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TESTO JUNKIE

Sexo, drogas e biopolitica na Paul B. Preciado


era farmacopornogråfica
Paul B. Preciado

O n-l ediqöes, 2018

Embora adote a maioria dos usos editoriais

instituiqöes normativas, pois considera a ediqäo


criaqäo que deve interagir
do åmbito brasileiro,
a n-l ediqöes näo segue necessariamente as convenqöes das
um trabalho de
com a pluralidade de linguagens e a
especihcidade de cada obra publicada.
TESTO
COORDENACÄO EDITORIAL Peter Pål Pelbart
e Ricardo Muniz Fernandes
ASSISTENTE EDITORIAL Inés Mendonqa
PROJETO GRÅFICO Erico Peretta
TRADUCÄO Maria Paula Gurgel Ribeiro
JUNKIE
Sexo, drogas e biopolitica na
Com a contribuiqäo de Verönica Daminelli Fernandes
PREPARACÄO Tadeu Breda e Fernanda Mello era farmacopornogråfica
REVISÄO Ana Godoy e Renata Monken

A reproduqäo parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso


privado ou coletivo, em qualquer meio, estå autorizada, desde
que citada a fonte. Se for necessåria a reproduqäo na integra,
solicita-se entrar em contato com os editores.

n-ledicoes.org
PAUL B. PRECIADO , nascido na Espanha como Beatriz
Preciado, é um dos fundadores da teoria queer. Com s61ida
formaqäo filos6fica, discipulo de autores como Foucault,
Deleuze e Derrida, e em vivo debate com Judith Butler,
Preciado renovou a perspectiva sobre as dissidéncias
de género em suas relagöes com o capitalismo. Com sua
escrita caustica, é leitura obrigat6ria para repensar a sub-
jetividade e as novas figuras da sexualidade contemporå-
nea. Formado pela Universidade de Princeton, lecionou
sobretudo em Paris, Barcelona e Nova York.
Depois do sucesso de seu Manifesto Contrassexual entre
n6s, e com o langamento de Testo Junkie: Sexo, Drogas e
Biopolitica na Era Farmacopornogråfica, o pr6ximo livro
do autor pela n-l ediqöes, jå em fase de preparaqäo, é

Pornotopia.

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4. HISTORIA DA TECNOSSEXUALIDADE

A descontinuidade da hist6ria, do corpo, do poder: Foucault


descreve as transformaqöes da sociedade europeia do final
do século XVIII a partir do que ele chama de uma "socie-
dade soberana" para uma "sociedade disciplinadora", o
que vé como o deslocamento de uma forma de poder que
decide e ritualiza a morte para uma nova forma de poder
que planeja tecnicamente a Vida em termos de populaqäo,
saüde e interesse nacional. Biopouvoir (biopoder) é o termo
com que se refere a essa nova forma de poder produtivo,
difuso eem expansäo. Ultrapassando o dominio juridico e
da esfera punitiva, o poder torna-se uma forga de "soma-
topoder" que penetra e constitui o corpo do individuo
moderno. Este poder jå näo se comporta como uma lei
coercitiva, um mandato negativo: é mais versåtil e acolhe-
dor, adquirindo a forma de "uma arte de governar a Vida",
uma tecnologia politica geral transformada em arquite-
turas disciplinadoras (prisöes, quartéis, escolas, hospitais
etc.), textos cientificos, tabelas estatisticas, cälculos demo-
gråficos, manuais, recomendaqöes de uso, calendårios de
regulaqäo reprodutiva e projetos de saüde püblica. Foucault
sublinha a centralidade do sexo e da sexualidade nessa
moderna arte de governar a Vida. Os processos de biopo-
der da histerizaqäo do corpo feminino, a pedagogia sexual
das crianqas, a regulaqäo das condutas de procriaqäo e a
psiquiatrizaqäo de prazeres perversos seräo, para Foucault,
os eixos deste projeto que ele caracteriza, näo sem ironia,
como um processo de modernizaqäo sexual.l

