Você está na página 1de 7

Universidade Federal de Uberlândia

Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais

MESTRANDA: TALINE SOUZA OLIVEIRA


12112CSC010

O Método Antropológico Clássico e suas vertentes contemporâneas

As teorias raciais (1750-1850) representam o primeiro esforço teórico-


metodológico para entender o comportamento humano. Essas teorias se baseiam em
uma suposta hierarquia de raças, onde os indivíduos eram tipificados como inferiores ou
superiores, tendo como referência de superioridade o padrão do biótipo europeu. A
fisiologia dos indivíduos era determinante para atribuir valores a cultura, religiosidade,
capacidade intelectual e moral dos grupos. Era comum que os colonizadores utilizassem
de métodos como medição e proporção do cérebro e crânio (assim como outras medidas
fisiológicas), para determinar e interpretar a inferioridade moral e intelectual (cultural)
de inúmeras “raças”.
Nas décadas seguintes (1810-1920) surge o evolucionismo cultural, cujos
fundadores são James Frazer, Edward Tylor e Lewis Morgan. Para esses teóricos a
cultura é um fenômeno universal da humanidade, sendo que cada sociedade é
categorizada conforme o seu estágio de evolução cultural, indo do simples para o
complexo, do primitivo para o moderno. Essa noção de cultura resulta de dois
pressupostos filosóficos: 1) o aparelho cognitivo e intelectual é considerado um
fenômeno universal da espécie humana; 2) a concepção de uma “história hipotética” que
percebe a evolução a partir de etapas ou estágios cronológicos universais. Esse
paradigma foi considerado posteriormente como etnocêntrico, pois partia de uma noção
de complexidade baseada nos padrões culturais das sociedades brancas europeias.
Os evolucionistas culturais comparavam dados que eram fornecidos através de
fontes secundárias, cujas informações não tinham confiabilidade suficiente para a
realização de análises profundas. As informações partiam de missionários,
comerciantes, naturalistas e pessoas que serviam a coroa portuguesa, portanto, a
descrição que faziam sobre o “outro” refletia os interesses dos colonizadores,
descrevendo tudo com estranheza, contribuindo para o avanço do etnocentrismo. Assim,
nesse período, surge a expressão “antropologia de gabinete”, pois nesse momento as
pesquisas de campo ainda não era uma ferramenta explorada pelos antropólogos.
É com a Antropologia Cultural Norte-Americana fundada por Franz Boas que
o método antropológico clássico passa por mudanças teóricas significativas,
contribuindo para a institucionalização da etnografia e pesquisa de campo dentro da
antropologia. Boas é crítico das teorias raciais e do evolucionismo cultural, criticando
os seus principais pressupostos: o determinismo biológico (racial) da cultura1,
estabelecendo a noção de cultura como um fenômeno multifatorial e condicionado
historicamente enquanto aspecto que determina o comportamento humano em todas as
sociedades; a noção etnocêntrica de cultura enquanto fenômeno universal que seguiria
as mesmas etapas de evolução cultural; a relação entre causa e efeito como lógica de
explicação dos fenômenos socioculturais, introduzindo na antropologia o problema do
significado associado às práticas culturais.
Outra contribuição importante de Boas para a antropologia são os conceitos de
relativismo cultural, particularismo histórico e etnocentrismo. Esses conceitos
modificaram o olhar do pesquisador em relação aos povos pesquisados, entendendo que
todas as culturas (no plural) possuem seus próprios estágios de desenvolvimento
histórico, não hierarquizando ou tipificando as sociedades como simples, complexas,
primitivas ou civilizadas. Como Boas refutava os pressupostos do evolucionismo e das
teorias raciais, os estudos passaram então para a análise de culturas e não de raças,
entendendo as culturas como fenômenos particulares, com especificidades históricas
singulares.
Boas acreditava que todas as culturas passam por mudanças históricas, sendo
que essas mudanças podem ser ocasionadas por fatores externos (guerras, relações
econômicas, comerciais, etc.) e fatores internos (transmissão cultural de uma geração
para outra). Assim, a relação entre indivíduo e cultura - a forma como os indivíduos
adquirem os padrões culturais do seu grupo ou sociedade - tornou-se uma subárea de
pesquisa, que mais tarde seria aprofundada pelas duas principais orientandas de Boas –
Benedict e Mead - que deram continuidade às suas teorias e contribuíram
significativamente para o surgimento e consolidação do que conhecemos hoje como a
escola “Cultura e Personalidade”2.
Ruth Benedict realizava estudos sobre a formação da personalidade a partir da
incorporação – por meio do aprendizado e da educação - de padrões culturais que eram
configurados pelo próprio individuo ao longo do processo de socialização. Margaret
Mead, por sua vez, aprofundou essas questões a partir do estudo de relações de gênero,
fazendo etnografia sobre a adolescência feminina no Arquipélago de Samoa, trabalho
1
