Você está na página 1de 444

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Instituto de Psicologia

Jimena de Garay Hernández

O Adolescente dobrado: cartografia feminista de uma unidade


masculina do Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2018
Jimena de Garay Hernández

O Adolescente dobrado: cartografia feminista de uma unidade masculina do


Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutora ao Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientadora: Profa. Dra. Anna Paula Uziel

Rio de Janeiro
2018
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

G317 de Garay-Hernández, Jimena.


O Adolescente dobrado: cartografia feminista de uma unidade
masculina do Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro / Jimena de
Garay Hernández. – 2018.
442 f.

Orientadora: Anna Paula Uziel.


Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Psicologia

1. Psicologia Social – Teses. 2. Sistema Socioeducativo – Teses. 3.


Sexualidade – Teses. I. Uziel, Anna Paula. II. Universidade do Estado do
Rio de Janeiro. Instituto de Psicologia. III. Título.

es CDU 316.6(815.3)

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial


desta tese, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Jimena de Garay Hernández

O Adolescente dobrado: cartografia feminista de uma unidade masculina do


Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro.

Tese apresentada como requisito parcial para


obtenção do título de Doutora ao Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social, da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 05 de fevereiro de 2018

Banca Examinadora:

_______________________________
Anna Paula Uziel (Orientadora)
Instituto de Psicologia – UERJ

_______________________________
Prof. Dr. Marcos Antonio Ferreira do Nascimento
Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz

_______________________________
Profa. Dra. Rita de Cassia Santos Freitas
Universidade Federal Fluminense - UFF

_______________________________
Profa. Dra. Fátima Cecchetto
Instituto Oswaldo Cruz - IOC

_______________________________
Profa. Dra. Carla dos Santos Mattos
Instituto de Estudos da Religião – ISER

_______________________________
Prof. Dr. Thiago Benedito Livramento Melício
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ

_______________________________
Profa. Dra. Gabriela Salomão Alves Pinho
Instituto Federal do Rio de Janeiro – IFRJ

Rio de Janeiro
2018
DEDICATÓRIA

À UERJ
AGRADECIMENTOS

A Anna, pela cálida, cuidadosa e brilhante orientação e pela eterna inspiração a


uma vida acadêmica comprometida, porosa e agregadora.
A Gabi, a melhor parceira de campo que poderia ter, pela energia, disposição e
inteligência nos labirintos da cartografia.
A Agus, que nesse nosso intenso amor nômade, cultiva todo dia alteridades e
alternativas em mim.
A Luisa, minha irmã intelectual, pelas produções e gargalhadas a duas.
À criativa e paciente equipe que construiu comigo a aventura da pesquisa-
intervenção: Fernando, Pati, Bárbara, Vanessa e Camilla.
Aos jovens do CAI, por me olharem no olho e por partilharem suas vidas,
certezas e incertezas.
À equipe do CAI, especialmente às/aos corajosas/os parceiras/os que permitiram
se afetar e afetar o nosso percurso.
À minha banca de qualificação e de defesa: Marcos, Carla, Thiago, Rita e Fátima
que naqueles dois momentos e em muitos mais, me fizeram ver a amplitude dos
campos por percorrer.
Às amigas feministas e militantes, que me compõem desde diversas
coordenadas geográficas, políticas, intelectuais e afetivas, principalmente a: Carla,
Alyne, Virginia, Belen, Lívia, Luna, Jandira, Gabi, Laura, Quesia, Carol, Tati, Ju, Manu,
Lilian, Camila, Sueny, Andrea, Claudia, Bianca, Paola, Eunice, Ismael e Márcio.
Às amigas/os e colegas de múltiplos, incansáveis e vibrantes projetos na UERJ,
principalmente a: Dani, Bruna, Aureliano, Thalles, João, Nany, Gizele, Livia, Alice,
Adriana, Silvia, Mônica, Juliana, Flávio, Vanessa, Tássia e Wendell.
À equipe da EGSE pela confiança nas nossas apostas éticas e políticas.
A meu pai, minha mãe e minha irmã, que na eterna saudade, continuam me
oferecendo pernas, cabeça e coração
A Ginga, o presente inesperado, pela companhia e a força no processo.
RESUMO

DE GARAY HERNÁNDEZ, Jimena. O Adolescente dobrado: cartografia feminista de


uma unidade masculina do Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro. 2018. 442 f.
Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Nesse trabalho foi realizada uma cartografia feminista em uma unidade


masculina de internação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de
Janeiro, entendida como uma instituição-estabelecimento aparelhada por instituições-
organização e perpassada por instituições-forma. A partir de uma pesquisa-intervenção
pautada por pistas de metodologia feminista, exploraram-se noções e práticas
relacionadas aos dispositivos gênero e sexualidade, em articulação com geração,
classe, raça e localidade, nas trajetórias juvenis e nas performatividades masculinas,
que são dobradas no momento em que os jovens passam pela experiência de privação
de liberdade. Analisadores que visibilizam e enunciam esses dispositivos e suas dobras
foram selecionados e movimentados a partir de atividades em grupo e entrevistas
individuais com jovens que estão cumprindo medida socioeducativa na unidade, bem
como entrevistas, cursos e ações com profissionais dos diversos segmentos que a
constituem. Desse modo, tanto a equipe de pesquisa quanto as suas parcerias no
campo se imbricaram nas tensões cotidianas das tramas de produção e
desestabilização de saberes, poderes e subjetividades, onde gênero e sexualidade,
embora geralmente não sejam temáticas priorizadas no projeto de socioeducação,
organizam logísticas disciplinares e de controle que se dobram nas relações temporais
e espaciais, ao tempo em que, nas suas brechas, resistências criativas interpelam os
códigos e produzem singularidades.

Palavras-chave: Sistema Socioeducativo. Gênero. Sexualidade. Cartografia.


RESUMEN

DE GARAY HERNÁNDEZ, Jimena. El Adolescente doblado: cartografía feminista de


una unidad masculina del Sistema Socioeducativo de Rio de Janeiro. 2018. 442f. Tese
(Doutorado em Psicologia Social) – Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

En este trabajo se realizó una cartografía feminista en una unidad masculina de


internación del Departamento Geral de Ações Socioeducativas de Rio de Janeiro,
entendida como una institución-establecimiento aparatada por instituciones-
organización y atravesada por instituciones-forma. A partir de una investigación-
intervención pautada por pistas de metodología feminista, se exploraran nociones y
prácticas relacionadas a los dispositivos género y sexualidad, en articulación con
generación, clase, raza y localidad, en las trayectorias juveniles y en las
performatividades masculinas, que son dobladas en el momento en el que los jóvenes
pasan por la experiencia de privación de libertad. Se seleccionaron y movieron
analizadores que visibilizan y enuncian dichos dispositivos y sus pliegues a partir de
actividades en grupo y entrevistas individuales con jóvenes que están cumpliendo
medida socioeducativa en la unidad, así como entrevistas, cursos y acciones con
profesionales de los diversos segmentos que la constituyen. De ese modo, tanto el
equipo de investigación como sus colaboradores/as en el campo se imbricaron en las
tensiones cotidianas de las tramas de producción y desestabilización de saberes,
poderes y subjetividades, donde género y sexualidad, a pesar de que generalmente no
son temáticas priorizadas en el proyecto de socioeducación, organizan logísticas
disciplinares y de control que se doblan en las relaciones temporales y espaciales, al
mismo tiempo en que, en sus brechas, resistencias creativas interpelan los códigos y
producen singularidades.

Palabras clave: Sistema Socioeducativo. Género. Sexualidad. Cartografía.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

CAI BAIXADA - Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo


DEGASE: Departamento Geral de Ações Socioeducativas
ECA - Estatuto da Criança e o Adolescente
EGSE - Escola de Gestão Socioeducativa
ISTs - Infecções Sexualmente Transmissíveis
SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 10
1 A DOBRA QUE CAPTURA ................................................................................ 18
1.1 Caindo no CAI ................................................................................................... 20
1.2 Ocupando o CAI ................................................................................................ 34
1.3 “Um lugar desse”: intervindo no CAI .............................................................. 51
1.4 “Vocês mulheres têm aqui outra visão”: pesquisa feminista com
homens .............................................................................................................. 73
2 A DOBRA QUE ADOLESCE ............................................................................. 90
2.1 O Adolescente: entre hormônios e grades ..................................................... 95
2.2 “Andar armado na frente de uma criança”: trajetórias juvenis, racismo e
classismo ........................................................................................................ 100
2.3 “Minha vida não era muito boa não”: entre a ostentação e a dignidade ... 122
2.4 As facções: entre famílias, inimigos e códigos ........................................... 132
3 A DOBRA QUE APREENDE ........................................................................... 148
3.1 A dobra-organização-do-espaço: muros e porosidades ............................. 150
3.2 A dobra-controle-do-tempo: geração e isolamento ..................................... 161
3.3 A dobra-vigilância: a Segurança ................................................................... 174
3.4 A dobra-registro-contínuo-do-conhecimento: a socioeducação e os
especialismos ................................................................................................. 182
4 A DOBRA QUE GENERIFICA ......................................................................... 194
4.1 Sujeito-homem-ostentador ............................................................................ 207
4.2 Sujeito-homem-guerreiro ............................................................................... 227
4.3 Sujeito-homem-herói-sacrificado .................................................................. 241
4.4 Sujeito-homem-enunciador-honesto ............................................................ 243
4.5 Sujeito-homem-honrado ................................................................................ 247
4.6 Sujeito-homem-adulto .................................................................................... 270
4.7 Sujeito-homem-heterossexual ....................................................................... 272
4.8 Sujeito-homem-pai.......................................................................................... 293
5 A DOBRA QUE CORPOREIFICA ........................................................................... 305
5.1 Corpo de menor ............................................................................................. 306
5.2 Corpo de quebrador ....................................................................................... 317
5.3 Corpo de mancão ........................................................................................... 318
5.4 Corpo de Jack ................................................................................................. 322
5.5 Corpo iniciado ................................................................................................. 326
5.6 Corpo que faz sexo e/ou faz amor ................................................................. 331
5.7 Corpo de vagabundo ...................................................................................... 336
5.8 Corpo desejável .............................................................................................. 339
5.9 Corpo que (não) se previne ........................................................................... 344
6 A DOBRA QUE (SE)TENSIONA E (DES)DOBRA .......................................... 353
6.1 “Já é da casa”: implicação, intervenção e parcerias no campo ................. 355
6.2 “É, não vai adiantar mesmo”: resistências e amarras ................................ 361
6.3 “Agora vocês me pegaram”: desdobramentos dos Cursos e suas
potências ......................................................................................................... 377
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................. 385
REFERÊNCIAS ................................................................................................ 393
ANEXO A - Fotografias disparadoras para a primeira atividade em grupo
com os jovens ................................................................................................... 405
ANEXO B - Fotografias da segunda atividade ................................................. 414
ANEXO C - Ementa do primeiro curso ............................................................. 419
ANEXO D - Relatórios de profissionais sobre o primeiro curso ........................ 421
ANEXO E - Jornal da unidade, falando sobre nossa atividade na Semana do
Bebê ................................................................................................................. 428
ANEXO F - Documento de prorrogação da pesquisa ....................................... 430
ANEXO G - Cartazes espalhados na unidade por um grupo de técnicas......... 431
ANEXO H - Ementa do segundo curso............................................................. 432
ANEXO I - Estratégias dos grupos para implementação de preservativo:........ 437
ANEXO J - Relatório de uma profissional sobre o segundo curso ................... 440
ANEXO K - Relação de nomes dos jovens ...................................................... 442
10

INTRODUÇÃO

O mundo não nos rodeia, nos atravessa e nos produz. É por isso que me parece
impossível começar este texto sobre uma pesquisa no sistema socioeducativo sem falar
do contexto em que a pesquisa aqui apresentada foi realizada e escrita, que abrangeu
de 2014 a 2017. O quanto esse contexto afetou e produziu esse processo é
incalculável, mas gostaria de destacar alguns pontos que considero fundamentais.
Primeiramente, diante das parcerias realizadas no processo, foi evidenciada a
importância da vinculação da universidade com a comunidade, tradição da UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e o elemento que mais me apaixona dela, o
que gera uma profunda tristeza ao vê-la sendo cada dia mais precarizada e suas
(nossas) ações cada vez mais obstaculizadas. Nesse sentido, foi importante pensar no
nosso compromisso como equipe de pesquisa no contexto de crise política, econômica,
institucional e ética, ao nos vermos frente a uma dificuldade de pensar estratégias de
ação e de valorização do trabalho que estamos fazendo.
Foi relevante também ver como não só a Universidade, mas o Novo Degase
(Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Rio de Janeiro) também se viu
afetado por essa crise, incluindo cortes de pessoal e de serviços e uma greve 1,
evidenciando uma perversa relação entre a precarização do estado do Rio de Janeiro e
suas instâncias, o aprofundamento da desigualdade e a criminalização da pobreza
expressa, por exemplo, na higienização da cidade, que foi gritante na época das
Olimpíadas, superlotando ainda mais as unidades socioeducativas. Porém, é também
importante reconhecer que nesse contexto conseguimos conhecer e trabalhar com
pessoas comprometidas com sua prática profissional e, de forma articulada, com uma
mudança do rumo político do país. Por último, o contexto mostrou nítida e cruelmente o
estado de guerra que se vive no Rio de Janeiro, do qual os jovens, as/os profissionais e
nós pesquisadoras participamos, a partir do qual sofremos e nos constituímos. Escrever

1
A greve teve condições específicas, com caráter de interna, ou seja, que as/os profissionais
concursados/as continuavam indo, mas sem fazer nada além do emergencial, sendo pressionados/as
pelos jovens e por profissionais de contrato.
11

a tese escutando tiroteios próximos da minha casa2, a equipe ser assaltada junto com
uma psicóloga do DEGASE saindo de um evento em que falávamos da pesquisa, ser
roubada por três idosas, meses de atraso nas bolsas e salários, são só uma porção
dessa violência e desigualdade que me afetam, mesmo que de forma distinta e
infinitamente menor que a esses jovens e a outros/as moradores/as das favelas e das
periferias.
Este contexto de guerra militarizada, judicializada, burocratizada, medicalizada e
psicologizada, onde imperam a pobreza, o ódio, o machismo, o racismo, a
discriminação e a violência, fenômenos expressados em discursos conservadores cada
vez mais potentes no que tange à redução da idade penal ou o cerceamento aos
direitos sexuais e reprodutivos, nos apresenta dois grandes desafios: o de pensar em
noções e práticas de justiça e de igualdade e o de analisar os processos e os
movimentos em sua construção histórica, recheados de fluxos, mudanças e dores.
Como não se esgotar no movimento de tentar acompanhar as continuidades e
descontinuidades, especialmente quando estas são tão seletivas justamente no que
para nós fere a vida e a dignidade? Estas são angústias que permearam o processo de
trabalho de campo, e que também se fazem presentes permanentemente na hora da
escrita. Meu desejo de começar com isto é justamente expressar as intensas afetações
que me perpassaram também na hora de escrever, condensando o percurso de
pesquisa realizado.
Assim, o presente texto apresenta o caminho da pesquisa-intervenção
percorrido, compondo uma cartografia das experiências em gênero e sexualidade de
homens jovens que cumprem medida socioeducativa em uma unidade masculina de
internação do Degase3. A pesquisa esteve inicialmente inserida em um projeto mais

2
Mais ou menos ao mesmo tempo em que comecei a visitar a unidade, o bairro onde vivo, Catumbi,
retornou a ser um território de conflito entre duas facções e a polícia.
3
O ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente, Brasil, 1990), faz uma separação entre instituições de
atendimento a jovens menores de idade que cometeram ato infracional e outros que precisam estar sob
medida de proteção. O DEGASE, sistema socioeducativo do Rio de Janeiro, conta hoje com
municipalização de algumas medidas e atualmente faz parte da Secretaria Estadual de Educação, o
que está em vias de mudar para fazer parte da Secretaria de Segurança. Em algum momento no campo
foi colocado que seria importante ter uma Secretaria de Socioeducação, para ter mais autonomia. No
ECA, o ato infracional praticado por adolescentes deve receber a aplicação de medidas de proteção,
pois os menores de 18 anos são “penalmente inimputáveis” (Brasil, 1990, artigo 104). As medidas
socioeducativas dividem-se entre as que são executadas em meio aberto (advertência, reparação do
12

amplo, intitulado “Sexualidade e adolescência na contemporaneidade”, apoiado pela


FAPERJ, coordenado pela minha orientadora, Anna Paula Uziel, e desenvolvido por
uma equipe interinstitucional – com integrantes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Instituto Federal do Rio de Janeiro e Fundação Oswaldo Cruz – que pretendia
se debruçar sobre as noções e práticas de sexualidade de jovens em diferentes
contextos: o sistema socioeducativo, o sistema de acolhimento institucional e jovens de
camadas médias do Rio de Janeiro - que diante das práticas de desigualdade social,
raramente chegam a esses estabelecimentos.
Porém, a experiência no DEGASE foi tão arrebatadora, que a equipe acabou
focando nele, se dividindo em três subequipes para trabalhar nas unidades: Centro de
Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (PAC-GC, unidade feminina
localizada na Ilha do Governador), Educandário Santo Expedito (ESE, unidade
masculina localizada em Bangu) e Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo (CAI
Baixada, unidade masculina localizada em Belford Roxo).
Essa divisão foi realizada por interesse das pessoas nas unidades e em uma
tentativa de distribuir pessoas em distintos momentos da carreira acadêmica –
graduação, mestrado, doutorado, pós-doutorado, docência. Imediatamente me
interessei pelo CAI Baixada, por estar em Belford Roxo, um dos primeiros lugares que
conheci ao chegar, em 2011, ao Rio de Janeiro - apresentado por meu amigo Márcio
Caetano, oriundo desse município e que sempre expressou a tristeza que gera nele vê-
lo subsumido a uma série de governos corruptos – e que revisitei durante meu trabalho
na Secretaria do Ambiente. Também compuseram esta equipe Gabriela Salomão (IFRJ)
e Fernando Pocahy (Faculdade de Educação da UERJ).
Aos poucos meses de trabalho na unidade, eu estava tão afetada pelo campo e
pelo trabalho coletivo que estávamos desenvolvendo – capturada em uma relação
emotiva de fascínio, horror e vontade de me engajar em algum tipo de movimento de
transformação-, que decidi mudar o meu tema de tese de doutorado, que não era
inicialmente este. Como feminista, me sentia profundamente inquieta com a produção
das performatividades masculinas. Como cartógrafa, não podia deixar de pensar que

dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida) e as de privação de liberdade


(semiliberdade e internação em estabelecimento educacional).
13

afetar denuncia que algo está acontecendo e que nosso saber é mínimo nesse
acontecer. Sinaliza a força de expansão da vida e da atividade que podemos
viver. A tensão se instala. [...] Entre as variações de afetos vividos percebemos
que algo convoca ao movimento de pesquisar. Vontade de encontro que se faz
de uma esquina, de uma infração, de um conceito, de uma pergunta que insiste
com sensações. Passagens ativas, não as perca. A expectativa de conhecer a
priori esse viver nos afasta da intensidade que produz o movimento do afetar.
Permita-se viver esse movimento, pois é precisamente na experiência desse
percurso do afetar que a pesquisa acontece (LAZZAROTTO; CARVALHO,
2012, p.24).

A partir dessa decisão, consegui mergulhar ainda mais na pesquisa, buscando


explorar as gramáticas da sexualidade e do gênero na vivência dos jovens que passam
pela unidade, em um momento em que suas vidas estão sendo atravessadas por essa
instituição-estabelecimento de privação de liberdade, que por sua vez se articula com
outras instituições-organizações, tais como as facções do tráfico de drogas ilícitas, a
polícia, o judiciário, a escola, o sistema de acolhimento, o mercado de trabalho, a
família, as comunidades religiosas, a mídia, a universidade, dentre outras. Como
aprofundarei no primeiro capítulo, abordarei o conceito de instituição inspirada na
Análise institucional, que diferencia a instituição-estabelecimento ou instituição-
organização, da instituição-dispositivo ou instituição-prática, e a instituição-forma das
relações sociais (RODRIGUES; SOUZA, 1982).
Assim, o objetivo foi e é neste texto esmiuçar temas e vivências, focando nas
negociações, práticas, desejos e conflitos, me embrenhando na micropolítica do
cotidiano, procurando compreender as cristalizações da sexualidade e do gênero,
entendidos como dispositivos de constituição da subjetividade, assim como as linhas de
fuga e os movimentos de resistência que fomos identificando, de forma a potencializar a
vida desses jovens, através do exercício das práticas de cuidado deles e das/os
funcionárias/os. Entendo a resistência

não como uma pura reação aos poderes vigentes, às normas impostas, mas,
justamente, como uma outra forma de existir. Resistência enquanto afirmação
de processos inéditos de vida. [...]. Resistir não é simplesmente se opor. É algo
muito mais difícil e complexo: é criar, é produzir rupturas, é afirmar outras
lógicas, outras realidades. Diferentemente, os poderes, o Estado, buscam a
organização, a ordenação, a hierarquização, a homogeneização das diferenças
e das multiplicidades (COIMBRA, 2008, p.16).

Compreendendo que
14

intervir na pesquisa é criar um campo de tensão entre a problematização que


produz posições subjetivas de invenção e a atualização que é a reformulação
da experiência através da explicação, favorecendo assim a construção de
comuns a partir de existências singulares (LOPES; DIEHL, 2012, p.136).

Apostamos, como equipe de pesquisa-intervenção, ao longo de três anos, em


incorporar na nossa prática a ideia de que a resistência não pode ser solitária, mas
cooperativa, coletiva, de forma a fabular conceitos e projetos em forma de trama.
Diante disso, expresso a minha felicidade ao dizer que o processo de pesquisa
doutoral não tem sido um caminho solitário, o que apresenta um desafio na hora de
organizar o texto de forma polifônica, pois muito do que está aqui provém de
discussões na subequipe, com a equipe maior original e com pessoas, tanto da UERJ
quanto da própria unidade, que foram se aproximando dos caminhos da pesquisa, de
forma flutuante e enriquecedora. Inclusive, algumas elaborações coletivas já foram
publicadas, e estarão presentes em citações neste trabalho.
Igualmente, em alguns momentos falarei em plural e outros em singular,
dependendo do caráter das análises e vivências. O olhar compartido, o fluxo de
emoções, leituras, perguntas e análises, as conversas dos caminhos de volta, a
composição de diálogos desde os nossos diferentes lugares, foram elementos
extremamente relevantes da pesquisa. Ao pensar nisso, costumamos lembrar do que
Gilles Deleuze e Félix Guattari expressavam, ao falar:

Escrevemos o Anti-Édipo a dois. Como cada um de nós era vários, já era muita
gente. [...] Não chegar ao ponto de não se diz mais EU, mas ao ponto em que já
não tem qualquer importância dizer ou não dizer EU. Não somos mais nós
mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos ajudados, aspirados,
multiplicados (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.9).

Assim,
Podemos pensar os espaços da pesquisa e extensão como terrenos
privilegiados para a indisciplina e a invenção. Primeiro porque são espaços de
interrogação e problematização não apenas dessas transformações e novas
questões que se apresentam, mas também dos próprios modos como as
colocamos sob o foco de nossas pesquisas e das formas como propomos
investigá-las. Segundo porque, como atividades de pesquisa, podem acolher a
crise, a imprevisibilidade, a processualidade desejável na construção de
conhecimentos locais, provisórios e comprometidos com seus contextos de
produção. E, por fim, porque se vinculam à formação, de modo que levam
consigo um potencial de multiplicação de possibilidades inventivas (HUNING;
GUARESCHI, 2008, p.52).
15

Em um mar de questões e de afetações que o campo trouxe, e através das


diversas interlocuções possíveis com uma variedade de temas, delimitei a pesquisa aos
mecanismos de produção de performatividades masculinas e de articulação das
produções de gênero e sexualidade com as práticas e discursos dessa instituição-
estabelecimento, tão fortemente territorializada, que se apresenta como um terminal de
múltiplos vetores de discriminação, onde algumas linhas de fuga são desenhadas.
Nesta empreitada, como já anunciei,

a escolha pela metodologia cartográfica se deu por identificarmos nesta


proposta possibilidades de pensar o campo a partir do que há de processual, de
movimento (Pozzana e Kastrup, 2009). Além disso, a cartografia permitiu que o
nosso caminho se configurasse como uma pesquisa-intervenção, que não só
não acredita na neutralidade como também pretende efetivamente movimentar
o campo em que se insere (Passos e Kastrup, 2013). Assim, pensando a
pesquisa como compromisso ético-estético-político (Rolnik, 1993), nosso
objetivo foi produzir mudanças e estremecer barreiras (BERTRAMI; DE GARAY,
2017, p.81).

Deste modo, a tese será organizada da seguinte forma: no primeiro capítulo, “A


dobra que captura”, apresento o mapa físico e intensivo do CAI, que ao tempo em que
captura os jovens e dobra suas trajetórias, também nos capturou com suas durezas e
potências, provocando a mergulhar na pesquisa, construir parcerias e operacionalizar
propostas. Desta forma, apresento também a abordagem metodológica da pesquisa.
No segundo capítulo, “A dobra que adolesce” apresento as trajetórias dos jovens
constituídas pelas diversas instituições, eixo primordial das análises. No terceiro
capítulo, “A dobra que apreende”, mergulho na dobra que implica a privação de
liberdade nessas trajetórias, e como as instituições-estabelecimento se configuram
como terminais de saber e poder.
No quarto capítulo “A dobra que generifica” aprofundo as performatividades
masculinas dos jovens, incluindo a inflexão imposta pela passagem pelo Degase.
Vemos como através de normas, precariedades, disputas, sobrecodificações e linhas
de fuga, a sexualidade e o gênero se apresentam como ambivalentes, pois ao tempo
em que apertam, escapam, entre ostentação e contenção, carência e força, violência e
cuidado, produzindo moralidades performadas na construção dos corpos.
16

No quinto capítulo “A dobra que corporifica”, vemos como moralidades e afetos


produzem e marcam corpos, operando em discursos e práticas que se interpelam, se
apoiam, se confrontam e se potencializam. Por último, no sexto capítulo, “A dobra
(se)tensiona e (des)dobra”, discuto os mecanismos em que as normativas de gênero e
sexualidade são instauradas no cotidiano da unidade e como elas foram de certa forma
postas em análise nas diferentes ações que foram desenvolvidas nesta cartografia
feminista, buscando desnaturalizar4 algumas noções e práticas (inter)institucionais
relacionadas a essas normativas através de processos de interlocução com os jovens e
com profissionais. Nesse sentido, esmiúço as linhas duras e flexíveis das implicações e
negociações da pesquisa, observada como dispositivo de análise das forças
relacionadas com gênero e sexualidade e de ação nesse campo não apenas para
nossa equipe, mas, de diversas formas, para profissionais, jovens, direção e gestão do
Degase.
Cabe aqui sinalizar a escolha dos nomes fictícios para me referir aos jovens com
os que trabalhamos. Nas entrevistas individuais, pedia aos jovens sugestão de nomes
para identificá-los e alguns diziam que não se importavam em usar seus próprios
nomes. Talvez pudesse ter explicado melhor a importância de salvaguardar seu
anonimato e o sigilo da informação proporcionada. Outros propunham outros nomes,
que curiosamente quase sempre foram “Matheus”, nome muito comum nessa geração.
Usar “Matheus 1, Matheus 2”, falaria disso, mas reproduziria a incômoda prática de
chamá-los por seus números.
Escolhi usar os nomes de um grupo de jovens mexicanos que, em 2014, foram
desaparecidos por agentes de segurança do Estado mexicano, em coalizão com cárteis
do tráfico de drogas. O caso dos 43 estudantes desaparecidos da escola normal rural
Raúl Isidro Burgos, de Ayotzinapa, Morelos, gerou uma comoção internacional,
produzindo não apenas solidariedade, mas discussões sobre a violência do
denominado “Narcoestado” em outros contextos, especialmente direcionada a homens
jovens etnicamente, racialmente e/ou socialmente minoritários. Desta forma, a

4
Podemos entender desnaturalizar como uma questão metodológica, que implica “Suspeitar da
naturalidade dos objetos, das relações, das formas de ser; estranhar o cotidiano e suas obviedades
inquestionáveis; exercício crítico do olhar implicando deslocar do habitual e desfocar, duvidando daquilo
que se vê, além de exercer a suspeita como atitude ética e postura política” (PRADO, 2012, p. 71).
17

Caravana 43 Sul-América, representada por duas mães, um pai e um colega dos


estudantes, que veio ao Rio de Janeiro em junho de 2015, além de me afetar
profundamente, me possibilitou intensificar as pontes de análise e afeto entre ambos os
contextos, marcados pela desigualdade, violência e racismo, assim como conhecer
coletivos e grupos que atuam na cidade e que estabeleceram diálogo com a Caravana.
Desta forma, mesmo sabendo das diferenças entre as trajetórias dos jovens
mexicanos e as dos jovens do CAI, incluindo o fato de que a maioria dos mexicanos
continua desaparecida e os brasileiros foram capazes de participar com suas vozes
ainda presentes5, uso os nomes dos mexicanos como forma de homenagem e de
permanente ponte entre o México e o Brasil, movimento que tem me atravessado desde
que cheguei no Rio de Janeiro.

5
Em um caso, utilizo o nome de um estudante mexicano que já foi encontrado torturado e morto, como
nome de um jovem que, semanas depois de participar conosco, foi liberado do CAI e foi executado na
rua.
18

1 A DOBRA QUE CAPTURA

A partir da Análise Institucional, instituição pode ser pensada 1) como


“ESTABELECIMENTOS ou ORGANIZAÇÕES, com existência material e/ou jurídica”
(RODRIGUES; SOUZA, 1991, p.31), como uma “organização que ocupa um espaço
físico determinado, tem suas normas e leis, e reúne um grupo de pessoas que nele
trabalham com determinado objetivo (instituição=estabelecimento) (p.35); 2) como
“dispositivos instalados no interior dos estabelecimentos” (p.31), ou seja, como práticas
(p.35) ou técnicas (p.33); e finalmente, num sentido mais conceitual, “imediatamente
problemático”, “não localizável” (p.33) 3) como uma “FORMA que produz e reproduz as
relações sociais ou FORMA GERAL das relações sociais, que se instrumenta em
estabelecimentos e/ou dispositivos” (p.33), ou seja, como formas gerais ou
hegemónicas que se instrumentam em estabelecimentos e organizam práticas, com um
“sentido ativo de manter de pé a máquina social ou até de produzi-la” (p.33).
Nesse sentido, quem se inspira ou trabalha com essa abordagem interroga “as
condições históricas de sua [das instituições] produção e reprodução” (p.34),
compreendendo-a como produção, como atividade, seja de produção, reprodução,
transformação ou subversão (p.42), intervindo “EM estabelecimentos e COM
dispositivos, mas sempre visando a apreender a instituição em seu sentido ativo” (p.
34), engendrando indagações sobre as instituições, sobre o surgimento histórico
datado, sobre o lugar e sobre as implicações (p.38) e questionando a “naturalidade”
(p.40).
Assim, a instituição não designa apenas uma forma social particular concreta,
quer dizer, um estabelecimento como o CAI, ou jurídica ou organizacional, como o caso
do Degase e seus procedimentos de assujeitamento, mas as formas de organização e
tensão das práticas, o espaço onde as relações de produção estão instituídas de
maneira aparentemente natural e eterna (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008), as lógicas,
códigos, valores, hábitos, costumes, normas ou leis que regulam as relações humanas
(BAREMBLITT, 2002).
19

O Sistema Socioeducativo a nível nacional é operado por instituições-


organizações em cada estado, com suas especificidades geopolíticas. No Rio de
Janeiro, o Novo Degase está composto por diversas unidades com suas
particularidades, e os jovens são transferidos entre elas de forma recorrente como
medida de Segurança, por terem participado de tentativas de rebeliões, por dividirem
espaço com jovens com os que tiveram problemas “na pista” – tais como cobranças por
ter matado amigos ou familiares- ou outro tipo de conflitos. Em entrevistas individuais,
alguns jovens relataram trajetórias de passagem em várias unidades e citaram
especificidades de cada uma, sendo algumas mais duras do que outras, e umas com
melhor estrutura do que outras. Relataram também ter passado por unidades de
semiliberdade, quase sempre evadindo as medidas, o que posteriormente implicava
medidas mais longas de internação6.
A partir disso, pensamos que a entrada de jovens no Sistema Socioeducativo,
uma instituição-organização - composta por várias instituições-estabelecimento,
algumas de privação e outras de restrição de liberdade, com suas regras, códigos,
hierarquias e significados, constitui uma série de experiências de intersecção com
outras instituições-estabelecimento e instituições-organização das quais esses sujeitos
fazem ou fizeram parte ou tiveram relação, tais como escolas, famílias, comunidades
religiosas, abrigos, sistema judiciário e inclusive o tráfico de drogas, cujas facções
também podem ser consideradas instituições-organizações com uma pedagogia
particular7, agenciamentos de um ethos específico que modulando as decisões
cotidianas (SILVA, et.al., 2016), produtoras de subjetividades, reguladoras de desejos,
tempos e territórios, atravessando de forma bastante marcada as relações e
coproduzindo o funcionamento do Degase.

6
Tem sido constatado que os jovens “relatam a dificuldade de, após cumprirem meses ou anos de
medidas de privação de liberdade, permanecer o tempo que seja em unidades de semiliberdade,
prevalecendo, em geral, o desejo de fugir, muitas vezes, como contam, incentivado pelos próprios
agentes de disciplina” (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p.33).
7
Este termo foi proposto por Fernando nas nossas conversas.
20

1.1 Caindo no CAI

Em março de 2015, após a autorização da juíza para realizar a pesquisa nas


unidades, com grande apoio da Escola de Gestão Socioeducativa (EGSE), com quem
tínhamos parceria há alguns anos, eu, Gabi e Fernando começamos a visitar o CAI
Baixada, que está localizado em Bom Pastor, Belford Roxo, na Baixada Fluminense. A
localidade onde se encontra é extremamente precarizada no que tange à infraestrutura
urbana, como falta de asfalto e saneamento básico, elementos que durante o processo
eu tendia a parar de pôr em análise, até que alguém novo, fosse pesquisadora ou
professora, ia comigo e o evidenciava novamente.
Segundo uma pessoa do sindicato do Degase, a unidade costumava ser um
prédio de lavanderia da Funabem - Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor,
sistema anterior ao Degase no destino de jovens que cometiam ato infracional-, o que
deixa claro a disposição inadequada para seu fim. Como o resto das unidades, o CAI
vive uma hiperlotação – que passarei a chamar assim, no lugar de “superlotação”, com
o objetivo de chamar ainda mais a atenção para esse fator.
Segundo a Resolução de n.º 46/96 do CONANDA, citada no SINASE (BRASIL,
2006), as unidades devem receber até 40 jovens, e em caso de existência de mais de
uma Unidade no mesmo terreno estas não ultrapassarão noventa adolescentes na sua
totalidade. Como o CAI inicialmente abarcava unidade de internação 8 e provisória9, este
podia ser entendido como duas unidades em um terreno, elemento que mudou nestes
três anos, pois atualmente é apenas internação. No entanto, a unidade passou de 90
jovens no final de 2014, como relatado por uma profissional, a 180 jovens quando

8
“De acordo com o ECA, a medida de internação só deve ser aplicada mediante a prática de atos
infracionais graves. A internação não poderá ultrapassar três anos. [...]ECA-Art 121. A internação
constitui medida privativa de liberdade, sujeita aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito
à condição particular de pessoa em desenvolvimento” (ABDALLA, 2016, p.32).
9
“A internação provisória é um procedimento aplicado antes da sentença julgada, quando há indícios
suficientes de autoria e materialidade do ato infracional cometido pelo adolescente ou quando há um
descumprimento de ordem anteriormente aplicada pelo Poder Judiciário. Conforme prevê o artigo 183
do ECA, a internação provisória caracteriza-se pela privação de liberdade com duração máxima de 45
dias, período em que são realizados os estudos técnicos que subsidiam a aplicação da medida
socioeducativa determinada pelo Poder Judiciário” (ABDALLA, 2016, p.31).
21

chegamos, em março de 2015, a 200 em maio de 2015, com uma diminuição em


agosto desse ano por uma intervenção do Juizado que apontava que não podia haver
excesso de jovens e que todos que estivessem na unidade deviam ser da localidade.
Em fevereiro de 2016, eram 300 jovens – também por causa do carnaval-, 358 em maio
de 2016, 400 em agosto de 2016, chegando a quase 500 nos meses anteriores e
durante os jogos olímpicos na cidade, 390 em setembro de 2016, e 300 em março de
2017, 298 em maio de 2017, número mais ou menos estável até setembro de 2017.
A maioria dos jovens que são enviados ao CAI são habitantes da Baixada
Fluminense, território extremamente amplo e de limites geográficos de difícil definição,
assim como de outros municípios do estado do Rio de Janeiro. Além de jovens de
Queimados, Duque de Caxias, São João de Meriti e Belford Roxo, conhecemos alguns
de Petrópolis, Arraial do Cabo, Barra Mansa, Resende, Pinheiral, Itaguaí, Volta
Redonda, e São Gonçalo. As grandes distâncias implicam um deslocamento enorme
para algumas famílias que visitam os jovens ou gostariam de fazê-lo.
A unidade também recebe jovens que se envolveram em conflitos em outras
unidades, pois o CAI é considerado, como foi repetidamente anunciado, inclusive por
alguns jovens, como uma unidade referência10 no que tange à humanização das suas
práticas. A maioria dos jovens da unidade é negra e de comunidades empobrecidas. Os
jovens têm entre 14 e 21 anos, com número de passagens pelo Sistema bastante
variável, de uma a quinze, e com tempos de medida de um mês a quase dois anos. Os
atos infracionais mais comuns são roubo, assalto e tráfico11.
O acesso à unidade é relativamente fácil, pois várias linhas de ônibus passam
próximo, algumas partindo do metrô Pavuna. Foram poucas as vezes que fui de
transporte público, sendo o carro da Gabi o nosso transporte usual e, importante dizer,
o local mais importante de discussão sobre o campo. A diferença de tempo entre os
dois transportes é gritante, fazendo mais do dobro de tempo em transporte público, o

10
Será utilizado itálico para se referir a termos êmicos e expressões utilizadas por participantes no campo.
11
As estatísticas oficiais apontavam, em 2014 – último levantamento disponível no site da Secretaria de
Direitos Humanos-, em nível nacional 44% por roubo e 24% por tráfico, enquanto que no Rio de Janeiro
era 36% roubo e 40% tráfico (BRASIL, 2017, p. 28). Estes dados podem ter mudado nos últimos três
anos.
22

que sempre me fazia pensar nas famílias que se deslocavam de lugares ainda mais
distantes para as visitas.
Os muros externos da unidade estão pichados com cada vez mais mensagens,
algumas expressando “saudade” ou pedindo “liberdade” a algum jovem que
provavelmente está/va Dentro, outra dizendo “nego é bandido”, outra dizendo “sem
neuroze” e outras delimitando o território onde a unidade está localizada, que durante
todo o tempo que a visitamos pertenceu à facção ADA (Amigos dos Amigos). Uma boca
de fumo dessa facção está a alguns metros da unidade12, o que sempre estabelece
uma certa tensão, pois a maioria dos jovens que se encontra cumprindo medida é do
Comando Vermelho (CV). Inclusive, em uma ocasião, em um sábado muito cedo do
início de 2017, dois jovens da ADA, armados e de moto, entraram à força na unidade, e
começaram a gritar ainda no estacionamento, ameaçando os jovens do CV. Isto gerou
uma tensão muito grande, e agentes e diretores tiveram que sair para negociar com
eles. São poucas as informações que temos sobre esse acontecimento, mas elas são
suficientes para entender o clima que se vive constantemente nos arredores da
unidade.
Ao lado da unidade está uma escola e na frente tem uma igreja evangélica e a
Casa das Mães, que oferece café e acolhe as mães e outros familiares que visitam os
jovens nas quartas feiras e sábados, antes delas fazerem uma fila na rua - sem
pavimento, empoeirada e sem sombra. A igreja também oferece roupas para as
mulheres que não estão vestidas de acordo com as regras que a instituição-
organização impõe, tema que será bastante abordado ao longo do texto.
O portão do CAI tem uma entrada para carros e outra para pedestres, ambas
fechadas permanentemente. O agente que está do lado de dentro olha primeiro,
através de uma pequena porta, e abre o portão para deixar o carro ou a pessoa entrar
na primeira grade. Mesmo infinitamente mais fácil do que a entrada nas unidades
prisionais - onde inclusive o processo burocrático no meu caso, por ser estrangeira, é
ainda mais difícil que para outras pessoas-, e em algumas unidades socioeducativas, o
processo de entrada variava a cada ida nossa. Às vezes os agentes já sabiam das

