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Eduardo Passos

Danichi Hausen Mizoguchi

ANTIFASCISMO
TROPICAL
O livro como imagem do mundo é de toda maneira
uma ideia insípida. Na verdade não basta dizer
Viva o múltiplo, grito de resto difícil de emitir.
Nenhuma habilidade tipográfica, lexical ou mesmo
sintática será suficiente para fazê-lo ouvir. É preciso
fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira
mais simples, com força de sobriedade, no nível
das dimensões de que se dispõe, sempre n-1
(é somente assim que o uno faz parte do múltiplo,
estando sempre subtraído dele). Subtrair o único
da multiplicidade a ser constituída; escrever a n-1.

Gilles Deleuze e Félix Guattari


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Eduardo Passos
Danichi Hausen Mizoguchi

ANTIFASCISMO
TROPICAL
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Este ensaio começou a ser escrito às oito horas da
noite daquele domingo simultaneamente estranho e
óbvio em que Jair Messias Bolsonaro foi eleito pre-
sidente da República Federativa do Brasil. E, se em
várias medidas o dia 28 de outubro de 2018 nos apro-
xima, como num vórtice vertiginoso, dos 21 anos dos
governos ditatoriais militares, talvez precisemos lem-
brar que há quase cinquenta anos, catorze dias após
a promulgação do ai-5, Caetano Veloso e Gilberto Gil,
sem qualquer acusação formal, foram parar no quar-
tel da Polícia do Exército, no bairro da Tijuca, um dos
centros de tortura da ditadura – mesmo local em que o
atual presidente depositou seu voto horas antes de ser
declarado vencedor na eleição federal – e passaram
dezenas de dias presos.
Foi lá que, surpreso, Caetano ouviu a longa preleção
moral feita pelo militar que o interrogava, que discor-
reu sobre a rebeldia da juventude e como o pop e o
rock poderiam desagregar os valores tradicionais da
família brasileira e destruir a estabilidade política con-
seguida com o que chamava de a Revolução de 64. Se
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os dois artistas baianos ainda não tinham compreen-
dido o motivo de terem sido presos, naquele momento
as coisas começaram a ficar mais claras: o militar que
interrogava Caetano indicava que a capacidade de
pulverizar a realidade e tratar fragmentariamente os
costumes e valores morais era subversiva e justificava
a repressão.
Essa mesma estirpe de subversão – igualmente
atacada pelas forças conservadoras e renegada pelas
diretrizes tradicionais da esquerda – apareceria tam-
bém no primeiro trabalho conjunto de Gilles Deleuze
e Félix Guattari, O anti-Édipo (2010), publicado em
1972 sob efeito da onda contracultural disparada
em 1968. Do lado de cá e do lado de lá do Atlântico,
modulava-se o enfrentamento ao fascismo e disputa-
va-se o sentido das noções de país e de desejo nas
intervenções inventivas tropicalistas e esquizoanalíti-
cas. O que gostaríamos de fazer aparecer neste ensaio
é a estranha conexão entre as apostas brasileira e
francesa, defendendo explicitamente que a coligação
entre estes trabalhos é a sintonia no modo subversivo
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não antagonista de enfrentamento ao fascismo. Há
certo rebatimento de época, uma coetaneidade entre
os enfrentamentos franceses e brasileiros, que se
fizeram sob uma afinação curiosa a partir da qual o
desejo e o Brasil podem se colocar sob a inversão de
uma fórmula ético-estético-política: do decifra-me ou
te devoro ao devoro-te e me decifro.

