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A IDEOLOGIA DE “GÊNERO”.

DESAFIO À ANTROPOLOGIA E ÉTICA CRISTÃ

A teoria do gênero está se difundindo no Ocidente e tenta penetrar também em


outros contextos culturais, promovida por grandes organizações internacionais. Essa
consiste, em essência, na negação da relevância antropológica das diferenças sexuais
biologicamente definidas, com respeito às determinações culturais da sexualidade1. As
consequências deste cenário são de grande importância para a vida sexual de pessoas e
para a sua regulação.

1. Uma nova antropologia e ética sexual


Desde o final do século XIX, está cada vez mais em crise o modelo de
antropologia sexual sedimentado na cultura ocidental que, embora declinado
variadamente, dominou o mundo ocidental desde os tempos dos antigos gregos e que
tinha sido usado pela Tradição para tematizar a experiência moral cristã. A concepção
predominante de sexualidade sofreu uma verdadeira revolução por causas múltiplas e
variadamente inter-relacionadas: o progresso das ciências biológicas esclareceu alguns
aspectos fundamentais da sexualidade e da procriação humana, enquanto as contribuições
inovadoras das ciências humanas (especialmente psicologia, antropologia cultural e
sociologia) abriram horizontes interpretativos antes nem imaginado. Os papéis sexuais e
as relações entre os sexos, a ligação entre sexualidade e casamento, a mesma naturalidade
dos sexos foi colocada em discussão e, refazendo sua genealogia histórica, procurou-se
mostrar seu vínculo com a lógica do poder e da repressão.
A superação dos tradicionais sistemas regulatórios impostos – se diz – por
convenção e autoridade, a exaltação da liberdade do desejo, a emancipação sexual e social
das mulheres, a crítica das estruturas familiares naturais, a desconexão entre o exercício
da genitalidade e a procriação, são alguns dos traços típicos da chamada revolução
sexual2. Essas ideias tiveram uma influência decisiva na mentalidade de hoje
predominante no mundo ocidental, passando, entre outras coisas, por transformações
singulares no encontro com a filosofia marxista que dominava a cena da cultura europeia
no coração do século XX: pensemos na produção de vanguarda de W. Reich (1897-1957)
cuja obra mais conhecida Die Sexualität im Kulturkamp, isto é, A Sexualidade no conflito

* Tradução: Ms. Pe. Emerson Manoel da Silva. Uso exclusivo para alunos em aula. Texto original:
MAURIZOIO P. FAGGIONI, L’ideologia del “gender”. Sfida all’antropologia e all’etica cristiana, em
Antonianum XC (2015) 385-401. Disponível: https://www.antonianum.eu/pdf/708.pdf.
1
Nem todas as línguas permitem distinguir sexo e gênero (em inglês sex e gênero) e, então, recorremos
a especificações que dão sentido à distinção. Em alemão, por exemplo, distingue biologisches Geschlecht
(sexo biológico) de psycho soziales Geschlecht (sexo psicossocial).
2
A separação entre sexualidade e procriação foi permitida, concretamente, pela disponibilidade de
novos métodos contraceptivos. Veja: R. TANNAHILL, Storia dei costumi sessuali. L’uomo, la donna,
l’evoluzione delle società di fronte al sesso, Rizzoli, Milano 1994², 358: “Tornando-se prontamente
disponível na década de 1960, a pílula provou ser exatamente o que as mulheres estavam esperando (...).
Finalmente foi possível recorrer a um anticoncepcional cem por cento seguro, cujo uso foi totalmente
controlado por mulher".
cultural foi publicada pela primeira vez em Viena em 1936, pensamos no feminismo
militante de Simone de Beauvoir (1908-1986), às sugestões marxistas presentes, ainda
que elaboradas de forma pessoal, em E. Fromm (1900-1980), à áspera produção de H.
Marcuse (1898-1979), na qual a razão hegeliana parece ter sido substituída pelo impulso
freudiano e pela revolução política e libertação de eros parecem coincidir3. De acordo
com Marcuse, em particular, após a conquista das liberdades civis, o ideal da Revolução
francesa, e depois da liberdade de necessidade, o objetivo da Revolução Russa, os
objetivos ulteriores da liberdade serão a liberdade do trabalho, a liberdade da família, a
liberdade da moralidade. A tarefa da modernidade amadurece será, portanto, libertar a
sexualidade humana da instituição familiar, vinculada às convenções, sangue, controle
social e dar total liberdade ao desdobramento do eros, quebrando todos os tabus e
proibições.
Em nosso tempo, a sexualidade tende a ser vivida independentemente da função
procriadora e é compreendida segundo múltiplas direções de sentido, destacando-se
preferencialmente suas qualidades lúdicas, eróticas, expressivas, criativas e afetivas em
relação aos finais procriativos. A sexualidade não teria, portanto, um significado
fundamental, dado com a natureza da pessoa, mas estaria aberto a acolher mais sentidos
que só podem ser hierarquizados pelo indivíduo dentro do seu sistema pessoal de valores.
Além disso, embora os valores políticos não sejam negligenciados da sexualidade, a
orientação tão dominante hoje tende a privilegiar suas dimensões subjetivas e privadas,
colocando a vida sexual em relação com o exercício da autonomia e com a realização do
bem-estar pessoal. É uma nova visão da sexualidade que representa um desafio para a
antropologia e a moral sexual tradicional.

