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O Império Sexual
A noção de sexopolítica toma Foucault como ponto de partida, contestando, porém, sua
concepção de política, segundo a qual o biopoder não faz mais do que produzir as
disciplinas de normalização e determinar as formas de subjetivação. Ao nos inspirarmos
nas análises de Maurizio Lazzaroto,7 que distingue o biopoder da potência de vida,
podemos compreender os corpos e as identidades dos anormais como potências
políticas, e não simplesmente como efeitos dos discursos sobre o sexo. Isso significa
que à história da sexualidade iniciada por Foucault devemos acrescentar vários
capítulos. A evolução da sexualidade moderna está diretamente relacionada com a
emergência disso que podemos chamar de novo “Império Sexual” (para ressexualizar o
Império de Hardt e de Negri). O sexo (os órgãos sexuais, a capacidade de reprodução,
os papéis sexuais para as disciplinas modernas…) é correlato ao capital. A sexopolítica
não pode ser reduzida à regulação das condições de reprodução da vida nem aos
processos biológicos que se “referem à população”. O corpo straight é o produto de
uma divisão do trabalho da carne, segundo a qual cada órgão é definido por sua função.
Uma sexualidade qualquer implica sempre uma territorialização precisa da boca, da
vagina, do ânus. É assim que o pensamento straight assegura o lugar estrutural entre a
produção da identidade de gênero e a produção de certos órgãos como órgãos sexuais e
reprodutores. Capitalismo sexual e sexo do capitalismo. O sexo do vivente revela ser
uma questão central da política e da governabilidade.
O corpo não é um dado passivo sobre o qual age o biopoder, mas antes a potência
mesma que torna possível a incorporação prostética dos gêneros. A sexopolítica tornase
não somente um lugar de poder, mas, sobretudo, o espaço de uma criação na qual se
sucedem e se justapõem os movimentos feministas, homossexuais, transexuais,
intersexuais, transgêneros, chicanas, pós-coloniais… As minorias sexuais tornam-se
multidões. O monstro sexual que tem por nome multidão torna-se queer.
O corpo da multidão queer aparece no centro disso que chamei, para retomar uma
expressão de Deleuze, de um trabalho de “desterritorialização” da heterossexualidade.
Uma desterritorialização que afeta tanto o espaço urbano (é preciso, então, falar de
desterritorialização do espaço majoritário, e não do gueto) quanto o espaço corporal.
Esse processo de “desterritorialização” do corpo obriga a resistir aos processos do
tornar-se “normal”. Que existam tecnologias precisas de produção dos corpos “normais”
ou de normalização dos gêneros não resulta um determinismo nem uma impossibilidade
de ação política. Pelo contrário, porque porta em si mesma, como fracasso ou resíduo, a
história das tecnologias de normalização dos corpos, a multidão queer tem também a
possibilidade de intervir nos dispositivos biotecnológicos de produção de subjetividade
sexual.
Podemos pensar a condição para evitar duas armadilhas conceituais e políticas, duas
leituras (infelizes, mas possíveis) de Foucault. É preciso evitar a segregação do espaço
político que faria da multidão queer um tipo de margem ou de reservatório de
transgressão. Não precisamos cair na armadilha da leitura liberal ou neoconservadora de
Foucault que nos levaria a pensar as multidões queer em oposição às estratégias
identitárias, tendo a multidão como uma acumulação de indivíduos soberanos e iguais
perante a lei, sexualmente irredutíveis, proprietários de seus corpos e reivindicando seus
direitos ao prazer inalienável. A primeira leitura objetiva uma apropriação da potência
política dos anormais numa ótica de progresso; a segunda ignora os privilégios da
maioria e da normalidade (hétero)sexual, não reconhecendo que esta última é uma
identidade dominante. É preciso admitir que os corpos não são mais
dóceis”Desidentificação” (para retomar a formulação de De Lauretis), identificações
estratégicas, desvios das tecnologias do corpo e desontologização do sujeito da política
sexual são algumas das estratégias políticas das multidões queer.