***

No prefácio que escreveu para a edição estadunidense


do livro de Deleuze e Guattari, Michel Foucault (2010)
indica que se trata de uma obra que apresenta a ética
para uma vida não fascista. Mas é preciso que enten-
damos que, sob a perspectiva que ali se apresentava,
haveria um fascismo molecularizado e menos evidente
do que aqueles realizados por Benito Mussolini e Adolf
Hitler – embora também muito profundo e incrustado
nos processos de subjetivação como as experiências
da Itália e da Alemanha nas décadas de 1930 e 1940.
Em A doutrina – texto canônico escrito pelo Duce em
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1935 –, Mussolini define que “os fascistas sabiam
morrer” (Mussolini, 2019, p. 23), que “somente a
guerra leva toda a energia humana à sua tensão
máxima e apõe o selo da nobreza naqueles povos que
têm a coragem de encará-la” (Mussolini, 2019, p.
25) e que o “fascismo imbui a vida do indivíduo desta
atitude antipacifista” (Mussolini, 2019, p. 25). Se a
imagem do lictor – uma espécie de oficial de justiça
símbolo da unidade, da força e da justiça na Roma
antiga – indica a sede de autoridade, direção e ordem
que Mussolini dizia ver no povo, a paixão pelo aspecto
mortífero da vida é uma de suas marcas mais fortes.
Essa relação destrutiva e imperial que caracteriza o
fascismo é fundamentalmente um modo de relação
com o outro – o outro no outro e o outro em nós.
Se Deleuze e Guattari têm razão ao apontar que
toda molarização produz molecularização, é preciso
dizer que as experiências do Duce, do Führer e do
Generalíssimo produzem e espraiam certa cotidiani-
dade fluida desse modo triste e mortífero de relação
com o outro. A análise crítica realizada em O anti-Édipo
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não focou especialmente o fascismo clássico, com
um chefe carismático, o nacionalismo exacerbado e
o culto da tradição que o caracterizou, mas aquele
fascismo que, paradoxalmente após a vitória do capi-
talismo e do comunismo contra esse mesmo fascismo
na Segunda Guerra Mundial, se espalhou como modo
hegemônico de lidar com o outro.
Em um debate público durante os anos 1970, Pier
Paolo Pasolini advertia Italo Calvino de que ele não
reconheceria fascistas caso os encontrasse na rua –
porque já não tinham a forma clássica que aparecera
nos uniformes pretos durante a década de 1920 ita-
liana. E se esse fascismo molecularizado – não mais
percebido como forma, mas como fluxo – é o que o
livro de Deleuze e Guattari critica, talvez estejamos
no momento mais propício de nossa história recente
para entendê-lo e enfrentá-lo.

Como o capitalismo, o fascismo é mais axiomático
do que codificado, modula suas formas sem alterar
sua função sociopolítica de perseguição dos que ele
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define como o outro ameaçador da ordem social.
Umberto Eco (2018) afirmou que o fascismo adap-
ta-se a tudo, pois é possível eliminar um ou mais de
seus aspectos sem comprometer sua natureza. O
fascismo modula capilarizando-se como uma linha
dura nem sempre visível, partidária, instituída. Em
sua versão capilar, pode nos fazer desejar aquilo que
nos domina e explora. Trata-se, evidentemente, como
tudo que se moleculariza, de um fascismo mais difícil
de localizar e, portanto, de enfrentar, já que produtor
de modos de vida tristes – de vidas diminuídas em
sua potência de existir.
Ao apontar as estratégias para enfrentá-lo, Trótski
indica que não haveria outra forma de ação senão o
de uma milícia operária: a “luta contra o fascismo
é basicamente uma luta política que necessita de
uma milícia assim como a greve necessita de pique-
tes” (2019, p. 90). Se para o revolucionário russo o
comunismo era o único modo de confrontar o fas-
cismo, a luta armada era a melhor das estratégias,
com o proletariado tomando para si “todos os meios
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de produção e todos os meios de destruição” (p. 91)
– pois os operários de vanguarda têm que saber que
lutarão até a morte.
Triste coincidência: a enunciação mortífera está
tanto nas diretrizes fascistas quanto nas indicações
comunistas – é seu ponto cego de convergência. É
por isso que, dos sete princípios que Foucault extrai
de O anti-Édipo e anuncia em seu prefácio, mais nos
interessa o que diz que não é “preciso ser triste para
ser militante, mesmo se o que se combate é abominá-
vel” (2010, p. 106). E, se é assim, certamente outros
modos de combate serão demandados quando o
fascismo se moleculariza, como no Brasil da segunda
metade dos anos 2010 – maneiras não destrutivas de
entrar no campo de batalha e que efetiva mais uma
luta-com do que uma luta-contra: uma agonística,
mais do que um antagonismo.

