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Bobbio admite que a democracia resistiu a todas elas, mas a vitória não é
definitiva. Aliás, "numa visão laica (não mítico-religiosa), liberal e realista (não
totalizadora e utópica) da história, nada é definitivo". A dúvida de Bobbio - a quem
alguns consideram ser pessimista em relação à forma de governo democrática - é
sobre se a democracia se expandirá ou, ao contrário, caminhará para uma gradual
extinção.
Na Ásia, por exemplo, ganham força regimes que "nos fazem pensar no despotismo
esclarecido das monarquias absolutistas do século XVIII", lamenta o filósofo. E
acrescenta: "No despotismo iluminado de ontem e de hoje, a figura do homem
servo, mas feliz, substitui aquela que nos é mais familiar através da tradição do
pensamento grego e cristão do homem inquieto, mas livre. Qual das duas formas
de convivência está destinada a prevalecer no futuro próximo, ninguém está em
condições de prever". Podemos dizer que, se conhecesse de perto a realidade
latino-americana, Bobbio afundaria de vez no pessimismo...
Nascido em 1909, Norberto Bobbio é, de fato, uma testemunha do século (do qual
traçou uma história concisa em Profilo ideologico del Novecento, Milão, Garzanti, 3a.
ed., 1992). Participou ativamente das grandes transformações de seu país,
equilibrando-se entre o liberalismo e o socialismo (posição nascida do liberal-
socialismo de Guido Calogero) e, neste escrito autobiográfico, não esconde sequer
uma constrangedora carta enviada ao ditador Mussolini, na juventude, em uma
época em que "o fascismo, na verdade, já fazia parte do cotidiano dos italianos".
Com esse espírito de diálogo, tentando sempre reconhecer "as razões que podem
ter as pessoas com idéias diferentes" das suas, é que Bobbio empenhou-se em
diversas "batalhas políticas". Polemizaria com Togliatti - o líder político que difundiu
o pensamento de Gramsci - e com Galvano Della Volpe, estudioso que identificou
em Marx uma profunda ligação com o idealismo hegeliano (nas célebres discussões
sobre a dialética, uma originalidade do marxismo italiano) e crítico severo, já nos
anos 50, dos ataques românticos da Escola de Frankfurt contra a ciência e a
técnica. O livro Politica e cultura (Turim, Einaudi, 1a. ed., 1955, relançado em
1977), que recolhe as intervenções de Bobbio, é prova dessa sua disposição ao
"diálogo civilizado com todos".
Mas é de sua vida como professor que o filósofo lembra com mais carinho. Foi esta,
segundo ele, a sua principal atividade ("durante a maior parte da minha vida
desempenhei, portanto, duas tarefas dificílimas: ensinar e escrever"), e foi nesse
período que aprofundou seus estudos sobre o jurista Hans Kelsen (inspirador de
sua concepção da democracia como sistema de regras que permitem a convivência
livre e pacífica) e sobre o filósofo Thomas Hobbes (idéias hobbesianas como o
individualismo, o contratualismo e a idéia de paz através da constituição de um
poder comum contribuíram - como ele próprio reconhece - para a formação de seu
pensamento político). Deste último, herdou também um "certo pessimismo quanto
à natureza humana e quanto à História".
Bobbio encerrou suas atividades docentes (a que dedicou 40 anos) em 1979, aos
70. Na anotação de um jornalista que assistiu a aula de despedida, o testemunho
da serenidade do velho mestre: "A última aula, em 16 de maio, uma terça-feira.
Sobre a mesa, um grande buquê de flores, com o cartão: ´De seus alunos do
último curso´. Bobbio cita Max Weber: ´A cátedra universitária não é nem para os
demagogos, nem para os profetas´. Entrevistado por La Stampa, o professor
declara: ´A última aula é um fato natural, previsível. Na vida somos pegos de
surpresa apenas por acontecimentos extraordinários´".
de Filippo Santoro*
Texto publicado no Jornal Testemunho de Fé de 18 a 24 de janeiro de 2004