para sempre” revela a idéia de casamento por amor,
conjugados na idéia do amor romântico como um amor para sempre, único e verdadeiro.
Neste sentido, Paula parece padecer dos males do amor romântico, ou melhor, das dores
pelo fracasso de uma relação pensada como eterna. Quando o amor pensado como eterno
acaba, o que fazer? Esta é a pergunta que a própria Paula não consegue responder. Talvez
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como conseqüência desta falta de resposta, e não como causa, ela se permita viver sob o
mesmo teto que o marido. Que outra referência existiria para a menina que se casou aos 17
anos acreditando que seria para sempre?
O diálogo entre Paula e o tatuador foi suscitado no estúdio pela presença de Pedro,
rapaz de cerca de 25 anos, que desejava cobrir o nome da ex-namorada tatuado em seu
quadril. A decisão de apagar a tatuagem de amor é, na verdade, a decisão de retirar do
corpo a marca de uma relação que não existe mais. Paula demorou mais de um ano para
decidir cobrir o nome do ex-marido com outra tatuagem. Pedro demorou poucos meses. Ele
decidiu cobrir o nome da moça com a figura de um rato, segundo contou, seu apelido entre
os amigos de praia. O tatuador gostou da idéia e lhe mostrou fotografias de tatuagens
japonesas do animal.
Quando Pedro optou por cobrir o nome da ex-namorada com um rato, o que fez de
fato foi cobrir o nome dela com seu próprio apelido. Mais do apagar uma lembrança, a
marca de uma pessoa em seu corpo e sua vida, o que Pedro fez foi demonstrar que o que
antes era pensado como um todo composto por dois elementos (ele e a namorada) quase
inseparáveis, a ponto de este outro elemento ser inserido simbolicamente no próprio Pedro
por meio da tatuagem, se tornara agora um todo composto por um único elemento
individualizado: Pedro, ou Rato.
A idéia da relação amorosa como composta por duas metades, ou seja, dois
indivíduos que formam um só, pode explicar, em parte, a utilização de tatuagens de amor.
Para além das questões relativas à dominação e à posse, Pedro/Rato demonstra que a
tatuagem de amor também simboliza a crença de uma totalidade entre os membros da
relação. Totalidade que é pensada como eterna, por isso pode ser disposta de modo
permanente – na tatuagem – em Pedro, como foi em Paula. Ocorre que, da mesma forma
que os amores são transitórios, a tatuagem de amor tem se tornado não permanente,
suscetível de modificações. Nenhuma tatuagem é hoje para sempre, como nenhuma relação
parece estar sendo tanto quanto as partes gostariam que fosse, embora seja necessário
salientar que relações afetivas duradouras existem e não são de todo raras.
Sobre o local da tatuagem de Pedro, não creio que expresse o mesmo sentido que
tais locais quando tatuados em mulheres. Em Jorge, como foi visto, a localização da
tatuagem no lado esquerdo do peito reflete uma necessidade de dupla expressão dos
221
sentimentos. Entre as mulheres, a maior parte das tatuagens localiza-se próxima às regiões
erógenas, sobretudo às genitais, atestando um privilégio sexual. No que se refere a Pedro,
contudo, creio que a localização escolhida servia menos de marca de privilégio sexual de
sua namorada sobre ele do que em um cálculo sobre a possibilidade de esconder a marca. É
inegável que há um fator sexual presente no local, mas entre os homens, segundo a lógica
da dominação masculina, isto não é impedimento para a manutenção de outras relações
simultâneas. Quando Pedro foi a estúdio, saído diretamente da praia, usava um bermudão
típico dos surfistas, que cobria a maior parte da tatuagem. Mesmo as atuais sungas, que
deixam as pernas à mostra, não revelariam a lateral tatuada do corpo do rapaz. Desta forma,
Pedro calculou a escolha do local de forma que, mesmo com o corpo à mostra, a marca
estivesse resguardada. Cabe perguntar, contudo, se a resguardava de olhares alheios ou do
sol, que destrói a tinta e desbota a tatuagem.