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Para Freud, o destino do príncipe grego só nos toca
desde Sófocles porque sentimos que algo daquela
tragédia se repete em nós, também amaldiçoados
como Édipo em Delfos. Na versão primitiva da tragédia
humana, essa que foi formulada na infância de nossa
cultura ocidental, fica explícito o destino inexorável do
humano: desejar o proibido – uma força incestuosa
fadada à interdição dos limites da lei. Em sua segunda
vinda ao Brasil, em 1973, no Departamento de Letras
da puc-rj, Foucault já alertara para a importância do
texto publicado havia pouco por Deleuze e Guattari.
Para Foucault, o que o autor duplo de O anti-Édipo
mostrou foi que o triângulo familiar edipiano não
revela a verdade atemporal de nosso desejo, mas
constitui certa maneira de contenção, garantindo
que o desejo não venha investir e difundir na potência
dos acontecimentos e agenciamentos do mundo. Eis,
então, o perigo do jogo estrutural que foi entendido e
defendido como universal da subjetividade: ele cerca
as possibilidades existenciais de um sujeito submetido
à sua própria identidade e que já não pode escapar ao
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imperativo do enigma da esfinge tebana: decifra-me
ou te devoro.
O militar que interrogou Caetano indicava que a ver-
dadeira subversão na performance dos baianos era
pulverizar o Brasil de sua identidade. Era inadmissível
para a ordem vigente e sua ideia de progresso a inver-
são do projeto de totalização do Brasil. Percebia-se
que, naquela musicalidade, cantava-se um Brasil
tropical não completamente idêntico a si, e que,
justamente por isso, jamais se totalizaria: um Brasil
sem os limites aprisionantes de uma ordem subjetiva
mediada pelas forças da lei, do negativo ou do que
sempre lhe faltaria como país colonizado do terceiro
mundo. O gesto tropicalista propôs, perigosamente, a
modificação expressiva do Brasil na afirmação de sua
radical fragmentação a partir da inversão do enigma
edípico: devoro-te e me decifro.

¤
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Em seu livro de memórias, Verdade Tropical (2017),
Caetano Veloso escreveu que o tropicalismo foi defla-
grado pelo impacto do filme Terra em transe, de
Glauber Rocha. O coração de Caetano disparou na
cena de abertura, quando, ao som de um cântico de
candomblé, vê-se a aproximação da costa brasileira.
À medida que o filme seguia, “as imagens de grande
força que se sucediam confirmavam a impressão de
que aspectos inconscientes de nossa realidade esta-
vam à beira de se revelar” (Veloso, 2017, p. 123).
Revelar ou liberar os aspectos inconscientes da
realidade brasileira talvez tenha sido o gesto clíni-
co-político dos tropicalistas. A cena do cinema novo
disparou o movimento que foi nomeado em outubro
de 1967, quando, no 3o Festival de Música Popular
Brasileira, Gilberto Gil apresentou “Domingo no
Parque” e Caetano Veloso cantou “Alegria, alegria”.
Naquele ano os compositores baianos ainda não se
apresentavam como movimento, embora já destoas-
sem por não se colocarem nos limites do que à época
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se identificava como Moderna Música Popular Brasileira
– limites daquilo que se entendia como Brasil.
Gilberto Gil queria criar uma composição popular
que lembrasse a Bahia. Meses antes do festival, havia
viajado para o sertão pernambucano, onde ouviu pela
primeira vez a Banda de Pífanos de Caruaru. Após
escrever a letra e a música de “Domingo no parque”,
quis algo novo para o arranjo, que colocasse em
conexão o som das flautas sertanejas e os Beatles
– Liverpool e Caruaru sintonizados com uma guitarra
elétrica e fazendo valer a lembrança baiana nos bur-
burinhos da pauliceia desvairada. Seria a primeira vez
da guitarra no palco de um festival de mpb – o que, na
visão dos mais xenófobos, tinha o tom de um insulto à
identidade da cultura nacional. O arranjo do maestro
Rogério Duprat inventava uma estranha orquestração
colocando lado a lado os instrumentos sinfônicos,
uma banda de rock e um percussionista que tocava
berimbau. No palco, posicionado simbolicamente
entre os instrumentos elétricos e a percussão tradi-
cional, Gil tocava um violão, instrumento emblemático
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da mpb. Era a imagem tropicalista de uma poderosa
síntese simultaneamente sonora e visual entre ele-
mentos disparatados, de naturezas distintas, em uma
conjunção artificial, elétrica e sintética.
Já a ideia para a canção de Caetano Veloso surgiu
na rua, enquanto caminhava por Copacabana, na
cidade do Rio de Janeiro. Ele queria algo que fosse ale-
gre, e a primeira imagem que lhe veio à cabeça foi a de
um rapaz andando numa cidade grande, olhando as
pessoas e as coisas na rua, exatamente como ele fazia
naquele momento: o que idealizava era o que acon-
tecia – uma estranha e inaudita estética amor fati.
A música deveria ter uma sonoridade pop, acompa-
nhada por guitarra e conectada às imagens coloridas
de atrizes de cinema misturadas com cenas violentas
de guerra e flagrantes de viagens espaciais das revis-
tas expostas nas bancas de jornal. Multissemiótica
como num magazine sonoro inusitado, entre a música
e a revista algo se compunha.
Em sua letra veloz e cinematográfica – uma letra-
-câmera-na-mão, como definiu Décio Pignatari
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– a marchinha pop apresentava uma sensibilidade
moderna, tão profunda quanto a pele, efeito da expe-
riência urbana de jovens imersos no mundo retalhado
de notícias, espetáculos e propagandas. Em sua apa-
rente neutralidade, a música fazia crer que a política
era tão importante quanto a imagem de Brigitte Bardot
ou da Coca-Cola, criando uma musicalidade pop em
sintonia com as serigrafias de Andy Warhol.