2. Sexo e gênero entre natureza e cultura


É evidente que, na natureza, a sexualidade está estritamente ligada aos processos
reprodutivos. A reprodução sexuada certamente não é a única nem a mais difundida
maneira de dar origem a um novo indivíduo, mas, do ponto de vista evolutivo, a
reprodução sexuada apresenta uma enorme vantagem sobre a assexuada porque permite
uma mistura genética contínua dentro da mesma espécie. As ciências biomédicas dos
séculos XIX e XX mostraram que a sexualidade, mesmo em um nível puramente físico,
não é característica de um único órgão ou aparelho, nem pode ser reduzida a uma
determinada estrutura cromossômica ou capacidade de produzir gametas de um certo tipo,
mas inclui um conjunto articulado de caracteres histológicos, anatômicos e fisiológicos
em estreita interdependência.
No entanto, o que caracteriza a sexualidade humana em relação à sexualidade
animal não está nos aspectos físicos da sexualidade, mas em seus aspectos simbólicos. A
sexualidade humana, de fato, é carregada de significados e não-fins imediatamente
3
Recordamos alguns textos clássicos: S. DE BEAUVOIR, Le deuxième sexe, 2 vols., Gallimard, Paris
1949 (trad. It. Il secondo sesso, Saggiatore, Milão 1984); H. MARCUSE, Reason and revolution. Hegel and
the rise of social theory, Oxford University Press, Nova York 1941 (tradução it. Ragione e rivoluzione.
Hegel ed il sorgere della teoria sociale, Mulino, Bolonha 1966); Id., Eros and civilisation. A philosophical
inquiry into Freud, Boston 1955 (trad. It. Eros e civiltà, Einaudi, Turim 2001); W. REICH, The Sexual
Revolution, Vision Press, Londres-Nova York 1945 (trad. It. La rivoluzione sessuale, Feltrinelli, Milão
1971).
ligados à biologia e à reprodução. Se é verdade que a sexualidade humana envolve
estruturas biológicas e determinismos, a característica saliente da sexualidade humana
deve ser buscada em outro lugar, em seu potencial expressivo, em suas habilidades de
comunicação, nas suas elaborações culturais. Essa ênfase moderna nas dimensões
internas e subjetivas da sexualidade não é uma novidade absoluta na história do
pensamento, mas uma contribuição decisiva nesse sentido veio de ciências humanas,
desenvolvidas a partir do final do século XIX, e especialmente a partir da psicologia
analítica iniciada por S. Freud (1856-1939). Antes dos instintos, de inclinações e
comportamentos existe um mundo misterioso de que emerge nosso ser pessoal e que
continuamente interage com o mundo da realidade e das relações. Além das avaliações
que se possam dar da psicanálise e seus muitos limites teóricos, parece de poder dizer que
se trata de um patrimônio em algum nível por todos compartilhado e, com os devidos
esclarecimentos, também a teologia moral passou a falar da sexualidade como função do
crescimento pessoal, como fator de socialização, como força de autotranscendência.
Uma grande contribuição para a compreensão do desenvolvimento de aspectos
sexualidade pessoal veio dos estudos de R. Stoller (1924-1991) e por J. Money (1921-
2006) que, nas décadas de 1950 e 1960, aprofundaram a relação entre identidade sexual
e estruturas corporais. Parece que primeiro foi Stoller, no contexto de seus estudos sobre
o transexualismo, que colocou em foco a distinção entre sexo e gênero, no Congresso
Internacional de Psicanálise realizada em Estocolmo em 19634 . Money elaborou uma
teoria inovadora sobre fatores que determinam o desenvolvimento dos componentes
fundamentos do sexo psicológico5. A teoria de Money parte da premissa de que o sexo
de uma pessoa resulta de múltiplos fatores e não de apenas um e que, entre esses fatores,
o sexo psicológico deve ser incluído e o social, que estão indissoluvelmente ligados ao
bem-estar da pessoa. Ao lado da orientação sexual, que se refere ao objeto do desejo
erótico, ele introduziu as categorias de identidade de gênero, isto é, a autopercepção de
si mesmo como macho ou como fêmea, e papel de gênero, ou seja, tudo o que uma pessoa
faz ou diz para indicar a si mesma ou a outros a sua pertença a um sexo: isso inclui, mas
não restringe a sexualidade no sentido erótico. A percepção de si mesmo como masculino
ou feminino precede o desenvolvimento da orientação sexual e a assunção de qualquer
papel social. Essa percepção está no centro do nosso ser e informa de si tudo quanto
fazemos.
O uso da categoria de gênero em vez de sexo não é acidental, mas quer sublinhar
a origem e o valor psicossocial desses aspectos da pessoa, libertando-a da esfera da
biologia: o gênero evoca a cultura, enquanto o sexo sugere a natureza. Money encontrou
para provar que, do ponto de vista psicológico, a sexualidade no nascimento é
indiferenciada e torna-se diferenciado no sentido masculino ou feminino durante as
experiências educativas da infância, tomando a forma de uma espécie de imprinting

