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PAUL B. PRECIADO , nascido na Espanha como Beatriz
Preciado, é um dos fundadores da teoria queer. Com s61ida
formaqäo filos6fica, discipulo de autores como Foucault,
Deleuze e Derrida, e em vivo debate com Judith Butler,
Preciado renovou a perspectiva sobre as dissidéncias
de género em suas relagöes com o capitalismo. Com sua
escrita caustica, é leitura obrigat6ria para repensar a sub-
jetividade e as novas figuras da sexualidade contemporå-
nea. Formado pela Universidade de Princeton, lecionou
sobretudo em Paris, Barcelona e Nova York.
Depois do sucesso de seu Manifesto Contrassexual entre
n6s, e com o langamento de Testo Junkie: Sexo, Drogas e
Biopolitica na Era Farmacopornogråfica, o pr6ximo livro
do autor pela n-l ediqöes, jå em fase de preparaqäo, é
Pornotopia.
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Seguindo as intuiqöes de Michel Foucault, Monique mesma forma, Krafft-Ebing cria uma enciclopédia das
denomino uma das formas domi-
Wittig e Judith Butler, sexualidades normais e perversas em que identidades
nantes desta aqäo biopolitica, que emerge com o capita- sexuais se tornam objetos de conhecimento, vigilåncia e
lismo disciplinar, como sexopolitica.2 0 sexo, sua verdade, repressäo juridica.4 No final do século XIX, leis de crimina-
sua visibilidade, suas formas de exteriorizaqäo; a sexua- lizaqäo da sodomia espalham-se pela Europa. Codifica-se
Iidade e as formas de prazer normais e pat016gicas; e a visualmente a "diferenqa sexual" como verdade anatömica.
raga, em sua pureza ou degeneraqäo, säo trés ficqöes Concebem-se como entidades anatömicas as trompas de
somåticas poderosas que obcecaram o mundo ocidental Fa16pio, as glåndulas de Bartholin e o clit6ris. Uma das
desde o século XVIII, chegando a definir o escopo de toda diferenqas politicas elementares do Ocidente (ser homem
atividade te6rica, cientifica e politica contemporånea. Säo ou mulher) poderia ser resumida a uma equaqäo banal: ter
ficqöes somåticas näo porque lhes falte realidade material, ou näo ter um penis de um centimetro e meio no momento
mas porque sua existéncia depende do que Judith Butler do nascimento. Os primeiros experimentos de insemina-
denominou repetigäo performativa de processos de cons- qäo artificial foram realizados em animais. Com a ajuda
truqäo politica.3 de instrumentos mecånicos, realizaram-se intervenqöes
O sexo se tornou parte täo importante dos planos de no dominio da produqäo do prazer feminino; enquanto,
poder que o discurso sobre a masculinidade e a femi- por um lado, se proibiu e se controlou a masturbaqäo, por
nilidade e as técnicas de normatizaqäo das identidades outro, oorgasmo feminino foi medicalizado e entendido
sexuais transformaram-se em agentes de controle e como crise de histeria.5 0 orgasmo masculino foi mecani-
padronizaqäo da Vida. Em 1868, as identidades hetero e zado e domesticado por meio de uma incipiente codifica-
homossexual foram inventadas em uma esfera de empi- qäo pornogråfica... A maquinaria estava pronta. O corpo,
rismo, classificaqäo taxonömica e psicopatologia. Da d6cilou raivoso, estava preparado.
Poderiamos denominar de "império sexual" (se puder-
mos nos permitir sexualizar a casta expressäo de Hardt
Gallimard, 1976, pp. 136-139 [Ed. bras.: Histöria da sexualidade: a
vontade de saber, trad. Maria Thereza Albuquerque da Costa. Rio de
Paz e Terra, 2014]; ver também Michel Foucault, Naissance de
Janeiro:
4 Richard Von Krafft-Ebing, Psychopathia Sexualis: The Classic Study of
la biopolitique: Cours au collége de France, 1978-1979. Paris: Seuil, 2004
Deviant Sex. New York: Arcade, 1998.
[Ed. bras.: Nascimento da biopolitica, trad. Eduardo Brandäo. Säo Paulo:
Martins Fontes, 2008]. 5 Para uma hist6ria visual da histeria, ver Georges Didi-Huberman,
Invention of Hysteria: Charcot and the Photographic Iconography of
2 Beatriz Preciado, "Multitudes queer". Multitudes, Primavera de 2003, the Salpétriére. Cambridge, MA: MIT Press, 2004 [Ed. bras.: Invenqäo
pp. 17-25.
da histeria: Charcot e a iconografia fotogråfica da Salpétriére, trad.
3 Ver Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015]. Para uma hist6ria das
Identity. New York: Routledge, 1990 [Ed. bras.: Problemas de género: tecnologias do corpo histérico, ver Rachel P. Maines, The Technology
feminismo e a subversäo da identidade, trad. Renato Aguiar. Rio de of Orgasm: "Hysteria," Vibrators and Women's Sexual Satisfaction.