Assim como outros ‘determinismos’ então vigentes na explicação dos fenômenos culturais, como o
determinismo tecnológico, econômico e geográfico. Surge daí a ideia de “cultura” (s) como um fenômeno
relativamente autônomo e determinado por todos esses fatores.
2
Essas autoras também são fundadoras do que se denomina de ‘Antropologia Feminista’, dando
contribuições importantes para a desnaturalização da dominação masculina nas sociedades ocidentais da
época.
que resultou em uma de suas obras mais importantes, “Sexo e temperamento em três
sociedades primitivas”. Durante a realização da etnografia, Mead percebeu que os
papéis sociais de gênero não eram os mesmos em todas as culturas, portanto, criticando
o determinismo biológico da identidade de gênero. Esses estudos contribuíram para a
desnaturalização de aspectos culturais que instrumentalizavam a dominação masculina
na sociedade norte americana da época, contribuindo para o fato de que os papeis de
homens e mulheres – definidos por cada sociedade – não resultam de uma herança
genética, mas de uma herança cultural, constituindo-se, portanto, enquanto uma questão
política e histórica.
Se Boas introduziu o trabalho de campo, é com Bronislaw Malinowski que
surge o método de observação participante, revolucionando o modo de se fazer
antropologia. Com esse método, percebe-se a importância da etnografia prolongada,
tendo a oportunidade de conviver de perto, aprender o idioma dos nativos e participar da
vida cotidiana do grupo estudado, podendo compreender a funcionalidade e aspectos
particulares das práticas culturais de cada povo, levando em consideração o ponto de
vista do nativo. Malinowski intitula seu programa teórico de funcionalismo,
fundamentado a partir da teoria das “necessidades” naturais, onde as práticas culturais
são construções sociais realizadas a partir (ou entorno) das principais necessidades da
humanidade.
Diferentemente da grande maioria dos antropólogos, Radcliffe-Brown estava
mais preocupado em compreender como a sociedade se integrava e as forças existentes
que a tornava coesa de uma maneira geral, do que propriamente com a cultura. Esse
antropólogo intitula seu programa teórico de estrutural-funcionalismo, fazendo uma
analogia entre o corpo humano e a sociedade. O corpo humano possui uma estrutura
física composta por órgãos que mantem as suas funcionalidades e a sobrevivência do
organismo humano, enquanto a sociedade é composta por uma estrutura social, e as
instituições sociais atuam na manutenção das funções, que reproduzem essa estrutura ao
longo do tempo. Portanto, temos um modelo de estrutura sincrônica que leva em
consideração as práticas que estão sendo reproduzidas em um determinado momento e
não como no evolucionismo cultural, que encontramos a existência de uma estrutura
diacrônica, pautada pela evolução histórica.
As noções de estrutura e função social em Radcliffe-Brown foram inspiradas
na Escola Francesa de Sociologia, fundada por Emile Durkheim, em especial as suas
noções de “Homem-Duplex”3 e “Fato Social”4. Essas noções foram aplicadas no
entendimento das representações coletivas associadas a vários aspectos das sociedades
humanas: religião, divisão social do trabalho, organização social e política, categorias
de julgamento e classificação, economia, magia, etc. Essa reflexão foi aprofundada por
pesquisadores associados a essa escola, como é o caso de Marcel Mauss, Robert Hertz e
Van Gennep, que deram valiosas contribuições para o desenvolvimento da teoria
antropológica.
Mauss analisou de forma inaugural diversos fenômenos culturais a partir da
noção de fato social total, ou seja, a incorporação do aspecto psicológico (psicofísico),
além do social e histórico, aprofundando a relação entre a sociologia e a psicologia5.
Exemplo disso seriam os casos em que pessoas acreditando terem desrespeitado algum
tabu, começam então a definhar, se tornando moribundos até morrerem. Esse exemplo
mostra como um aspecto fisiológico/psicológico é determinado por representações
coletivas, onde a sociedade determina o que deve ou não ser feito na relação com os
mortos e espíritos6. Outra contribuição de Mauss para a antropologia é a noção de
técnicas corporais, que abre um campo para o entendimento do corpo não somente
como um corpo biológico, mas também social. As técnicas corporais são entendidas por
Mauss como a maneira que cada pessoa sabe se servir de seu próprio corpo a partir de
técnicas corporais herdadas de uma determinada tradição 7.
A partir da segunda metade do século XX, como desdobramento dos
paradigmas clássicos mencionados aqui, surgiram diversas vertentes contemporâneas da
teoria antropológica. Neste ensaio abordaremos a antropologia interpretativa de Clifford
Geertz, a noção de antropologia histórica em Marshall Sahlin e a relação entre as teorias
feministas e a teoria antropológica em autoras como Marilyn Strarthern, Judith Butler e
Donna Haraway.
Para Geertz, o conceito de cultura é essencialmente semiótico. Assim como
Max Weber, ele acredita que “o homem é um animal amarrado a teias de significados

