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Rio de Janeiro
2018
Jimena de Garay Hernández
Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 316.6(815.3)
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Jimena de Garay Hernández
Banca Examinadora:
_______________________________
Anna Paula Uziel (Orientadora)
Instituto de Psicologia – UERJ
_______________________________
Prof. Dr. Marcos Antonio Ferreira do Nascimento
Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz
_______________________________
Profa. Dra. Rita de Cassia Santos Freitas
Universidade Federal Fluminense - UFF
_______________________________
Profa. Dra. Fátima Cecchetto
Instituto Oswaldo Cruz - IOC
_______________________________
Profa. Dra. Carla dos Santos Mattos
Instituto de Estudos da Religião – ISER
_______________________________
Prof. Dr. Thiago Benedito Livramento Melício
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
_______________________________
Profa. Dra. Gabriela Salomão Alves Pinho
Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ
Rio de Janeiro
2018
DEDICATÓRIA
À UERJ
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10
1 A DOBRA QUE CAPTURA ................................................................................ 18
1.1 Caindo no CAI ................................................................................................... 20
1.2 Ocupando o CAI ................................................................................................ 34
1.3 “Um lugar desse”: intervindo no CAI .............................................................. 51
1.4 “Vocês mulheres têm aqui outra visão”: pesquisa feminista com
homens .............................................................................................................. 73
2 A DOBRA QUE ADOLESCE ............................................................................. 90
2.1 O Adolescente: entre hormônios e grades ..................................................... 95
2.2 “Andar armado na frente de uma criança”: trajetórias juvenis, racismo e
classismo ........................................................................................................ 100
2.3 “Minha vida não era muito boa não”: entre a ostentação e a dignidade ... 122
2.4 As facções: entre famílias, inimigos e códigos ........................................... 132
3 A DOBRA QUE APREENDE ........................................................................... 148
3.1 A dobra-organização-do-espaço: muros e porosidades ............................. 150
3.2 A dobra-controle-do-tempo: geração e isolamento ..................................... 161
3.3 A dobra-vigilância: a Segurança ................................................................... 174
3.4 A dobra-registro-contínuo-do-conhecimento: a socioeducação e os
especialismos ................................................................................................. 182
4 A DOBRA QUE GENERIFICA ......................................................................... 194
4.1 Sujeito-homem-ostentador ............................................................................ 207
4.2 Sujeito-homem-guerreiro ............................................................................... 227
4.3 Sujeito-homem-herói-sacrificado .................................................................. 241
4.4 Sujeito-homem-enunciador-honesto ............................................................ 243
4.5 Sujeito-homem-honrado ................................................................................ 247
4.6 Sujeito-homem-adulto .................................................................................... 270
4.7 Sujeito-homem-heterossexual ....................................................................... 272
4.8 Sujeito-homem-pai.......................................................................................... 293
5 A DOBRA QUE CORPOREIFICA ........................................................................... 305
5.1 Corpo de menor ............................................................................................. 306
5.2 Corpo de quebrador ....................................................................................... 317
5.3 Corpo de mancão ........................................................................................... 318
5.4 Corpo de Jack ................................................................................................. 322
5.5 Corpo iniciado ................................................................................................. 326
5.6 Corpo que faz sexo e/ou faz amor ................................................................. 331
5.7 Corpo de vagabundo ...................................................................................... 336
5.8 Corpo desejável .............................................................................................. 339
5.9 Corpo que (não) se previne ........................................................................... 344
6 A DOBRA QUE (SE)TENSIONA E (DES)DOBRA .......................................... 353
6.1 “Já é da casa”: implicação, intervenção e parcerias no campo ................. 355
6.2 “É, não vai adiantar mesmo”: resistências e amarras ................................ 361
6.3 “Agora vocês me pegaram”: desdobramentos dos Cursos e suas
potências ......................................................................................................... 377
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 385
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 393
ANEXO A - Fotografias disparadoras para a primeira atividade em grupo
com os jovens ................................................................................................... 405
ANEXO B - Fotografias da segunda atividade ................................................. 414
ANEXO C - Ementa do primeiro curso ............................................................. 419
ANEXO D - Relatórios de profissionais sobre o primeiro curso ........................ 421
ANEXO E - Jornal da unidade, falando sobre nossa atividade na Semana do
Bebê ................................................................................................................. 428
ANEXO F - Documento de prorrogação da pesquisa ....................................... 430
ANEXO G - Cartazes espalhados na unidade por um grupo de técnicas......... 431
ANEXO H - Ementa do segundo curso............................................................. 432
ANEXO I - Estratégias dos grupos para implementação de preservativo:........ 437
ANEXO J - Relatório de uma profissional sobre o segundo curso ................... 440
ANEXO K - Relação de nomes dos jovens ...................................................... 442
10
INTRODUÇÃO
O mundo não nos rodeia, nos atravessa e nos produz. É por isso que me parece
impossível começar este texto sobre uma pesquisa no sistema socioeducativo sem falar
do contexto em que a pesquisa aqui apresentada foi realizada e escrita, que abrangeu
de 2014 a 2017. O quanto esse contexto afetou e produziu esse processo é
incalculável, mas gostaria de destacar alguns pontos que considero fundamentais.
Primeiramente, diante das parcerias realizadas no processo, foi evidenciada a
importância da vinculação da universidade com a comunidade, tradição da UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e o elemento que mais me apaixona dela, o
que gera uma profunda tristeza ao vê-la sendo cada dia mais precarizada e suas
(nossas) ações cada vez mais obstaculizadas. Nesse sentido, foi importante pensar no
nosso compromisso como equipe de pesquisa no contexto de crise política, econômica,
institucional e ética, ao nos vermos frente a uma dificuldade de pensar estratégias de
ação e de valorização do trabalho que estamos fazendo.
Foi relevante também ver como não só a Universidade, mas o Novo Degase
(Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro) também se viu
afetado por essa crise, incluindo cortes de pessoal e de serviços e uma greve 1,
evidenciando uma perversa relação entre a precarização do estado do Rio de Janeiro e
suas instâncias, o aprofundamento da desigualdade e a criminalização da pobreza
expressa, por exemplo, na higienização da cidade, que foi gritante na época das
Olimpíadas, superlotando ainda mais as unidades socioeducativas. Porém, é também
importante reconhecer que nesse contexto conseguimos conhecer e trabalhar com
pessoas comprometidas com sua prática profissional e, de forma articulada, com uma
mudança do rumo político do país. Por último, o contexto mostrou nítida e cruelmente o
estado de guerra que se vive no Rio de Janeiro, do qual os jovens, as/os profissionais e
nós pesquisadoras participamos, a partir do qual sofremos e nos constituímos. Escrever
1
A greve teve condições específicas, com caráter de interna, ou seja, que as/os profissionais
concursados/as continuavam indo, mas sem fazer nada além do emergencial, sendo pressionados/as
pelos jovens e por profissionais de contrato.
11
a tese escutando tiroteios próximos da minha casa2, a equipe ser assaltada junto com
uma psicóloga do DEGASE saindo de um evento em que falávamos da pesquisa, ser
roubada por três idosas, meses de atraso nas bolsas e salários, são só uma porção
dessa violência e desigualdade que me afetam, mesmo que de forma distinta e
infinitamente menor que a esses jovens e a outros/as moradores/as das favelas e das
periferias.
Este contexto de guerra militarizada, judicializada, burocratizada, medicalizada e
psicologizada, onde imperam a pobreza, o ódio, o machismo, o racismo, a
discriminação e a violência, fenômenos expressados em discursos conservadores cada
vez mais potentes no que tange à redução da idade penal ou o cerceamento aos
direitos sexuais e reprodutivos, nos apresenta dois grandes desafios: o de pensar em
noções e práticas de justiça e de igualdade e o de analisar os processos e os
movimentos em sua construção histórica, recheados de fluxos, mudanças e dores.
Como não se esgotar no movimento de tentar acompanhar as continuidades e
descontinuidades, especialmente quando estas são tão seletivas justamente no que
para nós fere a vida e a dignidade? Estas são angústias que permearam o processo de
trabalho de campo, e que também se fazem presentes permanentemente na hora da
escrita. Meu desejo de começar com isto é justamente expressar as intensas afetações
que me perpassaram também na hora de escrever, condensando o percurso de
pesquisa realizado.
Assim, o presente texto apresenta o caminho da pesquisa-intervenção
percorrido, compondo uma cartografia das experiências em gênero e sexualidade de
homens jovens que cumprem medida socioeducativa em uma unidade masculina de
internação do Degase3. A pesquisa esteve inicialmente inserida em um projeto mais
2
Mais ou menos ao mesmo tempo em que comecei a visitar a unidade, o bairro onde vivo, Catumbi,
retornou a ser um território de conflito entre duas facções e a polícia.
3
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, Brasil, 1990), faz uma separação entre instituições de
atendimento a jovens menores de idade que cometeram ato infracional e outros que precisam estar sob
medida de proteção. O DEGASE, sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, conta hoje com
municipalização de algumas medidas e atualmente faz parte da Secretaria Estadual de Educação, o
que está em vias de mudar para fazer parte da Secretaria de Segurança. Em algum momento no campo
foi colocado que seria importante ter uma Secretaria de Socioeducação, para ter mais autonomia. No
ECA, o ato infracional praticado por adolescentes deve receber a aplicação de medidas de proteção,
pois os menores de 18 anos são “penalmente inimputáveis” (Brasil, 1990, artigo 104). As medidas
socioeducativas dividem-se entre as que são executadas em meio aberto (advertência, reparação do
12
afetar denuncia que algo está acontecendo e que nosso saber é mínimo nesse
acontecer. Sinaliza a força de expansão da vida e da atividade que podemos
viver. A tensão se instala. [...] Entre as variações de afetos vividos percebemos
que algo convoca ao movimento de pesquisar. Vontade de encontro que se faz
de uma esquina, de uma infração, de um conceito, de uma pergunta que insiste
com sensações. Passagens ativas, não as perca. A expectativa de conhecer a
priori esse viver nos afasta da intensidade que produz o movimento do afetar.
Permita-se viver esse movimento, pois é precisamente na experiência desse
percurso do afetar que a pesquisa acontece (LAZZAROTTO; CARVALHO,
2012, p.24).
não como uma pura reação aos poderes vigentes, às normas impostas, mas,
justamente, como uma outra forma de existir. Resistência enquanto afirmação
de processos inéditos de vida. [...]. Resistir não é simplesmente se opor. É algo
muito mais difícil e complexo: é criar, é produzir rupturas, é afirmar outras
lógicas, outras realidades. Diferentemente, os poderes, o Estado, buscam a
organização, a ordenação, a hierarquização, a homogeneização das diferenças
e das multiplicidades (COIMBRA, 2008, p.16).
Compreendendo que
14
Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita
gente. [...] Não chegar ao ponto de não se diz mais EU, mas ao ponto em que já
não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós
mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados,
multiplicados (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.9).
Assim,
Podemos pensar os espaços da pesquisa e extensão como terrenos
privilegiados para a indisciplina e a invenção. Primeiro porque são espaços de
interrogação e problematização não apenas dessas transformações e novas
questões que se apresentam, mas também dos próprios modos como as
colocamos sob o foco de nossas pesquisas e das formas como propomos
investigá-las. Segundo porque, como atividades de pesquisa, podem acolher a
crise, a imprevisibilidade, a processualidade desejável na construção de
conhecimentos locais, provisórios e comprometidos com seus contextos de
produção. E, por fim, porque se vinculam à formação, de modo que levam
consigo um potencial de multiplicação de possibilidades inventivas (HUNING;
GUARESCHI, 2008, p.52).
15
4
Podemos entender desnaturalizar como uma questão metodológica, que implica “Suspeitar da
naturalidade dos objetos, das relações, das formas de ser; estranhar o cotidiano e suas obviedades
inquestionáveis; exercício crítico do olhar implicando deslocar do habitual e desfocar, duvidando daquilo
que se vê, além de exercer a suspeita como atitude ética e postura política” (PRADO, 2012, p. 71).
17
5
Em um caso, utilizo o nome de um estudante mexicano que já foi encontrado torturado e morto, como
nome de um jovem que, semanas depois de participar conosco, foi liberado do CAI e foi executado na
rua.
18
6
Tem sido constatado que os jovens “relatam a dificuldade de, após cumprirem meses ou anos de
medidas de privação de liberdade, permanecer o tempo que seja em unidades de semiliberdade,
prevalecendo, em geral, o desejo de fugir, muitas vezes, como contam, incentivado pelos próprios
agentes de disciplina” (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p.33).
7
Este termo foi proposto por Fernando nas nossas conversas.
20
8
“De acordo com o ECA, a medida de internação só deve ser aplicada mediante a prática de atos
infracionais graves. A internação não poderá ultrapassar três anos. [...]ECA-Art 121. A internação
constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito
à condição particular de pessoa em desenvolvimento” (ABDALLA, 2016, p.32).
9
“A internação provisória é um procedimento aplicado antes da sentença julgada, quando há indícios
suficientes de autoria e materialidade do ato infracional cometido pelo adolescente ou quando há um
descumprimento de ordem anteriormente aplicada pelo Poder Judiciário. Conforme prevê o artigo 183
do ECA, a internação provisória caracteriza-se pela privação de liberdade com duração máxima de 45
dias, período em que são realizados os estudos técnicos que subsidiam a aplicação da medida
socioeducativa determinada pelo Poder Judiciário” (ABDALLA, 2016, p.31).
21
10
Será utilizado itálico para se referir a termos êmicos e expressões utilizadas por participantes no campo.
11
As estatísticas oficiais apontavam, em 2014 – último levantamento disponível no site da Secretaria de
Direitos Humanos-, em nível nacional 44% por roubo e 24% por tráfico, enquanto que no Rio de Janeiro
era 36% roubo e 40% tráfico (BRASIL, 2017, p. 28). Estes dados podem ter mudado nos últimos três
anos.
22
que sempre me fazia pensar nas famílias que se deslocavam de lugares ainda mais
distantes para as visitas.
Os muros externos da unidade estão pichados com cada vez mais mensagens,
algumas expressando “saudade” ou pedindo “liberdade” a algum jovem que
provavelmente está/va Dentro, outra dizendo “nego é bandido”, outra dizendo “sem
neuroze” e outras delimitando o território onde a unidade está localizada, que durante
todo o tempo que a visitamos pertenceu à facção ADA (Amigos dos Amigos). Uma boca
de fumo dessa facção está a alguns metros da unidade12, o que sempre estabelece
uma certa tensão, pois a maioria dos jovens que se encontra cumprindo medida é do
Comando Vermelho (CV). Inclusive, em uma ocasião, em um sábado muito cedo do
início de 2017, dois jovens da ADA, armados e de moto, entraram à força na unidade, e
começaram a gritar ainda no estacionamento, ameaçando os jovens do CV. Isto gerou
uma tensão muito grande, e agentes e diretores tiveram que sair para negociar com
eles. São poucas as informações que temos sobre esse acontecimento, mas elas são
suficientes para entender o clima que se vive constantemente nos arredores da
unidade.
Ao lado da unidade está uma escola e na frente tem uma igreja evangélica e a
Casa das Mães, que oferece café e acolhe as mães e outros familiares que visitam os
jovens nas quartas feiras e sábados, antes delas fazerem uma fila na rua - sem
pavimento, empoeirada e sem sombra. A igreja também oferece roupas para as
mulheres que não estão vestidas de acordo com as regras que a instituição-
organização impõe, tema que será bastante abordado ao longo do texto.
O portão do CAI tem uma entrada para carros e outra para pedestres, ambas
fechadas permanentemente. O agente que está do lado de dentro olha primeiro,
através de uma pequena porta, e abre o portão para deixar o carro ou a pessoa entrar
na primeira grade. Mesmo infinitamente mais fácil do que a entrada nas unidades
prisionais - onde inclusive o processo burocrático no meu caso, por ser estrangeira, é
ainda mais difícil que para outras pessoas-, e em algumas unidades socioeducativas, o
processo de entrada variava a cada ida nossa. Às vezes os agentes já sabiam das
12
Inclusive, em uma ocasião, Gabi estava tentando tirar uma foto da fachada da unidade, e os jovens da
boca gritaram “aí doidona, o que você está fazendo?”, achando que estava tirando foto deles.
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nossas visitas, às vezes não, às vezes avisavam por rádio, às vezes pediam as nossas
identidades e as anotavam ou apenas as verificavam, às vezes lembravam dos nossos
nomes e os anotavam sem mais protocolos no caderno de visitas, mas às vezes
solicitavam as identidades e anotavam mais dados no caderno.
Nossas mochilas e bolsas nunca foram revistadas nem confiscadas, podendo
entrar com celulares e gravadores, coisa impossível de fazer na prisão. Este tratamento
é extremamente distinto do dado a familiares que, quando começamos a visitar a
unidade, passavam por revista vexatória, substituída por escâner posteriormente, além
de uma revisão de documentos e das listas que permitem ou não a visita, dependendo
do grau de parentesco e/ou da autorização da equipe técnica de referência de cada
jovem. Nossas roupas tampouco eram alvo de filtro para entrar ou não na unidade,
diferente das/os familiares, o que não significa que não tenham sido criticadas pelas/os
profissionais já estando lá Dentro. Essa diferença no tratamento nos incomodava
quando coincidíamos com os dias da visita familiar, ao entrar com extrema facilidade na
unidade, de carro, enquanto a fila de familiares, a maioria mulheres, esperava horas
para ser minuciosamente revistada e conseguir ver os jovens por duas horas. Elas
também percebiam essa diferença, como expressado por uma mulher que em uma
ocasião disse, com tom de deboche, “essas mulheres sempre estão aqui”.
O estacionamento é bastante espaçoso e sempre tem lugar para parar o carro.
Durante um período, tinha um esgoto aberto, o que além de produzir um fedor que
entrava no refeitório e em alguns alojamentos, nos preocupava, porque esse local podia
ser foco de mosquito, era a época mais difícil da epidemia da zika e uma das técnicas
estava grávida. Já Dentro, a unidade conta com um auditório com um banheiro, onde as
famílias visitantes passam por um segundo filtro, com seus documentos verificados pela
equipe técnica. É também no auditório onde acontecem os eventos, as aulas de teatro,
formaturas, palestras, cursos e atividades como os que nós promovemos. Há um palco
de madeira, aproximadamente 100 assentos, equipamento de som, ar condicionado e
tela para Datashow. No entanto, a circulação de ar é bastante deficiente, perceptível
nos dias em que chegávamos cedo.
Posteriormente estão a cozinha e o refeitório. O refeitório tem mesas com
cadeiras fixas, onde cabem seis jovens. Ali, além das refeições, acontecem as visitas
24
familiares. Nas paredes, costumam ter pregados desenhos e, na nossa última visita,
tinha penduradas faixas falando sobre “Paz nos alojamentos”. As refeições dos jovens
são bastante cedo - 7h, 11h e 16h –, e é um processo que demanda bastante logística
e tempo, sendo chamados grupos de jovens, enquanto o resto espera sentado no chão
do pátio. Depois que todos os jovens terminam, é servida a refeição dos/das
profissionais e convidadas/os como nós. As refeições são de boa qualidade, mas foram
severamente afetadas pela crise do estado do Rio de Janeiro, já que no início
ofereciam, por exemplo, açaí e sorvete, e posteriormente eliminaram esses elementos,
incluindo salada e suco em um período. Foi por isso que em determinado momento, foi
relatado que não tinha suficientes alimentos e que a maioria das/os profissionais estava
levando comida de casa. Alguns jovens afirmaram que os alimentos que eles recebem
não são os mesmos que nós recebemos, o que nunca chegamos a confirmar. Por outro
lado, escutamos várias falas que afirmavam que a alimentação dos jovens era muito
melhor no estabelecimento do que Fora, tendo efeitos nos corpos deles, perceptíveis
para as famílias. Este espaço tem muitas moscas e durante a época do esgoto aberto
no estacionamento, o fedor era tão grande que as/os profissionais pararam de almoçar
ali.
O pátio é um local de circulação, recriação e recepção, além de também espaço
para as visitas familiares. Em uma das paredes, um grafiteiro realizou, em agosto de
2015, junto com os jovens, um grafite que diz “É hoje que você vai mudar sua vida”.
Geralmente ele está coberto pelas cadeiras e mesas de plástico utilizadas para a visita
familiar, revelando-o quando estas são espalhadas pelo espaço. A visita, que
chegamos a observar em cinco ocasiões, é um momento bastante emotivo, e é possível
ver os jovens sorrindo, coisa que não é frequente em outros momentos. Cada família
fica conversando com o jovem e partilhando biscoitos e refrigerantes, que são os
alimentos que podem levar, sempre em sacolas de plástico transparentes e garrafas de
plástico sem etiquetas. A maioria das visitantes são mulheres – mães, avós, irmãs,
primas-, mas também chegamos a ver vários homens – pais e avôs, principalmente13.
Algumas famílias levam bebês e crianças – irmãos/ãs, primas/os, filhos/as. Poucas
13
Algunas técnicas sinalizaram perceber mais pais nas visitas, mas não sabem se esse crescimento é
proporcional à quantidade de jovens, que é maior, ou porque de fato eles estão conseguindo se
aproximar mais dos filhos.
25
14
Não existe no ECA nem no Sinase. No entanto, no Art. 178 do ECA, é assinalado que “O adolescente
a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em
compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que
impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade”, o que já sugere a
dispensa ou cuidado no uso da algema. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, em 2010
(http://ens.sinase.sdh.gov.br/ens2/images/Biblioteca/modulos_dos_cursos/Nucleo_Basico_2015/Eixo_6/
EixoVI.pdf), assim como o Ministério Público e a Defensoria Pública em 2016
(https://oglobo.globo.com/rio/autoridades-pedem-retirada-de-algemas-de-jovens-hospitalizados-apos-
incendio-1-19886343), têm realizado recomendações que restringem o uso, entendendo-o como uma
prática que fere a dignidade humana.
26
Eles também devem dizer a qual facção do tráfico pertencem e a qual bairro.
Caso não pertençam a nenhuma facção, devem dizer em qual bairro eles moravam e,
dependendo disso, serão direcionados ao alojamento onde os jovens do tráfico dessa
localidade estão. Ou seja, a menos que os jovens que não pertencem a nenhuma
facção se oponham explicitamente a ir para um alojamento com jovens de facção, tais
como Alexander (19 anos, negro15), que disse que ao perguntarem “tá fechando com
quem?”, respondeu “‘eu? Tô fechando comigo mesmo!’ Não vou me meter em
problema”, eles irão partilhar o cotidiano com esses jovens e suas respectivas normas.
Isto, segundo um profissional que trabalha no CAI desde seu início, não foi sempre
assim, pois essa unidade se caracterizava por não fazer separações entre as facções.
Um momento da recepção que conseguimos observar em várias ocasiões foi o
corte do cabelo, inclusive, parte do assujeitamento realizado na instituição-
estabelecimento, como será discutido adiante. Em uma das ocasiões que observamos
esse momento, um jovem, que inclusive participou das nossas atividades, que ocupava
um lugar de liderança, se aproximou do jovem recém chegado, fazendo perguntas de
localidade, facção, entre outras informações necessárias para localizá-lo dentro desse
ambiente. Igualmente, um agente nos relatou que eles fazem sinais com as mãos,
indicando de que facção são. Como será abordado no texto, este tipo de acontecimento
vai dando conta da porosidade entre o Dentro e o Fora dos muros da instituição-
estabelecimento.
No pátio, do lado da entrada do refeitório, está A Mesa, ponto nevrálgico da
unidade, pois é nela que os movimentos logísticos, especialmente os referentes aos
jovens, são organizados. Toda vez que um/a técnico/a, docente, pesquisador/a ou
agente precisa trabalhar, atender ou conversar com algum jovem, deve solicitar
autorização nA Mesa, que informará ao agente que está no momento resguardando o
alojamento do jovem. É nA Mesa que os jovens devem fazer solicitações relacionadas
com roupas (uniforme), higiene, saúde, atividades, atendimentos, conversas com
diretores, etc. Igualmente, todas as pessoas externas à unidade devem informar nome
e objetivo nA Mesa. Constituída praticamente como uma entidade, A Mesa observa
15
Em alguns casos, a cor dos jovens é autodeclarada decorrente de pergunta direta ou de comentários
ao longo das atividades, mas em outros a identificação é minha.
27
16
No final desta pesquisa, ADA e TCP realizaram uma aliança, cujos efeitos não tivemos tempo de sentir.
17
Assim como no caso dos jovens, as/os profissionais serão mantidas/os em anonimato, mencionando
apenas algumas das suas caraterísticas (gênero, profissão) quando isso for necessário para a análise.
18
Também nos foi informado que uma avaliação do prédio sugeriu que seria mais barato derrubá-lo e
construir um novo, do que reformar esse tipo de deficiências.
30
condições de hiperlotação, não há vaga para todos, situação que se repete em outras
unidades.
De volta ao pátio, outro acesso do lado direito leva a um corredor com salas de
trabalho administrativo, recursos humanos e o alojamento dos agentes – cujas
condições também são alarmantemente insalubres e precárias-, bem como uma rampa
que sobe a duas galerias de alojamentos, onde estão alocados jovens do CV. Foi
também apenas na nossa última visita que conseguimos conhecer esses alojamentos,
todos com grades. A galeria A, chamada de Coletiva, que, segundo informado por um
diretor, é ocupada por jovens com um “ritmo frenético dentro do tráfico”, tem 13
alojamentos, com cinco a nove camas, habitadas por entre oito a vinte jovens. A galeria
B, chamada de Individual, com “jovens que querem ficar mais tranquilos”, tem nove
alojamentos, bem menores, com duas camas, com dois até cinco jovens. Pelas janelas,
é possível ver a favela que está atrás da unidade, de onde, segundo um dos diretores,
jovens pertencentes ao tráfico da região já chegaram a ameaçar os jovens internos. A
hiperlotação é evidente e as condições são muito precárias, especialmente ao
considerar que é nesse espaço que eles passam a maior parte do tempo.
De volta ao pátio, ao lado da sala dos diretores tem uma porta que leva à quadra,
muito bem estruturada, coberta com um teto de boa qualidade, utilizada para festas,
futebol, voleibol e outras atividades físicas. Do lado da quadra tem a horta, onde
durante a pesquisa, alguns agentes fizeram um trabalho com alguns jovens, chegando
a produzir ingredientes para preparar alimentos diferentes no refeitório. Também tem
outro prédio, que quando começamos a visitar a unidade alojava a provisória, mas
atualmente é mais uma extensão da internação. É composto por uma sala para
agentes, um pequeno pátio interno, um pátio externo para banho de sol e duas galerias
de alojamentos, ocupados por jovens que, segundo a dinâmica institucional, devem
permanecer afastados do resto por proteção, seja porque é sua primeira passagem
pelo Sistema Socioeducativo, ou porque tiveram um conflito nos outros alojamentos, ou
porque são acusados de cometer infrações relacionadas com violência sexual, ou
porque se identificam como homossexuais ou declaradamente têm relações com
homens – o Seguro. Todos esses jovens recebem as refeições em quentinhas nos
alojamentos, não no refeitório.
31
19
Como apontado por Marisa Rocha e Anna Uziel, “cotidiano é laboratório de experiências onde os
(des)arranjos se fazem, onde as estratégias de enfrentamento do imprevisível se constituem nas
circunstancias e condições que variam. Assim, o cotidiano é superfície de deslizamentos em que
repetimos o esperado, o já inscrito nas nossas agendas e que lutamos para cumprir, mas também é
tecido denso que entre tramas e dramas intensifica existências e dá o que pensar (ROCHA; UZIEL,
2008, p. 533).
32
unidade apontou que antes não era necessário separar as facções porque “éramos
muito mais truculentos, a pancada era outra, por isso era diferente”. Outro falou que
“antes não daria para ter tanto adolescente de forma tranquila, tinha muito mais
violência de todos os lados. Já cheguei a ver, há muito tempo, adolescente falando
‘porrada pra mim é massagem’, hoje em dia não é assim. Hoje em dia os adolescentes
são mais fáceis de lidar, porque eles são melhor tratados”.
Constantemente escutamos relatos de que outras unidades masculinas de
internação são mais duras, e que a atual gestão do CAI tem trazido melhorias.
Alexander, que já passou por outras unidades, disse:
escola Dentro da unidade, cartazes contra a redução da idade penal, e é orgulho desta
que a equipe docente tem muito boa comunicação, os jovens têm recreio e as facções
ficam misturadas nas salas de aula – como também os gays e os que foram acusados
de cometer estupro, assim como outros excluídos do convívio nos alojamentos-, mesmo
que nos momentos de lazer os jovens se separem. Inclusive, em junho de 2016 a
escola realizou uma festa junina onde jovens de todas as facções participaram nas
atividades lúdicas e artísticas, tais como dançar quadrilha, acontecimento ressaltado
como uma conquista. Ouvimos também elogios de outros segmentos de momentos
como formaturas, onde jovens que não estavam mais no CAI voltaram para se
formarem lá.
Escutamos elogios à equipe técnica em comparação com outras unidades,
especialmente a de saúde mental, em palavras de Emiliano (19 anos, negro), “um
projeto bom”, que já recebeu prêmios de boas práticas do Ministério de Saúde em 2015
e 2017, e que durante o campo observamos ter iniciativas extremamente interessantes,
tais como oficina para lavar roupa, limpeza, desenho, voleibol, artesanato, rodas de
conversa sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos e um curso de Promotores de
Saúde20. Infelizmente, quem é atingido por esse trabalho é uma pequena minoria dos
jovens.
Também ouvimos expressões como “Meu CAI, minha vida”, ou “a Família CAI”
de pessoas que informaram amar trabalhar ali, e dos seus esforços por se articular
tanto internamente quanto com outras instâncias de saúde, educação, cultura, esporte
e religião. No entanto, algumas pessoas também apontaram que o discurso da
instituição-estabelecimento é mais interessante do que a própria prática. Também, é
importante ter cautela, pois como sinalizado pelo Movimento Moleque, “nivelar pelo
menos pior não é a ideia do movimento de garantia de direito” (CUNHA; SALES;
CANARIM, 2007, p.42).
20
Gary Barker (2008) aponta a importância de trabalho com os jovens em temáticas sobre prazer e
promoção de relações igualitárias e justas, como um movimento fundamental na garantia da saúde
sexual e reprodutiva. Igualmente, conjuntamente com Nascimento e Segundo (2011), o autor aponta de
que forma os grupos de multiplicadores juvenis é uma ferramenta fundamental para o engajamento de
homens jovens em serviços de saúde no reconhecimento da necessidade de apoio, informação,
atendimento e aconselhamento, desafio constante nesses serviços.
34
21
“O devir não designa um estado de insuficiência. Não é uma falta de ser. Ele não carece vir-a-ser outro
para tornar-se real. Nem por imitação (copiar outro), nem por identificação (ser outro), tampouco por
transposição de relação (fazer como outro). Devir é tornar-se diferente de si. É potência de acontecer,
diferindo de si sem jamais confundir-se com o estado resultante dessa mudança” (FUGANTI, 2012, p.
73).
35
Junto com Deleuze (2008), o que nos interessa são as criações coletivas, propondo um
cultivo de realidade, não um extrativismo de dados, pois a cartografia procura
acompanhar processos e não apresentar uma representação (POZZANA; KASTRUP,
2009).
A cartografia é descrita pela psicanalista brasileira Suely Rolnik como:
22
Félix Guattari e Suely Rolnik (2011) apresentam as noções de “molar” e “molecular”. O plano do molar é
o plano das formas e suas representações, das diferenças sociais mais amplas, da política, da
constituição das grandes identidades. O plano do molecular é o plano das sensações, dos processos.
No entanto, não existe uma oposição entre ambos planos. Como aponta Guattari e Rolnik (1996, p.
128): “o molecular, como processo, pode nascer no macro. O molar pode se instaurar no micro” e
também “a produção molar de subjetividade se acompanha necessariamente por uma negociação
mínima de processos moleculares”.
36
Para esta pista, podemos nos apoiar no que a feminista bióloga estadunidense
Donna Haraway (1995) propõe ao pensar os “conhecimentos situados”, que “sustentam
a possibilidade de redes de conexões chamadas de solidariedade na política e de
conversações compartilhadas na epistemologia” (p.584), exercitando uma “prática da
objetividade [que] privilegia a contestação, a desconstrução, a construção apaixonada,
as conexões em rede, e tem a esperança de transformar sistemas de conhecimento e
formas de olhar” (p.585).
23
Entendemos nas nossas pesquisas que os homens também são sujeitos de gênero, no sentido de
serem perpassados por esse dispositivo e, portanto. produzidos como seres generificados.
38
24
Comona Provisória é grande a rotatividade, os jovens de lá não frequentam a escola, de onde partiram
os primeiros convites, e eles têm restrições de circulação, em função da briga entre facções,
trabalhamos com um número muito maior dos que estão cumprindo medida definida já.
39
saber com. Habitar um estado de coisas, seus trajetos possíveis, seus impossíveis,
subtrair o que insiste e produzir com”(COSTA, et. al., p.43). Deste modo, os processos
com profissionais e jovens permitiram mergulhar na instituição-organização Sistema
Socioeducativo e como esta é em grande parte constituída pelos dispositivos de
gênero, sexualidade e também geração, classe, raça e localidade.
Na experiência no CAI, foi exigida muita criatividade na hora de pensar técnicas
de pesquisa que fossem atraentes para os jovens, que pudessem ser realizadas em um
ambiente de liberdade restrita, com uma logística muito específica e exigente, e que
fossem inovadoras e ao mesmo tempo bem explicadas, pois ao fugir de atividades
padronizadas às que os jovens e a própria lógica do estabelecimento estão
acostumados, se apresentava o desafio de que não se apropriassem delas ou que elas
fossem consideradas inúteis. Também,
25
Um docente chegou a falar que ele realiza atividades que considera importantes, neste caso sobre
saúde sexual, pelo menos três vezes por ano, para garantir que as informações cheguem a todos os
jovens.
41
26
Também realizamos essa atividade no PAC-GC, com as jovens.
42
Anexo H), com a facilitação em uma das aulas de duas profissionais do Departamento
de DST/Aids da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Deste Curso
participaram 32 profissionais, incluindo técnicas/os, agentes socioeducativos e
diretores, além de seis jovens, que integravam o grupo de multiplicadores de saúde,
que fizeram parte, em duas aulas, da elaboração de estratégias para implementação do
preservativo.
Desse modo, no trabalho de campo, de março de 2015 a setembro de 2017,
trabalhamos com 163 jovens, sendo que alguns deles participaram em mais de uma
etapa, e 50 profissionais, que participaram em entrevistas individuais ou em grupo,
conversas informais, eventos da unidade e/ou Cursos oferecidos pela nossa equipe.
Isso tudo foi registrado em um diário de campo composto por 43 relatos do CAI, alguns
incluindo transcrições das entrevistas individuais e transcrições das conversas de
equipe que aconteciam no caminho de volta.
Assim, mesmo sendo eu que geralmente transcrevia esse material, ele é
primordialmente polifônico27, contendo afetações, análises, opiniões, palpites, desejos e
angústias de Gabi, Fernando, Anna, Pati, Luisa, Bárbara, Camilla, Vanessa, e em duas
ocasiões, de estagiárias/os do IFRJ28 que nos acompanharam. Material vastíssimo, que
expressa a complexidade, as tensões e as implicações que vivíamos no campo,
entendido como uma experiência temporal e profunda, espalhada não só nas
gravações e relatos estritamente do CAI, mas em relatos de reuniões de equipe ou com
gestoras/es, eventos, e Cursos oferecidos na EGSE, além de anotações errantes de
várias formas e tamanhos, pensamentos provindos de mesas de bar, eventos em que
participávamos – especialmente o Ciclo sobre Violência, Política e Sociabilidade
Urbana, coordenado por Carla Mattos, conversas nas redes sociais referentes a
acontecimentos no CAI, no Degase e na cidade.
Uma “escrita implicada”, que tentou captar “no dia a dia, as percepções, as
experiências vividas, os diálogos, mas também as sobras do concebido que emergem”
27
A polifonia se traduzia nas cores dos relatos, já que cada pessoa que os complementava escolhia uma
cor para suas contribuições. Também, na hora de transcrever as gravações, anotávamos de quem
tinham sido as reflexões que surgiam nas conversas.
28
Os/as estagiários/as foram Paulo Baptista, Sara Ellen e Max Martins. Elas/es também participaram da
elaboração dos relatos e da transcrição das discussões gravadas dos dias que participaram das
atividades.
43
29
Como descrito por Roberta Romagnoli (2014), a Análise Institucional, de René Loureau e Georges
Lapassade, e a Ezquizoanálise - onde a cartografia se insere como proposta metodológica - de Gilles
Deleuze e Félix Guattari, são vertentes institucionalistas que têm disjunções e interfaces teóricas,
metodológicas e políticas.
44
30
Marcada por uma perspectiva feminista, apontaria a importância de pensar em quem vai nos ajudar na
produção de conhecimento nas nossas pesquisas, convocando a um esforço constante por ampliar os
horizontes de referência que quebrem os paradigmas hegemônicos de produção de conheci00mento,
que têm sistematicamente priorizado autores homens, do norte global e brancos, em detrimento de
autoras/es que não ocupam essas posições de sujeito, e cujas importantes contribuições têm sido
invisibilizadas. Na minha perspectiva, isto não significa ignorar esses primeiros autores, vide meu amplo
uso de Felix Guattari, Michel Foucault e Gilles Deleuze, mas buscar dialogar com o que tem sido
produzido desde experiências não hegemônicas. É por essa razão que procuro, neste texto, inspirada
em autores/as decoloniais, explicitar esse movimento, explicitando de onde são (geográfica, política e
subjetivamente) as pessoas que estão nos inspirando e com as que estamos dialogando, no intuito de
visibilizar essa prática de desmontagem do local único de sujeito produtor de conhecimento.
45
Como utilizar conceitos sem fixar realidades, sem gerar pressuposições nem
determinismos? Como usá-los como ferramentas de problematização? Como operá-los
no campo em que estamos imersos/as? Como trazê-los ao campo do pensamento,
entendido como “uma máquina de experimentação permanente”, uma “potência de
invenção”, de “atualização das virtualidades que habitam este campo intensivo que se
desloca a uma velocidade infinita” (SILVA, 2004, p.59)? Parece importante, neste
sentido, conhecer a formação histórica dos termos e seu papel na produção de
subjetividades, de forma que sua operacionalização no campo não seja apenas uma
verificação teórica, mas uma aposta política pela subversão das forças que estabilizam
um campo de desigualdade. Como Félix Guattari e Gilles Deleuze apontam:
empregamos somente palavras que, por sua vez, funcionavam para nós como
platôs. [...] Estas palavras são conceitos, mas os conceitos são linhas, quer
dizer, sistemas de números ligados a esta ou àquela dimensão das
multiplicidades (estratos, cadeias moleculares, linhas de fuga ou de ruptura,
círculos de convergência, etc.) (GUATTARI; DELEUZE, 2000, p.32).
31
Esta parte foi majoritariamente escrita de forma conjunta com Luisa Bertrami, para um artigo que foi
infelizmente recusado por uma revista, eis a incapacidade de citá-lo.
46
Gilles Deleuze, entendido como força que cria percursos de produção de territórios de
subjetividade. Rosane Neves da Silva (2004) aponta que
Esta leitura, para nosso ponto de vista, possibilita pensar, priorizar e se instalar
nos processos, nos “meios” entre os pontos/inflexões, nas variabilidades das linhas que
vão além dos parâmetros constantes (DELEUZE, 1991). Assim, podemos pensar fluxos
que se dobram em diferentes superfícies, em texturas espaciais, temporais, corporais,
de intensidade. A partir de Leibiniz, Deleuze propõe que
o corpo flexível e elástico tem ainda partes coerentes que formam uma dobra,
de modo que elas não se separam em partes de partes, mas dividem-se até o
infinito em dobras cada vez menores, dobras que sempre guardam certa
coesão. [...] A unidade da matéria, o menor elemento do labirinto é a dobra, não
o ponto, que nunca é uma parte, mas uma simples extremidade da linha. [...] A
desdobra, portanto, não é o contrário da dobra, mas segue a dobra até outra
dobra (DELEUZE, 1991, p.17)
dobra como potência (DELEUZE, 1991) e, ao mesmo tempo, como resultado deste,
como inflexão ou ponto-dobra.
Através da análise realizada nesta pesquisa, compreendendo as dobras do
campo, pretendo também dobrar a figura dO Adolescente, movimento sugerido desde o
título, o que implicaria em criar as condições para que as diversas superficialidades,
corpos, intensidades e potências se expressem em sujeitos complexos,
compreendendo de que forma eles se constituem através de processos de subjetivação
que marcam e delimitam, mas, ao mesmo tempo, criam paradoxos, contrapontos,
possibilidades, rupturas, linhas de fuga. Esses processos são “maneiras pelas quais os
indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na
medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos
poderes dominantes” (DELEUZE, 2008, p.217).
Por sua parte, os dispositivos operam, materializam e enunciam as dobras e,
como elas, se referem a processos e historicidades. Entendemos os dispositivos como
engrenagens que não existem a priori e não são naturais, mas históricas, construídas,
que produzem sujeitos através de práticas discursivas e não discursivas (FOUCAULT,
1999; DELEUZE, 1989). Para o filósofo francês Michel Foucault, o dispositivo é
ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível,
limites ou fronteiras” (MACHADO, 1979/2011, p. XIV), ou seja,
o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona [...] como uma
máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas
se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma
relação. E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra
seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois
nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria
rede de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode
escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de
relações de forças. E como onde há poder há resistência, não existe
propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que
também se distribuem por toda a estrutura social” (MACHADO, 1979/2011, p.
XIV).
Nesta tese, dois dispositivos serão os principais: gênero e sexualidade, mas eles
sempre articulados com outros, especialmente com geração, raça, classe social e
localidade, formando conexões e gerando efeitos, a partir do entendimento que “o
múltiplo é não só o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”
(DELEUZE, 1991, p.13). Ao nos referirmos a essas dimensões como dispositivos, os
estamos considerando como não-naturais, não-totalizadores, não-a-priori; estamos
compreendendo-os como históricos, políticos, geográficos, construídos, produtores de
sujeitos através de práticas discursivas e não discursivas (FOUCAULT, 1999;
DELEUZE, 1989) de sujeições e escapes, saberes, práticas divisórias com os/as
outros/as e conosco.
É através desses dispositivos que nos constituímos como sujeitos de saber,
como sujeitos que sofrem ou exercem relações de poder, como sujeitos morais. Através
das relações entre todas as pessoas e as instituições-organizações (Sistema
Socioeducativo, judiciário, facções do tráfico, comunidades religiosas, etc.), no tempo e
no espaço, os dispositivos produzem e são produzidos infinitamente por dobras e
desdobras, instaurando e naturalizando certos códigos, regras, mecanismos, normas,
subversões, prazeres, sofrimentos, vidas e mortes, produzindo subjetividades e
performatividades.
Gênero e sexualidade podem ser compreendidos, nos argumentos de Anette
Farge (1984), através de suas práticas cujas problematizações se realizam mediante a
análise da especificidade e o intrincamento entre os eixos do saber, do poder e da ética
49
32
Esta elaboração foi escrita conjuntamente com Luisa.
51
Ô, todo falido, todo pobre, tira esse Estado, não tem nem alimento
pra comer, o Brasil tá em grande crise de Estado, grandes
rebeliões, policiais agredindo, pessoas morrendo todo dia, e como
você tá num lugar desse? Podia estar lá no México, comendo uma
pizza, uma lasanha
Abel,15 anos, negro
33
Para Guattari e Rolnik (1996, p.323) o território pode ser entendido como “o conjunto dos projetos e das
representações nos quais vai desembocar pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. O território pode- se
desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. [...].
A reterritioralização consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo
desterritorializante”.
52
perto dos Estados Unidos, veio parar neste formigueiro”. E Jhosivani (16 anos, negro)
disse:
34
Achei interessante ele ter me perguntando isso, sendo que ele rodou por roubo.
35
“Rolnik (2006/2014) descreve o olhar retina como uma percepção sobre o mundo em que a atribuição
de sentido é feita a partir das representações vigentes em nosso contexto histórico. E o olhar vibrante
como aquele que apreende a alteridade em sua condição de campo forças e intensidades que nos
afetam e se fazem presentes em nosso corpo em forma de sensações” (BENET; MERHY; PLA, 2016, p.
238, tradução livre).
53
Nesse sentido, os vínculos singulares que fomos criando com cada segmento de
profissionais e com os jovens foram importantíssimos, mas também o foi entender de
que forma nossa pesquisa-intervenção se relacionava com a logística da unidade,
54
36
Em vários momentos se fez referência ao Preservida, um programa da Coordenação de Saúde do
Degase, que foi implementado por diversos/as profissionais em cada unidade, mas que foi interrompido
por mudanças na gestão. Um profissional também falou de outro intitulado “Cuido meu ambiente, cuido
meu corpo”, que foi levado por uma ONG e absorvido posteriormente pela escola, mas que durou
apenas um ano por questões de verba.
37
Em um momento em que comuniquei a uma profissional o tema da pesquisa, ela respondeu “iiihhh”,
sugerindo que era um tema muito complicado para se abordar.
55
38
Relataram inclusive que em uma atividade com médicos falando sobre saúde sexual, os jovens tinham
solicitado que as profissionais saíssem do auditório.
56
algumas vezes, usavam palavrões, pedindo desculpas quando percebiam, pois para
eles isso era uma falta de respeito39, mas ao mesmo tempo assinalavam que éramos
nós que havíamos levado a temática. A fluidez para falar das práticas e dos nomes da
genitália era distinta em cada grupo, o que não dependia do apego às normas do
tráfico, mas do vínculo que conseguíamos estabelecer com os jovens. Antonio (18
anos, negro), por exemplo, não só falou, mas desenhou pênis, vaginas e ânus para
contar as histórias que estava construindo. Em outro grupo, os jovens também
desenharam um personagem com um pênis e uma vagina, dizendo que era uma
pessoa trans.
Além disso, o fato de não sermos profissionais da unidade, não estarmos
“imersas na lógica institucional” – como apontado por uma profissional– e não termos
nenhuma relação com as medidas socioeducativas pode ter influído nessa quebra da
“barreira moral”, como pensou Fernando. Isso sem dúvida mexeu de alguma forma nas
relações naturalizadas na unidade, o que, em palavras dele, “significa tensionar as
pactuações internas relacionadas e marcadas por gênero e sexualidade de quem lá
está”.
Outra importante instigação, carregada de um forte incômodo, foi a interpelação
realizada à minha vestimenta, tanto pela direção quanto por algumas profissionais, que
em um par de ocasiões, a consideraram “provocadora” demais. Em uma ocasião,
pediram para pôr um echarpe, dizendo que “se alguém chegasse na visita com essa
roupa, nem entrava”, que “algum menino não vai querer participar da pesquisa se te ver
assim”, e que “talvez não vai falar no momento, mas depois vai dizer que se sentiu
incomodado e vai reclamar na direção ou com os agentes” - argumento também
utilizado ao falar das limitações com as profissionais. Além de eu ter ficado
extremamente irritada com essa interpelação, depois disso ficamos pensando se a
minha roupa incomodava mais aos jovens ou aos/às profissionais.
Perceber de que forma não apenas meu trabalho e conhecimento, mas também
meu corpo, eram submetidos às regras da instituição-estabelecimento, principalmente
aquelas relacionadas com o nosso tema de pesquisa, foi um deslocamento
39
Uma profissional também chegou a relatar que quando os jovens conseguiam falar sobre essas
questões, sempre começavam dizendo “com todo respeito”. Foi comentado que só com algumas
técnicas, com as que se cria um vínculo, eles conseguem falar sobre esses temas.
57
preponderante para mim, sobretudo ao pensar que eu nunca considerei que a minha
forma de vestir tivesse essas características, especialmente no contexto carioca, onde
já fui em ocasiões identificada como crente, por minhas roupas serem consideradas
reservadas. Dessa forma, essa interpelação nos provocou pensar nas dobras que a
circulação nesse espaço apresenta a respeito do Fora.
Outra provocação importante foi o fato de sermos lidas como psicólogas, sendo
que esta profissão tem um lugar demarcado na instituição-estabelecimento e uma
prática que outras/os profissionais relatam acessar frequentemente, dizendo “temos
que dar uma de psicólogas”, ou “às vezes pareço psicóloga”. Nos encontros de grupo,
os jovens chamavam as atividades de aulas, palestras ou cursos40, enquanto que nas
entrevistas individuais, as/os agentes que nos apoiavam na logística diziam que íamos
atender os jovens e comparavam nossos atendimentos com os das técnicas. Com os
jovens, considerávamos importante garantir que eles dissociassem as nossas
conversas e atividades da elaboração dos relatórios que delimitavam suas medidas
socioeducativas. Por sua vez, em entrevista individual, Carlos Iván (17 anos, negro) me
perguntou se eu era psicóloga, e quando respondi que sim, ele disse: “dá pra perceber.
A senhora entrou na minha mente”.
Parece importante considerar essa implicação, diferente de pesquisadoras/es de
outras áreas, tal como a antropóloga feminista brasileira Natalia Padovani (2015), cuja
presença provocava estranhamento no sentido de não saberem exatamente o que ela
fazia nas unidades prisionais brasileiras onde realizava sua pesquisa 41. Já no nosso
caso, o difícil era explicar que nossas atividades não faziam parte das funções da
Psicologia como profissão dentro do Sistema Socioeducativo. Observando a resistência
de certos setores às ferramentas de pesquisa dos saberes psi, vemos uma “insatisfação
com os limites das nossas pesquisas em suas possibilidades de interferir,
principalmente quando nosso espaço de investigação está para além dos muros da
universidade” (ROCHA; UZIEL, 2008, p.532). Assim, o/a pesquisador/a “e os saberes
acadêmicos não esclarecem/interpretam “a realidade” no curso da investigação, mas
40
Interessante pensar que, para eles, a possibilidade de encontro com uma pessoa adulta passa pelo
atendimento, a elaboração do relatório ou a aula/palestra/curso, sem existir outro tipo de diálogos.
41
Natália Padovani relata a diferença que percebeu no caso das unidades catalãs, onde o lugar da
antropologia é distinto e mais presente no cotidiano das instituições-estabelecimento.
58
42
Ao mesmo tempo, a legitimidade da autorização da gestão do Degase, com a qual temos muito boa
relação e nos apoiou muito na pesquisa, foi em alguns – poucos- momentos demandada por
profissionais.
43
Percebemos a diferença no segundo Curso, no módulo facilitado por pessoas da Secretaria de Saúde,
que mesmo tendo mais conhecimentos na área de prevenção, ao não ter familiaridade com o cotidiano
da unidade, foram mais questionadas.
59
engajamento com a unidade,44 quanto porque muitas dessas limitações eram impostas
justamente pelas forças e dinâmicas do estabelecimento, que muitas vezes nos
impossibilitavam conhecer com maior profundidade espaços e rotinas. Nesse sentido,
vemos um dos desafios apresentados por Bicalho, Rossotti e Reishoffer (2016) ao fazer
pesquisa-intervenção no que eles denominam “instituições de preservação da ordem”:
44
Tinha ocasiões em que, nas conversas gravadas que tínhamos no carro de volta e que posteriormente
eu transcrevia, percebia que eu mesma usava as expressões “aqui Dentro” e “lá Fora”, revelando uma
certa identificação com o CAI como um espaço meu.
45
Além do percurso de pesquisa-intervenção específico do CAI, realizamos um retorno da pesquisa geral,
que abrangeu três unidades, na EGSE.
60
46
Em uma ocasião, quase no final da pesquisa-intervenção, ao querer mostrar a unidade para pessoas da
nossa equipe e não ter quem nos guiasse, fui eu a guia e, apesar de ter acesso apenas a uma parte,
ouvi: “ah, já é da casa”.
61
Cursos de forma mais equilibrada47, justamente por não fazer parte do cotidiano. Outras
foram se abrindo paulatinamente, ao observar nosso compromisso com a unidade,
algumas mantiveram uma postura distante e desconfiada em relação à nossa presença
e ações.
Por sua parte, a relação com os jovens tomava outras conotações. Diferente do
que Natalia Padovani relata na sua pesquisa, onde escutou de uma mulher de sessenta
anos, com vinte anos de prisão, dizer “eu não vou participar de pesquisa nenhuma! Não
sou laboratório não senhora! Já estou muito velha pra sentar diante de um gravador e
falar mal do sistema” (PADOVANI, 2015, p.101), a maioria dos jovens mostrava-se
curiosa, divertida, interessada e com vontade de participar, partilhar, provocar e
perguntar, entendendo que “elas sabem como que é [fazer sexo], mas elas querem
saber da nossa boca”, como apontado por Carlos Lorenzo (17 anos, branco). Jovens de
um grupo chegaram a falar que essa era a “melhor aula que já tivemos”, que “seu
trabalho é muito bom” e que poderiam ficar o dia inteiro conversando conosco. Carlos
Iván disse, depois da entrevista individual:
Carlos Iván: é muito bom dialogar. Vou pensar nesse negócio de ser psicólogo
Jimena: sim! você gostaria de participar de mais atividades com a gente?
