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O filósofo italiano Norberto Bobbio nunca gostou de falar de si próprio, mas o cerco

feito pelo jornalista Alberto Papuzzi, do La Stampa - quotidiano de Turim em que


sempre colaborou -, acabou por demovê-lo. A ele abriu seus arquivos, escritos e
cartas pessoais, alinhavados numa série de entrevistas que durou um ano. O
resultado está no Diário de um século (Autobiografia), com prefácio de Raimundo
Faoro à edição brasileira e incluindo um caderno de fotos do autor (Editora
Campus).

De Bobbio, quase todas as obras foram traduzidas no Brasil. A abrangência é vasta:


da filosofia do direito à ética, da filosofia política à história das idéias, sem esquecer
os grandes debates contemporâneos, invariavelmente analisados com lucidez,
elegância e coerência filosófica. Permeadas, nesta sincera autobiografia, com as
emoções de um pensador que viveu as contradições e angústias do nosso século,
que, conforme diz, "talvez venha a ser lembrado como o mais cruel da História",
com suas guerras mundiais (contra os impérios centrais, contra o nazi-fascismo e a
guerra fria contra os Estados comunistas).

Bobbio admite que a democracia resistiu a todas elas, mas a vitória não é
definitiva. Aliás, "numa visão laica (não mítico-religiosa), liberal e realista (não
totalizadora e utópica) da história, nada é definitivo". A dúvida de Bobbio - a quem
alguns consideram ser pessimista em relação à forma de governo democrática - é
sobre se a democracia se expandirá ou, ao contrário, caminhará para uma gradual
extinção.

Na Ásia, por exemplo, ganham força regimes que "nos fazem pensar no despotismo
esclarecido das monarquias absolutistas do século XVIII", lamenta o filósofo. E
acrescenta: "No despotismo iluminado de ontem e de hoje, a figura do homem
servo, mas feliz, substitui aquela que nos é mais familiar através da tradição do
pensamento grego e cristão do homem inquieto, mas livre. Qual das duas formas
de convivência está destinada a prevalecer no futuro próximo, ninguém está em
condições de prever". Podemos dizer que, se conhecesse de perto a realidade
latino-americana, Bobbio afundaria de vez no pessimismo...

Em 1989, ano do desmoronamento do comunismo, ele já alertava para os desafios


que permaneciam para a democracia. Nada de "fim da História", como supôs o
historiador nipo-americano Fukuyama. Num mundo de "espantosas injustiças", diz
Bobbio, não se pode pensar que a "esperança de revolução" tenha morrido "só
porque a utopia comunista faliu". E a questão que ele então formulava continua
aberta: "estarão as democracias que governam os países mais ricos do mundo em
condições de resolver os problemas que o comunismo não conseguiu resolver? A
democracia venceu o desafio do comunismo histórico, admitamo-lo. Mas, com que
meios e com que ideais dispôe-se a enfrentar os mesmos problemas que deram
origem ao desafio comunista?" (L´utopia capovolta, Turim, La Stampa, 1990).

A mesma preocupação, de resto, conduziria o filósofo a mais uma de suas muitas


polêmicas, em 1994, no calor do debate eleitoral italiano: a dicotomia
Esquerda/Direita sobrevivia, apesar de muitos a declararem morta. E sobrevivia
numa distinção fundamental: "a diversa postura que os homens organizados em
sociedade assumem diante do ideal de igualdade" - tendo a esquerda vocação
igualitária e a direita, inigualitária (Direita e Esquerda. Razões e significados de
uma distinção política, SP, Edit. da Unesp, 1995).

O mestre e suas polêmicas

Nascido em 1909, Norberto Bobbio é, de fato, uma testemunha do século (do qual
traçou uma história concisa em Profilo ideologico del Novecento, Milão, Garzanti, 3a.
ed., 1992). Participou ativamente das grandes transformações de seu país,
equilibrando-se entre o liberalismo e o socialismo (posição nascida do liberal-
socialismo de Guido Calogero) e, neste escrito autobiográfico, não esconde sequer
uma constrangedora carta enviada ao ditador Mussolini, na juventude, em uma
época em que "o fascismo, na verdade, já fazia parte do cotidiano dos italianos".