1 Michel Foucault, Histoire de la sexualité: La volonté de savoir. Paris:

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Seguindo as intuiqöes de Michel Foucault, Monique mesma forma, Krafft-Ebing cria uma enciclopédia das
denomino uma das formas domi-
Wittig e Judith Butler, sexualidades normais e perversas em que identidades
nantes desta aqäo biopolitica, que emerge com o capita- sexuais se tornam objetos de conhecimento, vigilåncia e
lismo disciplinar, como sexopolitica.2 0 sexo, sua verdade, repressäo juridica.4 No final do século XIX, leis de crimina-
sua visibilidade, suas formas de exteriorizaqäo; a sexua- lizaqäo da sodomia espalham-se pela Europa. Codifica-se
Iidade e as formas de prazer normais e pat016gicas; e a visualmente a "diferenqa sexual" como verdade anatömica.
raga, em sua pureza ou degeneraqäo, säo trés ficqöes Concebem-se como entidades anatömicas as trompas de
somåticas poderosas que obcecaram o mundo ocidental Fa16pio, as glåndulas de Bartholin e o clit6ris. Uma das
desde o século XVIII, chegando a definir o escopo de toda diferenqas politicas elementares do Ocidente (ser homem
atividade te6rica, cientifica e politica contemporånea. Säo ou mulher) poderia ser resumida a uma equaqäo banal: ter
ficqöes somåticas näo porque lhes falte realidade material, ou näo ter um penis de um centimetro e meio no momento
mas porque sua existéncia depende do que Judith Butler do nascimento. Os primeiros experimentos de insemina-
denominou repetigäo performativa de processos de cons- qäo artificial foram realizados em animais. Com a ajuda
truqäo politica.3 de instrumentos mecånicos, realizaram-se intervenqöes
O sexo se tornou parte täo importante dos planos de no dominio da produqäo do prazer feminino; enquanto,
poder que o discurso sobre a masculinidade e a femi- por um lado, se proibiu e se controlou a masturbaqäo, por
nilidade e as técnicas de normatizaqäo das identidades outro, oorgasmo feminino foi medicalizado e entendido
sexuais transformaram-se em agentes de controle e como crise de histeria.5 0 orgasmo masculino foi mecani-
padronizaqäo da Vida. Em 1868, as identidades hetero e zado e domesticado por meio de uma incipiente codifica-
homossexual foram inventadas em uma esfera de empi- qäo pornogråfica... A maquinaria estava pronta. O corpo,
rismo, classificaqäo taxonömica e psicopatologia. Da d6cilou raivoso, estava preparado.
Poderiamos denominar de "império sexual" (se puder-
mos nos permitir sexualizar a casta expressäo de Hardt
Gallimard, 1976, pp. 136-139 [Ed. bras.: Histöria da sexualidade: a
vontade de saber, trad. Maria Thereza Albuquerque da Costa. Rio de
Paz e Terra, 2014]; ver também Michel Foucault, Naissance de
Janeiro:
4 Richard Von Krafft-Ebing, Psychopathia Sexualis: The Classic Study of
la biopolitique: Cours au collége de France, 1978-1979. Paris: Seuil, 2004
Deviant Sex. New York: Arcade, 1998.
[Ed. bras.: Nascimento da biopolitica, trad. Eduardo Brandäo. Säo Paulo:
Martins Fontes, 2008]. 5 Para uma hist6ria visual da histeria, ver Georges Didi-Huberman,
Invention of Hysteria: Charcot and the Photographic Iconography of
2 Beatriz Preciado, "Multitudes queer". Multitudes, Primavera de 2003, the Salpétriére. Cambridge, MA: MIT Press, 2004 [Ed. bras.: Invenqäo
pp. 17-25.
da histeria: Charcot e a iconografia fotogråfica da Salpétriére, trad.
3 Ver Judith Butler, Gender Trouble: Feminism and the Subversion of Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2015]. Para uma hist6ria das
Identity. New York: Routledge, 1990 [Ed. bras.: Problemas de género: tecnologias do corpo histérico, ver Rachel P. Maines, The Technology
feminismo e a subversäo da identidade, trad. Renato Aguiar. Rio de of Orgasm: "Hysteria," Vibrators and Women's Sexual Satisfaction.
Janeiro: Civilizaqäo Brasileira, 2003]. Baltimore: John Hopkins University Press, 2001.