José, outro cliente do estúdio, ao contrário de Paula e Pedro, decidiu não apagar sua
tatuagem de amor. Estava no estúdio para colorir uma tatuagem de dragão, junto à qual
tatuou as duas primeiras letras do nome de sua atual namorada. Quando o tatuador
perguntou-lhe se não apagaria o nome de uma antiga namorada, José respondeu que
“Não adianta. Eu apago daqui [do braço] mas fica em outro lugar. Melhor deixar assim.”
(José)
A sua decisão, portanto, está intimamente relacionada aos seus sentimentos. Se José
tem esperanças de retomar a relação ou não, isto não é relevante, na medida em que seu
atual namoro se mostra forte o suficiente para que o nome de sua atual namorada seja
tatuado em seu corpo. Mas a relação antiga também se mostra forte e presente para ele, pois
José deu indícios de que ainda é apaixonado pela antiga namorada, e é por isso que optou
por não cobrir o seu nome. A lembrança do antigo amor é tão vívida que apagar a marca no
corpo não apagaria a marca na alma. Situação inversa a daqueles que optaram por apagar
tatuagens de amor, demonstra que a marca só é apagada quando o sentimento termina,
levando ao fim da relação. Expressão de um sentimento inexistente, a marca perde sua
razão de ser.
Talvez por isso também Paula tenha demorado tanto a pensar em cobrir o nome de
seu ex-marido. Habitando a mesma casa, mesmo que levando uma vida não-marital, ele se
222
faz presente e apagar a tatuagem não retiraria sua presença. Contudo, em seu caso, cobrir a
marca pode servir como um aviso a ele, que tenta reconquistá-la, de que não há volta. Para
Paula, não é exatamente o passado a ser apagado, mas o presente e, especialmente, o futuro
sonhado com seu (ex-)marido. Livre da marca no corpo, Paula estaria simbolicamente
liberta do marido, dos sonhos e planos, das dores e fracassos oriundos de uma relação que
terminou.
Patrícia, cujo falecido marido trabalhava com José, também pensava em cobrir a
marca de amor. Quando a conheci, fora ao estúdio encontrar um outro amigo que estava
sendo tatuado. Aproveitou a oportunidade para conversar com o tatuador sobre a nova
tatuagem. Pensava em apagar o nome do marido localizado na lombar, mas parecia
indecisa. Fantasiava com o futuro e dizia que queria que este fosse um pedido de seu
próximo namorado:
“Eu quero apagar, mas ao mesmo tempo me dá uma peninha... Acho que vou esperar eu
me apaixonar de novo e meu namorado me pedir para tirar.” (Patrícia)
Aparentemente, tomava o pedido como uma “prova de amor”, movida pelo interesse
nela e pelo ciúme decorrente deste. Patrícia imaginava uma cena entre os dois:
“Eu vou primeiro deixar ele ver. Se ele falar alguma coisa, eu vou dizer ‘não olha’ e vou
colocar um esparadrapo. Como não vai segurar, ele vai reclamar e pedir para eu tirar. Aí
eu tiro. Dá para fazer uma tribal por cima? E eu queria aquele azul turquesa.” (Patrícia)
exprime relações de dominação masculina, nas quais ela se submete de bom grado,
compreendendo que estes são os papéis masculino e feminino.
A tatuagem havia sido feita a pedido do marido falecido. Patrícia disse que fora
praticamente obrigada por ele a ser tatuada, que chegara ao estúdio chorando e pedia ao
tatuador para não marcá-la. O nome do marido, rodeado por duas borboletas, foi
posicionado na lombar. Em troca, o marido havia tatuado o nome dela em ideogramas
japoneses. Foi no velório que Patrícia diz ter descoberto que o marido mantinha duas
amantes, fato notório entre todos os amigos dele, mas desconhecido para ela. Descobriu
ainda que as duas haviam sido tatuadas com as iniciais dele. Depois da revelação, passou a
duvidar que fosse seu o nome tatuado em japonês e imaginava que ele dizia para as amantes
tratar-se do nome delas.