Bobbio recorda, também, os anos da Resistência antifascista ("aqui estão as raízes


da nossa democracia"), a passagem pelo Partido da Ação (que recolhia a herança
de Piero Gobetti e Carlo Rosselli), a "descoberta da democracia" e o permanente
diálogo com os comunistas do PCI (hoje Partido Democrático da Esquerda), em que
via "não adversários, mas interlocutores". Há ainda um capítulo sobre "paz e
guerra", que resume as idéias de Bobbio sobre política internacional (o problema da
guerra, os caminhos da paz e do pacifismo como uma atividade política).

Com esse espírito de diálogo, tentando sempre reconhecer "as razões que podem
ter as pessoas com idéias diferentes" das suas, é que Bobbio empenhou-se em
diversas "batalhas políticas". Polemizaria com Togliatti - o líder político que difundiu
o pensamento de Gramsci - e com Galvano Della Volpe, estudioso que identificou
em Marx uma profunda ligação com o idealismo hegeliano (nas célebres discussões
sobre a dialética, uma originalidade do marxismo italiano) e crítico severo, já nos
anos 50, dos ataques românticos da Escola de Frankfurt contra a ciência e a
técnica. O livro Politica e cultura (Turim, Einaudi, 1a. ed., 1955, relançado em
1977), que recolhe as intervenções de Bobbio, é prova dessa sua disposição ao
"diálogo civilizado com todos".

Mas é de sua vida como professor que o filósofo lembra com mais carinho. Foi esta,
segundo ele, a sua principal atividade ("durante a maior parte da minha vida
desempenhei, portanto, duas tarefas dificílimas: ensinar e escrever"), e foi nesse
período que aprofundou seus estudos sobre o jurista Hans Kelsen (inspirador de
sua concepção da democracia como sistema de regras que permitem a convivência
livre e pacífica) e sobre o filósofo Thomas Hobbes (idéias hobbesianas como o
individualismo, o contratualismo e a idéia de paz através da constituição de um
poder comum contribuíram - como ele próprio reconhece - para a formação de seu
pensamento político). Deste último, herdou também um "certo pessimismo quanto
à natureza humana e quanto à História".

Convicto há longo tempo de que não há soluções definitivas, Bobbio vale-se de


metáforas para caracterizar a História. Ora representa-a como "uma imensa
floresta na qual não há uma única estrada previamente traçada, e na qual não
sabemos nem mesmo se há uma saída", ora compara-a a um labirinto, sua imagem
preferida. "Acreditamos saber", diz o filósofo, "que existe uma saída, mas não
sabemos onde está. Não havendo ninguém do lado de fora que nos possa indicá-la,
devemos procurá-la por nós mesmos. O que o labirinto ensina não é onde está a
saída, mas quais são os caminhos que não levam a lugar algum".

Bobbio encerrou suas atividades docentes (a que dedicou 40 anos) em 1979, aos
70. Na anotação de um jornalista que assistiu a aula de despedida, o testemunho
da serenidade do velho mestre: "A última aula, em 16 de maio, uma terça-feira.
Sobre a mesa, um grande buquê de flores, com o cartão: ´De seus alunos do
último curso´. Bobbio cita Max Weber: ´A cátedra universitária não é nem para os
demagogos, nem para os profetas´. Entrevistado por La Stampa, o professor
declara: ´A última aula é um fato natural, previsível. Na vida somos pegos de
surpresa apenas por acontecimentos extraordinários´".