3
A ideia de que o comportamento humano era duplamente determinado por aspectos “social” e
“biológico”, sendo que os primeiros devem ser estudados pelos cientistas sociais.
4
As três características do fato social são: generalidade, pois se aplica a todos os indivíduos de uma
sociedade; externalidade, ou seja, é algo exterior aos indivíduos; e poder de coerção sobre o
comportamento individual.
5
Os debates e discussões com os psicólogos na época foi registrado no artigo intitulado, “Relações reais e
práticas entre a psicologia e a sociologia”, publicado em 1924.
6
Essa questão foi abordada por Mauss no artigo intitulado, “Efeito físico no indivíduo da ideia de morte
sugerida pela coletividade”, publicado em 1924.
7
A noção de técnica corporal foi desenvolvida por Mauss no artigo intitulado, “As Técnicas do
Corpo”, publicado em 1935.
que ele mesmo teceu”. Portanto, o papel da antropologia seria entender as teias e
analises, buscando o significado para as ações dos indivíduos dentro de cada cultura e
sociedade. A cultura também é entendida como um código público, pois ela atua na
comunicação entre as pessoas, criando símbolos e significados nas relações humanas.
Geertz acreditava que a etnografia precisa ser uma “descrição densa”, ou seja,
a descrição feita pelo antropólogo não pode ser superficial ou apenas descrever os fatos
que estão ocorrendo, mas sim, entender e interpretar o significado que as pessoas dão
aos fatos, partindo do pressuposto que as ações em culturas diferentes possuem também
significados diferentes. Uma descrição densa é aquela que consegue compreender os
significados que as pessoas atribuem para aquilo que fazem, para exemplificar podemos
mencionar a diferença entre o piscar de olhos e a piscadela. A diferença é que o piscar
de olhos é involuntário, um ato fisiológico que não tem um significado nem uma
mensagem, enquanto a piscadela é um código público que atua na comunicação entre as
pessoas.
Para Marshal Sahlins, o grande desafio da antropologia histórica não seria
somente entender como os eventos são ordenados pela cultura, mas sim entender como
nesse processo a cultura é reordenada pelos eventos históricos, levando a sua
transformação estrutural. Sahlins argumenta que o processo histórico se desdobra em
um movimento continuo e reciproco, que transita entre a prática da estrutura e a
estrutura da prática, procurando ambivalências nas logicas e interpretações culturais que
acomodam sistemas de longa, curta e media duração.
Como exemplo, podemos citar a obra “Ilhas da História”, onde Sahlins faz uma
reavaliação funcional de dicotomias clássicas da teoria antropológica, como “Estrutura
Vs. Historia”, “Sincronia Vs. Diacronia”, “Sistema Vs. Evento”, analisando como um
evento histórico paradigmático – a chegada dos colonizadores ingleses no Hawai –
levou a um reordenamento da sua estrutura sociocultural. A chegada dos colonizadores
– portando adornos e “objetos mágicos” - causou forte impacto nos nativos, que
acreditavam que aquelas pessoas eram os deuses encarnados que vieram a terra para