12
Inclusive, em uma ocasião, Gabi estava tentando tirar uma foto da fachada da unidade, e os jovens da
boca gritaram “aí doidona, o que você está fazendo?”, achando que estava tirando foto deles.
23

nossas visitas, às vezes não, às vezes avisavam por rádio, às vezes pediam as nossas
identidades e as anotavam ou apenas as verificavam, às vezes lembravam dos nossos
nomes e os anotavam sem mais protocolos no caderno de visitas, mas às vezes
solicitavam as identidades e anotavam mais dados no caderno.
Nossas mochilas e bolsas nunca foram revistadas nem confiscadas, podendo
entrar com celulares e gravadores, coisa impossível de fazer na prisão. Este tratamento
é extremamente distinto do dado a familiares que, quando começamos a visitar a
unidade, passavam por revista vexatória, substituída por escâner posteriormente, além
de uma revisão de documentos e das listas que permitem ou não a visita, dependendo
do grau de parentesco e/ou da autorização da equipe técnica de referência de cada
jovem. Nossas roupas tampouco eram alvo de filtro para entrar ou não na unidade,
diferente das/os familiares, o que não significa que não tenham sido criticadas pelas/os
profissionais já estando lá Dentro. Essa diferença no tratamento nos incomodava
quando coincidíamos com os dias da visita familiar, ao entrar com extrema facilidade na
unidade, de carro, enquanto a fila de familiares, a maioria mulheres, esperava horas
para ser minuciosamente revistada e conseguir ver os jovens por duas horas. Elas
também percebiam essa diferença, como expressado por uma mulher que em uma
ocasião disse, com tom de deboche, “essas mulheres sempre estão aqui”.
O estacionamento é bastante espaçoso e sempre tem lugar para parar o carro.
Durante um período, tinha um esgoto aberto, o que além de produzir um fedor que
entrava no refeitório e em alguns alojamentos, nos preocupava, porque esse local podia
ser foco de mosquito, era a época mais difícil da epidemia da zika e uma das técnicas
estava grávida. Já Dentro, a unidade conta com um auditório com um banheiro, onde as
famílias visitantes passam por um segundo filtro, com seus documentos verificados pela
equipe técnica. É também no auditório onde acontecem os eventos, as aulas de teatro,
formaturas, palestras, cursos e atividades como os que nós promovemos. Há um palco
de madeira, aproximadamente 100 assentos, equipamento de som, ar condicionado e
tela para Datashow. No entanto, a circulação de ar é bastante deficiente, perceptível
nos dias em que chegávamos cedo.
Posteriormente estão a cozinha e o refeitório. O refeitório tem mesas com
cadeiras fixas, onde cabem seis jovens. Ali, além das refeições, acontecem as visitas
24

familiares. Nas paredes, costumam ter pregados desenhos e, na nossa última visita,
tinha penduradas faixas falando sobre “Paz nos alojamentos”. As refeições dos jovens
são bastante cedo - 7h, 11h e 16h –, e é um processo que demanda bastante logística
e tempo, sendo chamados grupos de jovens, enquanto o resto espera sentado no chão
do pátio. Depois que todos os jovens terminam, é servida a refeição dos/das
profissionais e convidadas/os como nós. As refeições são de boa qualidade, mas foram
severamente afetadas pela crise do estado do Rio de Janeiro, já que no início
ofereciam, por exemplo, açaí e sorvete, e posteriormente eliminaram esses elementos,
incluindo salada e suco em um período. Foi por isso que em determinado momento, foi
relatado que não tinha suficientes alimentos e que a maioria das/os profissionais estava
levando comida de casa. Alguns jovens afirmaram que os alimentos que eles recebem
não são os mesmos que nós recebemos, o que nunca chegamos a confirmar. Por outro
lado, escutamos várias falas que afirmavam que a alimentação dos jovens era muito
melhor no estabelecimento do que Fora, tendo efeitos nos corpos deles, perceptíveis
para as famílias. Este espaço tem muitas moscas e durante a época do esgoto aberto
no estacionamento, o fedor era tão grande que as/os profissionais pararam de almoçar
ali.
O pátio é um local de circulação, recriação e recepção, além de também espaço
para as visitas familiares. Em uma das paredes, um grafiteiro realizou, em agosto de
2015, junto com os jovens, um grafite que diz “É hoje que você vai mudar sua vida”.
Geralmente ele está coberto pelas cadeiras e mesas de plástico utilizadas para a visita
familiar, revelando-o quando estas são espalhadas pelo espaço. A visita, que
chegamos a observar em cinco ocasiões, é um momento bastante emotivo, e é possível
ver os jovens sorrindo, coisa que não é frequente em outros momentos. Cada família
fica conversando com o jovem e partilhando biscoitos e refrigerantes, que são os
alimentos que podem levar, sempre em sacolas de plástico transparentes e garrafas de
plástico sem etiquetas. A maioria das visitantes são mulheres – mães, avós, irmãs,
primas-, mas também chegamos a ver vários homens – pais e avôs, principalmente13.
Algumas famílias levam bebês e crianças – irmãos/ãs, primas/os, filhos/as. Poucas

13
Algunas técnicas sinalizaram perceber mais pais nas visitas, mas não sabem se esse crescimento é
proporcional à quantidade de jovens, que é maior, ou porque de fato eles estão conseguindo se
aproximar mais dos filhos.
25

companheiras conseguem entrar, pois devem comprovar um relacionamento e


precisam da autorização das famílias no caso das menores de idade. No caso das que
conseguimos observar, era interessante ver a troca de afetos e olhares com os jovens,
às vezes criando um momento em que parecia não ter mais ninguém no espaço.
O pátio também tem duas mesas de pingue-pongue, onde, segundo relatado, os
jovens jogam separadamente por facção. É ali onde eles esperam para serem
direcionados para as atividades, escola e refeições, sempre sentados no chão, em
fileiras, em cima de números pintados. Muitas vezes eles colocam os chinelos no chão
e sentam sobre eles, para não sujar a roupa. Ali também acontece a recepção,
momento bastante duro de se ver, especialmente a primeira vez, pois eles chegam da
rua algemados14 e a maioria das vezes com rostos muito sérios, expressando medo e
raiva e já adquirindo a linguagem corporal exigida: cabeça baixa, mãos para trás.
Nas nossas visitas, não conseguimos acompanhar o processo de recepção
inteiro, mas nos foi relatado que além do direcionamento a um dos módulos da equipe
técnica – composto por um/a pedagogo/a, um/a psicólogo/a e um/a assistente social- e
a avaliação médica, momento em que é ofertada a testagem para HIV e outras
infecções de transmissão sexual e receitados medicamentos, especialmente nos casos
de uso abusivo de drogas, nesse momento eles devem dar informações que definirão a
que alojamento serão encaminhados. Se eles se declararem gays ou trans –
chamados/as de mancões ou kit-, ou se foram acusados de cometer estupro ou outra
infração relacionada à violência sexual – chamados de Jack-, serão encaminhados para
um alojamento específico, chamado de seguro ou, mais oficialmente, grupo de
convivência protegida. Também são critérios para separação quem é filho de policial,
quem pertence à milícia, quem assaltou pessoas no ônibus ou quem roubou dinheiro,
drogas ou armas das facções, ou quem vacilou na comunidade.

14
Não existe no ECA nem no Sinase. No entanto, no Art. 178 do ECA, é assinalado que “O adolescente
a quem se atribua autoria de ato infracional não poderá ser conduzido ou transportado em
compartimento fechado de veículo policial, em condições atentatórias à sua dignidade, ou que
impliquem risco à sua integridade física ou mental, sob pena de responsabilidade”, o que já sugere a
dispensa ou cuidado no uso da algema. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, em 2010
(http://ens.sinase.sdh.gov.br/ens2/images/Biblioteca/modulos_dos_cursos/Nucleo_Basico_2015/Eixo_6/
EixoVI.pdf), assim como o Ministério Público e a Defensoria Pública em 2016
(https://oglobo.globo.com/rio/autoridades-pedem-retirada-de-algemas-de-jovens-hospitalizados-apos-
incendio-1-19886343), têm realizado recomendações que restringem o uso, entendendo-o como uma
prática que fere a dignidade humana.
26

Eles também devem dizer a qual facção do tráfico pertencem e a qual bairro.
Caso não pertençam a nenhuma facção, devem dizer em qual bairro eles moravam e,
dependendo disso, serão direcionados ao alojamento onde os jovens do tráfico dessa
localidade estão. Ou seja, a menos que os jovens que não pertencem a nenhuma
facção se oponham explicitamente a ir para um alojamento com jovens de facção, tais
como Alexander (19 anos, negro15), que disse que ao perguntarem “tá fechando com
quem?”, respondeu “‘eu? Tô fechando comigo mesmo!’ Não vou me meter em
problema”, eles irão partilhar o cotidiano com esses jovens e suas respectivas normas.
Isto, segundo um profissional que trabalha no CAI desde seu início, não foi sempre
assim, pois essa unidade se caracterizava por não fazer separações entre as facções.
Um momento da recepção que conseguimos observar em várias ocasiões foi o
corte do cabelo, inclusive, parte do assujeitamento realizado na instituição-
estabelecimento, como será discutido adiante. Em uma das ocasiões que observamos
esse momento, um jovem, que inclusive participou das nossas atividades, que ocupava
um lugar de liderança, se aproximou do jovem recém chegado, fazendo perguntas de
localidade, facção, entre outras informações necessárias para localizá-lo dentro desse
ambiente. Igualmente, um agente nos relatou que eles fazem sinais com as mãos,
indicando de que facção são. Como será abordado no texto, este tipo de acontecimento
vai dando conta da porosidade entre o Dentro e o Fora dos muros da instituição-
estabelecimento.
No pátio, do lado da entrada do refeitório, está A Mesa, ponto nevrálgico da
unidade, pois é nela que os movimentos logísticos, especialmente os referentes aos
jovens, são organizados. Toda vez que um/a técnico/a, docente, pesquisador/a ou
agente precisa trabalhar, atender ou conversar com algum jovem, deve solicitar
autorização nA Mesa, que informará ao agente que está no momento resguardando o
alojamento do jovem. É nA Mesa que os jovens devem fazer solicitações relacionadas
com roupas (uniforme), higiene, saúde, atividades, atendimentos, conversas com
diretores, etc. Igualmente, todas as pessoas externas à unidade devem informar nome
e objetivo nA Mesa. Constituída praticamente como uma entidade, A Mesa observa

15
Em alguns casos, a cor dos jovens é autodeclarada decorrente de pergunta direta ou de comentários
ao longo das atividades, mas em outros a identificação é minha.
27

tudo que acontece no pátio e, portanto, na unidade e registra tudo no livro de


ocorrências – entrada de jovens, saída para audiências ou hospital, solicitações e
entrega de material de higiene, uniforme, faltas disciplinares– e é onde os jovens são
identificados por números, não pelos seus nomes. As faltas disciplinares são
registradas com número, nome e motivo, e quando o jovem acumula cinco, ele é
chamado e questionado se “o erro é do sistema ou seu?”. Essa informação também é
compartilhada com as famílias, para “sensibilizá-las na condução do adolescente”,
como informado por um diretor.
A principal figura dA Mesa é a mesária, nome não oficial – e nem sempre aceito
por elas - dado às agentes femininas, que são responsáveis pelo livro de ocorrências e
pela revista das familiares- mães, avós, namoradas, irmãs maiores de doze anos, etc. –
, não participando do trabalho nos alojamentos e nem de outros movimentos na
unidade. Assim, a demanda administrativa para elas é grande e sua circulação é
limitada. Junto com elas, sempre estão um ou mais agentes homens – que garantem
sua proteção.
Do lado direito dA Mesa tem, além de uma televisão frequentemente ligada,
quase sempre no jornal, que bombardeia de notícias relacionadas à violência urbana,
um banheiro masculino e um feminino, utilizado pelas técnicas que, como veremos ao
longo do texto, têm a sua circulação pela unidade bastante restringida. Do lado
esquerdo do pátio há várias salas, com as portas sempre fechadas. As primeiras duas
são salas pequenas de atendimento, que chegamos a usar para entrevistar jovens e
profissionais. A terceira é a sala da equipe técnica, com várias mesas, computadores e
armários, todos lotados de relatórios realizados pelos módulos de referência, que serão
utilizados nas audiências para decidir o término, ampliação ou mudança de medidas
socioeducativas dos jovens. A sobrecarga de trabalho nessa função específica foi
constantemente referida como o maior problema desse segmento, cujos esforços
devem ser direcionados a essa tarefa, impedindo qualquer outra atividade, e
alimentando apenas o fluxo do Judiciário.
A quarta porta é a coordenação de atividades extracurriculares, também com
mesas e computadores. A quinta é a direção, onde os quatro diretores da unidade têm
as suas mesas e computadores. Nessa sala o fluxo é intenso, recebendo jovens e
28

profissionais de forma bastante aberta. Em uma ocasião, inclusive, observamos um


jovem entrando para dar um artesanato de presente para os diretores.
Desde a sala da equipe técnica, é possível passar a outro corredor, cujo acesso
também é possível lado do refeitório. Ali tem outra mesa quase sempre ocupada por um
ou dois agentes, e várias salas destinadas ao atendimento de saúde, além de um
banco onde jovens usualmente esperam atendimento. Essa é a área que parece mais
nova da unidade, com paredes reformadas, pintura recente, melhores móveis e
ventilação. Além de salas pequenas, onde são realizados atendimentos odontológico,
nutricional, ocupacional, psicológico e religioso, há uma sala maior para atendimento
médico e testagem de doenças e de Infecções de Transmissão Sexual (ISTs), a sala da
médica da unidade e uma sala maior utilizada pelas equipes de saúde mental e saúde
integral. Essas equipes se diferenciam das equipes denominadas “de medida”, pois
realizam encontros e atividades com grupos específicos de jovens que foram a elas
direcionados, o que, embora abranja uma quantidade muito menor de jovens, possibilita
fugir da produção frenética e burocrática de relatórios para pensar e realizar outras
ações afins a um processo socioeducativo, onde

busca-se práxis pedagógica a partir de objetivos e critérios metodológicos


próprios de um trabalho social reflexivo, crítico e construtivo. Como
desdobramento, há promoção pessoal e social através de um trabalho de
orientação de educação formal, de atividades pedagógicas, de lazer, esportivas,
culturais e de educação profissional, bem como demais questões inerentes ao
desenvolvimento do sujeito frente aos desafios da vida em liberdade
(ABDALLA, 2016, p.348).

Inclusive, nos últimos meses do nosso trabalho de campo, algumas pessoas


dessas equipes colocaram na unidade toda e especialmente nesse corredor, cartazes,
enfeites e informações sobre prevenção de ISTs (fotos dos cartazes no Anexo G). Elas
também têm planos de reaproveitar alguns espaços dessa área da unidade, por
exemplo, para uma área para ensinar os jovens a lavar roupa, para uma horta interna e
para uma oficina de mercenaria.
No final desse corredor tem a Triagem ou Enfermaria, quatro pequenos
alojamentos, aos quais tivemos acesso na nossa última visita à unidade. Eles são
extremamente escuros, abafados e muitas vezes com odores fortes. Apesar de serem
29

os menores, pois são os destinados, no discurso, a providenciar uma maior proteção


dos jovens através do isolamento, já que têm jovens da ADA e do Terceiro Comando
Puro (TCP),16 que são minoria em comparação aos do CV, eles também estão
superlotados, exceto um que, no momento em que este texto foi escrito, estava sendo
ocupado por um jovem com HIV e um casal de jovens.
Voltando ao pátio, do outro lado das salas – lado direito dA Mesa – está a
entrada para a escola da rede pública que atende aos jovens. Esta tem dois corredores.
O primeiro tem outro banheiro, a biblioteca, onde são realizadas atividades de
mediação de leitura e cujo acervo, principalmente de literatura infantil e juvenil, está
crescendo graças ao trabalho da bibliotecária17 - nomeada pelos jovens como a tia do
livro, a oficina de serigrafia, de música e a de informática, que atualmente não está em
uso. No outro corredor tem a direção da escola, as salas de aula e a sala de docentes.
Este corredor e suas salas têm sérios problemas de mofo que, conforme mencionado
pela diretora da escola, estão provocando problemas respiratórios em alguns/mas
docentes18. O corredor sempre tem produções artísticas e escolares dos alunos,
geralmente vinculadas a temas de cultura da diáspora africana, e nas últimas visitas,
uma das salas tinha uma exposição de fotos profissionais de jovens habitantes de
favelas. As paredes das salas também estão cobertas de produções escolares e
materiais para os alunos, tais como letras de música para a aula de espanhol,
informações sobre prevenção de ISTs. Todas as salas têm equipamento de vídeo e na
maioria das vezes em que visitamos a escola as aulas estavam usando recursos
audiovisuais, elemento que foi criticado por alguns agentes, que expressaram que as/os
docentes não usam outros recursos, nem mesmo livros. É importante mencionar que
um grande desafio da escola nesse estabelecimento é, além da diversidade de
escolaridades entre os jovens, a rotatividade destes na unidade, o que dificulta uma
organização e fluxo de conteúdo. Igualmente, mesmo sendo obrigação do Degase
garantir o direito à educação fundamental para todos os jovens, atualmente, nas

16
No final desta pesquisa, ADA e TCP realizaram uma aliança, cujos efeitos não tivemos tempo de sentir.
17
Assim como no caso dos jovens, as/os profissionais serão mantidas/os em anonimato, mencionando
apenas algumas das suas caraterísticas (gênero, profissão) quando isso for necessário para a análise.
18
Também nos foi informado que uma avaliação do prédio sugeriu que seria mais barato derrubá-lo e
construir um novo, do que reformar esse tipo de deficiências.
30

condições de hiperlotação, não há vaga para todos, situação que se repete em outras
unidades.
De volta ao pátio, outro acesso do lado direito leva a um corredor com salas de
trabalho administrativo, recursos humanos e o alojamento dos agentes – cujas
condições também são alarmantemente insalubres e precárias-, bem como uma rampa
que sobe a duas galerias de alojamentos, onde estão alocados jovens do CV. Foi
também apenas na nossa última visita que conseguimos conhecer esses alojamentos,
todos com grades. A galeria A, chamada de Coletiva, que, segundo informado por um
diretor, é ocupada por jovens com um “ritmo frenético dentro do tráfico”, tem 13
alojamentos, com cinco a nove camas, habitadas por entre oito a vinte jovens. A galeria
B, chamada de Individual, com “jovens que querem ficar mais tranquilos”, tem nove
alojamentos, bem menores, com duas camas, com dois até cinco jovens. Pelas janelas,
é possível ver a favela que está atrás da unidade, de onde, segundo um dos diretores,
jovens pertencentes ao tráfico da região já chegaram a ameaçar os jovens internos. A
hiperlotação é evidente e as condições são muito precárias, especialmente ao
considerar que é nesse espaço que eles passam a maior parte do tempo.
De volta ao pátio, ao lado da sala dos diretores tem uma porta que leva à quadra,
muito bem estruturada, coberta com um teto de boa qualidade, utilizada para festas,
futebol, voleibol e outras atividades físicas. Do lado da quadra tem a horta, onde
durante a pesquisa, alguns agentes fizeram um trabalho com alguns jovens, chegando
a produzir ingredientes para preparar alimentos diferentes no refeitório. Também tem
outro prédio, que quando começamos a visitar a unidade alojava a provisória, mas
atualmente é mais uma extensão da internação. É composto por uma sala para
agentes, um pequeno pátio interno, um pátio externo para banho de sol e duas galerias
de alojamentos, ocupados por jovens que, segundo a dinâmica institucional, devem
permanecer afastados do resto por proteção, seja porque é sua primeira passagem
pelo Sistema Socioeducativo, ou porque tiveram um conflito nos outros alojamentos, ou
porque são acusados de cometer infrações relacionadas com violência sexual, ou
porque se identificam como homossexuais ou declaradamente têm relações com
homens – o Seguro. Todos esses jovens recebem as refeições em quentinhas nos
alojamentos, não no refeitório.
31

Considero importante apontar aqui que as divisões de alojamentos e os motivos


para elas acontecerem, analisadores importantíssimos para esta pesquisa, foram
reportadas de forma que nos parecia vaga, pelo que perguntamos inúmeras vezes qual
era a logística de separação, e também de forma mutável, expressando uma logística
institucional fluida e disputada por várias forças e noções, e ao mesmo tempo
incorporada no cotidiano19 e inquestionada. Desta forma, esta apresentação inicial dos
espaços pode ter mudado na medida que escrevo aqui, mas o que parece importante
destacar e que será abordado ao longo do texto é que essas separações, em função de
facção, localidade, apego às normas do tráfico e questões relacionadas a sexualidade
são fundamentais para pensar a dinâmica institucional.
Igualmente, esse caráter fluido do que poderíamos chamar de mapa físico da
unidade também visibiliza esse caráter no mapa intensivo, perpassado por e
perpassando performatividades, temporalidades, afetividades, relações, linhas de força
– de endurecimento, de fuga. Foi esse mapa que acompanhamos estes anos, tentando
participar de composições de linhas alternativas que desestabilizassem as
cristalizações de gênero e sexualidade.
O CAI Baixada é às vezes nomeado como CAI Mancada, por ter se
caracterizado por ter uma flexibilidade maior e por receber recentemente casos de
jovens gays ou bissexuais. Mesmo com todas as dificuldades no que tange à temática
de gênero e sexualidade, as quais abordo constantemente no texto, é importante
afirmar que a abertura que a unidade teve com a pesquisa foi singular e diferente de
outras em que realizamos a pesquisa, e repetidamente foi enunciado por várias
pessoas, incluindo profissionais e jovens que passaram por outras unidades ou
escutaram relatos de outros jovens, que “o CAI é diferenciado”, pois o “discurso de
humanização é mais presente”. Também foi apontado por profissionais que
anteriormente não tinha divisão das facções nos alojamentos, mas que no momento em
que começou a separar, “não tinha volta atrás”. Um agente com bastante tempo na

19
Como apontado por Marisa Rocha e Anna Uziel, “cotidiano é laboratório de experiências onde os
(des)arranjos se fazem, onde as estratégias de enfrentamento do imprevisível se constituem nas
circunstancias e condições que variam. Assim, o cotidiano é superfície de deslizamentos em que
repetimos o esperado, o já inscrito nas nossas agendas e que lutamos para cumprir, mas também é
tecido denso que entre tramas e dramas intensifica existências e dá o que pensar (ROCHA; UZIEL,
2008, p. 533).
32

unidade apontou que antes não era necessário separar as facções porque “éramos
muito mais truculentos, a pancada era outra, por isso era diferente”. Outro falou que
“antes não daria para ter tanto adolescente de forma tranquila, tinha muito mais
violência de todos os lados. Já cheguei a ver, há muito tempo, adolescente falando
‘porrada pra mim é massagem’, hoje em dia não é assim. Hoje em dia os adolescentes
são mais fáceis de lidar, porque eles são melhor tratados”.
Constantemente escutamos relatos de que outras unidades masculinas de
internação são mais duras, e que a atual gestão do CAI tem trazido melhorias.
Alexander, que já passou por outras unidades, disse:

Jimena: e aqui você acha mais tranquilo?


Alexander: acho mais tranquilo. A maioria dos funcionários troca ideia, mas tem
alguns que são arrogantes, com cara fechada.

Escutamos também casos de jovens que já tinham terminado sua medida


socioeducativa e preferiam ficar no CAI por conta de compromissos com atividades que
estavam desenvolvendo, tais como teatro. Teve ainda relatos de jovens dando mostras
de afeto a profissionais, usados como argumento para falar “isso aqui é tudo menos
cadeia”. Inclusive, profissionais apontaram que os jovens do CAI “são mais tranquilos
porque são da Baixada, eles respeitam, chamam ela de senhora, pedem licença, dão
bom dia”.
Foi apontado também que no CAI há menos expressões de revolta do que em
outras unidades, tais como jogar a comida no chão, assim como tentativas de rebelião e
fuga, sendo, segundo um diretor, provavelmente por “ter uma perspectiva mais
pedagógica”. Soubemos de algumas fugas durante os anos que acompanhamos o CAI,
o que sempre gerava uma tensão no estabelecimento. Contudo, foi relatado que
quando os jovens do CAI chegam às unidades de semiliberdade, eles são identificados
imediatamente, por terem uma postura diferente da dos jovens de outras unidades de
internação.
Também foi relatado que anteriormente a unidade, que abriu em 1998, não tinha
escola, tendo um viés ainda mais punitivista e sem possibilidade de garantir o ECA, e a
equipe tentava manter uma grade com atividades pedagógicas. Um ano depois, “com
muita luta”, montaram uma Telessala. Durante o nosso campo, chegamos a ver, na
33

escola Dentro da unidade, cartazes contra a redução da idade penal, e é orgulho desta
que a equipe docente tem muito boa comunicação, os jovens têm recreio e as facções
ficam misturadas nas salas de aula – como também os gays e os que foram acusados
de cometer estupro, assim como outros excluídos do convívio nos alojamentos-, mesmo
que nos momentos de lazer os jovens se separem. Inclusive, em junho de 2016 a
escola realizou uma festa junina onde jovens de todas as facções participaram nas
atividades lúdicas e artísticas, tais como dançar quadrilha, acontecimento ressaltado
como uma conquista. Ouvimos também elogios de outros segmentos de momentos
como formaturas, onde jovens que não estavam mais no CAI voltaram para se
formarem lá.
Escutamos elogios à equipe técnica em comparação com outras unidades,
especialmente a de saúde mental, em palavras de Emiliano (19 anos, negro), “um
projeto bom”, que já recebeu prêmios de boas práticas do Ministério de Saúde em 2015
e 2017, e que durante o campo observamos ter iniciativas extremamente interessantes,
tais como oficina para lavar roupa, limpeza, desenho, voleibol, artesanato, rodas de
conversa sobre direitos sexuais e direitos reprodutivos e um curso de Promotores de
Saúde20. Infelizmente, quem é atingido por esse trabalho é uma pequena minoria dos
jovens.
Também ouvimos expressões como “Meu CAI, minha vida”, ou “a Família CAI”
de pessoas que informaram amar trabalhar ali, e dos seus esforços por se articular
tanto internamente quanto com outras instâncias de saúde, educação, cultura, esporte
e religião. No entanto, algumas pessoas também apontaram que o discurso da
instituição-estabelecimento é mais interessante do que a própria prática. Também, é
importante ter cautela, pois como sinalizado pelo Movimento Moleque, “nivelar pelo
menos pior não é a ideia do movimento de garantia de direito” (CUNHA; SALES;
CANARIM, 2007, p.42).

20
Gary Barker (2008) aponta a importância de trabalho com os jovens em temáticas sobre prazer e
promoção de relações igualitárias e justas, como um movimento fundamental na garantia da saúde
sexual e reprodutiva. Igualmente, conjuntamente com Nascimento e Segundo (2011), o autor aponta de
que forma os grupos de multiplicadores juvenis é uma ferramenta fundamental para o engajamento de
homens jovens em serviços de saúde no reconhecimento da necessidade de apoio, informação,
atendimento e aconselhamento, desafio constante nesses serviços.
34

1.2 Ocupando o CAI

A pesquisa foi orientada pela perspectiva cartográfica, que se insere no


paradigma ético-estético-político. Ético, pois se situa no plano das diferenças que se
fazem em nós e na afirmação do devir21 - potência ativa - a partir dessas diferenças;
estético, pois procura a criação permanente de um campo; e político, pois luta contra as
forças em nós que obstruem as nascentes do devir, a partir da escolha de um mundo
onde se quer viver (ROLNIK, 1993).
A pesquisa cartográfica é entendida como um coletivo de forças que se configura
de forma rizomática, ou seja, de multiplicidade sempre variável, em uma dimensão de
criação de outras ordens possíveis e imprevisíveis, na complexificação do mundo e da
vida, em contínua tensão. Assim, a cartografia é mapa em constante processo de
produção no qual a experimentação é contínua e capaz de criar novas coordenadas de
leitura da realidade, de forma que se questionem as hierarquias e fronteiras que
dividem os campos de conhecimento e se proponha uma recriação permanente do
campo de pesquisa (ZAMBENEDETTI; DA SILVA, 2011). Johny Álvarez e Eduardo
Passos (2009) insistem no caráter territorial da cartografia, remetendo-se ao plano onde
se faz a diferença. Ou seja, durante o percurso da pesquisa, a partir da deambulação,
da desorientação, vai se constituindo um mapa, com as nuances, com os movimentos.

Postula-se que a pesquisa nômade é um acontecimento singular, que se


materializa por um dispositivo de interrogação dos territórios disciplinares,
desdisciplinarizando os saberes. O mapa da pesquisa se faz na tessitura dos
encontros e das interseções, em uma aventura de travessias sem origens e
sem teleologias (LEMOS; CARDOSO; NASCIMENTO, 2012, p.157).

Desta forma, a discussão “é no sentido da experimentação, pensando a pesquisa


não como algo que pretende apreender formas fixas, pré-existentes, mas compreender
movimentos e transformações” (HILLESHEIM; DA CRUZ; SOMAVILLA, 2008, p.55).

21
“O devir não designa um estado de insuficiência. Não é uma falta de ser. Ele não carece vir-a-ser outro
para tornar-se real. Nem por imitação (copiar outro), nem por identificação (ser outro), tampouco por
transposição de relação (fazer como outro). Devir é tornar-se diferente de si. É potência de acontecer,
diferindo de si sem jamais confundir-se com o estado resultante dessa mudança” (FUGANTI, 2012, p.
73).
35

Junto com Deleuze (2008), o que nos interessa são as criações coletivas, propondo um
cultivo de realidade, não um extrativismo de dados, pois a cartografia procura
acompanhar processos e não apresentar uma representação (POZZANA; KASTRUP,
2009).
A cartografia é descrita pela psicanalista brasileira Suely Rolnik como:

um desenho que acompanha e se faz ao mesmo tempo que os movimentos de


transformação da paisagem. Paisagens psicossociais também são
cartografáveis. A cartografia, nesse caso, acompanha e se faz ao mesmo
tempo que o desmanchamento de certos mundos - sua perda de sentido - e a
formação de outros: mundos que se criam para expressar afetos
contemporâneos, em relação aos quais os universos vigentes tornaram-se
obsoletos. Sendo tarefa do cartógrafo dar língua para afetos que pedem
passagem... (ROLNIK,1989, p.15).

Para Costa et.al., 0(2012, p.44) “cartografar é pesquisar o acontecimento


acontecimentalizando”, e para fazê-lo, é preciso “querer o acontecimento, o lançar dos
dados, estar aberto[/a] à afirmação do acaso, àquilo que faz problema no mesmo. [...]
perguntar, que é que insiste aqui? Que é que pede passagem na língua? Que é que
ganha verbo no que acontece?” (Idem). Desta forma, para habitar as velocidades e
texturas do campo é necessária “a ativação de uma atenção à espreita – flutuante,
concentrada e aberta” (KASTRUP, 2009, p. 48).
Assim, a dimensão metodológica foi primordial no processo desta pesquisa, e é
por isso que ela também será um eixo principal e rizomático na escrita deste texto. O
percurso e habitação no campo, a criação de parcerias, o estabelecimento múltiplo de
vínculos analíticos, os limites e potências do exercício de conceitos, a operação coletiva
de movimentações e as implicações moleculares produzidas em um campo de
discussão extremamente molarizante22 convidam a formular uma escrita que dê conta
desse percurso cartográfico, longo, cheio de aventuras, desafios, angústias, mudanças
e afetações, que foi sendo composto de forma não linear, sem roteiro.

22
Félix Guattari e Suely Rolnik (2011) apresentam as noções de “molar” e “molecular”. O plano do molar é
o plano das formas e suas representações, das diferenças sociais mais amplas, da política, da
constituição das grandes identidades. O plano do molecular é o plano das sensações, dos processos.
No entanto, não existe uma oposição entre ambos planos. Como aponta Guattari e Rolnik (1996, p.
128): “o molecular, como processo, pode nascer no macro. O molar pode se instaurar no micro” e
também “a produção molar de subjetividade se acompanha necessariamente por uma negociação
mínima de processos moleculares”.
36

A partir do conjunto de pistas propostas por autores/as da cartografia, resgato


algumas que foram fundamentais na trilha pelo campo-análise de pesquisa. Igualmente,
ensaio neste texto um movimento que tenho realizado ao longo destes anos, de um
diálogo metodológico entre a cartografia e a perspectiva feminista crítica, propondo uma
cartografia feminista. Para isto, me inspirando neste exercício de elaboração de pistas,
apresento, ao longo do texto, pistas para essa cartografia feminista, compreendidas
como instigações éticas, políticas e estéticas para pensar e criar pesquisas-
intervenções que, ao tempo em que tensionam os campos de pesquisa e as relações
entre grupos e instituições-organizações acadêmicas, militantes e governamentais, são
constituídas pelo cuidado e a sensibilidade cotidianos, ao propor processos de
produção de conhecimento e/como transformação.
Uma dessas pistas seria a relevância de assumir que temos um compromisso
político com a luta feminista, entendida como uma busca da igualdade de gênero, da
justiça e da transformação social. Como expressado pela antropóloga feminista
mexicana Patricia Castañeda, em palestra ministrada em 2016, no XII CONAGES
(Colóquio Nacional de Representações de Gênero e Sexualidades), o feminismo é uma
“crítica radical à própria cultura” e os feminismos “se dedicam à análise das condições
particulares em que se desenvolve a multiplicidade de condições de desigualdade,
opressão, dominação, discriminação, sujeição e inclusive abjeção” (transcrição e
tradução livres).
Para essa autora, “o objetivo fundamental da pesquisa feminista é gerar
conhecimentos que deem conta […] da complexidade das condições de gênero que
dizem respeito a mulheres e homens” (CASTAÑEDA, 2014, p.146, tradução livre) e
aponta quatro características: descritiva, porque aponta e contextualiza os fenômenos;
diagnóstica, porque identifica os “nós problemáticos” do gênero com outras articulações
de desigualdade; analítica “porque inscreve as observações em referentes conceptuais
interdisciplinares que permitem identificar linhas de argumentação e explicação dos
mecanismos que operam para manter e reproduzir essas desigualdades”
(CASTAÑEDA, 2014, p.147, tradução livre) e propositiva “porque pretende assinalar
possibilidades de ruptura da lógica de manutenção do poder, da dominação, da
discriminação, da exploração e da subordinação” e “porque procura apontar os
37

processos de potenciação e ampliação dos horizontes de vida das mulheres e dos


sujeitos de gênero23 que buscam contribuir na transformação dessas condições” (idem).
Assim, em uma pesquisa feminista, direcionamos nossas pesquisas, indagações
e campo a partir desse compromisso que, “diferente do que algumas críticas poderiam
assinalar”,

não invalida o conhecimento produzido, pois os processos de pesquisa não


partem das certezas, mas das perguntas, das interrogações que certos
fenômenos sociais que nos provocam. Portanto, ao assumir que nosso
deslocamento como pesquisadoras/es é uma parte fundamental das pesquisas,
em diálogo com autoras/es, participantes e colegas, estamos investindo em
uma movimentação do tecido social de relações de poder, dentro do qual
estamos inseridas/os (DE GARAY HERNÁNDEZ, 2017, p.59).

Para esta pista, podemos nos apoiar no que a feminista bióloga estadunidense
Donna Haraway (1995) propõe ao pensar os “conhecimentos situados”, que “sustentam
a possibilidade de redes de conexões chamadas de solidariedade na política e de
conversações compartilhadas na epistemologia” (p.584), exercitando uma “prática da
objetividade [que] privilegia a contestação, a desconstrução, a construção apaixonada,
as conexões em rede, e tem a esperança de transformar sistemas de conhecimento e
formas de olhar” (p.585).

Desse modo, Haraway (1995) nos instiga a privilegiar a noção da pesquisa


como questão política de produção do conhecimento, desconstruindo a noção
da identidade pronta de pesquisadora, discutindo seu posicionamento e
frisando que o objeto também constrói o conhecimento conosco (DE GARAY
HERNÁNDEZ, 2017, p.60).

Uma segunda pista da cartografia feminista estaria relacionada com a escolha do


tema de pesquisa, que convida a pensar, ao longo desta, “o que queremos movimentar,
problematizar, mexer, desassossegar, desnaturalizar, produzir a partir e através desse
processo” (DE GARAY HERNÁNDEZ, 2017, p.60). O que proponho é que podemos
pensar nas pesquisas como dispositivos de desestabilização da noção de
universalidade de subjetividades, instituições, normas, territórios e processos.

23
Entendemos nas nossas pesquisas que os homens também são sujeitos de gênero, no sentido de
serem perpassados por esse dispositivo e, portanto. produzidos como seres generificados.
38

Assim, a partir do contato com a direção do CAI, começamos o trabalho de


campo com algumas conversas com os diferentes segmentos de profissionais que
trabalham na unidade– equipe técnica, agentes socioeducativos/as, corpo docente da
escola e a própria direção. Depois de um par de visitas, realizamos uma apresentação
da pesquisa em todas as salas de aula da escola, nos dois turnos, convidando os
jovens a participarem e coletando os nomes dos que estavam interessados, que foram
oitenta no total. Posteriormente, visitamos a unidade pelo menos uma vez por semana,
fazendo uma primeira atividade em grupos, com duração aproximada de uma hora.
Para isto, chegávamos à Mesa, solicitando que se chamasse, da nossa lista, os jovens
que estivessem desocupados no momento e com vontade de participar. A esse
requisito, se somava o da logística da unidade: não podiam estar no grupo jovens de
diferentes facções do tráfico, nem os que estavam no alojamento Seguro.
Assim, fizemos sete grupos de cinco a doze jovens – somando quarenta e sete
no total – provindos de diversas classificações internas: os alojamentos na Coletiva, os
alojamentos conhecidos como Individual, os Seguros e a Provisória24.
Neste momento, parece interessante introduzir outra pista da cartografia
feminista: a escolha dos métodos, ou seja, da forma como produzimos conhecimento.
Nesse sentido, vale pensar quais são as perguntas da pesquisa, que são sempre
situadas (CASTAÑEDA, 2008) e como se operacionalizam os objetivos e os conceitos.
Outro importante elemento apontado pela metodologia feminista é a criatividade e a
flexibilidade na hora de pensar e executar as técnicas (CASTAÑEDA, 2008), razão pela
qual tenho encontrado na cartografia, que aposta numa “colheita” de efeitos mais do
que numa coleta de dados (PASSOS; KASTRUP, 2013), um eco muito potente para
essa proposta, “já que tem me possibilitado criar, inovar, me engajar e me abrir a um
campo de afetações a partir do posicionamento político feminista” (DE GARAY
HERNÁNDEZ, 2017, p.70), sempre de forma colaborativa com a equipe, cujas
iniciativas enriqueciam o nosso percurso.
Assim, no processo fomos perpassadas pela necessidade de trabalhar com
profissionais, pois “pesquisar não tem mais a ver com saber sobre, pois se trata de

24
Comona Provisória é grande a rotatividade, os jovens de lá não frequentam a escola, de onde partiram
os primeiros convites, e eles têm restrições de circulação, em função da briga entre facções,
trabalhamos com um número muito maior dos que estão cumprindo medida definida já.
39

saber com. Habitar um estado de coisas, seus trajetos possíveis, seus impossíveis,
subtrair o que insiste e produzir com”(COSTA, et. al., p.43). Deste modo, os processos
com profissionais e jovens permitiram mergulhar na instituição-organização Sistema
Socioeducativo e como esta é em grande parte constituída pelos dispositivos de
gênero, sexualidade e também geração, classe, raça e localidade.
Na experiência no CAI, foi exigida muita criatividade na hora de pensar técnicas
de pesquisa que fossem atraentes para os jovens, que pudessem ser realizadas em um
ambiente de liberdade restrita, com uma logística muito específica e exigente, e que
fossem inovadoras e ao mesmo tempo bem explicadas, pois ao fugir de atividades
padronizadas às que os jovens e a própria lógica do estabelecimento estão
acostumados, se apresentava o desafio de que não se apropriassem delas ou que elas
fossem consideradas inúteis. Também,

existe a necessidade de considerar que os nossos instrumentos, técnicas ou


procedimentos, quaisquer que sejam não são neutros, mas constantemente
perpassados e postos em prática por produções subjetivas – sempre históricas
e políticas - específicas. Ou seja, os nossos encontros com as e os
participantes vão produzir certos efeitos através de técnicas que pensamos.
Não podemos desejar higienizar esses encontros, mas usar nossa disposição e
capacidade de análise o que esses encontros significam para nós, para as/ os
participantes, para as instituições, e para as pesquisa (DE GARAY
HERNÁNDEZ, 2017, p.71).