Meses antes do festival, no dia 17 de julho de 1967,


realizou-se em São Paulo a Marcha contra a guitarra
elétrica. Da sacada de um hotel, Caetano Veloso e
Nara Leão estavam assustados com o movimento
nacionalista que os lembrava do Partido Integralista,
o nacionalismo nazista e o Estado Novo – uma mar-
cha da família com Deus e pela música brasileira.
Ao ser perguntado pelo apresentador do festival se
ao voltar à Bahia não levaria uma surra de berimbau
por colocar a guitarra elétrica na canção, Caetano
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respondeu: os baianos estão além! Estar além era
posicionar-se de outro modo nas direções dadas às
relações entre arte e política no cenário nacional: se
o país estava enrijecido por maniqueísmos políticos
infiltrados nas produções artísticas, era importante
introduzir nele uma fratura potente – uma fragmenta-
ção inédita e conectiva.
Mas é claro que o gesto inaugural de Gil e Caetano
no festival de 1967 não se referia pura e simplesmente
à presença ou à ausência de um ou outro instrumento
musical. Havia uma intenção radical de rever o sentido
de brasilidade que já não parecia caber no continente
estabelecido da identidade nacional. Era radical por-
que, paradoxalmente, revia e revirava a importância
das raízes do Brasil – delas fazendo antenas do Brasil
– para sintonizar com as mudanças significativas
na atitude dos artistas perante a situação política e
a história do país. O famoso suéter de gola rolê de
Caetano, seu enorme sorriso, o gesto de estender os
braços em um abraço imaginário ao repetir o estribilho
de “Alegria, Alegria” equivalem à proposição ética de
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um modo de vida – de outro modo de ser Brasil, de um
Brasil além do Brasil.
Diante do público que assistia ao festival no teatro
da Record e na televisão, Caetano repetia no estribilho
da música uma pergunta que mais afirmava do que
negava, entoada de forma sorridente ao final da can-
ção expressando uma atitude que mal começava e já
era movimento, porque impulso somente sentido que
pedia imediatamente para ser dito e feito: eu vou, por
que não? O que se fazia nessa experiência absurda de
ser presente e futuro ao mesmo tempo não era mais
um gesto pessoal, mas a canção de um coro simulta-
neamente por vir e já vindo. Um futuro presente e sem
passado para o Brasil, que só pode se reinventar pós-
-tudo – póstumo à tradição. Do passado, só o recente,
o quase agora, em que a luta pela liberdade e contra o
autoritarismo se fizeram presente de forma absoluta-
mente singular. O gesto artístico de devolver o mundo
ao Brasil e o Brasil ao mundo era um processo experi-
mental no qual o próprio país já não poderia mais ser
idêntico a si mesmo.
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Caetano e Gil começavam a pensar e a performati-
zar a identidade nacional como um processo aberto e
em desenvolvimento permanente: um Brasil não mais
enraizado, um Brasil antenado, porque sintonizado às
ondas de criação, quando criar não é mais a busca
interminável das origens, conforme recomendava o
romantismo herdado da Europa, mas a reinvenção
ininterrupta na plena continuidade da direção antro-
pofágica tupinambá – um Brasil cuja fundação já não
mais se dava com a chegada dos portugueses, mas