Carlos Iván: claro! Você é muito legal
47
Este termo, utilizado por uma das profissionais da unidade, mostra uma constante disputa entre equipe
técnica e agentes, que precisaria de alguém De Fora para propor caminhos que não favorecessem
alguma das perspectivas, tensionando ainda mais o cotidiano.
62
Para os jovens os nossos encontros eram também uma oportunidade para sair
do alojamento, onde se sentem “muito presos” e onde “não fazem nada mesmo”.
Alguns indagavam sobre nossas vidas, relações e trabalho, mostrando especial
curiosidade na minha escolha de sair do México e na experiência de gravidez da Gabi.
Outros expressavam sua visão sobre as suas vidas e contextos para “contribuir para
acabar com os preconceitos contra nós, o preconceito contra Bandido”48 como
apontado por Benjamín (17 anos, branco) em um dos grupos. Christian Alfonso (16
anos, negro) disse “isso aqui simpremente poderia ajudar pra todo mundo saber como
que nós tá. Porque ninguém sabe como nós tá. Acha que todo mundo tá bem, mas não
tá bem”. Também disse para Gabi, em uma fala que mistura afeto por nós, empatia,
preocupação com o contexto brasileiro e denúncia da situação no Degase:
dá pra ver que a senhora é legal, dá pra ver que a outra ali (Jimena)é legal.
Porque as pessoas estão aqui mais pra ajudar, vocês estão aqui mais pra
ajudar, vocês não estão aqui pra prejudicar ninguém. Eu fico vendo a
dificuldade de vocês, vocês trabalham na UERJ, eu fico vendo na televisão
como tá a dificuldade lá. Hoje em dia nosso Brasil tá em crise, hoje em dia não
tem governador pra pôr as coisas... Os hospitais estão precisando de maca,
roupa, precisando de material, não tem. Aqui na enfermaria também não tem
material. Só tem material quando quer vir, quando não quer, não tem. Quando o
adolescente precisa de um medicamento, não tem. Fica em falta.
48
Apesar de existirem outras categorias semelhantes, usarei o termo Bandido com maiúscula, pois ele se
destacou como um analisador de uma série de experiências e valores específicos, revelando dobras de
gênero e geração, com performatividades masculinas e relações particulares que delimitam noções
sobre privilégios e direitos que essa figura possui, merece ou não.
63
Como apontado por Marisa Rocha e Anna Uziel, pessoas que fazem pesquisa
nas escolas, e acredito que ainda mais no Degase, viram receptáculos de denúncias do
estabelecimento, seja dos jovens com ele, seja entre segmentos, seja do Degase com o
governo – sobretudo na situação atual. Concordo com elas ao apontarem que
49
O fato deles não quererem falar foi uma interpelação importante que gerou deslocamentos e mostrou
como o campo estava vivo e interagindo de formas diversas conosco. Embora tenha me provocado
frustração ao pensar que eles preferiam estar no alojamento do que participar da conversa, foi
importante eles acionarem suas agências para mostrar, apesar da diferença de poder desse momento,
que não queriam falar comigo, ou não queriam falar comigo sobre isso, ou não queriam falar nesse
momento.
65
possível redução de medida deles, não deixamos de ser lidas como psicólogas, que
avaliam e examinam. A pergunta de Bicalho, Rossotti e Reisenhoffer (2016, p. 94) é
pertinente: “seria uma ingenuidade propor relações laterais e não hierarquizadas, em
lugares que são constituídos pela hierarquia?”. Para eles, “a aposta é que se pode criar
as possibilidades para que as forças instituintes e de singularização emerjam,
objetivando produzir novos agenciamentos, novas composições e arranjos subjetivos.
Bifurcar a totalização para extrair, dela, vida” (BICALHO; ROSSOTTI; REISENHOFFER,
2016, p.94).
Outra questão ética importante e produtora de tensões foi a escolha dos jovens
que participariam de cada uma das nossas atividades e a forma como a informação
sobre a pesquisa e participação deles era transmitida. Toda vez que íamos, os jovens
eram apenas chamados a comparecer ao local da atividade, sem explicar o que
faríamos, o que impedia que jovens ocupados em outras atividades, ou dormindo,
pudessem expressar sua indisponibilidade no momento.
Bem no início da pesquisa, um agente sugeriu que chamássemos os jovens do
TCP e ADA que, por serem minoria, raramente são chamados para atividades. Apesar
de vários jovens estarem na nossa lista de interessados, pois nas salas de aula as
facções são misturadas, naquele momento não sabíamos que para conversar com eles,
tínhamos que fazer uma solicitação específica, pois de outra forma continuariam
chamando jovens dos alojamentos do CV.
Jovens do seguro ficam mais tímidos que o resto, contribuindo muito pouco na
atividade e não tendo suas ideias acolhidas. Em poucas situações há uma prática de
convivência, como no grupo de Promotores de Saúde, mas ainda assim
constantemente demarcam as diferenças entre os próprios alojamentos, e o jovem do
seguro é constantemente apontado como diferente. Assim, essa mistura, que
valorizamos, vivida como um desafio para nós, faz entender as precauções logísticas
da unidade, o que não significa naturalizar a separação por facções, evidenciando a
porosidade dos altos muros da Unidade.
Maynar Leite (2014) relata que as discriminações entre grupos no presídio
geravam tensões que ela e a psicóloga que a acompanhava tiveram que enfrentar,
incluindo decidir não realizar grupos que misturassem algumas internas, pois “esse
66
Nossa proposta era, então, suscitar condições para dialogar, para falar de si/nós em
outros registros além do abuso de poder e da impotência, em agenciamentos de
singularidades.
Dentro da dimensão ética, um princípio fundamental foi, em palavras do cineasta
brasileiro Eduardo Coutinho (1997), a “escuta sensível da alteridade”, que parte de uma
atenção, de uma abertura dos sentidos sem estabelecer roteiros de pesquisa - ou, no
caso do Coutinho, de filmagem. Assim, em momentos como os relatados, uma
constante preocupação foi como se posicionar eticamente neste campo. De que forma
fazer da prática de pesquisa psicossocial um movimento “de insurgência e criação?”
(COIMBRA, 2008, p.11). Como Cecília Coimbra (2008, p.17) coloca, “há que inventar,
criar, e a todo momento, tentar fortalecer as derivas, as fugas”.
ao mesmo tempo, num plano de imanência. Teorias e práticas são sempre práticas, se
compondo reciprocamente sem relação causal, em processo, com resultados “sempre
provisórios, em processo de permanente mudança” (ROCHA; UZIEL, 2008, p.542).
De tal modo, a intervenção não implica só a nós como equipe de pesquisa, mas
também o próprio campo, que se implica em diferentes fluxos, intensidades, e com
diversas intenções. O material de campo é assim material de análise e de intervenção,
pois vai se alimentando a si mesmo em um processo de produção de movimentos no
campo, onde ele nos chama para intervir e oferecer ferramentas com os elementos que
ele mesmo nos proporciona.
Desta forma, como equipe fazendo uma cartografia, nos reconhecemos como um
instrumento na pesquisa-intervenção, numa colheita não de dados, mas de caminhos
de potência nesse campo, já que “se, por um lado a cartografia não lida com “dados” no
sentido mais tradicional do termo, ela também não pode se esquivar do fato de que ela
gera efeitos (BARROS; BARROS, 2013, p.374). Assim, é importante pensar em que do
estabelecimento socioeducativo e das instituições-organização e instituições-forma que
o atravessam estamos mexendo com as nossas experimentações. Qual debate
estamos ajudando a produzir e a quem serve? Colocar estas questões na análise
reafirma o caráter político da pesquisa-intervenção (NASCIMENTO; COIMBRA, 2008).
Além disso, tentamos promover o diálogo entre os segmentos, nos esforçando
em fomentar a desestabilização da separação apontada entre eles, principalmente
através do primeiro Curso, onde foram realizadas várias atividades entre pessoas de
diversos segmentos e o diálogo entre eles foi positivamente avaliado por várias
pessoas. A proposta metodológica era que não existisse uma imposição de saberes,
mas um diálogo de experiências e conhecimentos e uma produção de movimentos
localizados. E esse diálogo foi um elemento ressaltado desde o início do Curso com
encantamento, palavra de uma profissional, diante de um interesse em “conhecer o
ponto de vista dos outros”, pois “é necessário fortalecer as relações institucionais, os
vínculos de confiança”, em palavras de um profissional de outro segmento, e destacado
nas avaliações finais, sobretudo do primeiro Curso, agradecendo pelo espaço para
diálogo e apontando que as relações tinham melhorado muito entre eles/as, que agora
cumprimentavam pessoas que antes nem conheciam.
69
Naquele momento, o clima político da unidade estava mais calmo, e não existia
uma proposta concreta de mudança, como no caso do segundo Curso, que visava
implementar a distribuição de preservativos, e o grupo conseguiu se engajar e participar
mais. Durante a organização do segundo Curso voltou à cena o debate sobre a
pertinência do público serem agentes e técnicos juntos ou separados, já que
identificamos pontos positivos e negativos em ambos os formatos. Optamos por um
público o mais diverso possível.
Ambos os Cursos tiveram desdobramentos interessantes, com atividades como
leitura de texto, projeção de curtas, fabricação de zine, rodas de conversa, incluindo
umas específicas na recepção dos jovens, apresentações teatrais, e propostas
concretas de distribuição de preservativos – no caso do segundo Curso- foram
realizados.
Em uma experiência também muito intensa de cartografia de/em um serviço de
ginecologia e obstetrícia, Marta Benet, Emerson Elias Merhy e Margarida Pla, apontam
como foram se apropriando, de forma antropofágica, de uma caixa de ferramentas
composta por
Também, como apontado por Virgínia Kastrup e Eduardo Passos, “ter um mundo
às mãos é comprometer-se ética e politicamente no ato do conhecimento. É intervir
sobre a realidade. É transformá-la para conhecê-la” (2013, p.264).Nos Cursos, mesmo
trazendo os nossos conhecimentos no campo do gênero e da sexualidade, não
procuramos um mero caráter de sensibilização ou capacitação, mas um momento de
construção coletiva onde as e os profissionais que estão no cotidiano pudessem se
apoiar em nós para investir em linhas de fuga, de forma a desterritorializar as diversas
instituições-forma que atravessam as vidas dos jovens e de todas e todos nós, e que
controlam, aprisionam e moldam os nossos corpos e sexualidades.
Esses jovens foram criando brechas criativas, em uma “máquina de guerra”
(DELEUZE, 2008), para explorar essa possibilidade e subverter vários códigos,
ocupando tempos e espaços aparentemente não disponíveis, apoiados por
profissionais de vários segmentos e por nós, propondo diálogos de trabalho com eles a
73
1.4 “Vocês mulheres têm aqui outra visão”: pesquisa feminista com homens
Parece pertinente trazer aqui outra pista das que proponho ao pensar metodologias
feministas, que
versa sobre as pessoas que vamos chamar para construir a pesquisa conosco,
que [...] gosto de chamar de “participantes”, para fugir da terminologia comum
de “sujeitos” ou inclusive “objetos”. Neste sentido, é importante pensar com
quem desejamos produzir conhecimento e o que isso significa para essas
pessoas, que provavelmente será diferente do que significa para nós como
pesquisadoras/es que decidimos investir de certa forma no processo e temos
compromissos acadêmicos com ele, incluindo, muitas vezes, um financiamento
ou bolsa de estudos. O nosso encontro com as pessoas não pode diferir
apenas no sentido de que nós decidimos embarcar na pesquisa e escolher
certa população para convidar a se engajar como participante, mas também no
que tange às posições de sujeito que ocupamos no tecido social (DE GARAY,
2017, p.63).
Nesse sentido, uma discussão importante no campo das pesquisas feministas tem
sido a pertinência de pesquisar com homens. Por um lado, a feminista antropóloga
74
aponta as críticas feitas aos chamados Men’s studies que, ao tentar integrar os
homens às análises das violências de gênero, têm mostrado uma tendência a
vitimizá-los, argumentando que também sofrem violência de gênero,
reivindicando uma flexibilização dos “papéis” e não uma mudança profunda nas
75
50
Apesar de problematizarmos conceitos como patriarcado, papéis de gênero e ideologia, usados por
essa autora, suas elaborações nos parecem extremamente interessantes e relevantes para este
trabalho.
77
51
http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2014-11-07/a-educacao-da-uma-nova-identidade-diz-preso-
que-entrou-na-ufrj-pelo-enem.html
79
Faz-se necessário reconsiderar a relação da ética com a crítica social, uma vez
que parte do que considero tão difícil de narrar são as normas – de cunho
social- que dão origem à minha existência. Elas são, por assim dizer, a
condição da minha fala, mas não posso tematizar plenamente essas condições
com os termos da minha fala. Sou interrompida por minha própria origem social,
e por isso tenho que encontrar um jeito de avaliar quem sou deixando claro que
sou da autoria daquilo que me precede e me excede, e que isso, de maneira
nenhuma, me exime de ter de relatar a mim mesma. Mas significa que se me
posiciono como se pudesse reconstruir as normas pelas quais se instaura e se
sustenta minha condição de sujeito, então recuso a própria desorientação e
interrupção da minha narrativa implicadas pela dimensão social dessas normas.
Isso não quer dizer que eu não possa falar dessas questões, mas apenas que,
quando o faço, devo ter cuidado para entender os limites do que posso fazer, os
limites que condicionam todo e qualquer fazer. Nesse sentido, devo adotar uma
postura crítica (BUTLER, 2015. p. 107).
Nessa interlocução, não sou apenas uma mulher sobre a qual eles poderiam
exercer poder, mas também sou adulta, universitária, livre, e gringa, dobras que
geravam curiosidade neles e que eu permitia que explorassem e indagassem,
possibilitando a visibilização da forma com que meu corpo e minha linguagem eram
afetados e afetavam os meus percursos.
No que tange aos atravessamentos dos dispositivos de raça, classe e localidade,
como apontado por Francesca Gargallo (2014), no momento em que como branca
percebo “os privilégios que o sistema racista tem reservado para mim desde a infância”,
(p. 19, tradução livre) processo intenso e inacabado para o qual tenho precisado de
80
52
Como sugerido por Thiago Melício, podemos pensar nos sotaques como dobras de territórios
existenciais.
53
Como essa autora aponta, ao falar da “confrontação dessa linguagem com as normas do português
culto”, “a falência da educação pública é fato, mas é necessário relativizar e contextualizar os diferentes
modos de apropriação da língua pelas camadas populares, pois elas envolvem sonoridades, sentidos e
conformações históricas que criam elementos fora da norma culta e que não podemos entender como
erros, sob pena de simplificar processos complexos de criação cultural” (FACINA, 2009, p.106). É com
essa intenção que coloco as falas dos jovens na íntegra, não por ridicularizar o “mau” uso da língua
portuguesa, até porque isso seria hipócrita especialmente no meu caso, mas por respeitar e entender o
processo de construção gramatical e expressiva nessas falas.
82
não diz respeito aos sujeitos formados, mas ao que, nos sujeitos, por ocasião
de seus encontros intensivos pelo mundo, não cessa de se deslocar, de se
rearranjar, de atrair e de fazer partir, compondo-se com outras multiplicidades
diferentemente. É por isso que o pesquisador nômade nunca é ninguém
definido de antemão e também nunca parte de uma origem fixa ou visa um
ponto de chegada. Ele é a vivência do entre (LELMOS; CARDOSO;
NASCIMENTO, 2012, p.157).
Diante disto, podemos nos perguntar de que forma são definidos os limites de
pertencimento, reconhecimento, representatividade e possibilidade de encontro.
O atravessamento geracional foi revelado nas diferenças das relações dos
jovens com integrantes da nossa equipe, que se aproximavam ou se distanciavam mais
da sua geração. Isso era interessante até na forma com que se referiam a nós, alguns
nos chamando de dona, tia, filha, outros de senhora, outros de você, o que tendia a
mudar ao longo da conversa, relaxando na medida em que o trabalho fluía.
Como não sabiam qual era a minha idade, elucubravam: um jovem disse que eu
poderia ser mãe dele e vários afirmaram, nas entrevistas individuais, que eu parecia
muito mais jovem. Nesse sentido, uma questão interessante, revelada por Gabi no
campo, mas que é consistente com outros espaços onde me desenvolvo que de certa
forma me intimidam, era a minha tentativa inconsciente - e até consciente, quando
revelada, mas incontrolável - de agradar às pessoas com as que estava me
comunicando, concretamente infantilizando a minha voz no início das conversas,
voltando ao meu tom normal ao longo delas.
Assim, ao considerar a geração como um dos dispositivos de produção de
subjetividades, é primordial, em uma cartografia feminista, considerá-la nas nossas
análises, reconhecendo a desigualdade entre nós pesquisadoras e os jovens, com
apontado pela psicóloga brasileira Lucia Rabello de Castro (2008). Assim, nos
encontros, era importante considerar não só o estatuto jurídico de menores de idade, e
de serem considerados imaturos e incapazes politicamente a partir da noção de
linearidade de vida que caracteriza a compreensão de infância, adolescência e idade
adulta como um continuum dado, mas que eles estavam em privação de liberdade, o
que provoca uma ruptura.
Essa problematização deveria estar sempre colocada como um princípio ético e
metodológico, para além de uma autorização do Estado, que possui sua tutela, e de um
Termo de Assentimento cujo conteúdo no que dizia respeito à confidencialidade e sigilo
nós não podíamos garantir. Era necessária uma constante análise sobre sua inserção
na pesquisa, os lugares a eles destinados, e a clareza de que o objetivo era sempre
manter uma responsabilidade para com o bem-estar desses jovens (CASTRO, 2008).
Nesse sentido, foi fundamental exercitar a sensibilidade para perceber quando os
84
jovens não queriam participar ou não se sentiam à vontade para conversar, mesmo que
eles não o expressassem, coisa que acontece muito em um espaço em que, com suas
“marcas das relações instituídas de poder” (CASTRO, 2008, p.31), são obrigados a
realizar o que não querem, sem abertura para reivindicar seus desejos singulares.
Neste sentido, a autora também frisa a importância de pensar os resultados
como “relevantes, úteis e inteligíveis” (CASTRO, 2008, p.22) para as crianças e jovens
envolvidos/as na pesquisa, a partir do “paradigma de transformação da realidade
desses sujeitos” convidando a renovar os dispositivo “para poder incluir a participação
desses sujeitos, inserindo-os como parceiros no campo de pesquisa” (CASTRO, 2008,
p.30). Destacamos dois movimentos da nossa pesquisa centrados nessa preocupação:
explicar a cada jovem o que é uma pesquisa e qual o objetivo da nossa e, no momento
do segundo Curso com profissionais, incorporar os jovens do grupo de Promotores de
Saúde. No entanto, dadas as muitas forças, incluindo as nossas, que disputavam o
espaço do Curso, avaliamos que infelizmente tivemos poucas energias e tempo para
garantir que esta atividade tenha tido relevância, utilidade ou inteligibilidade em suas
vidas.
A autora também afirma que problematizar a desigualdade como um
posicionamento ético-político e epistemológico do/a pesquisador/a deve ter implicações
nos métodos escolhidos para trabalhar com crianças e jovens, buscando
permanentemente que “possam se sentir mobilizados a aderir ao trabalho de
discussão” (CASTRO, 2008, p.31). Nesse sentido, dispositivos estéticos-metodológicos
como fotos, desenhos, zine54, peças de teatro e Curta-debate, sugeridas e executadas
por nós e/ou por profissionais em desdobramentos dos nossos cursos, surtiram efeitos
extremamente interessantes de diálogo, onde os momentos exigia criatividade para
adaptar a atividade às forças que estavam jogando nesse momento, como tamanho e
composição do grupo, local da atividade e tempo para realizá-la.
No uso desses dispositivos, a interação foi fundamental, não ocupávamos o lugar
de meras observadoras. Nesse sentido, acionamos a dissolução do ponto de vista
54
A proposta do zine foi realizada por Fernando, que o descreveu como uma ferramenta onde “as
pessoas se envolvem no reconhecimento, na criatividade, na produção, superando as práticas mais
domesticadas, e em termos de interlocução com a pesquisa, é um material às vezes mais potente do
que outros, porque tem um processo materializado naquele artefato que dá um protagonismo juvenil”.
85
da/o/s observadora/e/s, noção trazida pela cartografia, que solicita que a/o/s
pesquisadora/e/s não se localize/m na posição de observadora/e/s distante/s nem que
localize/m um objeto como coisa idêntica a si mesma, mas que ponha/m em cheque os
pontos de vista próprios e os territórios existenciais solidificados, que se lance de forma
performática na experiência acompanhando os processos de emergência, que
procure/m um paradigma de cuidar e conhecer como inseparáveis na transformação
social que busca/m no momento em que faz uma pesquisa (PASSOS; DO EIRADO,
2009). Ou seja, essa dissolução não significa deixar de existir, mas investir em uma
existência de afetação e sensibilidade com os fluxos que o campo traz.
Esta postura fazia com que pedissem para que nós também desenhássemos ou
que opinássemos no decorrer das atividades, o que contribuía para visibilizar a
heterogeneidade de pontos de vista, desnaturalizando algumas questões.
Castro fala sobre o trabalho em grupos, onde
55
Percebíamos também que alguns desses jovens tinham uma interação específica com o resto, por
exemplo, dando ordens para nos ajudar a organizar o espaço para a atividade, mostrando uma
liderança.
87
eu falo palavrão pra caraca... mas costumo não falar quando estou com uma
pessoa assim... até sai, sem querer, mas não gosto, porque as pessoa me vê
com outro olhar. Se eu falar palavrão, me vê com outro olhar. Te garanto. Tipo
assim, se chegar aqui e começar falar, a senhora vai ficar “ah, esse menor não
sabe nem respeitar”.
Em um grupo, os jovens afirmaram que falar sobre sexo com mulheres seria um
desrespeito, e que só falavam sobre isso com professores, segundo normas da facção,
e que se eles cometessem algum abuso nesse sentido, sofreriam as consequências no
alojamento. Quando Gabi provocou que ali estávamos conversando abertamente sobre
vários assuntos, um deles ponderou: “mas aqui é diferente, vocês chamaram a gente
pra falar disso, então aqui pode”, apontando também que a vida sexual deles não deve
fazer parte do relatório, portanto, não haveria necessidade de falar sobre isso com as
técnicas de medida. No entanto, esse dia Max estava presente, e Gabi observou que
permanentemente eles falavam e se dirigiam a ele, dizendo “fala professor”, sugerindo
que ele tivesse mais conhecimento sobre esses assuntos, demonstrando que se
relacionam de forma diferente quando tem um homem no grupo, como se ele tivesse
88
mais legitimidade para tratar desse assunto do que as mulheres. Em outra ocasião, os
jovens falaram que se Fernando estivesse sozinho, poderiam se expressar mais
abertamente, e que não gostavam de usar algumas palavras para que eu não me
sentisse constrangida, apesar de eu pontuar que era eu que tinha levado a temática. No
entanto, achamos os encontros extremamente ricos para problematizar esses
distanciamentos.
O flerte também modificava comportamento de alguns jovens, o que revelava
traços específicos do encontro entre eles e pesquisadoras mulheres. Quando
passamos nas salas de aula para convidar os jovens a participarem da pesquisa,
Antonio perguntou sobre minha tatuagem, e, ao explicar a história de que ela
representava a minha cachorra que tinha perdido, ele disse “agora você tem que
encontrar um cachorro brasileiro”, diante do qual a sala inteira riu. Ele mesmo, em uma
atividade em grupo que participou, olhava bastante o decote da Gabi, e em um
momento em que falávamos sobre HIV, ele disse “às vezes não dá para saber se a
menina tem, pois tem o corpo bonitinho igual ao seu”.
Em um grupo, teve um momento em que Gabi perguntou bastante sobre as
práticas sexuais que as mulheres com as que os jovens se relacionam gostam, e eles
insistiam em que as mulheres que gostam de sexo selvagem são safadas ou doidinhas.
Reagindo à afirmação de Gabi sobre o gosto de algumas mulheres por determinadas
práticas, Abelardo sugeriu que ela seria uma dessas, gerando um momento
interessante de diálogo sobre prazeres, incluindo os nossos, para desconstruir certos
rótulos.
Em entrevista comigo, Bernardo (18 anos, negro) falou várias vezes do desejo
dele por mulheres brancas, de olhos azuis e preparadas, afirmou que profissionais da
unidade “davam mole para ele” apesar da diferença geracional e no final da entrevista
me beijou a mão. Nas entrevistas individuais, em várias ocasiões os jovens
perguntavam se eu era solteira. No segundo Curso, os jovens que participaram se
aproximavam de Luisa, Camilla, Bárbara e Vanessa e pediam o telefone ou Facebook.
Em algumas ocasiões, disseram que depois desse encontro eles não poderiam
quebrar -se masturbar- por uma semana, como sinal de respeito a nós, pois alguém
poderia pensar que estavam fantasiando conosco. Essa regra se aplica a mulheres que
89
não fazem parte do cotidiano. No entanto, quem faz também entra em uma lógica de
neurose, para não provocar os jovens, tendo suas roupas e comportamentos
permanentemente esquadrinhados.
Isso tudo nos fez pensar nas implicações de sermos pesquisadoras mulheres.
Se, em geral, na perspectiva institucional, é essencial se evitar qualquer contato que
sugira erotismo, inclusive quando restritos à palavra, em nome da proteção das
profissionais mulheres, no nosso trabalho estas aproximações eróticas podem ser
utilizadas como analisadores para pensar a forma como os jovens as estabelecem,
atentando para os elementos performativos que acionam, e quais as fronteiras entre as
diferentes noções de respeito. Do ponto de vista pedagógico, mas também ético e
político, essas situações devem servir para promover um entendimento de que uma
relação respeitosa entre homens e mulheres não depende das roupas utilizadas pelas
mulheres, das temáticas discutidas, dos termos utilizados, tampouco dos espaços por
onde se circula.
Assim, é importante pensar que uma análise de implicação como uma política de
entendimento das distintas trajetórias, tal como apontado por Carla Mattos no Ciclo
sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana, não passa apenas, no meu caso, por
ser mulher, mas também por ser feminista, por ser psicóloga social, por ser De Fora,
elementos que traziam uma série de deslocamentos no campo. Que coisas das que me
falaram não falariam, por exemplo, para alguém com mais proximidade? Seja por ser
homem, por estar no mesmo estabelecimento, por partilhar certas coisas? Que coisas
não me falaram? Que coisas escaparam do meu entendimento?
Acredito que a singularidade desse encontro, ao ser analisada, pode produzir
alternativas de pesquisa. Ressalto assim a potência do encontro, sem idealizá-lo, pois
ele é produzido na teia de relações de poder, mas entendendo-o como momento de
deslocamento da pesquisadora e dos participantes, como dobra, como possível conflito,
mas também como aliança, como coalizão, conexão heterogênea.
90
56
Uma profissional relatou que os alojamentos não podem ser pintados ao mesmo tempo, pois é
necessária toda uma logística.
57
Uma profissional relatou em uma ocasião que só em 2007 foram colocados os vasos sanitários.
91
58
Podemos entender o machismo como um conjunto de discursos e práticas que separam e
hierarquizam as vivências e os corpos de homens e mulheres como se fossem excludentes e a
cisheteronormatividade como a imposição da norma cis e heterossexual como única forma válida de se
relacionar. “Cis” se refere às experiências em que as pessoas se identificam com o gênero e o sexo
assignados ao nascer, que se diferenciaria da experiência “trans”, em que as pessoas não se
identificam com o gênero e o sexo designados no nascimento, o que coloca em xeque a suposta
estabilidade do sistema binário e dicotômico de gênero.
93
recentemente ela tem tomado um peso central nas discussões dos feminismos,
visibilizando, de forma desafiadora, que o gênero não é a uma vivência única e central,
mas entrelaçada em uma rede complexa, divergente, instável e plural de violências,
existências e resistências coletivas.
Como apontei, Anna, Luisa e eu temos pensado em uma leitura da
interseccionalidade a partir do conceito deleuziano de “dobra”, que nos possibilita
pensar para além de pontos em uma intersecção identitária, propondo experiências,
fluxos e movimentos que se dobram em diferentes superfícies, em texturas espaciais,
temporais, corporais, de intensidade. Gilles Deleuze introduz este conceito inspirado em
Foucault:
Rosane Neves da Silva (2004) aponta que “um processo de subjetivação traduz
o modo singular pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação
de forças” (SILVA, 2004, p.56). Assim, a dobra se configura como uma inflexão de
“linhas infinitamente móveis que percorrem o plano de imanência cuja superfície é
povoada por singularidades anônimas e nômades” é “a expressão de um mundo
possível” (p.60).
Concordo com Fonseca e Costa (2012) ao pensar que
Enquanto que
94
Há linhas que representam alguma coisa, e outras que são abstratas. Há linhas
de segmentos, e outras sem segmento. Há linhas dimensionais e linhas
direcionais. Há linhas que, abstratas ou não, formam contorno, e outras que não
formam contorno. Aquelas são as mais belas. Acreditamos que as linhas são os
elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Por isso cada coisa
tem sua geografia, sua cartografia, seu diagrama. O que há de interessante,
mesmo numa pessoa, são as linhas que a compõem, ou que ela compõe, que
ela toma emprestado ou que ela cria (DELEUZE, 1992, p.47).
Ela propõe que essas perspectivas foram dominando o debate no percorrer dos
anos, mas eu gostaria de destacar que, ao que parece, os três coexistem, pois vemos
discursos e práticas de higienização, modernização e garantia de direitos ao mesmo
tempo, principalmente no contexto político atual do Brasil.
Por sua parte, Da Silva, Sereno e Gonçalves apontam que
59
Neste último modelo, a governamentalidade se apresenta na proliferação de espaços de governo.
96
tínhamos ouvido, rapidamente reformulou, o que visibilizou uma certa vigilância com o
politicamente correto. Assim, “vemos que essa insistente presença não é capricho de
vocabulário, mas se refere a um modo de pensar e de tratar esses sujeitos que ainda
toma por referência o modelo menorista” (SCISLESKI, et. al. 2014, p.663).
Com a entrada do termo adolescente, muitos discursos em torno dessa noção são
trazidos ao Degase, sobretudo os que têm relação com justificativas
desenvolvimentistas e biológicas da agressividade, impulsividade e abertura à
influência do grupo por parte de pessoas que são consideradas adolescentes.
Igualmente, no campo percebemos o uso recorrente da expressão O Adolescente, se
referindo às vezes a um jovem ou a um grupo de jovens, que aparecem como “uma
figura homogênea, uniforme, quase um monstro, que, em palavras de um profissional,
“acha que pode tudo, que é contestador, rebelde, que quer mostrar que existe, que
resiste”. “Cheio de hormônios”, “com hormônios à flor da pele” impulsivo, raivoso, foram
outros adjetivos usados pelos/as profissionais” (D’ANGELO; DE GARAY, 2017, p.84).
Também parece interessante pensar de que forma estas noções não ficam tão
distantes das de menor ou Bandido, contornando uma imagem de um ser protagonista
das “rebeliões”, que precisa ser docilizado. Assim, O Adolescente, e mais ainda, certo
Adolescente, aquele infrator, que “não é normal”, acaba sendo totalizado, com noções
predefinidas e marcas cristalizadas em rótulos que produzem filtros através dos quais
os/as diversos especialistas do campo o enxergam (ROCHA; UZIEL, 2008), sem se
atentar à singularidade, à potência, à diferença.
No entanto, leituras críticas da adolescência reconhecem que “o discurso
psicológico, próximo ao médico e ao pedagógico, responsabilizou-se pela construção e
sustentação da visão universal, essencialista e a-histórica, da adolescência” (SANTOS,
2015, p.17). Apoiado em Foucault, entendendo a produção histórica da adolescência,
98
Desta forma, esta noção dá uma maior flexibilidade para pensar em territórios
juvenis, em dobras da subjetividade. Dobras que superam os binômios perigoso-em
perigo, proteção-punição, menino-menor, vítima-agressor, dentre outras categorias em
disputa. O foco, então, está no entendimento dos modos de inserção dos sujeitos em
suas condições de vida históricas e concretas, as quais, por sua vez, têm múltiplas
formas de serem apropriadas.
Por sua parte, Avtar Brah propõe que
revela-se uma tensão, pois ao tentar sair de uma visão adultocêntrica– ou seja,
centrada na experiência adulta como a mais consciente, adequada e produtiva
–, os discursos podem tentar contestar a proposta sem o devido
aprofundamento. Por exemplo, no debate da redução da maioridade penal,
tende-se a reivindicar que as/os jovens envolvidas/os em atos infracionais não
têm a capacidade de refletir sobre seus atos da mesma forma que uma pessoa
adulta. Aí, a perspectiva desenvolvimentista tem sido usada para reafirmar a
adolescência como uma etapa com características e cuidados particulares que
o sistema prisional não pode outorgar. O debate, nesse sentido, parece focar no
indivíduo como responsável e não na produção social de desigualdade que
delimita as fronteiras da legalidade, dos seres vítimas e/ou produtores dela e
das punições e/ou outras formas de lidar com ela (D’ANGELO; DE GARAY,
p.85).
Por outro lado, quem reivindica a redução da idade penal usa o argumento de
que muito/as desses/as jovens já têm uma vida sexual ativa, e inclusive exercem a
paternidade. Assim, que sujeito é esse que deve ser considerado uma criança, mas que
tem uma vida sexual de adulto? Vida sexual adulta que, inclusive, está tentando se
reivindicar com a implantação da visita íntima no Sistema Socioeducativo? Direito ao
voto, direito a uma vida sexual ativa inclusive em privação de liberdade, envolvimento
“no crime”60 e uso de armas, inserção no mercado de trabalho formal, informal, legal e
60
Concordo com Alba Zaluar ao apontar que: “não há dúvidas quanto ao uso do termo ‘crime’ sem
considerá-lo um conceito sociológico, por quanto a referência é o Código Penal Brasileiro. Se não é
100
ilegal, parecem esferas que colocam e retiram esses jovens de diferentes condições
sociais, morais e políticas, mas que parecem simplesmente contraditórias, quando
análises redutoras não consideram os matizes, as linhas e as forças que vão
delimitando essas experiências de vida e essas trajetórias juvenis.
considerado uma ‘categoria analítica’, embora a sociologia jurídica lide com indicadores diversos da
criminalidade, a palavra ‘crime’ remete a uma tipificação de conduta que desencadeia (ou deveria
desencadear) repressão estatal. Mas crime é também categoria nativa e, portanto, adquire outro campo
semântico nem sempre coerente internamente nem muito menos consistente com o Código Penal”
(ZALUAR, 2012, p.328). Assim, “o crime” ou “a vida do crime” foi uma categoria utilizada
recorrentemente pelos jovens, em oposição a outros modos de vida, tais como o “morador”. No entanto,
cabe pensar que a “vida do crime” não é necessariamente igual a ter cometido práticas criminosas, pelo
que é importante não naturalizar a primeira.
101
controle da população” (CALAZANS, et. al., 2016, p.568)61. Autores utilizam termos
como “genocídio” ou “extermínio” para tratar deste campo. No VI Seminário
Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza, o filósofo negro Silvio Luiz de
Almeida apontou preferir usar “extermínio”, já que genocídio é uma categoria jurídica
que depende de uma vontade do agente. Também apontou que este fenômeno significa
uma continuidade, aprofundamento e ampliação do racismo, no momento em que seus
elementos são: economia - como relação social -, política - como estruturas de poder -,
e constituição dos sujeitos. A advogada negra Thula Pires, no mesmo evento,
reivindicou o uso do genocídio, usando analisadores como as deficiências na saúde da
população negra, o auto de resistência62 e o super encarceramento.
Por sua parte, Ferreira e Cappi usam o termo “genocídio” “para conceituar o
fenômeno grave e persistente das mortes de jovens negros” nas cidades do Brasil
(FERREIRA; CAPPI, 2016, p.545). Discutindo sobre o termo, a autora e o autor trazem
Abdias do Nascimento que, em uma abordagem sistêmico-histórica, se refere ao
processo no contexto brasileiro, incluindo as violências do período escravocrata e a
exploração econômica e sexual da população escravizada, as condições precárias
oferecidas a essa população depois da abolição, e as políticas de embranquecimento
do século XX, incluindo os processos de fomento de imigração europeia, a destruição e
degradação da herança cultural africana. No contexto atual, a seletividade penal
também faz parte desse fenômeno ao ser produzido pelo racismo.
No entanto, Ferreira e Cappi (2016) apontam algumas questões no que tange à
transposição do conceito de genocídio,
61
Antônio Ribeiro Júnior (2016), a partir do pensamento de Achille Mbembe, aponta de que forma o “fazer
viver e deixar morrer”, ou seja, a gestão de vida da noção de biopolítica de Foucault, não é suficiente
para pensar os contextos das colônias europeias, onde podemos pensar também em uma
“necropolítica”, ou seja, “fazer morrer e deixar viver”, uma gestão da morte que “consiste na própria
negação de humanidade” (2016, p.600) e que tem “consequências mais trágicas” (idem).
62
O auto de resistência é um dispositivo legal, que designa as mortes fruto de ação policial como
supostamente cometidas em legítima defesa ou com o objetivo de “vencer a resistência” de “suspeitos”
de crime (MISSE, 2009).
102
eventos relacionados com o controle dos territórios –tais como os bailes funk e os
mototaxis-, criando situações de guerra que contradizem as políticas públicas de
direitos humanos.
Abel nos brinda com uma análise:
Abel: Tipo assim, eu acho que se não houvesse polícia, tipo assim, Bandido faz
mal, dá droga naquela pessoa, faz mal, mas se o polícia não estava perto, não
teria troca de tiro, e morreriam pessoas. Se o Bandido vender, se a pessoa usa,
é porque ela quer usar, ninguém obrigou a usar, entendeu? Nós vendemos.
Agora imagina que ninguém usasse no mundo, aí nós ia vender pra quem? Pra
ninguém. Mas nós tá lá, tentando vender, e tá vendendo bem.
Jimena: você acha que isso mudaria as relações do tráfico, a polícia, a
violência, etc.?
Abel: o tráfico não porque o tráfico só ia parar de vender maconha. Porque
assim, posso te falar uma coisa? Sei lá, pra mim maconha tinha que ser
liberada no Brasil, porque, sei lá, as pessoas precisam, porque tipo assim, o
que que adianta eu estar indo comprar maconha, a polícia entra, e pá. Tipo, tem
um garoto aqui, você pode entrevistar, que ele rodou com 10 quilo, de
maconha. Já tá preso. Só porque tá com 10. Porque a polícia acha que tá
vendendo. Só que ele tava acima de 10. Mas, tinha que ser liberada. Porque
tipo assim, a gente podia até parar de vender maconha, mas aí tem que
sobreviver, o pão de cada dia, sabe? Eu acho que é assim
63
Os projetos de urbanização também provocaram inúmeras remoções, afetando os direitos à moradia de
comunidades inteiras.
104
era muito menor! Um atrás do outro. Técnico ficou desesperado, ‘calma, calma,
deixa eu terminar esse aqui primeiro!’, era uma fileirona. Tava todo dia
chegando menor, todo dia, todo dia. Caraca! Aí depois deu uma parada. Mas
depois continuou chegando mais. Caraca... Eu só falava “sai transferindo, sai
transferindo!”. Ficou lotado. Cada equipe técnica tinha 60 e pouco. Agora tem
uns 34. Foi embora um bocado, graças a deus
No jogo de forças, Christian Alfonso relatou que na época das Olimpíadas ele
participava de arrastões na praia, pois “a galera me botava pra roubar, não conseguia
sair de Copacabana”, enquanto “tinha muito chileno e argentino fumando maconha na
frente dos policiais”. Ele disse que chegava a ganhar mil reais por dia...
Gabi: roubando?
Christian: Fazendo festa, fazendo arrastão ali na areia de Copacabana, porque
assim, se vai roubar, melhor roubar de quem tem, roubar de sofredor não.
Porque, assim, eu acho muita sacanagem trabalhador trabalhar, trabalhar,
trabalhar, chegar na hora e o ladrão roubar dentro do ônibus. É muita
64
sacanagem isso .
Gabi: mas tem muita gente roubando em ônibus, até em trem tá roubando!
Christian: vacilação. Isso é muita mancada. Se tá roubando, é melhor roubar de
65
quem tem, vai tirar de quem não tem?
64
Vemos aqui um sentimento e entendimento de restituição da desigualdade e de identificação de classe,
no momento em que quem rouba ônibus poderia estar afetando “trabalhador”.
65
Uma profissional relatou que um jovem que tinha matado uma enfermeira em um assalto, ia ser
transferido para o CAI, onde um jovem já tinha manifestado que era “vacilão, porque matou
trabalhadora” e que iria ser violento com esse jovem, pois sua mãe era enfermeira.
66
Para quem ainda não naturalizou essa prática, já é extremamente ostensivo o fato das viaturas da
Polícia Militar na cidade estarem com as janelas abertas e a arma apontando para fora, o que se vê em
todos os contextos, mesmo sendo exacerbado nos bairros periféricos.
105
Jhosivani: ia ser pior pros morador, porque a milícia extorque, extorque casa,
expulsa os outros, acho que seria complicado só mais por causa do morador
Jimena: e como que os traficantes afetam aos moradores?
Jhosivani: eu acho afeta só se tiver alguma favela que usa droga em frente a
criança, influencia muito. Anda armado na frente de criança
Jimena: e os tiros, né?
69
Jhosivani: é, também, que assusta
67
O uso de números no Sistema é muito comum, como já mencionamos, seja nas repetições diárias de
contagem dos meninos, seja na referência a eles através de seus números, seja o número do artigo do
Código Penal referente ao ato infracional cometido.
68
http://teratologiacriminal.blogspot.com.br/2013/07/chacina-da-baixada-nova-iguacu-e.html
69
Fiquei impressionada dele considerar que a única forma em que as facções e suas disputas afetam à
população é “assustando”. Já Bernardo reconheceu ter visto “morador tomando tiro de pistola,
106
morrendo, já vi uns também que tomou tiro e chegou no hospital, e conseguiu viver, mas perdeu muito
sangue”.
70
A partir de vasto material de campo, Carla Mattos sinaliza que existem diferenças raciais nas tarefas e
funções das facções, pois os jovens mais negros e mais pobres costumam serem colocados como
soldados, alvos mais fáceis de morte, enquanto os mais brancos, pela sua “passabilidade”, ocupam
cargos de venda e outros tipos de trânsito fora e dentro da favela.
71
Carla Mattos (2016) relata como na Maré, no momento em que as facções entraram no território, nos
anos 90, começou esse tipo de gestão do crime. Isto pode mudar dependendo do território, das práticas
e forças em jogo, como exemplificado pelo jovem Jorge Antonio (16 anos, negro), que ficava com itens
que roubava nas praias da Zona Sul, sem ter que prestar contas a nenhuma facção, “porque facção não
me dá nada, eu roubava mesmo pra mim mesmo, não tinha esse negócio de facção”.
107
competência de saber ‘trocar’ quando se entra na favela ‘sabendo o que vai acontecer’”
(MATTOS, 2016, p.2). Essas forças coproduzem
“políticas locais” (Silva, 2014) (re)traçadas nos contextos das invasões – disputa
violenta entre facções rivais pelo controle territorial do comércio varejista de
drogas nas favelas –, das incursões dos Caveirões – carros blindados da
Polícia Militar – e das operações de guerra às drogas. Tais dinâmicas são
marcadoras de um padrão de governo característico de processos que Gabriel
Feltran (2011) conceituou de “expansão do mundo do crime” (MATTOS, 2016,
p. 2).
guerra sim, é o mesmo poderio. Mas é o Estado que tem todo o equipamento,
tá ligado? E o Estado não faz guerra contra todo mundo. Nunca foi assim. É
preciso olhar o cotidiano de quem vive na mira do fuzil: preto, pobre, favelad@
72
(MATTOS, 2017, texto sem publicar )
Como Gary Barker aponta e como observamos nos relatos das trajetórias
familiares e comunitárias dos jovens que entrevistamos, “mesmo nas localidades
72
Ideias apresentadas no Debate Funk e Sociedade no Diretório Acadêmico da Escola de Música da
Unirio.
73
Existe uma desigualdade no que tange a operações de segurança em comunidades empobrecidas e
periféricas, quando comparado com áreas de classes médias e altas.
74
Como refletido por Gabi, essa pergunta também nos toca como pesquisadoras, no momento em que
ocupamos lugares sociais diferentes aos dos jovens.
109
75
Estar “envolvido” significa que “integra o grupo de traficantes da localidade, podendo ser ladrão ou
alguém que se associa às atividades de venda de drogas” (MATTOS, 2016, p. 12). No entanto, como
apontado por Fátima Cecchetto, é importante fugir da naturalização da categoria de “envolvido”. Vemos,
nesse sentido, discussões que tecem análises sobre as noções de crime e sujeição criminal ao pensar
na categoria de Bandido (MISSE, 2010).
76
Como apontado por Antonio Barbosa, “O exame deste assunto não pode ser conduzido sem a
compreensão dos códigos culturais locais; sem o entendimento das escolhas éticas que informam os
comportamentos; sem olhar para as expectativas e os sonhos que embalam a juventude pobre carioca;
sem o estranhamento dos limites sombrios impostos ao seu desenvolvimento e realização – aquilo que,
com toda propriedade, podemos chamar de ‘grande injustiça’” (BARBOSA, 2006, p.133).
77
Importante lembrar que as vivências entre e dentro das favelas são extremamente heterogêneas, pelo
que qualquer generalização seria grosseira e irreal. Estas são territórios com diversas trajetórias,
possibilidades, dinâmicas e conflitos. A mesma ponderação deve ser realizada ao pensar as “classes
empobrecidas”, cuja diversidade é ampla.
78
Neste caso, um elemento agravante é que a infração que foi imputada ao jovem é especialmente
provocadora de violência no Sistema, tanto por jovens quanto por profissionais, sobretudo quando se
trata de vítimas crianças, como é a maioria das vezes, pois a prática de estupro tem diversos
significados. Outros jovens acusados deste tipo de infração negaram tê-la cometido.
110
Abel: ah, a polícia, é muita agressão que o policial faz, tipo, já botaram saco na
minha cabeça e ficou pingando sangue, já bateu, já apontou fuzil, botou o fuzil
nas costas, já mataram um menor com um tiro que entrou aqui e atravessou
aqui (na cabeça). Muitas agressões. Cair na porrada, falar que vai me matar,
“eu vou te matar”, eles falam essas coisas pra mim. O ruim que ele deu azar,
que depois eu cacei e matei ele.
Jimena: mas porque que eles fizeram isso, porque eles sabiam que você era
envolvido?
Abel: porque eles falam assim “ô, você é da boca, vou te matar”. Mesmo você
não sendo da boca. Assim que eles faz.
Ao apontar que ele caçou o policial que foi violento com ele, Abel acrescenta à
discussão as disputas das performatividades masculinas, que não são só pessoais,
mas coletivas, em um jogo de poderes e violências. É importante entender as
complexidades dessa disputa, tanto no sentido de enxergar o poder que os jovens
exercem através das suas organizações e armas, no caso da pista, ou do número maior
comparado com os agentes, no caso do Degase, mas também de que forma as
violências que policiais e agentes exercem são constantemente legitimadas por
grandes setores do Estado, da mídia e da sociedade. Isto traz a uma questão
recorrente no debate sobre as políticas de “pacificação”, onde ela é apresentada como
dependente da polícia, no momento em que esse processo é fundamentado “pelo
ideário da universalidade de direitos nas quais a violência deveria ser monopólio
exclusivo do Estado em nome da justiça” (MACHADO, 2004, p.35).
Silene de Moraes Freire (2013) discorre sobre o gerenciamento da pobreza,
dinâmica que “produz políticas pobres para pobres”, diferenciando “pobres dignos” ou
“pobres bons”, que não têm um acesso à cidadania, mas apenas um patamar mínimo
de sobrevivência baseado nas políticas compensatórias, enquanto que os “pobres
maus” recebem “cárcere e extermínio”. A autora aponta que a divisão entre esses
grupos é completamente arbitrária e culpabilizadora, o que nos faz pensar em políticas
111
ser compreendido como parte do genocídio, como apontado por Thula Pires no evento
de Direitos Humanos, Violência e Pobreza, compreendendo que o genocídio não está
apenas relacionado à vida, mas à existência, como narrativa, história e cultura. No
contexto da cidade, vemos notícias de chefes do tráfico expulsando terreiros das
favelas, em uma complexa relação entre facções e igrejas evangélicas79.
Já no CAI, escutamos relatos de momentos em que familiares tiveram que retirar
seus preceitos e turbantes para entrar na unidade e não conseguiram pô-los
novamente, ou de um jovem que pediu para a avó não ir visitá-lo porque ela pratica o
candomblé e poderia sofrer racismo religioso dos outros jovens. A prática religiosa de
vários jovens do candomblé e da umbanda80 não impede que as referências na
unidade, como livros e mensagens nas paredes, sejam apenas focadas nas religiões
cristãs, cultos evangélicos, além de constantes visitas de pastores/as e grupos
cristãos81 Ressalta-se ainda a existência de uma única figura de assistência religiosa de
orientação cristã, com uma proposta de redenção e mudança de vida. Vemos de que
forma a evangelização atravessa a unidade e impede que outras expressões religiosas
coexistam, o que sugere uma articulação entre ambas as instituições-organização.
Todavia, em uma lógica que articula machismo, racismo e classismo, as famílias
dos jovens, especialmente as mães, são frequentemente consideradas as principais
responsáveis pela forma como os jovens cumprindo medida socioeducativa exercem
suas vidas e são muitas vezes julgadas por serem beneficiárias dos lucros financeiros
dos jovens envolvidos nas facções, apesar deles estarem no Sistema. Esses discursos,
assim como percebemos no segundo curso com profissionais, muitas vezes consideram
79
Há trabalhos muito interessantes nesta temática, como o de Christina Vital (2015), que acompanha os
deslocamentos, modificações, tensões, descontinuidades e vínculos na dinâmica entre igrejas e tráfico,
onde, no cenário atual, as vertentes pentecostais e neopentecostais aparecem não só como uma forma
de sair do tráfico, mas como uma forma de ficar nele. Também observamos uma fortíssima presença
das igrejas nas prisões nas nossas pesquisas no Sistema Prisional, e soubemos que vários jovens
passaram por casas de recuperação desse cunho, antes ou depois das passagens pelo Degase.
80
Inclusive, nas trajetórias de vida, vários relataram ter circulado por várias religiões.
81
Essas figuras foram constantemente ressaltadas como fundamentais por profissionais e jovens no
sentido da humanização da unidade. A intenção aqui não é retirar mérito delas, mas problematizar o
fato de que em uma instituição estatal laica, exista uma falta de pluralidade religiosa e uma
naturalização do lugar de poder dessas figuras.
114
82
Em duas ocasiões escutamos que a libertinagem é exacerbada, por exemplo, por políticas como a
Bolsa Família, que beneficiam principalmente a mulheres responsáveis por famílias empobrecidas, as
quais “usam esse dinheiro para beber”. Isso foi contestado por outros profissionais, cujas famílias
inclusive foram beneficiárias de tais programas.
83
“O Moleque, Movimento de Mães pelos Direitos dos Adolescentes no Sistema Socioeducativo, surgiu
em 2003, quando duas mães de jovens em conflito com a lei, cumprindo medida de privação de
liberdade, passaram a vivenciar a rotina de uma unidade de internação e constataram que, ao contrário
do que é dito e previsto pela Lei, os responsáveis pelo atendimento socioeducativo não a aplicavam; em
vez disso, os jovens sofriam múltiplas violações de seus direitos básicos. Tal distorção não se resumia
apenas a perpetrar e consentir com maus-tratos físicos, pois se materializava em múltiplos mecanismos
de coerção que modificavam esses jovens, como pessoas, durante e depois da internação. O resultado
era sempre traumático e só os mudava para pior” (CUNHA, SALES, CANARIM, 2007, p.26). Moleque
integra a Rede de Mães Contra a Violência de Estado.
115
84
Uma profissional comentou que conheceu uma mulher que “perdeu” os três filhos no tráfico e que
afirmava “a culpa era do Siro Darlan, porque deu semiliberdade e tinha que interná-lo”. Ela também
apontou que essa tentativa de não se responsabilizar do filho não é característica das famílias
empobrecidas, que “já soube de juízas muito ricas que sentem que, porque elas pagam uma escola
caríssima, a escola que tem que cuidar das crianças sempre”. Mas, que “para quem não tem dinheiro,
instituições como o Degase aparecem como essas cuidadoras e educadoras”.
116
transformação dessas políticas, movimento que elas têm exercido através do Moleque
(CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Muito pelo contrário, não apenas o Sistema
Socioeducativo, mas o educativo, o de saúde, o de assistência social,
permanentemente psicologizam e judicializam as famílias empobrecidas, usando a
justificativa da Segurança e utilizando a família como dispositivo de controle social nas
políticas públicas.