Dito isso, essa primeira atividade em grupo consistiu na utilização de um


conjunto de fotos (Anexo A) que operava como disparador para tocar em diversos
temas a partir de opiniões, experiências, negociações e preocupações. Colocávamos
as fotos viradas para baixo no chão e os jovens iam virando uma por uma, conversando
sobre ela.
Posteriormente, quando observamos que a maioria dos jovens da nossa lista já
tinha participado da atividade ou saído da unidade, realizamos uma segunda rodada de
atividades, com os jovens que fizeram parte da primeira e que continuavam na unidade,
que foram 12 no total, onde pedimos para eles confeccionarem um personagem em
papelão, usando como base a silhueta de um deles, e inventassem uma história para
esse personagem. Depois disso, foi difícil ter uma continuidade com os mesmos jovens,
40

pois, como já mencionei, a rotatividade é muito grande, elemento importante a


considerar na hora de planejar sustentabilidade de atividades25.
Paralelamente a atividades com essas técnicas, continuamos estabelecendo
comunicações com profissionais e docentes da unidade e com gestoras/es do Sistema
Socioeducativo e observando momentos cotidianos desta, tais como a visita familiar,
além de trocar experiências e análises com as subequipes que estavam no ESE e no
PAC-GC. Igualmente, como equipe ampliada oferecemos um curso na EGSE sobre
gênero e sexualidade a uma turma de profissionais do Degase.
Depois de alguns meses, no final de 2015, eu, Fernando e Gabi propusemos um
Curso de extensão de 40 horas no próprio CAI para funcionárias/os de diferentes
segmentos da Unidade, intitulado “Corpo, gênero e sexualidade no cotidiano da
socioeducação” (ementa no Anexo C). Esse movimento procurou atender a demanda
expressada de várias pessoas da Unidade e de uma necessidade nossa, de propor
uma intervenção mais sustentável do que encontros isolados, mesmo que
extremamente ricos, com os jovens. Dessa vez o foco eram os/as profissionais, que se
queixam muitas vezes de serem deixadas/os de lado. E chegaríamos aos jovens
também, de uma forma talvez mais orgânica. Inclusive um tema importante no Curso foi
a metodologia de trabalho com jovens, evidenciando novamente a relevância dessa
dimensão e a aposta certa em utilizar métodos criativos, dos quais as/os profissionais
gostaram e aplicaram com os jovens. Trabalhamos com 21 profissionais – agentes,
coordenadores de plantão, técnicas, docentes da escola e uma profissional
administrativa – de forma cooperativa, a partir da nossa pesquisa e das vivências
dessas pessoas, o que gerou propostas de intervenção inspiradas na atuação delas/es
no campo.
No início de 2016, eu e Gabi voltamos para participar dos desdobramentos
dessas intervenções, incluindo um Curta-debate com duas técnicas que fizeram o
Curso e os 50 jovens do módulo do qual elas são referência, uma roda de conversa
sobre sexualidade com um agente e uma docente que fizeram o Curso, uma técnica e
um grupo de cinco jovens de saúde mental, e um evento de encerramento do Curso,

25
Um docente chegou a falar que ele realiza atividades que considera importantes, neste caso sobre
saúde sexual, pelo menos três vezes por ano, para garantir que as informações cheguem a todos os
jovens.
41

com a apresentação de esquetes que algumas/ns profissionais que fizeram o Curso,


incluindo o professor de teatro, montaram com um grupo de oito jovens. Ainda em
2016, fomos convidadas tanto pela EGSE quanto por uma docente do CAI a realizar
uma atividade na Semana do Bebê26 (número no Jornal do CAI falando sobre essa
atividade no Anexo E). Dela participaram, além de Gabi e eu, Luisa Bertrami e Anna.
Trabalhamos com 35 jovens que são pais, através da confecção de árvores
genealógicas de cada um deles, com figuras recortadas de EVA e canetas coloridas.
Depois de alguns meses de distanciamento, em 2017, sentimos a necessidade
de realizar entrevistas individuais com os jovens, para discutir algumas vivências e
noções que percebíamos não tinham sido exploradas nas atividades em grupo. Assim,
após a autorização da EGSE para prorrogação da pesquisa, eu e Gabi voltamos ao CAI
e realizamos no total 16 entrevistas individuais, sendo que dois jovens foram
entrevistados duas vezes, um deles já tinha participado das atividades de grupo e um
da Semana do Bebê. Sem um roteiro definido e com condições de entrevista bastante
variáveis, exploramos algumas questões, conceitos e experiências, em entrevistas que
foram de 20 minutos até uma hora, com jovens pertencentes a diversos alojamentos.
O meu plano era encerrar o trabalho de campo para me concentrar na escrita no
momento em que Gabi, naquele momento grávida, parisse e, portanto, se afastasse
temporariamente das atividades de pesquisa. E foi justamente no final dessas
entrevistas individuais que Manuela chegou ao mundo. No entanto, algumas
importantes parceiras do CAI solicitaram que ministrássemos mais um Curso para as/os
profissionais, direcionado especificamente à viabilização da distribuição do
preservativo, fortalecendo iniciativas que elas estavam tendo nesse momento na
unidade. Como cartógrafa feminista, foi impossível deixar passar essa demanda que já
tinha sido expressada desde o início do campo por essas e outras parceiras,
constituindo uma potência de articulação, para o qual convoquei a equipe maior,
naquele momento já reconfigurada, pois o projeto da Faperj tinha terminado. Assim, em
articulação com a direção da unidade e a EGSE, eu, Anna, Luisa, Camilla Baldanzi,
Bárbara Rocha, Vanessa Lima e Patricia Castro, oferecemos um Curso de 40 horas,
intitulado “Direitos sexuais e reprodutivos no Sistema Socioeducativo” (ementa no

26
Também realizamos essa atividade no PAC-GC, com as jovens.
42

Anexo H), com a facilitação em uma das aulas de duas profissionais do Departamento
de DST/Aids da Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro. Deste Curso
participaram 32 profissionais, incluindo técnicas/os, agentes socioeducativos e
diretores, além de seis jovens, que integravam o grupo de multiplicadores de saúde,
que fizeram parte, em duas aulas, da elaboração de estratégias para implementação do
preservativo.
Desse modo, no trabalho de campo, de março de 2015 a setembro de 2017,
trabalhamos com 163 jovens, sendo que alguns deles participaram em mais de uma
etapa, e 50 profissionais, que participaram em entrevistas individuais ou em grupo,
conversas informais, eventos da unidade e/ou Cursos oferecidos pela nossa equipe.
Isso tudo foi registrado em um diário de campo composto por 43 relatos do CAI, alguns
incluindo transcrições das entrevistas individuais e transcrições das conversas de
equipe que aconteciam no caminho de volta.
Assim, mesmo sendo eu que geralmente transcrevia esse material, ele é
primordialmente polifônico27, contendo afetações, análises, opiniões, palpites, desejos e
angústias de Gabi, Fernando, Anna, Pati, Luisa, Bárbara, Camilla, Vanessa, e em duas
ocasiões, de estagiárias/os do IFRJ28 que nos acompanharam. Material vastíssimo, que
expressa a complexidade, as tensões e as implicações que vivíamos no campo,
entendido como uma experiência temporal e profunda, espalhada não só nas
gravações e relatos estritamente do CAI, mas em relatos de reuniões de equipe ou com
gestoras/es, eventos, e Cursos oferecidos na EGSE, além de anotações errantes de
várias formas e tamanhos, pensamentos provindos de mesas de bar, eventos em que
participávamos – especialmente o Ciclo sobre Violência, Política e Sociabilidade
Urbana, coordenado por Carla Mattos, conversas nas redes sociais referentes a
acontecimentos no CAI, no Degase e na cidade.
Uma “escrita implicada”, que tentou captar “no dia a dia, as percepções, as
experiências vividas, os diálogos, mas também as sobras do concebido que emergem”

27
A polifonia se traduzia nas cores dos relatos, já que cada pessoa que os complementava escolhia uma
cor para suas contribuições. Também, na hora de transcrever as gravações, anotávamos de quem
tinham sido as reflexões que surgiam nas conversas.
28
Os/as estagiários/as foram Paulo Baptista, Sara Ellen e Max Martins. Elas/es também participaram da
elaboração dos relatos e da transcrição das discussões gravadas dos dias que participaram das
atividades.
43

(HESS; WEIGAND, 2006, p.16), que contém um projeto político da pesquisadora de


“transformar a si e a seu lugar social, a partir de estratégias de coletivização das
experiências e análises” (LOURAU, 1993, p. 84-85). Uma escrita “calorosa”,
“espontânea”, “sob o efeito do impacto dos acontecimentos” (HESS; WEIGAND, 2006,
p.18), “transversal”, que “explora a complexidade” (p. 20), que dá conta das paixões
envolvidas no processo.
Como parte de uma cartografia feminista, o diário de campo aparece como
extremamente significativo no que tange a um percurso afetivo, político e metodológico.
Como apontado por Cecília Coimbra e Lívia do Nascimento, o diário de campo é um
dispositivo importante para a análise de implicação, pois

trabalha com o cotidiano da pesquisa, historicizando-o, registrando-o,


potencializando-o; ou seja, incluindo-o naquilo que normalmente fica fora dos
relatos considerados científicos. [...] A escrita do diário de campo é, portanto,
uma potente ferramenta para que esses acontecimentos ignorados, tidos como
perturbadores e desviantes, sejam problematizados (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2012, p.131).

Na Análise Institucional29, da qual resgato vários conceitos, “o diário é uma


ferramenta eficaz para quem quer compreender sua prática, refletir, organizar, mudar e
torná-la coerente com suas ideias” (HESS; WEIGAND, 2006, p.17). O diário possibilita
pôr em análise a temporalidade da pesquisa, permitindo “o conhecimento da vivência
cotidiana do campo (não o “como fazer” das normas, mas o “como foi feito” da prática”
(LOURAU, 1993, p. 77), reconstituindo a “história subjetiva” do/a pesquisador/a (p. 78),
e desnaturalizando a neutralidade (p.79).
Nesse sentido, além de trechos de entrevistas transcritas ao longo do texto, trago
fragmentos do diário de campo com texturas dessas vivências, e especialmente sobre
os processos de afetação, considerando que

experimentar afetos sinaliza a enunciação de outras formas de agir a partir dos


modos de expressão que vamos percorrendo. Quando afetados pelas audições
e visões, gostos e cheiros, toques de vidas que nos forçam a pesquisar na

29
Como descrito por Roberta Romagnoli (2014), a Análise Institucional, de René Loureau e Georges
Lapassade, e a Ezquizoanálise - onde a cartografia se insere como proposta metodológica - de Gilles
Deleuze e Félix Guattari, são vertentes institucionalistas que têm disjunções e interfaces teóricas,
metodológicas e políticas.
44

historicidade de um tempo que acontece, percebemos que nossas questões


são feitas de vidas. Assim, exercitamos uma ética e expandimos nosso
conhecer nas relações de uma vida de todos em nós, de uma vida de si com
todos. Imanência de relações no corpo que cria passagens com o que força a
experimentar nosso pensamento: afetos e perceptos que já não são de um ou
de outro, mas da vida. Não precisamos mais temer o processo de estarmos
afetados pelo acontecimento no ato de pesquisar, pois o que antes era dado
como “ponto fraco” do pesquisador, agora marca uma condição indispensável
do processo de pesquisar: a capacidade de afetar e afetar-se para que se criem
os modos de expressar os sentidos de uma pesquisa” (LAZZAROTTO;
CARVALHO, 2012, p.25).

A partir da releitura desse diário, da sua organização, condensação e


amadurecimento, aprofundo algumas linhas analíticas que emergiram e foram
discutidas no processo, linhas “a serem desemaranhadas, mas também cruzadas”
(DELEUZE, 2008, p.200), sem pretender esgotar as experiências relatadas e
vivenciadas e nem a ampla bibliografia da área, pois a escolha metodológica significou
um mergulho muito mais focado na operacionalização concreta dos conceitos, na
proposta coletiva de estratégias, na criação de territórios e estratégias em comum,
configurando uma engrenagem que possibilita entender e expressar tanto as potências
quanto as limitações do trabalho. Ainda assim, uma interlocução com proposições,
conceitos e pesquisas de diversas disciplinas foi primordial, especialmente ao
considerar a crítica que a cartografia faz ao “especialismo” e a relevância que a
interdisciplinariedade tem nas pesquisas feministas, característica que também insiste
em atravessar as fronteiras da academia, ampliando nossa compreensão sobre a
problemática30 (CASTAÑEDA, 2008).
Considero importante pensar na utilização de vários conceitos na composição
dos caminhos traçados, na produção de perguntas que procuravam desassossegos em
um tecido que aparece como extremamente cristalizado. Falar sobre conceitos,

30
Marcada por uma perspectiva feminista, apontaria a importância de pensar em quem vai nos ajudar na
produção de conhecimento nas nossas pesquisas, convocando a um esforço constante por ampliar os
horizontes de referência que quebrem os paradigmas hegemônicos de produção de conheci00mento,
que têm sistematicamente priorizado autores homens, do norte global e brancos, em detrimento de
autoras/es que não ocupam essas posições de sujeito, e cujas importantes contribuições têm sido
invisibilizadas. Na minha perspectiva, isto não significa ignorar esses primeiros autores, vide meu amplo
uso de Felix Guattari, Michel Foucault e Gilles Deleuze, mas buscar dialogar com o que tem sido
produzido desde experiências não hegemônicas. É por essa razão que procuro, neste texto, inspirada
em autores/as decoloniais, explicitar esse movimento, explicitando de onde são (geográfica, política e
subjetivamente) as pessoas que estão nos inspirando e com as que estamos dialogando, no intuito de
visibilizar essa prática de desmontagem do local único de sujeito produtor de conhecimento.
45

problematizá-los e até criá-los faz parte do processo cartográfico feminista, o que


representa um desafio, no sentido de que esses conceitos não podem ser usados para
cristalizar certas noções, mas justamente para operacionalizá-los como dispositivos de
desnaturalização. A partir do pensamento deleuziano, Roseane Silva sinaliza que

os conceitos não existem em algum lugar prontos para serem descobertos


pelos filósofos. Eles precisam ser criados, fabricados e sempre a partir do
encontro com algo que coloque uma necessidade absoluta de se pensar
outramente. É aí que entra o combate do filósofo com o seu tempo e a
irredutibilidade da criação de conceitos que expressem os problemas deste
tempo, da direção, quem sabe, de um novo porvir (SILVA, 2004, p.3)

Como utilizar conceitos sem fixar realidades, sem gerar pressuposições nem
determinismos? Como usá-los como ferramentas de problematização? Como operá-los
no campo em que estamos imersos/as? Como trazê-los ao campo do pensamento,
entendido como “uma máquina de experimentação permanente”, uma “potência de
invenção”, de “atualização das virtualidades que habitam este campo intensivo que se
desloca a uma velocidade infinita” (SILVA, 2004, p.59)? Parece importante, neste
sentido, conhecer a formação histórica dos termos e seu papel na produção de
subjetividades, de forma que sua operacionalização no campo não seja apenas uma
verificação teórica, mas uma aposta política pela subversão das forças que estabilizam
um campo de desigualdade. Como Félix Guattari e Gilles Deleuze apontam:

empregamos somente palavras que, por sua vez, funcionavam para nós como
platôs. [...] Estas palavras são conceitos, mas os conceitos são linhas, quer
dizer, sistemas de números ligados a esta ou àquela dimensão das
multiplicidades (estratos, cadeias moleculares, linhas de fuga ou de ruptura,
círculos de convergência, etc.) (GUATTARI; DELEUZE, 2000, p.32).

As linhas analíticas que acompanharão os movimentos das linhas duras e


flexíveis do mapa intensivo do campo serão construídas a partir de analisadores que
dão conta das dobras do campo e seus dispositivos. Como explicarei posteriormente,
ao lado principalmente de Anna e Luisa31, temos trabalhado em uma leitura da
discussão de interseccionalidade, utilizando o conceito da dobra do filósofo francês

31
Esta parte foi majoritariamente escrita de forma conjunta com Luisa Bertrami, para um artigo que foi
infelizmente recusado por uma revista, eis a incapacidade de citá-lo.
46

Gilles Deleuze, entendido como força que cria percursos de produção de territórios de
subjetividade. Rosane Neves da Silva (2004) aponta que

o conceito deleuziano da dobra permite problematizar tanto a produção da


subjetividade – no sentido da constituição de determinados territórios
existenciais – quanto os modos de subjetivação, entendidos aqui como o
processo pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de
relação de forças que resultam na criação de determinados territórios
existenciais em uma formação histórica específica. A dobra exprime a invenção
de diferentes formas de relação consigo e com o mundo ao longo do tempo [...]
Cada formação histórica irá “dobrar” diferentemente a composição de forças
que a atravessa, dando-lhe um sentido particular. (SILVA, 2004, p.55-56).

Esta leitura, para nosso ponto de vista, possibilita pensar, priorizar e se instalar
nos processos, nos “meios” entre os pontos/inflexões, nas variabilidades das linhas que
vão além dos parâmetros constantes (DELEUZE, 1991). Assim, podemos pensar fluxos
que se dobram em diferentes superfícies, em texturas espaciais, temporais, corporais,
de intensidade. A partir de Leibiniz, Deleuze propõe que

o corpo flexível e elástico tem ainda partes coerentes que formam uma dobra,
de modo que elas não se separam em partes de partes, mas dividem-se até o
infinito em dobras cada vez menores, dobras que sempre guardam certa
coesão. [...] A unidade da matéria, o menor elemento do labirinto é a dobra, não
o ponto, que nunca é uma parte, mas uma simples extremidade da linha. [...] A
desdobra, portanto, não é o contrário da dobra, mas segue a dobra até outra
dobra (DELEUZE, 1991, p.17)

Deste modo, a noção de dobra possibilita que se vislumbrem diferentes


atravessamentos simultâneos – e sempre históricos-, móveis e não hierarquizados.
Deleuze também aponta que

as linhas retas se assemelham, mas as dobras variam, e cada dobra vai


diferindo. Não há duas coisas pregueadas do mesmo modo, nem dois
rochedos, e não existe uma dobra regular para uma mesma coisa. Nesse
sentido, há dobras por todo lado, mas a dobra não é um universal. É um
“diferenciador”, um “diferencial”. Existem dois tipos de conceito, os universais e
as singularidades. O conceito de dobra é sempre um singular, e ele só pode
ganhar terreno variando, bifurcando, se metamorfoseando (DELEUZE, 2008,
p.194).

A dobra pode ser pensada em seu duplo caráter de verbo e de substantivo, na


medida em que se apresenta como um processo, um dobrar que produz algo, o ato da
47

dobra como potência (DELEUZE, 1991) e, ao mesmo tempo, como resultado deste,
como inflexão ou ponto-dobra.
Através da análise realizada nesta pesquisa, compreendendo as dobras do
campo, pretendo também dobrar a figura dO Adolescente, movimento sugerido desde o
título, o que implicaria em criar as condições para que as diversas superficialidades,
corpos, intensidades e potências se expressem em sujeitos complexos,
compreendendo de que forma eles se constituem através de processos de subjetivação
que marcam e delimitam, mas, ao mesmo tempo, criam paradoxos, contrapontos,
possibilidades, rupturas, linhas de fuga. Esses processos são “maneiras pelas quais os
indivíduos ou as coletividades se constituem como sujeitos: tais processos só valem na
medida em que, quando acontecem, escapam tanto aos saberes constituídos como aos
poderes dominantes” (DELEUZE, 2008, p.217).
Por sua parte, os dispositivos operam, materializam e enunciam as dobras e,
como elas, se referem a processos e historicidades. Entendemos os dispositivos como
engrenagens que não existem a priori e não são naturais, mas históricas, construídas,
que produzem sujeitos através de práticas discursivas e não discursivas (FOUCAULT,
1999; DELEUZE, 1989). Para o filósofo francês Michel Foucault, o dispositivo é

um conjunto decididamente heterogêneo, que engloba discursos, instituições,


organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do
dispositivo (FOUCAULT, 1979, p.244).

Além de reafirmar o caráter heterogêneo do dispositivo, é importante destacar


que ele é entendido como um conceito operatório multilinear que se baseia nas
dimensões de saber, com “curvas de visibilidade e regimes de enunciabilidade que
produzem formas de falar e de ver”; de poder, com “linhas de força que, relacionadas
com a dimensão do poder, criam e fixam jogos estratégicos de saber sobre as práticas
discursivas envolvidas nesse dispositivo”; e de modos de subjetivação, que “remetem
também à criação de novas possibilidades” (MARCELLO, 2004, p. 201).
Assim, entendo poder na linha de Foucault, que localiza os poderes não em um
ponto específico da estrutura social, mas funcionando como “uma rede de dispositivos
48

ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, a que não existe exterior possível,
limites ou fronteiras” (MACHADO, 1979/2011, p. XIV), ou seja,

o poder é algo que se exerce, que se efetua, que funciona [...] como uma
máquina social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas
se dissemina por toda a estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma
relação. E esse caráter relacional do poder implica que as próprias lutas contra
seu exercício não possam ser feitas de fora, de outro lugar, do exterior, pois
nada está isento de poder. Qualquer luta é sempre resistência dentro da própria
rede de poder, teia que se alastra por toda a sociedade e a que ninguém pode
escapar: ele está sempre presente e se exerce como uma multiplicidade de
relações de forças. E como onde há poder há resistência, não existe
propriamente o lugar de resistência, mas pontos móveis e transitórios que
também se distribuem por toda a estrutura social” (MACHADO, 1979/2011, p.
XIV).

Nesta tese, dois dispositivos serão os principais: gênero e sexualidade, mas eles
sempre articulados com outros, especialmente com geração, raça, classe social e
localidade, formando conexões e gerando efeitos, a partir do entendimento que “o
múltiplo é não só o que tem muitas partes, mas o que é dobrado de muitas maneiras”
(DELEUZE, 1991, p.13). Ao nos referirmos a essas dimensões como dispositivos, os
estamos considerando como não-naturais, não-totalizadores, não-a-priori; estamos
compreendendo-os como históricos, políticos, geográficos, construídos, produtores de
sujeitos através de práticas discursivas e não discursivas (FOUCAULT, 1999;
DELEUZE, 1989) de sujeições e escapes, saberes, práticas divisórias com os/as
outros/as e conosco.
É através desses dispositivos que nos constituímos como sujeitos de saber,
como sujeitos que sofrem ou exercem relações de poder, como sujeitos morais. Através
das relações entre todas as pessoas e as instituições-organizações (Sistema
Socioeducativo, judiciário, facções do tráfico, comunidades religiosas, etc.), no tempo e
no espaço, os dispositivos produzem e são produzidos infinitamente por dobras e
desdobras, instaurando e naturalizando certos códigos, regras, mecanismos, normas,
subversões, prazeres, sofrimentos, vidas e mortes, produzindo subjetividades e
performatividades.
Gênero e sexualidade podem ser compreendidos, nos argumentos de Anette
Farge (1984), através de suas práticas cujas problematizações se realizam mediante a
análise da especificidade e o intrincamento entre os eixos do saber, do poder e da ética
49

(FOUCAULT, 2004). Ou seja, fios que unem saberes ou discursos, normatividades ou


exercícios de poder e a relação do sujeito consigo ou os modos de subjetivação, que se
referem “às diferentes formas de produção da subjetividade em uma determinada
formação social” (SILVA, 2004, p.56).
Assim, podemos pensar no dispositivo da sexualidade como “o conjunto de
saber-poder que forma as técnicas, os discursos, os saberes, as ciências, as
instituições em torno aos corpos e ao sexo a partir do século XVIII nas sociedades
ocidentais” (RIOS, 2007, p. 120) que “não atua principalmente através de funções de
proibição senão de linhas de penetração, zonas de saturação sexual, especificação dos
sujeitos, espirais de sensualização do poder e de fixação dos prazeres” (RIOS, 2007,
p.122).
Da mesma forma, o gênero, como aponta a historiadora feminista estadunidense
Joan Scott (1995), se insere na experiência subjetiva da construção de si, mas também
se relaciona com o poder político, pois para protegê-lo, “a referência deve parecer certa
e fixa, fora de toda construção humana, parte da ordem natural ou divina” (SCOTT,
1995, p.92). Desta forma, os gêneros são apresentados como estruturas limitadas e
opostas que se articulam a partir de corpos sexuados, o que tem sustentado as
instituições políticas que procuram impor limites sobre a complexidade que implica a
vivência humana. Como apontado pela filósofa feminista estadunidense Judith Butler,

o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos


flutuantes, pois [...] seu efeito substantivo é performativamente produzido e
imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero.
Consequentemente, o gênero mostra ser performativo no interior do discurso
herdado da metafísica da substância- isto é, constituinte da identidade que
supostamente é (BUTLER, 2003, p.48, grifos da autora).

Quando pensamos nesses dispositivos e como eles se atualizam em contextos


como o Degase algumas questões emergem, uma vez que as práticas sociais pautadas
neles incidem sobre corpos já marcados pela privação de liberdade, o que faz com que
o gênero e a sexualidade se atualizem como dispositivos que podem ser utilizados
como instrumentos de controle. Neste sentido, gênero, sexualidade e seus
atravessamentos com geração, classe, localidade e raça, organizam não só as práticas
cotidianas da unidade, como também as trajetórias de vida tanto das/os jovens em
50

privação de liberdade quanto das/os profissionais que atuam no Sistema


Socioeducativo, incluindo as/os pesquisadoras/es.
É por isso que estes dispositivos e suas articulações se configuram como
potentes categorias de análise, uma vez que evidenciam o caráter generificado,
sexualizado e racializado dos corpos e das suas performatividades. Nesse sentido, a
partir do nosso percurso no campo, fomos pensando de forma colaborativa alguns
analisadores que se configuram como uma possibilidade de vislumbrar as experiências
dos jovens na instituição-estabelecimento-organização-forma como uma trama de
acontecimentos perpassada pelos dispositivos de gênero e sexualidade, assim como de
raça, classe, localidade e geração.
O analisador é um elemento que intensifica a análise e conduz seu processo
(RODRIGUES, 2005), que vem atualizar o não-dito da instituição, que explicita os
conflitos das instituições, assim como os caminhos possíveis (ROCHA; DEUSDARÁ,
2010), razões pelas quais acreditamos ser uma ferramenta importante para a
perspectiva cartográfica que busca desvelar os comos e não os porquês 32. Os
analisadores que apresento ao longo do texto estão todos relacionados entre si e se
imbricam em inúmeras experiências do campo. Eles nos permitiram fazer ver
coletivamente – a todas/os as/os participantes, incluindo pesquisadoras/es,
profissionais e jovens – as tensões do campo no que tange aos dispositivos e dobras
que instauram saberes e procedimentos de si e de se relacionar no contexto do
Sistema Socioeducativo, mais especificamente no CAI. Eles também fazem ver as
dobras do Adolescente como conceito e como sujeito, possibilitando entender esses
dispositivos como performatividades e visualizando tanto as dobras quanto a forma com
que elas operam os dispositivos na instituição-estabelecimento.
Esses analisadores são: a visita íntima, como uma discussão que envolve
espacialidades, temporalidades e moralidades; a regulação da masturbação por parte
dos jovens, como uma série de normas que dão conta da produção de
performatividades masculinas e suas trajetórias; a visita familiar e a entrada de cartas e
fotografias e suas implicações no controle das sexualidades e nas porosidades do
Dentro/Fora da unidade; a divisão de espaços Dentro da unidade, que dá conta da

32
Esta elaboração foi escrita conjuntamente com Luisa.
51

gestão dos corpos e das subjetividades, e a implementação do preservativo na unidade


que revela, ao reconhecer as relações sexuais entre os jovens, um complexo jogo de
territorialização, reterritorialização e desterritorialização33. Nesse sentido, é interessante
aprofundar esse jogo e quais as brechas que surgem dentre as articulações, capturas e
gestões das instituições.

1.3 “Um lugar desse”: intervindo no CAI

Ô, todo falido, todo pobre, tira esse Estado, não tem nem alimento
pra comer, o Brasil tá em grande crise de Estado, grandes
rebeliões, policiais agredindo, pessoas morrendo todo dia, e como
você tá num lugar desse? Podia estar lá no México, comendo uma
pizza, uma lasanha
Abel,15 anos, negro

O trecho de entrevista que apresento acima, de um jovem extremamente


interessante, que insistiu nessa questão ao longo da nossa conversa, permite
vislumbrar as problemáticas que ele observa no contexto brasileiro e que o atravessam
no cotidiano. Além disso, chama a atenção que ele expressa isso ao me questionar
sobre o fato de eu morar no Brasil a despeito desses problemas e ainda estar “num
lugar desse”. Esta interlocução provocou a enunciação de um estranhamento. Ao
considerar que o Brasil não é um lugar digno para viver, expõe algo presente em certo
imaginário sobre o que há fora do país, neste caso o México: algo luxuoso, muito
distante de um “lugar desse”. Esse questionamento se deu por vários outros jovens e
profissionais durante o campo. Por exemplo, um profissional disse “Jimena, estando tão

33
Para Guattari e Rolnik (1996, p.323) o território pode ser entendido como “o conjunto dos projetos e das
representações nos quais vai desembocar pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de
investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. O território pode- se
desterritorializar, isto é, abrir-se, engajar-se em linhas de fuga e até sair do seu curso e se destruir. [...].
A reterritioralização consistirá numa tentativa de recomposição de um território engajado num processo
desterritorializante”.
52

perto dos Estados Unidos, veio parar neste formigueiro”. E Jhosivani (16 anos, negro)
disse:

Jhosivani: mas aqui é perigoso


Jimena: mas lá também é
Jhosivani: é? Ah, se estivesse morando lá, não vinha pra cá nunca. As coisas
que passam na televisão daqui...
Jimena: ah, mas lá também acontece muita coisa ruim e muita coisa boa.
34
Jhosivani: lá também tem roubo?
Jimena: sim
Jhosivani: pior do que aqui?
Jimena: não sei...
Jhosivani: pior não, mas rouba também (risos)
J: siiim!
Jhosivani: ah, mas aqui tá muito ruim, eu já tava querendo ir embora!

Dito isso, é importante pôr em análise os mecanismos de poder que constituem


práticas que se articulam no campo de pesquisa, produzindo relações e sujeitos,
performatividades e trajetórias. Assim, mergulho nas

diferentes dimensões de uma pesquisa cartográfica: a entrada no contexto, a


construção do papel, as normas do contexto e seus limites, a construção de
35
processos intercessores e os trânsitos entre o olhar retina e vibrátil . A
produção de cuidado como um terreno onde o olhar micropolítico busca revelar
e incidir nos processos de singularização para gerar aberturas ao sistema de
subjetividade dominante (BENET; MERHY; PLA, 2016, p.229, tradução livre).

É importante lembrar que a cartografia se posiciona dentro do paradigma ético-


estético-político, onde

a ética está referida ao exercício do pensamento que avalia situações e


acontecimentos como potencializadores ou não de vida; a estética traz a
dimensão e criação, articulando os diferentes campos do pensamento, da ação
e da sensibilidade; a política implica as tensões presentes em um campo de
ação público, analisando os efeitos produzidos, ou seja, sobre os sentidos que
vão ganhando forma através das ações individuais e coletivas (ROCHA; UZIEL,
2008, p.540).

34
Achei interessante ele ter me perguntando isso, sendo que ele rodou por roubo.
35
“Rolnik (2006/2014) descreve o olhar retina como uma percepção sobre o mundo em que a atribuição
de sentido é feita a partir das representações vigentes em nosso contexto histórico. E o olhar vibrante
como aquele que apreende a alteridade em sua condição de campo forças e intensidades que nos
afetam e se fazem presentes em nosso corpo em forma de sensações” (BENET; MERHY; PLA, 2016, p.
238, tradução livre).
53

Desta forma, a cartografia, como método de pesquisa-intervenção, é constituída


pelo devir, pelo movimento, pela atenção, pela busca de irregularidades e surpresas
que produzem mundo (LEITE, 2014; BENET; MERHY; PLA, 2016). Como política de
entrada, a pesquisa-intervenção implica um deslocamento, uma provocação – e não um
apagamento – das fronteiras entre, por exemplo, Sistema Socioeducativo e
universidade, sujeitos e pesquisadoras, os ditos especialistas de gênero ou do campo
socioeducativo; entre subjetivações, segmentos, estabelecimentos e organizações. A
intervenção inclui problematizar as práticas de qualquer profissional, afirmando seu
caráter político (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008). Assim, observamos as tensões entre
saber e poder, que

se implicam mutuamente: não há relação de poder sem constituição de um


campo de saber, como também, reciprocamente, todo saber constitui novas
formas de poder. Todo ponto de exercício do poder é, ao mesmo tempo, um
lugar de formação de saber (MACHADO, 1979/2011, p. XXI).

Nessa disputa, “todo saber assegura o exercício de um poder” (p.XXII). É


importante perceber como as intensidades do campo foram perpassadas e produzidas
nessas tensões, revelando disputas e coproduções entre as diversas instituições em
jogo, que percorrem caminhos de afetação e produção rizomáticos, como foi a pesquisa
e como é este texto. Destarte, entrar em campo permite perceber as dobras na trama
das instituições na medida em que a pesquisa é atravessada por elas.

As relações de poder, na situação de pesquisa, numa concepção foucaultiana,


como salienta Schwade (in GROSSI, idem. p. 47), é uma relação de conflito que
produz discurso que produz a si – mesmo e envolve resistência, no sentido de
que “os ‘nativos’ também decidem o que devemos ouvir e observar” e interferem
na “seleção de informantes”. Partindo desta noção, pode-se entender, depois
de vivenciar “o campo” que, como refere Buffon, o “acesso diferenciado a
determinados espaços e informações” é uma contínua reconstrução que
depende de uma mediação com o “outro” (in GROSSI, ibdem, p. 64), tanto
quanto depende de responsabilidade ética, manifesta por diversas atitudes,
entre elas, explicar o objetivo da pesquisa e as questões éticas envolvidas.
(SANTOS, 2006, p.3).

Nesse sentido, os vínculos singulares que fomos criando com cada segmento de
profissionais e com os jovens foram importantíssimos, mas também o foi entender de
que forma nossa pesquisa-intervenção se relacionava com a logística da unidade,
54

provocando as territorializações. A partir de uma cartografia realizada em uma unidade


prisional feminina, Maynar Leite aponta que

conforme Zaffaroni (1993), a principal função do sistema penal [...] é a


destruição das relações horizontais. Mas o cartógrafo não deve aceitar como
naturais as classificações objetivas, e sim posicionar-se lateralmente em
relação de composição junto ao campo, como numa roda, de modo que todos
os envolvidos possam manifestar as suas peculiaridades ao conviver no mesmo
plano, tensionando ou desnaturalizando hierarquias (Alvarez e Passos, 2009).
Por conseguinte, para cartografar na prisão, aos desafios de entrar, circular e
criar um espaço-tempo privativo somou-se o de estabelecer – entre
“pesquisadora”, “funcionária” e “presas” – relações de cooperação, não
hierárquicas. A lateralidade como relação, como ética e como política e
economia do conhecimento foi propiciada mediante ferramentas e dispositivos
tais como o grupo, a escrita, o caderno, o diário de campo e a análise da
implicação (LEITE, 2014, p.801).