com a devoração do Bispo Sardinha. Para os tropi-
calistas, inequivocamente, a antropofagia de Tarsila
do Amaral e de Oswald de Andrade tornou-se refe-
rência ético-estética maior, uma espécie de corretivo
necessário às noções essencialistas de brasilidade tal
como imaginadas pelos nacionalistas de esquerda e
de direita. Entendia-se que esta era uma posição que
conseguia unicamente folclorizar os materiais cul-
turais com os quais trabalhava, garantindo a manu-
tenção da imagem de um Brasil-colônia, famoso
por suas commodities – como as imagens um tanto
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irreais e ingênuas de Orfeu Negro, de Marcel Camus,
que gerou a acusação europeia de que somos inau-
tênticos porque não nos parecemos suficientemente
com o que viam no filme. A devoração e a reinvenção
constante do trânsito entre a chamada alta cultura e o
mau gosto, entre a cultura letrada e as tradições orais,
entre o nacional e o estrangeiro, entre o arcaico e o
moderno aproximam os tropicalistas da experiência do
primeiro modernismo brasileiro.
A Tropicália foi o nome de um movimento, de uma
composição de Caetano e de uma obra que Hélio
Oiticica expôs em abril de 1967 na mostra Nova
Objetividade Brasileira, realizada no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro. O artista carioca criou um
ambiente labiríntico com dois de seus Penetráveis,
PN2 (1966) – Pureza É um Mito, e PN3 (1966-1967)
– Imagético: uma obra que não é para ser vista, mas
penetrada. Obra habitada e atravessada em uma
experiência estética inseparável da vivência cotidiana
em um mundo tropical ou em um “fundo de chá-
cara”, como indicou o artista: plantas, areia, araras,
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poemas-objetos, capas de Parangolé e um aparelho
de televisão. A direção era menos a da contemplação
do que a da ativação de uma experiência sensória de
novamente estar pisando a terra brasileira. Esta sen-
sação fazia a reversão do descobrimento, invertendo
seu sentido ao mudar o sinal da experiência do nega-
tivo da pobreza ao positivo da redescoberta do mundo
tropical para além do colonialismo. Havia uma con-
vocação estético-política que conferia à arte estatuto
subversivo, porque deslocava o lugar da obra, porque
lateralizava os sentidos colocando em pé de igualdade
a visão, o olfato, o tato e a audição, porque destituía
a erudição culta da arte. A semiótica brasileira era
reativada em novas bases para a sua objetividade.
Por isso, uma redescoberta invertida do Brasil, como
uma inversão do sentido das caravelas. Tropicalismo
pós-colonial, tropicalismo neomoderno, tropicalismo
antropófago.
A invenção artística e nacional não mais deriva de
um sentido prévio que supostamente captaria a tota-
lidade do Brasil, conforme queriam tanto os militares
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quanto a esquerda nacionalista. Diferentemente, refe-
re-se ao Brasil não como uma totalidade universal,
mas pela montagem e pelo cruzamento de designa-
ções parciais, a invenção de um vulto de justaposi-
ções sincrônicas em que os contrários coabitam, se
superpõem, se atravessam, forjando o Brasil como
um estranho reino da diferença que expulsa a imagem
identitária do todo-Brasil: um Brasil a n-1, um Brasil
anti-edípico.