O sociólogo francês Eric Fassin, em palestra acontecida no Museu Nacional em
setembro de 2016, dizia: “nem todo mundo tem acesso à esfera pública, mas a esfera
pública tem acesso a todo mundo”. Assim, observamos de que forma as classes média
se altas acessam o sistema estatal por questões, por exemplo, de patrimônio, enquanto
as camadas empobrecidas são acessadas através de instituições como o Degase, o
Exército, a Polícia Militar e o Sistema de Acolhimento, como observamos nos relatos de
vários jovens que já passaram por abrigos, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e
casas de recuperação, também com experiências diversas, algumas positivas e
algumas negativas.
Assim, não é possível dizer que o Estado está completamente ausente nas
comunidades empobrecidas, ele está presente de forma repressiva e seletiva, no
controle militarizado, e domesticadora, em instituições tutelares, e na inexistência de
direitos de moradia, saneamento básico, educação, saúde, cultura, esporte,
comunicação e lazer, incluindo apoio a propostas locais e culturas alternativas dos
jovens85.
Ambas as situações compõem a violência de Estado, o qual “tem formas de
captura em centros de poder”, como apontado por Antônio Rafael Barbosa no Ciclo
sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana. Como apontado por um gestor do
Degase, “esse jovem só passa a existir depois que comete o crime, antes era
85
Destaco aqui a tristeza de ter acompanhado o encerramento do Circo Social Baixada, em Queimados,
na Baixada Fluminense, espaço extremamente potente de produção da juventude local, que após ter
perdido o apoio financeiro da Petrobrás e em um absoluto descaso e corrupção da prefeitura, nunca
mais conseguiu continuar seu valioso trabalho e foi definitivamente fechado no final de 2017. Como
esse, observamos múltiplos exemplos de omissão, perseguição e criminalização de projetos de rádios
comunitárias, jornais, grupos de educação popular, artistas e bailes funk (SANTOS, 2016; FACINA,
2009), moradias autogestionárias, dentre muitos outros. Importante destacar que as facções do tráfico
também ferem esses direitos, por exemplo, invadindo ocupações autogestionárias (BIRMAN;
FERNANDES; PIEROBON, 2014) ou impedindo que terreiros e centros de religiões de matriz africana
continuem suas atividades de forma normal, chegando a expulsá-los das favelas.
117
meu pai falava pra mim direto ‘você pode fazer o que você quiser da sua vida,
menos roubar e usar droga’ [...] Minha família só me dá conselho bom, pra eu
sair daqui e mudar de vida, eu falo pra minha família ‘tranquilo, então, quando
eu sair daqui eu vou mudar de vida’.
Em entrevista com Felipe (18 anos, negro), Gabi falou sobre isso:
86
Jean (19 anos, branco) relatou que seu irmão mais velho “não deixava” ele entrar no tráfico, mesmo ele
mesmo fazendo parte de uma facção. Ele também disse que o tio, com quem tinha morado, “me
chamou pra sair, mas eu já tava muito envolvido, aí eu fiquei no tráfico mesmo”.
118
minha mãe era da igreja, aí ela não gostava, ela ficava meio assim... ficava
reclamando, pá, ia lá. Mas eu continuava
tipo, um dia eu tava de costas, assim, traficando, aí bateu nas costas, aí eu
‘calma aí’, eu não sabia que era ela, aí ela ficou ‘sai disso, sai’, aí foi com os
cara da boca pra me tirar, aí os cara ‘pô, tia, de que adianta tirar?, ele vai
querer ir pra outro lugar’. Aí a minha mãe ‘você vai sair’ e eu ‘não, não vou’.
[...]
‘’Sai de lá, sai de lá’ e eu ‘ah, vai começar de novo o problema? Me deixa em
paz’, e ela ‘sai de lá. Você não foi criado pra isso não’.
Jesus contou que o pai “queria que eu fosse uma pessoa do bem, mas também
não quer me segurar, não me segura, se eu quiser sair daqui e voltar pra boca ele fala
“é contigo mesmo”. Adán (16 anos, negro) trouxe um relato bastante impactante nesse
sentido:
Jimena: e seu pai? Ele usava drogas muito tempo antes de falecer?
Adán: ah, usava
Jimena: o que ele usava?
Adán: ah, usava pó, fumou maconha, bebe cachaça, bebia cachaça pra
caralho.
Jimena: e o que você sentia quando ele fazia isso?
Adán: ah, se sentia magoado, às vezes ele dava esse pá, ficava sangrando, se
batia no chão, boca, tudo sangrando, ficava lá na barraca, eu passava e tava no
chão, aí pegava ele no braço e levava ele pra casa
Jimena: e quando ele morreu, o que você sentiu?
87
Adán: ah, se sentiu, como , triste. Pra mim acho que foi, como, ele começou a
beber mais também por causa de mim, porque tinha entrado na boca, ele dava
87
O uso extremamente recorrente da palavra “como” na construção narrativa dos jovens nos chamou a
atenção, tanto no sentido de como ela interfere no fluxo do desenvolvimento da ideia, quanto porque
119
vários papos pra mim sair da boca, só que eu não abraçava o papo dele porque
ele não abraçava o meu, porque eu pedia para ele parar de beber e não bebia,
aí, como ele não abraçava meu papo, eu não abraçava o dele, às vezes eu
abraçava sim, às vezes, como, eu não abraçava, dava uma de maluco.
De vez em quando eu falava pra ela pegar um dinheiro na boca, pra vir aqui me
visitar, minha mãe não gosta de tráfico de droga não, sabe, porque segue
dinheiro pra mim, de tráfico de droga, aí minha mãe “não, não vou buscar, não
quero dinheiro sujo na boca de fumo não, quero meu dinheiro pra ir te visitar”.
Ah, fazer o que, minha mãe quer trabalhar, porque minha mãe não precisa
trabalhar não, filha, por mim, filha, no tráfico de drogas, dou tudo que ela quiser,
eu trato minha mãe que nem uma rainha.
Os jovens relatam algumas tentativas das famílias, como Adán, que disse que a
avó o tinha cadastrado no “jovem aprendiz”, o que ele queria fazer, mas não ia por estar
na “vida do crime”.
Por sua parte, nos foram relatados casos específicos em que alguns familiares
estão envolvidos na “vida do crime”, seja diretamente, seja à partir desses jovens ou
dos seus ganhos financeiros, às vezes inclusive como forma de sobrevivência. Outros
familiares, muitas vezes os pais e irmãos, foram mortos ou estão ou estiveram
encarcerados, fosse por envolvimento com o tráfico, por outro tipo de crimes ou por
engano.
Um momento muito interessante na nossa atividade na Semana do Bebê foi
quando os jovens discutiram e se surpreenderam com a variedade de árvores
genealógicas, ou, como gosto de pensar, rizomas genealógicos (DE GARAY, 2013).
Apesar de o disparador ter sido a paternidade, o que quero resgatar aqui é que os
jovens, pensando nesta relação como uma forma de “referência”, foram percebendo a
diversidade das suas trajetórias, como pontuado no capítulo 1. Assim, enquanto um
jovem falava “meu pai morreu e a minha mãe ficou presa 10 anos, se eu seguisse a
minha mãe, estaria pior do que estou”, outros falaram que se seguissem o exemplo,
“nem estaria aqui”. O que me parece importante nesta discussão é vislumbrar que as
trajetórias dos jovens e suas famílias, mesmo perpassadas por instituições-forma e
sugere um desejo de explicar os argumentos oferecidos, assim como um destaque nos processos dos
acontecimentos.
120
Eu aqui, minha mãe presa, meu pai morto. Eu falei pra minha técnica pra falar
pra minha avó parar de vir me visitar. Eu faço meu artesanato, como, consigo
meu sabão, às vezes eu peço um biscoito pros menor e os menor fortalece,
pasta, o menor fortalece. Eu posso ficar sem visita, eu tô nem aí, o mais
importante é às vezes ela vir porque, como, a juíza vê que eu tenho visita, pra
mandar eu ir embora. Porque se não ela vai ver que eu não to tendo visita,
minha família abandonou, vai querer me jogar no abrigo, e eu não vou cumprir,
eu vou pular
Isto não significa que as dimensões sociais do tempo e vida dessas famílias
sejam consideradas, incluindo, em muitos casos, sua inserção no precário, racista,
machista e classista mercado de trabalho e no trânsito pela cidade. Pois, como
apontado por Cunha, Sales e Canarim, é uma violação ao direito à convivência
familiar88
Nesse sentido, parece que o Sistema acaba punindo os jovens que não têm
família ou a mesma tem extremas dificuldades para acompanhar a medida.
O trabalho com as famílias, mesmo tendo iniciativas muito potentes no CAI, tais
como palestras e testagem de HIV, ou grupos de familiares com algumas técnicas, é
mínimo e de difícil continuidade frente a obstáculos de sobrecarga de trabalho,
88
Adán disse que muitas vezes não recebia visita “por causa da minha avó, ela não tem condições de vir
toda semana, porque, como, às vezes alguém chama ela pra trabalhar, ou tem que cuidar dos meus
primos”. Por outro lado, soubemos de familiares recebendo apoio de outros municípios, que organizam
transporte para irem visitar os jovens no CAI.
121
89
Por exemplo, os grupos com familiares, que estavam com uma boa adesão não só de mães, tiveram
que ser suspensos.
90
Em uma ocasião presenciamos uma mulher chorando no portão do CAI, e uma profissional nos relatou
que ela estava procurando o filho, que supostamente deveria estar no CAI, mas que ela tinha demorado
algumas semanas em conseguir ir visitar, e quando chegou, o filho não estava na lista nem na unidade.
Um diretor disse que essas confusões acontecem bastante, e a profissional falou que as técnicas
apoiam as mães nessas peregrinações de busca dos jovens.
122
muitos anos na unidade sugeriu que os jovens de classe média não costumam chegar
ao Degase porque a família aciona com maior facilidade o discurso da responsabilidade
sobre eles. Apesar de ainda ser uma minoria, alguns/as profissionais do CAI apontaram
ser cada vez maior o número de jovens de classe média e/ou brancos, o que também
foi observado pelo Moleque, que apontou a forma diferenciada com que esses jovens
vivenciam nessa experiência ao “receber medidas mais adequadas ao seu ato
infracional” (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p.32).
2.3 “Minha vida não era muito boa não”: entre a ostentação e a dignidade
91
O que caracteriza aos modos de produção capitalísticos é que não funcionam unicamente no registro
dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de
financiamento. Esses também funcionam através de um modo de controle da subjetivação, que eu
chamaria «cultura de equivalência» ou «sistemas de equivalência na esfera da cultura». Desde esse
ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o
capital se ocupa da sujeição econômica e a cultura da sujeição subjetiva. E quando falo de sujeição
subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e ao consumo de bens. A própria
essência do lucro capitalista está em que não se reduz ao campo da plusvalia económica: está também
na toma de poder sobre a subjetividade (GUATTARI E ROLNIK, 2006, p.27).
92
Foi mencionada inclusive uma Assessoria de Medidas Socioeducativas e Egressos, que é pouco
atuante. Como apontado por um diretor, os “egressos” são os jovens com medida em extinção, que são
124
convites que geram tentações ligadas a ostentação – que faz parte dos valores
capitalísticos dos modos de vida oferecidos pelas facções, especialmente aos homens,
a pressões e cobranças das facções, ou, nas palavras de César (17 anos, negro) “muito
caô para resolver”. Outros disseram que como já eram “marcados”, se eles decidissem
sair do tráfico e levar uma “vida normal”, “de repente” podia vir alguém da outra facção
para matá-los ou a família deles. A mesma facção podia impedir a saída, frente ao que
eles só poderiam resolver “saindo da cidade”. Outras configurações das suas
trajetórias, tais como situação financeira e exclusão social, que se acentua ao terem
passado pelo Sistema Socioeducativo, acabam recolocando-os “nesse caminho”.
A reincidência no Degase é muito grande, como percebemos ao conhecer jovens
que já estão na 15ª passagem, o que é consonante com a afirmação de uma
profissional de que dois terços dos jovens que ela atende são reincidentes, já que “lá
fora a realidade é a mesma”, segundo outro profissional. Também, muitos jovens
enxergam a entrada no Sistema Prisional como uma possibilidade e um lugar comum
nas suas trajetórias, o que é preciso compreender sem naturalizar, pois carrega uma
série de implicações sociais. É importante considerar, neste sentido, que dificilmente o
estabelecimento pode oferecer uma solução a uma realidade social de desigualdade e
violência tão profundas. No entanto, negar a perversidade das instituições-forma que
atravessam a instituição-organização do Degase é impossível.
Frente a esse panorama, como apontado por profissionais, “o tráfico dá um
status impossível de atingir com um trabalho normal, como os que a gente propõe -
pedreiro, eletricista- porque com esses eles ganham muitíssimo menos do que no
tráfico”. Adán relatou, por exemplo, que se de ajudante de pedreiro podia ganhar mil
reais por mês, na boca de fumo ganharia cinco mil, que podia dar para a família caso
precisasse. Abel disse ganhar “mil reais e pouquinho” por semana. José Luis (17 anos,
negro) relatou ter entrado no tráfico porque ele ia pra escola “de mochila rasgada, tênis
poucos, pois os que evadiram o Sistema não são considerados como tal, e a “liberdade assistida”
implica uma medida ainda em cumprimento. Também soubemos que existe uma Divisão de
Profissionalização, com parcerias, por exemplo, como a Comlurb, e a lei 5954/2011, que trata do
programa de inclusão no mercado de trabalho. Durante o campo, participamos em um evento no CAI
chamado “1º seminário educacional Trabalho e Cidadania”, organizado por docentes da escola, que
focou na inserção no campo do trabalho e o papel da escola nesse objetivo. Nesse evento, Benjamín
chegou a interrogar a mesa, dizendo que “aqui dentro se fala de muitas oportunidades, mas lá fora, as
oportunidades vão até a gente, ou a gente vai até elas?”.
125
velho e rasgado, roupa ruim, e por isso era zoado na escola, aí via os traficantes com
coisas bacanas, e decidi copiar”. Julio (16 anos, negro) apontava:
Jimena: o que chamou sua atenção pra entrar na boca? Porque você entrou?
Julio: porque minha mãe tinha condições de me dar nada, roupa, roupa nova,
tudo era de brechó, e aí entrei na boca
Jimena: você ganhava muito?
Julio: uhum
Jimena: quanto?
Julio: 1.800
Jimena: por semana ou por mês?
Julio: quatro desses por mês
Jimena: e com esse dinheiro você comprava o que?
Julio: roupa, celular
Jimena: você dava dinheiro pra sua mãe?
Julio: dava
Jimena: quanto?
Julio: tudo, dava tudo
Jhosivani disse ter se sentido atraído para essa vida porque o dinheiro é muito
fácil, ganhando “por dia, dependendo o que você pegar, uns dois mil, três mil”. Jesús
disse
ah, comecei a roubar por causa que muitas das vezes, às vezes eu passava
fome. [...] E outro também porque eu gostava de adrenalina. Eu gosto da
adrenalina, sempre gostei. Mas também muitas das vezes nem mais
necessidade, eu já fui um menino que, como, surfava, andava de skate.
Israel relatou:
eu tinha uma vida muito boa não. Tipo, tinha uma mãe boa, tinha um pai bom,
mas eu era muito rebelde. Eu era esportista. Tipo, meu treinador morreu, aí eu
fiquei abatidinho. Ninguém substituiu ele. E aí eu andava com uma galera meio
negativa, esses cara meio assim. Aí passei pro tráfico Aí me fez chegar até
aqui.
Bernardo relata:
Adán: não, tipo assim, vida do crime, nós acha, tipo, nego acha que com arma
na mão é diferente, tipo, eu não sou diferente só porque eu to com arma na
mão. Se eu não to com arma na mão, eu sou do jeito que eu sou. Tipo assim,
nego se acha, se acha assim, tipo assim, tá com arma, aí passa várias mina e
aí “ah, as mina vai perder pra nós”. Tipo isso, nego entra pro crime, pá, e pensa
isso, que as mina vai perder pra ele só porque ele tá na boca, só porque vai ter
um montão de dinheiro, só porque tá cheio de pistola, só porque tá dando tiro
em polícia, só porque mata pessoas pensa que mina vai perder. Mas tem umas
minas que perde mesmo pra Bandido, que quer ficar mesmo com Bandido,
porque, como, tem dinheiro. Tem mina que só fica com o cara por causa de
dinheiro
Por causa que ela é mais inteligente do que eu, ela sabe e bota a cabeça pra
funcionar, aí ela como, tu acha que ela vai fazer? Ela vai construir uma casa,
que ela já pensa igual a essas mulher, como que se fala? Patricinha. Ela fala
“ih, vocês que gosta de roubar, nunca roubei, nunca vou roubar. E não gosto
que usa droga perto de mim”, ela falando. Ela falou “quero namorar nem tão
cedo, não tem pressa”. Ela é bastante inteligente
Como já foi apontado, a maioria dos jovens empobrecidos não se envolvem nas
facções, e estas comportam também, em outro tipo de funções e com mais ganhos,
pessoas que não necessariamente vão ser atravessadas pela repressão e a privação
de liberdade (ZALUAR, 2012). Contudo, isso também não significa negar que existem
certos mecanismos que se apropriam da precariedade e dos valores capitalísticos para
atrair e cooptar jovens93 (ZALUAR, 2004), segundo suas narrativas, a partir dos nove
anos, oferecendo o que uma sociedade desigual insiste em cercear. Frente a isso,
alguns jovens se aproximam, outros não, dobrando e desdobrando em políticas
comunitárias específicas e sendo submetidos a normas concretas que estimulam
valores capitalísticos e machistas. A exclusão, no entanto, se articula com as
instituição-forma subjetividade capitalística, assim como “a complexa engenharia
93
Existe inclusive a expressão “adolescentes explorados pelo tráfico”.
128
instituições de educação superior, e Gabi tem realizado esforços nesse sentido a partir
do trabalho no IFRJ, com uma unidade de semiliberdade que está próxima do seu
campus. Porém, muitas vezes, existe uma dificuldade para que os jovens se mobilizem
e enxerguem o estudo como algo significativo 94, dizem ser “longo demais”, e são
“seduzidos de novo pelo tráfico”, como apontado por um diretor.
Algumas tentativas são realizadas para promover “futuros dignos”, por exemplo,
promovendo, na medida do possível, que os jovens estudem. Um grupo de profissionais
no primeiro Curso relatou fazer atividades com os jovens nesse sentido, encenando
entrevistas de trabalho, e explorando históricos familiares, experiências profissionais
anteriores e expectativas de projetos de vida, buscando as potencialidades de cada
jovem. Também observamos um evento sobre socioeducação e mercado de trabalho
do CAI, onde o grupo de teatro “Nós do CAI” apresentou uma peça que, com a música
“Trabalhador brasileiro”, apresentava personagens como médico, jornalista, gari,
músico, executivo, e militar, o que nos fez pensar nos significados que esses empregos
podem ter para os jovens no espectro de masculinidade exercido nas vidas deles.
Alguns profissionais também apontaram acreditar que o futebol pode ser um
caminho para alguns jovens, e outro relatou ter organizado a visita de uma organização
evangélica de box, para oferecer referências de vida para os jovens. Nesse sentido,
também é importante pensar nos mecanismos para implementar essas ações no
cenário político, pois, por exemplo, a maioria das atividades recreativas do CAI eram
realizadas por ONGs, tais como oficinas de capoeira e de informática que, na crise
econômica, saíram do CAI, deixando apenas as atividades que agentes, docentes e
equipes técnicas poderiam desenvolver. Todavia, alguns/mas profissionais criticaram
essas ONGs, dizendo que eram utilizadas como desvio de recursos – assim como as
empresas terceirizadas – e que não ofereciam nenhuma alternativa para os jovens.
Algumas atividades profissionalizantes foram apontadas, como tosa e banho de animais
94
Podemos pensar no abandono escolar como uma experiência de exclusão e desigualdade em muitas
trajetórias juvenis masculinas, negras e empobrecidas. Em 2014 eu, Anna Paula Uziel e Tássia
Pacheco desenvolvemos um projeto em uma escola da rede pública do estado do Rio de Janeiro,
especificamente em duas turmas do Programa Acelera Brasil, que procura “devolver crianças e
adolescentes ao fluxo educativo normal”. Em vários momentos da pesquisa no Degase lembrei daquela
experiência, por isso acho importante trazê-la à reflexão. Lá, a maioria das crianças e jovens eram
homens, negros e de favelas próximas à escola. Sempre achei relevante que fossem os homens os que
parecem ter maior dificuldade de acompanhar o Sistema Educativo nas suas etapas normatizadas, ao
tempo em que se evidenciava a dificuldade de fazer da escola um projeto interessante para os jovens.
130
95
Os jovens explicaram que o curso consistia em aulas sobre primeiros socorros e ISTs, entre outros
temas, e que foram direcionados pelas técnicas por serem “bons pra se comunicar” e por isso estão
sendo referência no CAI. A técnica responsável disse que ia entregar certificado por módulo, para lidar
com a rotatividade. O grupo começou com pouco mais de 10 jovens e no momento do nosso Curso
tinha sete.
131
nos relatos a seguir. “É bom ficar um pouco longe da rua, parar pra pensar um cado. Às
vezes caos da família é ruim, você ficar um pouco longe é bom pra você pensar um
cado também. Você sair, ou você morre, ou você volta pra casa de novo. É bom você
pensar assim”, “gostar da cadeia ninguém gosta, né? Mas gosto que aqui nós fica
guardado, se não, lá fora não poderia pensar muito também”. A palavra guardado
chama a atenção, nos remetendo talvez a uma proteção oferecida pelo encarceramento
e/ou a uma função de “depósito” e não a uma política de inclusão social (ABDALLA,
2016).
Quando, em entrevista individual, perguntado se ia conseguir voltar para casa
sem se envolver novamente no tráfico, Emiliano disse que “tipo assim, eu falo, eu não
sou obrigado a ficar nessa vida. Eu não sou obrigado a ficar nessa vida. Eu só vou
falar, não quero mais essa vida”. Em uma atividade em grupo, onde os jovens
desenhavam um personagem e inventavam uma história para ele/a, criaram um homem
e, em um momento, Benjamín sugeriu desenhar uma tornozeleira, pois ele já tinha sido
preso. Christian Tomás (17 anos, negro) rebateu, dizendo que ia “estragar ele” e
decidiram não colocar, mas incluíram na história que esse cara, na adolescência, tinha
passado pelo Sistema Socioeducativo, se envolvendo em latrocínio porque era viciado,
tinha ficado detido três anos, dos 15 aos 18, e “saiu de lá com a cabeça modificada e
deu um outro rumo na vida”.
Também escutamos frases como “hoje sou criminoso, mas vou mudar de vida”,
“o crime é uma ilusão” e observamos o grafite do pátio “É hoje que você vai mudar a
sua vida”, nesse mesmo tom. Nas nossas conversas posteriores, Gabi constantemente
se interrogava de onde vinham essas expressões, ao que discutimos que podia ser
uma combinação de eles acharem que era isso que queríamos escutar, de acreditarem
que nós tínhamos algum tipo de influência no relatório, de serem frases que
constantemente se repetem na instituição-estabelecimento e/ou deles desejarem isso,
sendo esse projeto possível ou não. Outros jovens já expressaram abertamente que ao
sair do Degase vão continuar nas facções. Teve um especialmente que me marcou, em
entrevista individual, quando falei “você era de qual facção?” e ele respondeu “sou do
CV”, me corrigindo.
132
96
No entanto, também observamos que os jovens em situação de rua tendem a ser acusados por
cometer infrações menores, ficando na Provisória e, quando chegam na internação, são discriminados
pelos outros, pois ser “cracudo” é considerado uma fraqueza, geralmente não aceita pelas facções.
133
Abel: a história do Comando Vermelho foi assim: em 1968, teve uma quadrilha,
não sei se você já ouviu falar na Falange Vermelha. Essa quadrilha foi
97
Rogério , Marcinho, todo mundo. Nisso tudo que aconteceu, foi criada, Rogério
foi preso, aí disso tudo criou o Comando Vermelho, a facção
Jimena: dentro da prisão?
Abel: dentro da prisão. Disso saiu o Comando Vermelho pra fora, aí, tipo assim,
aí nisso tudo, criou, aí veio outra facção, TCP, Terceiro Comando Puro. Depois
veio os Amigos dos Amigos, que foi o Paulo, o Weslley, o Linho e o Celso, os
três irmão que criou. Aí disso tudo, criou essas facção, criou tudo, veio isso aí,
aí veio Família do Norte, aí veio PCC, tudo isso aí foi criado agora. Aí depois
veio, não sei se você ouviu falar do Fernando Beiramar, do Marcinho VP, do PL,
do morro do Chapadão, do Fu, da Mineira, o Ericson motoboy da Nova
Holanda. Tudo isso aí, ô, no caso de Belford Roxo, como subiu, vamos botar,
Nova Holanda, Jacaré, Manguinhos, Chapadão, Chatuba de Mesquita, Borel de
Mesquita, Penha, complexo da Penha, complexo do Lins, Lins, Mangueira,
Pavuna. Tudo isso aí é Comando Vermelho. Agora Pedreira, Rocinha,
Mangueirin, nós ainda tem o Pavão Pavãozinho que é nosso, o PU, tudo isso aí
é uma grande família, o Comando Vermelho. Aí do TCP tem Sapateiro, tem a
Torre, vários morros aí. Então são muitas comunidades envolvidas, sabe?
Porque no Rio nós somos favelado, somos pobre, somos humilde.
97
“Rogério Lemgruber foi considerado a principal referência na organização do Comando Vermelho
dentro do presídio da Ilha Grande, entre aos anos de 1960 e 1970” (MATTOS, 2016, p. 12).
134
ah, ehh, pra mim o pior é os alemão, que se te agarra eles matam mesmo,
milícia também, polícia não, polícia, como, já prende, já leva preso. Mas eles dá
tiro, se matar matou, e se eles nos dar tiro, só nós não vai dar tiro? Nós também
tem que dar tiro”.
Já Carlos Iván apontou que “é mais difícil com polícia, porque polícia já é
treinado, facção vem os malucão que dão tiro pra todo canto”. Jesús (17 anos, negro)
disse:
Jhosivani disse ter medo de ambos os confrontos, pois “com os dois de qualquer
forma você pode morrer. Mais da outra facção, porque polícia, dependendo de qual
135
polícia se eles vão te prender, ou te balear, ou te levar pro hospital. A outra facção não.
A outra facção mata logo”.
Jimena: quando você foi liberado porque pagaram ao policial, você não ficou
devendo pra facção? Eles não te cobraram isso?
Jhosivani: não
Jimena: porque você acha que eles pagaram tão tranquilamente?
Jhosivani: ah, aí não sei. Que, tipo, se você for preso, você tá aí tipo supondo
que a pessoa tá no morro, tá envolvida, aí ela roda com arma, com droga, se
ela for presa ali, porque de repente a polícia entra na favela, a pessoa for presa,
e na favela a pessoa não vai pagar, tipo que ele tá dando praticamente a vida
dele pela comunidade dele e tipo que não tem direito de cobrar...
Desse modo, alguns jovens relataram não fazer parte da estrutura propriamente
dita, mas vendem o que roubam à facção. Assim, a facção controla tudo que acontece
e em algumas ocasiões protege os seus. A maioria desses jovens costuma ocupar os
cargos mais baixos, como vapor ou radinho. Outros já ocuparam vários cargos, como
Emiliano:
Igualmente, mesmo que muitos dos jovens que conhecemos informam estarem
em alguma facção do tráfico, alguns entraram ao Sistema Socioeducativo por furto, por
roubo de carga, por 157 (assalto a mão armada), por assassinato ou por crimes sexuais
– estupro ou abuso de vulnerável. Alguns entraram por terem sido acusados por outras
infrações, mas faziam parte das facções, e alguns também relatavam estar ali por erro
ou por infrações cometidas anteriormente, apesar de ter saído dessa “vida” antes de
serem apreendidos. Assim, “através de distintas redes de tensionamentos, o sujeito
criminoso é produzido por um modo de subjetivação que o situa em um mundo à parte,
136
no avesso da norma que produz o cidadão de bem” (DOS SANTOS; NARDI, 2014,
p.934).
Orlando Zaccone resgata quatro fatores apontados por Augusto Thompson na
criminalização: “a visibilidade da infração; a adequação do autor ao estereótipo do
criminoso construído pela ideologia prevalente; a incapacidade do agente em
beneficiar-se da corrupção ou prevaricação; e a vulnerabilidade à violência”
(ZACCONE, 2011, p. 18).
Bernardo não foi o único jovem a relatar a prática de nítida corrupção por parte
da polícia98, às vezes plantões inteiros que solicitam dinheiro não apenas para liberar
as pessoas, mas para não entrar mais nas favelas.
Jimena: qual você acha que é a regra mais difícil de seguir no tráfico?
Felipe: ahh, na hora do aperto, quando a polícia chega, entrar na porrada. Eu já
entrei quatro vez. Já tive ponta de fuzil na costela. Tem que bancar
Gabi: você nunca entregou?
Felipe: nunca. Entrava no acordo: “olha, você vai liberar um dinheiro pra mim,
mais tarde vou vir aí, se não quando eu te pegar, eu vou te quebrar”, “ah,
tranquilidade, pode vir mais tarde, o dinheiro vai estar aí”
Gabi: dessa vez que você rodou não teve negociação?
Felipe: não
Gabi: mas você ofereceu?
Felipe: cheguei a oferecer foi mil reais por policial, porque eu só rodei com
rádio. “O senhor não pode me liberar não?” “Não trabalho pra isso, não sei o
que”. Aí eu falei “pode me levar” e aí foi e me levou.
Apesar da entrega dos jovens à facção, arriscando suas vidas, usando seu
dinheiro ou assumindo penas, como sujeitos homens99, e da aposta do reconhecimento
por parte da facção sobre seu empenho, os que estão nos baixos cargos da
organização não são considerados merecedores de um investimento financeiro para
serem liberados e, inclusive, sua ausência nem é percebida ou investigada. Como
apontado por Orlando Zaccone, “o sistema penal revela assim o estado de
miserabilidade dos varejistas das drogas ilícitas [...], alvos fáceis da repressão policial
por não apresentarem nenhuma resistência aos comandos de prisão” (ZACCONE,
98
Carla Mattos relata como, na Maré dos anos 90, o clima aparentemente calmo se tornava violento com
“as frequentes incursões policiais para sequestrar traficantes. O valor exorbitante que os policias
exigiam para o resgate de um traficante o transformou na mercadoria mais valiosa desse mercado de
extorsões. Quando isso acontecia, todos os comerciantes eram obrigados a contribuir” (2016, p.5).
99
Esta é uma expressão bastante presente no Degase e que será explorada no capítulo 4.
137
2011, p.12). Estes varejistas são considerados “bandidos de 3ª classe”, e é sobre eles
que “recai a repressão punitiva” (ZACCONE, 2011, p.22), são os “acionistas do nada”,
expressão que o próprio autor utiliza no título deste seu livro.
Silvia Ramos, no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana, sinalizou
outras mudanças, apontando que no contexto atual do Rio de Janeiro, o tráfico aparece
cada vez mais armado, mais letal e mais flexível nas relações trabalhistas. Nesse último
ponto, também observamos algumas trajetórias distintas às comumente adjudicadas
aos jovens que participam das facções, tais como continuar na escola – incluindo o
ensino médio – e ter trabalho de carteira assinada, embora a maioria se afaste dessas
atividades. Como apontado por Carolina Grillo no Ciclo sobre Violência, Política e
Sociablidade Urbana, mesmo que as facções no Rio de Janeiro tenham nascido
inicialmente como coletivo, elas têm se individualizado na busca do bem de alguns, não
mais da comunidade, mesmo solicitando uma fervorosa devoção dos que dela
participam. À atitude dos jovens de fazerem luto pela morte de algum integrante da
facção deles100 –que consiste em pôr a televisão em baixo volume e estar em silêncio à
noite no alojamento, uma profissional mostra sua indignação: “eles não estão nem aí
para vocês. Vocês são para o tráfico como copos descartáveis, que a gente usa e joga
fora”. E comenta sobre Rogério Lemgruber, um dos fundadores do CV, que chegou a
conhecer.
era uma outra cabeça, uma visão muito diferente do tráfico, se o Rogério
conhecesse algum menino desses, ele ia expulsar do tráfico, porque são ideias
totalmente conflitivas. Hoje em dia há uma glamourização das facções pela
mídia e pela sociedade, por isso acho errada a abordagem desses programas
que eles assistem. A mídia não devia nem citar o nome das facções, que isso
101
dá moral errada para eles .
100
Com este movimento podemos pensar na porosidade dos muros das unidades socioeducativas, que
faz tanto que os jovens fiquem sabendo do que acontece Fora, quanto que suas condutas sejam
levadas para a facção. Esta deferência pode ser fruto de medo e/ou respeito, dentre outras motivações.
101
Antonio Rafael Barbosa destaca papel da mídia no caso do Rio de Janeiro: “comumente, quando os
meios de comunicação veiculam matérias sobre o tema, estas versam sobre a violência desmedida e a
produção do caos urbano associadas diretamente à presença dos bondes de traficantes nas vias
públicas e às guerras do tráfico pela tomada de territórios, nas áreas mais carentes da cidade, morros e
favelas”, incluindo uma “avaliação moral de fundo, presente nesses blocos de imagens e discursos,
nesses pacotes de notícias vendidas com uma certa regularidade para todo o Brasil” (BARBOSA, 2006,
p. 120).
138
Adán: não sei quando vou sair, por causa de um negócio lá na pista, da boca,
derramei uns cara da boca, aí como, os cara quer me matar, aí tô aí mó
tempão, por isso perdi esse tempo todo.
Jimena: você acha difícil ficar aqui?
Adán: ah, achar difícil, eu não acho difícil não, até é bom pra mim, porque eu tô
correndo muito perigo, tô mais seguro, tô mais seguro, porque, como, eu tô
correndo perigo. Pra mim até é bom, mas ficar muito preso, pô, mó tempão
preso, sem andar na rua, não dá não. Tem vários menor chegando, vários
menor indo embora, e eu ainda aqui.
Adán aponta que ele mesmo passou visu ao chegar ao CAI sobre o que tinha
acontecido na pista, para evitar comunicações alheias a ele e tomar as previdências
necessárias de separação do convívio. Por sua parte, Bernardo relatou que “eu mudei
de facção, foi assim, eu levei várias armas, sabe? Pulei de facção com várias armas,
pode até ser que os caras queiram desenrolar comigo, mas já fui de outra facção, é
mais, é difícil dos cara me aceitar de novo, mas se eu estiver disposto a pagar o que eu
roubei pros cara, é capaz de eu voltar”. Como apontado por Carla Mattos, “dar derrame
na boca” é “quando alguém é considerado incapaz de arcar com as dívidas adquiridas
em compras de drogas” (MATTOS, 2016, p. 12). Desta forma, o que pode ter
acontecido no caso do Adán foi uma impossibilidade de demonstrar que poderia pagar
sua dívida, diferente do caso do Bernardo. Depois de sair do CAI, Adán tentou voltar à
casa da sua família, mas rapidamente avisaram que ele seria morto, por isso teve que
139
sair e ir para um abrigo. Também soubemos de casos em que jovens foram executados
pouco tempo depois de saírem do CAI. Em uma ocasião, algumas profissionais
discutiam que de alguma forma alguns jovens acreditam que as facções esquecerão os
erros cometidos, ou acreditam serem capazes de fugir das cobranças.
Adán também relatou que uma ex-namorada que havia derramado havia sido
morta pela facção estando grávida, e Carlos Iván contou que a sua mãe foi morta por
erro, pois acreditavam que ela tinha roubado na área que não era permitida pela
facção, embora ela nem gostasse que o pai dele traficasse. Ele também relatou ter tido
que trocar de facção porque tinham confundido ele com outro jovem que tinha roubado
armas da boca e estava ameaçado de morte. Assim, a dureza e a flexibilidade das
ameaças, vigilância e punições estão sempre em jogo.
Destarte, a sensação de pertencimento e de dever às facções é perceptível em
vários jovens, mesmo com narrativas configuradas na performatividade masculina de
reafirmação de autonomia, tais como a do Cutberto, quando, na atividade em que
desenhavam um personagem, colocou um brinco na orelha do personagem e relatou
que quando era morador ele tinha um bastão na orelha. Eu perguntei se ele tirou o
bastão quando entrou no tráfico ou foi a facção que tirou, e ele respondeu “ninguém
manda em mim”.
Antônio Rafael Barbosa (2006) aponta que crime e Estado são espaços
relacionais em constante interação e que o controle bélico (militar) dessas relações é
territorial e agenciado como um conflito político. Nesse contexto, as pessoas
empobrecidas, especialmente os homens jovens e negros, são alvo e executadores
principais dos crimes violentos, quadro no qual o Estado tem um papel importante. Por
sua parte, as facções também são atores políticos preponderantes, ao serem
experimentações políticas de formas de criar política e sociedade contra o Estado que,
no caso do Rio de Janeiro, tem como mecanismo importante a demonstração da força,
como apontado por Carla Mattos no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade
Urbana, em atos violentos, incluindo a tortura. Também, como assinalado por Carolina
Grillo neste Ciclo, as facções atendem às dinâmicas do mercado. Douglas Silva, no
mesmo evento, ressaltava a importância de não naturalizar as facções como o “tráfico”,
no sentido já apontado, em que elas têm um escopo amplo de comércio de drogas
140
Terceiro,
Vemos aqui a Segurança, destacada por esse autor como uma “palavra de
ordem suprema no cenário atual” e comparada com seu uso durante a ditadura militar
no Brasil, quando se falava em “segurança nacional” (BARBOSA, 2006, p. 124).
Por fim, outro ponto interessante que ele discute é a ideia de que
102
Zaccone também aponta que “o atual modelo repressivo acaba por realizar uma função de intervenção
no mercado. Os varejistas são retirados da competitividade do comércio ilegal, aumenta-se a corrupção
na periferia e concentram-se os lucros do negócio ilícito junto às atividades legais, responsáveis pela
lavagem de dinheiro obtido com o comércio das drogas proibidas” (2011, p. 25).
142
Destaco o carácter rizomático, poroso e mutável das relações dentro das facções
ou comandos e entre elas o poder público, que também não podemos considerar
monolítico. No entanto, me parece importante olhar de perto de que forma os jovens
que são foco deste trabalho vivenciam essas relações, pois mesmo observando sua
capacidade de negociação e de afirmação de autonomia, o discurso da hierarquia
apareceu frequentemente, especialmente na configuração política bélica atual da
cidade.
Uma forma de organização pautada por um corporativismo militar, também
sinalizada por Barbosa, em vetores que conferem às facções seu aspecto de
“organização”: uma “forma-Estado”, percebida “nos sobrecódigos (a ‘lei’ do tráfico) que
afetam significativamente a vida comunitária e em sua disciplina interna, em suas
hierarquias, em seu controle territorial” (BARBOSA, 2006, p.129), que são em grande
parte aprendidas na prisão, e no Sistema Socioeducativo, em um modelo composto por
um “polo empresarial”, descrito por Bernardo acima, e um “polo militar”, reificado na
produção do inimigo a ser eliminado e violentado, que compõe um “ethos guerreiro
faccional” (MATTOS, 2014). Nesse ponto, alguns jovens do CAI relataram ter executado
diversos tipos de tortura e violência letal, alguns deles expressando prazer nisso, o que
é considerado por profissionais um grande obstáculo no trabalho com os jovens, que “já
chegam violentos, reproduzindo essa lógica”. Outros jovens se referiram a essas
práticas de forma negativa.
Pensar no tráfico, assim como nas demais atividades criminosas, como
“atravessado por um ‘devir-bando’, com suas organizações, reorganizações e
capilaridades, põe em análise a fixidez com que muitas vezes olhamos para elas. Uma
afecção que une alguns indivíduos, dando existência a esta formação, durante algum
tempo” (BARBOSA, 2006, p.128) parece primordial para pensar sua mutabilidade e
rizomaticidade, assim como as contradições e paradoxos do “mundo do tráfico”
(RAMOS, 2011).
Vemos também uma “expansão discursiva do mundo do crime” que está
“intimamente ligada à intensificação do confronto armado entre facções rivais e à
institucionalização de um exército de combatentes” (MATTOS, 2016, p.2). Isso afeta
inclusive as relações amorosas e sexuais, como na experiência de Israel:
143
Israel: eu conheci ela esse dia e no outro dia ela já me ligou. Aí já tava na casa
dela. E sabe onde ela morava? Em XXX, lá nos alemão, eu nem sabia que lá
era alemão.
Gabi: e aí tu foi lá?
Israel: fui
Gabi: mas você ainda não era envolvido
Israel: não, não era envolvido, mas lá lançavam uns negócio assim, asa delta,
que dava pra ver que era de Bandido.
103
É importante considerar que existem outras alternativas apresentadas por coletivos locais que, por
exemplo, reivindicam o “direito à favela” como produção alternativa de cidadania. Para muitos
movimentos de favela, a pauta é “nem polícia, nem tráfico”, entendendo ambas instituições-organização
como produtoras de violência e sofrimento, incidindo conjuntamente nas condições de vida das/os
moradores/as de bairros populares (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON, 2014).
104
Carla Mattos chama a “desnaturalizar a pressuposição de que as favelas, submetidas ao controle
estrito da violência do tráfico de drogas, são, ao mesmo tempo, lócus e causa da ‘violência urbana’. Na
etnografia analisada, o que se vê é uma ordem específica, mas nunca desordem, tampouco caracteriza
o lugar do Estado ausente. Ao contrário, governos locais, de Jorge Negão a Andrezinho Moral, e
governos externos, entre facções rivais, incursões policiais e políticas de segurança pública, são
práticas relacionadas e partes integrantes de um mesmo ordenamento. Desse conjunto de relações é
possível compreender o descaso sobre as fronteiras relevantes aos moradores em torno da
implementação do 22º. Batalhão da PM na Maré. Nessa lógica, o confronto entre facções rivais e a
atuação dos Caveirões complementam-se, sustentando uma complexa rede ilegal de ‘mercadorias
políticas’ (Misse, 2010) e econômicas (Feltran, 2014). Esses distintos regimes coproduzem a ordem da
favela estudada, repercutindo no restante da cidade” (MATTOS, 2016, p.11).
144
vários níveis e formas, todas as quais podem mudar e não são sempre planejadas ou
desejadas (MATTOS, 2016; FONSECA, 2004). Ao partilhar o mesmo espaço – em
relações familiares, religiosas, de vizinhança, de estudo e de trabalho – as fronteiras de
convivência, negociação, proteção, amizade, tensão, conflito e violência não são
possivelmente nítidas (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON, 2014).
Como apontado por Patrícia Birman, Adriana Fernandes e Camila Pierobon
(2014) em etnografia realizada em um processo de invasão do tráfico a uma ocupação
auto-gestionária no Porto Maravilha, na relação entre tráfico, moradores e polícia,
“combates, alianças e formas de evitação variadas se sucedem, associando seus
atores e apagando suas diferenças em certos planos e/ou reforçando-as em outros”
(p.432). Elas observaram um
Vou te falar, tem Bandido de trinta e poucos anos, que o cara, como, o cara
chega como, o cara nunca rodou com a polícia, nunca deu mole, sabe? Anda
na dele de bonezinho, pá, ninguém sabe que ele é Bandido, só as pessoa
morador da favela sabe que ele é Bandido. Mas tem diferença, do Bandido que
gosta de... de zoar com morador, e tem Bandido que gosta de ajudar o
morador, Bandido que ajuda o morador, morador não dá pra polícia não, agora
105
os cara que quer oprimir morador, ah, morador é X9 e dá um papo com a
polícia. Eu sou o tipo de pessoa que mesmo na favela, sendo traficante, as
pessoa sempre me ajudou, filha. Morador sempre me ajudou, quando via a
105
X9 é delator.
145
polícia atrás de mim querendo me pegar, que, correr dos cana, sabe? Os cana
mesmo, correr dos cana. Aí desde esse momento que nós corre dos cana, filha,
morador sempre abre a porta pra nós.
Jonas: eu não sou, mas tipo assim, minha mãe também não é envolvida com
nada, e sempre morou no morro, muito tempo
Gabi: mas ela não é do Comando Vermelho
Jonas: ela é do Comando Vermelho. Se ela mora numa área do Comando
Vermelho, tem que se dizer da facção que eu sou. Tem pessoa que nem eu,
preso, mas tem pessoa que não
106
Nilo Batista (ZACCONE, 2011) nomeia essa guerra de “política criminal com derramamento de
sangue”. Orlando Zaccone discute essa política em termos das suas contradições no campo da saúde
pública.
146
de gays nas facções, e vemos cada vez mais casos de gays e travestis entrando no
Sistema Socioeducativo, como acontece no Sistema Prisional.
Para os jovens que fazem parte das facções, a entrada ao Degase é um
momento crítico da “vida de Bandido”, que acaba reificando de alguma forma essa
trajetória, pois “faz parte”, mesmo fragilizando esse lugar por ter sido pego e ter “dado
mole”. É interessante explorar, nesse sentido, de que forma as disputas das
performatividades masculinas acontecem tanto nas facções quanto nas instituições de
privação de liberdade, que em muitos casos se tornam lugares “onde as
masculinidades criminosas são aprisionadas, reiteradas e (re) produzidas” (DOS
SANTOS E NARDI, 2014, p.935), mas também driblando os códigos machistas e
cisheteronormativos. Assim, nem só pela geografia e pela topologia do tráfico o Degase
se pauta.
Um profissional que está há quase vinte anos no Degase apontou que o cenário
tem mudado bastante, pois anteriormente tinha menos jovens, “porque existia emprego
e porque o tráfico não pegava menor de idade, mas agora pega porque o gasto é zero
com menor”. Ele também apontou que “antigamente o Exército recrutava os
adolescentes aqui dentro, com formação técnica e trabalho garantido na saída. Hoje,
quem cumpre esse papel é o tráfico”, que faz “lavagem cerebral” e “passa a ideologia a
jovens que não são envolvidos e acabam se filiando”, “isto aqui é escola de Bandido”.
Uma profissional relatou o caso de um jovem que “foi pego só com radinho e veio fazer
escola do mal, a gente botou outro menino na sociedade, ele sofreu muito aqui, foi até
estuprado, e ele vai cobrar esse preço”.
Vemos assim uma expansão discursiva e prática do crime na instituição-
estabelecimento, aparelhado pelas facções e suas alianças, sendo atravessadas pelas
instituições-forma e forjando ou agenciando subjetividades generificadas. Como
apontado por Thiago Melício, nessa densa amarra de vida entre facções e Degase, se
produzem efeitos de sociabilidade juvenil. Ou seja, a regulamentação, a
deshumanização e o biopoder agenciam normas cristalizadas a partir das quais os
jovens, na angústia provocada por essas amarras, produzem táticas de sobrevivência.
Muitas vezes, as táticas vão ao encontro dessas normas, como uma forma de manter
certa estabilidade, apesar de serem elas que produzem sofrimentos e mortes.
147
rasgariam o Sinase. Por exemplo, foi apontado que não existe o número de agentes por
jovem que está estipulado, que o número de técnicos/as também é reduzido, que a
lotação não é respeitada, que o sistema não é regionalizado ou territorializado – por
exemplo, no caso do público do CAI, que deveriam existir unidades de internação em
Caxias, Nova Iguaçu, Queimados, Niterói, e na região dos Lagos – e que durante as
férias da escola os jovens não têm nenhum curso.
Se, na sociedade de forma geral, vemos uma passagem da sociedade de
disciplina ao controle, da punição à vigilância (FOUCAULT, 1979/2011), quando
adentramos o mundo das instituições de privação de liberdade, onde as normas da
disciplinarização dos corpos são o ápice do processo de desenvolvimento e
aprimoramento da economia do castigo (FOUCAULT, 1975), coexistem com os
mecanismos de controle, no momento em que estão conjugadas “a função disciplinar” e
a “diminuição do risco” (SEFFNER; PASSOS, 2016), condensada na instituição-forma
Segurança.
Considerando que ambos sistemas não apresentam uma tendência a se
extinguir mas, muito pelo contrário, crescem de maneira desenfreada, atravessando
cada vez mais vidas – dos jovens, das famílias, das/os profissionais –, cabe pensar
como eles acabam não só sendo atravessados por uma instituição-forma disciplina,
mas eles mesmos se constituem como seus vetores. Vemos, então, ao mesmo tempo
“máquinas enérgicas” das sociedades disciplinares (DELEUZE, 2008) e uma expansão
e continuidade do controle.
Assim, podemos observar
reconhecidos e velados, no momento em que mexer com eles acaba sendo tocar em
feridas de grande parte do corpo profissional e diretivo, ao acreditarem, da mesma
forma que setores crescentes da população, que modelos disciplinares de gênero e
sexualidade são necessários e mais pertinentes do que aqueles que propõem
liberdades e constroem alternativas de vida.
Em Foucault, o poder disciplinar está constituído por características básicas,
todas inter-relacionadas: a organização do espaço, o controle do tempo, a vigilância e o
registro contínuo do conhecimento. Neste capítulo, pretendo discutir de que forma estas
características, que podemos entender como dobras, se instauram no cotidiano do CAI,
constituindo-o como um terminal de poder em que observamos diferenças e
semelhanças complexas e maleáveis quando comparadas com o Sistema Prisional e
com outras unidades socioeducativas.
107
Em um exercício visual, pensando dobra e porosidades, podemos imaginar uma esponja que é
torcida, o que provoca que alguns poros se fechem mais e outros se abram mais.
151
108
As tramas das telenovelas, por exemplo, são constantemente referidas nas falas dos jovens como
referências dos mais variados temas, incluindo transexualidade, racismo e violência de gênero.
152
enfim, faz dobrar o espaço, apontando para como, ao mesmo tempo, há uma
marcação entre o dentro e o fora da prisão e inúmeras comunicações e
misturas entre estas duas instâncias – como se diferentes narrativas espaciais
habitassem o pátio nos momentos em que as famílias encontram suas
familiares privadas de liberdade: há o mundo da rua, há o mundo da prisão, há
o mundo da socioeducação e estes mundos se misturam, produzindo uma
experiência que entrelaça diferentes espaços em um. Por isso a visita é um
potente analisador: por um lado, ela evidencia a condição de privação de
liberdade; por outro, é a própria efetivação dos movimentos comunicantes que
atravessam os porosos muros da prisão e da unidade socioeducativa, o que
deixa ver as forças e poderes, instituídos e instituintes, que constantemente se
atravessam, produzindo, às vezes, mais linhas duras que vão de encontro ao
instituído e, outras vezes, linhas mais maleáveis que se irrompem contra estes
poderes (D’ANGELO, 2017, p. 130).
Carlos: tem coisas que aqui dentro nós segue a continuidade da pista
Jimena: tipo o que?
Carlos: tipo X9. Nós mata. Não pode X9. Bom, não mata não, eu não mato, os
cara mata aí
Isso acontece com outras falhas realizadas na pista, tais como roubos fora da
área permitida ou em ônibus – considerado errado por “roubar trabalhador”110, pular ou
trocar de facção ou derramar. Dentro do estabelecimento, as cobranças são realizadas
a partir de direcionamentos específicos das facções, cujas punições devem ser
seguidas rigorosamente, o que, caso não aconteça, também poderá trazer
109
Isto tem suas diferenças entre as unidades. Por exemplo, a greve geral convocada pelo CV nos
presídios do Brasil (https://oglobo.globo.com/brasil/presos-de-faccao-criminosa-fazem-greve-de-fome-
por-retorno-de-irmaos-em-penitenciarias-federais-22058869), atingiu algumas unidades socioeducativas
no Rio de Janeiro, mas os jovens do CAI não aderiram, segundo profissionais.
110
Jesús disse “eu fazia assalto. Roubava comércio. Nunca gostei de roubar esse negócio de ônibus não,
nunca achei maneiro, que talvez eu poderia encontrar minha mãe, podia encontrar meu pai, uma tia, um
tio, aí nunca gostei não”.
153
consequências sobre quem não atendeu a sentença de forma adequada, por exemplo,
provocando a morte do jovem, quando o que se pretendia era apenas machucá-lo.
Igualmente, os lutos por mortes de pessoas importantes das facções e as
mudanças nas relações entre elas geram subsequentes alterações nas separações dos
alojamentos. A instituição-estabelecimento, sejam os centros de socioeducação ou
penitenciários, vira um
Ou seja, ao mesmo tempo, tal como apontado por uma gestora, o Degase “cria
acontecimentos para as facções”, pois os jovens, por exemplo, devem orientar os
chefes do que aconteceu nas suas passagens pelo Degase, incluindo as práticas de
masturbação, um dos nossos analisadores, como expressado por Bernardo: “ah, não
acho legal não. Chegar na pista e falar, tipo assim parar os outros comigo e falar ‘ah,
você tava preso, como que você ficou lá dentro lá? Nenhuma garota pra você fazer
sexo, o que você tava fazendo?’” e Abel apontou:
Bernardo: se eu falar pra você que eu nunca tive relação com homem, é
mentira, sabe? Mas tipo assim, deixar homem trepar atrás de mim, nunca deixei
não, que nem viado faz, não. Agora, tipo, como, o cara querer emendar, ou
querer que eu tivesse a relação sexual com ele, fazer penetração com ele, já
fiz mesmo, sabe? Mesmo assim, se eu chegar na pista, tem que desenrolar
111
Carla Mattos (2016, p.3)ressalta as “tanto as intimidações como as relações entre prestígio,
masculinidade e honra (Lopes, 2011; Mattos, 2014a) compõem as performances dos litígios mediados
por moradores e traficantes”, interações que também percebemos entre os jovens e seus superiores.