O tema da nossa pesquisa era apresentado como sendo referente à “saúde


sexual” ou até mais restrito, sobre ISTs, sendo predominantemente essa a abordagem
que a unidade e o Sistema Socioeducativo como um todo costuma fazer da
sexualidade, como foi apontado pelos jovens no momento em que perguntamos se já
tinham discutido esse tema nesse espaço, e por profissionais, que em várias ocasiões
citaram esforços importantes realizados nesse sentido36.
A partir daquele momento, embora compreendendo que de fato a saúde sexual –
na verdade, a deficiência na sua garantia – era um problema importante na unidade e
que existe um desconhecimento profundo de muitas questões não só por parte de
muitos jovens, mas também de alguns/as profissionais, percebemos que estávamos
apresentando um desafio ao propor uma abordagem mais ampla da sexualidade37,
considerando também relações de poder, práticas, prazeres e normas focadas em uma
temática tamponada ou acanhada na unidade, como apontado por uma profissional,
que também sinalizou desde o início, que a nossa pesquisa seria fundamental para
desterritorializar esse quadro. Outra profissional disse que “a sexualidade é

36
Em vários momentos se fez referência ao Preservida, um programa da Coordenação de Saúde do
Degase, que foi implementado por diversos/as profissionais em cada unidade, mas que foi interrompido
por mudanças na gestão. Um profissional também falou de outro intitulado “Cuido meu ambiente, cuido
meu corpo”, que foi levado por uma ONG e absorvido posteriormente pela escola, mas que durou
apenas um ano por questões de verba.
37
Em um momento em que comuniquei a uma profissional o tema da pesquisa, ela respondeu “iiihhh”,
sugerindo que era um tema muito complicado para se abordar.
55

institucionalmente negada e moralmente expressa”. No entanto, muitas vezes foi a


temática da saúde sexual que nos deu porta de entrada, tal como no momento em que
epidemias de ISTs pressionaram a discussão sobre preservativos e tudo que essa
discussão levantou nas narrativas morais.
Como essa, outras provocações foram trazendo o não dito das tensões e fizeram
emergir conflitos, noções e relações, o que nos fazia compreender as normas “como
expectativas sobre o contexto”, o que significa “captar os mundos dos participantes a
partir das suas vivências e a partir dos esquemas de interpretação”, possibilitando o
desenvolvimento de estratégias para poder se mover nesse contexto e atuar nele. Para
isso, foi necessário pensar sobre “como essas normas nos configuram, impregnam
nossas ações e a relação que estabelecemos com elas” (BENET; MERHY; PLA, 2016,
p. 236) e entrar no mapa intensivo da unidade como uma “aventura de lançar-se num
estranho mundo, ou de lançar-se como estranho num mundo demasiadamente
naturalizado (LEITE, 2014, p.806).
Por exemplo, foi inicialmente questionado por várias/os profissionais se os jovens
conseguiriam conversar conosco sobre o tema, trazendo experiências anteriores em
que não tinha sido possível o diálogo com profissionais mulheres38, mas apenas com os
homens. Ou que mesmo sendo legítimo falar sobre corpo no campo da saúde, os
jovens custavam muito para reportar às técnicas sintomas de ISTs, por respeito,
categoria muito presente no Degase, e que discutirei ao longo do texto.
Diante disso, naquele momento inicial, chegamos a pensar que uma alternativa
seria que Fernando realizasse as entrevistas com eles, enquanto Gabi e eu
conversaríamos com profissionais, mas ao perceber que 80 jovens tinham se inscrito
nas nossas atividades, sabendo da sua temática, decidimos seguir os três. Já na
primeira atividade em grupo com eles observamos que o fato de sermos mulheres,
mesmo tendo implicações fundamentais, não obstaculizaria as atividades e as
conversas sobre o tema. Eles falavam, às vezes com dificuldade ou com um incômodo
que ia se dissolvendo ao longo das atividades, sobre práticas e fantasias sexuais e
eróticas, nomeavam genitália ou usavam expressões como aquele lugar, e até,

38
Relataram inclusive que em uma atividade com médicos falando sobre saúde sexual, os jovens tinham
solicitado que as profissionais saíssem do auditório.
56

algumas vezes, usavam palavrões, pedindo desculpas quando percebiam, pois para
eles isso era uma falta de respeito39, mas ao mesmo tempo assinalavam que éramos
nós que havíamos levado a temática. A fluidez para falar das práticas e dos nomes da
genitália era distinta em cada grupo, o que não dependia do apego às normas do
tráfico, mas do vínculo que conseguíamos estabelecer com os jovens. Antonio (18
anos, negro), por exemplo, não só falou, mas desenhou pênis, vaginas e ânus para
contar as histórias que estava construindo. Em outro grupo, os jovens também
desenharam um personagem com um pênis e uma vagina, dizendo que era uma
pessoa trans.
Além disso, o fato de não sermos profissionais da unidade, não estarmos
“imersas na lógica institucional” – como apontado por uma profissional– e não termos
nenhuma relação com as medidas socioeducativas pode ter influído nessa quebra da
“barreira moral”, como pensou Fernando. Isso sem dúvida mexeu de alguma forma nas
relações naturalizadas na unidade, o que, em palavras dele, “significa tensionar as
pactuações internas relacionadas e marcadas por gênero e sexualidade de quem lá
está”.
Outra importante instigação, carregada de um forte incômodo, foi a interpelação
realizada à minha vestimenta, tanto pela direção quanto por algumas profissionais, que
em um par de ocasiões, a consideraram “provocadora” demais. Em uma ocasião,
pediram para pôr um echarpe, dizendo que “se alguém chegasse na visita com essa
roupa, nem entrava”, que “algum menino não vai querer participar da pesquisa se te ver
assim”, e que “talvez não vai falar no momento, mas depois vai dizer que se sentiu
incomodado e vai reclamar na direção ou com os agentes” - argumento também
utilizado ao falar das limitações com as profissionais. Além de eu ter ficado
extremamente irritada com essa interpelação, depois disso ficamos pensando se a
minha roupa incomodava mais aos jovens ou aos/às profissionais.
Perceber de que forma não apenas meu trabalho e conhecimento, mas também
meu corpo, eram submetidos às regras da instituição-estabelecimento, principalmente
aquelas relacionadas com o nosso tema de pesquisa, foi um deslocamento

39
Uma profissional também chegou a relatar que quando os jovens conseguiam falar sobre essas
questões, sempre começavam dizendo “com todo respeito”. Foi comentado que só com algumas
técnicas, com as que se cria um vínculo, eles conseguem falar sobre esses temas.
57

preponderante para mim, sobretudo ao pensar que eu nunca considerei que a minha
forma de vestir tivesse essas características, especialmente no contexto carioca, onde
já fui em ocasiões identificada como crente, por minhas roupas serem consideradas
reservadas. Dessa forma, essa interpelação nos provocou pensar nas dobras que a
circulação nesse espaço apresenta a respeito do Fora.
Outra provocação importante foi o fato de sermos lidas como psicólogas, sendo
que esta profissão tem um lugar demarcado na instituição-estabelecimento e uma
prática que outras/os profissionais relatam acessar frequentemente, dizendo “temos
que dar uma de psicólogas”, ou “às vezes pareço psicóloga”. Nos encontros de grupo,
os jovens chamavam as atividades de aulas, palestras ou cursos40, enquanto que nas
entrevistas individuais, as/os agentes que nos apoiavam na logística diziam que íamos
atender os jovens e comparavam nossos atendimentos com os das técnicas. Com os
jovens, considerávamos importante garantir que eles dissociassem as nossas
conversas e atividades da elaboração dos relatórios que delimitavam suas medidas
socioeducativas. Por sua vez, em entrevista individual, Carlos Iván (17 anos, negro) me
perguntou se eu era psicóloga, e quando respondi que sim, ele disse: “dá pra perceber.
A senhora entrou na minha mente”.
Parece importante considerar essa implicação, diferente de pesquisadoras/es de
outras áreas, tal como a antropóloga feminista brasileira Natalia Padovani (2015), cuja
presença provocava estranhamento no sentido de não saberem exatamente o que ela
fazia nas unidades prisionais brasileiras onde realizava sua pesquisa 41. Já no nosso
caso, o difícil era explicar que nossas atividades não faziam parte das funções da
Psicologia como profissão dentro do Sistema Socioeducativo. Observando a resistência
de certos setores às ferramentas de pesquisa dos saberes psi, vemos uma “insatisfação
com os limites das nossas pesquisas em suas possibilidades de interferir,
principalmente quando nosso espaço de investigação está para além dos muros da
universidade” (ROCHA; UZIEL, 2008, p.532). Assim, o/a pesquisador/a “e os saberes
acadêmicos não esclarecem/interpretam “a realidade” no curso da investigação, mas

40
Interessante pensar que, para eles, a possibilidade de encontro com uma pessoa adulta passa pelo
atendimento, a elaboração do relatório ou a aula/palestra/curso, sem existir outro tipo de diálogos.
41
Natália Padovani relata a diferença que percebeu no caso das unidades catalãs, onde o lugar da
antropologia é distinto e mais presente no cotidiano das instituições-estabelecimento.
58

[...] o processo se constrói coletivamente entre as instituições em jogo” (idem). Marisa


Rocha e Anna Uziel apontam que o/a psicóloga já chega ao campo com demandas
circunscritas, ligadas à saúde, sempre com um teor de desvio na dimensão individual,
nunca política ou institucional.
Nesse sentido, uma outra provocação importante foi a relacionada ao nosso ser
De Fora do cotidiano da unidade, o que para muitas pessoas nos tornava incapazes de
propor caminhos coletivos de mudança, interpelação que nos acompanhou durante a
pesquisa toda, vinculada com um desconforto das/os profissionais do que vinha de
cima42 – ou seja, da gestão que “não conhece o dia a dia da ponta”, “de pessoas do
gabinete, que não estão no embate com o adolescente”. Se as disputas entre quem
conhece mais o Sistema, lugar geralmente reivindicado pelos agentes socioeducativos
homens, e dentro desse segmento, os de plantão, já existem, o que dizer de pessoas
que circulavam algumas horas, uma vez por semana?
É importante considerar novamente que o Sistema Socioeducativo foi nesses
anos um tema muito discutido na sociedade em geral e que muita gente, de todas as
posturas políticas, tende a proferir opiniões fortes a respeito dele sem necessariamente
conhecê-lo. Foi por isso que sempre pusemos em análise as nossas limitações em
relação ao conhecimento da complexidade e da fluidez da trama da unidade, ao lugar
diferenciado que ocupamos por não dependermos financeiramente dela e nossa
tentativa de sermos respeitosas ao fazer propostas e sugestões. Por exemplo, a
articulação dos Cursos foi de forma conjunta com as nossas parcerias na unidade
justamente por elas confiarem em nós e reconhecerem que já tínhamos um acúmulo de
experiência ali43. No entanto, considero importante expressar que escutar, ao final de
mais de dois anos e meio de trabalho na unidade, insinuações sobre a nossa distância
em relação ao estabelecimento gerou um desconforto grande, tanto pelo nosso

42
Ao mesmo tempo, a legitimidade da autorização da gestão do Degase, com a qual temos muito boa
relação e nos apoiou muito na pesquisa, foi em alguns – poucos- momentos demandada por
profissionais.
43
Percebemos a diferença no segundo Curso, no módulo facilitado por pessoas da Secretaria de Saúde,
que mesmo tendo mais conhecimentos na área de prevenção, ao não ter familiaridade com o cotidiano
da unidade, foram mais questionadas.
59

engajamento com a unidade,44 quanto porque muitas dessas limitações eram impostas
justamente pelas forças e dinâmicas do estabelecimento, que muitas vezes nos
impossibilitavam conhecer com maior profundidade espaços e rotinas. Nesse sentido,
vemos um dos desafios apresentados por Bicalho, Rossotti e Reishoffer (2016) ao fazer
pesquisa-intervenção no que eles denominam “instituições de preservação da ordem”:

há possibilidade de construção de um comum – capaz de promover relações de


confiança – em instituições cuja proposta é de produzir uma sociedade “coesa”
(leia-se assujeitada)? Talvez seja preciso inventar novas formas de produzir
interferências nas práticas institucionalizadas que cristalizam certos modos-de-
ser-sujeito, bem como se propõem a anular qualquer possibilidade de
singularização. Se não há singularidade não há sujeito e, se não há sujeito, com
o que o COM vai se ligar? PesquisarCOM. Mas… com quem? A pesquisa, aqui,
necessita de um traçado de linhas de ruptura com estes terrenos instituídos,
criando possibilidades para um novo emergir. Possibilidade onde a clássica
diferenciação entre pesquisa e intervenção, teoria e prática, perdem o sentido
ao construir como aposta o traçado de um plano comum em composição com o
território pesquisado. Mas… como fazer operar tamanha ruptura nas instituições
ditas totais? (BICALHO; ROSSOTTI; REISHOFFER, 2016, p. 90).

É importante considerar aqui a inquietação sobre de que forma as nossas


pesquisas contribuem com essas instituições-estabelecimento, a partir da percepção
das pessoas no início do campo de que “aqui somos muito estudados, muito
observados, mas até agora só uma pessoa nos deu retorno45”, ou que “muitas pessoas
vêm fazer pesquisas, pegam dados, publicam livros e nunca mais dão devolução para a
instituição, e a gente continua na mesma”, que “a universidade vem com o fósforo”, ou
“vem, taca fogo na revolução, porque aqui tem um terreno fértil para fazer isso, e depois
mete o pé”, e ainda que “os pesquisadores do alto da sua pirâmide acham que vão
fazer experiência e querem botar a visita íntima para saber o que vai acontecer, tipo o
nazismo. Querem fazer experiência com outros que não são seus filhos”.
No entanto, a qualidade desse retorno ou devolução também é uma questão
complexa, no momento em que ele corre o risco de ser entendido como avaliação ou
como receitas ao propor, por exemplo, cursos e materiais, através dos quais podemos

44
Tinha ocasiões em que, nas conversas gravadas que tínhamos no carro de volta e que posteriormente
eu transcrevia, percebia que eu mesma usava as expressões “aqui Dentro” e “lá Fora”, revelando uma
certa identificação com o CAI como um espaço meu.
45
Além do percurso de pesquisa-intervenção específico do CAI, realizamos um retorno da pesquisa geral,
que abrangeu três unidades, na EGSE.
60

assumir atitudes de possuidoras do saber, quando a proposta é, como apontado por


Fernando, “pensar com e dentro do campo de possibilidades que está definido ali para
o funcionamento e as relações”. Isso é discutido de forma muito interessante por
pesquisadoras/es do campo da Educação, como aponta Regina Leite Garcia (2001) ao
relatar a preocupação sobre a pertinência das pesquisas na escola e o desconforto que
as pessoas que trabalham nela sentem ao ver pesquisadores/as chegando na sala de
aula, de certa forma vigiando e avaliando seu “saber fazer”, e nunca mais voltando para
dar um retorno com o que havia sido “colhido nesse espaço” (p. 15). A autora também
se refere à atitude de chegar com certezas ao campo, como um grande erro das/os
pesquisadoras/es, pois isso transparece na hora de impor uma certa verdade.
Essa chegada “das/o estranhas/os” também foi importante no nosso percurso na
medida em que fomos aos poucos nos articulando com os diversos segmentos –
incluindo a gestão–, com alguns mais facilmente do que com outros, tentando superar
iniciais rótulos, tais como a de que todos os/as agentes socioeducativos/as são mais
duros/as e machistas e rejeitariam nosso trabalho e que todas/os as/os técnicas/os são
mais próximas/os das nossas discussões e se interessariam pela pesquisa. Aguçando a
sensibilidade em um campo extremamente frágil, fomos conhecendo práticas de
abertura e rigidez em todos os segmentos. Também foi importante entender que essas
práticas, enquanto performatividades, faziam parte do lugar que a instituição-
estabelecimento circunscreve para essas pessoas, e a desnaturalização tinha que partir
do entendimento dessa dinâmica, muito mais do que da nossa empatia/antipatia com
indivíduos específicos.
Na medida em que os iniciais rótulos colocados sobre nós foram se afrouxando
ao perceberem a nossa intenção em contribuir de forma contínua, nossa circulação na
unidade foi sendo mais fluida46e algumas pessoas foram criando afetos conosco,
relatando acontecimentos na unidade, articulando suas reflexões com as nossas e
acreditando que de alguma forma poderíamos contribuir com propostas como os

46
Em uma ocasião, quase no final da pesquisa-intervenção, ao querer mostrar a unidade para pessoas da
nossa equipe e não ter quem nos guiasse, fui eu a guia e, apesar de ter acesso apenas a uma parte,
ouvi: “ah, já é da casa”.
61

Cursos de forma mais equilibrada47, justamente por não fazer parte do cotidiano. Outras
foram se abrindo paulatinamente, ao observar nosso compromisso com a unidade,
algumas mantiveram uma postura distante e desconfiada em relação à nossa presença
e ações.
Por sua parte, a relação com os jovens tomava outras conotações. Diferente do
que Natalia Padovani relata na sua pesquisa, onde escutou de uma mulher de sessenta
anos, com vinte anos de prisão, dizer “eu não vou participar de pesquisa nenhuma! Não
sou laboratório não senhora! Já estou muito velha pra sentar diante de um gravador e
falar mal do sistema” (PADOVANI, 2015, p.101), a maioria dos jovens mostrava-se
curiosa, divertida, interessada e com vontade de participar, partilhar, provocar e
perguntar, entendendo que “elas sabem como que é [fazer sexo], mas elas querem
saber da nossa boca”, como apontado por Carlos Lorenzo (17 anos, branco). Jovens de
um grupo chegaram a falar que essa era a “melhor aula que já tivemos”, que “seu
trabalho é muito bom” e que poderiam ficar o dia inteiro conversando conosco. Carlos
Iván disse, depois da entrevista individual:

Carlos Iván: é muito bom dialogar. Vou pensar nesse negócio de ser psicólogo
Jimena: sim! você gostaria de participar de mais atividades com a gente?
Carlos Iván: claro! Você é muito legal

Também solicitaram, em várias ocasiões, que os chamássemos de novo,


gritando seus números dos alojamentos quando nos viam no estacionamento, o que
também despertava o interesse de outros.
Buscamos sempre fugir de um discurso de redenção emitido geralmente para a
elaboração de relatórios e gerar um momento confortável e interessante para eles.
Quanto ao gravador e ao “caderninho” que Padovani (2015) assinala, foi só no final, nas
entrevistas individuais com os jovens, que eu consegui utilizar o gravador, que se bem
ajudou muito na hora de registrar as comunicações intercambiadas, tem sido um
dispositivo que percebo como barreira entre mim e o/a outro/a sujeito/a da pesquisa.

47
Este termo, utilizado por uma das profissionais da unidade, mostra uma constante disputa entre equipe
técnica e agentes, que precisaria de alguém De Fora para propor caminhos que não favorecessem
alguma das perspectivas, tensionando ainda mais o cotidiano.
62

Para os jovens os nossos encontros eram também uma oportunidade para sair
do alojamento, onde se sentem “muito presos” e onde “não fazem nada mesmo”.
Alguns indagavam sobre nossas vidas, relações e trabalho, mostrando especial
curiosidade na minha escolha de sair do México e na experiência de gravidez da Gabi.
Outros expressavam sua visão sobre as suas vidas e contextos para “contribuir para
acabar com os preconceitos contra nós, o preconceito contra Bandido”48 como
apontado por Benjamín (17 anos, branco) em um dos grupos. Christian Alfonso (16
anos, negro) disse “isso aqui simpremente poderia ajudar pra todo mundo saber como
que nós tá. Porque ninguém sabe como nós tá. Acha que todo mundo tá bem, mas não
tá bem”. Também disse para Gabi, em uma fala que mistura afeto por nós, empatia,
preocupação com o contexto brasileiro e denúncia da situação no Degase:

dá pra ver que a senhora é legal, dá pra ver que a outra ali (Jimena)é legal.
Porque as pessoas estão aqui mais pra ajudar, vocês estão aqui mais pra
ajudar, vocês não estão aqui pra prejudicar ninguém. Eu fico vendo a
dificuldade de vocês, vocês trabalham na UERJ, eu fico vendo na televisão
como tá a dificuldade lá. Hoje em dia nosso Brasil tá em crise, hoje em dia não
tem governador pra pôr as coisas... Os hospitais estão precisando de maca,
roupa, precisando de material, não tem. Aqui na enfermaria também não tem
material. Só tem material quando quer vir, quando não quer, não tem. Quando o
adolescente precisa de um medicamento, não tem. Fica em falta.

Outros expressaram que queriam aprender questões relacionadas com


sexualidade, saúde sexual e outras temáticas afins, e reivindicavam que tínhamos que
explicar as coisas na língua deles. Nós também falamos que queríamos aprender com
eles, porque muita gente fala da vida deles sem saber realmente o que é.
Outros jovens aproveitavam a interlocução conosco para denunciar violências
vivenciadas, elemento que mesmo importante nos provocava ponderações éticas de
até onde poderíamos levar essas informações adiante e quais os efeitos que
produziríamos com isso, sobretudo para eles que continuariam lá após nossa saída.
Entrando aqui nas pistas da cartografia feminista que proponho, considero a ética uma
delas, já que, segundo Patricia Castañeda (2008), é relevante entender a

48
Apesar de existirem outras categorias semelhantes, usarei o termo Bandido com maiúscula, pois ele se
destacou como um analisador de uma série de experiências e valores específicos, revelando dobras de
gênero e geração, com performatividades masculinas e relações particulares que delimitam noções
sobre privilégios e direitos que essa figura possui, merece ou não.
63

responsabilidade social que adquirimos ao embarcarmos numa pesquisa, o que só


pode ser garantido a partir de honestidade, criatividade e cuidado na hora de produzir e
publicar resultados. A autora também alerta para “não realizar práticas que violentem as
mulheres e as coloquem em risco” (CASTAÑEDA, 2008, p.116).

Ao pensarmos em pesquisas como esta, realizadas com homens, considero que


essa mesma postura ética deva permear os processos com eles, sobretudo
considerando outras dobras subjetivas (classe, geração, raça, orientação
sexual, identidade de gênero) e também tendo a preocupação constante de, a
partir ou através da pesquisa, não violentar as mulheres que se relacionam com
esses homens, mas pelo contrário, de alguma forma desnaturalizar e até
desconstruir práticas violentas que eles possam exercer sobre elas (DE
GARAY, 2017, p.70).

Como apontado por Marisa Rocha e Anna Uziel, pessoas que fazem pesquisa
nas escolas, e acredito que ainda mais no Degase, viram receptáculos de denúncias do
estabelecimento, seja dos jovens com ele, seja entre segmentos, seja do Degase com o
governo – sobretudo na situação atual. Concordo com elas ao apontarem que

quando as turbulências cotidianas ficam retidas no plano das denúncias e/ou


dos lamentos, sem desdobramentos de dimensão micropolítica, das estratégias
de interferência, as práticas ainda agenciam o mesmo. Na dimensão
micropolítica a análise é intervenção coletiva que faz girar o olhar indagador
para as práticas de si, para as implicações das normativas-em-nós, modo como
as hegemonias ganham corpo nos nossos hábitos. Isso não significa um
abandono das análises macroestruturais, mas desafia-nos a colocar a lupa nos
modos como as hegemonias atravessam nossos corpos e nossos atos,
produzindo dobras burocráticas (ROCHA; UZIEL, 2008, p.533).

Nossa pretensão nunca foi dedicar o processo de pesquisa a simplesmente fazer


denúncias de uma instituição-estabelecimento que, com todas suas tensões,
contradições, vigilância, violência e precariedade, tem potências, incluindo o fato de ter
aberto as portas para a nossa pesquisa e de ter oferecido as parcerias necessárias
desde o início do campo, deixando nítido contarem conosco. Também não pretendo
aqui ser apenas descrever tensões e violências, pois é impossível banalizá-las, mas
apontar caminhos de análise e de movimento coletivo, de “cuidado e respeito com o
outro e com o mundo, resistências possíveis, criação de possibilidades de vida” (ROSA,
64

2013, p.240), como fizemos com os Cursos oferecidos a profissionais, ou a contribuição


com a Semana do Bebê. Buscamos colocar em análise, que significa,

seguindo as pistas de Guattari, o trabalho de desestabilização do que se


apresenta tendo a unidade de uma forma dada: o instituído, o indivíduo, o
social, a realidade naturalizada. Seguindo suas pistas, dizemos que na
pesquisa a operação de transversalizar se realiza na intensificação/aposta nos
devires que estão sempre presentes nos chamados “objetos da pesquisa”,
indicando o que neles há de diferentes graus de abertura e potências de
criação. Transversalizar é considerar este plano em que a realidade toda se
comunica (BARROS; PASSOS, 2012, p. 239).

Mesmo considerando que encontros com os jovens eram extremamente


potentes, é importante considerar que nós também fazemos parte do grupo de “ólogas”
que Padovani (2015) assinala, que já fazem parte da vida dos jovens e que os
acompanharão ao longo das suas relações com o Estado. Nas atividades em grupo,
alguns jovens que se engajavam e participavam mais, outros relatavam ou
aparentavam estar com muito sono e/ou medicados e outros expressaram não querer
participar, direito que foi garantido. Em duas entrevistas individuais era evidente que os
jovens não tinham a mínima vontade de conversar, por isso terminei rapidamente a
conversa49. Em outras, percebia que eles mudavam muito as expressões verbal e
corporal ao falarem de alguns temas, como o fato de viver com HIV ou de terem sido
acusados de estupro, visivelmente se sentindo desconfortáveis ou tristes.
Também percebemos, especialmente nas atividades em grupo, que alguns
jovens censuravam outros, falando “cala a boca, tu tá falando demais”, quando, por
exemplo, se referiam aos mandamentos do CV. Quando questionados sobre o a
necessidade deste silêncio, respondiam: “é a facção”.
Parece importante não romantizar os nossos encontros, pois apesar de acreditar
que a nossa postura era distinta, não deixamos de ser representantes do Estado –neste
caso, da universidade-, adultas, não encarceradas, seguindo uma pauta levada por nós.
E, além de tudo, mesmo explicitando a nossa não participação nos relatórios e na

49
O fato deles não quererem falar foi uma interpelação importante que gerou deslocamentos e mostrou
como o campo estava vivo e interagindo de formas diversas conosco. Embora tenha me provocado
frustração ao pensar que eles preferiam estar no alojamento do que participar da conversa, foi
importante eles acionarem suas agências para mostrar, apesar da diferença de poder desse momento,
que não queriam falar comigo, ou não queriam falar comigo sobre isso, ou não queriam falar nesse
momento.
65

possível redução de medida deles, não deixamos de ser lidas como psicólogas, que
avaliam e examinam. A pergunta de Bicalho, Rossotti e Reisenhoffer (2016, p. 94) é
pertinente: “seria uma ingenuidade propor relações laterais e não hierarquizadas, em
lugares que são constituídos pela hierarquia?”. Para eles, “a aposta é que se pode criar
as possibilidades para que as forças instituintes e de singularização emerjam,
objetivando produzir novos agenciamentos, novas composições e arranjos subjetivos.
Bifurcar a totalização para extrair, dela, vida” (BICALHO; ROSSOTTI; REISENHOFFER,
2016, p.94).
Outra questão ética importante e produtora de tensões foi a escolha dos jovens
que participariam de cada uma das nossas atividades e a forma como a informação
sobre a pesquisa e participação deles era transmitida. Toda vez que íamos, os jovens
eram apenas chamados a comparecer ao local da atividade, sem explicar o que
faríamos, o que impedia que jovens ocupados em outras atividades, ou dormindo,
pudessem expressar sua indisponibilidade no momento.
Bem no início da pesquisa, um agente sugeriu que chamássemos os jovens do
TCP e ADA que, por serem minoria, raramente são chamados para atividades. Apesar
de vários jovens estarem na nossa lista de interessados, pois nas salas de aula as
facções são misturadas, naquele momento não sabíamos que para conversar com eles,
tínhamos que fazer uma solicitação específica, pois de outra forma continuariam
chamando jovens dos alojamentos do CV.
Jovens do seguro ficam mais tímidos que o resto, contribuindo muito pouco na
atividade e não tendo suas ideias acolhidas. Em poucas situações há uma prática de
convivência, como no grupo de Promotores de Saúde, mas ainda assim
constantemente demarcam as diferenças entre os próprios alojamentos, e o jovem do
seguro é constantemente apontado como diferente. Assim, essa mistura, que
valorizamos, vivida como um desafio para nós, faz entender as precauções logísticas
da unidade, o que não significa naturalizar a separação por facções, evidenciando a
porosidade dos altos muros da Unidade.
Maynar Leite (2014) relata que as discriminações entre grupos no presídio
geravam tensões que ela e a psicóloga que a acompanhava tiveram que enfrentar,
incluindo decidir não realizar grupos que misturassem algumas internas, pois “esse
66

peculiar funcionamento cindido estava relacionado com o instituído da prisão e da


própria galeria e consistiu, por um lado, em não se encontrar para proteger a
possibilidade do encontro e, por outro, em continuar o encontro apesar do
atravessamento da prisão, que jamais cessou de funcionar” (p.804). No entanto, ela
também encontrou brechas, ou o que ela denominou, “uma fresta arriscada que dava
espaço a linhas de fuga, que nos conectaram com o imprevisto e foram possíveis onde
a prescrição foi deixada de lado ou não encontrou lugar” (p.804).
Nesse sentido, na nossa pesquisa foi um desafio propor grupos misturados,
juntando jovens de alojamentos que, na topografia que define que corpos
correspondem a que espaços, não é possível partilhar para além de momentos
específicos, como a escola, onde, como apontado por um diretor, os jovens não se
olham uns aos outros, por estarem focados no quadro ou na televisão. Quando
conseguimos fazer essas misturas certamente percebemos dificuldades que tentamos
problematizar no diálogo com os jovens, encontrando algumas brechas na logística,
mas também compreendendo os desafios que isso apresenta.
Na etapa das entrevistas individuais, profissionais e jovens da Unidade nos
indicavam internos que quisessem e pudessem relatar experiências importantes e/ou
que dessem conta da diversidade de trajetórias, expressada nos alojamentos.
Alguns/as profissionais acreditavam que ao falar de gênero e sexualidade, o nosso
interesse era apenas entrevistar jovens que se identificassem como homossexuais ou
bissexuais, ou seja, jovens “com aquele problema” ou que estava “querendo falar com
os homossexual”. Quando, no segundo Curso, solicitamos os jovens Promotores de
Saúde para participar justamente pelo seu trabalho como multiplicadores, um agente
perguntou por que não chamávamos os jovens “da triagem”, que assumiam ter relações
com outros. Participar da nossa pesquisa-intervenção parecia, em certo momento,
marcar os jovens.
Uma parte extremamente importante do nosso percurso no campo foi
debruçarmo-nos sobre as implicações éticas da nossa inserção na unidade, que se
configuraram também como problemas políticos (COUTINHO, 1997). Para a
perspectiva cartográfica, a dimensão ética se refere ao plano das diferenças que se
fazem em nós e na afirmação do devir - potência ativa - a partir dessas diferenças.
67

Nossa proposta era, então, suscitar condições para dialogar, para falar de si/nós em
outros registros além do abuso de poder e da impotência, em agenciamentos de
singularidades.
Dentro da dimensão ética, um princípio fundamental foi, em palavras do cineasta
brasileiro Eduardo Coutinho (1997), a “escuta sensível da alteridade”, que parte de uma
atenção, de uma abertura dos sentidos sem estabelecer roteiros de pesquisa - ou, no
caso do Coutinho, de filmagem. Assim, em momentos como os relatados, uma
constante preocupação foi como se posicionar eticamente neste campo. De que forma
fazer da prática de pesquisa psicossocial um movimento “de insurgência e criação?”
(COIMBRA, 2008, p.11). Como Cecília Coimbra (2008, p.17) coloca, “há que inventar,
criar, e a todo momento, tentar fortalecer as derivas, as fugas”.

É, portanto, bastante oportuno aprofundar os debates acerca da produção de


condições que possam favorecer o que denominamos de potência
emancipatória das práticas sociais nos processos de construção de uma
cidadania ativa. Nesses processos de produção de subjetividade, buscamos
apreender e intervir no padrão civilizatório capitalista (AGUIAR, 2008, p.35).

Nessa aposta, um exercício fundamental foi “experimentar o deslocamento das


certezas incertas na delimitação de método e problemas a pesquisar” (ROCHA; UZIEL,
2008, p.536), pois a pesquisa-intervenção é um

modo de investigação que ganha corpo entre a macro e a micropolítica,


considerando como desafio a analítica das implicações coletivas com a
produção do sentido, processo que transversaliza metodologia e problema de
pesquisa, produção de conhecimento e produção de modos de existência
(p.536). [...]. A pesquisa-intervenção tem como objetivo a desnaturalização de
um cotidiano vivido nas suas constâncias como atemporal, colocando atenção
no que acontece, nas situações que resistem aos modelos, no que, nas
sucessivas repetições, tensiona as crenças, os valores, a lógica que norteia a
rotina. Nessa perspectiva, cotidiano não é uma dimensão fechada ‘em si
mesma’, pois ele se constitui também na dimensão das mudanças em que
podemos ser afetados, intensificando um presente que produz rupturas,
fazendo diferença nos modos de entender e sentir a realidade – uma diferença
marcada por exercícios de singularização (p.537). [...] O campo de intervenção
nos remete ao espaço de interlocução, ao território de encontros possíveis entre
pesquisador e comunidade envolvida no processo de investigação (p.540)
(ROCHA; UZIEL, 2008, p.536-540).

Segundo Lapassade e Lourau (COIMBRA; NASCIMENTO, 2008), na pesquisa-


intervenção as noções de sujeito, objeto, pesquisador/a e campo de pesquisa se criam
68

ao mesmo tempo, num plano de imanência. Teorias e práticas são sempre práticas, se
compondo reciprocamente sem relação causal, em processo, com resultados “sempre
provisórios, em processo de permanente mudança” (ROCHA; UZIEL, 2008, p.542).
De tal modo, a intervenção não implica só a nós como equipe de pesquisa, mas
também o próprio campo, que se implica em diferentes fluxos, intensidades, e com
diversas intenções. O material de campo é assim material de análise e de intervenção,
pois vai se alimentando a si mesmo em um processo de produção de movimentos no
campo, onde ele nos chama para intervir e oferecer ferramentas com os elementos que
ele mesmo nos proporciona.
Desta forma, como equipe fazendo uma cartografia, nos reconhecemos como um
instrumento na pesquisa-intervenção, numa colheita não de dados, mas de caminhos
de potência nesse campo, já que “se, por um lado a cartografia não lida com “dados” no
sentido mais tradicional do termo, ela também não pode se esquivar do fato de que ela
gera efeitos (BARROS; BARROS, 2013, p.374). Assim, é importante pensar em que do
estabelecimento socioeducativo e das instituições-organização e instituições-forma que
o atravessam estamos mexendo com as nossas experimentações. Qual debate
estamos ajudando a produzir e a quem serve? Colocar estas questões na análise
reafirma o caráter político da pesquisa-intervenção (NASCIMENTO; COIMBRA, 2008).
Além disso, tentamos promover o diálogo entre os segmentos, nos esforçando
em fomentar a desestabilização da separação apontada entre eles, principalmente
através do primeiro Curso, onde foram realizadas várias atividades entre pessoas de
diversos segmentos e o diálogo entre eles foi positivamente avaliado por várias
pessoas. A proposta metodológica era que não existisse uma imposição de saberes,
mas um diálogo de experiências e conhecimentos e uma produção de movimentos
localizados. E esse diálogo foi um elemento ressaltado desde o início do Curso com
encantamento, palavra de uma profissional, diante de um interesse em “conhecer o
ponto de vista dos outros”, pois “é necessário fortalecer as relações institucionais, os
vínculos de confiança”, em palavras de um profissional de outro segmento, e destacado
nas avaliações finais, sobretudo do primeiro Curso, agradecendo pelo espaço para
diálogo e apontando que as relações tinham melhorado muito entre eles/as, que agora
cumprimentavam pessoas que antes nem conheciam.
69

Naquele momento, o clima político da unidade estava mais calmo, e não existia
uma proposta concreta de mudança, como no caso do segundo Curso, que visava
implementar a distribuição de preservativos, e o grupo conseguiu se engajar e participar
mais. Durante a organização do segundo Curso voltou à cena o debate sobre a
pertinência do público serem agentes e técnicos juntos ou separados, já que
identificamos pontos positivos e negativos em ambos os formatos. Optamos por um
público o mais diverso possível.
Ambos os Cursos tiveram desdobramentos interessantes, com atividades como
leitura de texto, projeção de curtas, fabricação de zine, rodas de conversa, incluindo
umas específicas na recepção dos jovens, apresentações teatrais, e propostas
concretas de distribuição de preservativos – no caso do segundo Curso- foram
realizados.
Em uma experiência também muito intensa de cartografia de/em um serviço de
ginecologia e obstetrícia, Marta Benet, Emerson Elias Merhy e Margarida Pla, apontam
como foram se apropriando, de forma antropofágica, de uma caixa de ferramentas
composta por

conceitos, epistemologias, metodologias, técnicas e procedimentos, vivências,


emoções e afetações. [...] Um percurso que implicava uma transformação, um
movimento de desterritorialização de algumas práticas investigadoras para criar
outras formas de expressão e construir novos territórios desde onde pesquisar.
Um processo de mudança com incomodidades, derivas e incertezas que
geraram também mudanças na linguagem e dispararam novas narrativas. […]
(BENET; MEHRY; PLA, 2016, p. 233, tradução livre)

Importante considerar que a intervenção implica uma problematização, mas ela


também pode se apresentar como normatizadora, no momento em que assumimos uma
postura política, em que privilegiamos certas temáticas, gênero e sexualidade e
questionamos e provocamos as normas e códigos. Neste sentido, realizamos uma
constante auto-provocação, ao propor um diálogo entre pesquisas feministas, com um
nítido posicionamento político, e, por exemplo, propostas como a da pesquisa nômade,
que

não pretende difundir doutrinas ou entrar em polêmicas, não visa persuadir e


conquistar seguidores. O que objetiva é a abertura de um campo de perguntas
70

pela efetuação do pensar como experimentação e ruptura com o que se


pretende universal e sem história (LEMOS; CARDOSO; NASCIMENTO, 2012,
p.157).

Dessa forma, o diálogo entre uma postura sempre aberta de desterritorialização


e devir e uma militância que poderia em alguns momentos agenciar cristalizações no
campo político, é um desafio. No entanto, é importante afirmar uma postura feminista
também como um exercício de desterritorialização, como uma busca pela potência de
vida.
Desta forma, a constante interpelação de vários/as profissionais de que esse
tema não deveria ser prioritário, pois havia outros mais urgentes, me provocou em
vários momentos pensar se era apenas eu que estava delimitando essa questão como
um problema. No entanto, as parcerias realizadas na unidade nos permitiram reafirmar
que não éramos as únicas a ver essa questão como problema, no sentido de
intensamente incorporada no cotidiano. Ao apontá-la tentávamos construir alternativas
de discussão coletiva, tecer alianças, tática importante tanto para as pesquisas
nômades quanto para as feministas.
Assim, mesmo sendo importante problematizar os nossos saberes, ter humildade
na nossa ignorância sobre as pressões cotidianas, nos propomos a não enquadrar
vidas a partir da nossa intenção política, não institucionalizar as nossas propostas, mas
constantemente subverter aqueles processos que tiram a potência de vida, que
impedem que os afetos façam passagem. Nosso objetivo era revelar, a partir das
nossas dobras, possibilidades e limitações, pensar de que forma gênero e sexualidade
mobilizam, organizam e produzem violências, mas também linhas de fuga. Afetando e
sendo afetadas/o nos trânsitos pela unidade, buscávamos, a partir de uma ética
cartográfica feminista, criar territórios no campo de disputa nela e na sociedade, o que
nos trouxe parcerias, empatias, mas também hostilidades, tensões, resistências,
embates e entraves, que eram todos postos em análise para pensar o que estávamos
mobilizando.
Nas pistas que proponho para uma cartografia feminista, os resultados ocupam
um lugar importante, pois como aponta Patricia Castañeda (2008, p.89, tradução livre)
“para produzir um conhecimento que favoreça a construção das liberdades das
mulheres não basta desconstruir”. Como a autora acrescenta, além de desmontar o
71

androcentrismo, o sexismo e a misoginia, é importante ter como objetivo elaborar


conceitos que fundamentem os projetos emancipadores. Assim, além de discussões
conceituais, teóricas e políticas, destaco a importância de realizar práticas inovadoras, o
que é possibilitado por propostas de pesquisa-intervenção, como apontado por Cecília
Coimbra:

Compartilhamos com Saramago (2005) quando, no Fórum Social Mundial,


defendeu a ideia de que não devemos nos limitar simplesmente a reivindicar um
outro mundo possível. Em lugar de pôr esse desejo em um futuro, que se
apresenta como um objetivo a alcançar, é necessário que o tal “mundo
possível” não fique, enfim, para não se sabe que tempo e para não se sabe que
lugar. Que seja afirmado na invenção/experimentação de caminhos que se
fazem no próprio ato de caminhar, para não repetirmos as nossas boas e justas
razoes infinitamente (COIMBRA, 2008 p.14).

Contudo, é importante a ressalva de que é importante evitar

uma visão salvacionista dos fazeres acadêmicos e nem pretender que os


nossos resultados se apresentem como verdades fixadas, mas acreditando que
a articulação destes com outros saberes e conhecimentos pode oferecer uma
potencialização do nosso engajamento e do interesse das pessoas no que
estamos trazendo. Para isso, é importante ter ao longo dos projetos uma
comunicação muito próxima com as/os participantes, para saber o quanto
estamos provocando para que surjam propostas concretas de transformação.
Mesmo que não abarquemos todas as pessoas à participar do processo de
pesquisa, buscamos constantemente alianças, pois é muito importante para
este movimento (DE GARAY, 2017, p.74).

Esse movimento foi acontecendo com as possibilidades de produção “a partir do


diálogo com o contexto e as pessoas ou com aquilo que em um momento determinado
somos capazes de pôr em experimentação e criar” (BENET; MEHRY; PLA, 2016, p.
233, tradução livre). Foi fundamental neste sentido, como já apontei, uma indagação
sobre práticas de reconhecimento do trabalho dos segmentos, um investimento na
dimensão inventiva, “assim como na contribuição para a criação de condições que
possibilitem novas práticas coletivamente constituídas” (ROCHA; UZIEL, 2008, p. 543).
A experiência dos Cursos foi extremamente enriquecedora e mobilizadora, pois as
pessoas que desde o início da pesquisa se mostraram interessadas na temática foram
acompanhando os nossos passos com os jovens, sempre demandando alguma
atividade também com elas/es. Foi por isso que pensamos no primeiro Curso, no qual
72

essas e outras pessoas se inscreveram e posteriormente realizaram ações a partir dos


seus saberes e das discussões que levamos, onde fomos propondo e reconfigurando
conceitos e análises. Para realizar isso, foi fundamental considerar as instituições-forma
que se atravessavam e constituíam o campo.
Com essas noções vibrando no nosso “habitar o CAI”, foi exatamente a partir da
sensibilidade que tentamos elaborar, junto com as pessoas que ali atuam e com os
jovens, propostas de intervenção nesse campo, que foram surgindo como táticas
colaborativas e nômades, mas sempre em disputa. Abraçando a demanda do Benjamin,
de ajudar a desconstruir o “preconceito contra Bandido”, tentamos explorar as
trajetórias e potências dos jovens e do trabalho realizado na unidade, tentando ir além,
para pensar com eles e com as/os profissionais os jogos de poder, as forças, as
violências que entram, saem, perpassam se estancam, se modificam e se atualizam no
CAI.

Arriscar-se numa experiência de crítica, de análise das formas instituídas nos


compromete politicamente. Tal operação de análise implica a desestabilização
das formas instituídas e acessa o plano de forças a partir do qual a realidade se
constitui, devolvendo-a ao plano de sua produção, que é o plano coletivo,
heterogêneo e heterogenético, que experimenta, incessantemente,
diferenciação (BARROS; BARROS, 2013, p.377)

Também, como apontado por Virgínia Kastrup e Eduardo Passos, “ter um mundo
às mãos é comprometer-se ética e politicamente no ato do conhecimento. É intervir
sobre a realidade. É transformá-la para conhecê-la” (2013, p.264).Nos Cursos, mesmo
trazendo os nossos conhecimentos no campo do gênero e da sexualidade, não
procuramos um mero caráter de sensibilização ou capacitação, mas um momento de
construção coletiva onde as e os profissionais que estão no cotidiano pudessem se
apoiar em nós para investir em linhas de fuga, de forma a desterritorializar as diversas
instituições-forma que atravessam as vidas dos jovens e de todas e todos nós, e que
controlam, aprisionam e moldam os nossos corpos e sexualidades.
Esses jovens foram criando brechas criativas, em uma “máquina de guerra”
(DELEUZE, 2008), para explorar essa possibilidade e subverter vários códigos,
ocupando tempos e espaços aparentemente não disponíveis, apoiados por
profissionais de vários segmentos e por nós, propondo diálogos de trabalho com eles a
73

respeito das performatividades masculinas e de como elas podiam ser dribladas,


atualizadas e modificadas, assim como fazendo propostas concretas de garantia dos
seus direitos sexuais, incluindo a implementação da camisinha. Foi em grande parte
graças a eles e à constatação de um jovem com HIV, que a unidade se mobilizou mais
intensamente para operacionalizar esse grande desafio. Foi um acontecimento.

E se só há acontecimento no encontro, é no encontro que algo nos acontece e


se produz como causa de si em nós. E o que seria verdadeiramente impossível
é que o acontecimento deixasse de ser singular e fosse o mesmo ou igual para
cada modo de vida ou de ser. Todo acontecer nos coloca necessariamente na
dimensão do inédito e da diferença irredutível, incomparável. É que jamais
permanecemos os mesmos a cada encontro. E por que quereríamos evitar a
mudança de nós mesmos senão por ressentimento em relação a tudo que
difere ou faz diferir? Quando, ao contrário, queremos o acontecimento,
afirmamos o diferir da diferença, acolhemos todo acaso como fonte e
combustível de criação não só para a vida como também de si, para si, como
uma potência que cresce e não para de crescer seja qual for a modalidade de
variação que a atinge em um bom ou em um mau encontro (FUGANTI, 2012,
p.76).