O controle que o marido exercia sobre Patrícia era tamanho, que não apenas a
obrigou a fazer a tatuagem que ela não desejava como a proibiu de se submeter à cirurgia
de implante de silicone nos seios. Patrícia contou que desejava profundamente aumentar o
tamanho dos seios, mas o marido não permitia. Como não bastasse sua morte e a descoberta
de suas amantes, ainda observou que ambas apresentavam seios fartos, o que a levou a
concluir que ele permitira a operação nas amantes, mas não nela e, por outro lado, que
mentia quando lhe dizia que gostava de seios pequenos. Um mês após o seu falecimento, e
após a descoberta de sua vida dupla, decidiu enfrentar a cirurgia.
Mais uma vez, a tatuagem de amor se torna marca de propriedade. O falecido
marido e amante havia imposto seu nome e iniciais em todas as suas mulheres. Patrícia,
submissa ao marido, não teve força suficiente para negar o pedido, embora não desejasse a
tatuagem. Contudo, a ligação com o marido era ainda forte, pois embora desejasse apagar a
marca, também “sentia pena”. Para livrar-se da lembrança desse amor passado, imaginava
um amor futuro, como se apesar da morte do marido, a relação permanecesse e só perdesse
seu significado, ou sua presença, a partir do início de outro relacionamento.
Alguns pontos emergem aqui. Primeiro, Patrícia se posiciona como parte submissa
em uma relação de dominação com seus companheiros, e explicitamente com o marido.
Refletia esta mesma posição na sonhada relação ainda inexistente. Segundo, se Patrícia se
submetia, era também submetida. O marido, exercendo poder de dominação sobre ela, não
apenas a marcou como uma de suas mulheres, juntamente com as duas amantes, como
224
determinou um estrito controle sobre seu corpo, que a seu ver não era tão rígido sobre o
corpo das amantes.
De fato, a esposa tem sempre um status privilegiado. Como constitui a relação
oficial, onde a honra de um homem pode ser ganha ou perdida, o controle de seu corpo é
mais intenso. Talvez por isto o falecido marido de Patrícia tenha marcado o corpo de suas
amantes com tatuagens: menos que provas de amor, as marcas expressavam a necessidade
de manter uma permanência em meio a instabilidade, que se conjuga também com a idéia
de propriedade. A questão que emerge aqui é que a estabilidade parece se relacionar, em
meio às relações de dominação, com uma faceta de posse ou propriedade sobre o outro,
como se esta fosse a única garantia de continuidade e permanência, senão também de
fidelidade, amor, cumplicidade, compromisso, entre outros.
É importante observar que Patrícia não foi traída apenas pelo marido, mas também
por todos os amigos dele que eram vistos por ela como seus amigos também. Todos
conheciam as amantes do falecido, mas ninguém jamais disse a Patrícia nada que colocasse
sua confiança no marido em risco. Humilhada em pleno velório por vivos e morto, ainda
assim mantinha uma certa indecisão quanto a apagar ou não a marca, ou seja, o passado
vivido com o marido. Por isto pensava no futuro, em alguém que lhe requisitasse a saída
dessa relação passada em prol de uma nova estória de amor.
No mesmo dia em que Pedro foi ao estúdio, o tatuador que o atendeu lembrou-se de
uma história que julgava curiosa envolvendo nomes de ex-namoradas tatuados no corpo.
Contou que havia um cliente seu que fora ao estúdio para ter o nome de sua parceira
tatuado. Ao fim da relação, retornou para ter o nome coberto por outra tatuagem. Algum
tempo depois, estava o cliente no estúdio para tatuar o nome de sua nova parceira. Ao fim
deste segundo relacionamento, decidiu adotar nova estratégia para lidar com a situação:
pediu ao tatuador que riscasse o nome com uma única linha horizontal. E assim passou a,
sucessivamente, namorada após namorada, tatuar nomes e riscá-los em seu braço.
Este episódio lembrou aos presentes no estúdio uma obra de arte em que um
marinheiro tem mais um nome de mulher, da extensa lista em seu braço, riscado. O que a
225
história narra, de fato, não é apenas uma nova estratégia de se lidar com o desejo por
relações duradouras e a frustração pelo seu fim, mas também a idéia de que a história de
vida, marcada na pele, quase uma biografia amorosa, pode se tornar mais que uma lista de
nomes e amores passados, pode tornar o seu portador a cópia de uma obra de arte.