"Despedida" é, também, o último capítulo desta autobiogafia, "diário" de um


pensador que se arrepende de jamais ter escrito um diário. Seguramente, entre as visões
do século que se encerra, "o lugar de honra está reservado", nas palavras de Faoro, "ao
depoimento pessoal de Bobbio, com a apaixonada procura de si mesmo, consumada na
velhice, não porque tivesse alcançado a inatingível verdade, mas porque esta é a última
verdade que o sentimento da morte iminente lhe permite". Pois, como sublinha o
próprio autor, "a velhice é indissolúvel do seu sentido de fim".

Norberto Bobbio e a Religião

de Filippo Santoro*
Texto publicado no Jornal Testemunho de Fé de 18 a 24 de janeiro de 2004

Em 9 deste mês de janeiro faleceu um dos principais filósofos políticos do


século XX, o italiano Norberto Bobbio. Era professor emérito da cidade de
Turim, na Itália, onde nasceu, estudou Direito e Filosofia, foi professor
universitário e jornalista. É conhecido como filósofo que se aplicou ao estudo
do Direito, da Política, e é ponto de referência para quantos amam a
democracia. Menos conhecidas são suas reflexões sobre o sofrimento humano,
o significado da vida e a própria morte. Na sua vida tiveram um peso decisivo
os anos nos quais se engajou na Guerra de Libertação do nazismo e do
fascismo no final da Segunda Guerra Mundial. Terminada a guerra, se
dedicou, seja no ensino, seja na atividade política, à democracia e à paz. Na
época das grandes ideologias ele se coloca numa posição de diálogo entre
frentes opostas dentro de uma perspectiva de filosofia militante. Nos anos
cinqüenta esta atitude significou para ele, que vinha de uma tradição
burguesa e liberal, o diálogo com o Partido Comunista Italiano e com o
Marxismo. Em política ele segue uma perspectiva liberal-socialista voltada a
juntar os pressupostos do liberalismo clássico com a idéia de justiça social e o
sincero apreço pela democracia. É justamente considerado como o filosofo da
ciência política, da democracia, do Estado, do Direito, que são os temas
tratados nas suas obras mais significativas. Ele se coloca numa perspectiva
intermediária entre o “intelectual orgânico” de Gramsci, totalmente engajado
na ação revolucionária, e a figura do intelectual puro que se abstém da luta
política pelo poder. Ele numa perspectiva ligada à Kelsen e Weber,
constantemente sustentou a batalha por política que não pode ser separada
da moralidade, chegando a ser uma das máximas expressões da consciência
civil italiana. Neste sentido é bom lembrar as suas dúvidas sobre a lei do
aborto quando a quase totalidade da cultura leiga sustentava a tese favorável
ao aborto. Também memoráveis são as suas críticas aos comunistas italianos,
em particular a Togliatti e, posteriormente, a Berlinguer do qual criticava
como inconsistente, seja do ponto de vista teórico, como do ponto de vista
político, a idéia de uma “terceira via” entre socialismo real e social-
democracia. Mesmo colocando-se na área política do socialismo, polemizou
várias vezes com os próprios socialistas italianos criticando antes o
maximalismo e depois o pragmatismo deles. Pessimista, ou melhor, realista
como ele era, sempre sustentou o fato de que a ação política não pode
considerar-se uma força salvífica, mas deve limitar os excessos da violência e
do poder por meio do método constante do confronto e do diálogo.