1.4 “Vocês mulheres têm aqui outra visão”: pesquisa feminista com homens

Parece pertinente trazer aqui outra pista das que proponho ao pensar metodologias
feministas, que

versa sobre as pessoas que vamos chamar para construir a pesquisa conosco,
que [...] gosto de chamar de “participantes”, para fugir da terminologia comum
de “sujeitos” ou inclusive “objetos”. Neste sentido, é importante pensar com
quem desejamos produzir conhecimento e o que isso significa para essas
pessoas, que provavelmente será diferente do que significa para nós como
pesquisadoras/es que decidimos investir de certa forma no processo e temos
compromissos acadêmicos com ele, incluindo, muitas vezes, um financiamento
ou bolsa de estudos. O nosso encontro com as pessoas não pode diferir
apenas no sentido de que nós decidimos embarcar na pesquisa e escolher
certa população para convidar a se engajar como participante, mas também no
que tange às posições de sujeito que ocupamos no tecido social (DE GARAY,
2017, p.63).

Nesse sentido, uma discussão importante no campo das pesquisas feministas tem
sido a pertinência de pesquisar com homens. Por um lado, a feminista antropóloga
74

espanhola Carmen Gregorio (2006) aponta as principais contribuições que a


epistemologia feminista fez aos processos investigativos, incluindo a análise das vidas,
interpretações, devires e práticas das mulheres como protagonistas nas sociedades.
Igualmente, a feminista psicóloga mexicana Gabriela Delgado (2010) defende que as
coincidências entre o sujeito investigado e a forma como se investiga permitem
constatar que existe uma metodologia feminista. Também, Patricia Castañeda (2008)
sugere que a pesquisa feminista se caracteriza por “conhecer a partir das mulheres,
conceituadas como sujeitas cognoscentes e cognoscíveis” (p. 9, tradução livre) e por
“propor problemas de pesquisa que se baseiam na pluralidade, a diversidade e a
multiplicidade de experiências das mulheres” (p.18). Aponta que “pôr as mulheres no
centro da pesquisa feminista significa mais do que enunciá-las: requer pensá-las e
organizar a pesquisa em relação a elas” (p.86, tradução livre).
Por outro lado, outras vozes têm se posicionado para falar da importância de
fazer pesquisas com homens. No VI Colóquio Internacional de estudos sobre homens e
masculinidades, em abril de 2017 em Recife, o pesquisador mexicano Juan Guillermo
Figueroa apontava a existência de um des-conhecimento sobre os homens que, como
sujeitos de gênero, também vivem consequências perversas do machismo, incluindo,
por exemplo, uma falta de cuidado de si em uma busca por se legitimar como sujeitos
masculinos (FIGUEROA-PEREA, 2013). Michael Kimmel e Michael Messner (1997)
também apontam a importância de analisar os homens como “gendered beings” (seres
generificados) no momento em que “suas vidas estão organizadas em torno de
questões de gênero” e este “é um dos princípios de organização da vida social” (p. xiv,
tradução livre). E não assumir este princípio “perpetua as inequidades baseadas no
gênero na nossa sociedade” (p.xv).
Mara Viveros considera que visibilizar o pertencimento generificado dos homens
“subverte uma ordem social na qual só as mulheres temos sido marcadas pela
diferença” (VIVEROS, 2002, p.42). A feminista antropóloga brasileira Rosely Gomes
Costa (2002)

aponta as críticas feitas aos chamados Men’s studies que, ao tentar integrar os
homens às análises das violências de gênero, têm mostrado uma tendência a
vitimizá-los, argumentando que também sofrem violência de gênero,
reivindicando uma flexibilização dos “papéis” e não uma mudança profunda nas
75

dinâmicas de poder, ao tempo em que têm uma perspectiva parcial e


totalizadora da masculinidade (DE GARAY, 2017, p.66).

No Colóquio de Masculinidades, a psicóloga feminista portuguesa Conceição


Nogueira também questionou os Men’s studies, apontando que é necessário pensar as
masculinidades também a partir dos feminismos, pois, para avançar, precisamos de
alianças políticas, mesmo que elas nem sempre sejam estáveis ou completamente
convergentes. Por sua vez, Mara Viveros (2002) faz uma ponderação interessante, ao
lembrar que os Men’s Studies no contexto latino-americano foram iniciados por
mulheres feministas, que observaram uma urgência de repensar a masculinidade sob o
entendimento de que os homens são atores sociais dotados de (e produtores de)
especificidades de gênero.

Desta forma, parece fazer sentido, a partir das pesquisas feministas,


compreender os mecanismos de manutenção do machismo e das normas de
gênero, que são relacionais, e os efeitos nesses homens e nas pessoas,
homens e mulheres, com as que eles se relacionam (DE GARAY, 2017, p.66-
67).

Como apontado por Rosely Costa, reduzir o surgimento do interesse do tema


das masculinidades aos objetivos mais superficiais “subestima os resultados do próprio
movimento feminista que, ao discutir as formas de relações de poder entre homens e
mulheres, e ao promover mudanças experimentadas por homens e mulheres, colaborou
para o surgimento de várias formas de questionamento sobre a masculinidade”
(COSTA, 2002, p.219). Por sua vez, Pedro Nascimento (2007) aponta que o debate dos
estudos sobre homens e masculinidades

construído a partir de uma “perspectiva feminista e de gênero” não deveria


desconsiderar os interesses dos próprios homens e os benefícios que essa
reorientação traria para a vida de homens e mulheres. Entendendo que nos
diferenciávamos de uma perspectiva de vitimização dos homens; afastando-nos
de um discurso sobre a “crise da masculinidade” e compreendendo que aquela
proposição partilhava os ideais feministas, como era entendido desde o início,
estava aí em jogo não apenas o desenvolvimento de um conjunto de ações,
mas de negociações de lugares, identidades e agendas (NASCIMENTO, 2007,
p.41).
76

Diante dessa discussão, reafirmo meu posicionamento feminista explícito, a partir de


um compromisso político por pesquisar e intervir nas produções hegemônicas de
gênero que, sempre relacionais, limitam, violentam e oprimem, em diversas
intensidades e densidades. Isso, certamente, deve ser feito a partir de processos
acadêmicos que explorem as complexidades dessas produções e dessa forma
dialoguem com outros campos de saberes e práticas, promovendo conhecimentos
significativos que contribuam com a transformação social.
Nesse momento, é pertinente destacar novamente que as subjetividades são
produzidas não apenas pelo dispositivo de gênero, mas também por raça, classe social,
geração e localidade, como exploramos antes. Como apontado pela feminista negra
estadunidense bell hooks (1984), todos os homens perpetuam de uma ou outra forma o
sexismo e a opressão sexista, pois assim como as mulheres, eles “têm sido
socializados para aceitar passivamente a ideologia sexista” (p. 73, tradução livre). Ela
também aponta que,

Os homens não são explorados ou oprimidos pelo sexismo, mas existem


formas em que eles sofrem como resultado dele. Esse sofrimento não deve ser
ignorado. Enquanto ele não diminui a seriedade do abuso masculino e a
opressão das mulheres, nem nega a responsabilidade masculina de ações
exploradoras, a dor que os homens vivenciam pode servir como catalisador
para chamar a atenção para a necessidade pela mudança
[…]
Os homens oprimem as mulheres. Pessoas sofrem pelos padrões rígidos de
papéis de gênero. Essas duas realidades coexistem. A opressão masculina das
mulheres não pode ser escusada pelo reconhecimento de que existem formas
em que os homens são feridos por papéis de gênero rígidos (HOOKS, 1984,
p.73-74)

No entanto, “os homens não partilham de um status social comum, o


patriarcado50 não nega a existência de privilégios de classe e raça ou de exploração,
[…] não todos os homens se beneficiam igualmente do sexismo” (HOOKS, 1984, p.69,
tradução livre). Assim, a autora discorre sobre processos em que homens
marginalizados reproduzem a violência diante da “contradição entre a noção de
masculinidade que aprendeu e sua inabilidade para cumprir essa noção”, o que,

50
Apesar de problematizarmos conceitos como patriarcado, papéis de gênero e ideologia, usados por
essa autora, suas elaborações nos parecem extremamente interessantes e relevantes para este
trabalho.
77

na medida em que ele ataca mulheres e não o sexismo ou o capitalismo, ele


ajuda a manter o sistema que lhe possibilita poucos, se alguns, benefícios ou
privilégios. Ele é um opressor. Ele é um inimigo das mulheres. Ele também é
um inimigo para ele mesmo. Ele também é oprimido (HOOKS, 1984/2004, p.75,
tradução livre).

Nesse mesmo sentido, falando sobre homens jovens negros na Baixada


Fluminense, Marcio Caetano, Paulo da Silva e Treyce Goulart apontam que eles “ao
não possuírem a possibilidade de dissimular totalmente sua negritude, pois fenotípica,
se autoafirmem a partir de elementos que, dentro de relações coloniais de poder,
retroalimentam os discursos que os subalternizam” (CAETANO; DA SILVA; GOULART,
2016, p. 223)
Nesse sentido, surge a proposta de que estudos sobre homens que se
movimentam em lugares marginalizados sejam relevantes na fabricação das
performatividades diversas, assim como na produção de ações no campo em que eles
circulam.
No Colóquio de Masculinidades, o argentino Luciano Fabbri falava da
importância de pensar em uma política de pesquisa, considerando os pontos de partida
e os horizontes dos estudos das masculinidades. No mesmo evento, Conceição
Nogueira considerou importante pensar em quem se beneficia das nossas pesquisas,
ponderando que os feminismos devem pensar em justiça social. Patricia Castañeda
(2008) também assinala como fundamentais em uma pesquisa feminista as perguntas:
o que se conhece, porque se conhece, mas especialmente com quem e para quem se
conhece. Desta forma, parece fazer sentido, como pesquisadora feminista,
compreender os mecanismos de manutenção do machismo e das normas de gênero,
que são relacionais, e os efeitos nos homens jovens que participaram desta pesquisa,
assim como nas pessoas, homens e mulheres, com as que eles se relacionam,
buscando, como parte de uma “revolução feminista”, “formas em que os homens
possam desaprender o sexismo” (HOOKS, 1984, p.77).
Ao considerar novamente que o gênero não é o único dispositivo que produz
nossas experiências, outro elemento muito importante é pôr em análise as nossas
posições de sujeito no campo. A partir de uma perspectiva metodológica feminista, é
importante manter em constante e profunda análise como os participantes, sujeitos
78

dobrados, se relacionam e se produzem conosco, sujeitos/as também dobrados/as, que


nos inserimos, participamos e somos capturados/as de formas distintas nas instituições-
estabelecimento, instituições-organização e instituições-forma. O fato de sermos
reguladas/os de formas diferentes pelos discursos e práticas hegemônicas e cujas
resistências também podem ser diferentes, não significa que não possamos construir
um comum em nossas resistências.
Mais uma vez, a Análise Institucional nos inspira ao trazer o conceito de
“implicação”, que é “a vontade política de produzir novos problemas, vontade de
invenção” (RODRIGUES; LEITÃO; BARROS, 1992, p.12). Uma pesquisadora
“implicada” é aquela “cujo projeto político inclui transformar a si e a seu lugar social, a
partir de estratégias de coletivização das experiências e análises” (LOURAU, 1993,
p.85). Assim, a análise das implicações “não consiste somente em analisar os outros,
mas em analisar a si mesmo em todo momento” (LOURAU, 1993, p.36).
Nesse sentido, vale trazer um ponto que, como apontado por Mara Viveros (2002),
se relaciona com uma “velha questão para a Antropologia”: “é preciso fazer parte de um
grupo para compreendê-lo?”. Quando pensamos nos jovens do Degase, é possível
sugerir que nenhuma pessoa na academia ocupa exatamente esse lugar, simplesmente
pelo fato de eles serem menores de idade e em uma instituição-estabelecimento de
privação de liberdade. No entanto, existem pesquisadores/as favelados/as, negros/as,
jovens, existem pesquisadores/as que já passaram por essas instituições ou cujos
regimes e idade lhes permitem fazer parte da comunidade científica em essas
instituições, tais como Samuel Lourenço51, estudante da UFRJ e pesquisador da UERJ,
que participa conosco na Rede de Grupos de Pesquisa sobre Políticas de Restrição e
Privação de Liberdade. Ressalto aqui a estratégia política-epistemológica da socióloga
brasileira, feminista, favelada e anti-racista Carla Mattos (2016), moradora e
pesquisadora dos mesmos territórios:

o lugar de fala da pesquisadora “nativa” precisa ser refletido em relação à


intersubjetividade etnográfica. Arrisco-me a dizer que as experiências
partilhadas implicam não apenas o lidar com os imponderáveis da pesquisa,
mas sobretudo traz uma gama maior de indicialidades (em locuções do tipo

51
http://ultimosegundo.ig.com.br/educacao/2014-11-07/a-educacao-da-uma-nova-identidade-diz-preso-
que-entrou-na-ufrj-pelo-enem.html
79

“como você sabe, Carla”) demarcadoras da “experiência vivida”. Estas


indexações é um meio privilegiado para compreender o “horizonte narrativo” e
sua modulação política propriamente dita. Similar às modulações das narrativas
musicais ligadas ao funk, como tenho estudado, o território emerge como
“quadro de vida” – tal como formulou o geógrafo Milton Santos (1994) –,
assinalando as limitações de fala, mas também a sua potência teórica.
Conquanto não se pode homogeneizar as maneiras diversas de se vivenciar e
narrar o cotidiano na favela, as experiências estão atravessadas pela
constatação de que o que acontece aqui não é o mesmo que acontece “lá fora”,
ou se acontece não é igual. As experiências de subalternidade na cidade,
concretizadas pela modalidade de presença desigual e violenta do Estado,
conformam o ponto de aproximação, a despeito da diversidade da favela,
inscrita na pesquisa favelada (MATTOS, 2016, p.11).

Nesse sentido, é primordial pôr em análise as nossas diferenças com os jovens e


de que forma elas se articulam, se comunicam, geram territórios em comum, mas
também abismos de diferença e desigualdade, assumindo uma responsabilidade com
esse quadro:

Faz-se necessário reconsiderar a relação da ética com a crítica social, uma vez
que parte do que considero tão difícil de narrar são as normas – de cunho
social- que dão origem à minha existência. Elas são, por assim dizer, a
condição da minha fala, mas não posso tematizar plenamente essas condições
com os termos da minha fala. Sou interrompida por minha própria origem social,
e por isso tenho que encontrar um jeito de avaliar quem sou deixando claro que
sou da autoria daquilo que me precede e me excede, e que isso, de maneira
nenhuma, me exime de ter de relatar a mim mesma. Mas significa que se me
posiciono como se pudesse reconstruir as normas pelas quais se instaura e se
sustenta minha condição de sujeito, então recuso a própria desorientação e
interrupção da minha narrativa implicadas pela dimensão social dessas normas.
Isso não quer dizer que eu não possa falar dessas questões, mas apenas que,
quando o faço, devo ter cuidado para entender os limites do que posso fazer, os
limites que condicionam todo e qualquer fazer. Nesse sentido, devo adotar uma
postura crítica (BUTLER, 2015. p. 107).

Nessa interlocução, não sou apenas uma mulher sobre a qual eles poderiam
exercer poder, mas também sou adulta, universitária, livre, e gringa, dobras que
geravam curiosidade neles e que eu permitia que explorassem e indagassem,
possibilitando a visibilização da forma com que meu corpo e minha linguagem eram
afetados e afetavam os meus percursos.
No que tange aos atravessamentos dos dispositivos de raça, classe e localidade,
como apontado por Francesca Gargallo (2014), no momento em que como branca
percebo “os privilégios que o sistema racista tem reservado para mim desde a infância”,
(p. 19, tradução livre) processo intenso e inacabado para o qual tenho precisado de
80

pessoas que assinalem e desnaturalizem esses privilégios, devo permanentemente


colocar em análise meu lugar de acesso a direitos. Por exemplo, no CAI, diferente das
mulheres que visitavam os jovens, a maioria negras e de comunidades empobrecidas,
nunca fomos entendida como suspeitas.
Nos encontros com os jovens, a maneira com que eles nos tratavam revelava
nossas diferenças e desigualdades. Identificavam Gabi como sendo de classe média e
moradora da Zona Sul da cidade em função de seus repertórios performativos. Christian
Alfonso perguntava se ela conhecia pessoas que moravam em Laranjeiras, dando por
certo que ela era de uma rede de pessoas específica que ele tinha conhecido. Ela, por
sua vez, gostava de explorar a proximidade a eles a partir do fato de ser professora em
Duque de Caxias – de onde muitos jovens da unidade são. Ela também chegou a ficar
muito mobilizada em uma ocasião em que um jovem relatou ter realizado vários
arrastões na Avenida Brasil, trajeto que ela realiza de forma cotidiana, sempre com
certo receio disso acontecer. Da mesma forma, em menos encontros, Fernando, Anna,
Luisa, Pati, Vanessa, Bárbara e Camilla produziam diversas interlocuções com os
jovens, cada um/a com diversas dobras subjetivas.
Eu aparecia para eles em muitos momentos como uma figura que dificilmente
veriam nesse lugar, uma gringa. Mesmo não me reconhecendo como tal, por vir de um
país latino-americano que vivencia violências históricas na geopolítica mundial, acho
importante lembrar que o fato de eu ser branca, de classe média-alta e universitária, faz
com que ocupe, tanto no México quanto no Brasil, um certo lugar no contexto de
desigualdade. Além das conversas sobre a minha origem mexicana, que já mencionei
antes, alguns encontros iniciais com eles foram interessantes no sentido do que
trouxeram para pensar. Carlos Lorenzo me falava em inglês, dizendo “I Love you”, e
disse ter me reconhecido na Lapa com uma máquina fotográfica, o que, de certa forma,
me posicionava em lugar de vulnerabilidade nas relações no espaço público urbano, ao
ser alvo de assaltos e roubos. Cutberto (16 anos, negro) também disse que eu sofreria
preconceito na comunidade dele por ser gringa. Ao mesmo tempo, como expressado
por Christian Alfonso, o tratamento que a polícia dá a turistas é abismalmente diferente
no que tange a práticas ilegais.
81

Nesse sentido, outra indagação de alguns jovens era se eu usava drogas e


quais, especialmente quando me relacionavam com estrangeiras que os acessam para
comprar drogas no caso dos que traficam. Nesse tema, o deslocamento provocado
pelas minhas respostas construíam uma outra relação com eles, como expressado por
Carlos Iván: “eu gosto de saber que estou falando com uma pessoa que já fez, porque
é muito fácil falar que nunca pá, falar que vai prejudicar, mas falar com alguém que já
fez”.
O idioma também se posicionou como um diferenciador de experiências. A
historiadora e antropóloga brasileira Adriana Facina (2009) distingue entre o fazer
antropológico enquanto estrangeira/o e a antropologia urbana, que aborda grupos na
mesma cidade ou país, apontando que as barreiras linguísticas no segundo caso
também existem, e é importante pensar nelas para considerar nosso lugar de “outsider”.
No meu caso, apesar de eu ter um bom domínio da língua portuguesa, mesmo mais
precário do que o dos nativos, no CAI ele se mostrou deficiente, especialmente com os
jovens, que invariavelmente percebiam meu sotaque, às vezes dizendo que “parece
gringa”, perguntando se estava aprendendo a sua língua, dizendo que queriam
aprender espanhol ou sinalizando que eu tinha pegado um “sotaque bom”52.
Por sua vez, a minha compreensão das gírias e construções gramaticais dos
jovens, pertencentes ao “favelês”53 (FACINA, 2009) foi um grande desafio, me
colocando numa múltipla alteridade. Tinha ocasiões em que os jovens não entendiam o
que eu falava, e eu também não entendia muitas coisas, especialmente pelo fluxo das
narrativas, pelas palavras e por expressões que vão para além da língua e tocam na
forma de narrar as experiências. Na tentativa de aprender as gírias e construções

52
Como sugerido por Thiago Melício, podemos pensar nos sotaques como dobras de territórios
existenciais.
53
Como essa autora aponta, ao falar da “confrontação dessa linguagem com as normas do português
culto”, “a falência da educação pública é fato, mas é necessário relativizar e contextualizar os diferentes
modos de apropriação da língua pelas camadas populares, pois elas envolvem sonoridades, sentidos e
conformações históricas que criam elementos fora da norma culta e que não podemos entender como
erros, sob pena de simplificar processos complexos de criação cultural” (FACINA, 2009, p.106). É com
essa intenção que coloco as falas dos jovens na íntegra, não por ridicularizar o “mau” uso da língua
portuguesa, até porque isso seria hipócrita especialmente no meu caso, mas por respeitar e entender o
processo de construção gramatical e expressiva nessas falas.
82

gramaticais dos jovens, vivenciei curiosidades, ridicularizações, e desespero por não


entender tudo que estava sendo falado.
No entanto, esse desconhecimento também fez com que eu pudesse solicitar,
em alguns momentos, que os jovens explicassem os termos usados sem tanto
constrangimento, pois eu já era lida como necessariamente De Fora. Assim, em três
momentos bastante jocosos do campo, os jovens fizeram um exercício de glossário
para nós, virando tradutores. Por exemplo, em uma conversa com o grupo de saúde
mental, Antonio traduzia para nós e para as profissionais algumas expressões, ao
perceber que no relato de outro jovem, nós não estávamos entendendo essas
expressões. No entanto, esses momentos aconteceram de forma fluida, pois concordo
com Facina (2009) que forçar essa tradução nem sempre é possível ou bem-vindo,
tendo que usar o contexto para entender alguns termos ou expressões.
A alteridade, neste sentido, quando aciona uma escuta sensível, é capaz de
propiciar condições para pensar os atravessamentos dos dispositivos e como eles
agenciam as instituições-forma. De forma provocativa, isto dialoga com o que Lemos,
Cardoso e Nascimento propõem ao falar do movimento da pesquisa nômade, que

não diz respeito aos sujeitos formados, mas ao que, nos sujeitos, por ocasião
de seus encontros intensivos pelo mundo, não cessa de se deslocar, de se
rearranjar, de atrair e de fazer partir, compondo-se com outras multiplicidades
diferentemente. É por isso que o pesquisador nômade nunca é ninguém
definido de antemão e também nunca parte de uma origem fixa ou visa um
ponto de chegada. Ele é a vivência do entre (LELMOS; CARDOSO;
NASCIMENTO, 2012, p.157).

Por um lado, ainda considero fundamental pensar a posição de sujeito, pois


mesmo que sempre em trânsito e relação, as instituições-forma nos atravessam
inegavelmente e faz parte do compromisso político da cartografia feminista assumi-las e
pô-las em análise. No entanto, me parece interessante resgatar a noção de “encontro
intensivo”, ao pensar que podem existir coisas que esses jovens conseguem falar para
mim, uma pessoa que vem De Fora - do estabelecimento, do país, da comunidade-,
uma mulher que pergunta sobre sexualidade, que apresenta alguns códigos e falas
diferentes, que não entende muita coisa, que faz perguntas que não tinham pensado.
83

Diante disto, podemos nos perguntar de que forma são definidos os limites de
pertencimento, reconhecimento, representatividade e possibilidade de encontro.
O atravessamento geracional foi revelado nas diferenças das relações dos
jovens com integrantes da nossa equipe, que se aproximavam ou se distanciavam mais
da sua geração. Isso era interessante até na forma com que se referiam a nós, alguns
nos chamando de dona, tia, filha, outros de senhora, outros de você, o que tendia a
mudar ao longo da conversa, relaxando na medida em que o trabalho fluía.
Como não sabiam qual era a minha idade, elucubravam: um jovem disse que eu
poderia ser mãe dele e vários afirmaram, nas entrevistas individuais, que eu parecia
muito mais jovem. Nesse sentido, uma questão interessante, revelada por Gabi no
campo, mas que é consistente com outros espaços onde me desenvolvo que de certa
forma me intimidam, era a minha tentativa inconsciente - e até consciente, quando
revelada, mas incontrolável - de agradar às pessoas com as que estava me
comunicando, concretamente infantilizando a minha voz no início das conversas,
voltando ao meu tom normal ao longo delas.
Assim, ao considerar a geração como um dos dispositivos de produção de
subjetividades, é primordial, em uma cartografia feminista, considerá-la nas nossas
análises, reconhecendo a desigualdade entre nós pesquisadoras e os jovens, com
apontado pela psicóloga brasileira Lucia Rabello de Castro (2008). Assim, nos
encontros, era importante considerar não só o estatuto jurídico de menores de idade, e
de serem considerados imaturos e incapazes politicamente a partir da noção de
linearidade de vida que caracteriza a compreensão de infância, adolescência e idade
adulta como um continuum dado, mas que eles estavam em privação de liberdade, o
que provoca uma ruptura.
Essa problematização deveria estar sempre colocada como um princípio ético e
metodológico, para além de uma autorização do Estado, que possui sua tutela, e de um
Termo de Assentimento cujo conteúdo no que dizia respeito à confidencialidade e sigilo
nós não podíamos garantir. Era necessária uma constante análise sobre sua inserção
na pesquisa, os lugares a eles destinados, e a clareza de que o objetivo era sempre
manter uma responsabilidade para com o bem-estar desses jovens (CASTRO, 2008).
Nesse sentido, foi fundamental exercitar a sensibilidade para perceber quando os
84

jovens não queriam participar ou não se sentiam à vontade para conversar, mesmo que
eles não o expressassem, coisa que acontece muito em um espaço em que, com suas
“marcas das relações instituídas de poder” (CASTRO, 2008, p.31), são obrigados a
realizar o que não querem, sem abertura para reivindicar seus desejos singulares.
Neste sentido, a autora também frisa a importância de pensar os resultados
como “relevantes, úteis e inteligíveis” (CASTRO, 2008, p.22) para as crianças e jovens
envolvidos/as na pesquisa, a partir do “paradigma de transformação da realidade
desses sujeitos” convidando a renovar os dispositivo “para poder incluir a participação
desses sujeitos, inserindo-os como parceiros no campo de pesquisa” (CASTRO, 2008,
p.30). Destacamos dois movimentos da nossa pesquisa centrados nessa preocupação:
explicar a cada jovem o que é uma pesquisa e qual o objetivo da nossa e, no momento
do segundo Curso com profissionais, incorporar os jovens do grupo de Promotores de
Saúde. No entanto, dadas as muitas forças, incluindo as nossas, que disputavam o
espaço do Curso, avaliamos que infelizmente tivemos poucas energias e tempo para
garantir que esta atividade tenha tido relevância, utilidade ou inteligibilidade em suas
vidas.
A autora também afirma que problematizar a desigualdade como um
posicionamento ético-político e epistemológico do/a pesquisador/a deve ter implicações
nos métodos escolhidos para trabalhar com crianças e jovens, buscando
permanentemente que “possam se sentir mobilizados a aderir ao trabalho de
discussão” (CASTRO, 2008, p.31). Nesse sentido, dispositivos estéticos-metodológicos
como fotos, desenhos, zine54, peças de teatro e Curta-debate, sugeridas e executadas
por nós e/ou por profissionais em desdobramentos dos nossos cursos, surtiram efeitos
extremamente interessantes de diálogo, onde os momentos exigia criatividade para
adaptar a atividade às forças que estavam jogando nesse momento, como tamanho e
composição do grupo, local da atividade e tempo para realizá-la.
No uso desses dispositivos, a interação foi fundamental, não ocupávamos o lugar
de meras observadoras. Nesse sentido, acionamos a dissolução do ponto de vista

54
A proposta do zine foi realizada por Fernando, que o descreveu como uma ferramenta onde “as
pessoas se envolvem no reconhecimento, na criatividade, na produção, superando as práticas mais
domesticadas, e em termos de interlocução com a pesquisa, é um material às vezes mais potente do
que outros, porque tem um processo materializado naquele artefato que dá um protagonismo juvenil”.
85

da/o/s observadora/e/s, noção trazida pela cartografia, que solicita que a/o/s
pesquisadora/e/s não se localize/m na posição de observadora/e/s distante/s nem que
localize/m um objeto como coisa idêntica a si mesma, mas que ponha/m em cheque os
pontos de vista próprios e os territórios existenciais solidificados, que se lance de forma
performática na experiência acompanhando os processos de emergência, que
procure/m um paradigma de cuidar e conhecer como inseparáveis na transformação
social que busca/m no momento em que faz uma pesquisa (PASSOS; DO EIRADO,
2009). Ou seja, essa dissolução não significa deixar de existir, mas investir em uma
existência de afetação e sensibilidade com os fluxos que o campo traz.
Esta postura fazia com que pedissem para que nós também desenhássemos ou
que opinássemos no decorrer das atividades, o que contribuía para visibilizar a
heterogeneidade de pontos de vista, desnaturalizando algumas questões.
Castro fala sobre o trabalho em grupos, onde

a narrativa é o dispositivo pelo qual os participantes constroem outros sentidos


para sua experiência individual. Por narrativa entendemos o processo pelo qual
os participantes se revelam mutuamente como sujeitos singulares, contando
suas experiências, escutando as dos demais, enfrentando as diferenças em
relação ao modo particular de cada um compreender as situações, de se sentir
e estar no grupo (CASTRO, 2008, p.32).

Nesse sentido, foi extremamente interessante ver momentos em que os próprios


jovens acreditavam que suas experiências eram homogêneas, e, através das atividades
em grupo, percebiam que não eram, como foi na Semana do bebê. A heterogeneidade
de opiniões e trajetórias veio quebrar a ideia, reproduzida pela instituição-
estabelecimento, de que todos eles teriam as mesmas configurações familiares e
experiências como pais ou filhos.
Maynar Leite (2014), em pesquisa no presídio feminino, relata de que forma
realizar atividades em grupos, constituídas como encontros, com mulheres excluídas
pelos crimes pelos quais estão presas, permitiu estabelecer relações de confiança,
acionar a heterogeneidade, aproximar alteridades e criar condições para movimentos
inesperados, incluindo dar “abertura progressiva para que fossem colocadas na roda as
discriminações ativas [...] e os assuntos candentes nas vidas dessas mulheres” (p.802).
86

Outro desafio metodológico nos grupos foi o rápido destaque de protagonistas, o


que vimos também acontecer em atividades lideradas por profissionais da unidade
fosse por idade, por tempo no Degase, por cargo nas facções, por apego às normas da
facção ou por personalidade, o que de alguma forma silenciava outros jovens55. Diante
disso, procurávamos nos adaptar, dividindo a nossa equipe para conversar com os que
estavam mais silenciosos, formando grupos menores, solicitando aos que se
destacavam que não monopolizassem as falas, ou sugerindo atividades onde todos
pudessem contribuir. Por exemplo, em uma ocasião que um grupo estava fazendo um
personagem em papelão, ao perceber que apenas dois dos sete jovens estavam
participando ativamente, decidimos pedir para que cada um fizesse um desenho em
uma folha de papel, para compor a história de vida do personagem.
Igualmente, observamos nos grupos uma constante reafirmação da naturalidade
das normas de gênero e sexualidade, questão fundamental em uma cartografia
feminista de um território onde os códigos (inter)institucionais e o imaginário da sua
fixidez são tão importantes. Assim, as falas dissonantes eram constantemente
questionadas, às vezes com resistência de quem as proferia, às vezes com desistência.
Vimos, por exemplo, na atividade da Semana do Bebê, como na hora de realizar
individualmente as árvores genealógicas (Anexo E), alguns jovens nos relatavam
algumas coisas, mas na hora de abrir a roda para o debate, mudavam a narrativa.
Mesmo considerando extremamente rico o exercício de potencializar essas falas
dissonantes e mostrar a heterogeneidade de experiências, esse foi um elemento que
nos levou a decidir fazer entrevistas individuais, onde certamente foi mais fácil provocar
e explorar algumas linhas de fuga, e assim conseguir cartografar, por um lado, quais as
narrativas e forças que impõem, vigiam e disputam alguns códigos, e por outro, quais
as trajetórias singulares que os fissuram. Nesse sentido, foi importante usar vários
métodos.
Durante o campo, consideramos que nossa forma de nos posicionarmos com os
jovens, permanentemente convidando-os ou convocando-os a um posicionamento, nos

55
Percebíamos também que alguns desses jovens tinham uma interação específica com o resto, por
exemplo, dando ordens para nos ajudar a organizar o espaço para a atividade, mostrando uma
liderança.
87

interrogassem e discordassem, possibilitou este movimento tanto nos grupos quanto


nas entrevistas individuais. Como apontado por Lucia Rabello de Castro,

a estrutura de desigualdades não é abolida ao se dar outra conformação ao


dispositivo de pesquisa, mas podem-se problematizar as posições identitárias
de pesquisador e de pesquisado, favorecendo a subversão de uma ordenação
unívoca do processo de pesquisa (CASTRO, 2008, p.39).

Para isto, é fundamental reconhecer nossa fragilidade no campo de


conhecimentos, assumir que nada do que propomos é universal, mas sempre complexo
e mutável.
Além da questão geracional, o fato de sermos mulheres certamente foi um
elemento fundamental na pesquisa-intervenção. Como já abordei anteriormente,
alguns/as profissionais apontaram no início que os jovens não falariam conosco
questões relacionadas a práticas sexuais e corpo. Apesar de essa hipótese ter sido
refutada, de fato percebemos ressalvas dos jovens, sempre diferentes em cada grupo e
entrevista. Carlos Iván disse:

eu falo palavrão pra caraca... mas costumo não falar quando estou com uma
pessoa assim... até sai, sem querer, mas não gosto, porque as pessoa me vê
com outro olhar. Se eu falar palavrão, me vê com outro olhar. Te garanto. Tipo
assim, se chegar aqui e começar falar, a senhora vai ficar “ah, esse menor não
sabe nem respeitar”.

Em um grupo, os jovens afirmaram que falar sobre sexo com mulheres seria um
desrespeito, e que só falavam sobre isso com professores, segundo normas da facção,
e que se eles cometessem algum abuso nesse sentido, sofreriam as consequências no
alojamento. Quando Gabi provocou que ali estávamos conversando abertamente sobre
vários assuntos, um deles ponderou: “mas aqui é diferente, vocês chamaram a gente
pra falar disso, então aqui pode”, apontando também que a vida sexual deles não deve
fazer parte do relatório, portanto, não haveria necessidade de falar sobre isso com as
técnicas de medida. No entanto, esse dia Max estava presente, e Gabi observou que
permanentemente eles falavam e se dirigiam a ele, dizendo “fala professor”, sugerindo
que ele tivesse mais conhecimento sobre esses assuntos, demonstrando que se
relacionam de forma diferente quando tem um homem no grupo, como se ele tivesse
88

mais legitimidade para tratar desse assunto do que as mulheres. Em outra ocasião, os
jovens falaram que se Fernando estivesse sozinho, poderiam se expressar mais
abertamente, e que não gostavam de usar algumas palavras para que eu não me
sentisse constrangida, apesar de eu pontuar que era eu que tinha levado a temática. No
entanto, achamos os encontros extremamente ricos para problematizar esses
distanciamentos.
O flerte também modificava comportamento de alguns jovens, o que revelava
traços específicos do encontro entre eles e pesquisadoras mulheres. Quando
passamos nas salas de aula para convidar os jovens a participarem da pesquisa,
Antonio perguntou sobre minha tatuagem, e, ao explicar a história de que ela
representava a minha cachorra que tinha perdido, ele disse “agora você tem que
encontrar um cachorro brasileiro”, diante do qual a sala inteira riu. Ele mesmo, em uma
atividade em grupo que participou, olhava bastante o decote da Gabi, e em um
momento em que falávamos sobre HIV, ele disse “às vezes não dá para saber se a
menina tem, pois tem o corpo bonitinho igual ao seu”.
Em um grupo, teve um momento em que Gabi perguntou bastante sobre as
práticas sexuais que as mulheres com as que os jovens se relacionam gostam, e eles
insistiam em que as mulheres que gostam de sexo selvagem são safadas ou doidinhas.
Reagindo à afirmação de Gabi sobre o gosto de algumas mulheres por determinadas
práticas, Abelardo sugeriu que ela seria uma dessas, gerando um momento
interessante de diálogo sobre prazeres, incluindo os nossos, para desconstruir certos
rótulos.
Em entrevista comigo, Bernardo (18 anos, negro) falou várias vezes do desejo
dele por mulheres brancas, de olhos azuis e preparadas, afirmou que profissionais da
unidade “davam mole para ele” apesar da diferença geracional e no final da entrevista
me beijou a mão. Nas entrevistas individuais, em várias ocasiões os jovens
perguntavam se eu era solteira. No segundo Curso, os jovens que participaram se
aproximavam de Luisa, Camilla, Bárbara e Vanessa e pediam o telefone ou Facebook.
Em algumas ocasiões, disseram que depois desse encontro eles não poderiam
quebrar -se masturbar- por uma semana, como sinal de respeito a nós, pois alguém
poderia pensar que estavam fantasiando conosco. Essa regra se aplica a mulheres que
89

não fazem parte do cotidiano. No entanto, quem faz também entra em uma lógica de
neurose, para não provocar os jovens, tendo suas roupas e comportamentos
permanentemente esquadrinhados.
Isso tudo nos fez pensar nas implicações de sermos pesquisadoras mulheres.
Se, em geral, na perspectiva institucional, é essencial se evitar qualquer contato que
sugira erotismo, inclusive quando restritos à palavra, em nome da proteção das
profissionais mulheres, no nosso trabalho estas aproximações eróticas podem ser
utilizadas como analisadores para pensar a forma como os jovens as estabelecem,
atentando para os elementos performativos que acionam, e quais as fronteiras entre as
diferentes noções de respeito. Do ponto de vista pedagógico, mas também ético e
político, essas situações devem servir para promover um entendimento de que uma
relação respeitosa entre homens e mulheres não depende das roupas utilizadas pelas
mulheres, das temáticas discutidas, dos termos utilizados, tampouco dos espaços por
onde se circula.
Assim, é importante pensar que uma análise de implicação como uma política de
entendimento das distintas trajetórias, tal como apontado por Carla Mattos no Ciclo
sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana, não passa apenas, no meu caso, por
ser mulher, mas também por ser feminista, por ser psicóloga social, por ser De Fora,
elementos que traziam uma série de deslocamentos no campo. Que coisas das que me
falaram não falariam, por exemplo, para alguém com mais proximidade? Seja por ser
homem, por estar no mesmo estabelecimento, por partilhar certas coisas? Que coisas
não me falaram? Que coisas escaparam do meu entendimento?
Acredito que a singularidade desse encontro, ao ser analisada, pode produzir
alternativas de pesquisa. Ressalto assim a potência do encontro, sem idealizá-lo, pois
ele é produzido na teia de relações de poder, mas entendendo-o como momento de
deslocamento da pesquisadora e dos participantes, como dobra, como possível conflito,
mas também como aliança, como coalizão, conexão heterogênea.
90

2. A DOBRA QUE ADOLESCE

No dia do encerramento do curso, fomos interpeladas mais uma


vez por nosso desconhecimento do cotidiano da unidade, porque
“não conhecíamos os alojamentos”. Já alterada, porque havia
solicitado isso várias vezes, aproveitei a oportunidade e disse que
queria muito conhecer, e os diretores aceitaram. Assim, neste
último dia do campo, depois de três anos circulando no CAI,
finalmente conhecia o alojamento “coletivo”, considerado o mais
complicado. Foi um dia tão intenso, coroado por essa visita ao
espaço que estava há anos imaginando, atravessando esse
“portal”, que era difícil lidar com tudo que meus sentidos estavam
percebendo. Antes de subir, tivemos que esperar um pouco, para
que os nossos “guias” avisassem aos meninos e estes “entrassem
na postura”. Subindo a rampa, começamos a sentir o ar mais
pesado. Os cheiros e os fedores, os muitos rostos dos meninos,
todos de cabeça raspada, alguns tão, tão jovens, sentados nas
camas ou agarrados das grades, o que me provocava uma
sensação de angústia e constrangimento muito grande, como se
estivesse num “zoológico humano”, olhando para nós com mistura
de curiosidade, vergonha, deboche, desespero, interesse e
desinteresse, alguns conhecidos conversando e até flertando com
a gente. A pintura das paredes deteriorada exceto em um dos
alojamentos56, a falta de luz, de proteção e de ventilação, os
banheiros sem porta e alguns sem paredes57, as cortinas
improvisadas, as pichações com nomes de pessoas e de facções,
as crostas de sabonete nas paredes sendo utilizadas para

56
Uma profissional relatou que os alojamentos não podem ser pintados ao mesmo tempo, pois é
necessária toda uma logística.
57
Uma profissional relatou em uma ocasião que só em 2007 foram colocados os vasos sanitários.
91

pendurar as toalhas úmidas, os pedaços de ventiladores sendo


usados como prateleiras, os relatos de ratos maiores do que gatos
e de toalhas sendo queimadas para se protegerem dos mosquitos,
o barulho de água correndo, o cano estourando e molhando os
pés dos meninos e da Bárbara, os diretores nos bombardeando
com informações sobre as “normas de convívio” dos meninos e a
dificuldade de sustentar condições básicas de saúde e higiene e
outras normativas do SINASE, ultrapassavam minha capacidade
de sequer fazer perguntas pertinentes ou de saber o que fazer
com meu corpo, ao ponto que encostei na “parede do cuspe”.
Quando saímos dos alojamentos, alguns agentes ficaram nos
perguntando o que achamos, esperando a nossa reação. Saímos
esse dia muito cansadas, mobilizadas, enjoadas e tristes, eu
esqueci até do português. Três dias depois, recebemos a notícia,
através de uma péssima matéria jornalística, de que um jovem
tinha sido espancado até a morte nesse alojamento, por outros
jovens, por ter descumprido as normas das facções, as “normas
de convívio “sobre as quais tanto tinham insistido os diretores.
Mais de 10 meninos bateram nele durante a noite toda, sem os
agentes escutarem. Alguns eram maiores de idade, e foram
encaminhados ao presídio. Conversando com uma técnica da
unidade sobre essa tragédia, um desespero entrou no meu
coração: o que podemos propor “realmente” nesse espaço? Nesse
momento parecia que tudo que a gente estava construindo não
adiantava, não ia contribuir em nada. O discurso da Segurança ia
novamente imperar, abafando qualquer iniciativa de entender os
direitos desses meninos
fragmento do diário de campo, dia 05/09/2017

Aqui se cruzam o “mapa intensivo” e o “mapa físico” do CAI, de forma sempre


articulada e perpassada pelas instituições-forma que atravessam a experiência do
92

encarceramento, tais como o racismo, com seus mecanismos de encarceramento


seletivo; as profissões que atuam no Sistema Socioeducativo e produzem
subjetividades através de dispositivos, como os relatórios das equipes técnicas “de
medida” ou os cadeados dos agentes de plantão; a noção de socioeducação que
produz, através de práticas e discursos, a figura dO Adolescente; a Segurança; o
machismo e a cisheteronormatividade58 presentes nas normas e códigos de
classificação e conduta, dentre outras que irei abordando ao longo do texto através da
análise das suas instaurações e problematizações.
Desse modo, é importante destacar de que modo os dispositivos de gênero,
classe, raça, localidade e geração configuram a leitura e a vivência dos corpos e se
articulam normativamente, tornando os jovens negros, especialmente de periferia, alvo
principal de projetos de docilização, pauperização, criminalização e genocídio.
As instituições-forma e seus dispositivos desenham a cartografia da cidade do
Rio de Janeiro, ao tempo em que compõem as trajetórias dos jovens que estão no
Degase, ou seja, o que eles vivem e experimentam nela. Nesse sentido, gênero,
sexualidade, raça, classe, geração e localidade, entre outros, vão co-produzindo formas
de estar e se relacionar no mundo através de contornos que se dobram. Como
apontado por Judith Butler, “o gênero estabelece interseções com modalidades raciais,
classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente constituídas.
Resulta que se tornou impossível separar a noção de “gênero” das interseções políticas
e culturais em que invariavelmente ela é produzida e mantida” (BUTLER, 2003, p.20).
Nesse sentido, proponho aqui uma (re)leitura do conceito de interseccionalidade,
perspectiva que enfatiza a necessidade de entender o cruzamento entre gênero, raça,
classe, localidade, orientação sexual, geração e outros chamados marcadores sociais
da diferença. Como apontado por Conceição Nogueira no Colóquio de Masculinidades,
apesar da perspectiva crítica da interseccionalidade não ser nova, mas muito pelo
contrário, tem sido apontada por feministas negras, indígenas e lésbicas há décadas,

58
Podemos entender o machismo como um conjunto de discursos e práticas que separam e
hierarquizam as vivências e os corpos de homens e mulheres como se fossem excludentes e a
cisheteronormatividade como a imposição da norma cis e heterossexual como única forma válida de se
relacionar. “Cis” se refere às experiências em que as pessoas se identificam com o gênero e o sexo
assignados ao nascer, que se diferenciaria da experiência “trans”, em que as pessoas não se
identificam com o gênero e o sexo designados no nascimento, o que coloca em xeque a suposta
estabilidade do sistema binário e dicotômico de gênero.
93

recentemente ela tem tomado um peso central nas discussões dos feminismos,
visibilizando, de forma desafiadora, que o gênero não é a uma vivência única e central,
mas entrelaçada em uma rede complexa, divergente, instável e plural de violências,
existências e resistências coletivas.
Como apontei, Anna, Luisa e eu temos pensado em uma leitura da
interseccionalidade a partir do conceito deleuziano de “dobra”, que nos possibilita
pensar para além de pontos em uma intersecção identitária, propondo experiências,
fluxos e movimentos que se dobram em diferentes superfícies, em texturas espaciais,
temporais, corporais, de intensidade. Gilles Deleuze introduz este conceito inspirado em
Foucault:

Foucault não emprega a palavra sujeito como pessoa ou forma de identidade,


mas os termos ‘subjetivação’ no sentido de relação – relação de si-. E do que
se trata? Trata-se de uma relação da força consigo – ao passo que o poder era
a relação da força com outras forças-, trata-se de uma ‘dobra’ da força.
Segundo a maneira de dobrar a linha de força, trata-se da constituição de
modos de existência, ou da invenção de possibilidades de vida que também
dizem respeito à morte, a nossas relações com a morte: não a existência como
sujeito, mas como obra de arte. [...] Penso até que a subjetivação tem pouco a
ver com o sujeito. Trata-se antes de um campo elétrico ou magnético, uma
individuação operando por intensidades (tanto baixas como altas), campos
individuados e não pessoas ou identidades (DELEUZE, 1992, p.116).