Riscar os nomes é, sem dúvida, diferente de cobri-los. Mesmo riscados, eles ainda
são visíveis. A lista extensa indica uma vida amorosa intensa, o que para um homem se
converte numa espécie de prova de virilidade. Mas creio que não se trata apenas de uma
questão de gênero. Tornar-se uma obra de arte (imagino, aqui, que o herói da história
também tivesse conhecimento da pintura em questão) é converter a necessidade de apagar
nomes de ex-amores, o que não é bem visto pelos tatuadores (de fato, embora tatuem este
tipo de trabalho, muitos são contra), em algo valorizado. Da mesma forma, transforma-se o
valor negativo do fim da relação em algo positivo: a modificação artística do corpo.
Esta história apresenta um caminho único para se lidar com os ganhos e as perdas
amorosas. Conserva-se a lembrança dos ex-amores, cujos nomes são visíveis, mas indica-se
que são parte do passado pelo risco tatuado por cima deles. Torna-se a pele uma espécie de
testemunho da vida amorosa, local da biografia. Da mesma forma que o passado não pode
ser apagado, as tatuagens de amor são apenas riscadas e não cobertas por outros desenhos.
Longe das discussões sobre o corpo como obra de arte e da função embelezadora e
de sedução da tatuagem, gostaria aqui apenas de apontar como a memória das experiências
passadas não precisa estar, necessariamente, encerrada no dilema apresentado sobre as
tatuagens de amor entre apagar ou não a marca e, antes disto, fazê-la ou não. A marca de
amor pode tomar outros significados, assim como a memória do passado pode ser mantida,
resignificada sem ter que se entrar no plano do esquecimento.
O que faz esses sentimentos serem marcados na forma de uma tatuagem, no próprio
corpo, e carregados de maneira permanente? Como foi observado, a tatuagem marca a pele,
camada de mediação entre o Eu e o mundo. É local para comunicar ao mundo sentimentos
importantes, da esfera do privado ou interno, na relação do sujeito (Eu) com Outros, vistos
como da esfera do social ou externo. Marcar na pele seus sentimentos é comunicar ao
mundo que eles existem e quais são.
No caso das tatuagens de amor, elas se tornam provas não apenas dos sentimentos
como da relação existente. Para Joana e Joyce, o nome de seus maridos marcava o
226
casamento, o compromisso profundo entre eles. Para José, o nome da atual namorada e o da
anterior conviviam na pele da mesma forma que os sentimentos por ambas. Se a relação
anterior não existia mais, a lembrança jamais fora apagada da memória, e por isso também
jamais apagada da pele. Se nem a relação nem o sentimento existem mais, então a marca de
amor deve ser apagada. É o caso de Paula, Pedro e Patrícia, embora as mulheres
apresentassem alguma insegurança quanto à decisão.
Atender a um pedido para fazer uma marca de amor quando não se acredita no
futuro da relação, ao contrário, é comunicar ao mundo que se está numa posição de
subjugação. Júlia estava nesta situação tanto quanto Patrícia e Joaquim. Joaquim, contudo,
soube transformar o exercício de poder de Roberta sobre ele aproveitando-se
financeiramente da situação. Patrícia, por outro lado, mesmo tendo sido obrigada a ser
tatuada por um marido infiel que tatuara também as amantes, ainda esperava por um outro
homem que lhe pedisse a retirada da marca. Nesses três casos, a relação amorosa é uma
espécie de jogo de dominar/ser dominado, possuir/ser possuído, em que as mulheres
parecem, a princípio, aceitarem mais facilmente a posição de submissão.
Retomo, então, a citação inicial, retirada de um poema de Ricardo Reis, heterônimo
de Fernando Pessoa: o amor, sobretudo o amor romântico, que é pensado tantas vezes como
uma forma de libertação, pode encobrir relações opostas, de submissão, opressão e
limitação. Aqui estas relações foram vistas sob a ótica das relações de gênero. Mas é
preciso ter em mente que a própria crença no amor romântico pode se tornar, por si só, uma
forma de limitação.
eterno presente, sem passado e conseqüentemente sem futuro. Na pele lisa, é o momento
que transparece e reina absoluto.
