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ANTIFASCISMO
TROPICAL
O livro como imagem do mundo é de toda maneira
uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer
Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo
sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
mais simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.
ANTIFASCISMO
TROPICAL
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Este ensaio começou a ser escrito às oito horas da
noite daquele domingo simultaneamente estranho e
óbvio em que Jair Messias Bolsonaro foi eleito pre-
sidente da República Federativa do Brasil. E, se em
várias medidas o dia 28 de outubro de 2018 nos apro-
xima, como num vórtice vertiginoso, dos 21 anos dos
governos ditatoriais militares, talvez precisemos lem-
brar que há quase cinquenta anos, catorze dias após
a promulgação do ai-5, Caetano Veloso e Gilberto Gil,
sem qualquer acusação formal, foram parar no quar-
tel da Polícia do Exército, no bairro da Tijuca, um dos
centros de tortura da ditadura – mesmo local em que o
atual presidente depositou seu voto horas antes de ser
declarado vencedor na eleição federal – e passaram
dezenas de dias presos.
Foi lá que, surpreso, Caetano ouviu a longa preleção
moral feita pelo militar que o interrogava, que discor-
reu sobre a rebeldia da juventude e como o pop e o
rock poderiam desagregar os valores tradicionais da
família brasileira e destruir a estabilidade política con-
seguida com o que chamava de a Revolução de 64. Se
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os dois artistas baianos ainda não tinham compreen-
dido o motivo de terem sido presos, naquele momento
as coisas começaram a ficar mais claras: o militar que
interrogava Caetano indicava que a capacidade de
pulverizar a realidade e tratar fragmentariamente os
costumes e valores morais era subversiva e justificava
a repressão.
Essa mesma estirpe de subversão – igualmente
atacada pelas forças conservadoras e renegada pelas
diretrizes tradicionais da esquerda – apareceria tam-
bém no primeiro trabalho conjunto de Gilles Deleuze
e Félix Guattari, O anti-Édipo (2010), publicado em
1972 sob efeito da onda contracultural disparada
em 1968. Do lado de cá e do lado de lá do Atlântico,
modulava-se o enfrentamento ao fascismo e disputa-
va-se o sentido das noções de país e de desejo nas
intervenções inventivas tropicalistas e esquizoanalíti-
cas. O que gostaríamos de fazer aparecer neste ensaio
é a estranha conexão entre as apostas brasileira e
francesa, defendendo explicitamente que a coligação
entre estes trabalhos é a sintonia no modo subversivo
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não antagonista de enfrentamento ao fascismo. Há
certo rebatimento de época, uma coetaneidade entre
os enfrentamentos franceses e brasileiros, que se
fizeram sob uma afinação curiosa a partir da qual o
desejo e o Brasil podem se colocar sob a inversão de
uma fórmula ético-estético-política: do decifra-me ou
te devoro ao devoro-te e me decifro.
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Para Freud, o destino do príncipe grego só nos toca
desde Sófocles porque sentimos que algo daquela
tragédia se repete em nós, também amaldiçoados
como Édipo em Delfos. Na versão primitiva da tragédia
humana, essa que foi formulada na infância de nossa
cultura ocidental, fica explícito o destino inexorável do
humano: desejar o proibido – uma força incestuosa
fadada à interdição dos limites da lei. Em sua segunda
vinda ao Brasil, em 1973, no Departamento de Letras
da puc-rj, Foucault já alertara para a importância do
texto publicado havia pouco por Deleuze e Guattari.
Para Foucault, o que o autor duplo de O anti-Édipo
mostrou foi que o triângulo familiar edipiano não
revela a verdade atemporal de nosso desejo, mas
constitui certa maneira de contenção, garantindo
que o desejo não venha investir e difundir na potência
dos acontecimentos e agenciamentos do mundo. Eis,
então, o perigo do jogo estrutural que foi entendido e
defendido como universal da subjetividade: ele cerca
as possibilidades existenciais de um sujeito submetido
à sua própria identidade e que já não pode escapar ao
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imperativo do enigma da esfinge tebana: decifra-me
ou te devoro.