Desidentificação surge das “sapatas” que não são mulheres, das bichas que não são
homens, das trans que não são homens nem mulheres. Desse ponto de vista, se Wittig
foi retomada pelas multidões queer, é precisamente porque sua declaração segundo a
qual “as lésbicas não são mulheres” é um recurso que permite opor-se à
desidentificação, à exclusão da identidade lésbica como condição de possibilidade de
formação do sujeito político do feminismo moderno. Identificações estratégicas. As
identificações negativas como “sapatas” ou “bichas” são transformadas em possíveis
lugares de produção de identidades resistentes à normalização, atentas ao poder
totalizante dos apelos à “universalização”. Sob o impacto da crítica pós-colonial, as
teorias queer dos anos 1990 contaram com enormes recursos políticos da identificação
“gueto”; identificações que tomariam um novo valor político, já que, pela primeira vez,
os sujeitos de enuciação eram as “sapatas”, as “bichas”, os negros e as próprias pessoas
transgêneros. Aos que se agitam sob a ameaça de guetização, os movimentos e as
teorias queer respondem por meio de estratégias ao mesmo tempo hiperidentitárias e
pós-identitárias. Fazem uma utilização máxima dos recursos políticos da produção
performativa das identidades desviantes. A força política de movimentos como Act Up,
Lesbian Avengers ou Radical Fairies vem de sua capacidade para investir nas posições
de sujeitos “abjetos” (esses “maus sujeitos” que são os soropositivos, as “sapatas”, os
“viados”) para fazer disso lugares de resistência ao ponto de vista “universal”, à história
branca, colonial e straight do “humano”.
Desontologização do sujeito da política sexual. Nos anos 1990, uma nova geração
emanada dos próprios movimentos identitários começou a redefinir a luta e os limites
do sujeito político “feminista” e “homossexual”. No plano teórico, essa ruptura
inicialmente assumiu a forma de uma revisão crítica sobre o feminismo, operada pelas
lésbicas e pelas pós-feministas americanas, apoiando-se sobre Foucault, Derrida e
Deleuze. Reivindicando um movimento pós-feminista ou queer, Teresa de Lauretis,11
Donna Haraway,12 Judith Butler,13 Judith Halberstam14 (nos Estados Unidos), Marie-
Hélène Bourcier15 (na França), mas também as lésbicas chicanas como Gloria
Andalzua16 ou as feministas negras como Barbara Smith17 e Audre Lorde, atacarão a
naturalização da noção de feminilidade que havia sido, inicialmente, a fonte de coesão
do sujeito do feminismo. A crítica radical do sujeito unitário do feminismo, colonial,
branco, proveniente da classe média alta e dessexualizado foi posta em marcha. Se as
multidões queer são pós-feministas não é porque desejam ou podem atuar sem o
feminismo. Pelo contrário, elas são o resultado de um confronto reflexivo do feminismo
com as diferenças que o feminismo apagou em proveito de um sujeito político “mulher”
hegemônico e heterocêntrico.
Quanto aos movimentos de liberação gays e lésbicos, uma vez que seu objetivo é a
obtenção da igualdade de direitos e que se utilizam, para isso, de concepções fixas de
identidade sexual, contribuem para a normalização e a integração dos gays e das
lésbicas na cultura heterossexual dominante, favorecendo políticas familiares, tais como
a reivindicação do direito ao casamento, à adoção e à transmissão do patrimônio. É
contra esse essencialismo e essa normalização da identidade homossexual que as
minorias gays, lésbicas, transexuais e transgêneros têm reagido. Algumas vozes se
levantam para questionar a validade da noção de identidade sexual como único
fundamento da ação política e para opor uma proliferação de diferenças (de raça, de
classe, de idade, de práticas sexuais não normativas, de deficientes). A noção
medicalizada da homossexualidade, que data do século XIX e define a identidade pelas
práticas sexuais, foi abandonada em proveito de uma identificação política e estratégica
das identidades queer. A homossexualidade bem policiada e produzida pela scienta
sexualis do século XIX explodiu; foi transbordada por uma multidão de “maus sujeitos”
queer.