Janeiro: Civilizaqäo Brasileira, 2003]. Baltimore: John Hopkins University Press, 2001.
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que usa o sexo, a sexua-
e Negri)6 esse regime biopolitico contra a masturbaqäo e a homossexualidade) näo tem
Iidade e a identidade sexual como centro somätico- género. Nem feminino nem masculino, o anus produz
-politico para produqäo e governo da subjetividade. A um curto-circuito na divisäo dos sexos. Como centro da
do final do século
sexopolftica disciplinadora ocidental passividade primordial e abjeto por exceléncia, posicio-
XIX e durante boa parte do século xx resume-se a uma nado perto do detrito e da merda, serve como o buraco
regulaqäo das condiqöes de reproduqäo da Vida ou aos negro universal pelo qual avanqam os géneros, os sexos,
processos bi016gicos que "dizem respeito ä populaqäo". O Ocidente é desenhado como
as identidades e o capital.
Para a sexopolitica do século XIX, o corpo heterossexual um tubo com dois orificios: uma boca emissora de sinais
é o artefato que vai alicerqar o maior sucesso do governo. püblicos e um anus impenetråvel ao redor do qual gira
A mentalidade heterossexual (straight mind), para reto- a subjetividade masculina e heterossexual que adquire
mar a expressäo que Monique Wittig elaborou nos anos status de corpo socialmente privilegiado.
1980 para designar a heterossexualidade näo como uma
pråtica sexual, mas como um regime politico,7 assegura a
relaqäo estrutural entre a produqäo da identidade sexual
e a produqäo de certas partes do corpo (em detrimento
de outras) como 6rgäos reprodutivos. Uma importante
tarefa desse trabalho disciplinador consiste em extrair o
anus dos circuitos de produqäo e prazer. Nas palavras de
Deleuze e Guattari, "o anus foi o primeiro 6rgäo privati- 30 CA
zado, colocado fora do campo social. O anus serviu como
modelo de toda privatizaqäo posterior, ao mesmo tempo
em que o dinheiro veio para expressar o novo estado de
abstraqäo de fluxos".8 0 anus como centro de produqäo
de prazer (e, neste sentido, intimamente relacionado ä
boca ou ä mäo, 6rgäos que seräo também fortemente ÄNVS
MKxtMA
controlados pela regulaqäo sexopolitica do século XIX VAGIAJæ
cog
6 Michael Hardt e Antonio Negri, Empire. Paris: Exils, 2000 [Ed. bras:
Império, trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001].
e a "mulher", o receptåculo reprodutivo. No regime sobe- com Thomas Laqueur, a invenqäo do que poderia ser cha-
rano, a masculinidade é a finica ficqäo somatica com poder mado de estética da diferenqa sexual (e racial) é necessaria
politico. A masculinidade (incorporada pelas figuras do rei para estabelecer uma hierarquia politico-anatömica entre
e do pai) é definida por técnicas necropoliticas: o rei e o pai os sexos (masculino e feminino) e as ragas (brancos e näo
säo aqueles que tém o direito de tirar a Vida. A atribuiqäo brancos) em caso de agitaqöes resultantes dos movimentos
do sexo depende näo s6 da morfologia exterior dos 6rgäos de revoluqäo e liberaqäo que clamam pela ampliaqäo da
sexuais, mas, e sobretudo, da capacidade reprodutiva e esfera püblica para mulheres e estrangeiros. E aqui que a
do papel social. Assim, por exemplo, uma mulher barbuda verdade anatömica passa a funcionar como a legitimaqäo
capaz de engravidar, colocando uma crianqa no mundo e de uma nova organizaqäo politica do campo social.10
cuidando dela, é considerada uma mulher, independente- A mudanqa
que vai dar ä luz o regime disciplinar
mente da forma e do tamanho de sua vulva. Nessas confi- comeqa com a gestäo politica da sifilis, o advento da
guragöes somatopoliticas, o sexo e a sexualidade (observe diferenqa sexual, a repressäo técnica da masturbaqäo
e a invengäo das identidades sexuais.ll O auge dessas
9 Thomas Laqueur, Making Sex: Body and Gender from the Greeks to
10 Thomas Laqueur, Making Sex, op. cit., pp. 149-192.
Freud. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992, pp. 63-108 [Ed.
bras.: Inventando o sexo: corpo e género dos gregos a Freud, trad. Vera 11 Ver Thomas Laqueur, Solitary sex. A cultural history of masturbation.
Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumarå, 2001]. New York: Zone Books, 2003.