4
R. STOLLER, A contribution to the study of Gender Identity, in “International Journal of Psycho-
Analysis” 45 (1964) 220-226; Id., Sex and Gender. On the development of Masculinity and Femininity,
Science House, New York 1968.
5
J. MONEY - A.A. EHRHARDT, Man & Woman, Boy & Girl. The Differentiation and Dimorphism of
Gender Identity from Conception to Maturity, Johns Hopkins University Press, Baltimore - London 1972
(trad. it. Uomo Donna Ragazzo Ragazza, Feltrinell, Milano 1976); J. MONEY - P. TUCKER, Sexual
Signatures: On Being a Man or a Woman, Little, Brown & Co., Boston 1975 (trad. it. Essere uomo, essere
donna. Uno studio sull’identità di genere, Feltrinelli, Milano 19893).
psíquico que se completa dentro de dois anos e meio após o nascimento e que pode ser
alterado mais tarde apenas ao preço de sérios riscos para o equilíbrio psíquico. Um
aspecto desconcertante de suas teorias estava na afirmação que a identidade de gênero se
desenvolve de acordo com o sexo de procriação e que, em casos extremos – como no caso
dos intersexos6 – tal desenvolvimento pode também ocorrer em contraste com o sexo
genético, gonadal, genital interno e mesmo fenotípico, tomados isoladamente ou em
combinação, por qual sexo reprodutivo decidido pelos pais deve ser considerado o melhor
índice prognóstico de identidade de gênero futura.
As teorias de Money foram recebidas com triunfo, assim como entre pediatras e
psiquiatras, também nos círculos feministas e no pensamento gay porque pareciam
deslegitimar as estruturas antropológicas e éticas tradicionais com argumentos científicos
e oferecer suporte objetivo às novas teorias sociológicas e antropológicas que tomaram
forma e vigor na década de 1950. As ideias Money foram logo redimensionadas por
evidências clínicas contrárias e por observações sobre a sexualização do cérebro
masculino e feminino, mas isso não afetou a segurança da ideologia de gênero7. Uma
visão equilibrada dos dados científicos atualmente em nossa posse deve nos levar a evitar
o extremismo e a oposição por oposição ao sexo como natureza e gênero como cultura e
deve nos levar a elaborar uma visão complexa, multifacetada e harmoniosa dos diferentes
componentes da sexualidade humana, mas é típico das ideologias serem unilaterais,
reducionistas, intolerantes à crítica e pouco interessadas nos dados de fato que os
contradizem8.

3. A ideologia de gênero
A distinção entre sexo e gênero nos introduz no cerne da disputa: o sistema binário
dos sexos é resultado de uma necessidade natural ou uma construção social? A resposta
da teoria do gênero é que a suposta naturalidade das diferenças entre homem e mulher e
o sistema tradicional dos sexos são um produto exclusivo da cultura. A rígida dicotomia
de papéis na sociedade e na família, bem como modelos características comportamentais
do macho e da fêmea e os respectivos, chamados, perfis psicológicos típicos nada mais
seriam do que a resposta a um sistema das expectativas sociais e a distribuição do poder.
Em suma, tudo isso é fruto de construção9.

6
Money havia realizado pesquisas sobre crianças de sexo ambíguo e, portanto, enfatiza a possível
discrepância entre o sexo de criação e o sexo físico quando houve um erro de atribuição no nascimento.
7
Dados consolidados mostram o papel desempenhado pelos hormônios sexuais no sistema nervoso
central do homem na influência do desenvolvimento psicossexual e hoje podemos dizer que o cérebro
masculino e feminino são, em certo sentido, duas variantes biológicas do mesmo órgão. Cfr. L. CAHILL,
Why sex matters for neuroscience, in “Nature Reviews Neuroscience” 7 (2006) 477-484; I. SAVIC (ed.),
Sex differences in the human brain, their underpinnings and implications, Elsevier, Oxford 2010.
8
Algumas leis contra a homofobia, pensadas como barreira à discriminação contra homossexuais e
como defesa de sua dignidade, são, no entanto, afetadas pelas características ideológicas implícitas na teoria
de gênero.
9
Representante proeminente dessa concepção de sexualidade é Judith Butler: J. BUTLER, Bodies that
Matter: On the Discursive Limits of ‘Sex’, London 1993 (trad. Corpi che contano, Milano 1996); EAD.,
Undoing gender, New York-London 2004 (trad. La disfatta del genere, Roma 2006). Nel mare magnum
dei gender studies ricordiamo, per esempio: T. De LAURETIS, Sui generis. Scritti di teoria femminista,
Feltrinelli, Milano 1996; J. LORBER , Paradoxes of Gender, Yale University Press, New Haven (CT) 1994
(trad. it. L’invenzione dei sessi, Saggiatore, Milano 1996).
Os estudos antropológicos de M. Mead (1901-1978) sobre algumas sociedades
primitivas – estudos atualmente muito criticados – afirmavam colocar à luz, desde a
década de 1930, que as culturas consideradas mais primitivas são na verdade mais livres
e muito menos repressivas do que a cultura ocidental, especialmente em sua versão
burguesa, e que a imagem tradicional do homem e da mulher encontrada nas culturas
ocidentais é relativa a essas culturas e não expressa estruturas antropológicas perenes10.
Simone de Beauvoir aprofundou a tese da origem cultural das diferenças entre
homens e mulheres, com o objetivo primordial de mostrar a igualdade das mulheres,
contra a mentalidade de sua época, fortemente impregnada de preconceitos machistas.