154
com meu patrão do tráfico de drogas que responde por mim na pista. O cara
sabe tudo que eu faço. Tipo assim, o cara na pista não sabe o que eu faço aqui,
mas eu tenho que orientar ele, sabe?
Carlos: a gente conversa. “ah, pá, suave”, vende uns bagulho, pá, vende umas
coisa. Mas é só por causa do interesse mesmo, é só interesse, por causa que
amizade nada, nada, nada. Nada aqui fica de graça
155
por algumas pessoas, não apenas como uma forma de manter a calma na unidade,
mas também como um símbolo de respeito. Outras vozes estranham esta conduta que
apontam não fazer sentido, alegando que “saindo da unidade, as mães vão ver vários
jovens sem camisa na rua”. No entanto, como apontado em um papel oficial pregado
nas paredes da unidade,
Não será permitido entrar nesta unidade pessoas com roupas curtas (acima do
joelho), decotadas, transparentes, justas, usando bonés, sapatos de salto ou
plataforma, cinto, piercing, brincos, prendedores de cabelo (rígidos), no caso de
calça legging, esta somente com blusa longa.
o negócio de que quebrar aqui dentro não pode. Lá fora não tem nem essa,
pode ser mãe de vagabundo, pode ser mãe de mãe, tu viu assim, quando você
quebrar em casa, ninguém sabe que tu tá... ninguém sabe que tu vai fazer, que
tu pode fazer. Lá fora as coisas não tem nem consideração. Aqui não, aqui é
diferente”. Bernardo apontou: “aqui, filha, aqui é cadeia, é fora do normal.
outros jovens. Porém, é interessante pensar que as classificações são tantas, que a
separação dos corpos que seria ideal para se adequar a elas não se efetiva diante da
hiperlotação, onde as classificações superam os espaços.
Na atividade de teatro referida, os jovens também apontaram que as normativas
referentes à separação dos gays e bissexuais fazem parte da “neurose de cadeia”112. É
interessante pensar porque mancões e Jack devem compartilhar o espaço no
alojamento seguro que poderia ser simplesmente por proteção, pois, como apontado
por um profissional de outra unidade “no seguro podem ser violentados por 6, mas na
coletiva por 20”. Mas também no sentido deles serem equiparados de certa forma no
que diz respeito a sua transgressão à masculinidade, fornecendo a justificativa da
necessidade interinstitucional da regulação e contenção do sexo.
A separação não se restringe ao alojamento, mas também de talheres e copos.
Um profissional relatou o momento em que um grupo de outra unidade socioeducativa
visitou o CAI, e quando os jovens da outra unidade perceberam que os jovens
assumidamente gays partilhavam os mesmos talheres e copos, eles apontaram que
isso era uma transgressão às normas, o que os jovens do CAI não sabiam. A partir
desse momento, em uma porosidade entre unidades, a norma do estreitamento dos
poros entre corpos foi instaurada.
As categorizações se expandem às/aos profissionais, principalmente às
mulheres – nos incluindo –, que vemos geralmente recluídas nas salas e pouco no
espaço comum, inclusive na hora do almoço, e com mínimas possibilidades de contato
com os jovens fora dos atendimentos e atividades e, portanto, com o cotidiano, como
apontado por Gabi. Algumas delas relataram não terem liberdade para ir no banheiro
em qualquer horário, e também serem constrangidas pelos agentes ao se aproximarem
112
Conceito central nas análises de Carla Mattos (2016), a “neurose” pode ser entendida como um conflito
ancorado na chave de uma polarização violenta. “Ancorada em situações, eventos violentos, sensações
e expectativas”, sensações como “adrenalina/ excitação, medo, ansiedade, estado de alerta e frenesi na
vizinhança” (p.6). Por outro lado, quem é “neurótico” é “perturbado” ou “nervoso”. “O entrelaçamento da
guerra e da paz produziu a neurose como incerteza e especulação cotidianas que inviabilizaram o
trânsito entre estas fronteiras indefinidas. A neurose como paz na guerra permanece sendo uma
ameaça à produção pacificada da ordem. A evitação e a institucionalização da neurose como visão
dicotômica entre a guerra e a paz” (p.8).
160
113
Este tema foi discutido em um dos Cursos, onde uma técnica disse que para ela era muito complicado
o fato de ter estabelecido um vínculo de confiança com algum jovem no atendimento, e depois não
conseguir falar com ele no pátio, por exemplo. Os agentes entendem que essas aproximações
ameaçam a Seguranças.
161
positiva que vai no sentido oposto a uma ideia de correção ou repressão”, este está
saturado de práticas e condições muito semelhantes ao sistema dos adultos.
Por um lado, um profissional que tinha trabalhado anteriormente no presídio
apontou em uma ocasião que achava o trabalho no Degase mais desafiador, pois “o
Adolescente é difícil de quebrar”. Outra profissional disse que trabalhar com
adolescentes é difícil, porque não são “nem crianças nem adultos”. Por sua parte, em
entrevista individual, Carlos Iván nos revela as complexas relações entre a prisão, o
Degase e o Fora
Assim como essa, escutamos outras falas dos jovens se referindo a uma
diferença entre prisão e Degase, considerando o segundo como mais leve, uma
fanfarronagem ou uma “colônia de férias pra cracudo”, “tem até sorvete e açaí”, “aqui só
tamos dando um tempo”, “se não tiver uma coisa pra me focar, eu vou voltar a fazer
besteira de novo. Ainda mais aqui, molezinho, internação, rapidinho vai embora”. Nós
também percebemos diferenças, como já apontei anteriormente, nos processos
burocráticos e nas possibilidades de ação no Sistema.
Para Christian Alfonso, “isso aqui não é cadeia, isso aqui é um parque de
diversão, sabe por quê? O cara falta de respeito com um menino, aí ninguém leva ele
pra delegacia, isso aí é preconceito”. Nesse caso, se referindo a casos de homofobia
por parte dos agentes, ele estava apontando que eles conseguiam ser mais violentos
com os jovens do que seriam no presídio, onde as ferramentas jurídicas e
argumentativas dos detentos seriam maiores do que as dos jovens. Jhosivani também
apontou que “lá o funcionário não agride assim, à toa, por besteira. Acho que lá, que é
de maior, eles tratam de igual pra igual, não tem oprimição”.
164
114
Foi relatado que alguns jovens tiveram seus documentos de registro de nascimento graças à
engrenagem do Degase.
165
115
Cabe, também, nos perguntarmos de que forma o Sistema Educativo de forma geral não é perpassado
por perspectivas docilizadoras e colonizadoras, como vimos em um projeto que realizamos com duas
turmas do Programa Acelera Brasil, que a partir de uma perspectiva liberal, acaba enxergando a escola
como um espaço para certificação de estudos a partir de um determinado modelo, não em um lugar de
gestão de conhecimento. “Na medida em que se pressupõe que a escola é um lugar de gestão da
mobilidade social, presume-se que promove a melhoria social e econômica, o que é questionável. Esta
ideia se coloca no contexto de um pensamento colonizado” (ZAVALETA, et.al., 2016, p.10). Outras
propostas autônomas, como a zapatista, no México, sugerem que os jovens sejam formados/as “em
rebeldia com uma formação política, técnica e cultural” (p.11).
116
Em casos extremos de gravidade de infração, algumas pessoas que os acompanhavam sugeriam que
os jovens passassem mais tempo no Sistema para receberem um tratamento psiquiátrico e psicológico
adequado. Eles concordavam com a necessidade desse tempo, mesmo achando que poderiam estar
fazendo atividades mais interessantes do que ficar nos alojamentos, no sentido da sua ressocialização.
166
profissional apontou, diminuir a idade penal faria com que entrassem jovens ainda mais
novos no Degase, ou seja, a lógica de usar os jovens para liberar os mais velhos
apenas se estenderia geracionalmente117. Um gestor do Degase se colocou contra a
redução da idade penal, argumentando que a pena de morte em alguns estados dos
EUA não diminuiu a criminalidade.
Um grupo de jovens estimou que não seria possível reduzir a idade penal porque
isso implicaria que tivesse mais jovens indo ao Sistema Penitenciário, e, mesmo assim,
se reduzir, “eles vão perceber que fizeram besteira, porque vai ter adolescente entrando
lá e querendo ir para paradas muito mais erradas porque os caras que estão lá são
muito mais cascudos e vão querer puxar os adolescentes”, disse Antônio. Eles
afirmaram não ter medo disso acontecer, mas que não gostariam. Já na perspectiva de
alguns agentes, além de ajudar a valorizar o Degase, diminuir a idade seria positivo,
pois reduziria os crimes, já que, novamente, “menor assume bronca de maior”, e porque
o tempo curto das penas os estimula a pensar que rapidamente estarão na rua de novo.
Uma diferença observada no início do campo entre prisão e Degase foi a revista
de familiares, pois o scanner que substitui a revista física só foi implementado
recentemente, o que foi percebido como um “passo na humanização” por um diretor,
melhorando as relações com as famílias, que por sua vez já reivindicavam esse
aparelho há tempos (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Quando começamos, ainda
não era utilizado, familiares – em geral mulheres – ainda tinham que se despir – ficando
em roupas íntimas, com a calcinha nos joelhos –, agachar três vezes, virar de costas e
agachar mais três vezes, tudo na frente de duas ou três agentes, para não ter
denúncias de abuso, como explicado por uma delas. Momentos constrangedores,
reportados pelos jovens, que em alguns casos solicitavam a familiares que não fossem
às visitas para não passar por isso, pois “ela não tinha porque passar por aquilo não, fui
eu que fiz isso”, como apontado por Giovanni (16 anos, negro). Familiares têm
considerado esse momento como revoltante (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007).
Agentes socioeducativas também relataram desconfortos ao esquadrinhar corpos
117
O encarceramento precoce daria origem a uma nova geração tanto de pessoas privadas de liberdade,
quanto de jovens ainda mais jovens assumindo a responsabilidade por atos cometidos ou não.
167
alheios118. Apesar da revista ser mais íntima do que no presídio, pois, como um
profissional apontou, no segundo as pessoas ficam do outro lado de um vidro escuro,
“ouvindo uma voz estranha dizer o que devem fazer”, enquanto no Degase se tinha um
contato com a pessoa que está fazendo a revista, naquele momento nas unidades da
SEAP não havia mais revista, enquanto no Degase, sim.
É importante destacar aqui que vários/as agentes e técnicas expressaram ser
absolutamente necessário esse filtro de entrada e relataram vários casos em que
familiares, especialmente mães e namoradas, tentavam entrar na unidade com objetos
proibidos, como drogas, dinheiro e celulares, às vezes em objetos como sabonetes e às
vezes dentro da vagina, utilizando uma camisinha que seria retirada no banheiro e
jogada fora, deixando evidência do ato. Uma técnica reportou receio de que um
canivete ou um instrumento do tipo entrasse na unidade e posteriormente fosse
utilizado para ameaçar a equipe no atendimento.
Outra diferença entre Degase e prisão seria a visita íntima, um dos analisadores
da pesquisa-intervenção, cuja implementação é perpassada por moralidades que
organizam as vidas. A visita íntima, mesmo que preconizada no Sinase no artigo 68 119,
em geral é percebida como inconcebível, seja pela opinião pública, seja por
profissionais do Degase. Raramente entendida como um direito – e quando entendida,
negada por eles terem “violado os direitos dos outros” ao cometerem infrações-,
claramente declarada algumas vezes uma moeda de troca120: os jovens deverão ser
mais obedientes para ganharem esse benefício, como expressado por Emiliano, que
disse que seria importante ter porque: “ah, sei lá, mané, tipo assim, que ia deixar o
118
Uma agente relatou um momento em que teve que solicitar que uma mãe retirasse um piercing do
clitóris, o que provocou sangramento e muita raiva na mãe, que queria bater nela.
119
Estabelece que as unidades devem “garantir a possibilidade da visita íntima aos adolescentes que já
possuem vínculo afetivo anterior ao cumprimento da medida socioeducativa e com a autorização formal
dos pais ou responsáveis do parceiro(a), observando os pressupostos legais e assegurando, sobretudo,
o acesso desses adolescentes a atendimentos de orientação sexual com profissionais qualificados,
acesso aos demais métodos contraceptivos devidamente orientados por profissional da área de saúde
(exclusivo para internação)” (BRASIL, 2006, p.64).
120
Esta não seria a única moeda de troca, pois existem outros “benefícios” que cumprem esta função, tal
como receber biscoitos e refrigerantes nas visitas familiares, pois “sabe-se que na instituição são
estabelecidas relações de troca e privilégios que visam manter um certo apaziguamento das tensões.
Ora o controle da ‘cadeia (forma como os adolescentes nomeiam a instituição) está nas mãos dos
internos, ora com a Direção” (DA SILVA; SERENO, GONÇALVES, 2014, p. 138)
168
pessoal mais tranquilo, muitos presos não iam querer dar problema pra, como, se não
ia ficar sem”. Ou seja, só poderia acessar o direito ao exercício da sexualidade aquele
jovem cujo corpo dócil se adequa ao sistema. Também foi apontado que “se ganhasse
melhor, até topava”, fala que, não identificada, foi utilizada em um dos Cursos
realizados com profissionais, deixando outros/as estupefatos.
Em uma ocasião, um profissional expressou: “pra mim, a visita íntima vai ser um
retrocesso, porque os meninos vão achar que virou Bangu, que eles já têm todas as
coisas que uma prisão tem, então que são Bandidos de verdade”. A fala nos instiga a
pensar que o desejo de reificar uma performatividade masculina de Bandido, que passa
pela passagem geracional, joga mais uma ficha na afirmação de que Degase é cadeia.
A diferenciação da visita íntima no Degase também se revelou na discussão
acontecida no Grupo de Trabalho interdisciplinar e interinstitucional para discutir a
temática (SILVA; ZAMORA, 2014). O GT optou por usar o termo “visita afetiva” ao invés
de “visita íntima”, o que
parece explicitar o tom elegido pela instituição para trazer à tona este tema,
pontuando duas questões relevantes: a preocupação em ponderar que a visita
não diz respeito apenas à relação sexual, mas a um momento de convivência
afetiva; e o que parece ser uma tentativa de tornar mais palatável a garantia do
direito ao exercício da sexualidade desses/as jovens (D’ANGELO e DE GARAY,
2017, p.89)
Como também aponto no texto produzido por mim e por Luisa, utilizando uma
entrevista realizada a gestoras/es do Degase e material de campo das unidades:
há uma série de requisitos pelos quais os(as) jovens devem passar para
pleitearem o direito à visita íntima: 1) casamento ou união estável comprovada -
havendo a possibilidade de que a/o técnica/o de referência comprove essa
união; 2) terem, tanto o/a jovem quanto a/o companheira/o, no mínimo 16 anos
– sendo que nossas conversas com os/as jovens nos revelaram que a maioria
deles/as já têm vida sexual ativa antes disso; 3) autorização de responsáveis
legais ou da equipe técnica, quando for o caso – ponto difícil para as mulheres
e para gays e lésbicas; 4) participação no Programa de Saúde e Sexualidade –
ponto que nos pareceu ter muito potencial para discutir e exercitar a
socioeducação, especialmente se não focar apenas na questão da saúde, mas
na sexualidade como uma experiência humana perpassada por relações de
poder e saber; e 5) cadastrar apenas um/a parceiro/a por passagem pelo
sistema – sendo que, especialmente no caso dos homens, uma grande parcela
mantêm relações com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, e escolher um/a
parceiro/a não estaria em seus horizontes. Como é possível imaginar, existe
uma dificuldade de se encontrar jovens que se adequem a essas expectativas.
169
Adán: dia de quebrar é terça, segunda e sexta. Quarta é visita, quinta é reflexão
e sexta é dia de quebrar, sábado é visita e domingo é reflexão
Jimena: e quem te falou sobre essas regras?
Adán: isso vem da maior, aí tá na cadeia tudo. Se tiver visita, não pode quebrar,
tá de ralo
Jimena: e nunca ninguém quebrou essa regra?
Adán: já teve já
Jimena: e o que aconteceu?
Adán: tomou panho
Jimena: mas morreu?
Adán: não, tomou panho. Não morreu, mas tomou panho. Tomou uns esporros
Jimena: e você concorda com isso?
Adán: ainda! (gíria para “sim”). Se tiver visita de vagabundo aí, vai quebrar?
Tipo assim, eu não faço isso, mas tipo, tem uma visita hoje, aí ficam na visita
várias mães de vagabundo aí, várias mães de menor, várias irmãs de menor,
pá, namorada, pá, esposa, pá, aí vou chegar lá em cima e já vou quebrar? Não
pode isso. Vai vir e nego vai querer tirar várias visão, “anda pensando na família
dos outro?” “Tá pensando em quebrar na minha mulher aí?”. Tira várias visão.
Aí nego quer circular, dar panho nos outro. Eu não dou esses mole
Vemos assim, no controle desse tempo, como transgredi-lo seria “dar mole”, ou
seja, dar oportunidade para ser vulnerável e dessa forma não sustentar a
171
Christian: eu te falo, dona, essa vida, assim, o governo não tá nem aí, o
governo botou cadeia para achar que os preso simpremente no lugar, aí uma
121
É relevante a discussão sobre como a disciplina se instaura nos processos educacionais para além do
Sistema Socioeducativo, através de mecanismos de vigilância, avaliação, esquadrinha mento do tempo,
do espaço e do conhecimento (ARAÚJO, 2011).
172
hora o preso sai, o preso não vai ficar com a mesma mentalidade de sempre.
Eu, assim, eu tô com uma proposta, assim, de mudar, de estudar, arrumar um
trabalho, ajudar minha mãe
Gabi: mas porque quando você sai você não consegue botar essa proposta em
prática?
Christian: ah, sabe porquê? Porque eu fico muito tempo preso, ninguém gosta
de ficar preso. Quanto mais eu fico preso, eu fico “ah, eu fiquei esse tempo todo
preso, então não vou querer nada, não vou mudar nada, vou continuar na vida
errada”. Eu fico assim mesmo, dona, “não vou mudar nada, vou continuar nessa
vida errada”. Porque assim, todo mundo quer mudar, quando a pessoa quer
mudar, as pessoas não deixam mudar, como a pessoa vai mudar? A pessoa
não vai conseguir mudar assim não, dona.
Jimena: a resposta do mundo é te botar aqui, você acha que teria outras
formas? Ou aqui mesmo, o que poderia te ajudar?
Alexander: eu acho que aqui dentro. Com a defensoria, a técnica...
Jimena: mas estando aqui dentro, o que você acha que seria legal pra você?
Alexander: estar fazendo alguma coisa, fazer uma faxina, sei lá. Ficar parado...
momento. A conversa com Abel fluiu tão bem que, quando percebi, já tinha passado
muito tempo e o almoço dos jovens já tinha acontecido. Falei para as/os agentes dA
Mesa que tinha sido minha culpa ele não ter saído, e de forma indiferente disseram que
dariam o almoço a ele em breve. Ele sentou no pátio, eu fiquei um tempo esperando,
mas várias/os profissionais insistiram tanto que eu almoçasse, que fiquei sem graça e
almocei na sala de docentes. Quando voltei, ele continuava esperando o almoço,
reclamando que estava com muita fome.
Minha anotação no diário de campo refletia minha preocupação ética.
a cena com o Abel foi muito complicada pra mim, pensando em ética de
pesquisa, porque a conversa tava muito boa e ele queria ficar, dizendo que
detestava ficar no alojamento e que no dia anterior tinha visto um rato nele, mas
eu deveria ter previsto que essa falta à logística atrapalharia a rotina dele na
unidade e que os agentes não facilitariam o processo pra ele.
Com essa cena observamos novamente uma postura punitiva por parte de
profissionais, compatível com a perspectiva já apontada, que argumenta que muitos
jovens entraram na “vida do crime” e, portanto, no Sistema Socioeducativo, por um
“excesso de liberdade” e uma “falta de responsabilidade” na trajetória educativa familiar.
grade está trancada, quando aqui tá trancado, não dá pra saber de nada do que
acontece nos alojamentos”. Assim, a vigilância opera com suas frestas, em alguns
momentos sendo levada a cabo por agentes, em outras por jovens da própria facção.
A vigilância atravessou o nosso percurso no campo, pois foi extremamente difícil
conseguir estabelecer momentos de privacidade com os jovens, o que tinha
implicações éticas importantes. No dia em que fizemos o primeiro grupo, pedimos à
direção que os agentes socioeducativos chamassem doze jovens que tinham se
mostrado interessados em participar da pesquisa:
Os primeiros a chegarem dizem que eles têm aula de teatro, que não podem
ficar. Perguntamos se não querem participar e dizem que sim, que se
colocaram na lista, mas têm teatro e não querem perder. Vão chegando os
outros. Outro chega e diz que não quer participar, que desistiu. Aí entramos
numa negociação com o agente que está no auditório, ele usando o rádio dele,
mas a “ordem” é que eles fiquem ali. Os meninos pedem para a gente ser
rápido. A gente se apresenta e Fernando começa ler o Termo de Assentimento,
como acordamos entre o/as três antes dos meninos chegarem. Além de ter que
usar outras palavras diante da complexidade e o tamanho do documento, ele
vai percebendo que o que está sendo dito ali não faz sentido. Não tem sigilo,
pois o agente está ali dentro, e os meninos não estão ali com vontade, mas
obedecendo uma ordem. Aí nós três ficamos muito constrangidas/o com a
contradição e no mesmo momento sentimos a impossibilidade de continuar,
pelo que rapidamente pactuamos e paramos. Perguntamos novamente para o
agente se os que não querem/podem devem ficar. O menino do teatro interpela
muito a gente, especialmente ao Fernando, dizendo que se ele que manda,
porque não manda eles para a aula? Fernando tenta explicar que não somos
nós que decidimos sobre a movimentação deles, pois podemos dizer de quem
não está a fim, mas não podemos dar ordem aos agentes. Pedimos para o
agente chamar algum dos diretores, mas os meninos ficam “bolados”, pensando
que ele vai chegar “esculachando”. Aí eu decido sair para falar diretamente com
um dos diretores que, mesmo não tendo gostado do acontecimento,
rapidamente diz que tudo bem, que eles podem sair, mas que não podem ficar
125
na quadra . Volto e falo isso, aí eles vão embora. Foi um momento bastante
tenso, mas o resto dos meninos (9, todos do CV), fica, o que nos faz pensar
que realmente querem estar ali (diário de campo. Junho de 2015).
Depois dessa cena, reforçada com um constrangimento com os jovens que não
sabiam escrever nem assinar, decidimos não levar mais o Termo de Assentimento.
Embora ele possa ser utilizado para suscitar aproximações com crianças e jovens e
valorizar sua responsabilidade na decisão da sua participação, como foi realizado por
125
Apesar do bom estado da quadra, pudemos perceber as limitações a sua utilização, que “permanece
condicionada ao bom comportamento e serve de mecanismo de punição extra-oficial” (CUNHA, SALES
E CANARIM, 2007).
176
Gizele Bakman (2013), nesse momento percebemos que usá-lo nesse espaço poderia
interromper o fluxo das atividades e não necessariamente garantiria o que se propunha.
Incluindo o fato de, diferente de outros espaços onde a autorização seria solicitada a
mães, pais ou responsáveis, neste caso era a própria instância estatal que estava
outorgando-a.
Destarte, uma sensibilidade foi necessária nesse momento para nos
deslocarmos desse lugar pré-estabelecido. Nesse sentido, procuramos não mais usar o
auditório e sim outros espaços, para evitar que os agentes tivessem que estar
presentes em um grupo que tinha sido pensado para uma interlocução entre nós e os
jovens. No dia em que realizamos o grupo na Provisória, novamente houve um agente
presente, tanto porque o espaço era mais aberto, no pátio desse prédio, quanto porque
se tinha a preocupação de que participariam jovens de diversas facções. Em outras
duas ocasiões realizamos as atividades no refeitório. Fora disso, realizávamos os
grupos em lugares mais isolados, como a biblioteca ou salas de atendimento, ou em
salas da escola, que não têm porta e os agentes ficavam no corredor. Para criar alguma
privacidade, nos afastávamos da porta e ligávamos os ventiladores. Nos momentos em
que alguém da unidade estava por perto, percebíamos diferenças nos jovens, que
adequavam suas narrativas, mesmo parecendo que nós ficávamos mais
incomodadas/os, especialmente pelo rádio, que apitava toda hora,
Em grande parte da pesquisa não usamos gravador, considerando que a vida
dos jovens já é muito vigiada e registrada através de relatórios, rotinas, câmeras, dentre
outras práticas institucionais. Também não anotávamos na hora o que acontecia,
tentando evitar a presença de mais instrumentos de poder (COUTINHO, 1997) além
dos já presentes nas nossas diferenças subjetivas com eles, tais como escolaridade,
classe, raça e o simples fato de nós não estarmos em privação de liberdade, análise
permanente e relevante para uma cartografia feminista. Nas entrevistas individuais, no
último ano, consideramos mais tranquilo usar o gravador, tanto porque não existiria
vigilância de outros jovens a respeito do que o entrevistado estava falando, quanto
porque os agentes não sentiriam tanta necessidade de vigiar uma entrevista com
apenas um jovem. Mesmo assim, alguns jovens chegaram a censurar algumas partes
das suas falas relacionadas ao funcionamento das facções e Adán me perguntou em
177
várias ocasiões, dias depois da entrevista, o que eu faria com a gravação. Eu garantia
que não a tornaria pública e ele respondia “ah, não tem problema, não”. Com ele,
inclusive, cheguei a fazer uma segunda entrevista, que decidi não gravar. Outro jovem
expressou receio de que mostrássemos as gravações à direção e eles sofressem
retaliações.
Outros tipos de questões éticas relacionadas à vigilância apareceram no campo,
incluindo recomendações de profissionais de não deixarmos os nossos celulares tão
acessíveis aos jovens e “não abrir brecha” para eles, no sentido de gerar oportunidades
para que houvesse aproximações eróticas ou não apropriadas de parte deles. Em uma
das primeiras atividades em grupo, Antonio gostou muito de uma foto que levamos
como disparador da conversa com os grupos. A imagem (Foto 11 do Anexo A) provém
de um programa de televisão e retrata uma mulher e dois homens dançando e
cantando em um palco. Antonio disse que a mulher na foto o deixava excitado e desde
o início deu sinais de que queria levar a foto, de forma discreta. Falamos que não era
possível, e ele pediu às escondidas para outro jovem, mais novo, que a levasse. Eles
quase conseguiram, mas descobrimos na hora que levantaram, pois ele a tinha
escondido nas costas. Dissemos que não era possível, pois podíamos arriscar um
problema com a unidade para eles e para nós, especialmente naquele início da
pesquisa. De fato, quando o grupo saiu, um agente revistou todos os jovens, se
justificando e dizendo: “você tira o Bandido das ruas, mas é muito difícil tirar o Bandido
do Adolescente”.
Como temos visto até agora, diversas instituições-organização e suas linhas de
territorialização compõem códigos na trama de poder, nem sempre se validando de
forma aberta, mas solicitando ou acionando certos posicionamentos e estratégias das
outras nos processos de limitação das possibilidades de vida. As facções do tráfico
produzem uma série de mandamentos e as respectivas punições para quem não os
cumpre, moldando subjetividades. Desta forma, podemos pensar que para as facções,
a prisão e o Sistema Socioeducativo são também estabelecimentos que veiculam
modelos de disciplina e controle específicos. Tanto Fora quanto Dentro, as facções
moldam e produzem determinados corpos e subjetividades através desses códigos, que
os jovens tendem a naturalizar de forma absoluta, onde os dispositivos gênero e
178
126
É importante destacar que ao falar desses códigos, estou me referindo às linhas duras que aparelham
e circunscrevem as experiências no estabelecimento, naturalizando classificações de pessoas, assim
como atributos a essas classificações, rotinas e violências.
179
127
Percebemos que esse incidente impactou vários jovens na unidade, fazendo referência a ele. Adán
supôs que os jovens que entraram armados não passaram do estacionamento “porque ia dar ruim pra
eles. Porque se eles resgatar, aqui é favela deles, se eles resgatar alguém daqui, vai vir caveirão, vai vir
Bope, vai vir Choque, vai vir Civil, vai vir tudo. Vai pixar a favela deles, e o patrão deles vai matar, vai
mandar matar eles. Por isso, aí só veio pra tacar um terror em nós, pra nós ficar, como, tranquilo”. Por
sua parte, Alexander disse: “ia dar mó trelelé, aí os menor ‘não, se esses cara vier aqui vai lembrar a
favela’ e eu falei ‘se os cara entrar, matar todo mundo’”.
180
as regras existem e às vezes temos que nos adaptar a elas. Hoje temos um
diálogo, antes eles se sentiam empoderados pela facção. Para a violência não
acontecer, tem que ter uma postura. Hoje em dia temos uma violência
institucional reduzida, mas temos menos controle.
aqui virou Adolescente”, “não importa se matou dois lá fora, aqui é adolescente”, e “aqui
não trabalhamos com vagabundo, vocês são sujeitos de direito e têm que se comportar
como tal”. Ele relatou que com os jovens nos mais altos escalões ou que são “filhos de
dono de morro” é mais difícil, pois vêm “montados no personagem do Bandido” mas
também têm que “virar Adolescente”, coisa que alguns jovens aceitam, tal como um
que, em uma atividade lúdica128, disse que não queria sair mais, pois estava tendo uma
experiência que como Bandido não podia ter.
Igualmente, ele disse que o trabalho de transmitir essa perspectiva também é
realizado com os agentes, especialmente com os que vêm de outras unidades ou os
que têm mais tempo no Sistema, que, como apontado por uma profissional, costumam
ser mais apegados a práticas duras justificadas pela Segurança. Muitas vezes, como já
foi apontado, a proposta oferecida é projetar futuros homens trabalhadores, honrados,
bons, de certa forma silenciados, como se não existisse possibilidade de subversão que
não fosse violenta.
Esse processo aciona constantemente os termos de “escolha”, individualizando
as problemáticas e fazendo-as alvo de vigilância. Se produz assim esse indivíduo O
Adolescente, dobrando a trajetória dos jovens, às vezes propondo alternativas, às
vezes docilizando, às vezes violentando, às vezes inclusive provocando que os jovens
que não estavam envolvidos nas facções adiram a essas organizações.
Neste campo de forças, constantemente observamos o reforço dos
especialismos nas áreas de atuação dos/as profissionais inseridos/as no projeto de
socioeducação, que exercem diversas funções no processo de cumprimento da medida
dos jovens e produzem saberes e exercem poderes sobre eles, contribuindo no
entrelaçamento de códigos.
Por um lado, temos as/os agentes socioeducativos que
128
A atividade à qual ele se referia era uma brincadeira com saco de batata, onde, segundo o relato do
diretor, o jovem estava tendo um momento muito agradável que não teria em sua rotina e
responsabilidades no tráfico.
185
129
Por outro lado, outros apontam que participar no relatório traria mais responsabilidades e ocuparia
mais do seu tempo. Profissionais da equipe de saúde integral também apontaram sentir falta de maior
participação no relatório, argumentando elas/es necessariamente trabalham com todos os jovens.
130
Em vários momentos foi relatado por profissionais que o CV é mais duro nas suas normativas e os
jovens que pertencem a ele são “mais arrogantes”, enquanto os do TCP “respeitam mais”. Nas nossas
entrevistas não só no CAI, mas em outras unidades, também percebemos que os integrantes do CV
são mais apegados a normas rígidas de comportamento. Já para Jorge Aníbal (17 anos, negro), que
não é integrante de nenhuma facção, todas elas são igualmente violentas.
186
Os diretores frisaram o trabalho que fazem com agentes que estão há muito
tempo no Sistema e “beberam de uma fonte diferente” e nos que vêm de outras
unidades, pois, novamente, o perfil que está sendo proposto pelo CAI é diferenciado,
pois ali não devem ser cadeeiros, o que, para eles, contribui para um ambiente mais
relaxado apesar das tensões características do trabalho socioeducativo, em uma “dupla
demanda conter-educar”, “localizada entre a necessidade de punir e de recuperar”
(VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017, p. 60).
Também há agentes ocupando funções como assistente religioso 131, técnico em
recursos humanos, professores de elétrica, serigrafia, música e teatro, e que relatam a
mudança de relação com os jovens nesse processo, e os quatro diretores, que foram
inicialmente concursados como agentes. Em vários momentos foi apontado que o perfil
do agente tem mudado por conta de sua formação, visto no momento em que ensino
superior é hoje em dia um requisito, permitindo uma maior humanização.
O próprio termo referente ao cargo tem se transformado bastante, hoje se
configurando como “agente de segurança socioeducativa”, termo que estranhamos
frente a essa narrativa histórica de mudança. Também soubemos que alguns fazem
cursos do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar), o que nos
parece perpetuar o lugar de cão de guarda ou cadeeiro, que se fixa no cotidiano, com
poucas oportunidades de propor iniciativas e delimitando um único lugar para eles,
policialesco e punitivo, sem outro tipo de reconhecimentos e sofrendo também um
“controle rigoroso do sistema” (ZACCONE, 2011, p.28; VINUTO; ABREO;
GONÇALVES, 2017). Assim, muitos também parecem ter uma dificuldade em
desconstruir e participar de outra forma, se afirmando como “nós do cadeado”. Alguns,
no entanto, propõem atividades como hortas e oficinas de pipa, com desdobramentos
interessantes para os jovens, no sentido de uma socioeducação sensível e propositiva,
e para o dia a dia da instituição-estabelecimento.
A horta, especificamente, ideia de dois jovens, apareceu como uma atividade
extremamente importante, a partir da qual o agente responsável e principal promotor
conseguiu construir relações de confiança, compromisso, aprendizado e autonomia
131
Para entender mais sobre esta figura, que é entendida como de acordo ao papel humanizador do
Degase, ver o verbete de Costa, Figuereido e Ribas no Dicionário do Sistema Socioeducativo do Rio de
Janeiro (2016).
187
com os jovens, o que gerava uma série de emoções positivas nele e em outras pessoas
da unidade, incluindo os jovens. Os efeitos iam desde conseguir trabalhar com jovens
que eram considerados problemáticos, possibilitando lugares diferentes para eles
dentro da unidade, produzir alimentos para serem consumidos, no sentido da auto-
sustentabilidade, até melhorar as condições de Segurança, ampliando a visibilidade ao
podar árvores. Uma profissional se referiu a esse trabalho no plano do significado de
cultivar coisas que depois são colhidas, como uma reflexão importante para os jovens.
Ela também disse que, mesmo com possíveis críticas de que não se deveria pôr para
trabalhar menores de idade, a horta na verdade estava visibilizando a necessidade de
se preparar para construir caminhos de vida. Contudo, a horta atualmente está
abandonada, pois muitos agentes saíram da unidade, já hiperlotada, impedindo que
esse agente conseguisse dar continuidade ao projeto, por ser demandado em outras
tarefas. Assim, mais uma vez, a hiperlotação e a precarização se articulam para
fragilizar iniciativas importantes e provocam que os jovens fiquem mais tempo nos
alojamentos e os profissionais nas tarefas burocráticas, minando os propósitos da
socioeducação e afetando o trabalho e a saúde dos próprios agentes (VINUTO;
ABREO; GONÇALVES, 2017).
Por sua vez, as equipes técnicas de medida estão permanentemente imersas na
produção de relatório, tendo o poder da caneta, como expressado por uma profissional
que, por sua vez, pode implicar um outro tipo de cadeado. A prática disciplinar
apontada por Foucault tem como maior função o adestramento. Este se mantém na
utilização de três instrumentos específicos: a vigilância hierárquica, a sanção
normalizadora e o exame, técnica que envolve as outras duas (FOUCAULT, 1975). A
primeira pode ser traduzida como o exercício do poder por meio do olhar, de maneira
que o indivíduo sinta-se constantemente vigiado; a sanção refere-se a uma penalidade
dentro de um sistema de disciplina: micropenalidade do tempo, da atividade, do ser, do
corpo, da sexualidade, e que objetiva punir fisicamente, privar ou humilhar as condutas
desviantes, corrigindo-as. Esses dois elementos já foram apontados neste texto. O
exame, ou, neste caso, o relatório, “vigia, qualifica, classifica e pune” (FOUCAULT,
1975, p.164), exercendo um poder e produzindo um saber sobre “o adolescente-
delinquente e seus desvios” (ABDALLA, 2016, p.35).
188
132
Uma profissional disse que elas tinham virado “produtoras de relatórios”, ao ter, em um momento, 60
jovens no seu módulo, que acabavam sendo punidos, porque as audiências demoram demais, e as
profissionais também, porque não conseguiam fazer nada além de relatórios deficientes, sem
elementos suficientes por não conseguir acompanhar os jovens, diante do qual o judiciário deixava mais
tempo ainda no Degase, superlotando-o ainda mais.
189
Nesse sentido, foi muito interessante ouvir as reflexões das técnicas de medida
nos Cursos, apontando que precisavam de “mais contato, menos burocracia”, e
apontando que nas ações que realizaram como desdobramentos dos Cursos tinham
conseguido sair da rotina do relatório e percebido a potência de fazer atividades
distintas com os jovens, além de provocar momentos de relações mais horizontais, sem
o peso da avaliação para relatório133.
A circulação das técnicas é completamente limitada Dentro e Fora da unidade,
inclusive ao não poder participar das audiências. Também, algumas delas relatam a
forte marca do gênero no seu exercício profissional, no momento em que são
apontadas como a mamãezada dos jovens, que “viram anjos quando estão com elas e
que elas passam a mão na cabeça deles, assumindo o lugar de mãe”, como apontado
por alguns agentes, e ao mesmo tempo limitadas a esse lugar. Por sua parte,
Alexander sinalizou que a técnica que o acompanhava “vive no meu pé, não me solta,
me dá bronca, caraca, parece até minha mãe me dando bronca (risos)”, destacando
outra dimensão da noção de maternidade.
As técnicas também discutiram muito durante a pesquisa sobre a vigilância e as
normativas que marcam seus contatos com os jovens, incluindo a limitação das suas
roupas, pois mesmo elas não estando relacionadas com os jovens, as regras de
contenção da sexualidade efetivadas nas visitas familiares se estendem a elas – e a
nós -, tendo que marcar uma constante distância. Eles, por sua vez, também devem
elaborar expressões de respeito para com essas mulheres, tais como o fato de não tirar
a camisa na frente das profissionais – com algumas exceções. Essa distância está
pautada tanto pela privação de liberdade, quanto pelo gênero e a geração, que
as/os/nos coloca em posições de sujeito distintas.
Em uma entrevista realizada com uma agente socioeducativa, desde a primeira
pergunta, que foi a mesma em todas as entrevistas com profissionais, em que
questionávamos de que forma o gênero atravessava seu exercício profissional, ela
relatou imediatamente o caso de um jovem que se apaixonou por ela. Nos pareceu
133
Segundo uma gestora do Degase, a criação dos grupos de saúde mental e saúde integral nas
unidades, diferenciando-os das equipes de medida, foi justamente uma forma de explicitar a captura
burocrática e disciplinadora das profissões – Psicologia, Serviço Social e Pedagogia- no Sistema e
possibilitar outro campo de intervenção dessas disciplinas.
191
muitos não participam tanto do cotidiano da unidade fora do horário escolar. Escutamos
algumas críticas à escola, por parte de agentes e jovens, por utilizar apenas recursos
audiovisuais e por constantemente cancelar as aulas, coisa que outros setores, como
os agentes, não poderiam fazer134. Também ouvimos relatos de pouco diálogo entre
docentes e equipes.
Nas nossas atividades, as/os profissionais chegaram a chamar essa imensa
separação e até antipatia entre os segmentos de facções, assemelhando a falta de
comunicação, respeito, entendimento e reconhecimento entre eles, fenômeno que
começa desde a formação inicial135. Isto foi apontado também em cursos na EGSE,
como característica de todas as unidades. O especialismo entra, assim, como uma
instituição-forma da dobra do registro contínuo do conhecimento, segmentando e
segregando de forma naturalizada (ROCHA e AGUIAR, 2008) e produzindo saberes
específicos que ao tempo em que disputam entre si, exercem poderes sobre os jovens.
Assim, existe uma série de mecanismos na instituição-estabelecimento que
buscam padronizar e despersonalizar os jovens – e as/os profissionais-, nos permitindo
pensar o mundo em que esses jovens se inserem, no momento em que a noção de
socioeducação se constitui como uma dobra entre educação, ressocialização, punição
e docilização, em uma “vida institucional” marcada pela “engrenagem desumanizadora”
(ASSIS, 1999, p.15), cuja ineficiência e relações “completam um ciclo de estagnação do
próprio sistema” (idem), quase vinte anos depois do observado por Simone de Assis.
Neste contexto, vemos como o poder disciplinar não só faz parte da instituição-
estabelecimento, mas se posiciona como início, meio e fim desta, pois as pessoas
estão ali por conta das produções enrijecidas das relações, são atravessadas por estas
e as perpetram constantemente. Exemplo disso são os inúmeros e preocupantes
relatos de adoecimento de profissionais no Degase, incluindo afastamentos por
134
Além da rotatividade já mencionada, outras questões foram apontadas como desafio para o exercício
docente, tais como as rixas entre fracções, que impediam utilizar didáticas onde os jovens interagissem
mais do que numa aula tradicional.
135
Ainda outra diferenciação existe entre profissionais que entraram por contrato ou por concurso, sendo
que os/as primeiras estão em condições mais instáveis e precárias de trabalho, o que também
atravessa as relações. Também foram percebidas distinções entre as pessoas “mais antigas” no CAI e
as de entrada mais recente, além das diferenças geracionais.
193
136
Essa questão foi colocada desde o início do campo. Chegamos a escutar que tinha reclamações de
que os jovens tinham acompanhamento psicológico e os/as profissionais não. Também, uma pessoa
que frequentava o CAI e era muito querida, disse que precisávamos trabalhar com as/os profissionais,
pois eles/as “trabalham no limite, sem suporte nenhum, que precisam de um acompanhamento, que
tem a vida colocada em risco cotidianamente por falhas da instituição”. Ela chegou a falar inclusive que
profissionais precisavam mais do nosso trabalho do que os próprios jovens. Por outro lado, duas
pessoas disseram que provavelmente seria mais difícil trabalhar com profissionais do que com os
próprios jovens.
194
Israel: Gabriela, escuta uma coisa, vocês mulheres têm aqui uma
visão. Nós menino que tamos aqui dentro, é outra visão,
totalmente diferente. Que estamos uuuurrrrhh, como, aquele
nervosismo total. E os cara “vamo logo!!!”
Gabi: quem, os agentes?
Israel: é, “vamo logo!!!”. Israel [(18 anos, negro)]
A fala acima traz vários pontos importantes para a nossa discussão. Primeiro,
diferente da maioria das falas dos jovens, Israel utiliza aqui o termo menino. Com isso,
ele está acionando um léxico que ele sabe ser usado por profissionais e
pesquisadoras/es, especialmente mulheres. Além disso, afirma que a instituição-
estabelecimento unidade socioeducativa, onde circulam homens e mulheres, acaba
tendo um locus exclusivo que só os homens conhecem, vivenciam, disputam e sofrem,
uma “casa dos homens” (DOS SANTOS; NARDI, 2014)137 composta por múltiplos
personagens, tais como, nessa mesma frase, meninos e caras.
No momento em que Israel menciona “os cara”, se refere a um grupo distinto e
oposto a eles, que exerce uma autoridade, dando ordens, mas também disputa
performatividades nas tramas do encarceramento poroso. Neste caso, esta disputa gera
o que ele identifica como nervosismo, emoção que podemos diferenciar de medo.
“Estar nervoso” significa ansiedade, estar à espera, compreendendo a ameaça, mas
com uma possibilidade de resposta, de reação e, portanto, de participação no jogo
masculino de poderes, do qual “vocês mulheres” não têm uma visão precisa.
Anteriormente, vimos como vão se tecendo tramas de poder entre as
instituições-organização, instituições-estabelecimento e instituições-forma, produzindo e
137
Como apontado por Marcos Nascimento e por Thiago Melício, as facções também poderiam ser
entendidas como “casas dos homens”. Assim como as unidades socioeducativas masculinas, as casas
dos homens são produtoras, reificadoras ou transformadoras das performatividades masculinas. Vemos
assim uma transversalidade das regulamentações das “casas dos homens” que produzem
subjetividades.
195
naturalizando códigos, onde fissuras sempre abrem caminho. Neste capítulo, o objetivo
é discutir como essas tramas vão se compondo em performatividades dos jovens, em
dobras que produzem modos de relação, subjetividades, marginalidades e hegemonias
que por sua vez movimentam outras dobras nos diversos territórios, incluindo a
instituição-organização Degase, onde profissionais e pesquisadoras/es também se
relacionam com suas respectivas performatividades.
Na perspectiva de Judith Butler,
Deste modo,
ambas as posições, masculina e feminina, são assim instituídas por meio de leis
proibitivas que produzem gêneros culturalmente inteligíveis, mas somente
mediante a produção de uma sexualidade inconsciente, que ressurge no
domínio do imaginário” (BUTLER, 2003, p. 52).
Nesse sentido, posso sugerir que embora existam cada vez mais mulheres
envolvidas no tráfico e em outras criminalidades138, “o mundo do crime” e as instituições
de privação da liberdade aparecem como um crivo na reificação das trajetórias dos
homens e como cenário de certa performatividade masculina139, compondo a
“masculinidade do Bandido”. Assim, mesmo com uma mudança radical de estilo de vida
e de posição de sujeito fora e dentro do Sistema Socioeducativo, parece que a
passagem por ele também faz parte da “vida de um Bandido”, como mais uma dobra
nessa experiência. Desta forma, ser Bandido é uma forma legítima de ser homem, e ser
encarcerado, mesmo vindo de uma possível falha nas operações ou de um sacrifício
por alguém mais velho da facção, faz parte dessa trajetória, o que entre as mulheres
não é, como expressado por Carlos Lorenzo, ao dizer que uma jovem estava
estragada, porque estava presa e grávida, ou por Jhosivani, ao apontar que “as
mulheres não gostam muito, gostam de estudar. Mas tem algumas que se perde. E é
pouco, não é muito”. E como tampouco é dos gays ou das mulheres trans, eis o fato
deles/as não terem um lugar “no convívio”.
Assim, é necessário afirmar que o gênero “não deve ser meramente concebido
como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção
jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os
próprios sexos são estabelecidos” (BUTLER, 2003, p. 25); “é uma complexidade cuja
totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer
conjuntura considerada” (BUTLER, 2003, p. 37).
Nesse sentido, parece importante pensar na noção de masculinidade(s),
entendida não como
138
Curioso que, no momento em que estava escrevendo a tese, fui roubada por três mulheres de mais de
sessenta anos, cujas dobras de gênero e geração transgridem o esperado nesse tipo de prática.
139
Raewyn Connell (2013) faz referência a várias pesquisas que apontam que os homens e os meninos
perpetram mais os crimes convencionais – e os mais sérios desses crimes– que as mulheres e as
meninas.
198
Depois de anos de ter proposto o conceito e de ter recebido tanto críticas quanto
argumentos empíricos para este, Connell (2013) faz uma revisita ao conceito de
masculinidade hegemônica. Ela aponta que alguns elementos da proposta inicial devem
ficar, tais como a pluralidade nas masculinidades e a hierarquia entre elas, entendendo
que algumas são “socialmente mais centrais ou mais associadas com autoridade e
poder social do que outras”, processo que acontece através do “consenso cultural, a
centralidade discursiva, a institucionalização e a marginalização ou a deslegitimação de
alternativas”. Igualmente, reafirma que a hegemonia de determinada masculinidade não
opera a partir do lugar comum da maioria dos homens e meninos, mas através da
produção de exemplos de masculinidade, mesmo que muitos não possam alcançá-los.
Igualmente, ela frisa que as masculinidades são constantemente contestada por
movimentos feministas e de mulheres, por homens “portadores de masculinidades
199
Ela insiste no caráter relacional das masculinidades, ou seja, que elas se constituem
nas interações entre homens e mulheres, nas configurações de práticas. Também, se
instala nos corpos não apenas como “objetos de prática social”, mas como agentes. Por
último, trazendo a discussão do sujeito na prática de gênero, reconhece “a
estratificação, a potencial contradição interna, dentre todas as práticas que constroem
masculinidades” e que essas práticas representam “formações comprometidas por
desejos contraditórios ou emoções”, “resultados de cálculos incertos sobre os custos e
os benefícios de diferentes estratégias de gênero”, quer dizer, as “masculinidades são
configurações da prática que são construídas, reveladas e transformadas ao longo do
tempo” (idem, p.263).
Nesta mesma linha, o antropólogo português Miguel Vale de Almeida aponta que
tal acessíveis a homens e mulheres. Se assim não fosse, não se poderia falar
nem de várias masculinidades nem de transformações nas relações de género
(1996, p.161).
Cutberto: a gente está aqui mas nem se conhece, eu não sei o que ele vai ser,
sujeito homem ou sujeito a homem
A primeira vez que escutei a expressão sujeito homem, nessa frase, em um dos
grupos, fiquei extremamente curiosa, o que por um lado mostra de que forma o fato de
ser estrangeira pode permitir prestar atenção a alguns detalhes sem naturalizá-los, ao
tempo em que pode impedir entender muitas nuances. Naquele momento não consegui
explorar o que Cutberto queria dizer, pudendo só imaginar que um sujeito homem
sugeriria uma autonomia, enquanto que sujeito a homem revelava uma dependência
e/ou uma submissão. A importância dada por Cutberto a esta distinção me levou a
querer explorar essa expressão e seus significados para os jovens em termos de
agenciamentos molares e moleculares.
A partir disso, decidimos perguntar nas entrevistas individuais como eles definiriam
esse conceito, pergunta que alguns estranhavam, por considerar que era dado. O
conceito de sujeito homem pode funcionar como um dispositivo de controle que “fabrica
fronteiras de produção de comum e de desigualdade”, em palavras de Fátima
Cecchetto. É um analisador das masculinidades em situação e das performatividades
masculinas em processo, no momento em que suas definições e contextualizações,
surgidas em atividades em grupo e entrevistas individuais, foram múltiplas e muitas
vezes atreladas umas a outras, revelando de que forma os dispositivos de sexualidade,
gênero/masculinidade e idade/juventude perpassam rizomaticamente a composição de
207
4.1 Sujeito-homem-ostentador
Nesta fala, podemos destacar dois pontos. Primeiro, vemos de que forma “o
homem viril sente sempre disposição à conquista, e sua dignidade, sua moral depende
de não dizer não diante de uma oportunidade” (MACHADO, 2004, p.44). Igualmente,
observamos uma narrativa recorrente, a respeito de como o status da boca de fumo
significa para os jovens uma possibilidade de atrair mulheres, o que é considerado uma
conquista em grande parte das masculinidades (BARKER, 2008) e aqui consideramos
como parte de um agenciamento molar.
Como apontado anteriormente, a instituição-organização-tráfico oferece a
reafirmação de uma masculinidade capitalística a jovens que crescem em um contexto
de desigualdade racial, pobreza, judicialização e retrocesso nos avanços dos direitos
humanos, que por si já são seletivos na nossa sociedade, o que produz situações de
violência de diversos tipos. São apresentados a um lugar onde é possível exercer certo
tipo de poder, onde se tem acesso a um status, onde se pode se aproximar de um
modelo de masculinidade configurada como projeto de distinção social (VALE DE
ALMEIDA, 1996) através da ostentação, para utilizar um termo caro ao campo, que
significa ter de armas, motos, joias, roupa de marca – itens sempre integrados nos
208
desenhos que os jovens faziam nas nossas atividades-, assim como relações com
muitas mulheres, o que também foi observado por Silvia Ramos (2011). Assim,
ostentação, como dispositivo de distinção social, vira um crivo primordial na produção
de performatividades masculinas, como apontado por Marcos Nascimento.
Israel traz vários pontos para essa análise, incluindo a instabilidade da vida no
tráfico, que, como apontado por jovens que saíram dele, entrevistados por Silvia
Ramos, “já não dá tanto dinheiro, é incerto, arriscado, paga mal, é cansativo e impõe
jornadas e encargos de trabalho que se não forem cumpridos podem custar a vida e
ainda é um mundo cheio de ‘vaidades’ e ‘falsidades’” (RAMOS, 2011):
Israel: não me relacionava, porque, ainda mais nessa vida, mulher... joga muito
homem de bola, já vi vários cara...
Gabi: que isso, jogar homem de bola?