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tecnologias rigidas e pesadas de produqäo de identidade Illidiåtica, intensificado pelas técnicas digitais e de pro-
sexual serå alcanqado em 1868, com a patologizaqäo da cessamento de dados e pelas redes de comunicaqäo, serå
homossexualidade e a normatizaqäo burguesa da heteros- uma das caracteristicas do regime farmacopornogråfico
sexualidade. A partir de entäo, o aborto e o infanticidio que comeqa sua expansäo em meados do século xx.
p6s-parto estaräo sujeitos ä vigilåncia e ä puniqäo da lei. Os dispositivos sexopoliticos que se desenvolvem com
O corpo e seus produtos se tornaräo propriedade do mas- a estética da diferenqa sexual e das identidades sexuais
culino/marido/pai e, por extensäo, do Estado e de Deus. no século XIX säo técnicas mecånicas, semi6ticas e arqui-
Nesse sistema de reconhecimento, qualquer divergén- tetönicas de naturalizaqäo do sexo. E aqui podemos listar
cia corporal da norma (como tamanho e forma dos 6rgäos uma longa coleqäo de fenömenos resultantes: o atlas de
sexuais, pilosidade facial e forma e tamanho dos seios) anatomia sexual, os tratados de otimizaqäo dos recursos
é considerada uma monstruosidade, uma violaqäo das naturais proporcional ao crescimento da populaqäo, os
leis da natureza ou uma perversäo, uma violaqäo das leis do travestismo ou
textos juridicos sobre a criminalizaqäo
morais. Da mesma forma que a diferenqa sexual é ele- da sodomia, a amarraqäo das mäos da menina mastur-
vada a uma categoria näo apenas natural, mas também badora ä cama, ferros que separam as pernas das jovens
transcendental (superando os contextos hist6ricos e cul- histéricas, filmes fotogråficos de nitrato de prata sobre os
turais), as diferenqas entre homossexualidade e heteros- quais se gravam as imagens do anus dilatado de homos-
sexualidade aparecem como anatömicas e psic016gicas, prendem o
sexuais passivos, as camisas de forga que
e o mesmo acontece com o sadismo, o masoquismo e a corpo indomåvel da mulher masculinizada. .. Estes dis-
normalidade e perversäo. Aquelas que
pedofilia; entre positivos para a produqäo da subjetividade sexual tomam
eram consideradas simples pråticas sexuais se
até entäo a forma de arquiteturas politicas exteriores ao corpo. Seus
transformam em identidades e condiqöes que devem ser sistemas tém um comando firme das politicas ortopé-
estudadas, registradas, perseguidas e caqadas, castigadas dicas e dos exoesqueletos disciplinares. O modelo para
e curadas. Cada corpo, como nos diz Foucault, torna-se estas técnicas de subjetivaqäo, de acordo com Foucault,
"um individuo que é preciso corrigir".12 Inventam-se, assim, poderia ser a arquitetura de Jeremy Bentham para a
a crianqa masturbadora e o monstro sexual. Sob este novo fåbrica-prisäo (o pan6ptico, em particular), o asilo ou
olhar epistem016gico, a mulher barbada se transforma ou os quartéis militares. Sepensarmos os dispositivos de
em objeto de observaqäo cientifica ou em atraqäo circense subjetivaqäo sexopolitica, precisamos falar também da
no novo aglomerado urbano. Este duplo movimento em expansäo de uma rede de "arquitetura doméstica". Estas
direqäo vigilåncia médico-juridica e ä espetacularizaqäo extensivas, intensivas e, sobretudo, intimas formas
arquitetönicas incluem uma redefiniqäo dos espaqos
privados e püblicos, a administragäo do comércio sexual,
12 Michel Foucault, Les anormaux. Cours au Collége de France, 1974-
1975. Paris: Gallimard, 1999, p. 53 [Ed. bras.: Os anormais, trad. Eduardo mas também dispositivos ginec016gicos e invenqöes da
Brandäo. Säo Paulo: WMF Martins Pontes, 2010]. ortopedia sexual, assim como novas técnicas midiåticas
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os mecanismos ortopédico-sexuais e arquitetönicos disci-
plinadores foram absorvidos por técnicas microinformåti-
cas leves e de råpida transmissäo, bem como por técnicas
audiovisuais e farmac016gicas. Se a arquitetura e a orto-
pedia servem como modelos para entender a relaqäo
corpo-poder na sociedade disciplinadora, na sociedade
farmacopornogråfica os modelos de controle do corpo säo
microprotéticos: agora, o poder atua por meio de molécu-
las incorporadas ao nosso sistema imun016gico; o silicone
toma a forma de seios, neurotransmissores alteram nos-
sas percepgöes e comportamento; hormönios produzem
seus efeitos sistémicos sobre a fome, o sono, a excitaqäo
sexual, a agressividade e a decodificaqäo social da nossa
feminilidade e masculinidade.
Testemunhamos progressivamente a miniaturizaqäo,
internalizaqäo e introversäo reflexiva (movimento de
torqäo para o interior, para o espaqo considerado como
intimo e privado) dos mecanismos de controle e vigi-
låncia do regime sexopolitico disciplinador. Essas novas
tecnologias suaves de microcontrole adotam a forma do
corpo que controlam, transformam-se em corpo, até se
tornarem inseparåveis e indistinguiveis dele, acabando
como soma-tecno-subjetividades. O corpo jå näo habita
os espaqos disciplinadores: estå habitado por eles. A
estrutura organica e biomolecular do corpo é o filtimo
esconderijo desses sistemas biopoliticos de controle. Esse
momento contém todo o horror e a exaltaqäo da poténcia
politica do corpo.
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