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TESTO JUNKIE HISTORIA DA TECNOSSEXUALIDADE
que usa o sexo, a sexua-
e Negri)6 esse regime biopolitico contra a masturbaqäo e a homossexualidade) näo tem
Iidade e a identidade sexual como centro somätico- género. Nem feminino nem masculino, o anus produz
-politico para produqäo e governo da subjetividade. A um curto-circuito na divisäo dos sexos. Como centro da
do final do século
sexopolftica disciplinadora ocidental passividade primordial e abjeto por exceléncia, posicio-
XIX e durante boa parte do século xx resume-se a uma nado perto do detrito e da merda, serve como o buraco
regulaqäo das condiqöes de reproduqäo da Vida ou aos negro universal pelo qual avanqam os géneros, os sexos,
processos bi016gicos que "dizem respeito ä populaqäo". O Ocidente é desenhado como
as identidades e o capital.
Para a sexopolitica do século XIX, o corpo heterossexual um tubo com dois orificios: uma boca emissora de sinais
é o artefato que vai alicerqar o maior sucesso do governo. püblicos e um anus impenetråvel ao redor do qual gira
A mentalidade heterossexual (straight mind), para reto- a subjetividade masculina e heterossexual que adquire
mar a expressäo que Monique Wittig elaborou nos anos status de corpo socialmente privilegiado.
1980 para designar a heterossexualidade näo como uma
pråtica sexual, mas como um regime politico,7 assegura a
relaqäo estrutural entre a produqäo da identidade sexual
e a produqäo de certas partes do corpo (em detrimento
de outras) como 6rgäos reprodutivos. Uma importante
tarefa desse trabalho disciplinador consiste em extrair o
anus dos circuitos de produqäo e prazer. Nas palavras de
Deleuze e Guattari, "o anus foi o primeiro 6rgäo privati- 30 CA
zado, colocado fora do campo social. O anus serviu como
modelo de toda privatizaqäo posterior, ao mesmo tempo
em que o dinheiro veio para expressar o novo estado de
abstraqäo de fluxos".8 0 anus como centro de produqäo
de prazer (e, neste sentido, intimamente relacionado ä
boca ou ä mäo, 6rgäos que seräo também fortemente ÄNVS
MKxtMA
controlados pela regulaqäo sexopolitica do século XIX VAGIAJæ
cog

6 Michael Hardt e Antonio Negri, Empire. Paris: Exils, 2000 [Ed. bras:
Império, trad. Berilo Vargas. Rio de Janeiro: Record, 2001].

7 Monique Wittig, La Pensée straight. Paris: Balland, 2001, pp. 65-76.


8 Gilles Deleuze e Félix Guattari, Anti-Oedipus. Londres: Continuum,
2004, p. 157 [Ed. bras.: O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia, trad.
Luis B. L. Orlandi. Säo Paulo: Ed. 34, 2010].

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Até o século XVII, a epistemologia sexual do regime sobe- que o pr6prio termo sexualidade näo serå inventado até
rano era dominada pelo que o historiador Thomas Laqueur 1880) ainda näo equivalem a categorias de conhecimento
denomina de "um sistema de similaridades"; a anatomia ou técnicas de subjetivaqäo suscetiveis de ultrapassar as
sexual feminina foi estabelecida como uma variaqäo frå- segmentaqöes politicas que separam o escravo do homem
livre, o cidadäo do imigrante ou o senhor do servo. Isso
gil, interiorizada e degenerada do ünico sexo que possuia
uma existéncia ont016gica, o masculino.9 Os ovårios eram näo quer dizer que näo houvesse diferenqas entre mas-
culinidade e feminilidade, ou entre diferentes modos de
considerados os testiculos internos, e a vagina seria um
produzir prazer sexual, e sim que estes ainda näo deter-
penis invertido que serve de receptåculo para os 6rgäos
sexuais masculinos. O aborto e o infanticidio, pråticas cor- minavam as cristalizagöes da subjetividade sexopolitica.
rentes daquele tempo, näo eram regulados pelo aparato No comeqo do século XVIII, ganha forma um regime
legal do Estado, mas por diferentes micropoderes econö- sexopolitico novo e visual, dependente de um "sistema de
mico-politicos aos quais os corpos gestantes se encontra- oposiqöes" — e jå näo de "similaridades". Ele mapeia uma
vam ligados em cada caso — a tribo, a casa feudal, o pater nova anatomia sexual em que o sexo feminino näo é mais
familias etc. Duas expressöes sociais e politicas diferen- uma inversäo ou uma interiorizaqäo do sexo masculino,
ciadas hierarquicamente dividem a superficie do modelo mas sim um sexo inteiramente diferente, cujas formas e
"monossexual": o "homem", o modelo perfeito do humano, fungöes respondem ä pr6pria 16gica anatömica. De acordo