Israel: é assim... jogar de ralo, tipo, arrumar problema pra vida ele. Já vi
acontecendo isso, por isso que eu evitava. Já vi muito cara sendo pivotado. É
difícil
Gabi: por isso que você ficava com o pé atrás e não se relacionava com
mulheres?
Israel: é
muito feio, muito magro, nordestino, que assim que entrou no tráfico e pegou
um fuzil, muitas meninas queriam ficar com ele. Se eu estivesse nessa mesma
situação, talvez escolheria esse caminho. A sociedade tem uma ideia de que o
menino é bom ou é mau, não é assim.
mulher, assim, mulher, assim, esses roubo todo que eu, essas passagens que
eu tenho são de roubo, eu ficava roubando e tudo mais, porque a mulher,
mulher... assim, a mulher gostava de ostentação. Falava assim, comprava duas
garrafas de energético, dois uísque e água de coco. Ficava bebendo, bebendo,
bebendo, fumando maconha, bebendo, bebendo, bebendo. Nessa da bebida,
tudo, assim, as coisas começam da bebida alcoólica. Começava com a bebida,
e quando vi já tava rolando beijo, e aí outras coisas
[...]
Christian: fazer o que? É a vida que eu escolhi. Se eu não tivesse se misturado
com quem não prestasse, eu não estaria aqui dentro
Gabi: mas é difícil escolher outra vida?
Christian: é. Por que é difícil? Porque hoje em dia, pra pessoa arrumar uma
garota assim, bacana, tu não gosta de nada que não presta, é difícil. Para um
menino arrumar uma garota, assim, bacana mesmo, tem que correr atrás do
dinheiro. Tem mulher que gosta de dinheiro, tem mulher que não gosta. Tem
mulher que não é prostituta, mas tem mulher que gosta de relação por causa do
dinheiro, “ah, quero roupa, quero, isso, quero aquilo, quero isso, quero aquilo”.
E se tu não der, ela vai com outro. Já aconteceu de eu ser traído, mas traição é
uma coisa. Depois, mulher tem um montão, aí eu mandava assim pra ela, eu
falava na cara dela “aí, garota, mulher é igual biscoito, vai uma e vem dezoito” e
ela “ah, homem é igual papel, tu rasga e tem um montão”, eu falo “to nem aí, ô”.
Bernardo: ah, tipo assim, na vida do crime, filha, é porque é muita mulher, é
muita mulher, filha
Jimena: e por que tem tanta mulher?
Bernardo: ah, porque tem muita mulher querendo Bandido, tem fama, tem
poder, tem arma de fogo, tem qualquer coisa, entende? É tráfico de drogas, é
muito dinheiro. A mulher chega, pô, a garota tá como, “pô, porque nós não vai
lá?”, aí já vem duas, três garota querendo ficar contigo, já vem quatro, aí, nisso,
filha, nós pega mesmo, filha, não tem essa não.
211
Israel relata de que forma o status de Bandido intensificou sua vida sexual:
Gabi: Como era sua vida fora daqui? O que você fazia?
Felipe: ah, curtir, ia na praça, curtir com as novinhas, andava de moto. O que eu
gostava mais era andar de moto.
Gabi: o que é curtir com as novinhas?
Felipe: ahhh, dar um rolé, leva-las pra umas treta
Gabi: o que é isso, pra um motel?
Felipe: casa, uma casa mesmo
Gabi: você morava com seu pai?
Felipe: é, só que aí é minha mesmo
Gabi: ah! Você morava sozinho, ou dividia com outros meninos?
Felipe: não, era só minha só.
Gabi: e aí você levava as novinhas pra lá
Felipe: uhum
Gabi: e aí elas iam?
Felipe: uhum. Ou às vezes ficavam, passavam a noite, e depois levava elas pra
casa.
Gabi: o que é uma novinha?
Felipe: ah, sei lá, uma companheira
Gabi: mas ela é menor de idade?
Felipe: ah, sim, menor de idade. 15, 16...
Gabi: mas o que faz você falar que uma menina é novinha e outra não?
Felipe: ah, porque é mais baixa. Tem carinha de nova, mas tem algumas que já
é maior
Gabi: tendi, é baixa, tem cara de nova, e tem 15, 16
Felipe: isso
Gabi: e você acha que por você ser envolvido primeiro com roubo e depois com
o tráfico, isso facilitava você pegar as novinhas?
Felipe: facilitava
Gabi: porque, as novinhas gostam?
Felipe: gostam da ostentação, né.
Gabi: você ostentava com que?
Felipe: Motos, dinheiro, cordão, relógio.
Gabi: você pagava coisas pra elas?
Felipe: dava coisas pra algumas, ou quando ela queria fazer pagando, pagava.
212
Adán descreve assim as “novinhas”: “quando tem doze, treze ano, catorze, aí
falam que é novinha. Até maior, porque quem vai falar novinha, porque é bonitinha, pá,
é bonita, como. É isso. Na pista nós tá no baile com uma novinha, aí vem outro menor,
“ah, é gostosinha”, fica falando isso, aí fala que é novinha”. Assim, a figura das
novinhas também apareceu nas relações com os jovens, muitas vezes como
companhias desejáveis e denotadoras de status, e por sua vez como um tipo de mulher
que se sente atraída pelo status do tráfico. Camila Fernandes, no Ciclo sobre Violência,
Política e Sociablidade Urbana, apontou a partir da sua pesquisa doutoral140 como as
novinhas são personagens de provocação, o que nos fez pensar nelas como
semelhantes ao menor, no momento em que dobram os dispositivos de gênero,
sexualidade, geração, classe social e localidade, produzindo um sujeito estereotipado
de transgressão da ordem. Assim como podemos pensar que um homem honrado é um
homem trabalhador e uma mulher honrada é que não é prostituta, o desvio do menor é
ser Bandido, o que entra no campo do trabalho - ou do não trabalho - e o da novinha é
o uso do corpo, as trocas que se dispõe fazer.
Como apontado por Camila, as novinhas são entendidas como possuidoras de
uma sexualidade devoradora, potencializada e poluidora, ao mesmo tempo que
devorável. Assim, a afirmação da autonomia sexual tem sentidos e efeitos diversos
neste universo machista em que vivemos, pauta importante para os movimentos
feministas e de mulheres dos mais variados contextos. Exemplo disso são as jovens do
grupo Bonde das Maravilhas (foto 13, Anexo A), que estavam retratadas em uma das
fotos que utilizamos nas primeiras atividades, e eram constantemente referidas como
rodadas, “se drogam”, “todas dão pra geral”, “todas gostam de uma pistola”, “geral já
comeu elas”, mostrando ao mesmo tempo um desejo por elas, mas também um
desprezo. Vemos assim diversas expressões como rodadas, safadas ou piranhas que,
ao tempo em que exercem sua liberdade sexual, são sujeitas a sofrer violência sexual
justificada.
Em uma atividade, José Eduardo relatou um caso onde combinou com uma
jovem de fazerem sexo, e ao mesmo tempo combinou com dois menor de “aparecer por
lá”, sem consultá-la, como pudemos constatar ao perguntarmos. Já no local, ele foi
140
A tese de Camila Fernandes foi defendida durante a escrita deste texto, no Museu Nacional.
213
“metendo na mente dela”, “pulando no miolo” e saiu, deixando a mulher com os dois
jovens. Nós e os/as profissionais problematizamos isso, apontando que ela tinha sofrido
violência e que ele não devia ter ido embora, o que ele dizia não entender, pois “ela era
piranha”. Rebatemos, dizendo que isso não justifica, que ela deve poder escolher com
quem e com quantos faz sexo. Chamou a atenção o fato de este mesmo jovem ter
sofrido um estupro coletivo tão grave no alojamento, que desenvolveu um calombo no
abdômen, e não relacionou os dois acontecimentos. Esse estupro tinha sido explicado
porque ele estava se relacionando, de forma consensual, com outro jovem, o que
justificava, na lógica do alojamento, que tivesse que se relacionar com todos mesmo
contra sua vontade.
Neste mesmo dia se espalhou na cidade a notícia de uma jovem que tinha sido
estuprada por 33 homens em Santa Cruz, notícia que veio carregada de argumentos
que a culpabilizavam da mesma forma em que José Eduardo tinha feito. Nesse sentido,
tanto elas são responsáveis pela forma como se apresentam no mundo, quanto eles
detém esse poder, se apoderando do corpo da mulher ou do sujeito feminizado e
impondo sua vontade (MACHADO, 2004, p.45).
O caso dos 33 homens, a maioria envolvidos com o tráfico, também revela a
complexidade da relação entre violência sexual e as facções, pois nesse caso, a facção
defendeu os jovens, ameaçando a vítima e convocando a comunidade a fazer uma
manifestação em apoio a eles141. É interessante pensar de que forma o tráfico reforça o
machismo e ao mesmo tempo administra essas violências, regulando essas forças e
marcando as fronteiras do aceitável. Assim, ao mesmo tempo em que se legitima
apoderar-se do corpo da outra pessoa e justifica o estupro de rodadas na pista e de
viados ou bebel – por serem pequenos ou jovens - dentro do estabelecimento, eles
rejeitam violentamente os Jack no estabelecimento e, segundo um jovem que falou com
Bárbara, eles os assassinam na pista142. Nesse sentido, o movimento de se apoderar
dos corpos femininos nem sempre é percebido como violento, o que foi visível quando
141
https://oglobo.globo.com/rio/moradores-da-praca-seca-protestam-contra-acusacao-de-estupro-
coletivo-19400444
142
Considero que cabe aqui mencionar o grande desafio emocional que foi para mim, mulher e feminista,
entrevistar um jovem que, em suas palavras, “responde processo por estupro e homicídio” da própria
irmã, tanto pela forma como ele se fechava corporal e verbalmente ao falar sobre isso, quanto pela
minha própria incapacidade de abordar o assunto, especialmente tendo tão pouco tempo.
214
falam das interações nos bailes e seus jogos, onde são acionados elementos que para
eles são atraentes, como o papo, o físico e o status de traficante. Assim, é posta em
prática a
Carlos Iván disse “é muito difícil elas não querer, só se ela estiver menstruada”.
Porém, provocando mais ainda e perguntando o que eles fazem quando questionados
se elas dissessem “não mesmo”, eles disseram que não insistiriam. Cesar Manuel
também disse que uma vez uma mulher “estava querendo muito e na hora disse que
não queria mais”, frente ao qual ele “ficou puto”. Fernando perguntou se mesmo assim
ele tinha consumado o ato e ele respondeu que não, “eu não vou fazer forçado”. Em
entrevista individual, Christian Alfonso apontou: “forçar é estupro”.
Jorge conta:
Jimena: você falou que fica insistindo até ela deixar, mas se ela não quiser
mesmo?
Jorge: se ela não quiser, não quer, se não quiser, não quer
Jimena: mas o que você faz pra insistir?
Jorge: ah, tipo assim, eu fico conversando, pá. Tipo assim, tô vendo tipo assim,
quero ficar com ela, pá, mas ela não quer ficar comigo, pá, eu fico conversando
com ela, tentando convencer ela, dou uns papo nela
Jimena: mas já teve alguma que falou “não, de jeito nenhum”?
Jorge: já, sempre tem. Tipo assim, não teve muitas também. Tipo assim, a
maioria, tipo assim, tu chega, dá uma conversada, pá, “pô, não quero não”, pá,
às vezes não querem na hora, tá na palhaçada, mas depois quando ela tá
sozinha, aí começa a ceder, pá. Às vezes tá com a colega, aí não quer, e
depois tá sozinha, vai lá e cede, quer ceder, pá. Tem umas que é difícil mesmo,
pá, aí quando insiste muito, pá
Vemos aqui uma tensão entre a coerção sexual, que significaria uma fraqueza
como homem (MACHADO, 2004), e a virilidade, que supõe “a disponibilidade total para
a realização da atividade sexual e está associada ao lugar simbólico do masculino
como lugar da iniciativa sexual” (2004, p.43). Por sua vez, as jovens também não
podem ser muito ousadas, o que revelaria que não são confiáveis, pois “com certeza
fazem isso com outros nos bailes”, como apontado por Antonio, visibilizando as regras
diferenciadas no que tange à quantidade de parceiros/as sexuais onde mulheres que
transgridem a naturalização dessa diferença são consideradas incapazes de decidir se
algo é forçado ou não e portanto sujeitas a sofrerem violência sexual justificada.
Nesse sentido, em uma atividade com profissionais e jovens, os jovens diziam
que nos bailes são eles que se aproximam, pois “homem tem mais atitude”, que são
“mais maduros”, já que não têm “frescura na hora de se pegar”. Uma profissional
perguntou se não tinha mulheres com atitude também, e eles falaram que sim, mas que
elas gostam de carinho, de amor, enquanto eles, embora gostem disso, são “mais
atrevidos”, narrativas também encontradas por Nascimento, Segundo e Barker (2011) e
por Fabíola Cordeiro (2008):
Felipe: claro. Eu não ia dar mole que nem ela dá, também. Porque tem umas
quebrada.
E o dispositivo de gênero atravessa fortemente o discurso da escolha.
143
Na atividade do desenho de personagem, Antonio desenhou uma prostituta de 17 anos, e falou que
ela podia “se apaixonar por alguém e ela podia mudar de vida, assim como a gente muda de vida”.
218
Bernardo: Tipo assim, ela foi a mulher certa pra mim porque foi a mulher que eu
consegui recuperar, sabe? Fazia muita merda e, eu falo que eu soube
recuperar uma mulher, filha. Que a mulher que fazia lá, eh, chegava sapatão,
pagava ela não sei quantos real, pra fazer relação sexual com ela, pá, depois
chegava outro maluco pra transar com ela, pá, filha? Tá maluco, filha? É
vergonhoso, é vergonhoso. Mas tipo assim, eu soube recuperar. Agora, eu não
sei se ela, como, botou na cabeça dela que isso é errado
Jimena: você acha que uma mulher que ganha dinheiro fazendo prostituição é
igual a alguém que trabalha no tráfico?
Bernardo: ah, é a mesma coisa (risos), só que ela é pior, ela tem risco de pegar
uma doença e nós não
Jimena: mas vocês têm o risco de morrer, não?
Bernardo: é
Vemos como as mulheres fiéis que são infiéis recebem punições específicas,
reguladas pelas facções: raspar a cabeça, quebrar a perna ou, inclusive, matar. A
prática de raspar o cabelo chamou a nossa atenção e, ao perguntar a Julio Cesar o
porquê dessa punição, ele disse “porque para elas o cabelo é tudo, é pior do que a
morte”. Nesse ato de vingança e suplício, também vemos a dimensão moralizante que
torna pública uma transgressão144. Cabe apontar que, segundo Leonel, muitas vezes
quem decide como a mulher deve ser punida, tendo o direito a comprovar sua
“inocência”, é o chefe da facção. No entanto, vários jovens apontaram que não gostam
de bater em mulheres e que preferem terminar o relacionamento, como Carlos.
144
Esta reflexão foi realizada por Carolina Sette, integrante da equipe de pesquisa.
219
Por outro lado, como apontado por Carlos Iván, ao perguntar o que ele acha que
as mulheres gostam: “ah, depende do tipo de mulher. Tipo assim, tem garota que gosta
de arma, tem garota que já gosta de fazer certo, de namorar, tem garota que só quer
besteira, só isso”. Em um grupo, Marcial expressou que “hoje em dia não valorizo a
mulher porque a mulher também não valoriza, só está interessada no que você tem
para oferecer”, Quando interpelado por Gabi sobre sua atual companheira ele
respondeu: “não, ela é diferente porque ficou comigo mesmo quando saí do crime”,
revelando, com sua própria vivência, uma diferença do discurso dominante. Já Miguel
Angel disse "só quero uma mulher que tenha sentimentos por mim" e Bernardo, “agora,
vou sair daqui, filha, só quero ficar tranquilo, arrumar uma mina que goste de mim”.
Jhosivani disse gostar da ex-namorada “porque ela é verdadeira, é sincera”. Nesse
sentido, é possível pensar que, como vimos até agora, tanto eles quanto elas buscam o
exercício de um poder através da ostentação que o tráfico oferece, seja diretamente ou
a partir de uma relação, o que permite que os jovens usufruam de características que
os fazem atraentes e poderosos nas relações com as mulheres. Porém, ao mesmo
tempo, alguns deles também almejam relacionamentos não perpassados por esses
valores capitalísticos, que não só objetificam as mulheres, mas eles próprios (BARKER,
2008).
Por sua vez, Israel apontou que a namorada “pedia pra ficar comigo, e eu “não,
não, eu não quero ficar contigo, procura outro garoto, porque a sua mãe é maneira pra
caraca também, eu tô nessa vida, não quero demonstrar pra sua mãe que a filha dela
tem que namorar com Bandido”.
Jorge relata:
eu tava com 14 pra 15 anos, conheci a mãe da minha filha, pá, aí me chamava
também pra sair da boca, pá, ficava me chamando pra morar na casa da avó
dela, lá, me chamou pra ficar com ela. Falou que não suportava esses negócio
de eu andar armado, queria me ajudar, se quisesse ficar com ela eu tinha que
sair da boca, pá.
Jorge: com ela já tô há quase dois anos. Antes, como, ficava com várias
pessoas, mas nada sério mesmo, porque eu não achava nenhuma ainda que
era pra mim parar, e quando conheci ela, pensei “eu acho que eu tenho que
ficar com ela”. Porque como, ela, quando eu roubava, ela falava pra mim não ir,
porque ela não gostava desses negócio de roubar, e falava pra mim. Mas eu
fiquei fazendo, desandei, rodei, ela foi me visitar, chorou pra caramba, aí eu
fiquei tranquilo, pô, vou sair dessa. To aí até hoje. Mas, como, eu gosto dela,
vou continuar com ela
Jimena: sua mãe sabia que ela te falava pra não roubar?
Jorge: minha mãe sabia, quando eu rodei também eu falei, ela falou “é por
causa dela que tu tá aí” e eu falei “não é nada, ela fala pra mim não roubar”. Aí
minha mãe já ficou com isso na mente, aí quando tava preso, minha namorada
ligou foi pra minha técnica, falando que ia vir, aí minha técnica falou, “po, vou
ter que conversar primeiro com ele pra ver se realmente ele quer que tu venha
pra visitar”, aí eu falei com a minha técnica “pode deixar ela vir”, mas ela falou
“mas só vou deixar ela entrar se tua mãe não vir”, eu falei “tá bom”. Mas sempre
que ela ia vir, minha mãe vinha também, aí não podia entrar, por causa que a
minha técnica achava que podia dar confusão, por isso que não deixava ela
entrar
Adán aponta:
Jimena: e tem algumas que nunca ficariam com Bandido? Que gostam mais de
crente, por exemplo?
Adán: crente, trabalhador normal, não gosta de Bandido. Mas tem algumas que,
como, cria de favela, já elas, desculpa eu te falar, mas elas perde, pá, já. Aí,
como, elas já quer Bandido. Mas o cara pensa que ela quer ele por causa dele,
mas não é por causa dele, é por causa de... hum
Destarte, destaco como alguns jovens relataram que as companheiras não estão
com eles por conta do status oferecido pelo tráfico, e muito pelo contrário, elas
reprovam esse modo de vida. Em entrevista individual, Jesús relatou:
Jesús: levei um tiro, aí eu parei, eu dei um tempo, eu tinha ficado com uma
mina, pá, aí eu falei pra ela que ia ficar tranquilo com ela. Eu fiquei com ela e eu
falei pra ela que ia ficar tranquilo, só que aí teve problema entre eu e ela, e
separamos. Aí ela... aí nós separou, falei pra ela que como, que se separasse
que eu ia voltar à vida como era antes
Jhosivani conta:
Em um grupo, Mauricio disse que a companheira não concorda com ele ser do
crime, que “todo dia que eu acordava para ir para a boca ela tentava me convencer de
não ir e no dia que fui preso ela foi na delegacia falar que eu não tinha que estar nessa
vida, e no Fórum falou a mesma coisa”.
Assim, as jovens “de igreja”, as direitas, que “não merecem” estar com Bandido,
de certa forma estão protegidas da dicotomia fiel/rodada, submetidas ambas aos jovens
do tráfico. Nesse sentido, esse caminho é uma forma de proteção das jovens, embora
também apresente inúmeras regras e limitações sobre o corpo que essas religiões
estabelecem para elas, que devem também performar uma contenção da sua
sexualidade e sua sociabilidade, sendo submetidas à lei da família e do dogma.
Nesse contexto em que diversas instituições-organização aparelham valores
capitalísticos, machistas e moralistas que classificam e limitam, vemos que as opções
para as mulheres se apresentam em um panorama tenso e com pouca mobilidade
(BARKER, 2008). Assim, a atribuição de pessoas como sujeitos de escolha revela as
relações éticas dos sujeitos consigo mesmos e com os outros, trazendo a questão da
responsabilidade, do autocontrole e do controle institucional, em uma forma de
individualização massificada que ao mesmo tempo universaliza através de mecanismos
imperativos, sem permitir ver as singularidades e dificultando a elaboração de agências.
Isto discute com o abordado no segundo capítulo a respeito da importância de evitar
estipular destinos irremediáveis, tanto dos jovens que se envolvem em organizações
e/ou práticas criminais, quanto, neste caso, da forma com que as mulheres vivenciam
suas próprias trajetórias juvenis, conforme elas são também perpassadas e delimitadas
por instituições-forma, instituições-organização e instituições-estabelecimento. Em
ambos os casos, é importante pôr em análise os jogos de forças, que envolvem
exercícios abusivos de poder e de controle dos corpos e das subjetividades, ao tempo
em que brechas possibilitam resistências e produções singulares tanto dentro quanto
fora dessas instituições. Neste sentido, é possível observar o grande desafio para elas
223
de construir caminhos de autonomia, o que não significa que não existam, a exemplo
de movimentos e coletivos artísticos, culturais e/ou políticos muito potentes145.
Voltando ao nosso campo, vemos como as relações de controle, afeto e erotismo
com as companheiras dos jovens têm inflexões perceptíveis a partir da entrada no
Degase. Por um lado, as comunicações continuam através de substâncias como cartas
e fotos levadas por elas ou por familiares146. As profissionais relataram ter lido em
cartas – prática já problematizada anteriormente - frases como “eu estou tranquila”, ou
seja, que não está se relacionando com outros homens, ou “você não vai me bater
como antigamente, né?”, que além de revelar que o jovem era violento com ela, mostra
de que forma ela aproveita a oportunidade desta inflexão para propor mudanças na
relação.
Ao pensar a forma com que o agenciamento da masculinidade se vê
desestabilizado com a infidelidade feminina, estar em privação de liberdade apresenta
uma fragilidade tanto no sentido de sustentar uma ostentação, quanto de consolidar o
controle cotidiano sobre os corpos das mulheres.
Assim, o poder financeiro dos jovens do tráfico entra novamente em jogo, como
apontado por profissionais que relataram que algumas jovens esperam os jovens
durante a medida socioeducativa para sustentar o status de “primeira dama do tráfico”.
Ou seja, as consequências de escolher ser mulher-de-Bandido se estendem neste
momento, pois existe no imaginário uma dívida que elas têm com eles por terem
oferecido esse status, o que elas devem pagar, por exemplo, esperando-os saírem do
Degase.
145
Destaco, por exemplo, o caso do Bosque das Caboclas, localizado na área rural de Campo Grande,
na Baixada Fluminense, onde um grupo de mulheres ocupa o espaço da Associação de Moradores/as
e, em articulação com o CREAS local, realiza atividades de pré-vestibular comunitário e agricultura
familiar urbana sob um viés de protagonismo juvenil e feminismo negro com as jovens da localidade. O
processo coletivo é extremamente interessante e desafiador, tendo que fazer contrapontos tanto a
ameaças da milícia local de expulsá-las do espaço, quanto a relações conjugais violentas que algumas
jovens estabelecem com os milicianos.
146
Interessante pensar nas cartas e fotografias como reverberações de tempos distintos aos da geração
desses jovens, no que tange às temporalidades e gramáticas de confecção e trânsito. São elementos
que mexem com as rotinas de comunicação, afetividade e controle dos jovens.
224
Gabi: e agora, você acha que quando sair, vocês vão voltar?
Emiliano: uhum
Gabi: ela tá te esperando lá?
Emiliano: ainda
Gabi: mas você acha que ela não teve nenhum relacionamento?
Emiliano: ah, não sei
Gabi: por quê?
Emiliano: ah, porque tipo assim, sei lá, ela vai ficar um ano três meses sem
fazer nada com ninguém?
Gabi: o que você acha?
Emiliano: ah, eu acho que lá fora, não
Gabi: mas aí tudo bem? Já que você tá aqui ela não tem como não ficar com
ninguém lá fora? Ou se você souber que ela ficou com alguém vai ficar puto?
Emiliano: pô, nada, tipo assim, só não vou estar mais com ela
Gabi: se alguém te contar ou se ela te contar?
Emiliano: tipo assim, se ela não me contar, eu vou saber
Gabi: é?
Emiliano: é porque tem vários menor aí da área.
Jorge Antonio: ô, eu tenho 16, comecei a ficar com ela quando tinha 14 anos, tô
com ela até hoje, não sei se quando eu sair vou ficar com ela, porque não sei o
que ela tá fazendo lá fora também, aí ela tem 25 anos.
Jimena: você acha que ela tá com outra pessoa?
Jorge Antonio: não sei, e também não quero ficar pensando nisso daí também,
porque como, se nós não sabe ficar sem mulher, ela vai saber ficar sem homem
também? Penso nisso daí também, penso em várias coisas, mas não quero
ficar agoniado. Pô, imagina ela quando ela tá lá fora, toda essa tentação, nós
não sabe também. Aí quando nós sair nós tem como, aqueles menor de
confiança, que nós pode chegar e perguntar se rolou com alguém, se rolou com
outra pessoa, só chegar e falar “ô, nunca mais nada contigo, tu pro teu lado e
eu pro meu lado, minha vida contigo acabou”.
Jimena: e se ela não ficou com ninguém?
Jorge Antonio: se ela tiver ficado tranquila, vou ficar com ela
Jimena: e se ela ficou só uma vez?
Jorge Antonio: (nega com a cabeça). Porque assim, independente da minha
idade, só porque eu sou novo, partir pra cima pra ser desse jeito aqui, tipo
assim, eu vou ficar com ela, se ela quer ficar comigo, tem que ser um
relacionamento sério, comprometido, ninguém trair ninguém. Se ela vai pegar
geral pensando que eu sou burro, que eu vou ficar com ela só porque eu sou
mais novo, mas ela vai pensar assim, tá pensando assim, diferente, se ela me
trair só uma vez só, eu não fico mais não
147
Na foto 15 do Anexo I, que retrata uma aliança, os jovens em um grupo discutiram que só pode ser
usada “quando tem afeto”.
225
148
Jorge Antonio também relatou que a equipe técnica não deixou uma companheira entrar porque ela
“batia de frente” com a mãe dele, e queriam evitar problemas.
227
4.2 Sujeito-homem-guerreiro
Carlos Iván: Tem outros que acha que ser sujeito homem é tu já
como, como, tu já dar troca de tiro, mas também respeitar o Mano,
o Mano é o dono da boca, que tá na frente da favela, essas coisas
Como apontado por Gary Barker (2008), grupos como as facções do tráfico, em
vários contextos do mundo, “atraem homens jovens de baixa renda, em sua maioria,
para formas de masculinidade que usam a violência como um meio de lutar contra seu
sentimento de exclusão social” (p.11). Desta forma, as facções do tráfico não são
apenas corporações do lucro da ilegalidade, mas campos produtores de subjetivação.
Assim, para além do acesso a bens financeiros, o tráfico parece oferecer, por exemplo,
uma apropriação do território, do espaço, de onde eles são excluídos diante de projetos
de estratificação social, e por serem jovens. Como Lucia Rabello de Castro propõe, “a
espacialidade da megacidade contemporânea constrói-se numa intricada disputa onde
inclusões e exclusões são forjadas” (RABELLO, 2001. p.114), acrescentando que
Gabi: você tem medo disso? De morrer cedo por causa do tráfico?
Felipe: ahhh, mas eu tô nessa vida também por outro caso
Gabi: por que?
229
Felipe: por causa do meu irmão mesmo. Se eu pegar o danado que matou meu
irmão, já era
Gabi: mas você sabe quem é?
Felipe: uhum
Gabi: também é do tráfico lá?
Felipe: não, é de outro tráfico.
Gabi: mas aí você tem essa ideia de se vingar
Felipe: claro
Gabi: não sente medo de morrer cedo assim que nem o seu irmão?
Felipe: não tenho
Gabi: mas você não tem medo porque acha que isso não vai acontecer, ou
porque faz parte?
Felipe: porque faz parte do crime. Uma hora vai morrer
Gabi: você já conheceu vários meninos da sua idade que morreram?
Felipe: uhum. Tem gente que morreu do meu lado
Gabi: e aí você acha que ok, você faz parte da vida do crime, pode morrer, é
assim mesmo. Sabe que é arriscado, que monte de gente morre cedo, que seu
irmão faleceu, mas você é bem resolvido com isso?
Felipe: ah, é tranquilo. Acho tranquilo
Gabi: você acha que isso vai acontecer com você?
Felipe: acho que uma hora vai chegar.
Jimena: e o que você sentiu quando soube que essas pessoas morreram?
Jhosivani: ah, fiquei triste, mas já sabia que isso ia acontecer, porque tava na
vida errada
Jimena: e você sente isso de você, que algum dia pode ser morto?
Jhosivani: já. Mas procurava não pensar, pensar sempre do lado bom. Igual
quando fui preso, só pensava em ir, e voltar pra casa. Não pensava em ser
preso, não pensava nada disso, tava com a mente de ir e voltar
Carlos Iván: a sensação de trocar tiros é boa, mas dá uma sensação pior
quando tu vê o cara dando tiro pra cima de ti.
230
Adán: algumas pessoa que gosta de, como, “ah, sou do crime desde pequeno”,
aí depois sai, entra pra igreja, vou e se revolta, e, como, “não quero mais ser da
igreja” e entra pra boca de novo. Mas tem algumas pessoas que gosta mesmo
do crime, aí fica mesmo até morrer. Até morrer, de morrer, ou dos cara matar,
não sei
Jimena: ou vai preso
Adán: ou vai preso. Ou vai ficar aleijado dentro de cama
A violência entre homens como expressão das relações de poder é um dos eixos
centrais da produção de masculinidades (KAUFFMAN, 1997). Nesse contexto, o “etos
guerreiro”, como contingência levada a cabo entre homens para obter prestigio
ancorado em desigualdade para “eliminar o inimigo” – mandamento do CV-, como
apontado por Fátima Cecchetto no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade
Urbana, está fortemente enraizado na relação dos jovens consigo mesmos, tanto na
disposição para o confronto, quanto na consciência da própria morte.
Segundo Carla Mattos,
Como apontado por Alba Zaluar (2012), o “etos guerreiro” se constitui no contexto
de uma dinâmica política local de disputa de territórios do crime-negócio como uma
“impiedade ao sofrimento alheio, de orgulho ao infligir violações ao corpo de seus rivais,
negros, pardos e pobres como eles, então vistos como inimigos mortais a serem
destruídos numa guerra sem fim” (ZALUAR, 2012, p.349). Para a autora, esse etos
guerreiro está vinculado a uma
conflito armado localizado, mas sem fim, que alguns chamam “guerra
molecular” (Zaluar, 1997; 2004), que opera pela desumanização do inimigo, o
que justificaria as atrocidades cometidas contra eles (ZALUAR, 2012, p.350).
sentia, como, adrenalina. Roubava, às vezes dava certo e às vezes não dava.
Um colega meu pegou e até morreu também, por causa de ficar roubando, aí
eu tinha parado um pouco, aí eu fui e roubei de novo, aí rodei. Agora eu tô aqui
no CAI Baixada.
Contou Jesús: “já matei pessoas em assaltos, às vezes porque reagiram, mas
também muitas das vezes eu ia mesmo com a cabeça quente e muitas vezes eu ia
roubar mesmo só pra satisfazer minha vontade, de matar mesmo. Eu tinha vontade de
matar desde criança”. Ele também reconheceu sentir prazer ao matar, e a partir disso,
Gabi começou a questionar se ele não pensava que essa pessoa podia ter família ou
filhos/as pequenos/as, ao que ele respondeu:
mas não fui só eu não, tinha mais gente que comandava por mim, tinha o meu
chefe, tinha chefe do chefe, eu era só o que os cara mandava eu fazer. Não pra
mostrar trabalho, porque mostrar serviço não preciso ficar matando os outros
não, demostrando serviço pras pessoas não.
Bernardo aponta:
Jimena: você já conheceu gente que não era do tráfico que morreu por conta de
troca de tiro?
Bernardo: já, bala perdida, morador, sabe? Tá maluco, rapá? Sem brincadeira,
um colega meu, que pegou um cana lá, tinha um tipo de pistola, aí que que nós
vai fazer com esse cara?, chegou assim os menor, “que que a gente vai fazer
com esse cara?”, falou comigo, “po, mas tipo assim, a lei do Comando é essa,
se nós não matar o cara, ele vai pegar nós, ele vai matar nós e vai levar nós
preso”, peguei uma arma desse tamanho, pum, na cabeça, dei um tiro na
cabeça, não foi nem um tiro na cabeça, foi um tiro aqui, ô, subiu isso daqui do
cara tudinho, essa parte da barriga pra baixo, arranquei o couro do cara quase
Jimena: caraca, o que você sentiu?
Bernardo: ah, se nós não matava, morre, sem dor e sem piedade
Jimena: desde a primeira vez foi assim?
Bernardor: isso quando nós não picotava, cara, com facão, picotava as perna
232
Estas narrativas que revelam de que forma se produz uma subjetividade violenta
que ora aciona a lei como algo que o controla, ora se percebe como “dono de si”. Como
apontado por Lia Zanotta Machado, “o malandro se constrói positivamente como aquele
que rouba, assalta, mata, bebe e se droga, associando estas atividades à valorização
positiva do macho: corajoso, dono de sua vontade e capaz de impô-la” (MACHADO,
2004, p. 45). Nesse sentido, os dois jovens que percebemos que mais se apegavam a
essa performatividade violenta trouxeram falas interessantes, especialmente no
momento em que criavam vínculos comunicativos conosco, misturando narrativas que
por um lado exaltavam essa performatividade, e ao mesmo tempo se
desresponsabilizando dela. Jesus apontava que “no fundo no fundo, sou ruim, mas não
sou tão ruim” e Bernardo disse
tipo assim, eu quando eu tava no tráfico de droga, eu era um cara mau, sabe?
Mas também tinha meu lado bom. Bandido é bom quando é bombom. Mas é
bom até certas etapa. Agora tipo assim, agora eu tando fora do tráfico de
drogas sou um cara excelente. Sou um cara excelente,
Dessa forma apontando que o trabalho nas facções forjava esse tipo de
performatividade.
Contudo, vale lembrar mais uma vez que a instituição-forma machismo e as suas
violências contingentes atravessam toda a sociedade, pelo que é importante
desmistificar que ela faz parte “da cultura deles”. Como apontado por Connell, “padrões
particulares de agressão” não são efeitos mecânicos da masculinidade hegemônica,
mas justamente componentes da “busca pela hegemonia” (CONNELL, 2013, p.247). O
que estou apontando aqui são os mecanismos específicos com os que, neste contexto,
o tráfico encontrou uma forma de se posicionar como produtor de normas sociais,
delimitando inclusive quais violências são legíveis e quais não e em que situações e
níveis, a exemplo do caso onde os jovens de um alojamento, ao punir um transgressor,
tinham ultrapassado o nível de violência, levando-o a morte, o que poderia trazer
retaliações para eles.
Igualmente, quando os jovens da ADA entraram no CAI, um jovem que
entrevistei disse que se tivessem ido para além das ameaças – “bota a cara alemão!!” -,
eles podiam ter sofrido retaliações do próprio patrão, pois este tipo de acontecimento
233
149
Jesus também nos contou sobre um confronto entre torcidas de futebol, onde ele quase esfaqueou um
homem de outro time. Vemos como, nesse campo, também se configuram guerreiros que projetam
inimigos, sempre dispostos ao confronto.
234
Jimena: tipo?
Alexander: briga
Jimena: briga de que?
Alexander: adolescente!
Jimena: por conta de que?
Alexander: ah, de facção. “ah, não sei o que da favela” e metia a porrada, só
briga. Desceu um montão pra triagem, mas não tinha espaço na triagem, aí ia
pra cima “quer brigar? Então briga aí, pode brigar à vontade”
Israel também apontou que, ao ter sido transferido, por pedido da mãe, para um
alojamento menor por ter se envolvido em várias brigas, estava começando a se sentir
receoso com os jovens da própria facção, o CV, pois o alojamento menor era do TCP e
ADA. Ele relatou: “já chegou vários moleque da minha área aí, vários, e os cara tá
pensando que eu pulei de facção. Aí eu falei pra minha mãe, e falei pro diretor me botar
lá pra cima de novo, porque os cara tá me olhando, já pensando que eu sou TCP”. Ele
também relatou que em algumas atividades, os grupos eram misturados, e que essa
mistura “até que dá, mas um fica olhando pra cara do outro. Porque se cair na
porrada...”. Outro jovem também falou para Bárbara que no grupo de promotores de
saúde, até dava para estar misturados e ter uma boa relação, mas quando voltava ao
alojamento tinha que explicar que estava sendo obrigado a conviver com eles.
Jesus apontou que, mesmo negando qualquer possibilidade de partilhar o
alojamento com mancões e Jack, ele os trata bem e pode conversar com eles, pois
seus códigos e vai viver uma vida completamente distinta com escassíssimos espaços
de diálogo, existe um outro/inimigo que vai partilhar esses códigos a tal ponto, que sua
construção de si como inimigo impossibilitará o diálogo. Nos dois casos, diversos fluxos
de poder e violência acontecem, atravessados, novamente, pelas instituições-forma.
Tensões surgem, por exemplo, entre as dimensões do sujeito-homem-guerreiro e
aquele que ostenta conquistas amorosas. Em uma ocasião, enquanto almoçávamos no
refeitório, escutamos um diálogo que nos pareceu interessante, entre um jovem e dois
agentes socioeducativos:
Jovem: Tá vendo aquele menor ali que entrou comigo? Pô, então, ele é meu
cunhado, só que assim ele é do Comando Vermelho, mas eu pego a irmã dele.
Agente: Que isso, tu é do ADA e pega mulher do Comando Vermelho?! Vai se
virar como na visita? Vai morrer hein!
Jovem: Não, não, ela não vai me visitar não, eu só pego ela.
Outro agente: Esse negócio de facção não tá com nada, o negócio é passar o
rodo.
Como apontado por Helen dos Santos e Henrique Nardi, “a morte social é um
imperativo no cotidiano da prisão e que, para sobreviver, os homens necessitam reiterar
uma masculinidade que se fortalece a partir de relações conflituosas e hierárquicas”
(2012, p. 932). De forma semelhante, as unidades masculinas se constituem como uma
instituição-organização onde para sobreviver e “para ser respeitado”, é necessário
acionar certas performatividades masculinas, o que é diferente das unidades femininas,
como expressado por profissionais que já trabalharam em unidade feminina e conforme
observamos na pesquisa.
Essas performatividades não são homogêneas pois, como relatado por agentes
nos nossos Cursos, existem diferenças entre quem é de plantão, cadeeiro, e quem está
na escola ou em outras atividades como oficinas, grupos ou aulas, que são percebidos
como lugares mais tranquilos, mais próximos da equipe técnica e até mais frouxos na
percepção de outros agentes, sendo alvo de deboche e segregação ao não colaborar
com práticas viris (VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017).
Os que atualmente são professores, por exemplo, relataram ter quebrado
barreiras enormes que tinham se estabelecido com os jovens, agora podendo levar no
papo, mesmo continuando com postura e equilíbrio. Um deles disse que quando saiu
do plantão para dar aula, tinha receio de qual seria o tratamento dos jovens com ele,
mas que na hora em que isso aconteceu, eles mudaram completamente, chegando a
dar mostras de afeto, o que nunca antes tinha acontecido. Essas mostras também
foram relatadas por outros agentes que não estão mais no plantão.
Por sua vez, os que atualmente estão no plantão expressaram de que forma
nesse espaço eles percebem a necessidade de mudar de comportamento quando
estão na linha de frente, sendo exigida uma dureza que não faz parte da sua
personalidade com o objetivo de colocar uma “barreira para se impor como agente”.
Outros falaram que ao tentarem ser mais permissivos, os jovens tinham realizado
abusos, sugerindo que apenas com uma postura dura poderiam lidar com o coletivo de
jovens. Relataram inclusive que alguns jovens solicitam ser algemados nas audiências,
para não “tentar fugir”. Nesse sentido, “demonstrações de coragem e frieza são as
formas pelas quais a virilidade se manifesta nas unidades de internação, com o objetivo
de imposição do medo aos adolescentes” (VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017).
237
Bicho danado remete ao que não se submete à lei social, ao que tudo pode: à
pura potência. Homem honrado remete ao que se submete à lei social, desde
que, em nome desta, sua posição seja a de exercer primordialmente o controle
dos outros. Não se trata de homens que podem escolher ou serem postos na
posição de bichos danados e homens honrados. É a própria concepção de
masculino que inscreve esta dupla posição de poder estar, ao mesmo tempo,
no puro lugar da potência e da lei, sem a ela se submeter, e no lugar de
representante ou depositário da lei social e, por isso, também submetido. Por
referência ao mundo relacional da honra, o bicho danado está no lugar de poder
decidir sobre juntar, casar, assumir ser pai ou não. Está no lugar de poder ser
fiel ou infiel nas relações conjugais. Como homem honrado, pode controlar as
mulheres e rivalizar com os homens, desde que cumpra seus deveres de
provimento (MACHADO, 2004, p. 71).
150
Outros/as profissionais relataram ter trajetórias semelhantes, passando também por situações de
racismo e classismo.
238
151
Inclusive, uma ocasião vimos como um agente gritava com um jovem de forma repetitiva e dura, frente
ao que um dos diretores pediu para ele se tranquilizar, pois o jovem já havia entendido que tinha errado.
239
elementos sobre a temática, pois mesmo percebendo que alguns jovens estavam
vivenciando processos importantes, quase sempre violentos, relacionados com isso, ele
não sabia como os abordar sem parecer que estava querendo constrangê-los, prática,
segundo os jovens, bastante comum entre os agentes. Depois do Curso, ele relatou ter
conseguido criar estratégias para se aproximar dos jovens de modo que eles se
abrissem nesse sentido e não necessariamente ter que encaminhar para as técnicas.
Isso me fez pensar em como o gênero e a sexualidade como dispositivos de controle
impedem que na instituição se aborde o assunto, pois, se, como inicialmente nos foi
falado, os jovens não falam sobre sexo com as técnicas, pelo visto, tampouco com
muitos agentes, limitando as possibilidades de diálogo e portanto de transformação
nesse sentido. O que parece importante nesse sentido é que, além de tentar
desnaturalizar as rigidezes das relações de gênero entre os jovens e os/as
profissionais, se promova uma sensibilidade de todos/as eles/as (NASCIMENTO;
SEGUNDO; BARKER, 2011), para que os jovens se aproximem de quem eles desejam
e suas necessidades sejam escutadas e efetivadas.
Cabe apontar, também, que no terreno de relações de performatividades
masculinas no estabelecimento, não entram apenas agentes e jovens, mas também
diretores e professores, cada um com suas diferenças, que a partir de diversos
poderes, trajetórias e dobras de classe, localidade, geração e raça, apresentam
recursos emocionais e performáticos que aproximam e se distanciam dos jovens e das
pessoas dos outros segmentos. Em várias ocasiões, escutamos que os jovens, por não
terem “figuras paternas válidas”, buscavam nos profissionais homens, especialmente
diretores e docentes, vínculos desse tipo. Alguns professores também relataram
estabelecer vínculos de identificação e diálogo para, por exemplo, falar sobre saúde
sexual e família com os jovens, organizando atividades e conversas nesse sentido. Já
outros disseram que essas temáticas não eram abordadas no seu exercício profissional,
mas em um momento em que vimos uma aula, percebemos que os exemplos utilizados
para explicar gramática usavam frases próximas do cotidiano dos jovens, como “A mina
beija bem”, “Eu comi a minha vizinha”, que imediatamente apontamos como também
relacionadas com sexualidade.
241
4.3 Sujeito-homem-herói-sacrificado
Gabi: essa vez que você rodou roubando carga, rodou um monte
de gente com você?
Jesus: não, só rodou eu
Gabo: mas você não tava sozinho
Jesus: não, mas aí eu, eu, eu sou sujeito homem, entendeu, antes
de eu ser Bandido, eu sou sujeito homem
Gabi: então me explica, o que é ser sujeito homem?
Jesus: ah, arcar tuas consequências, tuas consequências sozinho,
tipo, se o negócio tá contigo, tu tem que tratar teus negócios, não
152
Felipe relatou que tinha sido apreendido por policiais à paisana na favela que morava, e que tinha
segurado tudo sozinho, permitindo que seu primo, também de menos de 18 anos, fosse liberado. O
primo foi morto meses depois, enquanto Felipe estava no Degase.
242
os outros que tem que tratar teus negócios contigo. Aí ser homem
pra tu bancar com o que tu fez. Isso pra mim é sujeito homem
Gabi: você aprendeu essas regras de ser sujeito homem no
tráfico?
Jesus: mmmm muitas sim e muitas não
Gabi: você é Comando Vermelho?
Jesus: sou
Gabi: e lá tem essas regras todas de honrar, se ser sujeito
homem?
Jesus: claro! Claro. Falar a verdade até que custe sua própria vida
Jorge Aníbal: ah, eu acho assim, ser sujeito homem é falar que foi
ele que fez, assumir o que ele fez, não levar todo mundo de ralo
4.4 Sujeito-homem-enunciador-honesto
Carlos Iván: Que tipo assim, fez merda, assume seus bagulho,
banca seus negócio, assume. Sabe que assim, sempre trabalha
com o certo, nunca fala mentira, não gosta de falar mentira, fala
até mentira, mas tipo assim, não joga a culpa pra cima dos outros.
Essas coisas, isso é ser sujeito homem, pra mim.
Carlos: agente? ah, esses cara... tipo assim... tem uns que é legal, tem uns que
é tranquilo, tranquilo, tranquilo, mais a maioria dá tapa na cara, e, como, ficar
tomando tapa na cara...
Jimena: mas você fala com eles tranquilamente?
Carlos: falo, falo, só não dou base pra me diminuir, não falo besteira, porque
ficar dando mole, se tu fica falando muita bobeira pra eles, ficar falando muita
coisa tipo assim, eh, como se diz... se dá muita liberdade, eles quer montar
encima
Adán: ah, não pode deixar na reta, não pode fazer marra, deixar eles na marra
deles. Às vezes, às vezes eles dão um papo, nós abraça o papo, às vezes nós
não quer abraçar, quer que se dane, tem nada a perder mesmo, apronta
mesmo.
[...]
Eles só agridem mesmo, se for, como, pra agredir mesmo, se nós estiver muito
errado. Aí eles agride mesmo. Eu, como, eu sei que vou ficar quieto, não vou
246
Jesús tem uma fala parecida: “aqui no Degase, eu sou menor pra cumprir minha
regra no dia a dia, não deixo na reta pros caras, os cara não entram no meu caminho
nem eu no deles, falo tranquilo com eles pra eles, como, pá ”.
Christian Alfonso, por sua vez, sinaliza:
se você não seguir as normas, se você não dá o respeito que eles quer, eles
quer “bom dia”, tem que dar bom dia pra eles, eles quer que tu respeite, se tu
desrespeitar eles te dá tapa na cara, ou eles chama o prantão e taca spray de
pimenta. Antes de ir embora eu tomei foi sprayzada na cara porque o moleque
abriu a chapa e ninguém assumiu, só eu se assumiu sozinho. Aí eu fui falar pro
coordenador e tomei sprayzada na cara.
Já Alexander aponta:
Alexander: tem uns menor que fala “ah, aperta mão de funcionário não”, mas eu
aperto, ninguém manda em mim, ninguém fala o que eu tenho que fazer. Se o
cara quiser apertar a minha mão, eu vou apertar. “Ah, não dá mão em
funcionário, ainda apanha”. Vou ficar batendo em funcionário? Fico na minha.
Não dou motivo pra apanhar. Os funcionário me conhece. Aí to prosseguindo.
Jimena: e porque os outros têm essa atitude?
Alexander: sei lá. É implicância. É neurose, porque não é polícia. É besteira.
Po, lá fora, se minha namorada vai presa porque roubou, fica presa na cadeia
de maior lá, fica se relacionando com mulher, chega pra mim, pá, sem me
passar visão, filha, po, a primeira coisa que eu vou chegar pra ela vai ser “po, tu
teve relação sexual com mulher na cadeia? Se tu fez, tu dá o papo reto, não
vou fazer nada contigo nem vou terminar contigo, mas eu quero o papo reto”,
sabe? Agora, eu vou falar, “me pergunte se eu tava me relacionando com outra
mulher quando tu tava presa?” Sabe? Que é o direito que a mulher tem de
fazer pergunta, também, filha, igualdade é pra tudo.
4.5 Sujeito-homem-honrado
Esta fala revela fluxos e tensões narrativas do ser sujeito homem no que tange às
relações com as mulheres e com as normas do tráfico. Lia Zanotta Machado (2004)
disserta sobre a “articulação entre os valores hegemônicos do masculino e os valores
inscritos no exercício da violência física” (p.35), assim como “a articulação entre
masculinidade e a busca pelo controle dos desejos e vontades de outrem” (p.36) e a
“articulação entre masculinidade e encenação ritualizada do poder e do controle”
(idem). A partir da análise de narrativas de sujeitos que “participam de relações
violentas e são agentes de violência física”, ela evidencia
Desta forma, vemos uma tensão entre julgar ou não as ações que devem ser
tomadas para submeter o sujeito homem às leis, neste caso, das facções. Como
apontado por Machado, o homem
tudo pode sem precisar obedecer às leis sociais. Ele está fora e além delas, só
obedece se quiser se inserir. Quando opta pelo mundo da bandidagem, só
obedece estas regras, exatamente para poder fazer o oposto, isto é, não se
submeter a nenhuma regra. Assim, ele não faz porque quer agredir ou matar,
mas porque estas são as regras bandidas. Esta violência cínica funda-se nas
armadilhas do que se exige para ser ‘macho’ (MACHADO, 2004, p.68).
Israel frisa no ‘autocontrole’ da força, não ser ‘bruto’ ou, em palavras de Adán ao se
referir a um jogador de futebol que matou a companheira, vacilão, se apropriando das
normas machistas do tráfico, e estar disposto ao confronto físico para defender a honra,
sempre de forma justificada, pois mesmo quando a agressão contra as mulheres é
reprovada, continua “a visão estereotipada que responsabiliza a mulher pela agressão
sofrida” (CECCHETTO, et. al., 2016, p.859; BARKER, 2008).
251
Adán: bater, tipo assim, bater já bati. Tipo assim, nessa garota aí, que morreu,
antes de eu pegar, antes de eu ficar com ela, tipo ela era da boca, ela tinha me
achincalhado com os melícia. Aí, como, fiquei bolado, aí depois, como,
começou o papo, aí ela falou que não foi ela, aí... mas assim, só essa vez eu
bati, só. Não gosto de bater em mulher, bater em mulher é covarde. Só bati nela
porque ela me achincalhou com os milícia, e eu podia morrer se os melícia me
pegar. Só ela mesmo, só. O resto...
Muitas vezes, regular a força implica entender a posição de sujeito dentro do campo
de forças de poder em que se está, seja maior, como no caso das companheiras, seja
de igual para igual, no caso das amizades, seja como ser subalternizado no
estabelecimento, como expressado por Jhosivani:
252
Jhosivani: sujeito homem? Sujeito homem ser é um cara sem brincadeira, tomar
a atitude certa, saber a hora de brincar, manter a postura, não responder, tipo
não ficar respondendo funcionário de igual pra igual, respeitar
Da mesma forma, o fato de estar em uma posição, por exemplo, de subalterno numa
facção, pode implicar ter que exercer violências sem desejá-lo, tal como apontado por
Bernardo tanto na relação com as mulheres, quanto com outros homens:
Bernardo: mulher, ela gosta de ser tratada com carinho, mas tipo assim, tem
cara, tá ligada? Que trata a mulher com mó carinho a primeira vez, a mulher vai
lá e aceita ficar com ele, e tem cara que gosta de espancar mulher, queimar a
esposa, esfaquear. Tipo assim, eu sei que o que eu fazia, que eu batia na
minha mulher, pá, que era a lei do tráfico, sabe? Me traiu... porque tipo assim, o
tráfico de drogas, se eu ficar com uma mulher e a minha mulher me trair, os
cara vai ficar me gastando, filha, vai falar “não, pega, menor, pega ela, menor”,
“não, vou pegar mesmo, vou dar porrada”, porque tipo assim, eu dei tudo pra
mulher, pra mulher me trair, não tem como
Jimena: e ela não dava coisas pra você também?