A argumentação da autora torna a questão da tatuagem mais complexa. A tatuagem
é uma espécie de mancha que marca a pele, tirando dela o liso original. Embora a técnica
tenha sido utilizada para encobrir cicatrizes (GILBERT, 2000; MIFFLIN, 1997), este não é
seu uso preponderante no Ocidente. Pode-se sugerir, então, que a pele marcada com a
tatuagem é uma pele marcada com uma história pessoal, que longe do desejo de ser
apagada demonstra o desejo de permanência. Como em uma reação à vida baseada em
momentos, a tatuagem fixa a história do sujeito na própria pele.
Algumas observações devem ser feitas para que esta idéia não tome conseqüências
demasiado amplas. Primeiro, a noção de que a tatuagem marca a pessoa leva à reflexão de
que toda marca nos situa em algum momento de vida. Isto não quer dizer que o desenho
tatuado provenha de uma reflexão profunda sobre este momento vivido ou que o momento
de vida em que se faz a tatuagem seja escolhido por meio de reflexão.
Almeida (2001) apresenta casos em que a tatuagem é efetuada por um desejo3
momentâneo, em oposição à idéia de um processo reflexivo. Se isso for verdadeiro, pode-se
supor que é a tatuagem que marca o momento, tornando-o parte da história de vida da
pessoa, momento este tornado importante no ato da tatuagem, pois, não fosse a
permanência da marca, ele expiraria. Em outras palavras, o momento de se tatuar pode ser
escolhido aleatoriamente, mas a tatuagem marca este momento para sempre. A fugacidade
da vida contemporânea atingiu a permanência da tatuagem, transformando uma marca que
é para sempre em um meio de marcar um momento que poderia ser perdido. Luta-se contra
a fugacidade marcando-se o momento e luta-se contra a falta de história marcando a pele,
mesmo que estas não sejam sempre escolhas reflexivas.
Se a tatuagem pode expressar sentimentos, também expressa valores, gostos e
aspirações pessoais. Neste sentido, além de comunicar aspectos da subjetividade, exprime
também o que chamo aqui de dermo-biografia, uma parte da vida e das crenças pessoais
que é marcada sobre a pele. Parto da idéia de que várias tatuagens, vistas em conjunto,
podem ser tomadas como uma forma de biografia inscrita na pele. O caso de Fátima, cuja
fada voando em suas costas representava, para ela, a idéia de colocar a própria vida em
3
Alguns entrevistados da autora utilizam a idéia de “fissura”.
228
Outra cliente que conheci no estúdio da Tijuca fazia uma série de tatuagens para cobrir as
cicatrizes de uma operação delicada na coluna, realizada aos 13 anos de idade. Esconder as
cicatrizes era crucial para ela. Quando a tatuadora exprimiu a dificuldade de encontrar um
desenho adequado, no mesmo ângulo da cicatriz, a cliente caiu em prantos, frustrada. A
dificuldade foi contornada e a tatuagem realizada em três sessões, mas a expressão de sua
angústia diante da impossibilidade de cobrir a marca da operação na coluna demonstra o
quanto a memória expressa na cicatriz sobre a pele a incomodava, possivelmente não
apenas quanto a sua estética. Cobrir uma cicatriz com uma tatuagem demonstra que há uma
motivação estética, mas creio que se deseja também esquecer ou silenciar um evento do
qual não se deseja que outros tomem conhecimento.
Quando trato da tatuagem como um elemento que pode comunicar sentimentos,
grupos de pertencimento, eventos pessoais marcantes, estou observando aspectos deste
adorno corporal que vão além da relação entre aparência e identidade. Não é apenas a
identidade pessoal ou social que a tatuagem pode expressar ou ajudar a compor. Ela tem
uma gama de usos que podem ser criados e/ou ressignificados pelos sujeitos, como marca
pessoal de mudança de status ou como parte de processos pessoais de “cura” emocional.
No que diz respeito às tatuagens de amor, imagine-se uma pessoa que tenha tatuado
as iniciais ou o nome de todos os namorados(as), amantes ou cônjuges: parte de sua vida
amorosa estaria registrada sobre a pele. Pode-se cogitar, então, que certos relacionamentos,
por diversos motivos, sejam mais marcantes, levando o indivíduo a optar pela tatuagem de
amor. Apagar ou cobrir uma tatuagem de amor seria, então, apagar a memória de uma
relação que chegou ao seu fim. De certa forma, é marcar também o fim do sentimento de
estar apaixonado por determinada pessoa. A memória da relação amorosa é vista como algo
que não deve permanecer no corpo desta forma, embora talvez jamais seja apagada da
memória em termos abstratos.