A política das multidões queer emerge de uma posição crítica a respeito dos efeitos
normalizantes e disciplinares de toda formação identitária, de uma desontologização do
sujeito da política das identidades: não há uma base natural (“mulher”, “gay” etc.) que
possa legitimar a ação política. Não se pretende a liberação das mulheres da “dominação
masculina”, como queria o feminismo clássico, já que não se apoia sobre a “diferença
sexual”, sinônimo da principal clivagem da opressão (transcultural, trans-histórica), que
revelaria uma diferença de natureza e que deveria estruturar a ação política. A noção de
multidão queer se opõe decididamente àquela de “diferença sexual”, tal como foi
explorada tanto pelo feminismo essencialista (de Irigaray a Cixous, passando por
Kristeva) como pelas variações estruturalistas e/ou lacanianas do discurso da psicanálise
(Roudinesco, Héritier, Théry…). Ela se opõe às políticas paritárias derivadas de uma
noção biológica da “mulher” ou da “diferença sexual”. Opõe-se às políticas
republicanas universalistas que concedem o “reconhecimento” e impõem a “integração”
das “diferenças” no seio da República. Não existe diferença sexual, mas uma multidão
de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências
de vida. Essas diferenças não são “representáveis” porque são “monstruosas” e colocam
em questão, por esse motivo, os regimes de representação política, mas também os
sistemas de produção de saberes científicos dos “normais”. Nesse sentido, as políticas
das multidões queer se opõem não somente às instituições políticas tradicionais, que se
querem soberanas e universalmente representativas, mas também às epistemologias
sexopolíticas straight, que dominam ainda a produção da ciência.
Referências bibliográficas
ATKINSON, Ti-Grace. “Radical Feminism.” In: ______. Notes from the Second Year.
New York: Radical Feminism, 1970. p. 32-37.
HARAWAY, Donna. Simians, Cyborgs, and Women: The Reinvention of Nature. New
York: Routledge, 1991.
HULL, Gloria; SCOTT, Bell; SMITH, Barbara. All the Women are White, All the Black
are Men, But Some of Us are Brave: Black Women’s Studies. New York: Feminist
Press, 1982.
PRECIADO, Beatriz. “Deleuze ou l’amour qui n’ose pas dire son nom”. In: ______.
Manifeste contrasexuel. Paris: Balland, 2000.
Notas
1 Este artigo foi traduzido por Cleiton Zóia Münchow e Viviane Teixeira Silveiras a
partir do texto original em francês, publicado em 2003 na revista Multitudes (Beatriz
PRECIADO, 2003) .
2 Audre LORDE, 1984.
3 Ti-Grace ATKINSON, 1970 e 1974.
4 RADICALESBIANS, 1971.
5 Monique WITTIG, 2001.
6 Michel FOUCAULT, 1976.
7 Maurizio LAZZARATO, 2002.
8 Para uma análise detalhada dessa utilização de metáforas homossexuais, ver capítulo
intitulado “Deleuze ou l’amour qui n’ose pas dire son nom”, do Manifeste
Contrasexuel, de 2000.
9 LE MONDE, 2003.
10 Félix GUATTARI, 1973, p. 2-3.
11 Teresa DE LAURETIS, 1987.
12 Donna HARAWAY, 1991.
13 Judith BUTLER, 1990.
14 Judith HALBERSTAM, 1998.
15 Marie-Hélène BOUCIER, 2001.
16 Gloria ANDALZUA, 1987.
17 Gloria HULL, Bell SCOTT e Barbara SMITH, 1982.