Bernardo: ah, ela me dava de tudo. Atenção
Jimena: e você bateu mesmo?
Bernardo: ah, de bater eu bati (risos), mas tipo assim, não foi aquela surra
assim, bater com madeira, que nem os cara batem na mulher na boca de fumo
não, dava só uns tapinhas mesmo. Mas eu não maltratava minha mulher não
Jimena: você falou que você ficava com outras enquanto tava com ela. Ela
ficava com outros?
Jorge: não, que eu saiba não
Jimena: como você reagiria se você ficasse sabendo?
Jorge: ah, tipo assim, eu não gosto de bater em mulher, esse negócio não tá
certo. Se os outros vir me falar “tua namorada tá saindo com outros”, eu vou
tentar fazer uma pegadinha pra ela me ver, saber a verdade, se é verdade vai
doer, mas eu vou terminar.
Jimena: mas tem gente que bate mesmo
Jorge: é, que bate, que quer cortar o cabelo, quer matar, monte de coisa
Jimena: mas isso é regra do tráfico?
Jorge: não é nada!!! Tudo isso vale pra mulher, a senhora não vê na televisão
que tem mulher que matou o homem que traiu ela?
Jimena: mas é muito menos, né?
Jorge: é, muito menos, mas tipo assim, isso aí também depende da pessoa,
tem gente que suporta ser traído, tem gente que não suporta, tipo assim, eu
não vou querer saber que ela me trocou por outro cara, eu vou pensar que o
que a gente faz, ela faz com outro cara, eu vou ficar pensando naquilo, né?
Então isso é com a pessoa, aí tu faz coisas sem pensar. Eu não sou assim, sou
mais de terminar do que fazer uma coisa assim. Eu prefiro terminar e continuar
a minha vida. Tipo assim, ela me traiu, né? Ela pode ter gostado de outro cara
porque ele fazia a vontade dela, ele gosta dela e ela vai namorar o cara, aí o
cara maltrata ela, ela vai ficar pensando em mim.
253
a violência de gênero, estrito sentido, não deve ser confundida com a violência
contra as mulheres. Esta seria uma concepção que ignora as dimensões
relacional e de performance que constituem as matrizes formadoras daquilo que
convencionamos chamar de ‘gênero’34. Nessa linha, a figura da mulher é,
geralmente, situada como vítima desprovida de agência, à mercê de uma
‘masculinidade patriarcal e dominadora’, que é atribuída aos homens em geral.
Além de naturalizar atributos sexuais nos marcos estritamente
heteronormativos, tal perspectiva não problematiza as hierarquias de poder,
tratando-as como dadas e universais. Por isso as violências que atingem os
homens não são entendidas como violência de gênero, o que pode contribuir
para a naturalização da agressão entre casais (CECCHETTO, et. al., 2016, p.
860).
153
Jonas relatou ter tido graves desdobramentos a partir dos espancamentos do padrasto, o que fez com
que saísse de casa e entrasse na rede de acolhimento.
255
não irem a bailes funk. Diante dos nossos questionamentos sobre o porquê de não
poder ir aos bailes, eles geralmente se referiam a esses momentos como de uma
intensa expressão da sexualidade, o que os levaria a fazer algo errado - palavra usada
por Christian Alfonso- para uma mulher e um momento de procura de outras mulheres
para eles (BARKER, 2008).
Em um momento em um grupo, apareceu a foto 11 do Anexo A, com uma jovem
dançando com dois homens, e Magdaleno falou: “tá vendo? O baile é isso, eu não ia
poder continuar com ela [se ela fosse nos bailes]”. Sobre essa mesma foto, em outro
grupo, se disse que a mulher dançava assim porque queria algo, tinha alguma
pretensão, ou porque estava drogada, e não porque quisesse apenas se divertir.
Também disseram que estava "instigando vagabundo" pelo tamanho do short. Marco
(16 anos, branco) disse que a sua namorada tinha que usar “saia até o pé”, diante do
qual Gabi perguntou se ela de fato fazia isso e ele disse “não, se usasse eu ia falar que
era abençoada”. Foi interessante que mesmo que não fosse real, o desejo dele era que
a performatividade da mulher fosse completamente contida em público. Ainda em outro
grupo, Carlos Lorenzo falou “uma mulher que bota uma roupa dessa, tá querendo o
que?”. Ainda sobre os bailes, vários relataram que, quando estão “na pista”, eles vão ao
baile sem as companheiras. Emiliano disse que ele ia para os bailes e a namorada
ficava em casa, “porque eu vou ficar tranquilo no baile com ela do meu lado? Pô, vou
ficar tranquilo no baile? Tipo assim, às vez, às vez, eu, como, eu levava ela pro baile ”.
Como apontado por Lia Zanotta Machado, que fez pesquisa com “agressores em
relações conjugais violentas”,
termo de “respeito”, o que também foi observado por Fátima Cecchetto et. al. (2016) e
por Miguel Vale de Almeida
O “respeito” é isso mesmo: tem-se por inerência de estatuto (um filho por um
pai, um empregado por um superior hierárquico, um aluno por uma professora)
mas deve-se dar “provas de respeito”: honestidade, franqueza, justiça, saber
encarar ameaças e provocações de frente, dominar a retórica da linguagem, ter
sentido da medida nos gastos, excessos e prazeres, providenciar mulher e
filhos. Tal como na “honra”, o respeito (que se pode entender como a glosa
local de “honra“) é um bem periclitante, quer por ameaça dos outros (o mau
comportamento dos que dele dependem) quer por ameaça das tentações e
vícios próprios (VALE DE ALMEIDA, 1996, p.166).
tipo assim, eu não posso dizer que cheguei a amar, porque tipo assim, a gente
é adolescente, agora tipo assim, eu tô um pouco mais maduro, mas menorzão,
mais novo, fazia certas coisa, que tipo assim, hoje em dia me arrependo, me
arrependo de certas coisas que eu fiz. Mas essa garota, eu gostava bem
mesmo, tipo assim eu gostava da companhia dela, queria ficar perto dela, já
chegou assim de dia de baile, garotas querendo ficar comigo, ela aqui, eu podia
sair de perto dela e ficar com outra garota aí, que tinha umas casa vazia, de
gente que saia da favela, eu podia chegar, pegar, ir lá, fazer sexo rapidinho,
com outra pessoa, depois voltar, pá. Tipo assim, quando, muitas das vezes, eu
não fazia, quando fazia, uma vez ou outra, eu me arrependia,
que se tem traição, tem que conversar pra ver se continua ou se vai separar, aí
depende da pessoa. É porque eu não gosto, então, terminar logo”.
Alguns relataram reações violentas das parceiras ao saberem de traições deles,
tais como Julio Cesar, que disse “mulher traída é cão”, diante do qual eu perguntei “e
homem não?”. Em outro grupo, Miguel Ángel contou que a namorada tinha batido nele
com um soquete de alho quando, através do Whastapp, descobriu que ele a tinha
traído. Ele disse que não bateu de volta porque ele sabia que estava errado. Emiliano
disse que no momento em que a namorada descobriu que ele a traia, ela terminou com
ele, e aí ele começou a namorar outra garota. Julio disse que se ele descobrisse a
namorada traindo, “mataria, baixava o pau”, enquanto ela, quando descobre que ele se
relaciona com outras mulheres “fica com raiva, me bate”. Jorge disse que não contava
para a namorada quando a traía porque “ficava com medo, tipo assim, da reação dela,
pá, dela terminar comigo, dela brigar comigo, dela depois também querer dar o troco,
pá”. Desta forma, como apontado por Cecchetto et. al. (2016), a violência se cristaliza e
reproduz como estratégia de resolução de conflitos nas relações íntimas entre
adolescentes, incluindo de mulheres a homens, especialmente ao se tratar de ciúmes.
Ainda assim, é evidente a relação de desigualdade entre homens e mulheres,
constituída pela instituição-forma machismo, onde mesmo ambas infidelidades pudendo
ser repudiadas, a infidelidade feminina é vista como uma violência, mostrando padrões
de sexualidade distintos entre homens e mulheres (CECCHETTO, et. al., 1996,
BARKER, 2008). Como apontado por Lia Zanotta Machado, “parcela importante do
núcleo da honra do homem depende da fidelidade da mulher e do seu estatuto de ser
reconhecida como respeitada. A fidelidade masculina não é exigida pelo código
relacional da honra” (MACHADO, 2004, p.53).
Nesse sentido, retomo a discussão d’a fiel, que se apresenta como um lugar
moral autorizado. Deste modo, a fiel não é uma sujeita, é um pilar da performatividade
masculina, ao tempo em que é naturalizado que “os homens traem mais porque é fácil
enjoar de uma mulher só”, fala proferida em um grupo, diante da qual Gabi perguntou
se elas podem se enjoar deles, ao que Antonio respondeu “podem, mas aí elas têm que
falar na minha cara e terminar antes de chifrar”. As normas de conduta são
diferenciadas, e a honra ou respeito vira “uma moeda por meio da qual eles negociam
258
seu lugar, sobretudo, no que diz respeito às desigualdades de poder entre os gêneros.
Nisso se insere uma gramática hierárquica, cujo binômio ‘vadia’/‘garanhão’ refere-se às
interdições do exercício do desejo e da sexualidade de modo distinto entre os sexos”
(CECCHETTO, et. al., 2016, p. 860).
Nesse mesmo sentido, em outro grupo eu perguntei se existia o “homem
rodado”, ao que imediatamente responderam que não. A fidelidade masculina é, na
maioria das narrativas, não só desnecessária, mas impossível de alcançar,
especialmente para os Bandidos, para quem as mulheres chegam. Alguns comentavam
que conseguem ser fiéis quando gostam muito da mulher, mas outros apontavam que
se até o marido da modelo brasileira Gisele Bunchen foi infiel, por que eles não seriam?
Para eles, a fidelidade por parte das companheiras é um requisito fundamental para a
manutenção da honra, o que não acontece no outro sentido, como visto. E não só por
serem homens, mas por serem traficantes, como apontado por Antonio, que disse “lá
fora eu sabia que não era traído porque era traficante e ela era zé ninguém, se alguém
soubesse alguma coisa dela, iam falar pra mim”, o que não aconteceria caso contrário.
Isso se configura no sentido da divisão do espaço doméstico e público, como
também apontado por Felipe:
Gabi: você se relacionava com várias ao mesmo tempo, ou com uma e depois
com outra?
Felipe: tinha uma que era minha mesmo, mulher de casa, e eu se relacionava
com outras
Gabi: mas ela morava com você?
Felipe: morava
Gabi: mas quando você se relacionava com outras, como você fazia?
Felipe: ah, ela não sabia.
Gabi: nunca soube?
Felipe: não
Gabi: e ela podia se relacionar com outros?
Felipe: claro que não
Gabi: e porque ela não sabia?
Felipe: porque se ela soubesse ia querer me chifrar também
Gabi: e ela nunca descobriu?
Felipe: não
Gabi: e ela te chifrou?
Felipe: eu não soube
Felipe: Já namorei novinha que veio brigar comigo, querendo entrar na porrada,
aí era espancada. Mas ela é menor do que eu, mais baixa.
Gabi: mas vcs já brigaram?
Felipe: já mesmo, discussão.
259
Gabi: no tapa?
Felipe: só nas perna. Não chegava a bater na cara, não
Gabi: mas ela também te bateu?
P: mmmm ela já bateu, tacou soquete. Às vezes ela mesma que vem discutir,
chega “ai, não sei o que, aí tu fica na rua e só fica me prendendo”. Aí eu já falo
logo: quer terminar?
Gabi: se ela quiser terminar e voltar pra casa dos pais dela, é tranquilo pra
você?
Felipe: é.
Outra questão importante abordada em vários grupos foi a via pela qual eles
gostariam de saber se ela o traiu. A maioria disse que gostariam de saber através dela.
Porém, depende do lugar, pois José Luis, (18 anos, negro) relatou que ele se
relacionava com uma jovem do tráfico e um dia estava todo mundo fumando maconha,
quando ela lhe disse, na frente de todo mundo, que tinha chifrado ele e que inclusive
tinha “tirado um filho dele”. Ele contou tê-la espancado na frente de todo mundo e que
“quase fiz coisa pior”, que, respondendo à pergunta da Gabi, seria matar.
Assim, no caso dos jovens que pertencem às facções, como já discutido, a lei
encarnada é articulada em muitas ocasiões pela facção, revelando múltiplas tensões.
Igualmente, a honra como um dispositivo relacional e fundamental do agenciamento
das masculinidades a partir da legitimação dos códigos se dobra na experiência de
privação de liberdade. A tensão que o respeito produz está justamente nas relações de
cuidado e controle, no momento em que é função dos homens garantir a honra das
mulheres da sua família, ou em que a mulher desonra o homem ao transgredir as
regras de gênero. Como apontado por Machado, no contexto brasileiro,
260
Nessa disputa, por exemplo, é justificável que os jovens não tenham fotos das
companheiras ou que a masturbação não aconteça nos dias da visita familiar. Adán
fala: “se tiver foto de família não pode ver. Se o menor quiser ver, se o menor quiser
mostrar, mas vai ficar de ralo a pessoa que viu, vai ficar de ralo uma semana, não vai
poder quebrar”. Carlos Iván aponta:
Carlos: eu preferi ela [a namorada] mandar fotos não, por causa dos outros
caras que tá aí. É uma neurose, é uma neurose sim. Aí ninguém pode ver foto
de ninguém, e eu falo “não, não precisa trazer”
Jimena: o que você acha dessa neurose?
Carlos: essa neurose? Eu acho certa. Por causa que não fica vendo a família
dos outros, a namorada dos outros. Não fica pensando maldades com a mulher
dos outros
Jimena: no alojamento não dá pra manter a privacidade? Nem só vocês dois?
Carlos: não, com ele até dá pra manter a privacidade, mas daqui a pouco ele
vai subir, aí desce mais menor, desce mais pessoa, pra lá, e eu não vou ter
essa privacidade
Jimena: e falando em neurose, essa coisa de que quando tem visita familiar,
não pode se masturbar, rola isso?
Carlos: ahh, não, isso é papo de apanhar
Jimena: você já soube de casos em que alguém apanhou por isso?
Carlos: muitos, já até bati
Jimena: porque?
Carlos: por causa que não pode! Não pode fazer isso. Pô, eu tô falando aqui
com a senhora, já vou ter que ficar uma semana sem queb...desculpa... sem
quebrar, sem se masturbar, ficar uma semana, só por ter olhado pra senhora
Jimena: mas quem fala que não pode?
Carlos: todo mundo (riso)
Jimena: quem te falou isso pela primeira vez?
Carlos: ah, quando eu vim pra cadeia
Jimena: no abrigo rola isso?
Carlos: não, no abrigo não faz isso não, no abrigo nem se masturbava
Jimena: não? Porque não?
Carlos: ah, tinha mulher!
Jimena: mas nem no banheiro, escondido?
Carlos: não, para que, se tinha mulher!?
Jimena: ah, tá, tinha com quem transar
Carlos: é!
Alexander: ah, alguns fala. Mas no meu alojamento não tem isso não
Jimena: e quem explicou pra você quando você entrou?
Alexander: em outra unidade me orientaram já, falaram, “olha, aqui, pá, lá fora,
pá”, e eu “tranquilo”. Aí quando eu vim pra cá eu já sabia o ritmo
Jimena: que outras coisas fazem parte desse ritmo? Não quebrar, que outras?
Alexander: não quebrar, quando tem visita só olha pra sua família, não olha pro
lado, não pode vir de short com a perna pra fora.
E Jhosivani disse:
Jimena: o que você acha das regras que tem aqui? De não poder quebrar em
dia de visita, nem no dia seguinte
Jhosivani: ah, isso daí eu acho certo
Jimena: porque?
Jhosivani: porque se não, pensa que olhou pra, às vezes vem a sua mãe, aí
pensa que os outros tão olhando pra sua mãe de mau olhar
Jimena: mas você não acha que a gente pode pensar em coisas que
aconteceram ontem ou há um ano?
Jhosivani: é, acho também, mas, assim, a gente assim até que tem uma lógica
também
Jimena: como você ficou sabendo dessa regra?
Jhosivani: assim que eu cheguei
Jimena: quem te falou?
Jhosivani: foi o mais velho que tá ali
263
Abel: Tipo, que você vê aqui, somos nós, pá, mas aqui dentro tem o ronca,
sabe, o ronca da cadeia, do Comando, que bota ali “ô, o dia de quebrar é
segunda, terça e sexta”. Aí tipo eu fui na rua, né? Eu to uma semana de ralo
Jimena: porque?
Abel: eu não posso fazer nada sexual
Jimena: por quê?
Abel: porque eu fui na pista!
Jimena: por quê?
Abel: tipo assim, tu viu a tia lá da igreja, vamos dizer assim, eu vi uma tia da
igreja, que não trabalha aqui, aí vamos dizer assim, eu tô de ralo, um dia.
Vamos dizer assim, eu vou na audiência, aí vou de ralo um mês. Tipo, aqui tem
punição, se tu der mole na cadeia, solta o balão
Jimena: e o que você acha dessas regras de não poder quebrar?
Abel: não, é certo, mas tipo assim, eu acho também que, sei lá, tipo, já que é só
segunda, terça e sexta
Jimena: mas então você concorda com essa regra?
Abel: tá certa
Jimena: você não acha que as pessoas podem estar pensando em outra
pessoa que viu há cinco meses? Porque você necessariamente vai estar
pensando na pessoa que acabou de ver? Você vê sentido nessa regra?
Abel: vejo. Vai que tu sai daqui e eu vou e quebro
Jimena: qual o problema? Você pode estar pensando em qualquer pessoa
Abel: não (gargalhada)
Jimena: pode pensar em mim daqui a cinco meses!
Abel: não, aí eu vou ter te esquecido totalmente
Já Jonas também apontou que essa regra não é só nos alojamentos das
facções, pois faz sentido para a noção de honra que ele partilha, e que, como
sinalizado por Marcos Nascimento, denota de que forma é intrinsecamente relacional,
no momento em que depende do patrulhamento dos outros homens – e, de outras
formas, das mulheres também-:
264
sou a favor, como, que você vai matar a vontade, vai ser bom, entendeu?
Conversa um cadinho lá na cama, entendeu? E tipo assim, às vezes não sou a
favor porque assim, um exemplo, acabou a visita íntima aí, aí o funcionário,
será que ele espera a gente se vestir?
que “a unidade proíbe essas roupas para as mães”. Outra agente disse que achava
difícil cobrar isso de mim quando tinha “pessoas da equipe dando o mau exemplo”,
momento em que percebi que essa interpelação não estava apenas me
desestabilizando, mas que podia trazer implicações para outras profissionais. Minutos
depois, um agente se aproximou da Mesa, onde eu estava, e perguntou, brincando, se
era a nova mesária, e que deveria trabalhar ali, ao que respondi, também brincando,
que não gostaria porque teria que mudar as minhas roupas. Uma das agentes
respondeu: “pois é, aí você teria que ficar feia que nem a gente”. Desta forma, revelava
de que forma nós como pesquisadoras de Fora, apesar de passar pela rede de
vigilância que impedia certas roupas, ainda tínhamos certa liberdade que nos permitia
negociar de outras formas com essa máquina institucional.
Outra agente falou das diferenças entre as roupas das agentes e as das
técnicas, sendo que as agentes devem usar uma roupa padrão. Também disse que
algumas mães reclamam de serem obrigadas a usar certas roupas, enquanto “tem
técnica com decote atendendo meu filho”, ao que ela explicava que “as técnicas não
têm filho aqui dentro que possa se envolver em problemas”. Ela apontou que em uma
ocasião um jovem fez tssss pra ela, pelo que ela chamou a mãe dele para conversar na
direção, falando que “eu respeito a mãe –na revista- e espera que o menino me
respeite”.
Um profissional também relatou casos de aproximações consideradas
inadequadas entre mulheres profissionais e os jovens, especialmente quando essas
mulheres são “jovens e bonitas”, e/ou que “dão uma liberdade excessiva aos
adolescentes”, incluindo usar roupas não permitidas ou fazer contatos mais íntimos.
Alguns casos se desdobraram no desligamento dessas profissionais, sem aproveitar a
situação para falar sobre gênero e sexualidade com os jovens.
Um relato interessante foi o proferido por uma agente, que era contratada como
técnica e posteriormente fez o concurso para ser agente, diante do qual sentiu a
necessidade de ser transferida de unidade, pois considerou que seria complicado
“revistar as mães que antes atendia”. As agentes expressaram a necessidade de que
os jovens as tratassem com respeito muito mais do que as outras profissionais. Assim
como no caso dos homens, vemos como os lugares ocupados dentro do
268
4.6 Sujeito-homem-adulto
Carlos Iván: sujeito homem? Como, que não é moleque. Que não
é moleque.
Jimena: o que é bebel? Até quantos anos é bebel?
Julio César: 15 anos
Jimena: e depois é o que?
Julio César: sujeito homem
271
do Abel só porque ele é bebel, só porque ele é pequeno” e por Jonas, a partir das
154
Um profissional inclusive falou que antes acontecia mais, quando o tabagismo era permitido e quando
“não tinha lanche”, “mas agora que as condições e a estrutura são melhores, os meninos não têm por
que trocar favores”.
272
4.7 Sujeito-homem-heterossexual
Israel: Tipo, tu não vai comer... não vai fazer sexo com outro
homem
Gabi: isso não é sujeito homem?
Israel: isso não é sujeito homem.
Gabi: existe essa regra?
Israel: existe
Gabi: no tráfico?
Israel: uhum
155
Carlos Iván também considerou que “mulher” e “lésbica” seriam opostos, mas Bernardo disse “mulher
sapatão é normal, mulher sapatão é mulher, mulher é mulher, independente que ela é sapatão”.
273
Jesus disse:
156
Alguns jovens expressaram desejos de violência homofóbica nas suas comunidades ou famílias, mais
poucos relataram de fato ter efetivado essas violências. Por outro lado, muitos apontaram conhecer ou
se relacionar com pessoas LGBT sem nenhum problema.
275
Gabi: que que tem a ver beber da mesma garrafa se eles quiserem transar de
madrugada?
Jesus: os cara são viado, vai ficar bebendo, os cara beija homem! Tem mulher
que beija homem, pá, aquele pique, tipo assim, é os cara!! Por mim, também,
tipo assim, os cara vai falar que nós está separado, é os cara!! Essa é a regra,
o pessoal tem muita regra
Gabi: ok, mas você concorda com elas?
Jesus: tem que concordar
Gabi: não dá pra questionar?
Jesus: não pode
Gabi: aí você acha que se tivesse dois meninos transando
Jesus: ia acordar tomando porrada, filha, ia botar pra dar um rolé
Gabi: mas você não acha que não dá pra sentir atração?
Jesus: ah, vai sentir atração em outro alojamento, filha
Gabi: você obedece a regra secamente?
Jesus: ....vou te falar, acho que até na de maior é assim, não é assim, tipo
assim, tem viado no alojamento, vai embora. Acho que não é assim
Gabi: porque que não?
Jesus: não sei, nunca passei na maior, que eu nunca perguntei meu chefe,
entendeu? Antes de eu estar na pista, não perguntei muitas coisas ao meu
chefe, se o cara for da facção e o cara for viado, não pode estar no alojamento
ah, tem quem não gosta disso daí não. Esse negócio dificulta pra caraca. Aqui
dentro? Dar lona aqui dentro? Pega fazendo sexo no alojamento, homem com
homem, sem brincadeira mesmo, isso daí é mó vergonha, mano, isso é
neurose, isso é vergonha isso daí, filha. Perder o gosto de mulher.
Jimena: porque você acha que a maioria fala que não rola, sendo que rola sim?
277
Adán: ah, porque eles, vai falar que, como, eles fala que quem come viado é
viado, mas eu já comi e não sou viado. Eu sei que não sou viado, pá. Os cara
pensa que só quem come viado é viado, é nada, eles fala que não come, é
sujeito homem, mas conheço vários que comem viado, esse viado que tava aí
Jimena: o que que é pra você ser sujeito homem?
Adán: ah, sujeito homem, é como, não botar viado pra mamar, só mulher
mesmo, pá. Só ficar com mulher, pá. Não ficar de brincadeirinha, os cara fica
falando, bobeirinha, não ficar mostrando o negócio pro outro.
Christian Alfonso: ser sujeito homem, é tão forte, porque ser sujeito homem é
um homem que não faz essas coisas, tudo mais
Gabi: que coisas?
Christian Alfonso: sexo com homem. Só faz sexo com mulher
Gabi: não pode ser sujeito homem e fazer sexo com homem?
Christian Alfonso: não
Gabi: porque?
Christian Alfonso: porque não
Gabi: e você é o que, então?
Christian Alfonso: eu sou homossexual
Gabi: homossexual não pode ser sujeito homem?
Christian Alfonso: não
Gabi: então ser sujeito homem é definido pela sexualidade?
Christian Alfonso: (sim)
Gabi: e que mais?
Christian Alfonso: é porque assim, o homem foi feito, tipo assim, eu nasci como
homem, minha mãe me fez como um homem, mas desde o momento que eu
comecei a mudar, fazendo essas coisas, essas coisas, assim foi falta de
dinheiro, porque às vezes eu precisava de dinheiro pra subtrair as drogas, não
tinha dinheiro pra usar drogas, então eu se prostituía.
Estas quatro falas são de jovens que se relacionam com homens e com
mulheres. Emiliano afirma que apesar de se relacionar com homens, ele é sujeito
homem por apresentar outras características, incluindo uma posição dentro do tráfico,
que o protege, e o fato de enunciar, mas só o suficiente, o que traz mais um elemento
importante a considerar nas comunicações. Também, uma profissional disse que ele
constantemente tentava se “reafirmar como homem”, trabalhando na horta e
carregando coisas pesadas. Alexander também enuncia essa espécie de
“compensação”, que, assim como Bernardo aponta, é aceita, pois apesar de que os “kit”
tem que ficar separados na boca de fumo, eles “sendo da boca ele tem um privilégio,
porque ele é da boca, tá traficando com nós”.
278
Já Adán parece precisar demarcar que ele não é passivo nas relações, para se
distanciar dessa noção. Isso, no caso do Adán, inclusive trazia um sofrimento, palavras
das técnicas que o acompanhavam. Elas me relataram isso esperando também que eu
entrasse na roda para pensar formas de ajudá-lo, o que me provocou um pouco de
angústia diante das limitações do meu tempo no estabelecimento, embora tenha
conseguido ter uma boa conversa com ele, tentando oferecer repertórios de
desestabilização da cisheteronormatividade que o fazia sofrer.
Christian Alfonso aponta que ele não é sujeito homem, justamente por se
relacionar com homens, mesmo que seja para fins financeiros. E Abel provoca a
definição, ao apontar como ela define algo que não é sustentado no dia a dia do
estabelecimento.
Alguns desses jovens geralmente expressavam discursos bastante consolidados
de conhecimento dos preconceitos vivenciados e dos seus direitos. Por exemplo, Luis
Angel (17 anos, negro), no grupo que participou, falou que “a gente já tem suficientes
confusões nas nossas cabeças, para ficar julgando os outros”, e relatou que não se
sente ameaçado na unidade, que “tem que aprender a entender a cabeça dos outros”.
Ele também relatou que ele sempre soube que era gay e que ninguém o tinha
“influenciado” ele nesse aspecto, problematizando uma fala de Leonel, de que um
menino conhecido tinha virado gay porque “a mãe nunca deixava ele sair”, e que “agora
que ele está virando”, ela estava mostrando filme pornô para a criança, “mas não está
adiantando”. Este relato, além de destacar a desnaturalização da “transmissão”
homossexual que Luis Angel fez, revela uma tática bastante severa utilizada para
reafirmar a cisheteronormatividade.
Christian Alfonso disse
Christian Alfonso: ah, tem preconceito, tipo assim, ficam “ah, já deu o cú, esse
aqui, ô, já deu o cú” “você já deu o cú, já fez isso, já fez aquilo”. Isso é um
preconceito, ficar falando o que os outro faz. A bunda é minha! dou na hora que
eu quiser! Ninguém vai ficar dando conta da minha vida. Vai ficar criticando os
outros? Essa é uma criticação que não pode acontecer
Gabi: eles te recriminam por causa disso?
Christian: tem moleque de facção igual, tem um moleque lá do meu alojamento
que também já deu o cú, assim, eu não gosto de falta de respeito, ficar falando
dos outros não me dá nada, do que os outros fez na cadeia. Os outros não
pode falar da vida dos outros não. Não pode ficar criticando os outros.
279
Jesus: os cara fala que viado é quem come e quem dá, filha
Gabi: não, quero saber a sua opinião
Jesus: a minha opinião, quem come não é viado, pô
Gabi: então se tivesse alguém aí querendo, te convidasse, você comeria?
Jesus: não
Gabi: nem se tivesse distribuição de camisinha?
Jesus: não
Gabi: porque não?
Jesus: porque não sinto prazer, um homem
Gabi: mas nunca fez pra saber!
Jesus: mas já até imagino, pô, nada a ver se relacionar com um homem que
tem o que eu tenho
157
Nos pareceu interessante a expressão “tem mancada”, por ser algo que se possui, não que se é ou
que se faz.
281
ciumento, chegando a se machucar quando estava muito afetado. Inclusive, disse que a
relação entre eles começou quando Adán provocou uma briga física entre eles, a partir
da qual conseguiu expressar que gostava dele.
Adán, em entrevista comigo, começou dizendo que “aqui é foda. Não pode fazer
nada”, depois apontou que
Adán: tem esse negócio de, como, de papo viado, mas eu não faço, eu não dou
não. Sou mais de pá, de comer, pá. Já comi, teve viado que já veio e já foi
embora, comia ele direto
Jimena: ele queria?
Adán: ele queria! Era viado mesmo, assumido. Ele me chamava e eu ia.
Jimena: ele chamava alguns, ou todo mundo?
Adán: ah, se eu te falar, quase a cadeia toda (risos)
Jimena: muita gente fala que não rola
Adán: é, muita gente fala que não, mas às vezes, como, fala que não, mas faz
sim. Eu não, eu falo mesmo. Mas também tomo cuidado, não pode ser qualquer
um também assim não.
Jimena: tomar cuidado em que sentido?
Adán: desses negócio de doença aí
Jimena: você usa camisinha?
Adán: aqui dentro?
Jimena: aha
Adán: como ele tava aí, ia passar a dar, só que ele foi embora, aí não mais,
porque não tem viado mais
Jimena: você acha que deveriam distribuir camisinha aqui dentro?
Adán: ahh, acho que sim, porque muita gente fala que não faz, mas, olha,
várias coisas eu sei
Jimena: e em que momento rola isso, à noite?
Adán: ah, é, à noite. Porque tem alguns que não gostam de se ver, e até
apanha. Bate nos menor e tudo.
Jimena: como saber quando quer e quando não quer?
Adán: ah, ou pede, ou ele vai me chamar, ou pede ou vem chamar
Jimena: já teve alguma vez em que ele te chamou e você não quis? Ou o
contrário, que você queria e ele não?
Adán: ah, às vezes eu não queria, às vezes eu queria. Às vezes só ficava
refletindo mesmo, na minha família
Emiliano tivesse falado sobre a relação, justamente por ir de encontro a muitas coisas
que tínhamos escutado até esse momento.
Depois disso, enquanto jovens dos alojamentos coletivos continuavam negando
qualquer tipo de possibilidade, outros jovens dos alojamentos Seguros relataram ter se
relacionado sexualmente e/ou amorosamente com outros jovens, que inclusive estavam
nesses alojamentos.
Abel apontou:
Alexander: ah, no começo começavam até a bater, mas com o tempo, pararam
de mexer
Jimena: todos?
Alexander: tinha alguns que até entraram querendo agredir, tem uns que
pararam não, entravam batendo, “ah, faz isso não”
Jimena: e porque você acha que eles partiam pra agressão?
Alexander: sei lá. Homofóbicos.
[...]
Jimena: como foi isso, quando você começou a se relacionar com ele?
Alexander: a gente conversava bastante, gostava um do outro. Aí um dia acabei
que beijei ele. Aí ele “ah, repita a dose”, e eu “eh!”. Aí começamos a namorar
Jimena: você que pediu pra namorar?
Alexander: é. E foi tranquilo. Passamos pros caras do alojamento, que a gente
namorava, tranquilo. Aí começou a namorar. Conversamos com o funcionário.
Dava conselho pra ele, dava conselho pra mim também. Aí tavam querendo
bater num menor, e ele “vou ter que ir lá pra resolver. E eu “pode ir”, “não fica
decepcionado comigo não” e eu “não”. E foi. Tá lá encima até hoje. E eu to
aqui.
[...]
Alexander: Outro dia os funcionários ficaram falando que eu era viado, e ele
“que isso?”, e eu “deixa o funcionário ficar falando, se eu ficar batendo boca, ele
vai querer entrar aqui, vai querer agredir menor, nós não vai deixar, o pau vai
comer, nós vamos pra delegacia, e aí?”. Aí falei forte “ele vai ser acusado de
homofobia!”. Botou a mão na boca, “mmmm”, só virou as costas e saiu.
com a maior paciência do mundo, “bebel, pô, tu não pode fazer esse bagulho
não”, tipo assim, aí eu destravei nele, dei só papo reto nele, e tipo assim, eu
falei tudo que eu tinha que falar, “não, bebel, tu tem que se enquadrar, a gente
tá fazendo um bagulho aqui embaixo, tu quer ficar olhando, tu ia gostar? Que tu
estivesse fazendo um bagulho com alguém e nós ficasse olhando?” e ele “não”,
“então, o bagulho é separar, tu escuta, tu abraça o papo, tu compreende, não
dá vacilada aí” e aí ele nunca mais ele, ele abraçou o papo.
O alojamento em que eles estavam era na Triagem, para onde são direcionados
jovens que estão “de castigo”, o que acabava fazendo, segundo Emiliano, com que eles
fossem considerados como estando “de castigo” também. Relatou várias cenas de
afeto, ciúmes e brincadeiras próprias de casais, além dos acordos para “parar pra ficar
só nós dois” e explicou a diferença entre os dois para tratar da relação com outras
pessoas: “eu já tinha a prática de falar com as pessoas”.
Essas fissuras, que não necessariamente implicam uma identificação dos jovens
como gays ou bissexuais, permitem ver a dimensão singular do desejo e do afeto, que
mesmo que perpassados pelas instituições-forma cisheteronormatividade e machismo,
são ao mesmo tempo produtoras de singularidades históricas e políticas, relacionando-
se com paradoxos das normas e dos modelos e com o desafio de cumpri-los e/ou
driblá-los. Os jovens, ao encontrar contradições, revelaram de que forma os circuitos
dos desejos se encontram, entre o que queremos e o que o espaço de pertencimento
permite, possibilitando ver as linhas de fuga dentro das durezas.
Como já foi apontado, reconhecer isto era extremamente difícil para a instituição,
dificuldade vista no ápice durante o Curso de direitos sexuais e direitos reprodutivos, a
partir do analisador da implementação do preservativo, sempre sob a justificativa da
Segurança, no sentido tanto de proteger os jovens que assumissem essas relações de
retaliações homofóbicas, quanto de evitar relações sexuais de submissão e
desigualdade. Porém, é importante destacar que vários profissionais apontaram que
implementar o preservativo “liberaria o sexo entre homens” ou inclusive o incentivaria, o
que para eles era um problema, enquanto outros reconheciam que isso já acontece e
que isso simplesmente seria uma “redução de danos”, evitando contágio de ISTs. Um
deles relatou, inclusive, ter visto um jovem “pegando um plástico para talheres para
usar como camisinha”, o que já revela as táticas dos jovens frente à estratégia de
contenção da sexualidade.
287
158
O Degase reconheceu a necessidade de discutir questões de gênero e sexualidade, pelo que criou um
Grupo de Trabalho para tratar esses temas, de modo que se contribuísse com a tomada de decisões de
construções de normativas para garantir os direitos de jovens gays e trans.
288
Jorge: eu não tenho esses preconceito com esses negócio também não
Jimena: mas o que você acha dessa regra deles terem que ficar separados?
Jorge: ah, eu não acho também, por mim podia ficar todo mundo junto, que eu
não tenho esse negócio também, porque eles faz, às vezes ele fazia com eles,
o que eu posso fazer? Pensava assim mesmo, o que eu posso fazer? O que
eles faz é com eles mesmo, quem vai ficar mal falado é eles, porque tem os
outros que fala mal pra caramba desses negócio. Aí eu falo, eu gosto só
mulher. Igual esses negócio de homossexual, também como, eu gosto da
amizade, pode ser uma pessoa boa
Jimena: você tem amigos homossexuais?
Jorge: tenho, mas aí como, vai ficar gastando em tudo, porque de vez em
quando esses cara aí, porque a técnica ficava falando esses negócio de
homossexualidade, aqui não tem nada desse negócio, os cara quer e a outra
pessoa também quer, é várias relação homossexual, aí o que eu falo mesmo
“caraca, como que tu pode, cara? Fazer relação com outro homem”, eu falando
e gastando eles, e ele “ah, eu gosto mesmo”, e eu “tu gosta?” e o cara “gosto
mesmo, é só pensar em mulher mesmo, pô, relação com outro homem não me
interessa, nunca fiz mesmo, é só na cadeia mesmo”
prestar atenção às variações presentes nos discursos dos rapazes e nas suas
maneiras de ser, e compreender, através dessas vozes de resistência, que as
formas de masculinidade nesses contextos não são inerentemente violentas,
indiferentes ou abusivas em relação às mulheres. Todas as formas de
masculinidade, sejam mais ou menos violentas, mais ou menos sensíveis à
equidade entre os gêneros, são construídas segundo contextos e conjunturas
determinados (BARKER, 2008, p.40)
apontou que “se for gay Bandido, pode”, porque “gay Bandido é parceiro”, é do crime,
mas se não for Bandido, eles “fritam”. Dessa forma, o ser Bandido outorga o que ser
gay retira. Vemos outro tipo de compensações nesse sentido, tanto se referindo a
outras pessoas, como Carlos Lorenzo, que disse que Cazuza “era um homem legal,
mas era bicha”, quanto na própria performatividade, como Luis Angel, que disse “vejo
minha sexualidade como apenas uma parte da vida, antes de qualquer coisa sou
homem, gosto de estudar e de outras coisas, tenho caráter”.
No entanto, a cisheteronormatividade como operacionalização das
masculinidades é recorrentemente naturalizada, o que na instituição-estabelecimento
gera uma série de curtos circuitos ao revelar suas nuances e fissuras, o que vimos, por
exemplo, na reação de surpresa de um grupo de agentes ao relatar que tinham visto
dois “chefinhos do tráfico dormindo de conchinha”, ou ao falarem que a proposta de que
jovens gays recebessem visita íntima fazia “um nó na cabeça”.
Cabe destacar que vários agentes constantemente relataram sua reprovação
diante das demonstrações de afeto e erotismo entre os jovens, tanto nas nossas
conversas com eles, dizendo que “a “prática do homossexualismo é depravada”, “não
concordo, sou conservador”, “já estava na bíblia, é homem e mulher”, “não tenho que
ficar vendo isso aí”. Também relataram ter separado os jovens ao dizer “que isso?”,
“que viadagem é essa?”, ou achando “esquisito” que os jovens ponham a perna encima
do outro, “botem um lençol no beliche” ou “demorem no banheiro”. Em um grupo com
agentes, Fernando provocou, dizendo que as pessoas estão em privação de liberdade,
não de desejo, com o que vários concordaram, mas alguns apontaram que “podem
trabalhar esse vazamento normal, fisiológico, com os 10 mandamentos – a
masturbação-, sem necessidade de fazer o amorzinho”, “agora todo mundo vai querer
ser preso”, “o que as famílias vão achar?”. Outro jovem também disse: “ah, dona, vou
falar uma coisa. Quando aconteceu esse negócio de eu ser abusado aqui, tem uns
funcionário que ficaram me criticando aí, falando que eu dou o cú, que isto e aquilo.
Ficam falando pra todo mundo escutar!”. Um agente relatou que em uma ocasião
chamou um grupo de jovens de “vamos, moçada” ao invés de “vamos, rapaziada”, e
eles reagiram tão negativamente que “quase teve rebelião”. Os agentes também
apontaram serem “cobrados”, ao mesmo tempo, de tomarem uma atitude frente a fatos
291
que não são considerados normais, tais como ter dois jovens se relacionando entre si,
e, por outro lado, de respeitarem os direitos sexuais dos jovens. Como apontado por
Dos Santos e Nardi ao se referirem ao Sistema Prisional,
Emiliano: tipo assim, só não pode deixar o agente pegar, senão vai falar que é
falta de respeito com ele, aí vai querer agredir nós, aí vai fazer vários negócio
Jimena: mas isso chegou a acontecer?
Emiliano: não
Jimena: eles nunca implicaram com vocês?
Emiliano: não, o diretor sempre me orientou, “quer fazer, não deixa o agente
pegar, se o agente pegar, eu to liberando dar tapa na cara, ein? Eu to
liberando”, e eu “caraca, isso é brabo” e ele “eu me ponho em teu lugar, eu sou
adolescente, eu tenho que me dar ao respeito, se o funcionário, chega no
alojamento, e pega eu trepado com outro, você vai fazer o que? É uma falta de
respeito”. E eu, tipo assim, “tem que se dar ao respeito pra ser respeitado, pode
ficar tranquilo que isso não vai acontecer não” e ele “se acontecer, você já sabe
como que vai ser o procedimento”
Escutamos outras falas nesse sentido, solicitando que o contato entre dois
homens fosse contido, e sugerindo que as normas do tráfico eram nesse tema algo
positivo, ou dizendo que ““tem que se segurar aqui dentro, lá fora tem tanta menina!” e
que “eles ficam sem coisas muito mais importantes”. Novamente, vemos de que forma a
instituição-estabelecimento, que pretende desmontar a o Bandido, reifica ao mesmo
tempo a cisheteronormatividade como parte fundamental do agenciamento dominante
da masculinidade. Cabe apontar, no entanto, que não são só os agentes, que estão
mais em contato com os jovens nos alojamentos, que apontaram a necessidade da
contenção de práticas ou expressões homossexuais. Igualmente, como apontado por
um docente que trabalha em escolas com jovens, essa lógica de contenção da
sexualidade acontece nessas instituições-estabelecimento também.
293
4.8 Sujeito-homem-pai
Adán: Eu sei que se eu fizer, vou ter que bancar, eu vou bancar,
eu sou sujeito homem e vou, como, não vou ser esses caras que
às vezes, como, engravida a mulher, deixa o filho pra lá, fala que
não é dele. É um bagulho doidão, esses cara aí. Aí o filho nasce
sem pai, o bagulho é foda.
Nesta fala, Adán considera o fato de assumir a paternidade como mais uma
dimensão do ser sujeito homem. Bernardo também fala nesse sentido, revelando uma
série de tensões entre as performatividades masculinas no que diz respeito à
paternidade:
Bernardo: ah, eu não tava nem preparado pra esse negócio não. Eu não sabia
que ela tava grávida não, depois de um certo tempo que eu tava roubando
bastante, que como tinha esse problema que eu brigava bastante com ela, eu
ficava cinco, seis dias fora de casa, sabe? Roubando, traficando. Aí depois
quando eu fui chegar na boca o cara foi falar comigo, um menor que trabalha lá
pra mim, foi falar “po, tua mulher tá grávida”, “tá grávida de quem?”, “de tu, po”,
aí eu falei “tá maluco que a mulher tá grávida de mim?”. Eu pensei que ela não
tava grávida, falei que era até sacanagem, filha, “po, tá maluco? É meu filho?”.
Aí depois eu, “po, será que é meu mesmo?”. Aí como, nós for fazer um teste lá,
na moral, saiu um papel, “ah, o filho é teu, filho”, e mesmo que não fosse meu
eu criava, porque tipo assim, às vez, quando eu cresci minha mãe falou assim
comigo: “meu filho, nunca tenha filho antes do tempo, mas se você tiver, banca
o seu bagulho, cria seu filho”. Tipo assim, pai não é o que faz, pai é o que
cria. Fazer é fácil, criar não é fácil, agora o que tem que fazer é criar. Mesmo se
não fosse meu, filha, ia criar do mesmo jeito, filha. Porque existe o sofrimento
da mãe, o sofrimento da criança. Não vou deixar a criança passar fome. Não
vou deixar. Ainda mas ela, po, tirei a mulher daquela vida ali, hoje em dia a
mulher tem casa, tem trabalho
Jimena: ela trabalha com que?
Bernardo: ela trabalha também em casa de família, sabe? Mas ela ganha o
dinheiro dela, ela é carteira assinada. Ganha o dinheiro bem, dá pra sustentar a
criança agora. Agora, o dinheiro que vem, vem de mim também, sabe? Eu
coloco o que, 600, 700 reais, pra ela lá.
Jimena: e agora que você tá aqui, alguém tá dando esse dinheiro pra ela?
Bernardo: tá sim, pela minha postura na boca de fumo
Jimena: e pra você o que é criar, além de dar dinheiro?
Bernardo: ah, tem que tar do lado da criança, que é o seu crescimento, filha.
Tem que ficar. Porque um filho sem pai vai chegar... porque tem gente que fala
assim, “ah, você tem pai”, mas se seu pai te deserdou, se o pai não quis você,
agora tu já cresce com “po, meu pai não me quis, aí já fica com aquele ódio”, aí
vai que um dia eu volto com meu filho lá e meu filho fala “ah, você não é meu
294
pai, você não quis ficar comigo”, sabe? Eu já não. Eu to nessa vida aqui, mas
posso mudar. To nessa vida aí pra ficar tranquilão.
Jimena: não, ela é daqui. E aí na gravidez você ia no médico, essas coisas?
Bernardo: pré-natal, essas coisas assim, eu não fui
Jimena: e durante o parto, você tava?
Bernardo: eu não tava nessas coisas aí não
Jimena: mas você tava no hospital?
Bernardo: tava
Jimena: e o que você sentiu quando viu?
Bernardo: ah, eu vi, minha filha, eu olhei, po, será que eu vou tar pronto pra
essa responsabilidade?, só vi a criança, aí ficou passando na minha cabeça
várias coisas, “posso criar, ou posso ir embora, deixa-la pra trás”. Mas tipo
assim, a mulher já como, a mulher já fazia programa, vai criar o filho sozinha?
Aí é fogo, vai jogar o filho no internato, internar o filho dela, não conseguir,
deixar o filho pra trás porque não pode criar, aí a criança crescer e não ter o pai
e não ter a mãe. Agora, eu pudendo ajudar, ajudo mesmo... pra mim foi, um
impacto pra mim
159
Um jovem disse para Anna que uma mulher diz que o filho dela é dele e ele não acredita, e que ela
disse que “eu sei pra quem eu abro as pernas”.
297
que nós leva não dá tempo”, como expressado por Mauricio. Alguns deles têm a noção
de que vão morrer cedo e por isso querem ter uma vida sexual precoce e ativa, avaliou
uma profissional. Como apontado por Orlandi e Toneli (2005), a naturalização da
maternidade, que inclui a atribuição de todos os direitos parentais, “corresponde à
essencialização da não-paternidade do homem, sendo estes dois processos
interdependentes, não complementares, nem fixos” (ORLANDI; TONELI, 2005, p. 257).
Se destaca a responsabilidade da parentalidade e o seu destino como designados às
mulheres (NASCIMENTO; SEGUNDO; BARKER, 2011), noção reproduzida
constantemente na sociedade através das instituições-organização. Lembrando o
apontado por Carlos Lorenzo ao se referir a uma jovem grávida como estragada, é
importante pensar de que forma, no caso das mulheres, a parentalidade marca uma
passagem obrigatória para o ser “adulta”, enquanto, no caso dos homens, traz um
status de “homem” que pode ser acionado ou não.
As técnicas relatam que a maioria dos jovens não tem “pai presente”. Também
percebemos uma presença maior de mulheres na visita familiar, o que nos lembra a
discussão sobre a responsabilização das mães nas trajetórias dos jovens. Assim, por
um lado vemos uma produção de determinados modelos, o que corrobora o que
imaginam para suas próprias paternidades, apesar de muitas vezes criticar esses
modelos, como relatado por um profissional, que escutou o caso de um jovem que
“reclamava muito de que o pai fez questão de botar o nome todo no registro, mas nunca
quis lhe conhecer”. Ele também disse que “muitos estão revoltados com o pai,
justamente por essa violência ou ausência”.
Percebemos também, em algumas falas, uma diferença entre ter filhos e filhas.
As filhas devem ser cuidadas pelas mães, para deixá-las bonitinhas e escolher roupas
para elas. Também, elas “podem dar muito trabalho”, segundo Carlos Iván. Jonas disse
que “preferia menino, mas eu gostava de uma menina também”. No caso dos filhos, a
perpetuação da performatividade diz Jesus ao falar sobre o que queria fazer com seu
filho: “ahhh, sei lá, dar um rolé com ele, jogar uma bola, soltar uma pipa, ensinar as
coisas que não deve pra ele, que eu já passei, que eu vou ensinar, vou falar pra ele,
não vou esconder dele, “filho, já fiz isso, não é bom, já quase morri, já passei por várias
dificuldades, e não é maneiro, é melhor você pedir pra mim, falar comigo o que tá
298
precisando, vou dar um jeito, do que fazer o que eu fiz na vida”. Quando, em um grupo,
Jose Angel disse que se tivesse um filho gay, o mataria, José Eduardo divergiu,
dizendo que se ele tivesse um filho gay ou uma filha lésbica, “nunca ia bater, ia tentar
falar com eles, mas se decidirem continuar, tudo bem”.
Podemos também fazer uma análise do que, em diálogos com Anna e Marcos
Nascimento, podemos chamar de “paternidade ostentação” – e dessa forma
visibilizando o atrelamento entre os sujeitos-homem-, no momento em que os jovens
destacam de que forma seu envolvimento nas facções garantem que o jovem possa
oferecer certo status econômico às crianças, como apontado por Bernardo: “meu filho
nunca faltou nada com meu filho, sempre teve roupa de marca, tipo, fazer o que, filha,
uma hora a casa cai”. Foram apontados por profissionais casos de jovens pais que
voltaram para o tráfico para sustentar as famílias, o que os coloca em uma posição
diferente em relação ao exercício parental que optaram desempenhar.
Isso não significa que eles sejam conscientes dos gastos permanentes que
implica uma criança, como foi recorrentemente apontado por Anna e como sinalizou
Leonel (18 anos, negro) ao relatar que, ao expressar o desejo de ser pai para a sua
mãe, ela tinha falado que “não é tão fácil assim, tem que cuidar, comprar os bagulho
pra ele...”. Nesse sentido, um jovem ficou muito orgulhoso de ter três filhos a caminho,
mesmo que não os conheça por estar no Degase. Quando perguntamos o que faria
com três crianças, ele disse que compraria um carrinho com três lugares. Outro jovem
falou para Anna que queria dar para o filho “o que eu não tive” e que “queria ter filhos
para cuidar”. Anna perguntou como faria para sair à noite, e ele disse que a mulher dele
ou a sogra fariam isso. Anna perguntou o que seria cuidar, e ele disse que seria “levar
na pracinha, comprar coisas pra ele”.
Isso aparece no momento em que, apesar de serem cientes da instabilidade de
suas vidas, e por isso, como alguns relataram, se afastam das suas famílias para não
pô-las em risco, sobreviver ou não ser preso para incluir a paternidade ativa no seu
projeto não apareceu nas narrativas antes de entrar no Degase. Alguns pensaram essa
questão estando privados de liberdade, reparando de que forma essa nova situação
vulnerabiliza suas famílias nesse sentido, tendo que recorrer às famílias de origem,
especialmente trabalhadores/as que não estão envolvidos nessa vida instável, para
299
aí hoje em dia ele mudou bastante, então eu queria ser igual a ele”. Igualmente, como
visto no trecho acima no desenho do personagem, este construiu uma paternidade mais
presente e ativa, inclusive sem cônjuge, como parte de uma “nova vida”, “longe do
crime”, o que não fez com que parasse de frequentar festas e se relacionar
sexualmente.
Alguns jovens falaram que acompanharam a gravidez, por exemplo, indo com as
mulheres na ultrassonografia e/ou no pré-natal, comprando comida para as grávidas,
decidindo o nome da criança, trocando fralda e dando banho nas crianças. Nesse
sentido, também escutamos alguns relatos de participação ativa na criação de
irmãos/ãs mais novos/as, incluindo cozinha, cuidado e proteção de um padrasto
violento.
Assim, vemos a paternidade como um motivo para sair do tráfico ou da vida do
crime, como visto também por Gary Barker (2008) e por Lia Zanotta Machado, numa
reinvenção da masculinidade que não cultua mais a agressividade, onde “ser pai o
seduz para uma nova forma de reconhecimento, a posição de homem” (MACHADO,
2004, p.68).