Uma sociedade – escreve ela – não é uma espécie: nela a espécie se realiza como
existência, transcende-se em direção ao mundo e ao futuro. Os seus costumes não são
inferidos da biologia: os indivíduos nunca são abandonados à sua natureza, eles
obedecem a essa segunda natureza que é hábito, no qual se refletem desejos e medos
que revelam a sua atitude ontológica. O sujeito não toma consciência de si mesmo e não
se realiza como corpo, mas como corpo sujeito a leis e tabu: torna-se consciente em
nome de certos valores.
Mais uma vez não é a fisiologia que pode estabelecer valores, mas os dados biológicos
assumem esses valores que a existência lhes dá (...). Portanto, teremos que esclarecer os
dados biológicos à luz de um contexto ontológico, econômico, social, psicológico11.

De acordo com os princípios de J. P. Sartre, aos quais Simone de Beauvoir estava


pessoalmente ligada, cada um é sempre como o outro o vê. O homem não tem uma
natureza dada, mas é liberdade. É verdade que existem entre o homem e a mulher
diferenças numa base natural, mas não são uma condição inevitável porque “o ser da
mulher, se condicionado pelo seu corpo como a do homem, nunca é completamente dada,
mas sempre deve ser feita”12. A mulher é uma pessoa livre que projeta a si mesma no
mundo e por isso, muito mais do que a fisiologia e a psicologia, conta o modo como a
mulher assume as condições de sua existência e as transforma.
A tese construtivista é amplamente tematizada na teoria sexualidade elaborada por
Michel Foucault (1926-1984). O famoso historiador e filósofo francês não tratou
explicitamente de “gênero”, mas os seus escritos, fascinantes e eruditos, são um ponto
forte para a tese de que a sexualidade humana é fruto de um processo de construção que

10
M. MEAD, Sex and Temperament in Three Primitive Societies, Harper Collins, New York 1935
(trad. it. Sesso e temperamento in tre società primitive, Saggiatore, Milano 2003); MEAD, Male and Female:
A Study of the Sexes in a Changing World, William Morrow, New York 1949 (trad. it. Maschio e femmina,
Saggiatore, Milano 1962). L’attendibilità delle ricerche della Mead è stata contestata: D. FREEMAN, The
Fateful Hoaxing of Margaret Mead. A Historical Analysis of Her Samoan Research, Westview Press,
Boulder (Colorado) 1999. Una lettura della binarietà sessuale dal punto di vista dell’antropologia culturale
contemporanea in: F. HERITIER, Masculin/Féminin. La Pensée de la différence Odile Jacob, Paris 1996
(trad. it. Maschile e femminile: il pensiero della differenza, Laterza, Roma 2000); Ead., Masculin/Féminin.
Dissoudre la hiérarchie, Odile Jacob, Paris 2002 (trad. it. Maschile e femminile. Dissolvere la gerarchia,
Raffaello Cortina, Milano 2004).
11
S. DE BEAUVOIR, Il secondo sesso, 62-63.
12
Ibid., 604.
se desdobra no história e que é guiado orienta pelas estruturas do biopoder, poder que
constrói os corpos, desejos, identidades, os modos fundamentais da própria vida13.
Não podemos negar que ter revelado as íntimas conexões entre sexualidade e
sociedade é uma das contribuições mais significativas e frutíferas das ciências humanas
modernas. Leituras construtivistas, se forem despojadas de supervalorização unilateral do
elemento cultural e são reinterpretadas em um contexto antropológico mais articulado,
podem enriquecer positivamente nossa visão da sexualidade humana. É verdade, de fato,
que a sexualidade faz a sociedade porque, ao conotar profundamente a identidade
individual e tecendo laços privilegiados entre as pessoas, se configura como o matriz
genética das estruturas sociais e, por meio da transmissão de vida, garante um futuro para
o grupo e oferece a possibilidade de expansão e de renovação, mas é igualmente verdade
que a sociedade faz a sexualidade se se pensa que a sexualidade humana não pode escapar
da influência da cultura porque é justamente o conjunto de determinações culturais que
contribui para modelar a sexualidade como ela é percebida e vivenciada pelos sujeitos.
A sexualidade investe integralmente a pessoa em sua complexa estratificação
ontológico e se, por um lado, o enraíza no mundo da natureza, por outro, empurra para o
mundo da cultura, para que nunca ocorra no homem e na mulher qualquer momento
concreto que é pura natureza e que não sejamos também cultura ao mesmo tempo. O ser
humano é um ser eminentemente simbólico e mesmo sua condição sexual é sempre
vivida-interpretada-projetada à luz de um sentido que se antecipa como “não dito” nas
estruturas corporais, que as excedem e que devem ser decifradas, elaboradas e vividas
através das linguagens, signos e imagens da cultura. A cultura marca, portanto, a
compreensão e a expressão da sexualidade, mesmo que não determine seu significado,
justamente pela complexidade da ontologia da pessoa, não se reduz a uma simples
construção cultural.
Na cultura contemporânea, porém, a exasperação do contraste entre natureza e
cultura, a negação da relevância do elemento corporal em contribuir para a definição da
sexualidade humana e a ênfase sobre a autodeterminação individual, livre de qualquer
referência objetiva de valor, levaram a uma extrema desvalorização do sexo como uma
realidade dada, fixa e estabilizada em favor do gênero como estrutura flexível e
desconstrutível e, portanto, em última análise, dependente da liberdade do sujeito. “A
modernidade tardia - escreve G. Hawkes –libertou a sexualidade dos limites de uma única
hegemonia e a substituiu com o pluralismo sexual. A transformação significativa que
desmantelou essas estruturas não foi uma consequência (direta) da permissividade, mas
sim de um movimento pelo qual a sexualidade entendida como fixidez, foi suplantado
pela identidade sexual como definida e estruturada pela escolha individual, onde a escolha
sexual se torna um dos muitos elementos da escolha do próprio estilo de vida”14.
Uma síntese extrema da ideologia de gênero, levada às suas consequências
extremas e paradoxais, pode ser encontrada neste emblemático texto de J. Butler,
expoente do feminismo da modernidade tardia:

13
Dele recordamos uma obra capital: M. FOUCAULT, Histoire de la sexualité, 3 voll., Gallimard, Paris
1976-1984 (trad it. Storia della sessualità, 3 voll., Feltrinelli, Torino 1978-1985).
14
G. HAWKES, A Sociology of Sex and Sexuality, Open University Press, Buckingham-Philadelphia
1996, 135-136.
Gênero é uma construção cultural. Consequentemente, não é o resultado causal do sexo,
nem é tão aparentemente fixo quanto o sexo é... Quando o status construído do gênero
é teorizado como um todo independente do sexo, o próprio gênero torna-se um artifício
flutuante, com a consequência de que homem e masculino podem significar tão
facilmente um corpo feminino quanto um masculino, e mulher e feminino um corpo
masculino tão facilmente quanto um feminino15.

Se Michel Foucault se propôs a reconstruir a genealogia do sujeito refazendo o


processo de construção, mas parando na realidade do corpo enquanto “dado”, Butler
individua no corpo enquanto “dado” uma manobra inteligente do poder falocrático para
ocultar os verdadeiros mecanismos do poder: um corpo “natural” não é dado porque não
é possível separam a fisicalidade dos corpos das regras que regulam sua determinação
histórica. Portanto, não é necessário privilegiar uma identidade em detrimento de outras,
nem devemos derrubar as relações de poder entre identidades, mas devemos rejeitar a
fronteira entre interioridade e exterioridade desestabilizando as identidades consideradas
legítimas. Esse projeto biopolítico é efetivamente sintetizado por Adriana Cavarero:

Em suma, a estrutura deve ser continuamente desconstruída: por meio de uma


proliferação imparável de posicionamentos simbólicos abrir o espaço para uma
democracia radical onde não há mais identidade fixa e, portanto, normal, normativo,
hegemônico16.

Se trata de um paradigma teórico altamente sugestivo que encontrou uma


elaboração iridescente especialmente no contexto do queer theory, a mais recente
evolução dos estudos gays e lésbicos em que se dá grande ênfase a situações de signos
diferentes, mas todas caracterizadas por ambições como hermafroditismo, travestismo,
transexualismo17. Um reflexo dessas posições, com impacto significativo no imaginário
coletivo, há toda uma série de exibições de caráter público, teatrais e políticos ao mesmo
tempo, como desfiles, eventos, manifestações contracorrentes destinadas a provocar
escândalo, fazer perguntas, e combater a homofobia. No mundo da comunicação de massa
e multiplicam os personagens que decidem sair de sua homossexualidade ou que se
apresentam com uma filiação ambígua, como pessoas transgênero. Não queremos nem
mesmo ignorar o papel desempenhado pelo ciberespaço para impulsionar até os sujeitos
ditos “normais” para acolher, pelo menos possibilidade, o polimorfismo transformista da
identidade de gênero: no espaço virtual é possível vivenciar identidades diferentes das
cotidianas, experimentando sexualidades alternativas, subvertendo a rígida lógica
heterossexual que rege a sequência sexo-gênero-desejo18

15
J. BUTLER, Gender trouble: Feminism and the subversion of Identity, Routledge, New York 1990,
6 (trad. it. Questione di genere. Il femminismo e la sovversione dell’identità, Laterza, Roma-Bari 2013).
16
F. RESTAINO - A. Cavarero , Le filosofie femministe, Paravia, Torino 2002, 157.
17
Parece que o primeiro uso do termo queer (em inglês “estranho”, “ambíguo”) para referir-se à teoria
gay e lésbica deve-se a Teresa De Lauretis durante uma conferência de 1990 e depois amplamente temático
em: T. DE LAURETIS, Soggetti eccentrici, Feltrinelli, Milano 1999, 104-106.
18
Ver. J.E. CAMPBELL, Getting it on Line: Cyberspace, Gay male Sexuality, and Embodied Identity,
Routledge, New York 2004. 2014; G. KIRKUPP - L. Janes - K. WOODWARD - F. HOVENDEN, The Gendered
Uma das possíveis derivações da ideologia do gênero foi recentemente
apresentado com a realização do transplante de útero. A técnica do transplante de útero
foi desenvolvida para permitir uma gravidez normal para mulheres com malformações
graves ou com agenesia uterina ou histerectomizada para patologias uterinas graves19. Os
critérios éticos inicialmente propostos internacionalmente – os chamados critérios de
Montreal20 – foram relatados a mulheres nessas situações clínicas, mas foram desafiados
em nome da ideologia do gênero reivindicando a capacidade de praticar um transplante
de útero em sujeitos biologicamente não femininos e, isto é, em pacientes do sexo
masculino ou transexuais (masculino para feminino)21. Os autores dos critérios de
Montreal replicaram que hoje a intervenção é inviável em corpos com anatomofisiologia
masculina devido a grandes dificuldades técnicas, mas, em um clima de absoluto
“politicamente correto”, eles afirmaram que não parece haver prima facie uma razão ética
para afastar a ideia de realizar um transplante de útero em um paciente do sexo masculino
ou transexual. Um paciente do sexo masculino ou trans que deseja carregar na barriga
(“Gestante”) um filho não tem direito a esse desejo menor que a contraparte femina. O
princípio da autonomia não é “específico do sexo”22