As tatuagens de amor, porém, não são as únicas a serem cobertas ou apagadas.
Desenhos desbotados, envelhecidos, mal-feitos, em suma, desenhos considerados feios ou
inapropriados são cobertos por outros. O desgaste pode ser contornado, ainda, com o
retoque. Cobrir ou apagar a tatuagem com procedimentos a laser indicam que algo que era
importante em um determinado momento de vida não é mais. A perda de importância de
elementos cruciais o bastante para serem tatuados é mais visível quando se trata de
230
CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma dificuldade em estabelecer o corte geracional, pois várias faixas etárias se faziam
presentes nos estúdios, enquanto apontavam para uma maioria de mulheres entre os
clientes. Havia uma questão: por que o público havia se alterado de uma clientela
majoritariamente jovem e masculina para esta diversidade de faixas etárias
majoritariamente femininas?
A minha visão inicial de que o público seria jovem e masculino era originária, em
grande parte, de leituras relativas ao passado da prática. A bibliografia específica sobre
tatuagem recorrentemente mencionava um passado relacionado a homens e jovens.
Contudo, estes homens e jovens que constituíam essa clientela do passado estavam
normalmente em uma posição social de menor status ou sob impacto de fatores
estigmatizantes. Prática tão antiga que suas origens foram perdidas no tempo, sua
popularização inicia uma espiral ascendente em que diversos grupos são incorporados aos
consumidores de tatuagens, em momentos históricos distintos e sob distintas influências.
De um modo geral, os usuários de tatuagens no Ocidente têm em comum uma
posição social de menor status. Exceção feita à nobreza européia. Mas, o uso de tatuagens
entre os nobres não estava relacionado ao sangue azul e sim ao pertencimento às
corporações militares. Além da posição de menor status, os usuários de tatuagens no
Ocidente estão freqüentemente sob algum tipo de controle corporal, como militares,
marinheiros e presidiários.
A partir desta percepção de que as tatuagens estão relacionadas ao baixo status e/ou
ao controle corporal, coube entender o por que de seu uso nestas situações. A marca auto-
infligida – conquanto tatuada por outro indivíduo e não por si mesmo, mas por escolha
própria – representa a marca de autopropriedade do próprio corpo, em um contexto de
controle e dominação. É uma marca de resistência ao controle, que comunica – sobretudo
ao controlador – que há um limite para este controle e que, mesmo sob dominação, há
espaço para o exercício de uma autonomia. Esta autonomia é exercida nestas situações de
controle sobre o corpo. Trata-se de uma relação dialética entre controle, resistência e
autonomia, na qual o corpo se torna palco das representações sociais sobre o sujeito.
Em termos de classe, portanto, é compreensível que a tatuagem tenha feito sucesso
primeiro entre as camadas populares. Para uma análise do contexto contemporâneo,
233
possibilidade desse exercício, a meu ver, a possibilidade de ser um indivíduo (livre) que fez
subir o número de mulheres entre o público da tatuagem.
Pensar que o aumento do público feminino está relacionado a uma estetização do
cotidiano e a um culto ao corpo me parece inadequado. Na medida em que o feminino
ainda é inferiorizado, que aquilo que é considerado feminino ainda é visto como de menor
valor, tratar o que agora aparece como uma prática feminina apenas como um ritual de
embelezamento entre tantos outros rituais femininos deste tipo é reproduzir esta ideologia
que inferioriza o feminino, roubando-lhe a possibilidade de agência.
Nos estúdios, permeados pela mesma lógica de diferenciação de gênero encontrada
na sociedade brasileira, o que é feminino é inferior: são desenhos pequenos, infantis, com
classificação própria, raramente considerados artísticos, executados por profissionais que
são em sua maioria homens, em regiões pouco extensas do corpo (pé, nuca, pequenas áreas
das costas), e a dor feminina é aceita porque é vista como sinal de sua fragilidade. Os
desenhos masculinos, por outro lado, são grandes, tomam extensas áreas do corpo
proporcionando a possibilidade de maior sofisticação artística, representando elementos
agressivos que constituem o cerne da masculinidade guerreira, executados por outros
homens a quem a performance frente à dor serve de medida do grau de virilidade.