Rosane Neves da Silva (2004) aponta que “um processo de subjetivação traduz
o modo singular pelo qual se produz a flexão ou a curvatura de um certo tipo de relação
de forças” (SILVA, 2004, p.56). Assim, a dobra se configura como uma inflexão de
“linhas infinitamente móveis que percorrem o plano de imanência cuja superfície é
povoada por singularidades anônimas e nômades” é “a expressão de um mundo
possível” (p.60).
Concordo com Fonseca e Costa (2012) ao pensar que

identificar uma identidade é uma operação de formalização, indutiva e dedutiva,


que nos faz criar conjuntos de simetrias os quais nos autorizam a demarcar o
território da vida e categorizar as coisas do mundo a partir de um quadro
abstrato, inteligível e harmônico (FONSECA; COSTA, 2012, p. 217)

Enquanto que
94

subjetivar é esta trama desejante que compõe ao mundo em seus diversos


agenciamentos, mundos afirmados em um perspectivismo forte: que não pensa
a perspectiva enquanto visão parcial subjetiva, mas sim como uma afirmação
criadora de mundos. Subjetivar que opera a estilística ontológica dos fluxos
constituídos na impessoal pessoa do dia a dia com seu paradoxal hibridismo de
diferença e repetição cotidianos. Tal estratagema nos permite percorrer as
tramas do mundo sem reificarmo-nos em nós coagulantes que sirvam de
explicação primeira e última. Trata-se de uma ferramenta escorregadia,
engrenagem lisa que sempre escapa nos levando para a linha ao lado, abrindo
uma nova problematização. Não tendo o suporte de estruturas identitárias,
psicológicas ou sociais, nos vemos sempre confrontados com o estranho: uma
vertigem que impede a útil geometrização espaço-temporal das coisas em
manuais de instrução, mas permite a abertura para uma ética dos encontros, do
deixar-se afetar em um adensamento da complexidade e singularidade do
problematizar (FONSECA; COSTA, 2012, p.219)

Desta forma, mesmo compreendendo a rigidez de linhas de instituições-forma,


operacionalizadas por instituições-organização e estabelecimento que classificam
sujeitos e relações, tutelam, disciplinam, controlam e matam, como forças e dimensões,
é importante considerar que essas linhas se dobram infinitamente em mecanismos,
normas, e sofrimentos, mas também existem linhas que compõem subversões,
prazeres, e potências de vida. Como apresentado por Gilles Deleuze:

Há linhas que representam alguma coisa, e outras que são abstratas. Há linhas
de segmentos, e outras sem segmento. Há linhas dimensionais e linhas
direcionais. Há linhas que, abstratas ou não, formam contorno, e outras que não
formam contorno. Aquelas são as mais belas. Acreditamos que as linhas são os
elementos constitutivos das coisas e dos acontecimentos. Por isso cada coisa
tem sua geografia, sua cartografia, seu diagrama. O que há de interessante,
mesmo numa pessoa, são as linhas que a compõem, ou que ela compõe, que
ela toma emprestado ou que ela cria (DELEUZE, 1992, p.47).

Desta forma, dobrar ou desdobrar a figura dO Adolescente implica criar as


condições para que as diversas superficialidades, corpos, espacialidades,
temporalidades e potências se expressem em sujeitos complexos, compreendendo de
que forma eles se constituem através de processos de subjetivação que marcam e
delimitam, mas ao mesmo tempo criam paradoxos, contrapontos, possibilidades,
rupturas e linhas de fuga.
95

2.1 O Adolescente: entre hormônios e grades

A antropóloga brasileira Patrice Schuch desvenda a construção do domínio sobre


a infância e a juventude no Brasil no contexto pós-ECA, apontando, a partir da sua
análise, três modelos de intervenção: “

uma preocupação higiénico-sanitarista [...], um modelo modernista de


desenvolvimento da nação [...] e um investimento na formação de sujeitos de
59
direito e na participação da comunidade nas políticas de atendimento ”
(SCHUCH, 2009, p.106).

Ela propõe que essas perspectivas foram dominando o debate no percorrer dos
anos, mas eu gostaria de destacar que, ao que parece, os três coexistem, pois vemos
discursos e práticas de higienização, modernização e garantia de direitos ao mesmo
tempo, principalmente no contexto político atual do Brasil.
Por sua parte, Da Silva, Sereno e Gonçalves apontam que

A construção da ideia de uma anormalidade biopsicossocial da juventude que


se encontrava em condições socioeconômicas desfavoráveis estava
estrategicamente inserida em toda a orientação (princípio) biológica do antigo
Código de Menores. Sua proposta política era recolher os jovens “em situação
de risco” para serem normalizados pelas tecnologias disciplinares de
instituições cujos dispositivos concretos e efeitos arquitetônicos eram voltados
especificamente para essa tarefa de gestão política da população jovem pobre
brasileira (DA SILVA; SERENO, GONÇALVES, 2014, p. 140).

Schuch propõe que a criação do Sistema Socioeducativo, que traz a distinção


entre “medidas de proteção integral” e “medidas socioeducativas”, trabalha em uma
ambiguidade entre assistência e repressão, e lança uma pergunta muito interessante:
“será que esses dois processos tão distintos são mesmo paradoxais: a passagem da
‘menoridade’ à ‘infância universal’ e a consolidação de uma distinção entre aqueles ‘em
perigo’ e ‘os perigosos’?” (SCHUCH, 2009, p.153). Ela conclui que, na verdade, essa
distinção reinstalou a desigualdade, pois

59
Neste último modelo, a governamentalidade se apresenta na proliferação de espaços de governo.
96

se ao “menor” correspondia a discussão das diretrizes de atendimento em


termos de uma ambiguidade entre políticas legais e assistenciais, ao
“adolescente infrator” corresponde, cada vez mais, a discussão das diretrizes de
sua atenção e controle em termos de políticas legalistas e de defesa social. Isto
porque esse novo personagem vem sendo constituído, através de discursos
públicos e aparatos institucionais de atenção e controle, como perigoso e
violento. Suas características de distanciam, ao mesmo tempo em que
reforçam, uma série de atributos associados à noção burguesa de infância: a
infância que deve ser protegida, a infância da ingenuidade e, sobretudo, pureza
(SCHUCH, 2009, p.153).

Judith Butler assinala que

A construção política do sujeito procede vinculada a certos objetivos de


legitimação e de exclusão, e essas operações políticas são efetivamente
ocultas e naturalizadas por uma análise política que toma as estruturas jurídicas
como seu fundamento. O poder jurídico “produz” inevitavelmente o que alega
meramente representar; consequentemente, a política tem de se preocupar
com essa função dual do poder: jurídica e produtiva. Com efeito, a lei produz e
depois oculta a noção de “sujeito perante a lei”, de modo a invocar essa
formação discursiva como premissa básica natural que legitima,
subsequentemente, a própria hegemonia reguladora da lei (BUTLER, 2003,
P.19).

Desta forma, a construção do sujeito “adolescente infrator”, ou “adolescente em


conflito com a lei”, de certa forma produz os repertórios políticos dos jovens e das
instituições-organização que o delimitam e atravessam em relação à hegemonia
sociocultural.
Os diretores do CAI nos reportaram em várias ocasiões um esforço, sobretudo com
os próprios jovens, de desmontar a figura do menor infrator, Bandido, marginal, dentre
outras nomenclaturas, para usar o termo adolescente. Um profissional que está há
bastante tempo no CAI também apontou que o uso desse termo mudou de fato as
relações, produzindo um tratamento mais próximo dos jovens. Apontou que
anteriormente os jovens eram chamados de vagabundos e que eles mesmos não se
importavam com isso.
Isto não implica na desaparição do uso desses termos, especialmente menor, que
ouvimos muito no campo, sobretudo usado pelos/as agentes socioeducativos/as e
pelos jovens, mas também algumas/os técnicas/os e docentes. Em uma ocasião uma
pessoa disse, ao ver uma porta aberta com possibilidade dos jovens saírem da
unidade, dizer: “quem vai correr atrás de vagabundo?” e quando percebeu que
97

tínhamos ouvido, rapidamente reformulou, o que visibilizou uma certa vigilância com o
politicamente correto. Assim, “vemos que essa insistente presença não é capricho de
vocabulário, mas se refere a um modo de pensar e de tratar esses sujeitos que ainda
toma por referência o modelo menorista” (SCISLESKI, et. al. 2014, p.663).
Com a entrada do termo adolescente, muitos discursos em torno dessa noção são
trazidos ao Degase, sobretudo os que têm relação com justificativas
desenvolvimentistas e biológicas da agressividade, impulsividade e abertura à
influência do grupo por parte de pessoas que são consideradas adolescentes.
Igualmente, no campo percebemos o uso recorrente da expressão O Adolescente, se
referindo às vezes a um jovem ou a um grupo de jovens, que aparecem como “uma
figura homogênea, uniforme, quase um monstro, que, em palavras de um profissional,
“acha que pode tudo, que é contestador, rebelde, que quer mostrar que existe, que
resiste”. “Cheio de hormônios”, “com hormônios à flor da pele” impulsivo, raivoso, foram
outros adjetivos usados pelos/as profissionais” (D’ANGELO; DE GARAY, 2017, p.84).

Características passam a ser percebidas como uma essência em que


“qualidades” e “defeitos” (rebeldia, desinteresse, crise, instabilidade afetiva,
descontentamento, melancolia, agressividade, impulsividade, entusiasmo,
timidez, introspecção, tendência a expor-se a riscos, busca de identidade e
formação de caráter) passam a ser sinônimos de adolescência, ou melhor, de
adolescência problemática. E, dessa forma, esvaziam o caráter de resistência
política frente às desigualdades e violências de todo o tipo (DA SILVA;
SERENO; GONÇALVES, 2014, p. 143-144).

Também parece interessante pensar de que forma estas noções não ficam tão
distantes das de menor ou Bandido, contornando uma imagem de um ser protagonista
das “rebeliões”, que precisa ser docilizado. Assim, O Adolescente, e mais ainda, certo
Adolescente, aquele infrator, que “não é normal”, acaba sendo totalizado, com noções
predefinidas e marcas cristalizadas em rótulos que produzem filtros através dos quais
os/as diversos especialistas do campo o enxergam (ROCHA; UZIEL, 2008), sem se
atentar à singularidade, à potência, à diferença.
No entanto, leituras críticas da adolescência reconhecem que “o discurso
psicológico, próximo ao médico e ao pedagógico, responsabilizou-se pela construção e
sustentação da visão universal, essencialista e a-histórica, da adolescência” (SANTOS,
2015, p.17). Apoiado em Foucault, entendendo a produção histórica da adolescência,
98

Welson Santos aponta a “necessidade de um contínuo e cuidadoso investimento físico,


pedagógico e moral, centrado na produção de um adulto ideal” (p. 50).
As psicólogas sociais Cecília Coimbra, Fernanda Bocco e Maria Lívia do
Nascimento (2005) apontam que o termo “adolescência” está estritamente vinculado
com uma perspectiva que tende a homogeneizar, universalizar e padronizar a
experiência dos sujeitos. Como elas, preferimos o uso de “juventude”, e inclusive
“juventudes”, o qual “parece oferecer um terreno mais aberto ao entendimento da
pluralidade, diferença e desigualdade nas experiências dos sujeitos considerados
jovens” (D’ANGELO; DE GARAY, 2017, p.85). Esta escolha conceitual não significa que
nós estejamos livres de atravessamentos adultocêntricos, já que muitíssimas vezes nos
referimos aos jovens como “meninos”, prática também recorrente entre as técnicas, o
que embora faça um contraponto com a lógica discutida até agora, de delimitação de
uma certa figura perigosa, pode mostrar uma certa infantilização. No entanto, insistimos
nos Cursos em falar em jovens, e percebemos que alguns/as profissionais também
usavam cada vez mais esse termo.
O termo “juventude” não resolve o impasse da cristalização de uma “fase da vida”,
questão também apontada pelas autoras. O antropólogo brasileiro Hermano Vianna
aponta como a juventude tem sido constantemente definida como

um estado de rebeldia, revolta, transitoriedade, turbulência, agitação, tensão,


mal-estar, possibilidade de ruptura, crise psicológica, conflito, [...] instabilidade,
ambiguidade, liminaridade, flexibilidade, inquietude. Tudo isso pode ser
resumido com um único conceito: mudança. Mas não qualquer tipo de
mudança: a juventude é uma mudança "revoltada”, projetando desejos de
transformação e como possibilidade de abalar a ordem social, pois era
contraste dessa ordem (VIANNA, 1997, s.p.)

Neste sentido, um conceito que pode resultar interessante na análise é o de


“trajetórias juvenis”:

a centralidade concedida à ideia de juventude como processo se operacionaliza


na ênfase conferida à noção de trajetórias. Essa opção analítica desaloja a
descrição estática da vida dos jovens em prol da recuperação de um
movimento, não necessariamente linear, presente nos seus trajetos
(HEILBORN, et. al. 2002, p.21).
99

Desta forma, esta noção dá uma maior flexibilidade para pensar em territórios
juvenis, em dobras da subjetividade. Dobras que superam os binômios perigoso-em
perigo, proteção-punição, menino-menor, vítima-agressor, dentre outras categorias em
disputa. O foco, então, está no entendimento dos modos de inserção dos sujeitos em
suas condições de vida históricas e concretas, as quais, por sua vez, têm múltiplas
formas de serem apropriadas.
Por sua parte, Avtar Brah propõe que

podemos focalizar um dado contexto e diferenciar entre a demarcação de uma


categoria como objeto de discurso social, como categoria analítica e como tema
de mobilização política, sem fazer suposições sobre sua permanência ou
estabilidade ao longo do tempo e do espaço (BRAH, 2006, p.253).

Especificamente no que tange à discussão conceitual sobre o termo


“adolescência”,

revela-se uma tensão, pois ao tentar sair de uma visão adultocêntrica– ou seja,
centrada na experiência adulta como a mais consciente, adequada e produtiva
–, os discursos podem tentar contestar a proposta sem o devido
aprofundamento. Por exemplo, no debate da redução da maioridade penal,
tende-se a reivindicar que as/os jovens envolvidas/os em atos infracionais não
têm a capacidade de refletir sobre seus atos da mesma forma que uma pessoa
adulta. Aí, a perspectiva desenvolvimentista tem sido usada para reafirmar a
adolescência como uma etapa com características e cuidados particulares que
o sistema prisional não pode outorgar. O debate, nesse sentido, parece focar no
indivíduo como responsável e não na produção social de desigualdade que
delimita as fronteiras da legalidade, dos seres vítimas e/ou produtores dela e
das punições e/ou outras formas de lidar com ela (D’ANGELO; DE GARAY,
p.85).

Por outro lado, quem reivindica a redução da idade penal usa o argumento de
que muito/as desses/as jovens já têm uma vida sexual ativa, e inclusive exercem a
paternidade. Assim, que sujeito é esse que deve ser considerado uma criança, mas que
tem uma vida sexual de adulto? Vida sexual adulta que, inclusive, está tentando se
reivindicar com a implantação da visita íntima no Sistema Socioeducativo? Direito ao
voto, direito a uma vida sexual ativa inclusive em privação de liberdade, envolvimento
“no crime”60 e uso de armas, inserção no mercado de trabalho formal, informal, legal e

60
Concordo com Alba Zaluar ao apontar que: “não há dúvidas quanto ao uso do termo ‘crime’ sem
considerá-lo um conceito sociológico, por quanto a referência é o Código Penal Brasileiro. Se não é
100

ilegal, parecem esferas que colocam e retiram esses jovens de diferentes condições
sociais, morais e políticas, mas que parecem simplesmente contraditórias, quando
análises redutoras não consideram os matizes, as linhas e as forças que vão
delimitando essas experiências de vida e essas trajetórias juvenis.

2.2 “Andar armado na frente de uma criança”: trajetórias juvenis, racismo e


classismo

Como apontado por Adriana Facina no Ciclo sobre Violência, Política e


Sociabilidade Urbana, a noção de classe social, que provém do marxismo, adquire
sentidos específicos no Brasil contemporâneo, com um histórico escravocrata, que
criminaliza as culturas populares diaspóricas e é permeada por disputas políticas e
econômicas que se atualizam e reverberam constantemente. Assim, podemos entender
a classe, em articulação com raça e a localidade, como produtora de subjetividades.
Não se trata de uma abstração, ou um modelo fixo e pré-fabricado, mas constitui
processos históricos que proliferam em composições políticas diversas, fazendo com
que a “luta de classes” não seja binária, mas múltipla.
O antropólogo brasileiro Antônio Barbosa (2006) debate a passagem da
“sociedade disciplinar” à “sociedade de controle”, discutidas por Deleuze e Foucault, a
partir da política de controle populacional pelo extermínio seletivo de homens jovens
negros empobrecidos, revelando o que ele chama de uma “tanatopolítica”, nomeada
por outros/as autores/as de “necropolítica estatal de gestão do espaço urbano e

considerado uma ‘categoria analítica’, embora a sociologia jurídica lide com indicadores diversos da
criminalidade, a palavra ‘crime’ remete a uma tipificação de conduta que desencadeia (ou deveria
desencadear) repressão estatal. Mas crime é também categoria nativa e, portanto, adquire outro campo
semântico nem sempre coerente internamente nem muito menos consistente com o Código Penal”
(ZALUAR, 2012, p.328). Assim, “o crime” ou “a vida do crime” foi uma categoria utilizada
recorrentemente pelos jovens, em oposição a outros modos de vida, tais como o “morador”. No entanto,
cabe pensar que a “vida do crime” não é necessariamente igual a ter cometido práticas criminosas, pelo
que é importante não naturalizar a primeira.
101

controle da população” (CALAZANS, et. al., 2016, p.568)61. Autores utilizam termos
como “genocídio” ou “extermínio” para tratar deste campo. No VI Seminário
Internacional Direitos Humanos, Violência e Pobreza, o filósofo negro Silvio Luiz de
Almeida apontou preferir usar “extermínio”, já que genocídio é uma categoria jurídica
que depende de uma vontade do agente. Também apontou que este fenômeno significa
uma continuidade, aprofundamento e ampliação do racismo, no momento em que seus
elementos são: economia - como relação social -, política - como estruturas de poder -,
e constituição dos sujeitos. A advogada negra Thula Pires, no mesmo evento,
reivindicou o uso do genocídio, usando analisadores como as deficiências na saúde da
população negra, o auto de resistência62 e o super encarceramento.
Por sua parte, Ferreira e Cappi usam o termo “genocídio” “para conceituar o
fenômeno grave e persistente das mortes de jovens negros” nas cidades do Brasil
(FERREIRA; CAPPI, 2016, p.545). Discutindo sobre o termo, a autora e o autor trazem
Abdias do Nascimento que, em uma abordagem sistêmico-histórica, se refere ao
processo no contexto brasileiro, incluindo as violências do período escravocrata e a
exploração econômica e sexual da população escravizada, as condições precárias
oferecidas a essa população depois da abolição, e as políticas de embranquecimento
do século XX, incluindo os processos de fomento de imigração europeia, a destruição e
degradação da herança cultural africana. No contexto atual, a seletividade penal
também faz parte desse fenômeno ao ser produzido pelo racismo.
No entanto, Ferreira e Cappi (2016) apontam algumas questões no que tange à
transposição do conceito de genocídio,

formulado originalmente em 1944 na Europa para enquadrar o extermínio dos


judeus após a Segunda guerra mundial, para a sociedade brasileira do século
XXI. As diferenças se situam tanto do ponto de vista do contexto geopolítico e

61
Antônio Ribeiro Júnior (2016), a partir do pensamento de Achille Mbembe, aponta de que forma o “fazer
viver e deixar morrer”, ou seja, a gestão de vida da noção de biopolítica de Foucault, não é suficiente
para pensar os contextos das colônias europeias, onde podemos pensar também em uma
“necropolítica”, ou seja, “fazer morrer e deixar viver”, uma gestão da morte que “consiste na própria
negação de humanidade” (2016, p.600) e que tem “consequências mais trágicas” (idem).
62
O auto de resistência é um dispositivo legal, que designa as mortes fruto de ação policial como
supostamente cometidas em legítima defesa ou com o objetivo de “vencer a resistência” de “suspeitos”
de crime (MISSE, 2009).
102

temporal, quanto do ponto de vista do grupo étnico visado” (FERREIRA; CAPPI,


2016, p.554).

Na Convenção, o genocídio é compreendido, no seu artigo II com os atos

cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional,


étnico, racial ou religioso, tais como: a) assassinato de membros do grupo; b)
atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo; c)
submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a
sua destruição física, total ou parcial; d) medidas destinadas a impedir os
nascimentos no seio do grupo; e) transferência forçada das crianças do grupo
para outro grupo (FERREIRA; CAPPI, 2016, p. 555).

Frente a isto, Ferreira e Cappi trazem uma série de contribuições. Primeiro,


apontam que a prática de exterminar grupos étnicos, religiosos e raciais sempre existiu,
e continuaram a existir depois da criação da convenção da ONU, “com diversas
características, autores, vítimas e formas de execução” (p.557). Nesse sentido,
apontam que “o aumento drástico de homicídios de jovens negros e a manutenção
desse número ao longo das últimas décadas” (p.558) constitui uma forma de execução.
Igualmente, discutem a noção de “intenção” do genocídio, contida na
Convenção, argumentando que para uma intenção existir, não é necessária uma
declaração, já que esta pode estar caracterizada na “presença repetida de um
resultado” e na “ausência de correção do mesmo”, fenômeno que acontece no contexto
brasileiro, nos altos índices de assassinatos cujas vítimas são jovens negros, situação
frente à qual não existem estratégias de combate, incluindo levantamentos sérios de
identificação racial das vítimas e produção de conhecimento sobre isso a partir do
Estado, que revelam um racismo negado, não reconhecido, a partir da constituição de
uma nação supostamente fundada em uma democracia racial.
Também vemos a ação de parte do próprio Estado, com os órgãos de segurança
pública, militarizados e armados, com forte presença nas favelas e nas periferias,
muitas vezes cumprindo os processos legais constitucionais, como acontece com o
auto de resistência, o que também é apontado pelo advogado antiproibicionista Antônio
Ribeiro Júnior (2016). Isso tudo a partir de uma política de drogas, onde o Estado
contribui fortemente com a produção de violência através de sistemas de corrupção que
selecionam as punições e os fluxos de drogas, armas e outros produtos, serviços e
103

eventos relacionados com o controle dos territórios –tais como os bailes funk e os
mototaxis-, criando situações de guerra que contradizem as políticas públicas de
direitos humanos.
Abel nos brinda com uma análise:

Abel: Tipo assim, eu acho que se não houvesse polícia, tipo assim, Bandido faz
mal, dá droga naquela pessoa, faz mal, mas se o polícia não estava perto, não
teria troca de tiro, e morreriam pessoas. Se o Bandido vender, se a pessoa usa,
é porque ela quer usar, ninguém obrigou a usar, entendeu? Nós vendemos.
Agora imagina que ninguém usasse no mundo, aí nós ia vender pra quem? Pra
ninguém. Mas nós tá lá, tentando vender, e tá vendendo bem.
Jimena: você acha que isso mudaria as relações do tráfico, a polícia, a
violência, etc.?
Abel: o tráfico não porque o tráfico só ia parar de vender maconha. Porque
assim, posso te falar uma coisa? Sei lá, pra mim maconha tinha que ser
liberada no Brasil, porque, sei lá, as pessoas precisam, porque tipo assim, o
que que adianta eu estar indo comprar maconha, a polícia entra, e pá. Tipo, tem
um garoto aqui, você pode entrevistar, que ele rodou com 10 quilo, de
maconha. Já tá preso. Só porque tá com 10. Porque a polícia acha que tá
vendendo. Só que ele tava acima de 10. Mas, tinha que ser liberada. Porque
tipo assim, a gente podia até parar de vender maconha, mas aí tem que
sobreviver, o pão de cada dia, sabe? Eu acho que é assim

No Rio de Janeiro, observamos o inegável impacto que as políticas de segurança


pública63 tiveram na cidade na época dos megaeventos esportivos, tais como
constantes operações policiais, a ocupação do exército durante vários meses na Maré e
durante os eventos nas praias, as revistas sistemáticas dos ônibus – e suas mudanças
de trajetos para evitar a circulação entre alguns bairros- e outros tipos de repressão
policial, tais como “autos de resistência”, execuções, violência cotidiana nas favelas e
periferias, e o encarceramento em massa, fenômenos levantados pelo Comitê Popular
da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro (2015), e pelo Mecanismo Estadual de
Prevenção e Combate à Tortura (2014) e consideradas pelos movimentos sociais como
maquiagem. Isso foi altamente perceptível no CAI, onde tanto jovens quanto
profissionais perceberam que nessa época as políticas de higienização da cidade
acentuaram abismalmente a hiperlotação. Como apontado por uma profissional, “estão
chegando meninos com atos muito leves, o Degase não é mais o último recurso, há
uma banalização muito grande”. Meses depois, Alexander lembrava que

63
Os projetos de urbanização também provocaram inúmeras remoções, afetando os direitos à moradia de
comunidades inteiras.
104

era muito menor! Um atrás do outro. Técnico ficou desesperado, ‘calma, calma,
deixa eu terminar esse aqui primeiro!’, era uma fileirona. Tava todo dia
chegando menor, todo dia, todo dia. Caraca! Aí depois deu uma parada. Mas
depois continuou chegando mais. Caraca... Eu só falava “sai transferindo, sai
transferindo!”. Ficou lotado. Cada equipe técnica tinha 60 e pouco. Agora tem
uns 34. Foi embora um bocado, graças a deus

No jogo de forças, Christian Alfonso relatou que na época das Olimpíadas ele
participava de arrastões na praia, pois “a galera me botava pra roubar, não conseguia
sair de Copacabana”, enquanto “tinha muito chileno e argentino fumando maconha na
frente dos policiais”. Ele disse que chegava a ganhar mil reais por dia...

Gabi: roubando?
Christian: Fazendo festa, fazendo arrastão ali na areia de Copacabana, porque
assim, se vai roubar, melhor roubar de quem tem, roubar de sofredor não.
Porque, assim, eu acho muita sacanagem trabalhador trabalhar, trabalhar,
trabalhar, chegar na hora e o ladrão roubar dentro do ônibus. É muita
64
sacanagem isso .
Gabi: mas tem muita gente roubando em ônibus, até em trem tá roubando!
Christian: vacilação. Isso é muita mancada. Se tá roubando, é melhor roubar de
65
quem tem, vai tirar de quem não tem?

Posterior a isso, vimos o fracasso da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP),


parte de uma política de “controle policial-militar das favelas, coordenado pelo governo
do estado” (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON, 2014, p.433; RAMOS, 2011), assim
como um forte investimento nos corpos de segurança pública, cuja ostentação foi
visível66, a exemplo da operação recente do Exército na Rocinha, onde foram vistos
soldados com máscaras de caveira, dentre outras incursões geradoras de terror na
população e de permanente marginalização.

64
Vemos aqui um sentimento e entendimento de restituição da desigualdade e de identificação de classe,
no momento em que quem rouba ônibus poderia estar afetando “trabalhador”.
65
Uma profissional relatou que um jovem que tinha matado uma enfermeira em um assalto, ia ser
transferido para o CAI, onde um jovem já tinha manifestado que era “vacilão, porque matou
trabalhadora” e que iria ser violento com esse jovem, pois sua mãe era enfermeira.
66
Para quem ainda não naturalizou essa prática, já é extremamente ostensivo o fato das viaturas da
Polícia Militar na cidade estarem com as janelas abertas e a arma apontando para fora, o que se vê em
todos os contextos, mesmo sendo exacerbado nos bairros periféricos.
105

Uma profissional do CAI apontou, em fevereiro de 2016, que estava chegando


muito “15767”, e que, contrário ao que acontecia antes, agora eles só estavam
recebendo progressão de medida no segundo ou terceiro relatório, a despeito de
sugestões da equipe técnica de saírem desde o primeiro. Disse também que os jovens
que estavam por tráfico estavam progredindo mais facilmente. A sua hipótese e de
outras profissionais era que esse movimento do Judiciário fazia parte da política de
higienização da cidade. Uma delas contou que foi difícil progredir inclusive um jovem
que tinha “tudo para sair”, inclusive “família apoiadora e escola”.
Na Baixada Fluminense, cuja história é marcada pela violência política (ALVES,
2017), podemos lembrar a chacina acontecida em 2005, executada por policiais à
paisana, que mataram 29 pessoas em vários locais por represália a medidas duras do
seu comandante68. Também existe o caso do jovem negro Rodrigo do Carmo Raposo
Tavares, assassinado em outubro de 2015 na Baixada, cuja investigação, diferente de
casos de policiais assassinados, ainda está estagnada na Delegacia-Divisão de
Homicídios da Baixada Fluminense.
Como apontado por Ferreira e Cappi, (2016), grupos paramilitares e milícias
também fazem parte do fenômeno do genocídio, sobretudo na Baixada, onde a entrada
das facções é recente e cada vez mais liderada por grupos alheios às favelas da região.
A milícia também está cada vez mais cooptando jovens, como vemos no CAI, o que não
acontecia antes e apresenta novas tensões. Jhosivani considerou que se a milícia se
apoderasse do território onde ele está,

Jhosivani: ia ser pior pros morador, porque a milícia extorque, extorque casa,
expulsa os outros, acho que seria complicado só mais por causa do morador
Jimena: e como que os traficantes afetam aos moradores?
Jhosivani: eu acho afeta só se tiver alguma favela que usa droga em frente a
criança, influencia muito. Anda armado na frente de criança
Jimena: e os tiros, né?
69
Jhosivani: é, também, que assusta

67
O uso de números no Sistema é muito comum, como já mencionamos, seja nas repetições diárias de
contagem dos meninos, seja na referência a eles através de seus números, seja o número do artigo do
Código Penal referente ao ato infracional cometido.
68
http://teratologiacriminal.blogspot.com.br/2013/07/chacina-da-baixada-nova-iguacu-e.html
69
Fiquei impressionada dele considerar que a única forma em que as facções e suas disputas afetam à
população é “assustando”. Já Bernardo reconheceu ter visto “morador tomando tiro de pistola,
106

Um profissional há vinte anos no CAI contou que, no início, poucos jovens da


Baixada chegavam lá, o mais comum eram as execuções. Importante também lembrar
que a única UPP fora da cidade do Rio de Janeiro foi implantada na Baixada, na
Mangueirinha de Caxias, e que tem sido muito visível a ocupação territorial e o uso de
armamento pesado frente à percepção da “migração” das facções para essa região
(ALVES, 2017), provocada, em grande parte, por “políticas de pacificação” em outras
regiões da cidade (MIAGUSKO, 2016).
Segundo Ferreira e Cappi (2016), a forma de organização do comércio ilegal de
drogas, através do aparelhamento das facções e sua criminalização seletiva que
protege quem ocupa posições de comando e desprotege os baixos escalões, também
contribuem com o genocídio dos jovens negros empobrecidos e periféricos70. Esses
grupos não focam apenas no comércio varejista de drogas ilícitas, mas no controle
quase absoluto dos bens que entram e saem das favelas, assim como de atividades
criminosas, tais como assaltos, venda de armas e roubos de carros e de carga,
atividade crescente na cidade no último ano e da qual muitos jovens que entrevistamos
participavam. Os jovens apontaram que frequentemente, mesmo não sendo das
facções, lhes vendiam os itens roubados em troca de armas para realizar as ações 71 e,
em alguns casos, em seguida passavam a se dedicar à venda de drogas.
As disputas por território entre as facções também têm se aquecido
recentemente, e com elas a afirmação de poder através da demonstração de força e
violência, onde as facções e os corpos de segurança pública “atuam a partir de um
mesmo regime de força – a troca de tiros – assim como de interpelações mútuas – a

morrendo, já vi uns também que tomou tiro e chegou no hospital, e conseguiu viver, mas perdeu muito
sangue”.
70
A partir de vasto material de campo, Carla Mattos sinaliza que existem diferenças raciais nas tarefas e
funções das facções, pois os jovens mais negros e mais pobres costumam serem colocados como
soldados, alvos mais fáceis de morte, enquanto os mais brancos, pela sua “passabilidade”, ocupam
cargos de venda e outros tipos de trânsito fora e dentro da favela.
71
Carla Mattos (2016) relata como na Maré, no momento em que as facções entraram no território, nos
anos 90, começou esse tipo de gestão do crime. Isto pode mudar dependendo do território, das práticas
e forças em jogo, como exemplificado pelo jovem Jorge Antonio (16 anos, negro), que ficava com itens
que roubava nas praias da Zona Sul, sem ter que prestar contas a nenhuma facção, “porque facção não
me dá nada, eu roubava mesmo pra mim mesmo, não tinha esse negócio de facção”.
107

competência de saber ‘trocar’ quando se entra na favela ‘sabendo o que vai acontecer’”
(MATTOS, 2016, p.2). Essas forças coproduzem

“políticas locais” (Silva, 2014) (re)traçadas nos contextos das invasões – disputa
violenta entre facções rivais pelo controle territorial do comércio varejista de
drogas nas favelas –, das incursões dos Caveirões – carros blindados da
Polícia Militar – e das operações de guerra às drogas. Tais dinâmicas são
marcadoras de um padrão de governo característico de processos que Gabriel
Feltran (2011) conceituou de “expansão do mundo do crime” (MATTOS, 2016,
p. 2).

Mattos (2014) aponta como as dinâmicas de lazer, sociabilidade, conflito e


identificação têm mudado bastante ao longo dos anos, dependendo dos movimentos da
cidade, dos momentos de “guerra” e de “paz”, da agenda de segurança pública e de
cultura, e de diferentes organizações políticas e econômicas, dentre elas as facções e
outros grupos de comércio ilegal, igrejas, movimentos armados, etc., e suas formas de
gestão dos territórios.

Precisamos pensar mais sobre a generalidade da representação da "guerra".