Bernardo aponta:
Bernardo: Tinha vez que deixava até entrarem com meu filho em casa. Aí é
fogo. Uma casa, que o pai não trabalha... tipo assim, um local que o pai não
trabalha de administrador, não sabe administrar a vida da família, filha, acaba
sendo um ambiente... um ambiente ruim. Pra me criar uma criança, o pai
traficante, o filho dentro de casa, recém-nascido, no tráfico de drogas é questão
difícil, né, do filho crescer, arrumar um trabalho, um conhecimento da vida. Aí
agora que tô aqui tô pensando mais em, como, ficar mais do lado do meu filho
Jimena: e você acha que mesmo separando da mãe dele você conseguiria ficar
por perto?
Bernardo: é. Mas também, se a mãe quiser criar ele, filha, por mim tranquilo,
pelo menos, tipo assim, com, foi isso que aconteceu, tipo ainda não tô em
condição de ter essa responsabilidade toda, mas já que já veio até o mundo,
que o filho veio até o mundo, porque não vou criar ele não? Tem que criar,
mesmo ele estando com a mãe, tem que pedir visita pro meu filho, tranquilo
Jimena: ele vem pra cá visitar?
Bernardo: não, não gosto que ele vem pra cá não, porque aqui é um ambiente
muito pesado, muito colocado aqui, filha, imagina, meu filho agora ele tem dois
aninho, quando ele estiver fazendo cinco, que ele já fala já “papai”, “mamãe”,
alguma coisa. Imagina ele com cinco, seis aninhos, vindo pra cá me visitar?
Como, um ambiente desse, vários cara preso... é fogo, filha, não quero que ele
passe uma situação dessa daqui. Quero sair daqui e mostrar diferente pra fora
301
senti foi vergonha de mim mesmo, por causa de, se meu pai morreu nisso, eu vi
minha mãe morrendo nisso também, e eu entrar nisso, eu mesmo assinando
meu próprio relógio.. falando assim... eu vou morrer, mas, eu não tinha nada a
perder mesmo, mas agora eu percebi que tenho sim uma coisa a perder: tenho
a minha irmã mais nova, tenho um irmão mais novo, sou o mais velho dos
irmão, tenho que dar um exemplo, tenho minha tia, tenho vários tio, que não é
do meu sangue, que me acolheram, por causa que a minha tia, ela é avó da
minha irmã, mas não é a minha avó, entendeu? Minha mãe teve um caso com o
filho dela, com o filho dessa mulher
Jesus disse “podia estar morto, podia estar com meu filho. Meu filho não poder
ter o pai verdadeiro dele, eu não poder, como dar um rolé, que eu gosto, com a família,
poderia estar aproveitando a família. Pensei nisso, quando sair daqui aproveitar a
minha mãe, dar um rolé com a minha mãe, com meu filho”. Bernardo relatou as
negociações no estabelecimento a partir desse desejo, revelando de que forma a
experiência na dobra de passagem pelo Degase também é perpassada pela
paternidade:
eu falo que não tenho nada a perder, mas eu tenho coisa pra perder, eu não
tenho coisa pra perder, mas tenho vó, já perdi meu pai, posso perder minha
mãe se a minha mãe [atualmente presa por tráfico] não ficar tranquila, então eu
tenho alguma coisa a perder. Minha avó também pode me perder, se eu não
ficar tranquilo
302
O que já implica outros deslocamentos. Julio Cesar disse “quando eu sair quero
dar valor para a minha família”. Jorge Antonio disse “aqui que parei pra pensar, meu pai
não me botou no mundo pra roubar, minha mãe me botou no mundo pra trabalhar”, e
Julio disse que vai sair do tráfico porque “não quero dar mais dor de cabeça pra minha
mãe”. Assim, esse tipo de falas se referia não apenas aos/às filhos/as, mas também ao
resto das famílias.
Percebíamos, nesse sentido, demonstrações efusivas de afeto e intimidade nas
visitas familiares, assim como um cuidado mútuo, incluindo, por parte das famílias, uma
mobilização para comprar as coisas para levarem aos jovens, os deslocamentos pela
cidade, as negociações no emprego e, em alguns casos, intercalando visitas com
outros/as familiares no Sistema Prisional, enquanto os jovens elaboram artesanatos
para elas. Isso nos fez pensar no tipo de relação que os jovens tinham antes da dobra
da passagem pelo Degase e se essa dobra tinha suscitado mudanças na relação.
Nesse sentido, é importante pensar que, a partir do apontado anteriormente a
respeito das noções de adolescência como caracterizada por uma instabilidade e
irresponsabilidade, a parentalidade nesse período, quase sempre pensada como
restringida à maternidade, tem sido compreendida como um problema como se a
instabilidade e a irresponsabilidade não pudessem também atravessar vidas adultas e a
parentalidade nesses casos fosse sempre planejada e desejada por ambas pessoas
(ORLANDI; TONELI, 2005; BARKER, 2008).
Nesse sentido, é interessante destacar o trabalho realizado na Semana do bebê,
onde profissionais focam na construção de paternidades com os jovens, por exemplo,
propondo fotografias deles com brinquedos para criança, fomentando, através da
apresentação estética de si, o exercício de outras performatividades e
responsabilidades. Também foram relatadas ações específicas para garantir que os
jovens pudessem registrar as crianças ou que recebessem as visitas delas - às vezes
inclusive para conhecê-las, pois haviam sido apreendidos antes delas nascerem-,
apesar dos obstáculos burocráticos e jurídicos e, em alguns casos, do desejo das mães
das crianças de se afastar dos jovens. Assim, ao invés de reprovar a “paternidade
303
adolescente”, esse tipo de iniciativas busca construir outros significados para ela e
aproximar os jovens de uma construção desses vínculos.
Nos parece que isso pode ser uma semente para começar a desestabilizar as
instituições-forma, mesmo que, como apontado anteriormente, a entidade “família
desestruturada” seja um processo histórico extremamente complexo que não pode ser
enfrentado individualmente. Nesse sentido, o que insistimos com o exercício da árvore
genealógica, que gostamos de chamar de rizoma genealógico, usado na Semana do
Bebê e no segundo Curso com profissionais, é na apresentação da multiplicidade de
configurações e trajetórias familiares160, e de que forma consideramos que a abertura
para a diversidade e o questionamento à família tradicional, sustentada por noções
burguesas, machistas e cisheteronormativas, pode estar vinculada a uma busca de
relações igualitárias, responsáveis, justas e livres.
Assim como a paternidade dos jovens é utilizada como analisador de
intervenções com eles, novamente podemos pensar em como a visita íntima e a
implementação do preservativo poderiam ser usadas nesse sentido, em palavras de
uma profissional, “trazendo a dimensão humana, a sexualidade, o afeto, quebrando a
noção de ‘Bandido menor’, porque com ele ainda não se trabalharam essas questões
amplamente”. Na “casa dos homens”, as modalidades de sujeito homem se dobram de
formas diversas. A ostentação não pode ser sustentada da mesma forma, a geração é
recolocada nas relações, a vivência da paternidade é modificada, as práticas sexuais
são reguladas de maneiras distintas, as enunciações tomam outros contornos.
Nesse contexto, como apontado por outra profissional, “quem não assume essas
discussões está perdendo a oportunidade como socioeducador, de preparar um menino
para viver em sociedade”. Assim, as performatividades masculinas e suas dobras,
focando nos direitos sexuais e direitos reprodutivos, poderiam ser um dos eixos do
trabalho da instituição-estabelecimento, entendendo como elas vão se compondo nas
trajetórias juvenis em formas de agenciamentos coletivos. Mas, para isso, as pessoas
que circulamos nesse estabelecimento devemos também indagar as nossas
160
Foi interessante, por exemplo, ver rizomas tão grandes que brincamos com os jovens falando que
eram “florestas genealógicas”, mostrando a amplitude das suas famílias e os múltiplos vínculos e
mobilidades. Já outros, relatavam ter pouquíssimos vínculos familiares, o que fazia com que morassem
na rua. Também foi interessante ver a forma em que cada jovem compunha a produção, desenhando
figuras e linhas diversas e escrevendo nomes ou relações.
304
Nessa fala, em que Israel relata um encontro entre ele, outro jovem e agentes,
vemos de que forma o corpo dobra e é dobrado nas performatividades, trajetórias e
relações dos jovens do CAI, pois “o corpo é em si mesmo uma construção, assim como
é a miríade de “corpos” que constitui o domínio dos sujeitos com marca de gênero”
(BUTLER, 2003, p.27).
Assim, o corpo entra nesta pesquisa como um eixo fundamental. Miguel Vale de
Almeida aponta que
No relato que inicia esta capitulo, Israel evidencia a tensão do encontro dos
corpos no estabelecimento, onde a força tem uma dimensão importante161, razão pela
qual a compleição física é um critério oficial de divisão dos alojamentos e reivindicada
por um profissional, que diz que deveria ser mais relevante do que, por exemplo, as
facções. Além disso, vemos muitas dimensões corporais atravessadas pela experiência
no CAI, ou inclusive antes de chegar nele, a exemplo dos jovens que chegamos a ver
com feridas e/ou complicações de tiros, materializando as situações de risco que eles
vivem na pista.
Mudanças corporais grandes são observadas nas passagens pelo Degase,
especialmente nos jovens que cumprem medidas socioeducativas longas, assim como
os que entram muito novos, e ganham peso e altura, assim como é possível observar o
161
Estes embates acontecem também “na pista”, como relatado por Bernardo, que sofreu “bullying” na
escola por ter cicatrizes na cara, e anos depois, quando entrou no tráfico, a facção possibilitou que ele
“corresse atrás do prejuízo”, matando esses jovens.
307
162
Uma das mudanças de paradigma do Sistema Socioeducativo atual é a perspectiva da linha do
cuidado e o foco na educação em saúde, com os eixos principais: saúde mental, saúde sexual e
reprodutiva, cuidados integrais e saúde bucal. A possibilidade de dar continuidade à garantia desses
direitos para os jovens egressos do Sistema foi apontada como uma preocupação de profissionais,
incluindo o atendimento de jovens vivendo com HIV e sífilis, desafio para o estabelecimento que
enfrenta deficiências para garantir testagens, vacinas e tratamentos por conta da precariedade dos
municípios – implicando tempos, burocracias e negligências. Esta situação de precariedade fez mais
profícua a articulação com a Secretaria de Saúde, que promovemos através do segundo Curso, e com
a qual algumas profissionais se mostraram ávidas em partilhar experiências e fazer demandas de
serviços. A Secretaria também destacou grande dificuldade ao longo dos anos para chegar a esse
espaço.
308
masculinidades, visto que os agentes fumam na frente dos jovens, marcando assim
uma distinção de poder.
O uso de medicamentos para dormir é recorrente, para lidar com ansiedades que
não podem ser trabalhadas de outra forma, vide a saturação das/os psicólogos/as e da
falta de oportunidade de desenvolver atividades artísticas e esportivas. Estes
medicamentos também são usados como moeda de troca, para tentar suicídio ou
mesmo manterem-se alterados, como presenciamos algumas vezes. No entanto,
alguns apontavam um cuidado em não ficar dopados para que os agentes não
“fizessem algo com eles”. Há grande risco no uso abusivo de drogas lícitas como mais
uma inflexão do Sistema, que ao não conseguir oferecer alternativas, medicaliza,
atualizando “estratégias biopolíticas no controle da população e na disciplinarização dos
corpos” (DOS SANTOS; NARDI, 2014, p.936) - o que não significa que jovens que
precisem de tratamento psiquiátrico ou para dependência química não devam ser
atendidos.
Muitos mecanismos de disciplina dos códigos (inter)institucionais passam pelo
corpo, delimitando lugares e performatividades, em uma engrenagem em que
mecanismos produtivos do poder coabitam em uma fronteira borrada com seu ângulo
repressivo e centralizador, o que não deixa, por sua parte, de fazer um grande labor na
regulação e produção de sujeitos. São frequentes abuso, opressão e coerção, muitas
vezes através de práticas concretas de punição executadas especialmente pelos
agentes socioeducativos, tais como xingamentos a jovens e suas famílias (CUNHA;
SALES; CANARIM, 2007), deboches, humilhações, provocações, espancamentos e
excessivo uso de spray de pimenta, que inclusive é considerado um avanço para
alguns profissionais, frente à “tradição madeira”163 que a instituição tinha anteriormente.
Também ouvimos casos de ameaças de violência física, falas preconceituosas e
exposição de condições de saúde – incluindo tentativas de suicídio-, atos infracionais e
práticas sexuais, e “facilitação” de violência física entre os jovens, inclusive letal.
163
Como apontado em vários momentos do texto, foi recorrentemente relatado que o Degase tem
mudado de um paradigma “mais punitivo”, onde a “porrada” seria frequente e legitimada, a um “mais
humanizado”, destacando “o direito dos socioeducandos em preservar sua dignidade, com sua
participação, responsabilização e autonomia” (ALMEIDA, 2016).
309
os funcionário aqui tudo agride nós, agride nós aqui dentro, não lá fora porque
ele sabe que nós pode matar ele lá fora, que se bato de frente com ele lá fora,
filha, eu mato, filha, eu mato lá fora. Eu só vou guardando, filha, tudo que faz
comigo aqui dentro, pra quando chegar lá fora, um dia ele bate de frente
comigo, aquela cena, filha.
Além disso, observamos uma série de posturas corporais exigidas, como ter uma
circulação muito limitada nos espaços fora do alojamento (CUNHA; SALES; CANARIM,
2007), sentar no chão na hora de esperar atividades e almoço 166, serem revistados
constantemente, andar de cabeça baixa e com as mãos para trás como se tivessem
164
Essa punição tem efeitos financeiros para as famílias, como apontado por Cunha, Sales e Canarim
(2007), argumento utilizado pelos diretores na hora de explicar aos jovens de que forma a família deles
vai ser afetada pelo mal comportamento deles.
165
Televisão e ventilador também são providenciados por algumas famílias e compartilhados nos
alojamentos.
166
Um dia essa questão me incomodou especialmente, porque a unidade tinha passado recentemente por
uma dedetização e tinha muitas baratas mortas e moribundas no chão. Alguns jovens costumam pôr os
chinelos no chão e sentar encima deles, para não estar em contato direto com o chão.
310
algemas167, fora do uso de fato delas para sair e entrar na unidade 168 e em alguns
momentos de conflito. A justificativa, mais uma vez, é a Segurança, pois, com as mãos
para atrás, os agentes podem ter mais certeza que os jovens não vão os atacar.
Jhosivani apontou que “não acho errado não, acho certo, porque tamos preso, né, pra
segurança deles mesmo, andar com a mão pra trás, pra eles mesmo se sentir em
perigo, que vai que estamos com alguma coisa na mão, uma coisa assim” e “a cabeça é
normal, ter que andar com a cabeça baixa é normal, é igual quartel, só que é mil vezes
pior que quartel”. A ordem de abaixar a cabeça inclusive foi encenada na apresentação
de teatro que os jovens fizeram como desdobramento do primeiro Curso, quando
desempenhavam papéis de agentes, que insistiam nessa postura corporal.
Uma profissional que trabalhou em uma unidade de semiliberdade apontou que a
cabeça abaixada, o cabelo raspado, as mãos para atrás e a “roupa que fede” a
chocaram muito quando foi transferida para uma unidade de internação, chegando a
fazer com que se sentisse “em Auschwitz”. Para Machado,
167
Esta imagem me marcou tanto que, tempo depois, andando pela cidade, quando percebia que um
jovem estava com as mãos nessa posição, ficava imaginando que ele tinha passado pelo Degase.
168
Este tipo de conduta foi muito mais chocante no início do campo, e fomos ao longo do tempo nos
“acostumando” a elas de certa formam processo que vivem alguns/mas profissionais também afirmando
a naturalização ser condição para continuarem ali.
311
Adán: isso aí é, como, regra da cadeia mesmo, pra mim isso daí é normal. Já se
acostumei. Lá no XXX [outra unidade] é pior, é duas mão, cabeça abaixada, lá
é oprimição. Pô! Lá é oprimição mesmo. Lá, tipo assim, se tu olhar pro lado, tu
apanha. Lá é foda”.
Jimena: e aqui não?
Adán: aqui não acho, não. Aqui os funcionário é mais de dar papo, se tiver
problema eles agride, mas eles são mais de dar papo. Errou uma primeira vez,
aí dá um papo, errou uma segunda, aí como, aí já não tem conversa, eles
agride.
Jonas: que meu colega passou por aqui uma vez, só que ele ficou lá no XXX.
Como que eu posso dizer? Ele ficou lá, não tinha nada, só ficava preso dentro
do alojamento, ninguém chamava pra nada, é uma coisa, entendeu? Ninguém o
chamava pra nada, tipo assim, lá não tinha escola, tipo assim, funcionário te
batia, essas coisa assim, entendeu? Ele foi pra lá por causa que ele rodou no
tráfico de droga.
Gabi: aqui não tem isso?
Jonas: não. Aqui já sai mais, entendeu? Aqui tipo assim, posso falar, é só um
centro. Eu pensei que aqui era cadeia mesmo. Tipo assim, aqui é só um centro
de menor. Tipo assim, você vem aqui dentro pra refletir naquilo que você fez. E
o que você não fez, e você tá sendo acusado, entendeu?
[...]
Jonas: quando você chega aqui, tipo assim, “ah! Os agentes são isso, os
agentes são aquilo, os agentes são ruins, eles vão te bater, à toa”, mas quando
a gente chega aqui, vê que os agentes são muito tranquilos. Muito tranquilos,
muito tranquilos
Jorge Aníbal relatou ter passado muitas violências em outra unidade, ao ponto
de a família chegar para visitar, ele estar marcado corporalmente e não poder falar a
verdade porque os agentes “ameaçam de morte”, e então inventar que foi briga entre os
jovens169, enquanto no CAI nunca presenciou violência por parte dos agentes. No
entanto, Gabi ficou muito impactada com o fato de que, no momento da entrevista, ele
tinha que dormir no chão usando um único lençol, pois não tinha colchão, o que ele não
percebia como uma extrema violência do Estado. Por sua parte, Alexander aponta:
ah, aqui tem que botar a mão pra trás, mas não precisa ficar de cabeça baixa.
Tem funcionário que fala ‘levanta a cabeça, tu não tá oprimido’, mas daqui a
pouco tem outro ‘baixa essa cabeça, pá, pá, pá’. Se o funcionário falar pra
baixar a cabeça, vou baixar não, não tô com torcicolo (risos).
169
Esta prática também é relatada pelo Movimento Moleque (CUNHA, SALES, CANARIM, 2007).
312
170
Foi relatado, no início do campo, que uma jovem transexual também tinha tido o cabelo raspado. No
entanto, como já apontei, mudanças têm acontecido nesse ponto.
313
Jonas: Eu falei pra ela não trazer, pra ela não entrar
Gabi: porque?
Jonas: pra falar a verdade, eu não... é uma experiência que eu não quero que
ela... tipo assim, ela é uma criança, nem sei quantos meses ela tem, ela nasceu
em outubro. Cinco meses já. Ela vai olhar pra um lado, vai olhar pro outro, e vai
ficar pensando “o que que eu tô fazendo aqui?”
visível para as familiares. Nesses dias, eles também devem ter cuidado com o
cumprimento do short e para não deixar partes do corpo, como a barriga, aparecerem.
Essas regras, novamente, são apresentadas como criadas pelos jovens, enquanto a
instituição-estabelecimento as legitima com a finalidade de manter a Segurança, que se
vê ameaçada de conflito entre eles caso um as descumpra. O não questionamento das
regras dos jovens e seu patrulhamento acaba parecendo uma trava para o processo
pretendido da socioeducação, que, segundo um gestor do Degase, implica “educar para
a sociedade”.
Como questionado por alguns jovens inclusive em eventos públicos, eles são
proibidos de usar cabelo de pista, tendo sua cabeça raspada e deixando-a conforme “o
padrão”. Embora agentes do Sistema saibam da proibição desta intervenção no corpo e
concordem com esta perspectiva, na prática muitas vezes o corte é feito, sob a
justificativa de desidentificar as facções e conter eventuais epidemias de piolhos. No
entanto, podemos entender esses penteados, incluindo o corte do Jaca, as luzes e
outros que os jovens relataram, como uma expressão estética171 não violenta com
grande significado para eles, o que fez vários solicitarem curso de cabelereiro no CAI e
notarem a mudança de penteado de um agente, que inclusive recebeu várias
sugestões.
Apesar dessa proibição, vemos o estabelecimento de marcas corporais
executadas pelos próprios jovens no sentido de uma reafirmação estética em um lugar
massificador, como deixar as unhas grandes ou fazer tatuagens, prática esta que pode
sugerir uma marca eterna de uma temporalidade aparentemente efêmera e, com isso,
uma inscrição de uma determinada experiência que, embora se pretenda esquecer, fica
marcada em uma forma singular e reconhecível. A maioria dos jovens tatua nomes de
mulheres da família, como mães, avós e irmãs, ou mensagens religiosas. Os métodos
são variados: derreter escova de dente, afinar grampos e usar chinelos derretidos como
tinta,
Bernardo: ah, fiz com tinta, faço tinha caseira aqui na cadeia
Jimena: com que?
171
Esta reflexão foi realizada por Marcos Nascimento.
315
Bernardo: ahh, tipo assim, não tem esse chinelo? Pego o chinelo, corto ele
novinho, pego a quentinha essa que nós come, taco fogo, aí aquilo dali, ela vira
uma fumaça, que vai subindo tipo como se fosse um vapor, aí eu fecho ela.
Nisso, que quando tira a quentinha, por dentro fica todo preto, churrasco,
churrasco ela, aí tem esses desodorante, esses desodorante que tem aqui na
casa, rollon, eu tiro o líquido dele, coloco ali e formo a tinta
Jimena: caraca, como você descobriu isso?
Bernardo: ah, é de cadeia
Jorge Antonio disse: “nós faz agulha mesmo. Pega um cotonete, queimava um
cotonete, aí ficava a agulha, aí nós fazia a tinta com chinelo, nós queimava um chinelo,
deixava na quentinha e grudava. Aí nós raspava, e botava o rollon, aí fazia a tinta”.
Jhosivani relatou que fez “com papel alumínio. Fui só raspando e raspando, aí ficou em
carne viva e depois saiu a casca e fui arrancando a casca”, e mesmo tendo doído, não
infeccionou porque “meu sangue é bom”. Carlos Iván contou que “saí que nem um
maluco, fazendo. Chegando na pista vou fazer direitinho, porque aqui na cadeia, o cara
fez e saiu errado. Na pista vou fazer certinho”. Já o caso de Alexander, que fez em
outra unidade, teve complicações:
suficiente para secar a roupa, e tinham que usar a roupa úmida. Nesse sentido, foi
curioso que durante o campo, mas não necessariamente nele, fui atingida por uma
micose, o que, por sinal, me provocou uma imensa empatia por esses jovens. Diante
disso, algumas profissionais de saúde, às quais solicitei apoio, falaram “tá parecendo
adolescente do Degase”. Dessa forma, é identificável como a doença é característica
das condições desse lugar.
É importante destacar como esse tema foi trabalhado por várias profissionais
durante o nosso percurso, fomentando constantemente práticas de higiene nos jovens
apesar das condições de precariedade e de práticas como a “parede do cuspe”, tais
como incentivar a limpeza rotineira dos alojamentos e ensiná-los a lavar roupa, pois,
como apontado por elas, alguns estavam lavando no vaso sanitário, o que foi
confirmado por um jovem. Essa iniciativa me pareceu extremamente potente, no sentido
em que promoveu nos jovens uma prática de cuidado de si que os homens geralmente
não realizam (SCHRAIBER; FIGUEIREDO, 2011). Também é interessante pensar de
que forma os agentes socioeducativos, ao serem as pessoas que mais convivem com
os jovens, são muitas vezes os que percebem, escutam e/ou reportam problemas de
saúde dos jovens, exercitando uma função de cuidado e tornando-os, como apontou
uma profissional, “ponta na linha do cuidado”, o que visibiliza outras dimensões que
compõem e contrapõem espectros diversos de performatividades.
Outros exercícios interessantes nesse sentido eram realizados na atividade de
teatro, onde papeis e cenas que os jovens desempenhavam desestabilizavam
performatividades masculinas mais rígidas, a partir da experimentação do corpo 172.
Apesar do reconhecimento dessa atividade atualmente, chegamos a escutar a uma
profissional que está há muito tempo no CAI, dizendo que antes era criticada por
colegas por ser “tudo boiolinhas, bailarinos”.
172
Também foi apontado que no teatro é possível trabalhar com grupos misturados de jovens, incluindo
várias facções e outras classificações. No entanto, foram relatadas algumas restrições, como a
impossibilidade de que os jovens apresentassem personagens sem camisa, por exemplo, indígenas ou
capoeiristas.
317
Jorge Aníbal: ah, acho que nem tinha que se masturbar aqui
Gabi: ué? Tu vai ficar aqui meses e meses sem se masturbar?
Jorge Aníbal: mas todo dia tem mulher na casa! Aí nas outras mulheres a gente
pode pensar? E na mãe não?
Gabi: mas qual a diferença na hora de você se masturbar? Você sabe o que tá
na cabeça do outro?
Jorge Aníbal: ah... sei lá, né? Na minha não vai passar, mas...
Gabi: ué, mas o outro vai saber que tu tá pensando na mãe dele?
Jorge: ah, sei lá, né? O outro não vai saber, só se tu falar, mas sei lá
Já alguns jovens relataram que outros “têm vício” e “ficam fazendo cinco ou seis
vezes por dia”. Quando Gabi perguntou, disseram que se masturbavam no banheiro,
um de cada vez. Em outros grupos, disseram que usam como inspiração os filmes
Corujão ou fotos de revistas. Um profissional relatou ter escutado sobre a existência de
campeonatos de masturbação entre os jovens, onde quem ejacular primeiro, perde.
Jonas relatou que “TV fama passa várias atrizes, dessas atriz nua, sabe? Aí a gente
olha. Olhou, filho, “ah, eu sou o primeiro no banheiro”, acabou”.
A prática da masturbação e as crenças relacionadas a ela apareceram bastante
na pesquisa, como já pudemos relatar. No entanto, nem sempre é abordada para se
318
173
Vemos aqui a reafirmação da categoria afetiva de “neurose” como intrinsecamente generificada.
319
Alexander: isso aí pra mim é besteira. É neurose. Os menor aqui bebem do meu
copo, querem saber neurose não
Jimena: aqui nesse alojamento?
Alexander: uhum
Jimena: porque você acha que aqui é diferente?
Alexander: porque aqui nós se entende. É sem facção, na tranquilidade. Não
fica vendo o que os outro fez, fica aqui dentro, convivendo
Jimena: você acha que essa neurose é mais de facção, então?
174
Alexander: é mais de facção
Jimena: bom, mas a homofobia tá em todos os espaços, né?
Alexander: é
[...]
Alexander: sei lá. A mente dos caras é: a única pessoa que pode chupar pau é
mulher. Homem se chupar pau é ralo. “Como, mulher pode chupar?” “Ah,
porque ela escova o dente, e tá novinha de novo”,
Jimena: e homem não escova o dente?
Alexander: é. Eu falo “mas eu escovo o dente”, “ah, continua de ralo”
Jimena: eu acho ridículo
174
Como sinalizado por Carla Mattos, vemos aqui como a facção é produtora de neurose (violenta e
machista) e de pacificação.
320
Alexander: cara, esses caras são paranoicos, meu deus do céu (risos). Eu falo
“cara, acabei de escovar os dentes, não tem nada de ralo”, “ah, é sim”
A fantasia de estar com duas mulheres está no imaginário de grande parte dos
homens heterossexuais, incluindo alguns profissionais. Cesar Manuel, contudo, fez uma
ressalva, falando que seria ótimo “desde que elas não vierem de vacilação”, que, como
responderam a Gabi, significaria “usar o dedo”, pois aí “ela morre”. Em outro grupo,
175
Outros termos usados, além de viado e mancão, foram baitola, bichona, vira-mão, homensexual,
mandado, divo e kit.
322
também rejeitaram essa prática. Interessante ver, novamente, de que forma o corpo e
seus prazeres são explorados ou não a partir das performatividades masculinas.
Adán: Eu não tenho coragem de matar não, mas tipo assim, se for um cara
vacilão mesmo, estrupador, que tem ai, tipo tem um menor que estrupou uma
garota de quatro anos, acho que se eu pegar ele na pista, eu, pô, dou muito tiro
na cara dele. Se eu ficar tranquilo, capaz de eu falar só com os menor da boca
pra pegar ele pra eu ficar tranquilo, mas se eu sair, voltar pro crime, e eu ver
ele.... Tem outro que estrupou a própria irmã, bagulho doidão. Sabe porque eles
faz isso? Porque não tem desenrolado com as mina. Não tem desenrolado
papo com as mina pra pá. Não tem desenrolado, aí tem que estrupar.
Jimena: você nunca passou por isso, de querer transar com uma menina e ela
falar que não?
Adán: não. Se falar que não, não é não. Mulher é igual biscoito, nós dá pra uma
vai uma e depois vêm dezoito.
176
Podemos ver isso no caso sobre o guarda que abusou sexualmente de uma menina no abrigo, o que
provocou no Magdaleno (17 anos) muita raiva, ao ponto de ir bater no guarda, se sentindo na
necessidade de proteger a menina, que ele considerava irmã. Um profissional também relatou ter
conhecido um jovem que estava cumprindo medida por ter assassinado o tio, que abusava sexualmente
dele.
323
Por outro lado, como já foi discutido, quando conversamos com os jovens sobre
estupros de mulheres na pista, observamos que para eles o significado do que nós
consideramos estupro, inclusive estupro coletivo, não é igual, pois as mulheres alvo
dessa prática são piranhas. Esta discussão também foi levada ao campo das relações
sexuais entre os jovens no CAI, ao pensar a existência ou não do consentimento delas,
o que foi apresentado como um grande desafio.
Alguns/as profissionais relataram que no momento em que o sexo não é
consensual, as denúncias são rapidamente realizadas. Inclusive, um jovem nos relatou
ter sido estuprado e ter realizado uma denúncia, caso que foi levado à delegacia. Ele
também mostrou que para ele é muito nítido quando é consensual e quando não é,
apesar de ter sido criticado por alguns profissionais, que insistiam que ele queria.
Porém, outros/as profissionais disseram ser difícil diferenciar quando é consensual ou
não e apontaram haver uma subnotificação de casos, pois muitas vezes os jovens não
325
denunciam, por medo das retaliações. Um profissional também apontou ser difícil que
as relações entre os jovens sejam só por desejo, pois muitas vezes elas acontecem por
influência ou como moeda de troca, o que sugere certa concepção sobre o sexo entre
homens e seus motivos.
Como comentamos anteriormente em relação ao que dizem sobre as mulheres,
a violência sexual é muitas vezes justificada quando o jovem “já deu para um, tem que
dar para todos”. Como expressado por Felipe, as fronteiras são tênues e perpassadas
por naturalizações em termos das instituições-forma machismo e
cisheteronormatividade:
Julio Cesar disse que foi aos 11 com a prima de 18: “a minha mãe morreu e
minha prima ia cuidar da minha irmãzinha, e um dia me puxou ele pra debaixo do
cobertor e transamos”. Cesar Manuel relatou “minha tia de 27 me apanhou quando
tinha 11 anos. Ela estava tomando banho e pediu para eu passar a toalha, e aí ela me
puxou pra dentro do box. Eu já olhava para ela, e ela para mim. Depois disso
transamos mais algumas vezes”. Cutberto relatou ter se envolvido sexualmente com a
madrasta, para implicar com o pai, que ele detesta.
177
Desde o início, nos perguntamos se todos os relatos a respeito da iniciação sexual eram verdadeiros,
pensando nas performances que eles acionavam nessa interlocução conosco. Também, um profissional
apontou que ele acreditava que alguns jovens que eram virgens falavam que não eram devido às
pressões dos outros. Um deslocamento aconteceu nesse sentido, que nos fez focar nas narrativas,
independente da sua veracidade, para pensar, a partir delas, no que os jovens querem expressar e o
que faz sentido para eles, que neste caso, se refere à iniciação sexual como parte da afirmação da
performatividade masculina.
328
A questão das mulheres mais velhas, de até 40 anos, algumas das quais tinham
funções de cuidado com eles e que os provocavam “passando de calcinha ou de
toalha” na sua frente, foi interessante, pois eles relatavam que elas eram “mais
experientes” e por isso melhores para essa iniciação. No entanto, também denota uma
naturalização de que os homens, independentemente da idade, vão aceitar o sexo,
diante do qual um ato como “puxar pra dentro do box” por uma mulher mais velha não
seria considerado uma coerção sexual, assim como pressões para ter relações não são
consideradas violência. Bernardo disse que o irmão mais velho o chamou para um
“puteiro clandestino, puteiro é onde tem mulher que vende o corpo, sabe? Aí, pá, filha,
eu falei pra mulher que eu era virgem, pá, a mulher como, me deu um dia todo pra
mim”.
Alexander traz um relato interessante:
Jimena: e quando foi a primeira vez que você se relacionou sexualmente com
uma menina?
Alexander: tava com 13. Ela era experiente, conheci na escola, trocava ideia na
sala. Aí acabou em que ela me pediu em namoro, e eu, ah, tranquilo (riso). Aí
começamos a namorar, e rolou. Aí a minha mãe no outro dia “ah, me conta o
que aconteceu” e eu “po, mãe, não posso estar contando essas coisas não”,
“conta, conta, conta”. Ela ficou a semana inteira querendo saber, aí eu contei,
ela “tudo bem”, pá. Mas só foi saber que me envolvi com homem quando já tava
no sistema.
Jimena: e como foi?
Alexander: iihhhh. Começou “não!!, não meu filho, não pode fazer essas coisas
não!”, e eu “mãe, já acontecem essas coisas, ô, desde os 12 anos, e a senhora
não sabia
Jimena: e o que que ela disse?
Alexander: ela ficou desesperada, queria dar uns tapa. E minha irmã caçula “eu
sabia”, “você sabia e não me contou!!”, “não, pediu pra mim guardar segredo!”,
“ah, sou sempre a última a saber”, “ah, a minha irmã sabia, meu pai sabia, só a
senhora que não sabia”
Jimena: seu pai sabia?
Alexander: sabia
Jimena: você contou pra ele?
Alexander: não, me pegou no flagra
Jimena: e aí?
Alexander: “que que tá acontecendo aqui?”, “ah, o que o senhor tá vendo” e aí
ele “ah não”, aí olhou, “caraca”, e eu “é, pai”, e ele olhou com a cara assim,
“que isso meu filho”, aí eu fui, conversei, ele entendeu, “tu quer fazer, é por sua
conta, mas se previna”
Carlos Lorenzo disse que foi no abrigo, tinha 11 anos e foi na casinha de
bonecas, com uma menina, e que viu sangue, e que nunca mais ele quis. Aí todo
mundo criticou ele e rapidamente mudou de discurso, dizendo que “nunca mais quis
parar”.
Carlos Iván relatou:
Emiliano disse: “ah, tipo assim, ah, foi, com 8 anos eu pensava que já tava, mas
nem tava ainda...depois disso a primeira vez foi, que foi mesmo, foi com 13 anos”.
Muitos apontaram que a pornografia era a maior referência e inspiração para
saber como agir na relação sexual, tentando imitar o que tinham visto em vídeos e
filmes, e também as mulheres ensinavam algumas coisas. Christian Alfonso disse que
“ninguém nasce sabendo não, vai aprendendo”, Jonas apontou: “a primeira vez você
tem a sensação ‘será que vai dar certo?’”. Quando Gabi perguntou se a mulher tinha
gozado, Israel respondeu: “ah, eu acho que sim, porque ela... na hora... também pá...
tava se mordendo, se arranhando, acho que era porque tava sentindo prazer”. Gabi
perguntou se ele tinha perguntado: “perguntei não. Porque eu acho que ela tava com
vergonha. Porque ela era da mesma idade do que eu, treze, aí acho que tava com
vergonha”.
Alguns jovens também falaram sobre a perda da virgindade das mulheres,
dizendo que as jovens virgens “trancam as pernas, mas na hora desistem, sobem na
parede”, ou que “tirar a virgindade da mulher é encrenca”. Relataram que algumas
mulheres perdem a virgindade e depois começam uma vida sexual com vários homens,
enquanto outras “ficam junto” do primeiro parceiro. Bernardo disse que “tem muita
garota virgem que tá perdendo a virgindade pra Bandido. Pô, sem brincadeira, já peguei
várias garota assim, de 12, 13 anos, [...]. Tipo assim, eu já peguei muita garota virgem,
de 14 anos, 15 anos, novinha, que nunca fez, tipo assim, é a sensação sexual, filha,
que, sem brincadeira mesmo”.
O tema da iniciação sexual dos jovens foi polêmico no primeiro Curso com as/os
profissionais, que mesmo criticando inicialmente a sua precocidade, acabaram
reconhecendo que a “perda da virgindade” é um ritual importante nas trajetórias juvenis
(CORDEIRO, 2008), inclusive nas dos profissionais, e a sua precocidade aparece como
parte das características do agenciamento dominante da masculinidade (BARKER,
2008).
331
A partir dessa iniciação, as trajetórias sexuais e afetivas dos jovens são diversas.
Como já foi apontado, muitas trajetórias sexuais são marcadas pela “vida do crime”, não
só no sentido de terem mais mulheres, mas também de ter mulheres que se afastam
deles por “serem direitas”.
Alguns jovens têm uma parceira fixa e se relacionam ou não com outras, muitas
vezes, segundo eles, a partir de um interesse delas. Outros têm ou desejam ter várias
parceiras ou são solteiros, o que, por exemplo, consideram um problema na hora de
pensar a visita íntima, onde teriam que comprovar uma união estável com apenas uma
jovem, e “casar para isso não vale a pena, porque as mulheres hoje em dia não valem
nada”, ou “uma mulher só enjoa” ou “as mulheres hoje em dia são chatas, enchem o
saco”. Por sua parte, outros que têm relações estáveis de até três anos, afirmaram que
seria muito positivo.
Alguns namoram novinhas, outros, mulheres mais velhas, com relatos de
mulheres de até 35 anos, com até 16 anos de diferença, mesmo que tenham relatado
que muitas vezes é com as novinhas que gostam de sair para denotar certo status.
Alguns também relataram contratar prostitutas e um jovem relatou ser contratado para
ter sexo por homens mais velhos.
Outro ponto que surgiu a respeito das relações e a performatividade masculina
foi a reafirmação dos jovens de que os homens não se entregam emocionalmente às
mulheres. Miguel Angel disse em um grupo que ele ama a sua companheira, com quem
ele está há três anos, mas que não é apaixonado, e começou uma conversa com os
outros jovens sobre a diferença entre amar, estar apaixonado e ter sentimento. Carlos
Lorenzo disse que “amor verdadeiro é só o de mãe, o resto rola um sentimento e
passa”. Carlos Iván disse “meu coração é de pedra. Tipo assim, de pedra não,
desculpa, meu coração não é de pedra, mas não vou me apaixonar por uma garota. Eu
posso gostar da garota, mas se ela me fizer mal, eu tenho um, um dom, de desapegar
das pessoas rapidinho, eu me desapego muito rápido”. E Bernardo apontou:
332
Bernardo: não sinto mais nada não, filha, sinto mais nada não. É difícil de eu
me apegar com mulher, consigo me apegar com mulher não
Jimena: por quê?
Bernardo: ah, mulher tipo assim, pra mim, amar, mas tipo assim a mulher
vacilar comigo, perde tudo, vacilou a primeira vez, não tem mais chance não
Por sua vez, Emiliano disse que namorava “o amor da sua vida”, que “se não
fosse minha não podia ser de ninguém”, mas ao mesmo tempo transava com outras
mulheres, incluindo a prima. Mauricio apontou que estando privado de liberdade, toda
vez que escuta um pagode ele vê a foto da namorada e chora, frente ao que o resto do
grupo implicou com ele, dizendo que tinha uma “dona”. Christian Alfonso também
relatou ter se apaixonado por uma jovem que está na unidade socioeducativa feminina,
e na nossa atividade pediu para desenhar um coração com o nome dela e dele. Jesus
disse que uma vez que terminou com uma namorada, chorou durante uma semana,
“chorei porque eu gostava dela mesmo, queria ter um futuro com ela”. Jorge apontou
que
tipo assim, eu gostava dela mesmo, eu gostava de ficar junto com ela, ela me
178
chamava pra sair, conhecia a família dela, conhecia a minha família , ficava
junto mesmo, a gente ficou morando junto. Eu gostava, ficava perto dela. Tipo
assim, quando ela saia pra casa da avó dela, eu sentia falta dela, ligava pra ela,
ficava falando com ela no telefone, pá.
178
Conhecer a família da companheira e vice-versa apareceu como um elemento importante da solidez
dos relacionamentos.
333
explanadas, mas ia dormir com as quietinhas”. Mauricio relatou que transa com várias
jovens, mas que “não sente a mesma coisa” do que com a companheira.
Alguns relataram gostar de sexo “duro” “puxando o cabelo” ou “dando tapa na
bunda”, dando “porradinha de amor”, ‘chamando de cachorra”, “mordendo o lábio” ou
delicado, “falando no ouvido”, ‘beijando o pescoço”, “chupando o peito”, “dando prazer
para a mulher”. Em um grupo discutiu-se também sobre sexo oral, Jose Ángel disse que
não beija a mulher após o sexo oral, pois tem “nojo”, e Marco disse que também não
gosta, pois não gostaria de “saborear o espermatozoide”. Eles também disseram que
não gostam de fazer sexo oral “em mulher de pista”.
Jesus: ah, eu gosto de dar sexo oral. E gosto de receber também, mas não é
qualquer uma também
Gabi: qualquer uma que gosta de dar ou qualquer uma que gosta de receber?
Jesus: qualquer uma que gosto de receber, porque tipo assim, eu não sei o que
elas, tipo, não sei qual elas, qual foi a trajetória delas pra ela passar até onde
chegou
Gabi: em que que isso interfere, me explica
Jesus: mm sei lá, interfere, interfere porque eu vou fazer sexo oral com ela
Gabi: tu vai botar a boca lá e não vai saber onde elas passaram, ué, mas elas
também podem botar a boca aí e não sabem por onde você passou, né?
Jesus: (risos)
Gabi: mas aí tudo bem?
Jesus: (risos) mas eu sei onde eu passei
Gabi: mas elas não, né?
Jesus: não
Gabi: e aí como é que você diferencia? Qual é a mulher que você pode fazer
sexo oral e qual você acha que não pode?
Jesus: mulher de casa
Gabi: me explica, o que que é ser uma mulher de casa?
Jesus: ah, a mulher que tu, a mulher que é certa, que tu pega sempre
Gabi: aí essa pode?
Jesus: pode
Gabi: e a mulher de rua? Você não gosta?
Jesus: não, gosto, só que muitas das vezes não, muitas das vezes era baile,
final de baile
Gabi: quando você tá transando com uma menina, você se preocupa se ela
sente prazer? Você sabe se ela sente prazer, se ela vai gozar?
Felipe: eu fico preocupado comigo
Gabi: você não tá nem aí se ela gozou ou não? Você nem pergunta?
Felipe: não
Gabi: e quando você transa, você se preocupa se tá sendo bom pra menina
também? Se ela tá tendo prazer, se tá gozando?
Jesus: me preocupo
Gabi: você sabe? Você pergunta pra ela?
Jesus: ah, vou te falar, às vezes pergunto, às vezes não pergunto
Gabi: por que? Depende de que?
Jesus: eu pergunto, se foi bom, pá, porque como, se ela falar pra mim que não
foi bom, eu vou falar “ah, não foi por causa de que?”
Gabi: porque elas tem direito
Jesus: é, mas eu faço direito
Gabi: mas você pergunta na hora da relação? Qual a melhor posição pra ela
gozar, se ela tá gostando?
Jesus: não. Eu descubro (risos)
Gabi: você tem certeza que as mulheres que transaram com você sentiram
prazer e gozaram?
Jesus: absoluta não, mas eu tenho
Gabi: você acha?
Jesus: eu acho
Gabi: por que você acha?
Jesus: ah, porque ela demonstra
[...]
Jesus: Uma vez tava lá no morro, final de baile isso, aí eu tinha falado com uma
mina que é mais velha que eu, eu tinha 17. Aí ela tinha falado comigo, eu tinha
dado uma cantada, sempre que passava eu dava uma olhada, aí eu fui lá e
cantei ela, dei uns papo nela, pá, meio embriagado, dei uns papo nela, ela falou
que não, que ela tinha uns 30 anos, vinte e poucos, por aí, que não, que eu
tinha idade pra ser sobrinho dela, que eu não bancava com ela. Fiquei tranquilo,
aí passou-se um dia, aí final de baile, tava de plantão, aí foi ela e me chamou
pra dormir na casa dela, no outro dia, saí de plantão, peguei as carga, aí fui na
casa dela, ela que falou comigo, aí fui na casa dela, eu tive relação com ela, aí,
como, dei umas namorada com ela e ela gostou, fiz ela gozar. Aí ela, como
Gabi: como você sabe que fez ela gozar?
Jesus: po, vou te falar (risos)
335
Gabi: como?
Jesus: na hora assim, eu senti tipo um negócio caindo encima de mim, e
também quando ela acabou, ela falou “caralho, ninguém nunca”... eh, ela falou
“ninguém nunca mais me fez gozar assim”. E falou, tá ligada? Pras amigas dela
“esse menino aqui, com a cara que ele tem, assim, de bobinho, ele é muito
gostoso”, falou na minha frente ainda, eu perguntei pra ela, “fala pra ela”, pá,
ela falou na minha frente. E também, depois de um tempo, eu na boca de fumo,
aí veio uma amiga dela, “me dá teu whatsapp” aí eu “mas qual foi”, “uma amiga
minha falou que tu é muito gostoso, pá, eu queria saber” aí eu “á, dou meu
whatsapp mesmo”, mas não tive relação com ela não
Gabi: você gostou do elogio que você recebeu da outra?
Jesus: claro!!
Gabi: por que?
Jesus: ahhh, porque? Porque foi uma prova, porque ela achava que não era,
mas se enganou
Gabi: achava que tu não ia dar conta
Jesus: é, mas se enganou
Gabi: e pra você é importante saber que a mulher sente prazer quando transa
com você?
Jesus: claro, caso que se não, ela não vai querer de novo. Pô, não tem graça,
se a mulher não sentir prazer no sexo
Jorge: tipo assim, namorar, você tá sentindo alguma coisa pela pessoa, você tá
junto com ela, tá gostando dela, pá, você vai ter relação com ela, você vai fazer
relação tipo assim, mais amorosa, mais sentimento, pá. Agora, ficar é mais tipo,
a garota, pá, só quer ficar com ela na hora que tu quer mesmo, se ela quiser, se
tu não quiser, você só vai fazer sua vontade, não vai fazer a vontade dela, vai
fazer sexo só por fazer mesmo, por sua vontade, pá. E tu gostando de uma
pessoa, namorar, já é diferente, né, tipo assim, tu vai fazer sexo, tu vai fazer
porque tipo assim, tu vai ter um sentimento, pá, tu vai fazer a vontade dela, não
vai ficar nessa de “acabou, pá, gozou, gozou, pá, já foi”, vai fazer a vontade
dela, pá. Namorando já é diferente, pá, tu quer ficar perto da pessoa, pá. Tu
quer sair pra algum lugar, tu sente falta da pessoa, tu divide tuas opiniões com
ela
relatou, com orgulho, que “as gringas doidonas na Lapa vão e pegam nós”, diante do
qual Abelardo disse: “quero te ver pegar mulher tranquila, papo referente”.
Também perguntamos sobre uso do Viagra, ao que responderam que não era
necessário, que eram “muito potentes”, ou “muito novo não broxa”, que “isso é para os
coroas”, “não sou disso não, nunca, não preciso”, “se gostamos da mulher, não tem
porque ficar broxa” e que se ficarem nervosos é só “‘fumar um baseado e partir pra
cima”. Mauricio disse que quando vê uma - e faz o símbolo da vagina com as mãos - já
fica feliz e não precisa de mais nada. Alguns falaram de outros tipos de medicamentos
usados para o sexo, tais como uma “bolinha que estoura dentro da mulher”, ou uma
pílula “cor de abóbora” ou uma “balinha que acelera o coração”.
Em uma atividade com profissionais, uma delas perguntou aos jovens se eles
sempre queriam pegar qualquer mulher, e um deles falou que não, que “as feias” não.
Outra profissional perguntou se eles nunca tinham “ficado broxa” e todos riram e
refutaram, mas ela provocou, dizendo que assim como as mulheres podem não querer
em um momento, os homens também. A surpresa dos jovens frente a isto indica uma
naturalização da impossibilidade de que os homens sejam alvo de coerção para
atividade sexual, diante do seu “incontrolável” exercício ativo da heterossexualidade,
onde “a tentativa de recusa ao intercurso sexual coloca os rapazes no papel inverso ao
prescrito para eles no jogo de insistências (masculinas) e resistências(femininas) que
pauta as interações sexuais entre os gêneros neste cenário, o que pode implicar em
certa feminilização, o que é capaz de pôr em risco sua honra” (CORDEIRO, 2008, p.4).
individuais com os jovens, perguntei a eles se já tinham passado por uma experiência
de racismo. A maioria deles disse que não, como Carlos Iván (16 anos, negro):
Ah, eles ficam me chamando de vagabundo, né? Uma vez passou um:
-vai lá, seu vagabundo!
-sou vagabundo não, sou trabalhador, eu trabalho
-trabalha onde?
-trabalho na oficina, ali na praça
-você tá mentindo
-me bota na viatura e vamos lá
Aí fomos. Quando chegamos, meu pai ficou desesperado,
-o que você tá fazendo na viatura?! Que que ele fez, seu policial, que que ele
fez?(imita voz de quem está chorando)
-não, só veio confirmar se ele trabalha aqui mesmo
-esse é meu filho, trabalha comigo (imita voz chorando)
E eu: -não falei, seu policial?
Aí ele: -que foi?
E eu: -tava passando lá, me parou, falou que era vagabundo, falei que era
trabalhador, que trabalhava com o senhor, que podia me botar na viatura pra ir.
179
Um caso emblemático desta questão é o de Rafael Braga, jovem negro empobrecido que tem
provocado muita indignação e mobilizações no Brasil, ao ter sido preso apenas por portar Pinho Sol no
contexto das manifestações de 2013, com provas forjadas e um processo por demais injusto. Por outro
lado, durante a escrita desta tese, políticos de altos cargos no estado do Rio de Janeiro eram presos,
recebendo um tratamento bastante diferenciado, levantando inúmeras discussões na opinião pública
sobre o sistema de justiça e sobre como os diferentes tipos de criminalidade estão imbricados com
moralidades, racismo, senso de justiça e impunidade.
180
Bárbara Rocha, integrante da equipe, está atualmente desenvolvendo uma pesquisa sobre abordagem
policial a homens jovens negros, mostrando de que forma o escrutínio direcionado a esses corpos faz
parte do controle cotidiano.
339
181
Um jovem também relatou um acontecimento em que um guarda civil abusou sexualmente de uma
jovem de um abrigo onde ele estava. Assim, vemos as instituições-forma (machismo, racismo)
atravessando fortemente as corporações policiais.
340
que importa no caso dos homens é ter dinheiro. Em outro grupo, disseram que não se
importavam que fosse gorda, ainda mais neste momento em que estavam há tanto
tempo sem ter relações sexuais, e que quando saíssem da unidade, iriam transar com
qualquer uma, desde que fosse “limpinha” e “cheirosinha”. Contudo, Cutberto disse que
tinha gostado mais da mulher magra na foto, e que inclusive a usaria como inspiração
para o dia de quebrar. Outros disseram que “o que importa é o coração e a cabeça, não
o corpo”, o que Fernando usou para provocar, dizendo que então podia ser uma
travesti, já que o corpo não importava: não, disseram, tinha que ser uma mulher cis,
apesar deles não terem usado esse termo.
A questão de estar arrumada aparece em outros momentos, como na fala de
Bernardo: “mulher, filha, mulher, vou te falar, pode ser a mulher que chega na boca de
fumo, sem ter relação sexual, mas quando chega assim pô, tal tal dia no baile, quero
ver tu do meu lado, dou dinheiro pra fazer unha, unha do pé, comprar roupa, estar
bonita, fazer cabelo, brinco, qualquer coisa, batom, filho, tipo assim, qualquer coisa,
filho, ela pode ser feia, filho, mas se tá bem arrumada...”
Em um grupo discutiram se era bom ou indiferente transar com mulheres com
piercing no grelo – clitóris. Em outros debateram sobre transar com mulheres
menstruadas, o que em um grupo foi considerado nojento, diante do qual eu disse que
nós mulheres passamos por isso cada mês e não achamos nojento, ao que eles
responderam “nós sim”. Antonio contou que uma vez uma jovem não disse que estava
menstruada, e quando ele a viu tirando o absorvente, ficou chocado. Em entrevista
individual, Carlos Iván ficou tão impactado com a possibilidade disso acontecer, que me
perguntou se eu achava legal transar menstruada, pois ele achava feio. Já em outro
grupo, falaram que a mulher estar menstruada não representava um problema.