Se as mulheres são vistas no estúdio, pelo senso comum, como em um ritual fútil de
embelezamento, os homens, em contrapartida, fazem do estúdio de tatuagem local de um
ritual de virilidade, onde esta é posta a prova, construída e reconstruída em um universo
ainda visto por eles como masculino. O tatuador, o sacerdote deste ritual, humilha os que
não toleram a dor – a prova suprema da masculinidade – com piadas e chacotas. Coloca em
xeque o caráter masculino daquele que é fraco, seja em frente ao cliente ou após sua saída
do estúdio. Faz o mesmo com aqueles que não escolhem estes desenhos “de macho”, os que
retratam a agressividade que parte da sociedade brasileira associa ao “ser homem”.
Há, portanto, uma lógica que permite compreender quem é e quem não é tatuado:
aqueles de menor status, aqueles em que um evento de vida os fez sentir em menor status,
aqueles sob controle corporal – estes serão grupos propícios a se tatuarem.
Os homens usam o autocontrole da dor, um controle corporal exercido pela
sociedade sobre eles, como sinal de masculinidade. Não se libertam desse controle nem
235
nem sempre é possível, ao menos ligeiramente modificados daqueles que lhes servem de
inspiração. O tatuado que segue modismos é visto como pessoa fraca, sem opinião própria.
O tatuado que busca sempre desenhos originais e únicos é visto como autêntico e estes
desenhos são correlacionados à sua subjetividade, como se fossem expressão desta.
Observa-se, então, uma hierarquia entre originalidade e modismo, em termos do
desenho tatuado, que representa, na verdade, uma hierarquia entre o sujeitos que têm
opinião própria e a expressam ao mundo, o que é mais valorizado, e aqueles que não têm
opinião própria ou não fazem valer suas opiniões, considerados fracos. Esta hierarquização
é análoga à determinação de status do tatuado, da seguinte forma: se aquele que busca a
tatuagem está, conforme indiquei, normalmente numa posição de menor status social, a
tatuagem não apenas funciona como marcador de uma busca de autonomia como também
constrói um status superior, ao menos no universo da tatuagem. Frente a outros tatuados,
aquele que tem desenhos originais e únicos sobressai-se, elevando seu status.
Instâncias sociais como a família e o mercado de trabalho exercem diferentes
controles sobre os sujeitos e seus corpos, tentando cercear sua autonomia. Tatuando-se,
sinônimo do exercício de autonomia e opinião própria, o sujeito resiste a esse controle,
fortalecendo em maior ou menor grau o exercício de sua individualidade, de sua liberdade.
Ele resiste a este controle e, nesta resistência, eleva seu status. Quando a tatuagem é
socialmente malvista, então, é porque indica que o sujeito que a porta não está aceitando as
regras sociais de dominação e controle como deveria. Não é mais, hoje, um desviante, dada
a popularização da prática, mas é alguém em busca de autonomia. Esta popularização,
contudo, é fruto de uma ordem social em mudança, na qual aqueles com status inferiores
buscam formas de inclusão social.
O corpo extensamente tatuado é visto no mercado de trabalho como agressivo e
grotesco.
Há, é claro, outros usos que não coincidem com este eixo analítico. A tatuagem
como amuleto, vinculada a idéias de proteção mística, por exemplo, existe hoje, mesmo que
em pequena escala. Este uso foi observado no recém-aposentado Fábio, que escolhera um
sinal de recomeço para ser tatuado e acreditava na propriedade de boa sorte da tatuagem.
Além do aspecto místico, há também um aspecto subjetivo na tatuagem, em que se
apreciam os desenhos não apenas em termos estéticos, mas também como signos capazes
237
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ANEXO 1
Figura 5 – Exemplo de cover up com estilo comics feminino (Betty Boop), nas costas
(por trás do ombro).
Figura 6– Exemplo de cover up com desenho old school, por cima de ideograma.