Assim como a categorização da "violência urbana", a ideia da "guerra" dialoga
com diversas experiências de medo da criminalidade e da violência. A
generalização é um mecanismo de poder fenomenológico, capaz de tocar os
sentidos do que se vive e se sente. Portanto, tem um potencial de dominação,
justamente porque interpela, dialoga, faz sentir. Mas faz sentir para quê? Para
naturalizar a "guerra" como cenário cotidiano que brota nas favelas e periferias.
Toda reflexão política considera o peso da criminalização do Estado.
É preciso considerar toda intervenção do Estado – capacidade de punir,
encarcerar e distribuir recursos de cidadania – educação, saúde, segurança.
Por isso, o Estado tem o poder de mobilizar recursos implementando e
institucionalizando políticas públicas.
Tem outro ponto aqui para começar a complexificar; o que é instituído pelo
Estado tem poder de dominação, legitimação e sobredeterminação, mas nunca
de homogeneização ou determinismo. Porque um estigma que recai sobre um
território da pobreza gera resistências, impacta sobremaneira, mas não anula a
pluralidade de códigos e trajetórias [um parêntese: me refiro ao Estado em toda
a sua complexidade, ou seja, o Estado não poder ser pensado como instituição
monolítica, pois a sua existência se dá entre expectativas do que é a
intervenção estatal, existe como ideia, e como um conjunto, uma trama de
instituições, setores, áreas, enfim, é uma correlação de forças sociais]
Além do Estado, tem outras fontes poderosas de legitimação. É preciso
entender a construção social de uma agenda pública. Além da mídia e do
Estado, temos as legitimações cotidianas.
A generalização da "guerra" legitima a naturalização do estigmas raciais e
territoriais da pobreza. De outra chave, é possível construir uma narrativa
política da vida cotidiana. E aí a guerra pode ser usada sem aspas!!
Qual é a definição política da guerra? O argumento da guerra legitima o
extermínio, é preciso qualificar e localizar essa narrativa. As facções entram em
108

guerra sim, é o mesmo poderio. Mas é o Estado que tem todo o equipamento,
tá ligado? E o Estado não faz guerra contra todo mundo. Nunca foi assim. É
preciso olhar o cotidiano de quem vive na mira do fuzil: preto, pobre, favelad@
72
(MATTOS, 2017, texto sem publicar )

Nesse contexto, vemos no Brasil estatísticas de mortalidade semelhantes a


contextos de conflito armado, e onde os jovens homens negros, apesar de serem 6%
da população, são 30% das vítimas (FERREIRA; CAPPI, 2016). No campo desta
pesquisa, a maioria dos jovens conhecia alguém que tinha sido morto pela polícia ou
pelo tráfico, e vários deles já tinham recebido tiros, alguns deixando-os em condições
próximas à morte73. O genocídio institucional aparece disfarçado no racismo nem
sempre explícito traduzido em discursos de indiferença, quando a violência não se faz
nítida, evidenciando “criminalização racial” (conceito utilizado por Carla Mattos no Ciclo
sobre Violência, Política e Sociabilidade Urbana).
As perguntas que transversalizam esta discussão são sempre: quais vidas
importam? Quais mortes indignam? Que violências são toleráveis? Ou, nas palavras de
Judith Butler (2015) quando a vida é passível de luto?74 Quais são os marcos de
inteligibilidade de vida? A autora sinaliza os

modos culturais de regular as disposições afetivas e éticas por meio de um


enquadramento seletivo e diferenciado da violência. [...] Uma vida específica
não pode ser considerada lesada ou perdida se não for primeiro considerada
viva. Se certas vidas não são qualificadas como vidas ou se, desde o começo,
não são concebíveis como vidas de acordo com certos enquadramentos
epistemológicos, então essas vidas nunca serão vividas nem perdidas no
sentido pleno dessas palavras [...] A condição precária da vida nos impõe uma
obrigação. Devemos nos perguntar em que condições torna-se possível
apreender uma vida, ou um conjunto de vidas, como precária, e em que
condições isso se torna menos possível ou mesmo impossível (BUTLER, 2015,
p.13).

Como Gary Barker aponta e como observamos nos relatos das trajetórias
familiares e comunitárias dos jovens que entrevistamos, “mesmo nas localidades

72
Ideias apresentadas no Debate Funk e Sociedade no Diretório Acadêmico da Escola de Música da
Unirio.
73
Existe uma desigualdade no que tange a operações de segurança em comunidades empobrecidas e
periféricas, quando comparado com áreas de classes médias e altas.
74
Como refletido por Gabi, essa pergunta também nos toca como pesquisadoras, no momento em que
ocupamos lugares sociais diferentes aos dos jovens.
109

violentas empobrecidas, a maioria dos homens jovens em geral não chega a se


envolver com a violência das gangues” (2008, p.12). Embora o caminho do
"envolvimento”75 nas facções seja uma alternativa diante da desigualdade social76,
situação que essas instituições-organizações aproveitam muito bem, o fato de que a
maioria dos jovens do Sistema Socioeducativo seja empobrecido, negro, de baixa
escolaridade e morador de favela – entendida como periferia, mesmo localizada dentro
de bairros centrais77-, não significa que todos os jovens com essas características, nem
sequer todos os que estão no Sistema, estejam envolvidos na criminalidade.
Vemos assim vários jovens que entram no Sistema por erro, por atos infracionais
forjados ou aumentados pela Polícia ou enquadrados por outras pessoas,
especialmente se eles já tinham passado pelo Degase, como no caso de Christian
Alfonso, que explicou que na última passagem de várias, um homem “de maior” tinha
jogado um celular roubado para cima dele, e mesmo sem vítima para denunciar, a
polícia tinha levado para a delegacia, nem tinha ouvido sua versão e tinha enviado para
o Degase imediatamente. Uma profissional também relatou o caso de um jovem que
entrou no Sistema por estupro de vulnerável por denúncia da tia, que posteriormente
percebeu seu erro e quis voltar atrás, porém, ele passou quase um ano no Degase 78.
Os processos de criminalização dessa população são extremos, provocando
vivências e confrontos com os agentes de segurança do Estado, inclusive quando não

75
Estar “envolvido” significa que “integra o grupo de traficantes da localidade, podendo ser ladrão ou
alguém que se associa às atividades de venda de drogas” (MATTOS, 2016, p. 12). No entanto, como
apontado por Fátima Cecchetto, é importante fugir da naturalização da categoria de “envolvido”. Vemos,
nesse sentido, discussões que tecem análises sobre as noções de crime e sujeição criminal ao pensar
na categoria de Bandido (MISSE, 2010).
76
Como apontado por Antonio Barbosa, “O exame deste assunto não pode ser conduzido sem a
compreensão dos códigos culturais locais; sem o entendimento das escolhas éticas que informam os
comportamentos; sem olhar para as expectativas e os sonhos que embalam a juventude pobre carioca;
sem o estranhamento dos limites sombrios impostos ao seu desenvolvimento e realização – aquilo que,
com toda propriedade, podemos chamar de ‘grande injustiça’” (BARBOSA, 2006, p.133).
77
Importante lembrar que as vivências entre e dentro das favelas são extremamente heterogêneas, pelo
que qualquer generalização seria grosseira e irreal. Estas são territórios com diversas trajetórias,
possibilidades, dinâmicas e conflitos. A mesma ponderação deve ser realizada ao pensar as “classes
empobrecidas”, cuja diversidade é ampla.
78
Neste caso, um elemento agravante é que a infração que foi imputada ao jovem é especialmente
provocadora de violência no Sistema, tanto por jovens quanto por profissionais, sobretudo quando se
trata de vítimas crianças, como é a maioria das vezes, pois a prática de estupro tem diversos
significados. Outros jovens acusados deste tipo de infração negaram tê-la cometido.
110

se encontram envolvidos em práticas “criminais”, enquanto jovens de classes médias e


altas encontram-se distantes do “estereótipo do criminoso”, ou do “bandido”, que seria
“a figura de um jovem negro, funkeiro, morador de favela, próximo do tráfico de drogas
vestido com tênis, boné, cordões, portador de algum sinal de resignação ao desolador
cenário de miséria e fome que o circunda” (ZACCONE, 2011, p.21).
Abel relatou:

Abel: ah, a polícia, é muita agressão que o policial faz, tipo, já botaram saco na
minha cabeça e ficou pingando sangue, já bateu, já apontou fuzil, botou o fuzil
nas costas, já mataram um menor com um tiro que entrou aqui e atravessou
aqui (na cabeça). Muitas agressões. Cair na porrada, falar que vai me matar,
“eu vou te matar”, eles falam essas coisas pra mim. O ruim que ele deu azar,
que depois eu cacei e matei ele.
Jimena: mas porque que eles fizeram isso, porque eles sabiam que você era
envolvido?
Abel: porque eles falam assim “ô, você é da boca, vou te matar”. Mesmo você
não sendo da boca. Assim que eles faz.

Ao apontar que ele caçou o policial que foi violento com ele, Abel acrescenta à
discussão as disputas das performatividades masculinas, que não são só pessoais,
mas coletivas, em um jogo de poderes e violências. É importante entender as
complexidades dessa disputa, tanto no sentido de enxergar o poder que os jovens
exercem através das suas organizações e armas, no caso da pista, ou do número maior
comparado com os agentes, no caso do Degase, mas também de que forma as
violências que policiais e agentes exercem são constantemente legitimadas por
grandes setores do Estado, da mídia e da sociedade. Isto traz a uma questão
recorrente no debate sobre as políticas de “pacificação”, onde ela é apresentada como
dependente da polícia, no momento em que esse processo é fundamentado “pelo
ideário da universalidade de direitos nas quais a violência deveria ser monopólio
exclusivo do Estado em nome da justiça” (MACHADO, 2004, p.35).
Silene de Moraes Freire (2013) discorre sobre o gerenciamento da pobreza,
dinâmica que “produz políticas pobres para pobres”, diferenciando “pobres dignos” ou
“pobres bons”, que não têm um acesso à cidadania, mas apenas um patamar mínimo
de sobrevivência baseado nas políticas compensatórias, enquanto que os “pobres
maus” recebem “cárcere e extermínio”. A autora aponta que a divisão entre esses
grupos é completamente arbitrária e culpabilizadora, o que nos faz pensar em políticas
111

de governamentalidade que violam direitos e, segundo Douglas Silva, no Ciclo sobre


Violência, Política e Sociabilidade Urbana, discriminam ao limitar quem é passível de
ser morto e quem é vítima das circunstâncias.
Como apontado pela filósofa negra estadunidense Angela Davis (2003),

estamos reconceitualizando a relação entre o Complexo Industrial Carcerário e


a globalização – desde uma discussão de como a prisão está sendo afetada
pela globalização da economia (em que a prisão se encaixa na globalização)
até a utilização da prisão como uma instituição histórica contingente que não só
prognostica/ pressagia a globalização, mas nos permite pensar hoje sobre as
intersecções entre punição, gênero e raça, dentro e além das fronteiras dos
Estados Unidos (DAVIS; GENT, 2003, p. 526).

Assim, o encarceramento em massa é uma realidade gritante nos Estados


Unidos, assim como o é na América Latina, que apesar de não ser a região mais pobre
do mundo, é a região com maior desigualdade e com mais violência letal, como
assinalado por Miguel Pablo Sernano referido evento de Direitos Humanos, violência e
pobreza. Na região latino-americana e no Brasil, marcados por essa desigualdade
social, o Sistema Penal é a instituição que mais cresce e a que mais fracassa, e faz
parte de um legado colonial que se atualiza ao ser um artífice da coisificação e da
desumanização (PEDRINHA, 2016). Por sua parte, Salo de Carvalho (2010) aponta que
o punitivismo tem aumentado vertiginosamente desde 2000 e sinalizou a judicialização
da política pública.
A partir da Análise Institucional e da Criminologia Crítica, Leite aponta

A ressocialização supostamente buscada pelo regime prisional nada mais seria


do que o treinamento dos corpos que não se integraram a outras formas de
doutrinamento, objetivando, para Foucault (2004b), a docilização a serviço da
produção industrial. Já para Zaffaroni (1993), na América do Sul essa
docilização por parte do sistema punitivo teria por objetivo manter os países
deste Continente na periferia da industrialização. Este giro no ponto de vista do
biopoder dá melhores condições para compreender algumas características do
sistema penal brasileiro, como a superlotação, que em nada contribuiria com a
indústria, mas seria muito útil para manter grandes parcelas da população à
margem do acesso igualitário à fruição de direitos. De acordo com Foucault
(2004) a pena privativa de liberdade dociliza mediante a visibilização intramuros
do corpo e o controle do tempo (LEITE, 2014 p. 799).

Desta forma, é impreterível entender a construção histórica das “classes


perigosas” no Brasil, marcada pelos processos de escravidão dos povos originários, a
112

diáspora africana forçada, os processos de migração e de apropriação de terras, assim


como a colonização religiosa, cultural e política, que mesmo com lutas nos processos
de democratização, ainda hoje estão presentes tanto nas leis quanto na política
cotidiana, no momento em que a exclusão social está presente não só em práticas de
seletividade penal e violência policial, mas em relações endurecidas com alguns
setores da sociedade.
Por exemplo, no seminário de Direitos Humanos, Violência e Pobreza, Márcia
Nogueira apontou que a retirada de crianças e adolescentes das famílias de origem
também faz parte do genocídio, no momento em que vemos um acolhimento massivo
de crianças negras, vivendo em negligência, abuso de substâncias, nem sempre nos
casos extremos, e sempre culpabilizando as famílias. Ela apontou que o judiciário tem
aparecido como uma esfera autônoma, como superior a outros poderes em termos de
Direitos Humanos, usando os serviços de assistência como meio de controle.
Como apontado por Silvio Luiz de Almeida no evento de Direitos Humanos,
Violência e Pobreza, a economia capitalista contemporânea se deu com o uso da
violência extrema desde o início, sobre povos africanos e indígenas nas Américas,
fazendo do racismo um modo de racionalidade que naturaliza a divisão entre pessoas e
que se exacerba com as crises políticas e econômicas, embora também exista em
momentos de prosperidade. Por sua vez, o peruano Aníbal Quijano (2005) disserta
sobre a “colonialidade do poder”, entendido como um padrão de controle,
hierarquização e classificação da população mundial que afeta todas as dimensões da
existência social, e que tem no conceito de raça seu eixo estruturante. Para o autor, a
colonialidade não se esgota no colonialismo, forma de dominação político-econômica e
jurídico-administrativa das metrópoles europeias sobre suas colônias, expressa, mais
que isto, um conjunto de relações de poder mais profundo e duradouro que, mesmo
com o fim do colonialismo, se mantém arraigado nos esquemas culturais e de
pensamento dominantes, legitimando e naturalizando as posições assimétricas em que
formas de trabalho, populações, subjetividades, conhecimentos e territórios, são
localizadas no mundo contemporâneo (QUIJANO, 2000).
Observamos também um apagamento das culturas e religiões de origem
africana, o que também revela o atravessamento da instituição-forma racismo e pode
113

ser compreendido como parte do genocídio, como apontado por Thula Pires no evento
de Direitos Humanos, Violência e Pobreza, compreendendo que o genocídio não está
apenas relacionado à vida, mas à existência, como narrativa, história e cultura. No
contexto da cidade, vemos notícias de chefes do tráfico expulsando terreiros das
favelas, em uma complexa relação entre facções e igrejas evangélicas79.
Já no CAI, escutamos relatos de momentos em que familiares tiveram que retirar
seus preceitos e turbantes para entrar na unidade e não conseguiram pô-los
novamente, ou de um jovem que pediu para a avó não ir visitá-lo porque ela pratica o
candomblé e poderia sofrer racismo religioso dos outros jovens. A prática religiosa de
vários jovens do candomblé e da umbanda80 não impede que as referências na
unidade, como livros e mensagens nas paredes, sejam apenas focadas nas religiões
cristãs, cultos evangélicos, além de constantes visitas de pastores/as e grupos
cristãos81 Ressalta-se ainda a existência de uma única figura de assistência religiosa de
orientação cristã, com uma proposta de redenção e mudança de vida. Vemos de que
forma a evangelização atravessa a unidade e impede que outras expressões religiosas
coexistam, o que sugere uma articulação entre ambas as instituições-organização.
Todavia, em uma lógica que articula machismo, racismo e classismo, as famílias
dos jovens, especialmente as mães, são frequentemente consideradas as principais
responsáveis pela forma como os jovens cumprindo medida socioeducativa exercem
suas vidas e são muitas vezes julgadas por serem beneficiárias dos lucros financeiros
dos jovens envolvidos nas facções, apesar deles estarem no Sistema. Esses discursos,
assim como percebemos no segundo curso com profissionais, muitas vezes consideram

79
Há trabalhos muito interessantes nesta temática, como o de Christina Vital (2015), que acompanha os
deslocamentos, modificações, tensões, descontinuidades e vínculos na dinâmica entre igrejas e tráfico,
onde, no cenário atual, as vertentes pentecostais e neopentecostais aparecem não só como uma forma
de sair do tráfico, mas como uma forma de ficar nele. Também observamos uma fortíssima presença
das igrejas nas prisões nas nossas pesquisas no Sistema Prisional, e soubemos que vários jovens
passaram por casas de recuperação desse cunho, antes ou depois das passagens pelo Degase.
80
Inclusive, nas trajetórias de vida, vários relataram ter circulado por várias religiões.
81
Essas figuras foram constantemente ressaltadas como fundamentais por profissionais e jovens no
sentido da humanização da unidade. A intenção aqui não é retirar mérito delas, mas problematizar o
fato de que em uma instituição estatal laica, exista uma falta de pluralidade religiosa e uma
naturalização do lugar de poder dessas figuras.
114

a “liberdade excessiva da mulher”82 como provocadora de um enfraquecimento da


estrutura e da educação familiar, enunciada como uma ausência do entendimento do
respeito a superiores.
A noção de “família desestruturada”, conceito provindo de vertentes da
Psicologia, de caráter disciplinador, ocupa aqui um espaço importante e é utilizado
inclusive em documentos oficiais, tais como o “Panorama Nacional: a execução das
medidas socioeducativas de internação” (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, 2012).
Como apontado por Simone de Assis, “devemos atentar para a existência de
especificidades decorrentes da hegemonia cultural, lembrando que o construto-padrão
mais aceito pela sociedade é o da classe média. Infelizmente não há referências às
famílias de classes populares que não sejam estigmatizadoras, sendo essas
comumente denominadas desestruturadas ou desajustadas” (ASSIS, 1999, p. 41).
Mônica Cunha, do Movimento Moleque83 falou sobre isso em um ato no Tribunal
de Justiça, onde acontecia a terceira audiência pública sobre o assassinato, em
novembro de 2015, de cinco jovens negros entre 16 e 25 anos no bairro Costa Barros,
periferia do Rio de Janeiro, quando quatro policiais dispararam, sem resposta, 111 tiros
contra o carro dos jovens: “as nossas famílias não são naturalmente desestruturadas, o
Estado que as desestrutura quando mata e encarcera os nossos companheiros e os
nossos filhos, e nos adoece até a morte”. Assim, como apontado por Thula Pires no
evento de Direitos Humanos, Violência e Pobreza, as mortes e o encarceramento dos
homens negros afetam as mulheres negras, que devem sustentar a família na ausência
dos homens.

82
Em duas ocasiões escutamos que a libertinagem é exacerbada, por exemplo, por políticas como a
Bolsa Família, que beneficiam principalmente a mulheres responsáveis por famílias empobrecidas, as
quais “usam esse dinheiro para beber”. Isso foi contestado por outros profissionais, cujas famílias
inclusive foram beneficiárias de tais programas.
83
“O Moleque, Movimento de Mães pelos Direitos dos Adolescentes no Sistema Socioeducativo, surgiu
em 2003, quando duas mães de jovens em conflito com a lei, cumprindo medida de privação de
liberdade, passaram a vivenciar a rotina de uma unidade de internação e constataram que, ao contrário
do que é dito e previsto pela Lei, os responsáveis pelo atendimento socioeducativo não a aplicavam; em
vez disso, os jovens sofriam múltiplas violações de seus direitos básicos. Tal distorção não se resumia
apenas a perpetrar e consentir com maus-tratos físicos, pois se materializava em múltiplos mecanismos
de coerção que modificavam esses jovens, como pessoas, durante e depois da internação. O resultado
era sempre traumático e só os mudava para pior” (CUNHA, SALES, CANARIM, 2007, p.26). Moleque
integra a Rede de Mães Contra a Violência de Estado.
115

Uma abordagem que não contempla estes processos sociopolíticos acaba


criminalizando as famílias, não apenas no sentido concreto da penalização, mas como
um projeto disciplinador onde o Degase entra como a instituição que vai resolver essas
falhas familiares, corrigindo o sujeito (SCISLESKI, et. al., 2014) que provém dessa
“criação deformada” que faz com que os jovens “cheguem tortos e a gente tenta
alinhar”. Nessa perspectiva, segundo apontado por quem a defendeu em um acalorado
debate em um dos cursos, “a juventude hoje em dia está precisando de mais tapa”, ato
que não consideraram violento, mas importante para conhecer os limites e o respeito a
uma autoridade incontestável. Assim, a educação é efetivada através da punição em
uma lógica atrelada às noções sobre as trajetórias desses jovens e o que as pessoas
acreditam que eles devem vivenciar nesse espaço, que supostamente não viveram
Fora.
Nas entrevistas com os jovens, alguns reconheciam terem merecido a violência
física de agentes. No entanto, muitos outros repudiavam essa perspectiva, que
inclusive gerava neles mais ressentimento. Outros/as profissionais se contrapuseram a
essa perspectiva, apostando que muitos jovens tinham se inserido em práticas violentas
justamente após histórias de violência física e punições extremas na vida deles,
buscando vingança.
Alguns/as profissionais e jovens apontaram que a expectativa de que o Degase
“solucione o problema” dos filhos também é presente nas mães84, que se
desresponsabilizam querendo guardar ou monitorar os filhos ao “não dar conta” e terem
perdido autoridade, muitas vezes frente ao tráfico, que as desempodera. Ao tempo em
que, de forma irônica, muitas vezes o próprio Degase é colocado como desempoderado
frente às facções.
Nesse contexto, as instâncias estatais aparecem como o grande salvador,
alimentando novamente as práticas e políticas voltadas à infância e juventude negras e
periféricas, sem em momento algum incorporar as famílias no conhecimento, reflexão e

84
Uma profissional comentou que conheceu uma mulher que “perdeu” os três filhos no tráfico e que
afirmava “a culpa era do Siro Darlan, porque deu semiliberdade e tinha que interná-lo”. Ela também
apontou que essa tentativa de não se responsabilizar do filho não é característica das famílias
empobrecidas, que “já soube de juízas muito ricas que sentem que, porque elas pagam uma escola
caríssima, a escola que tem que cuidar das crianças sempre”. Mas, que “para quem não tem dinheiro,
instituições como o Degase aparecem como essas cuidadoras e educadoras”.
116

transformação dessas políticas, movimento que elas têm exercido através do Moleque
(CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Muito pelo contrário, não apenas o Sistema
Socioeducativo, mas o educativo, o de saúde, o de assistência social,
permanentemente psicologizam e judicializam as famílias empobrecidas, usando a
justificativa da Segurança e utilizando a família como dispositivo de controle social nas
políticas públicas.
O sociólogo francês Eric Fassin, em palestra acontecida no Museu Nacional em
setembro de 2016, dizia: “nem todo mundo tem acesso à esfera pública, mas a esfera
pública tem acesso a todo mundo”. Assim, observamos de que forma as classes média
se altas acessam o sistema estatal por questões, por exemplo, de patrimônio, enquanto
as camadas empobrecidas são acessadas através de instituições como o Degase, o
Exército, a Polícia Militar e o Sistema de Acolhimento, como observamos nos relatos de
vários jovens que já passaram por abrigos, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e
casas de recuperação, também com experiências diversas, algumas positivas e
algumas negativas.
Assim, não é possível dizer que o Estado está completamente ausente nas
comunidades empobrecidas, ele está presente de forma repressiva e seletiva, no
controle militarizado, e domesticadora, em instituições tutelares, e na inexistência de
direitos de moradia, saneamento básico, educação, saúde, cultura, esporte,
comunicação e lazer, incluindo apoio a propostas locais e culturas alternativas dos
jovens85.
Ambas as situações compõem a violência de Estado, o qual “tem formas de
captura em centros de poder”, como apontado por Antônio Rafael Barbosa no Ciclo
sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana. Como apontado por um gestor do
Degase, “esse jovem só passa a existir depois que comete o crime, antes era

85
Destaco aqui a tristeza de ter acompanhado o encerramento do Circo Social Baixada, em Queimados,
na Baixada Fluminense, espaço extremamente potente de produção da juventude local, que após ter
perdido o apoio financeiro da Petrobrás e em um absoluto descaso e corrupção da prefeitura, nunca
mais conseguiu continuar seu valioso trabalho e foi definitivamente fechado no final de 2017. Como
esse, observamos múltiplos exemplos de omissão, perseguição e criminalização de projetos de rádios
comunitárias, jornais, grupos de educação popular, artistas e bailes funk (SANTOS, 2016; FACINA,
2009), moradias autogestionárias, dentre muitos outros. Importante destacar que as facções do tráfico
também ferem esses direitos, por exemplo, invadindo ocupações autogestionárias (BIRMAN;
FERNANDES; PIEROBON, 2014) ou impedindo que terreiros e centros de religiões de matriz africana
continuem suas atividades de forma normal, chegando a expulsá-los das favelas.
117

totalmente invisibilizado para a sociedade, esse é o único momento que a sociedade


passa a olhar para esse jovem. Nesse momento, ele passa a existir”. Ou seja, como
sinalizado por Thiago Mélicio, é a partir dessa dobra, que conecta a violência, que a sua
vida ganha visibilidade.
Igualmente, embora as trajetórias familiares dos jovens cumprindo medida
socioeducativa sejam constantemente simplificadas e generalizadas inclusive por
profissionais, existe uma imensa diversidade destas, como percebemos nas
observações realizadas nos dias de visitas familiares e nas entrevistas individuais.
Assim como observado pela psicóloga Silvia Ramos (2011), muitas/os familiares,
incluindo mães, pais, avós, padrastos, irmãs e irmãos, e namoradas ou esposas,
oferecem referências alternativas e apoios aos jovens, além de em muitas ocasiões não
terem ciência ou não concordarem com o envolvimento dos jovens nas facções 86 ou em
atividades criminosas e recusarem qualquer tipo de benefício econômico. Inclusive,
quando a reincidência é significativa, param de visitar os jovens no Degase, mostrando
uma rejeição a esse modo de vida.
Alexander disse que a irmã caçula o tinha convencido de sair do tráfico, e ele se
mantinha fora do “mundo do crime”, tendo chegado ao Degase por um ato infracional
isolado e não relacionado com nenhuma facção. Jorge Antonio disse:

meu pai falava pra mim direto ‘você pode fazer o que você quiser da sua vida,
menos roubar e usar droga’ [...] Minha família só me dá conselho bom, pra eu
sair daqui e mudar de vida, eu falo pra minha família ‘tranquilo, então, quando
eu sair daqui eu vou mudar de vida’.

Quando perguntei por que estava sem visita, Emiliano disse:

porque, minha irmã... eu tenho três passagens. Na primeira passagem, minha


irmã falou que, eu falei que ia mudar de vida. Aí minha irmã acreditou, veio me
visitar, na minha segunda passagem também, aí nessa passagem ela não
acredita mais que eu vou mudar de vida. Aí ela não vem mais.

Em entrevista com Felipe (18 anos, negro), Gabi falou sobre isso:

86
Jean (19 anos, branco) relatou que seu irmão mais velho “não deixava” ele entrar no tráfico, mesmo ele
mesmo fazendo parte de uma facção. Ele também disse que o tio, com quem tinha morado, “me
chamou pra sair, mas eu já tava muito envolvido, aí eu fiquei no tráfico mesmo”.
118

Gabi: e teu pai soube quando você se envolveu com o tráfico?


Felipe: foi saber depois.
Gabi: antes de você rodar?
Felipe: uhum
Gabi: soube quando você foi morar sozinho?
Felipe: aí já sabia, já. Porque eu já passava de moto, com cordão
Gabi: e ele?
Felipe: aí ele falou “sai disso, rapaz, tu sabe como que teu irmão morreu”.
Porque meu irmão morreu, por tráfico
Gabi: era mais velho que você?
Felipe: era. Morreu com 17.
Gabi: operação policial?
Felipe: não, foi os menor que matou.
Gabi: porque?
Felipe: porque não achou que o trabalho dele tava sendo bom, e acabou que
matou ele

Israel (18 anos, negro), também relatou:

minha mãe era da igreja, aí ela não gostava, ela ficava meio assim... ficava
reclamando, pá, ia lá. Mas eu continuava
tipo, um dia eu tava de costas, assim, traficando, aí bateu nas costas, aí eu
‘calma aí’, eu não sabia que era ela, aí ela ficou ‘sai disso, sai’, aí foi com os
cara da boca pra me tirar, aí os cara ‘pô, tia, de que adianta tirar?, ele vai
querer ir pra outro lugar’. Aí a minha mãe ‘você vai sair’ e eu ‘não, não vou’.
[...]
‘’Sai de lá, sai de lá’ e eu ‘ah, vai começar de novo o problema? Me deixa em
paz’, e ela ‘sai de lá. Você não foi criado pra isso não’.

Jesus contou que o pai “queria que eu fosse uma pessoa do bem, mas também
não quer me segurar, não me segura, se eu quiser sair daqui e voltar pra boca ele fala
“é contigo mesmo”. Adán (16 anos, negro) trouxe um relato bastante impactante nesse
sentido:

Jimena: e seu pai? Ele usava drogas muito tempo antes de falecer?
Adán: ah, usava
Jimena: o que ele usava?
Adán: ah, usava pó, fumou maconha, bebe cachaça, bebia cachaça pra
caralho.
Jimena: e o que você sentia quando ele fazia isso?
Adán: ah, se sentia magoado, às vezes ele dava esse pá, ficava sangrando, se
batia no chão, boca, tudo sangrando, ficava lá na barraca, eu passava e tava no
chão, aí pegava ele no braço e levava ele pra casa
Jimena: e quando ele morreu, o que você sentiu?
87
Adán: ah, se sentiu, como , triste. Pra mim acho que foi, como, ele começou a
beber mais também por causa de mim, porque tinha entrado na boca, ele dava

87
O uso extremamente recorrente da palavra “como” na construção narrativa dos jovens nos chamou a
atenção, tanto no sentido de como ela interfere no fluxo do desenvolvimento da ideia, quanto porque
119

vários papos pra mim sair da boca, só que eu não abraçava o papo dele porque
ele não abraçava o meu, porque eu pedia para ele parar de beber e não bebia,
aí, como ele não abraçava meu papo, eu não abraçava o dele, às vezes eu
abraçava sim, às vezes, como, eu não abraçava, dava uma de maluco.

Bernardo disse, a respeito da mãe:

De vez em quando eu falava pra ela pegar um dinheiro na boca, pra vir aqui me
visitar, minha mãe não gosta de tráfico de droga não, sabe, porque segue
dinheiro pra mim, de tráfico de droga, aí minha mãe “não, não vou buscar, não
quero dinheiro sujo na boca de fumo não, quero meu dinheiro pra ir te visitar”.
Ah, fazer o que, minha mãe quer trabalhar, porque minha mãe não precisa
trabalhar não, filha, por mim, filha, no tráfico de drogas, dou tudo que ela quiser,
eu trato minha mãe que nem uma rainha.

Os jovens relatam algumas tentativas das famílias, como Adán, que disse que a
avó o tinha cadastrado no “jovem aprendiz”, o que ele queria fazer, mas não ia por estar
na “vida do crime”.
Por sua parte, nos foram relatados casos específicos em que alguns familiares
estão envolvidos na “vida do crime”, seja diretamente, seja à partir desses jovens ou
dos seus ganhos financeiros, às vezes inclusive como forma de sobrevivência. Outros
familiares, muitas vezes os pais e irmãos, foram mortos ou estão ou estiveram
encarcerados, fosse por envolvimento com o tráfico, por outro tipo de crimes ou por
engano.
Um momento muito interessante na nossa atividade na Semana do Bebê foi
quando os jovens discutiram e se surpreenderam com a variedade de árvores
genealógicas, ou, como gosto de pensar, rizomas genealógicos (DE GARAY, 2013).
Apesar de o disparador ter sido a paternidade, o que quero resgatar aqui é que os
jovens, pensando nesta relação como uma forma de “referência”, foram percebendo a
diversidade das suas trajetórias, como pontuado no capítulo 1. Assim, enquanto um
jovem falava “meu pai morreu e a minha mãe ficou presa 10 anos, se eu seguisse a
minha mãe, estaria pior do que estou”, outros falaram que se seguissem o exemplo,
“nem estaria aqui”. O que me parece importante nesta discussão é vislumbrar que as
trajetórias dos jovens e suas famílias, mesmo perpassadas por instituições-forma e

sugere um desejo de explicar os argumentos oferecidos, assim como um destaque nos processos dos
acontecimentos.
120

instituições-organização, são múltiplas e singulares, o que não significa que as


problemáticas sejam individuais e nem tampouco que a família seja a única instituição-
organização que constitui as nossas existências.
Na instituição-organização Degase, a presença familiar durante o cumprimento
da medida é determinante na progressão, como apontado por Adán:

Eu aqui, minha mãe presa, meu pai morto. Eu falei pra minha técnica pra falar
pra minha avó parar de vir me visitar. Eu faço meu artesanato, como, consigo
meu sabão, às vezes eu peço um biscoito pros menor e os menor fortalece,
pasta, o menor fortalece. Eu posso ficar sem visita, eu tô nem aí, o mais
importante é às vezes ela vir porque, como, a juíza vê que eu tenho visita, pra
mandar eu ir embora. Porque se não ela vai ver que eu não to tendo visita,
minha família abandonou, vai querer me jogar no abrigo, e eu não vou cumprir,
eu vou pular

Isto não significa que as dimensões sociais do tempo e vida dessas famílias
sejam consideradas, incluindo, em muitos casos, sua inserção no precário, racista,
machista e classista mercado de trabalho e no trânsito pela cidade. Pois, como
apontado por Cunha, Sales e Canarim, é uma violação ao direito à convivência
familiar88

o fato de o dia de visita ainda ser determinado pela instituição e a falta de


flexibilização em relação à data estabelecida – mesmo quando o familiar reside
longe da unidade e não tem dinheiro para arcar com as despesas, ou quando
trabalha no dia da visita (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p.40).

Nesse sentido, parece que o Sistema acaba punindo os jovens que não têm
família ou a mesma tem extremas dificuldades para acompanhar a medida.
O trabalho com as famílias, mesmo tendo iniciativas muito potentes no CAI, tais
como palestras e testagem de HIV, ou grupos de familiares com algumas técnicas, é
mínimo e de difícil continuidade frente a obstáculos de sobrecarga de trabalho,

88
Adán disse que muitas vezes não recebia visita “por causa da minha avó, ela não tem condições de vir
toda semana, porque, como, às vezes alguém chama ela pra trabalhar, ou tem que cuidar dos meus
primos”. Por outro lado, soubemos de familiares recebendo apoio de outros municípios, que organizam
transporte para irem visitar os jovens no CAI.
121

subordinação, neutralização e burocratização do exercício profissional, como apontado


por várias profissionais89.
Um diretor do CAI disse que eles tentam orientar as mães sobre as ferramentas
jurídicas para tirar os filhos do Sistema, já que, segundo o ECA, o Degase é o último
recurso, pois se os jovens “não fizeram nada grave, as famílias podem assumir o
compromisso de ressocializá-los”. Ele relatou um desconhecimento90 completo das
mães sobre o Sistema, sendo o Movimento Moleque uma referência de apoio a essas
famílias. No entanto, escutamos várias histórias de mães reivindicando os direitos dos
filhos, em contato com a equipe técnica, com a promotoria, com a defensoria e com o
Ministério Público, embora alguns jovens, como Benjamín, tenham no pai o maior
suporte familiar para esse acompanhamento. No entanto, na narrativa do cotidiano,
as/os profissionais se referem geralmente às mães. Este grau de mobilização das mães
na busca de justiça para os filhos revela o nível de descaso do Estado com esta parcela
da população, o que gera a composição de vários grupos de familiares de vítimas de
violência, incluindo o Moleque, cujo protagonismo simbólico e muitas vezes concreto é
dessas próprias mães (VIANNA; FARIAS, 2011; CUNHA; SALES; CANARIM, 2007).
Além do abandono do sistema de justiça que disponibiliza poucas defensoras/es,
é recorrente o relato de profissionais e de jovens sobre pressões e embates –até físicos
– com juízes e juízas e injustiças do sistema judiciário, o que sobrecarga o Degase. O
relato de Benjamín mostra outro aspecto, que fala da invisibilidade dos meninos e da
pouca aposta no Sistema oferecido: “aqui dentro a gente faz um monte de coisas e
atividades, mas quando vamos até a juíza, ela só quer saber do ato infracional, sem
perceber tudo que fazemos aqui dentro”.
É importante pensar de que forma o Degase vira um espaço comum para jovens
de comunidades empobrecidas como forma de intervenção estatal obrigatória em casos
de conflito, e marcada por uma série de injustiças. Nesse sentido, um profissional com

89
Por exemplo, os grupos com familiares, que estavam com uma boa adesão não só de mães, tiveram
que ser suspensos.
90
Em uma ocasião presenciamos uma mulher chorando no portão do CAI, e uma profissional nos relatou
que ela estava procurando o filho, que supostamente deveria estar no CAI, mas que ela tinha demorado
algumas semanas em conseguir ir visitar, e quando chegou, o filho não estava na lista nem na unidade.
Um diretor disse que essas confusões acontecem bastante, e a profissional falou que as técnicas
apoiam as mães nessas peregrinações de busca dos jovens.
122

muitos anos na unidade sugeriu que os jovens de classe média não costumam chegar
ao Degase porque a família aciona com maior facilidade o discurso da responsabilidade
sobre eles. Apesar de ainda ser uma minoria, alguns/as profissionais do CAI apontaram
ser cada vez maior o número de jovens de classe média e/ou brancos, o que também
foi observado pelo Moleque, que apontou a forma diferenciada com que esses jovens
vivenciam nessa experiência ao “receber medidas mais adequadas ao seu ato
infracional” (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p.32).

2.3 “Minha vida não era muito boa não”: entre a ostentação e a dignidade

Simone de Assis (1999) aponta que o cenário brasileiro é diferente de outros


contextos, onde os esforços estão focados na prevenção da “delinquência juvenil”
desde a “primeira infância”, enfatizando na articulação interinstitucional de “mobilização
comunitária, criando uma rede de suporte calcada na família, escola, treinamento para
o trabalho, atividades recreacionais e mudanças comunitárias” (1999, p.15).
Igualmente, Gary Barker assinala que

em certos países, alguns órgãos de formulação de políticas julgam mais


conveniente encarcerar os jovens de baixa renda do que tentar entender como
o comportamento delinquente pode ser prevenido, ou como contextos culturais
precários, circunstâncias de vida ou formas de socialização de gênero podem
levar a contribuir para tal comportamento (BARKER, 2008, p.15).