e a "mulher", o receptåculo reprodutivo. No regime sobe- com Thomas Laqueur, a invenqäo do que poderia ser cha-
rano, a masculinidade é a finica ficqäo somatica com poder mado de estética da diferenqa sexual (e racial) é necessaria
politico. A masculinidade (incorporada pelas figuras do rei para estabelecer uma hierarquia politico-anatömica entre
e do pai) é definida por técnicas necropoliticas: o rei e o pai os sexos (masculino e feminino) e as ragas (brancos e näo

säo aqueles que tém o direito de tirar a Vida. A atribuiqäo brancos) em caso de agitaqöes resultantes dos movimentos
do sexo depende näo s6 da morfologia exterior dos 6rgäos de revoluqäo e liberaqäo que clamam pela ampliaqäo da
sexuais, mas, e sobretudo, da capacidade reprodutiva e esfera püblica para mulheres e estrangeiros. E aqui que a

do papel social. Assim, por exemplo, uma mulher barbuda verdade anatömica passa a funcionar como a legitimaqäo
capaz de engravidar, colocando uma crianqa no mundo e de uma nova organizaqäo politica do campo social.10
cuidando dela, é considerada uma mulher, independente- A mudanqa
que vai dar ä luz o regime disciplinar
mente da forma e do tamanho de sua vulva. Nessas confi- comeqa com a gestäo politica da sifilis, o advento da
guragöes somatopoliticas, o sexo e a sexualidade (observe diferenqa sexual, a repressäo técnica da masturbaqäo
e a invengäo das identidades sexuais.ll O auge dessas

9 Thomas Laqueur, Making Sex: Body and Gender from the Greeks to
10 Thomas Laqueur, Making Sex, op. cit., pp. 149-192.
Freud. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1992, pp. 63-108 [Ed.
bras.: Inventando o sexo: corpo e género dos gregos a Freud, trad. Vera 11 Ver Thomas Laqueur, Solitary sex. A cultural history of masturbation.
Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumarå, 2001]. New York: Zone Books, 2003.

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tecnologias rigidas e pesadas de produqäo de identidade Illidiåtica, intensificado pelas técnicas digitais e de pro-
sexual serå alcanqado em 1868, com a patologizaqäo da cessamento de dados e pelas redes de comunicaqäo, serå
homossexualidade e a normatizaqäo burguesa da heteros- uma das caracteristicas do regime farmacopornogråfico
sexualidade. A partir de entäo, o aborto e o infanticidio que comeqa sua expansäo em meados do século xx.
p6s-parto estaräo sujeitos ä vigilåncia e ä puniqäo da lei. Os dispositivos sexopoliticos que se desenvolvem com
O corpo e seus produtos se tornaräo propriedade do mas- a estética da diferenqa sexual e das identidades sexuais
culino/marido/pai e, por extensäo, do Estado e de Deus. no século XIX säo técnicas mecånicas, semi6ticas e arqui-
Nesse sistema de reconhecimento, qualquer divergén- tetönicas de naturalizaqäo do sexo. E aqui podemos listar
cia corporal da norma (como tamanho e forma dos 6rgäos uma longa coleqäo de fenömenos resultantes: o atlas de
sexuais, pilosidade facial e forma e tamanho dos seios) anatomia sexual, os tratados de otimizaqäo dos recursos
é considerada uma monstruosidade, uma violaqäo das naturais proporcional ao crescimento da populaqäo, os
leis da natureza ou uma perversäo, uma violaqäo das leis do travestismo ou
textos juridicos sobre a criminalizaqäo