trazer a salvação a eles. Num primeiro momento os colonizadores se aproveitaram dessa
situação, sendo agraciados e reverenciados como deuses, porém os nativos começaram a
observar o comportamento daqueles homens e recorrendo aos mitos históricos,
perceberam que suas atitudes eram contrárias as atitudes dos deuses descritas nos mitos.
A postura dos nativos em relação aos colonizadores se transforma em atitudes de
resistências, matando então capitão Cook e alguns colonizadores ingleses.
A relação entre o feminismo e a antropologia - inaugurada com a pesquisa de
Benedict e Mead - é retomado por antropólogas contemporâneas como Marilyn
Strathern, Judith Butler e Donna Haraway. Essas pesquisadoras se identificam com o
que Strathern denominou de “feminismo antropológico”. De acordo com ela, o
feminismo antropológico deve manter a sua autonomia, recusando-se a ser apagado pela
absorção por outras teorias, identificando uma divisão na vida social que é produzido
pelas relações hierarquizadas de desigualdade e de dominação entre homens e mulheres,
sendo que a opressão e a dominação devem ser analisadas a partir de etnografias
realizadas em contextos socioculturais específicos.
Judith Butler fornece elementos importantes para pensarmos sobre questões de
gênero, desigualdade e método antropológico no século XXI. Essa autora defende que a
luta pelos direitos das minorias sexuais e de gêneros sejam lutas pela igualdade e justiça
social, entendendo que entre essas minorias pode existir uma politica de alianças, ou
seja, entender quais características e necessidades existências esses grupos tem em
comum, para que os mesmos possam se unir na luta em busca de direitos reconhecidos.
Nesse sentido surge uma politica de coabitação, levando os grupos a entenderem o que é
viver com o outro. Esses corpos passam a ocupar as ruas e outros lugares públicos, na
intenção de que seus corpos sejam vistos e suas vozes ouvidas. O método utilizado
busca evidenciar como a noção de gênero é também fruto dessas alianças e associações
políticas.
Donna Haraway, no seu “Manifesto Ciborgue”, defende a potencialidade
política da imagem do ciborgue enquanto híbrido de natureza-cultura: um organismo
cibernético, híbrido de máquina e organismo vivo, realidade e ficção 8. Para que exista
libertação é necessário que tenhamos a consciência da opressão, daí a importância de
dar visibilidade à multiplicidade de experiências vividas pelas mulheres, incluindo as
suas relações de associação com a tecnologia e com outros atores políticos. Três
rupturas são marcantes para a origem da politica ciborgue. 1) ruptura com a fronteira
entre humano e animal. 2) ruptura com a distinção entre o organismo e máquina. 3)
ruptura com a fronteira entre o físico e o não físico. Com o surgimento do mito do
ciborgue temos fronteiras transgredidas, elementos de um novo trabalho politico e
abertura de um novo cenário para a coesão e ação politica dos coletivos.

8
Exemplos de ciborgues são retirados pela autora da ficção científica, da biologia molecular, da
bioinformática e da medicina.

Você também pode gostar