4. Perguntas certas. Respostas erradas.


No grande recipiente da ideologia de gênero, são reuniram alguns problemas que
agitam a opinião pública e os legisladores ocidentais, como a exaltação do livre exercício
da genitalidade fora relacionamento interpessoal, as intervenções para corrigir os
fenômenos no caso da disforia de gênero realizadas em nome do primado da
autoconsciência, da homologação de comportamentos heterossexuais e homossexuais,
representando estes não um desvio do respeito à chamada normalidade, mas
simplesmente uma variante minoritária da orientação sexual humana e,
consequentemente, o reconhecimento uniões homossexuais e sua plena equação com
uniões heterossexuais como modelos alternativos de família. A ideologia do gênero
fornece para esses problemas e as soluções propostas uma estrutura interpretativa global
e unitária.
Estamos convencidos de que existem desafios e problemas reais no campo da
antropologia e da ética sexual, mas estamos igualmente convencidos de que a teoria de
gênero dá respostas parciais e inadequadas a esses problemas reais. São questões e
instâncias que se agitam não só na cultura secular, mas também no mundo eclesial e que
são objeto de apaixonada reflexão no campo teológico.

Cyborg. A Reader, Routledge, London-New York 2000; A.R. STONE, The War of Desidere and Technology
at the Close of the Mechanical Age, MIT Press, Cambridge 1996 (trad. it. Desiderio e tecnologia: Il
problema dell’identità nell’era di internet, Feltrinelli, Milano 1997).
19
M. BRÄNNSTRÖM, L. JOHANNESSON, N. BOKSTRÖM N e outros. Livebirth after uterus
transplantation, in “The Lancet” 385 (2015) 607-616.
20
A. LEFKOWITZ - M. EDWARD - J. BALAYL, The Montreal Criteria for the Ethical Feasibility of Uterine
Transplantation, in “Trasplant International” 25 (2012) 439-447.
21
Cfr T.F. MURPHY, The ethics of helping transgender men and women to have children, in
“Perspectives in Biology and Medicine” 53 (2010) 46-60.
22
A. LEFKOWITZ -M. EDWARD - J. BALAYL, Ethical considerations in the era of uterine transplant:
an update of the Montreal criteria for the Ethical Feasibility of Uterine transplantation, in “Fertility and
Sterility” 100 (2013) 924-926 (citazione p. 924, trad. nossa).
Uma primeira crítica pode ser feita ao vínculo exclusivo entre sexualidade e
procriação: a antropologia sexual tradicional, herdeira da antropologia estóica,
compreendia a sexualidade de uma perspectiva naturalista e enfatizou, entre os muitos
aspectos possíveis da sexualidade humana, aquele procriador. Essa compreensão
unilateral, é claro, envolve uma ênfase na natureza binária dos papéis sexuais em função
de procriação. O foco era principalmente na função natural dos órgãos sexuais,
significando o termo “natural” em referência à capacidade de procriação. Nessa
perspectiva, a sexualidade humana não era particularmente conotada com respeito à
sexualidade animal e a compreensão da sexualidade tendia a nivelar a genitalidade. De
Aristóteles a Tomás, passando por Agostinho, a dualidade sexual ou, melhor, o
dimorfismo sexual foi explicado em relação ao fim procriativo. A ética sexual tradicional
a tomava como critério básico avaliar a regularidade do exercício da sexualidade e o uso
lícito do prazer sexual a fecundidade dos atos sexuais e sua contextualização na instituição
do matrimonial: se consideravam, por isso, ilícitos todos os atos sexuais extraconjugais e
“conta a natureza” todos os atos – também entre cônjuges – que não eram pelo menos
potencialmente procriadores. Contra a natureza, em particular, era considerada a
homossexualidade e os homossexuais ou sodomitas eram considerados sujeitos viciosos
e depravados, marcados por um duro estigma social e feitos sujeitos a flagrantes
injustiças.
O outro aspecto da tradição antropológica visado - não um errado - da teoria do
gênero é a suposta naturalidade das assimetrias de poder entre homens e mulheres.
Segundo os Antigos, a mulher, por motivos biológico, seria naturalmente inferior,
inadequada para dirigir e governar, moralmente frágil, destinada a um papel subalterno
na sociedade e, mesmo na família, sujeita ao chefe da família. A organização social, as
estruturas educacionais, os sistemas legislativos, as elaborações filosóficas, as
conveniências comportamentais foram todas orientadas para a perpetuação e
fortalecimento da ideologia machista, sugerindo a crianças e mulheres meninas
assumindo as ideias e papéis certos. O status quo foi reforçado pelos ensinamentos
tradicionais das religiões monoteístas, incluindo Cristandade. A leitura machista de
Efésios 5, por exemplo, parecia canonizar a sujeição unilateral das esposas aos maridos,
não obstante a reciprocidade de submissão invocada pelo versículo 21 daquele mesmo
capítulo paulino. A emancipação das mulheres da sujeição, sua saída de um estado de
minoria permanente e sua entrada como protagonista na sociedade soou para a
antropologia tradicional como um uma revolução inaceitável e desastrosa que violou a
ordem natural desejada do Criador.
Um terceiro aspecto problemático é constituído pela atitude em relação
homossexualidade, um exemplo marcante de “sexualidades diferentes”. A reprovação
moral do comportamento homossexual tem sido acompanhada nos séculos por
perseguição, exclusão social, marginalização e até de repressão física. A sensibilidade
contemporânea, compartilhada pelo mundo secular e católico, pede um sincero
reconhecimento da dignidade e dos direitos das pessoas homossexuais,
independentemente de sua orientação e proteção contra a discriminação injusta.
Essas questões são resolvidas pela teoria de gênero ao rejeitar o dualismo binário
dos sexos, negando a naturalidade da instituição matrimonial, advogando a liberação do
eros de qualquer restrição ética que não seja o consentimento, colocando a
homossexualidade e a heterossexualidade no mesmo nível. Os problemas que tal
ideologia quer responder são autênticos, mas a solução proposta é devastadora. Respostas
erradas para perguntas certas.
Uma limitação básica da teoria de gênero reside em sua incapacidade de
potencializar a totalidade da pessoa e a riqueza de seu ser, privilegiando de forma redutiva
alguns aspectos em detrimento de outros. Para não matar a autoconsciência, o corpo é
reduzido a um dado, um bruto, moldável a vontade como se não fosse sempre e
originalmente um corpo humano e, portanto, portadora de uma instância de sentido que
precede qualquer interpretação. Para reconhecer a igual dignidade da mulher, sua
diferença é negada e sua originalidade em relação ao homem. Para não ser forçado a um
gerar biologicamente necessitado e instintual, o amor humano se dissolve na carne e na
procriação como se a fecundidade fosse inimiga do desejo. Para defender as pessoas
homossexuais da injustiça e da violência e garantir seu gozo de direitos justos se
obscurece e se esvazia a diferença radical entre heterossexualidade e homossexualidade.
A questão é antropológica: o homem e o sua sexualidade são fluidizadas em um
construtivismo suscetível a infinitas desconstruções e reinterpretações e o fenômeno
humano e sua sexualidade, em particular, como realidades complexas23.
A sexualidade é uma realidade articulada que atravessa toda a condição humana.
Certamente não pode ser reduzida às estruturas genitais e às funções reprodutivas, mas
deve ser entendida em uma visão geral da realidade humana porque é a pessoa em sua
totalidade que é sexuada, em um nível biológico, em um nível psicológico, em um nível
espiritual. Assim se expressou a instrução Persona Humana em 1975:

A pessoa humana, na opinião dos cientistas do nosso tempo, é assim profundamente


marcada pela sexualidade, que deve ser considerada como um dos fatores que conferem
à vida de cada pessoa os principais traços que a distinguem. Do sexo, de fato, a pessoa
humana deriva as características que, a nível biológico, psicológico e espiritual, a
tornam homem ou mulher, influenciando grandemente o processo de seu
desenvolvimento rumo à maturidade e sua inserção na sociedade24.

23
As tomadas de posições contra os excessos dessa ideologia são inúmeras. Para uma primeira
abordagem destacamos os itens Gênero, Ideologia do gênero, Nova definições de gênero,
Homoparentalidade e Homogenitorialidade em PONTIFICO CONSIGLIO PER LA FAMIGLIA, Lexicon. Termini
ambigui e discussi su famiglia vita e questioni etiche, Dehoniane, Bologna 20062. Una visione d’insieme
in: F. FACCHINI (a cura di), Natura e cultura nella questione del genere, Dehoniane, Bologna 2015.
Mais aberto a aceitar alguns aspectos da teoria de gênero: G. CALTAGIRONE – C. MILITELLO (aos
cuidados de), L’identità di genere. Pensare la differenza tra scienza, filosofia e teologia, Dehoniane,
Bologna 2015; A. FUMAGALLI, La questione gender. Una sfida antropologica, Queriniana, Brescia 2015.
Também pode ser visto: G. AMATO, Gender (d)istruzione. Le nuove forme di indottrinamento nelle scuole
italiane, Fede & cultura, Verona 2015; G. KUBY, Gender Revolution. Il relativismo in azione, Canta galli,
Siena 2008; D. O’LEARY, Maschi o femmine? La guerra del genere, Rubbettino, Soveria Mannelli (CS)
2006; PALAZZANI L., Sex/gender gli equivoci dell’uguaglianza, Giappichelli,Torino 2011; M. PEETERS,
Gender. Una questione politica e culturale, San Paolo, Roma 2014.
24
CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ, Declaração sobre algumas questões de ética sexual.
Pessoa Humana, 29-12-1975, n. 1 (EV 5,1717).
Uma vez que a pessoa se autocompreende pela experiência fundamental e
irredutível da corporeidade, sempre uma corporeidade sexual, cada um de nós não pode
se entender completamente, independentemente da conotação sexual de sua existência
corporal. Essa autocompreensão é um processo não realizado num vazio absoluto, fora
do espaço e do tempo, mas sempre em contextos históricos e culturais específicos, dentro
de uma interpretação geral do mundo humano e através dos códigos linguísticos e
simbólicos um certo grupo e um certo tempo. A autocompreensão do próprio existir
enquanto seres sexuados configura-se assim como um processo de mediação e unificação
realizada pelo sujeito entre múltiplos elementos de diferentes origens, naturais e culturais,
físicas e psíquicas, conscientes e inconsciente, necessitados e livre.
A vivência da sexualidade passa por um processo de mediação, reflete e sofre os
acontecimentos, dificuldades, fracassos, derivando deles um componente inevitável de
relatividade. As regras que as sociedades têm elaborado em diferentes épocas e lugares
para ordenar o exercício da sexualidade, refletem sensibilidades dificilmente reduzíveis à
unidade. Se podem porém individuar – em nossa opinião – constantes antropológicas que
estão enraizadas na natureza da pessoa. A ligação natural entre sexualidade e geração
representa uma primeira evidência antropológica de que diferentes culturas têm
valorizado e regulamentado, dada a importância da geração para a vida social e individual.
Ao lado disso, o traço típico da intuição moral originária sobre a sexualidade humana,
precedendo qualquer especificação normativa, é o vínculo entre o exercício da
sexualidade e o uma relação interpessoal estável entre homem e mulher que diríamos
conjugal. “A sexualidade – lê-se num texto emblemático do Catecismo da Igreja Católica