morais. Da mesma forma que a diferenqa sexual é ele- da sodomia, a amarraqäo das mäos da menina mastur-
vada a uma categoria näo apenas natural, mas também badora ä cama, ferros que separam as pernas das jovens
transcendental (superando os contextos hist6ricos e cul- histéricas, filmes fotogråficos de nitrato de prata sobre os

turais), as diferenqas entre homossexualidade e heteros- quais se gravam as imagens do anus dilatado de homos-
sexualidade aparecem como anatömicas e psic016gicas, prendem o
sexuais passivos, as camisas de forga que
e o mesmo acontece com o sadismo, o masoquismo e a corpo indomåvel da mulher masculinizada. .. Estes dis-
normalidade e perversäo. Aquelas que
pedofilia; entre positivos para a produqäo da subjetividade sexual tomam
eram consideradas simples pråticas sexuais se
até entäo a forma de arquiteturas politicas exteriores ao corpo. Seus
transformam em identidades e condiqöes que devem ser sistemas tém um comando firme das politicas ortopé-

estudadas, registradas, perseguidas e caqadas, castigadas dicas e dos exoesqueletos disciplinares. O modelo para
e curadas. Cada corpo, como nos diz Foucault, torna-se estas técnicas de subjetivaqäo, de acordo com Foucault,
"um individuo que é preciso corrigir".12 Inventam-se, assim, poderia ser a arquitetura de Jeremy Bentham para a
a crianqa masturbadora e o monstro sexual. Sob este novo fåbrica-prisäo (o pan6ptico, em particular), o asilo ou
olhar epistem016gico, a mulher barbada se transforma ou os quartéis militares. Sepensarmos os dispositivos de
em objeto de observaqäo cientifica ou em atraqäo circense subjetivaqäo sexopolitica, precisamos falar também da
no novo aglomerado urbano. Este duplo movimento em expansäo de uma rede de "arquitetura doméstica". Estas
direqäo vigilåncia médico-juridica e ä espetacularizaqäo extensivas, intensivas e, sobretudo, intimas formas
arquitetönicas incluem uma redefiniqäo dos espaqos
privados e püblicos, a administragäo do comércio sexual,
12 Michel Foucault, Les anormaux. Cours au Collége de France, 1974-
1975. Paris: Gallimard, 1999, p. 53 [Ed. bras.: Os anormais, trad. Eduardo mas também dispositivos ginec016gicos e invenqöes da
Brandäo. Säo Paulo: WMF Martins Pontes, 2010]. ortopedia sexual, assim como novas técnicas midiåticas