O militar que interrogou Caetano indicava que a ver-
dadeira subversão na performance dos baianos era
pulverizar o Brasil de sua identidade. Era inadmissível
para a ordem vigente e sua ideia de progresso a inver-
são do projeto de totalização do Brasil. Percebia-se
que, naquela musicalidade, cantava-se um Brasil
tropical não completamente idêntico a si, e que,
justamente por isso, jamais se totalizaria: um Brasil
sem os limites aprisionantes de uma ordem subjetiva
mediada pelas forças da lei, do negativo ou do que
sempre lhe faltaria como país colonizado do terceiro
mundo. O gesto tropicalista propôs, perigosamente, a
modificação expressiva do Brasil na afirmação de sua
radical fragmentação a partir da inversão do enigma
edípico: devoro-te e me decifro.
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Em seu livro de memórias, Verdade Tropical (2017),
Caetano Veloso escreveu que o tropicalismo foi defla-
grado pelo impacto do filme Terra em transe, de
Glauber Rocha. O coração de Caetano disparou na
cena de abertura, quando, ao som de um cântico de
candomblé, vê-se a aproximação da costa brasileira.
À medida que o filme seguia, “as imagens de grande
força que se sucediam confirmavam a impressão de
que aspectos inconscientes de nossa realidade esta-
vam à beira de se revelar” (Veloso, 2017, p. 123).
Revelar ou liberar os aspectos inconscientes da
realidade brasileira talvez tenha sido o gesto clíni-
co-político dos tropicalistas. A cena do cinema novo
disparou o movimento que foi nomeado em outubro
de 1967, quando, no 3o Festival de Música Popular
Brasileira, Gilberto Gil apresentou “Domingo no
Parque” e Caetano Veloso cantou “Alegria, alegria”.
Naquele ano os compositores baianos ainda não se
apresentavam como movimento, embora já destoas-
sem por não se colocarem nos limites do que à época
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se identificava como Moderna Música Popular Brasileira
– limites daquilo que se entendia como Brasil.
Gilberto Gil queria criar uma composição popular
que lembrasse a Bahia. Meses antes do festival, havia
viajado para o sertão pernambucano, onde ouviu pela
primeira vez a Banda de Pífanos de Caruaru. Após
escrever a letra e a música de “Domingo no parque”,
quis algo novo para o arranjo, que colocasse em
conexão o som das flautas sertanejas e os Beatles
– Liverpool e Caruaru sintonizados com uma guitarra
elétrica e fazendo valer a lembrança baiana nos bur-
burinhos da pauliceia desvairada. Seria a primeira vez
da guitarra no palco de um festival de mpb – o que, na
visão dos mais xenófobos, tinha o tom de um insulto à
identidade da cultura nacional. O arranjo do maestro
Rogério Duprat inventava uma estranha orquestração
colocando lado a lado os instrumentos sinfônicos,
uma banda de rock e um percussionista que tocava
berimbau. No palco, posicionado simbolicamente
entre os instrumentos elétricos e a percussão tradi-
cional, Gil tocava um violão, instrumento emblemático
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da mpb. Era a imagem tropicalista de uma poderosa
síntese simultaneamente sonora e visual entre ele-
mentos disparatados, de naturezas distintas, em uma
conjunção artificial, elétrica e sintética.
Já a ideia para a canção de Caetano Veloso surgiu
na rua, enquanto caminhava por Copacabana, na
cidade do Rio de Janeiro. Ele queria algo que fosse ale-
gre, e a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi a de
um rapaz andando numa cidade grande, olhando as
pessoas e as coisas na rua, exatamente como ele fazia
naquele momento: o que idealizava era o que acon-
tecia – uma estranha e inaudita estética amor fati.
A música deveria ter uma sonoridade pop, acompa-
nhada por guitarra e conectada às imagens coloridas
de atrizes de cinema misturadas com cenas violentas
de guerra e flagrantes de viagens espaciais das revis-
tas expostas nas bancas de jornal. Multissemiótica
como num magazine sonoro inusitado, entre a música
e a revista algo se compunha.
Em sua letra veloz e cinematográfica – uma letra-
-câmera-na-mão, como definiu Décio Pignatari
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– a marchinha pop apresentava uma sensibilidade
moderna, tão profunda quanto a pele, efeito da expe-
riência urbana de jovens imersos no mundo retalhado
de notícias, espetáculos e propagandas. Em sua apa-
rente neutralidade, a música fazia crer que a política
era tão importante quanto a imagem de Brigitte Bardot
ou da Coca-Cola, criando uma musicalidade pop em
sintonia com as serigrafias de Andy Warhol.
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