Em O anti-Édipo, Deleuze e Guattari dizem que o que


define as máquinas desejantes é o poder de cone-
xão ao infinito – em todos os sentidos e em todas as
direções. Nessa perspectiva contracultural, o desejo
efetiva-se como produção: desejar significa fazer fluir
e cortar fluxos. Em uma linguagem maquínica, ligar e
desligar. Essa perspectiva foi sintônica às apostas da
juventude brasileira que, a partir dos anos 1960, come-
çou a construir um movimento ético-estético-político
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que desafiou a imagética nacional e os valores tradi-
cionais da família, imagens e valores que talvez ecoem
com força agora que mais uma vez o fascismo avança
firmemente no território nacional.
Isto porque o desejo é revolucionário, mas não
basta contarmos com seu impulso libertário se não
montamos dispositivos que o protejam da captura
conservadora. Precisamos de máquinas revolucio-
nárias, sem as quais o “desejo continuará sendo
manipulado pelas forças de opressão e repressão,
ameaçando, mesmo por dentro, as máquinas revo-
lucionárias” (Deleuze, 1992, p. 29). A direção de
insurreição é essa: “que a máquina revolucionária,
a máquina artística, a máquina analítica se tornem
peças e engrenagens umas das outras” (Deleuze,
1992, p. 36). Esta talvez tenha sido a grande aposta
dos tropicalistas: forjar o Brasil distante da repressão
do desejo operada por um triângulo familiar sem fuga
e sem resto, desde sempre decifrado. Uma experiên-
cia nacional não completamente localizada, hetero-
tópica, como uma grande rede sem começo nem fim,
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rizoma, teia aracnídea, que acessamos sempre pelo
meio, lá onde ela cresce e transborda de si.
A máquina desejante rizomática está muito próxima
do jogo performático dos tropicalistas. Em ambos, não
se trata de reproduzir uma realidade fechada sobre si
mesma, mas de construí-la a partir de múltiplos agen-
ciamentos e entradas: aberta, desmontável, reversível,
modificável. É interessante fazer o múltiplo, colocando
o todo ao lado das partes e não acima delas, todo não
sobrecodificador, mas de composição precária, pro-
visória, heteróclita. Um todo, como o da identidade
nacional, que se faz e refaz a cada investida desejante.
Um todo que não se descobra, mas se inventa, e por
isso destituído de dimensão superior – nada acima de
tudo, nada acima de todos. Diferentemente, um Brasil
sempre n-1, e agora novamente – tornando-se dife-
rente do que é para se encontrar. Operação desejante
em um Brasil que, afinal de contas, anda tão próximo
de 1964: a afirmação criativa e alegre do devoro-te
e me decifro como uma espécie de pé de apoio para
todo salto antifascista.
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26 Referências:
DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992.
_______ e GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia 1. São Paulo:
Ed. 34, 2010.
ECO, U. O fascismo eterno. Rio de Janeiro: Record, 2018.
FOUCAULT, M. Prefácio – O Anti-Édipo: uma introdução à vida não fascista. Em:
Ditos e escritos vi: Repensar a política. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2010.
MUSSOLINI, B. Fascismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019.
TRÓTSKI, L. Fascismo: o que é e como combatê-lo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2019.
VELOSO, C. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
Eduardo Passos é professor titular do Instituto de
Psicologia da UFF, analista institucional, clínico em uma
abordagem transdisciplinar. Na interface entre clínica e
política, pesquisa as formas de medicamentalização em
saúde mental e as resistências experimentadas no dispo-
sitivo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM).

Danichi Hausen Mizoguchi é professor do Departamento


e do Programa de Pós-graduacao em psicologia da UFF.
Autor de Segmentaricidades: passagens do Leme ao
Pontal e de Amizades contemporâneas: inconclusas mo-
dulações de nós.

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setembro_2019

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