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videogame etc.) que se infiltram e penetram como nunca
de controle e representaqäo (fotografia, cinema, porno-
a Vida cotidiana. Trata-se de tecnologias biomoleculares,
graha incipiente) e desenvolvimento em massa das téc-
digitais e de transmissäo de informaqäo em alta veloci-
nicas psic016gicas de introspecqäo e confissäo.
dade. Esta é a era das tecnologias suaves, ligeiras, viscosas
Se é verdade que a anålise de Foucault até este ponto,
e gelatinosas que podem ser injetadas, inaladas — "Incor-
embora nem sempre cronologicamente exata, parece ter
grande acuidade critica, näo é menos verdade que ela
poradas". A testosterona que eu utilizo é uma das novas
perde intensidade ä medida que se aproxima da socie- tecnologias gelatinosas.
Esses trés regimes de produgäo de corpos e subjetivi-
dade contemporånea. Foucault negligencia a emergéncia
dades sexuais näo deveriam ser entendidos como meros
de um conjunto de profundas transformaqöes das tecnolo-
periodos hist6ricos. O regime disciplinar näo apaga as
giasde produqäo do corpo e da subjetividade que aparece-
técnicas de soberania necropolitica. Da mesma forma, o
ram progressivamente com o comeqo da Segunda Guerra
regime farmacopornogråfico näo oblitera totalmente as
Mundial. Essas transformaqöes nos obrigam a concei-
técnicas biopoliticas disciplinares. Trés técnicas diferen-
tualizar um terceiro regime de subjetivaqäo, um terceiro
tes e conflitantes de regime de poder estäo justapostas e
sistema de saber-poder, que näo é soberano nem discipli-
atuam no corpo produzindo nosso sujeito contemporaneo
nar, nem pré-moderno nem moderno. No epilogo de Mil
e nossa ficqäo somåtica.
platös, Deleuze e Guattari, inspirando-se em Williams s.
Na sociedade disciplinar, as tecnologias de subjetivaqäo
Burroughs, usam o termo "sociedade de controle"13 para
controlavam o corpo a partir do exterior como um aparato
nomear este "novo monstro" da organizaqäo social que
ortoarquitetönico, mas na sociedade farmacopornogråfica
é um subproduto do controle biopolitico. Acrescentando as tecnologias se tornam parte do corpo: diluem-se nele,
nogöes inspiradas pela leitura de Burroughs e de Charles
tornando-se somatécnicas.14 Como resultado, a relaqäo
Bukowski, prefiro denominå-la de "sociedade farmaco-
corpo-poder torna-se taut016gica: a tecnopolitica assume
pornogråfica". A ejaculaqäo politicamente programada é a
moeda desse novo controle molecular-informåtico.
a forma do corpo, é incorporada. Um dos primeiros sinais
de transformaqäo do regime do somatopoder em meados
Ap6s a Segunda Guerra Mundial, o contexto somatopo-
do século xx foi a eletrificagäo, a digitalizaqäo e a mole-
litico da produqäo tecnopolitica do corpo parece dominado
cularizaqäo desses dispositivos de controle e produqäo da
por uma série de novas tecnologias do corpo (biotecnolo-
diferenqa sexual e das identidades sexuais. Pouco a pouco,
gia, cirurgia, endocrinologia, engenharia genética etc.) e
da representaqäo (fotografia, cinema, televisäo, internet,
1/4 No comeqo dos anos 2000, um grupo de académicos da Universidade
Macquarie, incluindo Susan Stryker, criou o termo somatechnics para
13 Gilles Deleuze, "Post-scriptum sur les sociétés de contröle", in
destacar a complexa relaqäo entre corpo e tecnologia. A tecnologia näo
Pourparlers. Paris: Minuit, 1990, p. 241 [Ed. bras.: "Post-scriptum sobre
acrescenta algo a determinado corpo, e sim é o pr6prio meio pela qual a
a sociedade de controle", in Conversaqöes, trad. Peter Pål Pelbart. Säo
corporeidade é fabricada.
Paulo: Ed. 34, 2013].

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os mecanismos ortopédico-sexuais e arquitetönicos disci-
plinadores foram absorvidos por técnicas microinformåti-
cas leves e de råpida transmissäo, bem como por técnicas
audiovisuais e farmac016gicas. Se a arquitetura e a orto-
pedia servem como modelos para entender a relaqäo
corpo-poder na sociedade disciplinadora, na sociedade
farmacopornogråfica os modelos de controle do corpo säo
microprotéticos: agora, o poder atua por meio de molécu-
las incorporadas ao nosso sistema imun016gico; o silicone
toma a forma de seios, neurotransmissores alteram nos-
sas percepgöes e comportamento; hormönios produzem
seus efeitos sistémicos sobre a fome, o sono, a excitaqäo
sexual, a agressividade e a decodificaqäo social da nossa
feminilidade e masculinidade.
Testemunhamos progressivamente a miniaturizaqäo,
internalizaqäo e introversäo reflexiva (movimento de
torqäo para o interior, para o espaqo considerado como
intimo e privado) dos mecanismos de controle e vigi-
låncia do regime sexopolitico disciplinador. Essas novas
tecnologias suaves de microcontrole adotam a forma do
corpo que controlam, transformam-se em corpo, até se
tornarem inseparåveis e indistinguiveis dele, acabando
como soma-tecno-subjetividades. O corpo jå näo habita
os espaqos disciplinadores: estå habitado por eles. A
estrutura organica e biomolecular do corpo é o filtimo
esconderijo desses sistemas biopoliticos de controle. Esse
momento contém todo o horror e a exaltaqäo da poténcia
politica do corpo.

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