Ao pensar nos dispositivos de raça e classe, além das vivências de
criminalização abordadas anteriormente, foi interessante observar de que forma eles
apareceram bastante em termos de corpos desejáveis, ao se referirem às mulheres
com as que se relacionam e a eles mesmos, como no relato de Jorge Antonio:
Jorge: No começo foi difícil mesmo, minha família aceitar que eu tava ficando
com uma mais velha. Minha mãe falou assim pra mim: “ela só quer ficar contigo
porque tu é novo, pá, porque tu é bonito” e eu “não, mãe, não é isso não”, aí
como, minha mãe fala que ela não é muito bonita não, mas eu acho ela bonita,
341
aí a minha mãe falou assim “po, tu quer ficar com ela? Ela é feia pra tu! Ela é
feia, tu tem que ficar com umas menina da zona sul”, minha mãe falando, só
que ela morava em comunidade. Minha mãe falando “tu tem que namorar
menina da zona sul, aquelas menina de olhos azul”, só porque meus olhos é
claro também. Aí eu, como, se eu gostar da pessoa realmente, pode ser feia ou
pode ser bonita
Jimena: ela é negra?
Jorte: não, ela é tipo morena, da minha cor, um pouco mais escura ainda. Mas
eu fiquei com ela não por causa que ela é bonita, é porque eu gostei dela, do
jeito dela agir, do jeito dela ser, eu gostei dela
182
Outra acusação nesse sentido foi quando Carlos Lorenzo disse que “cabelo rastafári é feio, é cabelo
de maluco”.
342
Também foi perceptível que o encontro dos jovens conosco revelava de que
forma os dispositivos raça, gênero e sexualidade se articulam. Por exemplo, se dirigindo
a Sara, estagiária do IFRJ, Saúl disse que “morena que nem ela mexe comigo”. A
entrevista com Bernardo foi muito instigante nesse sentido, pois ao longo da entrevista,
ele voltava a falar coisas nesse sentido:
Bernardo: Eu com 14 anos fiquei com uma mulher de 35. Linda, linda, linda,
olhos azuis, loira, branquinha, toda bonita, toda preparada
Jimena: você acha mulher branca mais bonita?
Bernardo: ah, me amarro na mulher branca, sem brincadeira
Jimena: porque?
Bernardo: ah, tipo assim, tem mais opção, sabe? A mulher branca é, assim,
mais afetiva. Me amarro, sem brincadeira, tipo assim, eu me amarro em mulher
morena, mas a mulher que eu mais gosto é uma branquinha, loirinha
[...]
Bernardo: po, não paro mais com uma pretinha não, morena não, filha, agora só
branca, filha, na pista, brincadeira
[...]
Bernardo: meu bagulho agora é arrumar uma mulher certinha, uma loirinha,
branquinha, ah, sou apaixonado por mulher de olho verde, sem brincadeira
malhados, mas que mesmo assim, o que conta é “saber ganhar dinheiro”, e que as
mulheres também gostam de segurar armas, especialmente fuzis.
Em um grupo, a partir dessa foto, perguntamos o que eles achavam que as
mulheres consideravam atraente. Martin (17 anos, negro) disse: “não adianta ter corpo,
tem que ter papo”. Mauricio (18 anos, negro), que parecia ter um lugar de líder,
argumentou que "pra pegar mulher vale o bolso, porque mulher gosta de uma moto,
gosta que leve em um restaurante". Martin continuava defendendo que podia conquistar
através da conversa, até que Christian Alfonso disse: "você é muito mais fácil chegar
numa menina, porque você tem dinheiro, e dá pra ver no dente!", Martin perguntou: "e
por que no dente?", Christian Alfonso disse "porque você tem aparelho!"183. Depois
disso, alguns no grupo expuseram outro jovem, dizendo que estava usando aparelhos
falsos. Desta forma, um certo tipo de intervenção corporal, ou a aparência de tal, se
sugere como um elemento de status socioeconômico, que delimita características
atraentes para as jovens.
Em uma roda de conversa desdobramento do primeiro Curso, José Eduardo, ao
falar de outro jovem, disse que tinha muito sucesso, pois era “bonitinho que nem eu”.
Carlos Iván apontou que as jovens gostam de ficar com ele não só porque é do tráfico,
mas porque dança funk e é famosão. Já Bernardo, sinalizou que
já parei com várias garota, garota da igreja, po, que tipo assim, que tive um
acidente, esse negócio aqui no meu rosto foi um acidente de fogo com álcool,
mas tipo assim, po, já parei com várias garota bonita, todas elas garotas que
param pra ficar comigo, porque gostam de mim pelo jeito que eu sou, não
gostavam porque eu tenho dinheiro não, porque eu mesmo não tando no tráfico
de droga, filha, paro com qualquer garota aí, filha, paro, desenrolo qualquer
garota aí, consigo arrumar uma namorada
[...]
não tenho nem vontade de fazer mais plástica mais, isso aqui não me dificulta
pegar mulher na pista não
183
De fato, esse jovem aparentava ter uma maior escolaridade, usando linguagem mais elaborada, talvez
devido à classe social percebida por Christian Alfonso no tratamento odontológico.
344
184
Isto não é específico do Degase, pois a população em privação de liberdade tem sido considerada uma
população chave no contágio destas infecções no contexto mundial (World Health Organization, 2014).
345
185
Foi apontado que essa testagem é um direito e não deve ser obrigatória, o que não é consenso entre
as equipes.
186
Tanto ele quanto os jovens que dividiam alojamento com ele e profissionais relataram a dificuldade que
ele estava tendo para lidar com o fato de viver com HIV. Na nossa entrevista, ele mudava
completamente de postura e narrativa ao falar sobre esse tema, revelando o quanto afetava ele.
187
Alguns jovens também relataram falecimentos de familiares e ex-companheiras por HIV.
188
A Caderneta do Adolescente, tendo uma versão para homens e uma para mulheres, aborda várias
temáticas, tais como adolescência, responsabilidade, higiene dental, saúde sexual e reprodutiva,
drogas, alimentação. Um grupo de gestoras nos informou que o Sistema tem dois anos de trabalho com
ela, e que está sendo implementada nas medidas provisórias, semanalmente, em rodas de conversa,
de modo que os jovens “já entram na internação com esse conhecimento ou voltam pra casa com ele”,
como uma “célula que se planta no jovem”. A equipe trabalha com a caderneta em folha A3 para
trabalhar em grupo, e cada jovem leva a individual.
189
Os cartazes, do Ministério de Saúde, estão no anexo H. Confesso ter gostado mais do segundo, que
frisa no prazer, do que o primeiro, que me pareceu ter um tom moralizador, mesmo sendo
extremamente criativo e fazer uso de uma representação religiosa que pode dialogar com o contexto.
Igualmente, devo reconhecer a importância e relevância de ter colocado os cartazes na unidade.
346
garanti-la, o que, para nossa perspectiva, necessariamente inclui uma visão mais ampla
de direitos sexuais e reprodutivos.
Isto, contudo, também traz à tona o que muitos/as profissionais relatavam, no
sentido de que os jovens não usam camisinha Fora e, portanto, não usariam Dentro,
pois não poderiam ser obrigados pelas/os profissionais, o que poderia trazer
consequências jurídicas no momento em que as parceiras das visitas íntimas
engravidassem, como mencionado anteriormente. Relataram também várias
desinformações dos jovens, tais como acreditar que “transar de chinelo não engravida”,
ou acreditar que um homem pode engravidar190.
Nas nossas atividades, além de perguntar diretamente nas entrevistas
individuais, provocamos a discussão sobre o assunto na primeira atividade em grupo,
usando outra fotografia com diferentes métodos contraceptivos (foto 7 do Anexo A).
Certamente, nos deparamos com uma falta de informação que consideramos grave em
alguns dos jovens, como achar que apendicite é sexualmente transmitida, acreditar que
fazer sexo cinco vezes “não bastava para ela engravidar”, que transar com uma mulher
grávida não seria bom porque fariam uma “mossa na cabeça da criança”, ou nunca ter
visto uma camisinha feminina. Também, alguns nos relataram ter tido gonorreia ou
sífilis. Poucos conheciam a palavra clitóris, que não estava, segundo eles, no seu
dicionário. Em um grupo, ao falar sobre o tema, o jovem mais velho percebeu que os
outros não estavam entendendo, e disse que explicaria no alojamento. Este seria outro
tema importante a ser abordado em debates sobre sexualidade, ampliando a discussão
para além de aspectos relacionados a prevenção (BARKER, 2008).
Muitos jovens aproveitaram esse espaço para fazer perguntas sobre métodos de
prevenção de ITSs, gravidez, e práticas sexuais, assim como de aborto, às quais
respondemos, e informaram ter poucos espaços Dentro e Fora do estabelecimento para
discutir suas dúvidas, mesmo reconhecendo em alguns momentos o trabalho de
vários/as profissionais do CAI em abordar esses temas em atividades que, infelizmente,
não atingem a todos.
190
Cabe apontar que também observamos faltas de informação nessa temática por parte de alguns
profissionais.
347
Escutamos uma grande maioria de jovens afirmar que não gostam de usar
preservativo, o que não é único dessas trajetórias. Isso faz com que alguns nunca
usem, outros usem ocasionalmente e outros, mesmo não gostando, usem. Alguns
tinham o costume de buscar no posto de saúde ou comprar na farmácia e afirmaram
usar sempre, fazendo questão de ressaltar isso nos grupos. Outros disseram que o pai
ou a mãe entregavam para eles, insistindo em que usassem para “não repetir” uma
parentalidade “tão novos” quanto eles/as. Um jovem inclusive disse que gostava que as
mulheres colocassem a camisinha nele como parte do erotismo. Outro disse que tinha
repensado a sua rejeição depois de uma palestra que ouviu no CAI.
No entanto, foi muito recorrente a recusa ao uso da camisinha, o que passa por
várias questões para além da falta de informação, incluindo os agenciamentos da
masculinidade (BARKER, 2008), expressados em falas como “eu gosto pele com pele”,
“não é tão bom com camisinha”, “não é a mesma coisa”, “atrapalha”, “é muito ruim”,
“usar dá uma amolecida”, “quando a vontade vem, esqueço de usar”, “demora para
colocar, é complicado”, “tenho medo de doença, mas vai rolar a situação, esqueço de
tudo”, ou, como apontado por Antonio, “camisinha rasga”, ao que eu apontei que isso
poucas vezes acontece, e ele disse “quando o sexo é bonzinho não rasga, mas quando
é de verdade, se o homem pega mesmo, pode rasgar”, pois “homem viciadão
machuca”.
Alguns jovens relataram que é raro as parceiras pedirem para usar, e quando
pedem é só na primeira vez. Outros falaram que muitas mulheres não gostam de usar.
Também disseram que “se elas pedirem, eu uso”, ou “insisto um pouco para não usar e
elas esquecem”, “tento dar uma enrolada, mas se ela quiser usar, tudo bem”, dentre
outras negociações que revelam as relações de poder e prazer e a relevância da
dimensão relacional do gênero ao pensar saúde sexual e reprodutiva (SCHRAIBER;
FIGUEREIDO, 2011; NASCIMENTO; SEGUNDO; BARKER, 2011). Miguel Ángel já
apontou que “quando uma mulher não quer usar a camisinha deve estar mandada”,
quer dizer, com Aids.
Nesse sentido, também foi muito interessante escutar de que forma alguns
jovens decidem quando usar preservativo e quando não, evitando o contágio de ISTs
através de um filtro. Christian Alfonso, por exemplo, disse usar camisinha só com
348
homens, pois não temia contágios de parte de mulheres. Outros relatavam filtros com
as mulheres que revelam dobras de gênero, classe e raça: Mauricio disse que não usa
camisinha com a companheira, só com as outras parceiras sexuais, Jesús já fica atento
a se elas são “faladas, pegadas”. Antonio diz que “se for muito magrinha, pode ter
Aids”, ou “eu logo vejo se os pés são russos – limpos”. Jorge aponta de que forma a
estética atravessa esse filtro:
Jorge: de doença, tipo assim, eu tenho medo, pá, mas tipo assim, o que eu to te
falando, o que eu to falando pra senhora, pra você, eu não sei se tenho essa
condição, mas eu sou mais de escolher, pá. Aí tipo assim, eu olho assim, pá,
fico escolhendo, pá, eu não vou pegar aquela garota que não é muito vaidosa,
pá, eu gosto de vaidade, eu fico vendo, pá, se a garota é bonita, pá, tipo assim,
se tá bem produzida, pá, né? E sempre que as garotas vem eu dou aquela
olhada, pá, tipo assim, não é na hora tirando a roupa, fazendo sexo, eu
converso primeiro, olho, faço pergunta, pá. Tem garotas gostam que eu
pergunte, ter uma conversa, pá. Mas, tipo assim, se eu vejo que a garota não é
vaidosa mesmo, que não tem uma fama muito boa, pá, e eu não tenho
camisinha, eu não faço sexo não. Se é uma garota que não tem uma fama
muito boa, mas a garota é bonita, que eu quero pegar, uso camisinha, se não
tiver, não faço não.
ah, meus irmão são muito maluco, sei lá, um não gosta de usar camisinha de
jeito nenhum, e eu falo “pô, usa camisinha, esse negócio é coisa séria”, e ele
“po, deixa comigo, vou usar, vou usar”, mas ele não usava também. Mas ele fez
teste e não tava com nada também, porque pegava essas meninas, como,
bonitonas, meu irmão é mais bonito do que eu, tem olhos azul, cabelo loiro
também, aí pegava várias mulher lá, só patricinha, aí pegava várias patricinha.
Jimena: mas elas também ficavam com outros, é isso? E você ficava sabendo?
Carlos: ficavam mesmo. Por isso que eu usava camisinha
Jimena: e com sua namorada atual você não usa?
Carlos: não
Jimena: e se ela engravidar?
Carlos: ah, assumo (com tom de que é obvio)
Jimena: você gostaria de ser pai?
Carlos: claro!!
Jimena: agora?
Carlos: agora. Assim, trabalhar, responsa
Jimena: e com as outras usava?
Carlos: com as outras, claro!! To maluco? Pode dar doença dessas aí
349
Emiliano disse que ele usava com as mulheres que iam na boca buscá-lo, não
com a namorada, e Felipe aponta:
Jorge Aníbal, cujos pais faleceram por complicações de HIV, relata de que forma
muitas questões até agora faladas se relacionam na hora de falar sobre prevenção de
doenças:
Jorge: é
Gabi: mas isso nem passa pela cabeça na hora
Jorge: não
Vemos, assim, que muitos jovens, não todos, relatam não estar minimamente
preocupados com a prevenção da gravidez, pois quando ela é evitada, é porque elas
tomam anticoncepcional (BARKER, 2008), o que em alguns eles não sabem por certo,
mas, como apontado por Jorge, é quase generalizado: “a maioria toma remédio hoje
em dia!”, ou a gravidez foi interrompida espontaneamente191, o que tinha gerado tristeza
neles192.
Assim, aparece um controle das mulheres através disso, onde mesmo eles
podendo ser “um cara que deixo o filho para trás e 'meto o pé”, ou “tem um otário lá
para bancar meu filho”, ela “não pode abortar porque é meu filho”, “se tirar, ela vai ser
tirada, vai ter aquela cena”, ou relatando momentos em que as companheiras tinham
decidido abortar contra a vontade deles. Vemos assim o machismo imperando, onde a
decisão por ter filhos pode ser exclusivamente masculina, sem que haja
necessariamente nenhuma relação entre gerar o/a filho/a e se ocupar ou se
responsabilizar por ele/ela.
No entanto, escutamos algumas falas distintas. Em um grupo, a partir da foto da
mulher grávida (foto 5 anexo A), José Luis disse ela parecia arrependida, pelo que
perguntei o que ele achava que ela deveria fazer se estivesse. Miguel disse que podia
usar chá de maconha para abortar, e Saúl interpelou, dizendo ser contra o aborto, que
“mesmo sendo mulher de pista, eu pegaria meu filho dele pra criar”.
Jorge Antonio já apontou que para ele era importante planejar esse momento
embora o método de prevenção fosse novamente responsabilidade da companheira:
191
José Luis relatou que a companheira tinha perdido ao escorregar no ambiente de trabalho, em um
restaurante de comida rápida, por estar fazendo uma tarefa arriscada. Ele disse que ficou com vontade
de ir matar o patrão dela.
192
Emiliano também relatou que o filho, cuja notícia tinha deixado ele “todo bobo”, tinha falecido pouco
depois de nascer por problemas respiratórios, o que provocou que ele chorasse muito.
352
193
Como apontado por Carla Mattos, esse apelido revela uma forma hegemônica masculina de ver o
mundo e de classificar pessoas e espaços a partir disso, por interpelar a necessidade de fixidez de
normas.
354
194
Uma profissional do CAI inclusive participou muito do Ciclo de Debates sobre Violência, Política e
Sociabilidade Urbana, visibilizando seu ávido interesse em ampliar e compartilhar seu conhecimento
sobre a temática.
358
carreira195. Esta foi uma forma de incorporá-los na nossa “comunidade científica” e para
virarem “mediadores/as” (FOLLARI, 2001, p.50) do conhecimento produzido de forma
coletiva.
Desse modo, exercitamos um pesquisar com e não sobre, movimento que
implica habitar um território existencial, para o qual é necessário sair “da posição de
protagonista que descreve categorias psicológicas ou psicologizantes de um
determinado local para provocá-lo a estar engajado como mais um elemento que irá
compor e conjugar forças em um plano comum” (BICALHO; ROSSOTTI;
REISENHOFFER, 2016, p.92) e adotar uma perspectiva ética de abertura a problemas
e demandas. Nós, desse modo, simplesmente participamos da melhor forma possível,
pois, como apontado por elas/es, era difícil garantir um suporte necessário para realizar
ações nessas temáticas.
Nesse processo, foi importante entender a teoria como “o outro lado constitutivo
da própria prática, e não seu oposto exterior em termos da lógica binária” (p. 53).
195
A possibilidade de contribuir na progressão de carreira através do valor curricular do curso afetou
negativamente o segundo curso, segundo alguns/as profissionais, pois essa política de progressão foi
congelada pelo governo.
196
Nesse processo, é importante apontar, uma profissional sugeriu não usar os nomes dos jovens ao
trazer os casos para discussão nos cursos, garantindo que as análises não os tornassem alvo de mais
fofocas.
359
Suely Rolnik (1998) faz uma interessante distinção entre o plano visível e o plano
invisível da relação entre os gêneros. No plano visível, as personagens se reconhecem,
com suas identidades e gêneros, em figuras finitas, classificáveis, em uma ordem de
oposições binárias. Já no plano invisível, os fluxos de produção interminável de corpos
desestabilizam essas figuras e a multiplicidade rege os movimentos. É nesse plano que
podemos nos concentrar para perceber a proliferação das subjetividades, sobretudo no
campo em que estamos, permeado por diversas normativas institucionais que parecem
fixar mais ainda essas figuras. Normativas que vêm dos aparelhamentos que se
instauram nos códigos (inter)institucionais, que implicam um campo de tensões e
conflitos das diferenças e desigualdades.
197
“Como lembra Deleuze, inspirado em Espinosa, se nosso corpo não cansa em ser afetado pelos
encontros sucessivos com outros corpos- pessoas, animais, livros, alimentos, etc.- esses encontros
podem tanto produzir prazer ou dor, quanto alegria ou tristeza. No entanto, todos geram efeitos que
são, também, durações, “passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de potência
que vão de um estado a outro” (DELEUZE, 1997, p.157).
361
Como apontado por Benet, Merhy e Pla (2016), o “fazer parte de” também gera
questionamentos e implicações. Assim, ao conseguir fazer parte da produção do
cotidiano do estabelecimento, atingimos um reconhecimento que se bem era em
ocasiões facilitador, em outras obstaculizava, pois já delimitava um lugar do qual não
363
uma “bagunça, porque todo mundo vai ficar fazendo bola com as camisinhas”.
Colocamos alguns contrapontos a isso, sugerindo que fazer bola não seria pior do que
deixar as camisinhas que já estavam na unidade guardadas, e que talvez na primeira
semana isso acontecesse, mas que aos poucos deixaria de ser novidade. Quando
escutaram que uma preocupação das equipes era que usariam os preservativos como
armas, não concordaram com ela. Foram dando ideias como: colocar camisinhas
disponíveis em pontos estratégicos na unidade onde os jovens pudessem pegar no
sapatinho, ou na Mesa, para que os agentes controlassem o acesso, ou na enfermaria,
ou com um/a profissional de referência. Ponderaram também horários, quantidade de
preservativos que cada jovem poderia recolher e métodos de descarte, estranhando a
preocupação de profissionais de que nesse processo “entupiriam o vaso”. Frisamos o
papel deles como multiplicadores de saúde e como referência na unidade e na sua
função de contraponto ao discurso institucional de que “não vai dar certo”. Por último,
solicitamos que se preparassem para o encontro com profissionais, sistematizando
estratégias de implementação.
No primeiro encontro de planejamento com profissionais, nos esforçamos em
que os jovens se sentissem mais um grupo legitimado para se expressar e propor, por
exemplo, pedindo para que assinassem seu nome na lista de presença, junto com o
resto dos/as participantes. No início do encontro, eles apresentaram o trabalho do
grupo e o que tinham pensado sobre a questão específica, já mostrando ter se
apropriado do nosso argumento de que os jovens iriam assumir com tranquilidade,
talvez fazendo piadas ou bolas no início, mas agindo com mais naturalidade ao longo
dos dias.
Posteriormente, sugerimos que se formassem grupos para pensar estratégias e
colocá-las em cartolinas (Anexo A), para depois serem apresentadas ao coletivo. Foram
formados três grupos de profissionais e um de jovens. As propostas dos/as profissionais
incluíam orientação contínua da equipe de saúde sobre prevenção, reuniões com a
direção e os diversos segmentos para sensibilizar sobre a questão e com jovens nos
alojamentos e na recepção à unidade, bem como ações para falar sobre preconceito e
homofobia não apenas com os jovens, mas com profissionais, em uma perspectiva de
socioeducação. O grupo de jovens pensou que poderia ser entregue a caderneta do
365
Adolescente, que trabalha esses temas, e propôs orientações que poderiam ser dadas
aos jovens para o bom uso dos preservativos. Também fizeram um mapa dos lugares
onde poderiam ser colocados os dispensadores de preservativos e os dispositivos de
descarte, pensando na logística de espaço, tempo e vigilância, propondo lugares onde
os jovens pudessem pegar sem serem vistos nem revistados.
Tivemos alguns diálogos com as equipes, tentando propor estratégias que não
colocassem os jovens à mercê de um patrulhamento ou exposição que bem
conhecíamos, por exemplo, frente à iniciativa de que agentes fossem os responsáveis
por distribuir o preservativo “para não virar bagunça”. No entanto, na hora de apresentar
as estratégias de cada equipe, foram surgindo diversas travas ao fluxo do diálogo,
mostrando como o tema gera um pânico moral. Os jovens não tinham nem terminado
de apresentar suas propostas, quando alguns profissionais começaram a fazer
perguntas direcionadas a pensar as dificuldades de mudar as normativas propostas
pelos próprios jovens, por exemplo, dizendo incisivamente “mas vocês vão aceitar?”.
Nós e alguns/as profissionais insistíamos na importância de não naturalizar as “regras
de convívio” e em aproveitar as oportunidades para pensar na socioeducação, mas as
resistências eram constantes, fazendo com que a postura inicial de abertura dos jovens
fosse se fechando, impedindo a escuta da heterogeneidade de vozes e obstaculizando
a quem estava disposto a repensar.
Como já apontei anteriormente, ao longo da pesquisa-intervenção alguns
agentes disseram se sentir negligenciados quando comparados à equipe técnica.
Também percebemos que majoritariamente estão distantes de ações socioeducativas,
tanto por estarem inseridos na disputa de masculinidades, quanto, e também por isso,
porque seu exercício profissional se cristaliza em outra direção. Nesse momento do
Curso, nas interlocuções para pensar a implementação do preservativo, percebemos
um “cinismo viril” (VINUTO, ABREO E GONÇALVES, 2017), onde se revelava uma
cumplicidade entre agentes, diretores e jovens, mostrando como em um “mundo de
homens”, onde códigos e moralidades se articulam, nós não teríamos dimensão do que
os preservativos, como reveladores – ou, para alguns, incentivadores – das relações
entre homens, trariam ao coletivo. Assim, percebíamos que era praticamente um
desejo que os jovens reafirmassem suas normas, não só porque isso comprovava
366
Gabi: você acha que aqui dentro teria que distribuir camisinha?
367
Jonas: pra falar a verdade, tinha, tinha que distribuir. Tipo assim, as pessoas
que gostam, por exemplo, os homens que gostam de se relacionar com outro,
tinha que dar. Tinha que dar camisinha pra eles. Por exemplo, um homem se
relacionar com outro, mas não sabe que tem uma doença. Tinha um garoto aqui
que tem Aids, foi embora por conta disso, tá lá fora. E ele transou com outros
na casa.
Gabi: já fez exame?
Jonas: sim! E nós vamos falar o que, né?
Gabi: e como você sabe disso?
Jonas: ahhh, tipo assim, lá no alojamento dele, tinha muitas pessoas,
entendeu? E... fofoca rola por todo lado, eu ouvi falar.
Gabi: por isso tinha que ter camisinha
Jonas: é, tinha que ter. Se não, nego não vai se prevenir e vai pegar uma
doença qualquer
Gabi: você acha que se colocasse num local de fácil acesso, a galera ia lá
pegar?
Jonas: sim.
Gabi: e usar
Jonas: sim
e visibilizar que os jovens estavam criando táticas para se proteger, provocou risos do
grupo.
Já Julio Cesar Mondragón dizia que no seu alojamento poderia acontecer, mas
aí “iam ter que orientar os outros” – nos lembrando da dimensão enunciativa do sujeito
homem – e então se tomariam medidas, tais como encaminhar esses jovens para outro
alojamento e separar copos e talheres. Uma das profissionais facilitadoras do grupo de
Promotores ficou surpresa com esse posicionamento, pois esses temas já tinham sido
trabalhados no grupo. No entanto, ele também discordou dos profissionais que
resistiam às propostas, dizendo que mesmo que negativa, a resposta dos jovens à
implementação não seria violenta.
Nesse quadro, parecia que a única resposta para a implementação seria
“separar os homoafetivos”, embora nós insistíssemos que em todos os alojamentos
aconteciam relações entre os jovens, o que tínhamos comprovado nas entrevistas
individuais, ao que apontavam que quem esconde o fato de ter relações não usaria a
camisinha. Percebemos assim que provavelmente o que estava sendo sugerido não era
implementar o preservativo na unidade toda, mas apenas no seguro, dando
continuidade às segmentações, ao serem mais controláveis e possíveis de serem
entendidas.
Percebemos que apesar do machismo ser um modus operandi da instituição-
estabelecimento, arraigado em vários/as profissionais, é mais fácil localizá-lo nos jovens
e não se incluir e responsabilizar pela reprodução de discursos e práticas cristalizadas.
Nesse processo, era interessante observar o acionamento de vários argumentos
discutidos na questão da visita íntima, tais como que os jovens “têm muito preconceito,
que vem da criminalidade”, e que antes da implementação da visita ou dos
preservativos deveria ter um trabalho com eles sobre machismo, já que “eles têm que
compreender os deveres de fazer o que eles querem”, afirmando a irresponsabilidade
dO Adolescente e a condição externa dos códigos.
Tentamos trabalhar com esses argumentos, propondo a garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos atrelada à construção de uma perspectiva crítica na pauta da
socioeducação, mas a insistência em que as “regras de convívio” impediriam a
implementação do preservativo era muito grande, ao que alguns jovens concordavam,
369
unidade teria dificuldade para garantir, “a ideia deveria ser garantir o direito, não
dificultar o processo”. No debate do Curso, Vanessa, Anna e alguns/as profissionais
insistiram na dimensão da saúde e na importância de que o estabelecimento a
preservasse, argumentando que a unidade não podia ser conivente com jovens se
contagiando com doenças ali dentro e que essas questões não deviam ser postas de
forma hierárquica. Camilla apontou que as práticas acontecem e vão continuar
acontecendo, a única diferença é que agora teria a possibilidade delas serem seguras,
o que significaria a garantia de um direito. Quem quisesse fazer escondido ou quisesse
seguir as regras de convívio, não seria impedido de fazê-lo.
Associado a isso, foi assinalada a dificuldade de garantir a privacidade dos
jovens que se envolvem nessas práticas, pois eles “fazem fora da hora” ou “fora do
local” considerados apropriados. Novamente, concordamos, como apontado por
Vanessa, que a configuração do espaço não deixa que nenhum tipo de intimidade
aconteça. Por outro lado, escutamos táticas que os jovens criam para preservar essa
intimidade. Igualmente, não podemos deixar de pensar que nesses argumentos estão
atravessadas moralidades por se tratar de dois homens, não apenas restritas à relação
sexual, mas a outro tipo de expressões eróticas e afetivas que, ao fugir da
cisheteronormatividade, são consideradas desrespeitosas.
Foi assinalado, inclusive em vários momentos anteriores ao Curso, que o
descarte seria um problema, pois poderiam entupir o vaso. Nas entrevistas, alguns
jovens apontaram saídas:
Uma profissional também relatou que os jovens tinham sugerido colocar caixas,
tal como acontece nos centros de saúde. No Curso, os jovens já tinham uma proposta
para o descarte, mas antes de a enunciarem, já estavam sendo colocados empecilhos,
371
sugerindo que eles iam “jogar pela janela” ou que deixariam rastros que os delatariam,
diante do qual os jovens propuseram embrulhar com pacotes de biscoito.
Ainda nesse primeiro encontro, mesmo tendo sido muito tenso, acredito ter sido
importante que os jovens vissem que existem argumentos que podem se contrapor ao
que as normas mais rígidas estabelecem, inclusive às autoridades. Também foi
importante para visibilizar a existência de mudanças no que tange à abertura a novas
propostas, como apontado pelo próprio Julio Cesar Mondragón ao afirmar “não, mas as
coisas já mudaram”, revelando possibilidades de diálogo e de transformação. No
entanto, as resistências a essas mudanças também se vislumbravam, no momento em
que um jovem falou para Bárbara “posso falar uma coisa? Isso aí não vai dar certo não,
não vai acontecer nada disso. Tá vendo, até o próprio diretor falando? Isso não vai
adiantar de nada”, enquanto outro disse “esses caras só quer dificultar”. Eles repetiram
que não seria tanto problema, que os jovens poderiam pegar para usar e orientar,
conhecer para usar com as companheiras, dentre outras utilidades. Assim, a
participação deles foi importante, tanto para nos deslocarmos e entendermos a
complexidade de lidar com os apegos às normas, quanto para deslocar os jovens a
respeito da homogeneidade dos discursos entre as equipes, quanto para que quem
estava resistente enxergasse alguns caminhos.
No segundo encontro, com jovens e profissionais, mais algumas questões
apareceram. Antes de começar, uma das profissionais que facilita o grupo apontou
estar preocupada, pois os jovens tinham percebido que ocupar o lugar de
multiplicadores nessa ação poderia trazer consequências que não necessariamente
desejavam, pois os vincularia com transformações intensas que eles não queriam
assumir, tanto com os outros jovens, quanto com o estabelecimento. Mesmo
enunciando que a experiência do curso de Promotores tinha sido benéfica, virarem
referências e inclusive xerifes do acesso ao preservativo, vigiando sua adequada
utilização e sendo responsáveis por encaminhamentos e contravenções, poderia trazer
prejuízos ou constrangimentos, o que parecia ser muito ponto para lidar e foi os
desencorajando.
Nesses dias entre um encontro e outro, eles tinham realizado uma consulta nos
seus alojamentos. Jonas, do Seguro, disse que apesar de não ter viado nesse
372
momento no seu alojamento, não existiria problema em ter camisinha, e que “nada se
perde em tentar”. Outros jovens da Coletiva e da Individual apontaram que “fechou
não”, “esse bagulho não é maneiro não”, “não cola não”. Julio Cesar Mondragón, o mais
apegado às normas do tráfico, disse “na coletiva não rola, não”, e depois apontou “eu
não vou falar nada não, aí depois chego na pista, e vão falar que falei isso”, “se ele for
pego na infracção, respondemos pela coletiva”198. Nesse momento, era novamente
posto o aparelhamento do estabelecimento a partir das suas porosidades com as
facções e de que forma elas constituem as performatividades masculinas de forma
articulada nos códigos (inter)institucionais, em suas linhas mais endurecidas. Todavia,
era impactante a forma como o acesso a preservativos mexia tão profundamente com
essas questões. Embora percebêssemos que nessas semanas a postura tinha mudado
bastante e duvidássemos que esta viesse apenas da conversa com outros jovens,
consideramos importante pensar no lugar que Julio tinha dentro do alojamento, onde
seu papel é seguir e transmitir as regras da facção, não o discurso que estávamos
levando199.
Desse modo, a maioria dos jovens expressou que não desejava mais esse lugar,
especialmente considerando que, como expressado por uma profissional, nessa
experiência, “sair é mais importante do que garantir os direitos aqui dentro”, e manter
uma relação tranquila com o resto da Unidade seria mais importante do que enfrentar
questões que para eles não eram tão relevantes. Assim, parece importante retomar a
reflexão sobre as implicações éticas de convidar os jovens a um processo que não
necessariamente sabiam como ia se desdobrar, ninguém sabia. A participação deles
acabou sendo um dispositivo na disputa entre as posturas de quem lá estava.
Assim, os jovens vieram nesse segundo encontro mais à defensiva. Julio Cesar
Mondragón disse “se colocar camisinha, eles vão achar normal e daqui a pouco vai ter
homem rebolando por aí”, “vai incentivar a sem vergonhice”, “vai estuprar mais” e que
só poderia ter preservativo na hora de implementar a visita íntima, pois haveria uma
198
Não conseguimos saber se ele quer dizer que a infracção seria pegar a camisinha, ou ter relações
sexuais
199
Pati apontou às profissionais que facilitam o curso que além da capacidade comunicativa e de
liderança, seria importante considerar essas questões nos critérios para formar os grupos de
Promotores, para os quais é necessária uma postura comprometida com a saúde, o que significa
mudanças.
373
justificativa plausível. Nós tentávamos provocar essa postura, mas as forças eram
tantas no espaço, que o exercício se tornou praticamente impossível, especialmente no
momento em que esses argumentos encontravam eco entre os/as profissionais,
impossibilitando problematizações e diálogos críticos.
Miguel Vale de Almeida aponta que no território de disputa masculina, acontece
uma “avaliação do comportamento [...] feita em função de um modelo, e a disputa dos
atributos e da pertença ou não ao modelo provam que este é uma construção ideal. Só
que, como as avaliações se fazem a partir de actos vistos e narrados, o comportamento
dos homens tende a “mimetizar” as prescrições do modelo” (VALE DE ALMEIDA, 1996,
p.171). Certamente, em muitas das performatividades que eles apresentam para nós,
observamos essa mimetização dos modelos mais violentos de masculinidade, mas
também observamos uma diversidade de brechas nesses lugares tão cristalizados,
invisibilizadas pela narrativa única dos códigos (inter)institucionais. Como Silvia Ramos
disse no Ciclo de Debates sobre Violência, Política e Sociabilidade Urbana, as
instituições de privação de liberdade são dos maiores produtores de homogeneidades
violentas e a hiperlotação parece aumentar as possibilidades de universalização e
saturação das relações.
Assim, mais uma vez, se apontava que a saída possível era ir colocando o
preservativo em pontos críticos e ir sentindo a temperatura da unidade, estendendo
cada vez mais a implementação. No entanto, uma profissional disse “aqui a gente pode
enfraquecer as regras ou fortalecê-las. Trabalhar com a metade vai ser reforçar essas
regras”, embora entendesse a dificuldade de enfraquecer as regras “sem vulnerabilizar
os meninos”. A direção apontava que os jovens eram os que mais fiscalizavam e que os
agentes eram resistentes justamente por conhecerem as regras dos jovens, o que
demonstrava de que forma era necessário antes “quebrar alguns muros” para “preparar
o terreno”. Nesse sentido, foi considerado positivo que os jovens falassem abertamente
sobre as regras, para que nós soubéssemos ao que o estabelecimento se enfrentava.
Pensando sobre isso, entendemos a postura da direção, no sentido da
responsabilidade de manter a ordem/tranquilidade na unidade, mas ainda assim
consideramos que na gestão da diferença adotada, acabam se reforçando as “regras
do convívio”, invisibilizando a forma em que estas podiam ser – e eram – dribladas,
374
200
Além do já apontado a respeito da responsabilização das mães no que tange à “escolha” dos jovens,
também chegamos a escutar que “tem projetos de lei que querem implementar obrigatoriamente a
ideologia de gênero, obrigando aos professores a dizer que um menino ser mulherzinha é normal.
Minha família não tem porque ouvir isso”, dentre outras posturas fundamentalistas, homofóbicas e
machistas permeadas na sociedade que nos provocaram na busca de argumentos para o diálogo nesse
espaço concreto
376
projetos” (DOS SANTOS, 2006, p. 2). Assim, mesmo me posicionando a partira de uma
perspectiva teórica e metodológica que não nega a postura política das pesquisadoras,
era importante entender quais as táticas que nesse momento iam potencializar os bons
encontros e quais não, especialmente em um clima político polarizado e em um
estabelecimento como esse.
Isso constantemente apresentava o desafio de não alimentar um distanciamento
entre conhecimento acadêmico e militante feminista de gênero e sexualidade do que
acontece no campo, o que não significa que não deva existir uma construção
sistemática que vá além da “consciência imediata”, aportando “armas propriamente
teóricas” (FOLLARI, 2001, p.39) e políticas que de fato possuímos pela nossa
experiência nessas áreas. Sem dúvida estávamos em um lugar conflituoso, pois em um
espaço de disputa, os nossos conhecimentos eram uma forma de entrada. Porém,
apostar em mecanismos de imposição de uma verdade, assumindo uma postura
colonizadora designada às universidades, seria um obstáculo para fazer ver
experiências e violências de gênero e sexualidade que os jovens, as/os profissionais e
nós pesquisadoras/es vivem(os) e perpetuam(os). Era, assim, fundamental que, nós
como “especialistas” de gênero, fôssemos colocadas em xeque, nos questionando,
movimentos extremamente importantes para a análise de implicação (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2008).
Isto acionou novamente a análise de implicação, percebendo as
Nesse sentido, cabe aqui trazer efeitos potentes dos dois Cursos, já referidos ao
longo do texto, onde profissionais conseguiam articular iniciativas para discutir gênero e
sexualidade com os jovens em diversos espaços. No primeiro Curso, alguns/as
profissionais embarcaram em desdobramentos que abordassem: tensões entre os
limites da segurança e os aspectos de gênero e sexualidade, paternidade e política dos
afetos e moralidades institucionais. Fizeram zine, inspirados/as no nosso Curso, Curta-
debate, mediação de leitura, rodas de conversa sobre saúde e masculinidade no grupo
de saúde mental, esquetes no grupo de teatro e atividades na Semana do Bebê, em
atividades que lhes permitiram misturar jovens de diferentes facções e do Seguro.
Fomos convidadas para alguns desses desdobramentos, momentos em que
novamente articulamos o campo de análise e o campo de intervenção com os jovens,
de forma conjunta com profissionais. Por exemplo, participamos de uma conversa com
o grupo de saúde mental, onde abordamos a questão do estupro coletivo. Após
colocarmos vários contrapontos ao discurso da culpabilização das jovens piranhas,
José Eduardo acabou dizendo “agora vocês me pegaram”. No relatório que as/os
profissionais realizaram dessa ação (Anexo D), foi interessante observar que elas/es se
surpreendiam com algumas conversas, por exemplo, no que tange ao conhecimento
dos jovens de práticas sexuais entre eles, desmentindo a noção fixada que se tinha
sobre isso na unidade.
Também participamos do Curta-debate201 que duas profissionais estavam
almejando fazer há tempos, finalmente operacionalizado, segundo elas, graças à
solicitação do nosso Curso de desenvolver ações. O Curta-debate mensal continua,
depois de dois anos, embora elas expressem não ser suficiente para os objetivos que
elas têm de trabalho com os jovens. O relatório, também no Anexo D, pontua vários
elementos importantes, pelo que extraio alguns trechos pela sua relevância na nossa
discussão sobre parcerias:
201
Um detalhe interessante dessa atividade era que as profissionais ofereciam pipocas para os jovens,
propiciando um ambiente mais relaxado e atrativo para eles.
379
203
Soubemos também que o jovem Julio César Mondragón tinha sido assassinado três semanas depois
de sair do CAI, notícia que nos impactou muito e nos fez pensar vários pontos, incluindo o fato de que
embora ele fosse o que mais defendia a naturalização das normas, ele não conseguiu se proteger dos
processos violentos que elas carregam, inclusive contra ele mesmo.
204
Inclusive, vale lembrar, em uma feira de ciências que Gabi organizou com o IFRJ no CAI em 2016,
alguns jovens também pegaram camisinhas, mostrando que era possível gerar uma naturalidade.
383
Muitas coisas não conseguimos no campo, tal como a própria distribuição dos
preservativos em toda a unidade. No último dia do segundo curso s aímos
absolutamente exaustas e mobilizadas, ao que algumas profissionais disseram que
“damos um passo e retrocedemos dois”, apontando que estávamos movimentando algo
em um cenário complicado e elas estavam muito satisfeitas com a nossa atuação no
CAI. Outra profissional, diante da minha postura um pouco derrotista, disse que
tínhamos conseguido muitas coisas, que “agora não tem volta atrás, só falta
institucionalizar, o curso foi um marco”. Destarte, podemos pensar que mesmo que os
resultados concretos não sejam tão animadores, os processos foram extremamente
relevantes.
Assim, é importante destacar aqui que esse processo instigou muito a pensar na
importância de trabalhar o tema neste contexto, deixando claro que gênero não é
apenas relacionado a mulheres, que sexualidade nos perpassa permanentemente e
que esta deve ser considerada um direito, que ambos dispositivos estão atrelados ao
nosso exercício da cidadania e que uma instituição-organização que pretende fomentá-
la deve encarar esses desafios. Como apontado por algumas pessoas, “o fato do curso
ter acontecido já fala alguma coisa, pois isso antes teria sido inconcebível”. O interesse
de uma parcela de profissionais foi visível nos esforços para participar das ações
mesmo que as condições não fossem propícias. Algumas outras, incluindo diretores,
falaram que nossa equipe era necessária para abordar esses temas na unidade,
solicitando que não parássemos de ir ao CAI, onde nosso trabalho “plantou uma
semente” que continuaria a ter efeitos. Assim, a nossa pesquisa-intervenção se
configurou como uma dobra que (se)tensionou e (se)desdobrou no campo.
Parece importante, assim, continuar apostando na construção de autonomia e na
desverticalização do estabelecimento, garantindo que as pessoas engajadas
constituam um ou vários núcleos ou células de trabalho, em redes de coalizão
contínuas e sistemáticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Benjamín: cuidado aí, que enquanto mais a gente falar, mais elas
vão perguntar.
Com essa frase, Benjamín alertava os outros jovens do grupo que estavam
elaborando a história e o desenho do personagem no papelão que a tarefa seria
complexa, pois suas respostas sobre a história gerariam mais perguntas da nossa
parte, demandando a construção de uma narrativa que fizesse sentido para eles e para
nós. Assim, vemos como os jovens percebiam o desafio de estar criando uma
interlocução conosco, no momento em que deviam explicitar normas, trajetórias e
performatividades em um exercício que fazia pensar os significados para além de
respostas pré-estabelecidas com as que pareciam estar mais acostumados no
estabelecimento, fosse na hora de construir um relatório, ou de aprender um conteúdo
curricular, ou ainda de receber ou outorgar orientações nos alojamentos.
Desta forma, a partir da produção de campos de afetação, conseguíamos em
vários momentos movimentar algumas questões com os jovens, especialmente focando
nos códigos (inter)institucionais associados a gênero e sexualidade. Mergulhamos, com
eles, através de pistas de experimentação cartográfica feminista, nas fronteiras, nos
poderes, nas multiplicidades. Nos debruçamos na produção microscópica de
marginalidades, diferenças, comuns, bem como nas suas dobras nos afetos, nos
erotismos, nas temporalidades (ritmos) e nas violências nas paisagens da cidade e do
estabelecimento, onde convivem diversos paradigmas de punição, educação e gestão
de sujeitos, corpos e sexualidades, bem como diferentes projetos de gênero que ora se
aproximam, ora se distanciam.
Nas nossas relações com o Dentro/Fora, fomos esmiuçando as vivências dos
jovens através das práticas institucionais, suas presenças, moralidades, embates,
rachaduras e transgressões. Procurando ir além das encenações rotinizadas e
cristalizadas, fosse de exacerbação da cisheteronormatividade, fosse de um discurso
politicamente correto, fomos vislumbrando um espectro de performatividades
386
socioeducativos/as. Embora essa proposta ainda não tenha sido levada à prática e,
como percebemos ao longo da pesquisa, o gênero e a sexualidade dificilmente seriam
considerados por todo mundo eixos fundamentais em tal Projeto Político Pedagógico,
grande parte da nossa caminhada esteve direcionada a instrumentalizar essas
pessoas, investindo no seu cotidiano, desnaturalizando os códigos (inter)institucionais e
suas cristalizações, e fomentando o diálogo e as coalizões entre os coletivos de
pessoas que circulam na unidade, bem como com outras instâncias – tais como a
EGSE, a coordenação de saúde do Degase e o Departamento de HIV/Aids da
Secretaria de Saúde-, a partir de um exercício crítico de comunicação.
As nossas interlocuções geraram outras demandas além dos cursos, assim
como a atividade na Semana do Bebê e os textos com os quais contribuímos nas
publicações do Degase, contribuindo com elaborações em uma lógica e para um
público distintos dos académicos, onde também é importante que o conhecimento
circule, com as pessoas que estão na ponta cotidianamente. Ao pensar a produção de
textos, cabe também pensar
sobre as maneiras com que o texto acadêmico faz referência ao grupo que está
estudando e qual política acaba por legitimar; se é uma política que o coloca na
posição de quem supostamente estaria trazendo “verdades sobre” o grupo, ou
se se refere a políticas em que diferentes visões e problematizações são
“produzidas com” o grupo (SILVA, et. al., 2016, p.244).
Dessa forma, a proposta é “fazer fugir, fazer passar os fluxos” (p.35). No final da
pesquisa, ainda me pergunto questões semelhantes às do início: que sociedade
estamos produzindo? Que ordem estamos tentando preservar? De que forma
precisamos de tantas algemas e não de corpos livres? Como deixar de construir
espaços de confinamento e priorizar aqueles de construção de democracia? Como
deixar de priorizar processos de docilização e avançar naqueles que propõem
caminhos libertários? De que forma suscitar que as instituições-organizações vejam no
gênero e sexualidade um campo importante onde buscar brechas na emancipação dos
390
sujeitos e no caminho da paz? Será que esta pesquisa conseguiu gerar efeitos nesse
sentido?
Estou exausta, mas ao mesmo tempo muito feliz com o nosso grupo, porque
acho que todas estamos no compromisso de avançar nesse grande desafio. É
muito engraçado, porque já nos conhecemos tanto entre todas, que têm
momentos em que cada uma sabe o que as outras estão pensando, tanto que
nem nos olhamos, pra não rir, sabendo que depois, no caminho de volta,
falaremos sobre isso (Diário de campo, setembro de 2017).
Nesse fragmento do diário de campo relato de que forma foi produzida uma
cumplicidade na equipe de pesquisa durante o segundo Curso, onde, cada uma desde
suas preferências e habilidades argumentativas, íamos tentando abordagens para
desenhar os nossos objetivos. Nesse contexto,
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Minicurso
Corpo, gênero e sexualidade no cotidiano da socioeducação
Fernando Pocahy
Gabriela Salomão
Jimena de Garay
Introdução
Esta ação e parte do projeto de pesquisa-extensão desenvolvido desde março de 2015
na unidade. A proposta é promover ações de formação e intervenção continuadas
sobre gênero e sexualidade no cotidiano das ações da unidade, fomentando o
protagonismo dos/as praticantes dos cotidianos (neste momento, voltadas a
funcionários/as do CAI Baixada).
Justificativa
Baseado no trabalho de seis meses em campo na instituição, a partir dos desafios
apresentados nas diferentes interlocuções na pesquisa (jovens/adolescentes,
funcionários/as e gestão), compreendemos que uma forma eficaz e produtiva para a
devolutiva desses resultados da pesquisa poderia ter lugar em ações de formação e
intervenção continuadas, através de um curso extensionista, fundamentado em
metodologias participativas, metodologias estas que privilegiam o protagonismo dos
distintos praticantes do cotidiano institucional.
Duração: 40 horas
Vagas: de 08 a 20
Metodologia
Aulas expositivas baseadas em metodologias e técnicas participativas. O curso e
dirigido a profissionais do sistema socioeducativo e prevê a promoção do protagonismo
do corpo discente em atuações pro igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos
no interior da unidade onde o curso acontece (CAI-Baixada - Belford Roxo)
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Programa
Módulo Temática
Módulo I Apresentação do campo e
Corpo, Gênero e contrato
Sexualidade nos Gênero, Saúde Sexual e
Cotidianos Reprodutiva
Corpo, gênero e sexualidade:
interlocuções com os jovens na
pesquisa
Corpo, gênero e sexualidade:
interlocuções institucionais
Módulo II - Perspectivas e abordagens
Construindo Elaborando ações de
metodologias intervenção no cotidiano da
participativas em instituição
gênero, saúde
sexual e
reprodutiva
Modulo III Desenvolvimento e avaliação
Intervenções e das ações de intervenção
avaliação Avaliação e encerramento do
minicurso
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Curso de extensão
Direitos sexuais e reprodutivos no Sistema Socioeducativo
Introdução
Este curso faz parte do projeto de pesquisa-extensão desenvolvido desde março
de 2015 no Degase e especificamente na unidade CAI Baixada chamada ‘Sexualidade
e juventude’, desenvolvida por uma equipe interinstitucional composta por
pesquisadoras/es da UERJ, FIOCRUZ, IFRJ e UFRJ. O objetivo é pensar práticas
profissionais que possibilitem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos dos jovens
cumprindo medida socioeducativa de internação, considerando as necessidades e
desafios apresentados pela situação de privação de liberdade e pela atual configuração
de superlotação, com relevantes implicações na segurança das pessoas que circulam
na instituição.
Justificativa
Como mais um desdobramento do processo de pesquisa-intervenção
desenvolvido por mais de dois anos na unidade CAI- Belford Roxo, que já fez surgir um
curso de extensão para profissionais da unidade, voltado a metodologias de trabalho,
surgiu a ideia e a necessidade de se discutir direitos sexuais e reprodutivos dos jovens
cumprindo medida de internação. Além das resistências de diferentes ordens de pautar
sexualidade, juventude e restrição de liberdade, neste momento o Degase enfrenta uma
superlotação que gera tanto tensões no cotidiano, quanto aumento de violência. Neste
sentido, para além dos desafios comunicados e verificados no que tange à segurança
na instituição, observamos a importância de os enfrentar de forma coletiva e dialogada.
Temas como o contágio de ISTs, violência sexual, discriminação e inclusive a
naturalização de normas que não condizem com uma visão de socioeducação sob a
perspectiva dos Direitos Humanos atravessam o cotidiano institucional e pontuam a
necessidade de construção conjunta de estratégias frente a estes desafios.
Frequentemente temos constatado que gênero e sexualidade são grandes
organizadores da vida cotidiana na unidade, muitas vezes através da violência concreta
ou latente, e consideramos urgente implementar medidas que evidenciem sua inclusão
no cotidiano da socioeducação. O direito à visita íntima ainda não foi garantido, mas
processos importantes já foram desenvolvidos, como cursos para profissionais sobre o
tema e a conformação de um Grupo de Trabalho que discutiu amplamente as
implicações.
Observamos diversas práticas sexuais entre eles, às vezes vinculadas a uma
identidade sexual, às vezes a relacionamentos amorosos, às vezes por questões
circunstanciais, de exploração dos desejos ou de trocas de favores.
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Facilitadoras
Jimena de Garay- doutoranda em Psicologia Social na UERJ
Gabriela Salomão – professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro
Anna Paula Uziel – professora do Instituto de Psicologia da UERJ
Luisa Bertrami - doutoranda em Psicologia Social na UERJ
Patricia Castro – pós-doutoranda em Psicologia Social na UERJ
Bárbara Rocha - mestranda em Psicologia Social na UERJ
Vanessa Lima - mestranda em Psicologia Social na UERJ
Duração: 40 horas
Datas: 06 encontros de quatro horas cada (24 horas), mais 16 horas de trabalho fora de
encontro presencial.
Público: duas turmas, uma de manhã e outra à tarde. Uma turma de agentes
socioeducativas/os, garantindo a participação de agentes de todos os plantões, e outra
com equipe técnica, docentes da escola e pessoal administrativo.
Metodologia
Aulas baseadas em metodologias e técnicas participativas, buscando propiciar o
diálogo sobre os temas contemplados no programa entre documentos oficiais que
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Programa