Esta mesma atitude ele cultuou na reflexão mais propriamente filosófica,


abordando as grandes questões dos fundamentos do direito, da moral e das
perguntas últimas sobre o sentido da vida. Ele dialogou com várias
personalidades do mundo católico, entre elas os cardeais Carlo Maria Martini e
Ercílio Tonini, o fílósofo Dário Antiseri, o cristão leigo Ernesto Olivero,
fundador do Sermig (Serviço Missionário Juvenil) muito ativo também aqui no
Brasil, só para citar alguns nomes. Os temas eram as grandes perguntas
sobre a fé, a vida além da morte, como os problemas cotidianos da vida
social. Bobbio é indicado como o oráculo do mundo leigo, o pregador de uma
fé leiga em contraposição à fé católica. Na realidade, numa famosa carta ele
afirma: “Se fé leiga quer dizer fé no homem me pergunto se esta fé não seja
igualmente sujeita à dúvida como a fé religiosa. Então só resta o sentimento -
que pode ser angustiado, mas é o termo último ao qual chega a nossa razão -
do mistério. “Não é por acaso este senso do mistério que une profunda e
indissoluvelmente os homens de uma como da outra fé?” E numa sua
intervenção no diário católico italiano “Avvenire” ele explicava: “A vida não
pode ser pensada sem a morte. Não é por acaso que os homens são
chamados de mortais. O único modo de levar a sério a morte é de considerá-
la como ela lhe aparece, quando você vê a imobilidade de um corpo humano
que tornou-se cadáver. Levar a sério a vida quer dizer aceitar o mais
serenamente possível a sua finitude”. O grande filósofo do direito e da política
entra assim num campo onde procede com toda prudência: justamente ele
reconhece o limite da razão e da filosofia. Diante do Mistério ficamos mudos, e
a filosofia reconhece que ela, assim como a política é incapaz de salvar.

Bobbio, “maitre-à-penser” da cultura do século XX, como o chamou o


jornal francês “Le Monde” colocando-o junto a Raymond Aron e a Sartre, não
se considera, porém, ateu como muitos intelectuais de orientação leiga amam
gabar-se. Numa espécie de bilhete-testamento escrito em maio de 1968 ele
afirmava: “Desejaria um funeral civil. Creio que nunca me afastei da religião
dos meus pais, mas sim da igreja. Me afastei faz muito tempo e não posso
voltar a ela de forma sorrateira na última hora. Não me considero nem ateu
nem agnóstico. Como homem de razão e não de fé, sei de estar mergulhado
no mistério que a razão não consegue penetrar até o fundo, e as várias
religiões interpretam de vários modos”. O filosofo afirma assim um vivo senso
do mistério que de fato é o vértice da própria razão. O limite do homem
remete ao senso do mistério que por sua vez constitui o fundamento da
verdadeira religiosidade á qual a religião dos pais” oferece uma resposta.. Mas
Bobbio, com muita honestidade, percebe a diferença entre a religião como
interpretação do mistério que permanece no domínio do homem (a religião
dos pais) e a igreja que apresenta não apenas mais uma resposta religiosa,
mas a gratuita iniciativa mistério insondável que tem todo direito de revelar-
se e de vir encontro do homem. Por isso não podemos, nem queremos batizar
agora “in articulo mortis” Norberto Bobbio; é mais oportuno realçar a sua
honestidade, o seu alto senso da moralidade pessoal e pública e o seu senso
do mistério, mesmo que isso o deixe profundamente, insatisfeito.

Numa entrevista em abril de 2000 ao diário “La Repubblica” afirmava:


“Quando sinto ter chegado ao fim da vida sem ter encontrado uma resposta
às perguntas últimas, a minha inteligência fica humilhada, e eu aceito esta
humilhação, aceito-a e não procuro fugir desta humilhação com a fé, por meio
de caminhos que não consigo percorrer. Continuo a ser homem, com minha
razão limitada e humilhada: sei que não sei. Isso eu chamo de minha
religiosidade”.

Diante de uma confissão assim sincera cabe só o respeito; mas ainda


permanecem legítimas umas perguntas: por que negar a possibilidade que o
próprio mistério insondável fale de si e venha ao nosso encontro?. Por que
diante da nossa exigência potente de um significado pleno a única saída seria
a renúncia? Não é mais “democrático” não colocar limites à ação do mistério e
prestar atenção aos sinais com os quais ele decide documentar a sua presença
na história e comunicar aos homens a vitória da vida sobre o nada?

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