– marca todos os aspectos da pessoa humana, na unidade de seu corpo e alma. Envolve
especialmente a energia emocional, a capacidade de amar e procriar e, de forma mais
geral, a aptidão para estabelecer relações de comunhão com os outros”25.
A antropologia personalista tematiza essas instâncias e responde, de modo
inclusivo e não exclusivo, às graves questões subjacentes à teoria de gênero. A
sexualidade só tem um rosto plenamente humano quando é assumida nas relações livres
entre pessoas humanas. Homem e mulher são formas diferentes de concretizar o único
projeto humano, iguais em dignidade, diferentes para se encontrarem. Em uma visão
unitária e multidimensional da pessoa, corpo e autoconsciência não se opõem porque o
corpo nada mais é do que a revelação do Eu e nele se antecipa um sentido de abertura
fundamental à comunhão que a pessoa abraça livremente. O próprio tema da comunhão
interpessoal, alternativa a uma antropologia individualista, deve tornar-se o ponto de
partida comum para uma releitura da antropologia sexual e permite apreender o telos e o
a realização ideal da sexualidade humana. Se, de fato, a comunhão é abertura de mim ao
outro, a plenitude conjugal da relação exige a diversidade sexual significada no corpo,
símbolo e forma da pessoa, e a fecundidade é sinal e selo da riqueza criativa dessa
comunhão com a alteridade.
Sem prejuízo do significado antropológico da sexualidade heterossexual e da
relação conjugal, o mesmo personalismo nos obriga, no entanto, repensar a atitude
tradicional em relação à homossexualidade além da simples estigmatização de

25
Cathechismus Catholicae Ecclesiae, 15-8-1997, n. 2332 (Nossa tradução).
comportamentos objetivamente desordenados26. Um desafio que exige uma reflexão
serena e equilibrada diz respeito à valorização de elementos humanamente positivos que
possam ser também presente numa relação entre iguais, sem que isso implique uma
confusão entre casais homossexuais e casais conjugais e uma homologação de estilos
sexuais radicalmente diferentes.

Conclusões
A ideologia de gênero não se limita ao movimento feminista ou aos proponentes
da queer theory, mas está se espalhando com o apoio de poderosos organismos
internacionais, incluindo a ONU, começando, pelo menos, a partir de Conferência de
Pequim sobre as Mulheres em 1995, por meio de intervenções direcionadas nos
currículos escolares de todas as séries, por meio de emendas à lei de legislação familiar e
anti-homofobia promulgada sob o pretexto de direitos seres humanos e a tolerância civil,
através dos meios de comunicação social – especialmente cinema, televisão, blogs
temáticos – que “normalizam” comportamentos e estilos de vida sexuais e familiares
“alternativos”. São colocadas em discussão realidades humanas essenciais e
indispensáveis: homem e mulher em sua especificidade e reciprocidade, corporeidade
masculina e feminina como expressão da existência pessoal, o sentido humano de procriar
em contexto da relação entre homem e mulher, o amor conjugal como vida humana
totalizante, a família natural como comunidade insubstituível de vida e de amor. Alguns
serão jogados nestes terrenos controversos dos maiores desafios para o anúncio do
Evangelho no século XXI.

MAURIZIO P. FAGGIONI OFM

26
Para mais informações, consulte as páginas dedicadas a essas questões no nosso volume: M.P.
FAGGIONI, Sessualità, matrimonio, famiglia, Dehoniane, Bologna 2010. Sobre a homossexualidade, do
ponto de vista e do personalismo católico: L. MELINA - S. BELARDINELLI (a cura di), Amare nella differenza.
Le forme della sessualità e il pensiero cattolico: studio interdisciplinare, Cantagalli- Editrice Vaticana,
Siena – Città del Vaticano 2012

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