No entanto, cabe pensar se ações de profissionalização e educação deveriam


estar direcionadas apenas à prevenção da delinquência juvenil ou à garantia de direitos
de todos/as as crianças e jovens. Nesse sentido, Gabi se interrogava de que forma a
escola não contempla os desejos, projetos, interesses e culturas dos jovens, fazendo
da sua proposta uma perspectiva distante deles e expulsando-os simbolicamente
(RODRIGUES, 2015). Assim, conhecemos no CAI muitos jovens que não estudavam
mais, e inclusive alguns semianalfabetos. Alguns, como Emiliano, apontaram só
frequentar a escola quando estavam cumprindo medida de internação.
123

Observamos uma série de trajetórias familiares marcadas pela desigualdade


capitalista no contexto brasileiro pós-colonial. Assim, a grande maioria dos jovens, ao
relatar essas trajetórias, se referiram a um mercado de trabalho precário e explorador,
com empregos com pouquíssimo reconhecimento social e financeiro e muitas vezes
sem garantia de direitos trabalhistas, onde a carteira assinada era relatada como uma
conquista, tais como emprego doméstico – muitas vezes referido como trabalhar “na
casa dos outros” – e empregos precários em restaurantes de comida rápida, fábricas,
obras, comércios e serviços. Também mencionaram a marca do desemprego nas suas
histórias familiares. Esta situação leva, em muitos casos, a que os jovens, mesmo
menores de idade, também tenham que se inserir no mercado de trabalho, que é ainda
mais precário para eles.
Também escutamos questionamentos em que o foco na profissionalização dos
jovens costuma ser em empregos com salários baixos, o que “faz parte de uma
domesticação da classe baixa para trabalhar pra classe alta”, como apontado por um
profissional. Mesmo compreendendo a importância da empregabilidade desses jovens
como um direito, acredito que caiba uma perspectiva crítica de quais as alternativas
oferecidas e construídas com eles, especialmente frente ao status e à ostentação
fornecida pelas facções do tráfico em uma sociedade atravessada pela instituição-forma
da subjetividade capitalística91 que nos atravessa a todas/os, assim como por uma
profunda exclusão e desigualdade social. Nesse sentido, “submeter o jovem a uma
medida socioeducativa, sem intervir no contexto social no qual se encontra, o (re)insere
socialmente?” (SCISLESKI, et. al., 2014, p. 665).
Nesse sentido, foi constantemente expressada a dificuldade de garantir que os
egressos92 pudessem dar continuidade a projetos alternativos, sobretudo frente a

91
O que caracteriza aos modos de produção capitalísticos é que não funcionam unicamente no registro
dos valores de troca, valores que são da ordem do capital, das semióticas monetárias ou dos modos de
financiamento. Esses também funcionam através de um modo de controle da subjetivação, que eu
chamaria «cultura de equivalência» ou «sistemas de equivalência na esfera da cultura». Desde esse
ponto de vista o capital funciona de modo complementar à cultura enquanto conceito de equivalência: o
capital se ocupa da sujeição econômica e a cultura da sujeição subjetiva. E quando falo de sujeição
subjetiva não me refiro apenas à publicidade para a produção e ao consumo de bens. A própria
essência do lucro capitalista está em que não se reduz ao campo da plusvalia económica: está também
na toma de poder sobre a subjetividade (GUATTARI E ROLNIK, 2006, p.27).
92
Foi mencionada inclusive uma Assessoria de Medidas Socioeducativas e Egressos, que é pouco
atuante. Como apontado por um diretor, os “egressos” são os jovens com medida em extinção, que são
124

convites que geram tentações ligadas a ostentação – que faz parte dos valores
capitalísticos dos modos de vida oferecidos pelas facções, especialmente aos homens,
a pressões e cobranças das facções, ou, nas palavras de César (17 anos, negro) “muito
caô para resolver”. Outros disseram que como já eram “marcados”, se eles decidissem
sair do tráfico e levar uma “vida normal”, “de repente” podia vir alguém da outra facção
para matá-los ou a família deles. A mesma facção podia impedir a saída, frente ao que
eles só poderiam resolver “saindo da cidade”. Outras configurações das suas
trajetórias, tais como situação financeira e exclusão social, que se acentua ao terem
passado pelo Sistema Socioeducativo, acabam recolocando-os “nesse caminho”.
A reincidência no Degase é muito grande, como percebemos ao conhecer jovens
que já estão na 15ª passagem, o que é consonante com a afirmação de uma
profissional de que dois terços dos jovens que ela atende são reincidentes, já que “lá
fora a realidade é a mesma”, segundo outro profissional. Também, muitos jovens
enxergam a entrada no Sistema Prisional como uma possibilidade e um lugar comum
nas suas trajetórias, o que é preciso compreender sem naturalizar, pois carrega uma
série de implicações sociais. É importante considerar, neste sentido, que dificilmente o
estabelecimento pode oferecer uma solução a uma realidade social de desigualdade e
violência tão profundas. No entanto, negar a perversidade das instituições-forma que
atravessam a instituição-organização do Degase é impossível.
Frente a esse panorama, como apontado por profissionais, “o tráfico dá um
status impossível de atingir com um trabalho normal, como os que a gente propõe -
pedreiro, eletricista- porque com esses eles ganham muitíssimo menos do que no
tráfico”. Adán relatou, por exemplo, que se de ajudante de pedreiro podia ganhar mil
reais por mês, na boca de fumo ganharia cinco mil, que podia dar para a família caso
precisasse. Abel disse ganhar “mil reais e pouquinho” por semana. José Luis (17 anos,
negro) relatou ter entrado no tráfico porque ele ia pra escola “de mochila rasgada, tênis

poucos, pois os que evadiram o Sistema não são considerados como tal, e a “liberdade assistida”
implica uma medida ainda em cumprimento. Também soubemos que existe uma Divisão de
Profissionalização, com parcerias, por exemplo, como a Comlurb, e a lei 5954/2011, que trata do
programa de inclusão no mercado de trabalho. Durante o campo, participamos em um evento no CAI
chamado “1º seminário educacional Trabalho e Cidadania”, organizado por docentes da escola, que
focou na inserção no campo do trabalho e o papel da escola nesse objetivo. Nesse evento, Benjamín
chegou a interrogar a mesa, dizendo que “aqui dentro se fala de muitas oportunidades, mas lá fora, as
oportunidades vão até a gente, ou a gente vai até elas?”.
125

velho e rasgado, roupa ruim, e por isso era zoado na escola, aí via os traficantes com
coisas bacanas, e decidi copiar”. Julio (16 anos, negro) apontava:

Jimena: o que chamou sua atenção pra entrar na boca? Porque você entrou?
Julio: porque minha mãe tinha condições de me dar nada, roupa, roupa nova,
tudo era de brechó, e aí entrei na boca
Jimena: você ganhava muito?
Julio: uhum
Jimena: quanto?
Julio: 1.800
Jimena: por semana ou por mês?
Julio: quatro desses por mês
Jimena: e com esse dinheiro você comprava o que?
Julio: roupa, celular
Jimena: você dava dinheiro pra sua mãe?
Julio: dava
Jimena: quanto?
Julio: tudo, dava tudo

Jhosivani disse ter se sentido atraído para essa vida porque o dinheiro é muito
fácil, ganhando “por dia, dependendo o que você pegar, uns dois mil, três mil”. Jesús
disse

ah, comecei a roubar por causa que muitas das vezes, às vezes eu passava
fome. [...] E outro também porque eu gostava de adrenalina. Eu gosto da
adrenalina, sempre gostei. Mas também muitas das vezes nem mais
necessidade, eu já fui um menino que, como, surfava, andava de skate.

Israel relatou:

eu tinha uma vida muito boa não. Tipo, tinha uma mãe boa, tinha um pai bom,
mas eu era muito rebelde. Eu era esportista. Tipo, meu treinador morreu, aí eu
fiquei abatidinho. Ninguém substituiu ele. E aí eu andava com uma galera meio
negativa, esses cara meio assim. Aí passei pro tráfico Aí me fez chegar até
aqui.

Bernardo relata:

Bernardo: eu sou cristão, sou cristão, só me dá essa moleza de vez em quando


que é de roubar, quando tem uma briga na minha família, meu pai briga com a
minha mãe, porque meu pai e minha mãe são separado. Eu desde pequeno
queria ser jogador de futebol, pô, depois começou a brigar na minha família,
meu pai me levou pra morar em área de tráfico de drogas, e acabou, virei
traficante. Aí comecei a traficar, traficar, depois me ensinaram a roubar, fui
126

roubar. Aí fiquei roubando, botando monte de dinheiro no bolso, depois que tu


rouba a primeira vez, se torna vício
[...]
Eu vou terminar meus estudos já, tem vários cursos na pista, manutenção de
computador, soldador, eletricista, mas dá pra entrar numa base, já, que lá fora
tá difícil pra caraca arrumar um trabalho. Aí eu fico nessa, entre aqui, entre ali,
to vendo agora pra ver na pista, pra me não precisar da ajuda da minha família
na pista, também
[...]
Eu tive esse problema com droga, sabe? Assim, que, brigava com a mulher em
casa, me afundava na droga mesmo, chegava lá, fumava muita maconha, muita
cocaína, aí ficava depois “pô, vou entrar de novo no tráfico de drogas”, aí os
cara, pô, aí “pô, mano, vou entrar na boca de novo”, aí, pá, entrava na boca de
novo, ficava armado com os cara, fazia meu trabalho.

Sobre o que é mais interessante na vida do crime, Adán aponta:

Adán: não, tipo assim, vida do crime, nós acha, tipo, nego acha que com arma
na mão é diferente, tipo, eu não sou diferente só porque eu to com arma na
mão. Se eu não to com arma na mão, eu sou do jeito que eu sou. Tipo assim,
nego se acha, se acha assim, tipo assim, tá com arma, aí passa várias mina e
aí “ah, as mina vai perder pra nós”. Tipo isso, nego entra pro crime, pá, e pensa
isso, que as mina vai perder pra ele só porque ele tá na boca, só porque vai ter
um montão de dinheiro, só porque tá cheio de pistola, só porque tá dando tiro
em polícia, só porque mata pessoas pensa que mina vai perder. Mas tem umas
minas que perde mesmo pra Bandido, que quer ficar mesmo com Bandido,
porque, como, tem dinheiro. Tem mina que só fica com o cara por causa de
dinheiro

Nesse contexto, a ostentação oferecida pela “vida do crime” vem superar a


própria dignidade, pois, como sinalizado por Bernardo,

Bernardo: dinheiro é tudo, filha. No Rio de Janeiro, o dinheiro é tudo.


Jimena: o que você faz com esse dinheiro?
Bernardo: ah, eu invisto pra mim, pra minha ostentação, é roupa, roupa de
marca

Como apontado por Gary Barker,

vivendo em economias de consumo, esses jovens são preferencialmente


visados por campanhas publicitárias de massa. Neste sistema obtuso, quase
sempre faltam aos jovens de baixa renda os meios legítimos de adquirir aqueles
mesmos bens que o bombardeio publicitário os induz a desejar (BARKER,
2008, p.17).
127

Isto não significa equiparar a pobreza – ou a juventude, ou a masculinidade- com


a “vida do crime”, pois nem a ilegalidade, nem a ostentação, nem a violência, nem a
reificação da masculinidade são próprias desses jovens. É importante assim não
reforçar a imposição de uma lógica explicativa de um certo destino irremediável de
gênero, raça, geração, classe social e localidade, uma premonição das razões para
entrar no crime (RAMOS, 2011) ou uma “determinação (econômica) do crime”
(ZALUAR, 2012, p.328).
Silvia Ramos (2011) tem insistido na heterogeneidade das trajetórias criminais,
considerando que nem sempre os repertórios correspondem aos motivos esperados.
No CAI, um jovem chegou a falar para Bárbara que ele tinha estudado em escola
particular e que ele não tinha entrado no tráfico por necessidade, mas porque “quis
mesmo”. Jorge Antonio relatou de que forma ele se “desandou de caminho apesar de
ter tido a oportunidade” de estar em escola particular. Já a irmã, segundo ele, nunca
desandaria do caminho,

Por causa que ela é mais inteligente do que eu, ela sabe e bota a cabeça pra
funcionar, aí ela como, tu acha que ela vai fazer? Ela vai construir uma casa,
que ela já pensa igual a essas mulher, como que se fala? Patricinha. Ela fala
“ih, vocês que gosta de roubar, nunca roubei, nunca vou roubar. E não gosto
que usa droga perto de mim”, ela falando. Ela falou “quero namorar nem tão
cedo, não tem pressa”. Ela é bastante inteligente

Como já foi apontado, a maioria dos jovens empobrecidos não se envolvem nas
facções, e estas comportam também, em outro tipo de funções e com mais ganhos,
pessoas que não necessariamente vão ser atravessadas pela repressão e a privação
de liberdade (ZALUAR, 2012). Contudo, isso também não significa negar que existem
certos mecanismos que se apropriam da precariedade e dos valores capitalísticos para
atrair e cooptar jovens93 (ZALUAR, 2004), segundo suas narrativas, a partir dos nove
anos, oferecendo o que uma sociedade desigual insiste em cercear. Frente a isso,
alguns jovens se aproximam, outros não, dobrando e desdobrando em políticas
comunitárias específicas e sendo submetidos a normas concretas que estimulam
valores capitalísticos e machistas. A exclusão, no entanto, se articula com as
instituição-forma subjetividade capitalística, assim como “a complexa engenharia

93
Existe inclusive a expressão “adolescentes explorados pelo tráfico”.
128

política da seguridade social e da precarização do trabalho que atinge diversas classes


de trabalhadores, mas não da mesma maneira nem no mesmo grau” (ZALUAR, 2012,
p.335).
Desta forma, parece relevante pensar como, nas relações sociais de exclusão
capitalística e de disputa de performatividades masculinas, ambas entrelaçadas,
operam as instituições que vão produzindo as subjetividades desses jovens, sempre em
relação com outras: homens jovens que não se envolvem, mulheres jovens que não se
envolvem, mulheres jovens que se envolvem, dentre outras. Nesse contexto, é
importante considerar a heterogeneidade de trajetórias e envolvimentos.
Por sua vez, as instâncias de poder estatal, com suas redes de violência, disciplina,
controle e tutela, mata ou captura alguns desses jovens através da sua
homogeneização, assim como outros que, atravessados pela injustiça social e racial,
acabam por erro sendo atingidos pelos corpos de segurança ou por instituições-
estabelecimento de privação ou restrição de liberdade, dobrando suas trajetórias. Cabe
assim “diagramar as relações de poder que atravessam a produção social de
masculinidades marcadas pelo fenômeno da violência; masculinidades que, quando
não morrem no espaço público, são encarceradas no sistema prisional” (SANTOS;
NARDI, 2014, p. 932).
Nesse sentido, é importante considerar como essas instituições-forma compõem a
processualidade da subjetividade desses jovens através de forças sociais, históricas,
políticas e econômicas que nos toca a todos/as modificar. Forças que fazem dessa vida
uma via possível de acesso ao que a nossa sociedade perversa insiste que é
necessário, como o dinheiro, mas também uma toma do poder de se definir, de
pertencer, de aparentemente ser dono de si, de encaminhar uma revolta a uma injustiça
de forma organizada, mesmo que a violência produzida com ela atinja a esses jovens e
a suas comunidades. Nessa análise, é fundamental considerar o atravessamento da
instituição-forma machismo, no momento em que o dispositivo de gênero é acionado
para construir trajetórias que ao mesmo tempo atraem os jovens e os sobrecodificam.
Nesse sentido, embora muitas vezes não articulando explicitamente o dispositivo
do gênero nas iniciativas, soubemos de tentativas de inserir alguns jovens do CAI, que
estavam interessados em cursos como agronomia, engenharia, roteiro e advocacia em
129

instituições de educação superior, e Gabi tem realizado esforços nesse sentido a partir
do trabalho no IFRJ, com uma unidade de semiliberdade que está próxima do seu
campus. Porém, muitas vezes, existe uma dificuldade para que os jovens se mobilizem
e enxerguem o estudo como algo significativo 94, dizem ser “longo demais”, e são
“seduzidos de novo pelo tráfico”, como apontado por um diretor.
Algumas tentativas são realizadas para promover “futuros dignos”, por exemplo,
promovendo, na medida do possível, que os jovens estudem. Um grupo de profissionais
no primeiro Curso relatou fazer atividades com os jovens nesse sentido, encenando
entrevistas de trabalho, e explorando históricos familiares, experiências profissionais
anteriores e expectativas de projetos de vida, buscando as potencialidades de cada
jovem. Também observamos um evento sobre socioeducação e mercado de trabalho
do CAI, onde o grupo de teatro “Nós do CAI” apresentou uma peça que, com a música
“Trabalhador brasileiro”, apresentava personagens como médico, jornalista, gari,
músico, executivo, e militar, o que nos fez pensar nos significados que esses empregos
podem ter para os jovens no espectro de masculinidade exercido nas vidas deles.
Alguns profissionais também apontaram acreditar que o futebol pode ser um
caminho para alguns jovens, e outro relatou ter organizado a visita de uma organização
evangélica de box, para oferecer referências de vida para os jovens. Nesse sentido,
também é importante pensar nos mecanismos para implementar essas ações no
cenário político, pois, por exemplo, a maioria das atividades recreativas do CAI eram
realizadas por ONGs, tais como oficinas de capoeira e de informática que, na crise
econômica, saíram do CAI, deixando apenas as atividades que agentes, docentes e
equipes técnicas poderiam desenvolver. Todavia, alguns/mas profissionais criticaram
essas ONGs, dizendo que eram utilizadas como desvio de recursos – assim como as
empresas terceirizadas – e que não ofereciam nenhuma alternativa para os jovens.
Algumas atividades profissionalizantes foram apontadas, como tosa e banho de animais
94
Podemos pensar no abandono escolar como uma experiência de exclusão e desigualdade em muitas
trajetórias juvenis masculinas, negras e empobrecidas. Em 2014 eu, Anna Paula Uziel e Tássia
Pacheco desenvolvemos um projeto em uma escola da rede pública do estado do Rio de Janeiro,
especificamente em duas turmas do Programa Acelera Brasil, que procura “devolver crianças e
adolescentes ao fluxo educativo normal”. Em vários momentos da pesquisa no Degase lembrei daquela
experiência, por isso acho importante trazê-la à reflexão. Lá, a maioria das crianças e jovens eram
homens, negros e de favelas próximas à escola. Sempre achei relevante que fossem os homens os que
parecem ter maior dificuldade de acompanhar o Sistema Educativo nas suas etapas normatizadas, ao
tempo em que se evidenciava a dificuldade de fazer da escola um projeto interessante para os jovens.
130

de estimação, elétrica e artesanato, e alguns casos de sucesso na integração de jovens


em projetos interessantes foram trazidos, mas foi destacada a falta de mais cursos, que
poderiam de fato ofertar alternativas aos jovens, deixando apenas alguns que nem
todos os jovens gostam ou que não potencializam suas habilidades e interesses. Carlos
Iván, quando perguntei se fazia alguma atividade no CAI, pois na pista ele costuma
dançar, ele disse que:

Carlos: faço elétrica, faço serigrafia. Só isso


Jimena: teatro não?
Carlos: não. Poderia fazer, mas eu queria coisa pra me dar uma continuidade.
Quero ter coisas que lá fora tem continuidade. O teatro, não tem como fazer,
não tem como ser ator, já fui preso. O pessoal é muito preconceituoso, sabe?
No exército, se eu for posso até passar, porque sei mexer em armas essas
coisa
Jimena: mas você gostaria?
Carlos: ah, pode ser. Mas assim, morando em favela e ser do exército, os cara
pode fazer várias merda

O engajamento em arte, cultura, educação e projetos profissionais, fomentando


atividades como artesanato ou desenho, que alguns jovens expressaram gostar, ou
teatro, que se mostrou como um potente espaço de discussão de temas como gênero e
sexualidade, ou ainda o curso de Promotores de Saúde, onde o processo de
aprendizado e comunicação se mostrou extremamente interessante 95 não é sempre
considerado importante por não ter um impacto concreto na vida profissional dos
jovens, embora os desdobramentos no CAI unidade, nas relações e na construção de si
dos jovens tenham desdobramentos extremamente interessantes a partir da
participação nesse grupo.
Por outro lado, alguns jovens envolvidos em práticas criminais chegaram a
expressar que o tempo no Degase os fez parar para pensar nas suas vidas e no que
queriam delas, enxergando possibilidades para além do “mundo do crime”. Neste
sentido, a expressão “cabeça de dentro e cabeça de fora” mostra que a passagem pelo
Degase os faz olhar para a vida anterior de outra forma, perspectiva que se mantém

95
Os jovens explicaram que o curso consistia em aulas sobre primeiros socorros e ISTs, entre outros
temas, e que foram direcionados pelas técnicas por serem “bons pra se comunicar” e por isso estão
sendo referência no CAI. A técnica responsável disse que ia entregar certificado por módulo, para lidar
com a rotatividade. O grupo começou com pouco mais de 10 jovens e no momento do nosso Curso
tinha sete.
131

nos relatos a seguir. “É bom ficar um pouco longe da rua, parar pra pensar um cado. Às
vezes caos da família é ruim, você ficar um pouco longe é bom pra você pensar um
cado também. Você sair, ou você morre, ou você volta pra casa de novo. É bom você
pensar assim”, “gostar da cadeia ninguém gosta, né? Mas gosto que aqui nós fica
guardado, se não, lá fora não poderia pensar muito também”. A palavra guardado
chama a atenção, nos remetendo talvez a uma proteção oferecida pelo encarceramento
e/ou a uma função de “depósito” e não a uma política de inclusão social (ABDALLA,
2016).
Quando, em entrevista individual, perguntado se ia conseguir voltar para casa
sem se envolver novamente no tráfico, Emiliano disse que “tipo assim, eu falo, eu não
sou obrigado a ficar nessa vida. Eu não sou obrigado a ficar nessa vida. Eu só vou
falar, não quero mais essa vida”. Em uma atividade em grupo, onde os jovens
desenhavam um personagem e inventavam uma história para ele/a, criaram um homem
e, em um momento, Benjamín sugeriu desenhar uma tornozeleira, pois ele já tinha sido
preso. Christian Tomás (17 anos, negro) rebateu, dizendo que ia “estragar ele” e
decidiram não colocar, mas incluíram na história que esse cara, na adolescência, tinha
passado pelo Sistema Socioeducativo, se envolvendo em latrocínio porque era viciado,
tinha ficado detido três anos, dos 15 aos 18, e “saiu de lá com a cabeça modificada e
deu um outro rumo na vida”.
Também escutamos frases como “hoje sou criminoso, mas vou mudar de vida”,
“o crime é uma ilusão” e observamos o grafite do pátio “É hoje que você vai mudar a
sua vida”, nesse mesmo tom. Nas nossas conversas posteriores, Gabi constantemente
se interrogava de onde vinham essas expressões, ao que discutimos que podia ser
uma combinação de eles acharem que era isso que queríamos escutar, de acreditarem
que nós tínhamos algum tipo de influência no relatório, de serem frases que
constantemente se repetem na instituição-estabelecimento e/ou deles desejarem isso,
sendo esse projeto possível ou não. Outros jovens já expressaram abertamente que ao
sair do Degase vão continuar nas facções. Teve um especialmente que me marcou, em
entrevista individual, quando falei “você era de qual facção?” e ele respondeu “sou do
CV”, me corrigindo.
132

2.4 As facções: entre famílias, inimigos e códigos

Na relação com as drogas, podemos pensar no que Orlando Zaccone (2011)


aponta a partir da pesquisa de Vera Malaguti Batista no extinto Juizado de Menores, a
respeito de dois paradigmas distintos frente à relação entre jovens e drogas: os de
classes médias são enxergados a partir do paradigma médico, enquanto aos jovens de
classes empobrecidas e/ou periféricas se aplica o paradigma criminal. Carolina Grillo
(2008) aponta as diferenças entre as atividades de comércio de drogas ilícitas entre
moradores das favelas, considerados “traficantes” ou “bandidos”, e os moradores “do
asfalto”, os “playboys”, que são lidos como “empreendedores” ou “passadores de
drogas”, os quais, para o imaginário de grande parte da sociedade, têm possibilidades
muito maiores de “ressocialização”. Também foi apontado por um profissional que os
jovens de classe média que são apreendidos por tráfico não são menores de idade96.
Como apontado por Orlando Zaccone (2011, p.13), “inicialmente o Estado define
em lei as condutas consideradas como crime, para, imediatamente após, selecionar as
pessoas que irão responder por esses fatos”. O autor sinaliza de que forma a
seletividade punitiva se configura na “opção política do Estado ao tratar da maior
demonstração do exercício de poder a sua disposição, ou seja, o encarceramento”
(ZACCONE, 2011, p.15). Neste processo, a “criminalização primária” é exercida pelas
agências políticas – poder legislativo-, enquanto a “criminalização secundária” constitui
uma “ação punitiva sobre pessoas concretas” (ZACCONE, 2011, p.16). Assim, “em se
tratando de segurança pública, não são os índices que determinam a política, mas a
política que determina os índices” (ZACCONE, 2011, p.17).
A maioria dos jovens que entrevistamos fazem parte de uma ou outra forma das
facções do tráfico, majoritariamente o CV, como já dito.

Abel: Você sabe a história do Comando Vermelho?


Jimena: não, me conta

96
No entanto, também observamos que os jovens em situação de rua tendem a ser acusados por
cometer infrações menores, ficando na Provisória e, quando chegam na internação, são discriminados
pelos outros, pois ser “cracudo” é considerado uma fraqueza, geralmente não aceita pelas facções.
133

Abel: a história do Comando Vermelho foi assim: em 1968, teve uma quadrilha,
não sei se você já ouviu falar na Falange Vermelha. Essa quadrilha foi
97
Rogério , Marcinho, todo mundo. Nisso tudo que aconteceu, foi criada, Rogério
foi preso, aí disso tudo criou o Comando Vermelho, a facção
Jimena: dentro da prisão?
Abel: dentro da prisão. Disso saiu o Comando Vermelho pra fora, aí, tipo assim,
aí nisso tudo, criou, aí veio outra facção, TCP, Terceiro Comando Puro. Depois
veio os Amigos dos Amigos, que foi o Paulo, o Weslley, o Linho e o Celso, os
três irmão que criou. Aí disso tudo, criou essas facção, criou tudo, veio isso aí,
aí veio Família do Norte, aí veio PCC, tudo isso aí foi criado agora. Aí depois
veio, não sei se você ouviu falar do Fernando Beiramar, do Marcinho VP, do PL,
do morro do Chapadão, do Fu, da Mineira, o Ericson motoboy da Nova
Holanda. Tudo isso aí, ô, no caso de Belford Roxo, como subiu, vamos botar,
Nova Holanda, Jacaré, Manguinhos, Chapadão, Chatuba de Mesquita, Borel de
Mesquita, Penha, complexo da Penha, complexo do Lins, Lins, Mangueira,
Pavuna. Tudo isso aí é Comando Vermelho. Agora Pedreira, Rocinha,
Mangueirin, nós ainda tem o Pavão Pavãozinho que é nosso, o PU, tudo isso aí
é uma grande família, o Comando Vermelho. Aí do TCP tem Sapateiro, tem a
Torre, vários morros aí. Então são muitas comunidades envolvidas, sabe?
Porque no Rio nós somos favelado, somos pobre, somos humilde.

Bernardo fala sobre sua vida na facção:

Jimena: e você gostava mais, de ficar na boca, ou de roubar?


Bernardo: pra mim tá nos dois, filha, ganho dinheiro nos dois
Jimena: mas fora do dinheiro que vem depois, o que você sentia nos dois? Qual
era mais fácil, mais difícil?
Bernardo: ah, pra mim roubar é mais fácil, sabe? Porque tráfico de droga é
muita polícia que vem atrás de tu pra querer te matar, aí quando te pega você
tem que pagar dinheiro aí de arrego. Arrego é dinheiro nosso do tráfico de
droga que tem que pagar, porque o certo do policial é levar nós preso, mas o
policial pede arrego. Arrego que é pra soltar nós, ele pega, a gente paga e ele
solta nós, sabe? Policial corrupto
Jimena: isso aconteceu muito contigo?
Bernardo: já fui solto várias vezes, já dei cinco mil, seis mil, pra te soltar. E
dependendo do que tu for. Se tu for vapor, vapor da boca é só droga, que
vende a droga. O gerente é aquele que abastece. E o frente é aquele que olha
a favela, o dono mesmo é o que tá preso. A bolsa de carga foi 700 reais, 100 é
do gerente, 100 do frente, 50 meu que eu passo a carga e o resto é do patrão, o
que sobra é do patrão
Jimena: e quem é o patrão?
Bernardo: é o que tá preso
Jimena: ah tá, patrão e dono é o mesmo. E o soldado?
Bernardo: soldado? Soldado somos nós, que tamos ali passando a carga,
roubando
Jimena: e radinho é outro? Ou é o mesmo que o vapor?
Bernardo: o radinho é a atividade da favela, é o coração da favela, sem o
radinho, filha, não dá pra nós botarmos o fluxo pra andar, sabe? Atividade olha
a favela também

97
“Rogério Lemgruber foi considerado a principal referência na organização do Comando Vermelho
dentro do presídio da Ilha Grande, entre aos anos de 1960 e 1970” (MATTOS, 2016, p. 12).
134

Ao fazer parte das facções, em algumas ocasiões nomeadas pelos jovens de


família, eles confiam em uma reciprocidade, arriscam suas vidas, tendo como inimigos
que devem ser eliminados não só a polícia, mas também os alemão – integrantes de
facções rivais– e grupos como as milícias, gerando violências severas entre eles e nos
territórios que ocupam e disputam. Ao perguntar ao Adán quais eram os piores
confrontos, ele disse:

ah, ehh, pra mim o pior é os alemão, que se te agarra eles matam mesmo,
milícia também, polícia não, polícia, como, já prende, já leva preso. Mas eles dá
tiro, se matar matou, e se eles nos dar tiro, só nós não vai dar tiro? Nós também
tem que dar tiro”.

Já Carlos Iván apontou que “é mais difícil com polícia, porque polícia já é
treinado, facção vem os malucão que dão tiro pra todo canto”. Jesús (17 anos, negro)
disse:

Gabi: você assaltava e era da boca?


Jesus: é, eu assaltava e era envolvido, roubava pros caras da boca
Gabi: você roubava e vendia pra eles?
Jesus: é, roubava ouro, roubava carro, esses negócio. Aí mudei pra boca.
Gabi: aí você parou de assaltar e foi trabalhar na boca?
Jesus: é, fui trabalhar na boca. Mas também de vez em quando eu voltava a dar
uma roubada
Gabi: é mais perigoso roubar ou trabalhar na boca?
Jesus: roubar
Gabi: porque?
Jesus: porque roubar, você tá indo pra rua, e na rua tem um montão de polícia
e um montão de gente que se tiver que apertar, tu vai apertar. Mas também não
ia muito despreparado não, eu sempre ia bem armado
[...]
Jesus: é muito difícil rodar no tráfico, lá em XXX não roda não
Gabi: não entra?
Jesus: entra, mas não roda na boca não, só morre mesmo. Lá a polícia não
pega pra levar preso, mata
Gabi: não leva ninguém preso?
Jesus: não, levar leva, muito difícil, é mais fácil ver gente morta do que presa. O
policial falou uma vez também pra mim, com rádio, que a gente ficava muito
com rádio de lá, pegava operação, pegava atividade, aí falou pra mim que se
me pegasse não ia me levar preso não, ia me matar. Eu falei “ah, tranquilo
também, se eu pegar vocês, não vou deixar ir embora não, vou matar também”

Jhosivani disse ter medo de ambos os confrontos, pois “com os dois de qualquer
forma você pode morrer. Mais da outra facção, porque polícia, dependendo de qual
135

polícia se eles vão te prender, ou te balear, ou te levar pro hospital. A outra facção não.
A outra facção mata logo”.

Jimena: quando você foi liberado porque pagaram ao policial, você não ficou
devendo pra facção? Eles não te cobraram isso?
Jhosivani: não
Jimena: porque você acha que eles pagaram tão tranquilamente?
Jhosivani: ah, aí não sei. Que, tipo, se você for preso, você tá aí tipo supondo
que a pessoa tá no morro, tá envolvida, aí ela roda com arma, com droga, se
ela for presa ali, porque de repente a polícia entra na favela, a pessoa for presa,
e na favela a pessoa não vai pagar, tipo que ele tá dando praticamente a vida
dele pela comunidade dele e tipo que não tem direito de cobrar...

Desse modo, alguns jovens relataram não fazer parte da estrutura propriamente
dita, mas vendem o que roubam à facção. Assim, a facção controla tudo que acontece
e em algumas ocasiões protege os seus. A maioria desses jovens costuma ocupar os
cargos mais baixos, como vapor ou radinho. Outros já ocuparam vários cargos, como
Emiliano:

Gabi: você começou a se envolver no tráfico com quantos anos?


Emiliano: 11 anos.
Gabi: Tu fazia com 11 anos no tráfico?
Emiliano: atividade
Gabi: rádio?
Emiliano: isso, depois eu fui crescendo. Subi pra vapor, depois, como, fui pra
abastecedor, de abastecedor já fiquei de gerente
Gabi: chegou a gerente?
Emiliano: uhum.
Gabi: quando você rodou já era gerente?
Emiliano: não agora

Igualmente, mesmo que muitos dos jovens que conhecemos informam estarem
em alguma facção do tráfico, alguns entraram ao Sistema Socioeducativo por furto, por
roubo de carga, por 157 (assalto a mão armada), por assassinato ou por crimes sexuais
– estupro ou abuso de vulnerável. Alguns entraram por terem sido acusados por outras
infrações, mas faziam parte das facções, e alguns também relatavam estar ali por erro
ou por infrações cometidas anteriormente, apesar de ter saído dessa “vida” antes de
serem apreendidos. Assim, “através de distintas redes de tensionamentos, o sujeito
criminoso é produzido por um modo de subjetivação que o situa em um mundo à parte,
136

no avesso da norma que produz o cidadão de bem” (DOS SANTOS; NARDI, 2014,
p.934).
Orlando Zaccone resgata quatro fatores apontados por Augusto Thompson na
criminalização: “a visibilidade da infração; a adequação do autor ao estereótipo do
criminoso construído pela ideologia prevalente; a incapacidade do agente em
beneficiar-se da corrupção ou prevaricação; e a vulnerabilidade à violência”
(ZACCONE, 2011, p. 18).
Bernardo não foi o único jovem a relatar a prática de nítida corrupção por parte
da polícia98, às vezes plantões inteiros que solicitam dinheiro não apenas para liberar
as pessoas, mas para não entrar mais nas favelas.

Jimena: qual você acha que é a regra mais difícil de seguir no tráfico?
Felipe: ahh, na hora do aperto, quando a polícia chega, entrar na porrada. Eu já
entrei quatro vez. Já tive ponta de fuzil na costela. Tem que bancar
Gabi: você nunca entregou?
Felipe: nunca. Entrava no acordo: “olha, você vai liberar um dinheiro pra mim,
mais tarde vou vir aí, se não quando eu te pegar, eu vou te quebrar”, “ah,
tranquilidade, pode vir mais tarde, o dinheiro vai estar aí”
Gabi: dessa vez que você rodou não teve negociação?
Felipe: não
Gabi: mas você ofereceu?
Felipe: cheguei a oferecer foi mil reais por policial, porque eu só rodei com
rádio. “O senhor não pode me liberar não?” “Não trabalho pra isso, não sei o
que”. Aí eu falei “pode me levar” e aí foi e me levou.

Apesar da entrega dos jovens à facção, arriscando suas vidas, usando seu
dinheiro ou assumindo penas, como sujeitos homens99, e da aposta do reconhecimento
por parte da facção sobre seu empenho, os que estão nos baixos cargos da
organização não são considerados merecedores de um investimento financeiro para
serem liberados e, inclusive, sua ausência nem é percebida ou investigada. Como
apontado por Orlando Zaccone, “o sistema penal revela assim o estado de
miserabilidade dos varejistas das drogas ilícitas [...], alvos fáceis da repressão policial
por não apresentarem nenhuma resistência aos comandos de prisão” (ZACCONE,

98
Carla Mattos relata como, na Maré dos anos 90, o clima aparentemente calmo se tornava violento com
“as frequentes incursões policiais para sequestrar traficantes. O valor exorbitante que os policias
exigiam para o resgate de um traficante o transformou na mercadoria mais valiosa desse mercado de
extorsões. Quando isso acontecia, todos os comerciantes eram obrigados a contribuir” (2016, p.5).
99
Esta é uma expressão bastante presente no Degase e que será explorada no capítulo 4.
137

2011, p.12). Estes varejistas são considerados “bandidos de 3ª classe”, e é sobre eles
que “recai a repressão punitiva” (ZACCONE, 2011, p.22), são os “acionistas do nada”,
expressão que o próprio autor utiliza no título deste seu livro.
Silvia Ramos, no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana, sinalizou
outras mudanças, apontando que no contexto atual do Rio de Janeiro, o tráfico aparece
cada vez mais armado, mais letal e mais flexível nas relações trabalhistas. Nesse último
ponto, também observamos algumas trajetórias distintas às comumente adjudicadas
aos jovens que participam das facções, tais como continuar na escola – incluindo o
ensino médio – e ter trabalho de carteira assinada, embora a maioria se afaste dessas
atividades. Como apontado por Carolina Grillo no Ciclo sobre Violência, Política e
Sociablidade Urbana, mesmo que as facções no Rio de Janeiro tenham nascido
inicialmente como coletivo, elas têm se individualizado na busca do bem de alguns, não
mais da comunidade, mesmo solicitando uma fervorosa devoção dos que dela
participam. À atitude dos jovens de fazerem luto pela morte de algum integrante da
facção deles100 –que consiste em pôr a televisão em baixo volume e estar em silêncio à
noite no alojamento, uma profissional mostra sua indignação: “eles não estão nem aí
para vocês. Vocês são para o tráfico como copos descartáveis, que a gente usa e joga
fora”. E comenta sobre Rogério Lemgruber, um dos fundadores do CV, que chegou a
conhecer.

era uma outra cabeça, uma visão muito diferente do tráfico, se o Rogério
conhecesse algum menino desses, ele ia expulsar do tráfico, porque são ideias
totalmente conflitivas. Hoje em dia há uma glamourização das facções pela
mídia e pela sociedade, por isso acho errada a abordagem desses programas
que eles assistem. A mídia não devia nem citar o nome das facções, que isso
101
dá moral errada para eles .

100
Com este movimento podemos pensar na porosidade dos muros das unidades socioeducativas, que
faz tanto que os jovens fiquem sabendo do que acontece Fora, quanto que suas condutas sejam
levadas para a facção. Esta deferência pode ser fruto de medo e/ou respeito, dentre outras motivações.
101
Antonio Rafael Barbosa destaca papel da mídia no caso do Rio de Janeiro: “comumente, quando os
meios de comunicação veiculam matérias sobre o tema, estas versam sobre a violência desmedida e a
produção do caos urbano associadas diretamente à presença dos bondes de traficantes nas vias
públicas e às guerras do tráfico pela tomada de territórios, nas áreas mais carentes da cidade, morros e
favelas”, incluindo uma “avaliação moral de fundo, presente nesses blocos de imagens e discursos,
nesses pacotes de notícias vendidas com uma certa regularidade para todo o Brasil” (BARBOSA, 2006,
p. 120).
138

Outro profissional que está há muitos anos no Degase sinalizou diferenças


históricas no funcionamento das facções, dizendo que antes “o tráfico não pegava
menino novo e tinha uma questão romântica de dar aos pobres”, enquanto agora “é
mais aguerrido” e “tem uma pressão ao consumismo muito grande, além da
exacerbação da violência”.
É importante também considerar as práticas autoritárias, despóticas e violentas
de alguns patrões, que punem severamente quem comete falhas, tais como “derramar
na boca”, que em palavras de Adán, “é, tipo, cheirar os pó tudo, cheirar os pó do cara
tudo. É o que eu fiz, isso. Aí, como, saí voado, não falei com eles. Saí voado com o
dinheiro, com tudo”, o que fazia com que não pudessem voltar a suas comunidades, os
colocando em uma situação de maior risco e desamparo, diante do qual a própria
unidade virava um espaço seguro, mesmo que violento, como no caso de Adán:

Adán: não sei quando vou sair, por causa de um negócio lá na pista, da boca,
derramei uns cara da boca, aí como, os cara quer me matar, aí tô aí mó
tempão, por isso perdi esse tempo todo.
Jimena: você acha difícil ficar aqui?
Adán: ah, achar difícil, eu não acho difícil não, até é bom pra mim, porque eu tô
correndo muito perigo, tô mais seguro, tô mais seguro, porque, como, eu tô
correndo perigo. Pra mim até é bom, mas ficar muito preso, pô, mó tempão
preso, sem andar na rua, não dá não. Tem vários menor chegando, vários
menor indo embora, e eu ainda aqui.

Adán aponta que ele mesmo passou visu ao chegar ao CAI sobre o que tinha
acontecido na pista, para evitar comunicações alheias a ele e tomar as previdências
necessárias de separação do convívio. Por sua parte, Bernardo relatou que “eu mudei
de facção, foi assim, eu levei várias armas, sabe? Pulei de facção com várias armas,
pode até ser que os caras queiram desenrolar comigo, mas já fui de outra facção, é
mais, é difícil dos cara me aceitar de novo, mas se eu estiver disposto a pagar o que eu
roubei pros cara, é capaz de eu voltar”. Como apontado por Carla Mattos, “dar derrame
na boca” é “quando alguém é considerado incapaz de arcar com as dívidas adquiridas
em compras de drogas” (MATTOS, 2016, p. 12). Desta forma, o que pode ter
acontecido no caso do Adán foi uma impossibilidade de demonstrar que poderia pagar
sua dívida, diferente do caso do Bernardo. Depois de sair do CAI, Adán tentou voltar à
casa da sua família, mas rapidamente avisaram que ele seria morto, por isso teve que
139

sair e ir para um abrigo. Também soubemos de casos em que jovens foram executados
pouco tempo depois de saírem do CAI. Em uma ocasião, algumas profissionais
discutiam que de alguma forma alguns jovens acreditam que as facções esquecerão os
erros cometidos, ou acreditam serem capazes de fugir das cobranças.
Adán também relatou que uma ex-namorada que havia derramado havia sido
morta pela facção estando grávida, e Carlos Iván contou que a sua mãe foi morta por
erro, pois acreditavam que ela tinha roubado na área que não era permitida pela
facção, embora ela nem gostasse que o pai dele traficasse. Ele também relatou ter tido
que trocar de facção porque tinham confundido ele com outro jovem que tinha roubado
armas da boca e estava ameaçado de morte. Assim, a dureza e a flexibilidade das
ameaças, vigilância e punições estão sempre em jogo.
Destarte, a sensação de pertencimento e de dever às facções é perceptível em
vários jovens, mesmo com narrativas configuradas na performatividade masculina de
reafirmação de autonomia, tais como a do Cutberto, quando, na atividade em que
desenhavam um personagem, colocou um brinco na orelha do personagem e relatou
que quando era morador ele tinha um bastão na orelha. Eu perguntei se ele tirou o
bastão quando entrou no tráfico ou foi a facção que tirou, e ele respondeu “ninguém
manda em mim”.
Antônio Rafael Barbosa (2006) aponta que crime e Estado são espaços
relacionais em constante interação e que o controle bélico (militar) dessas relações é
territorial e agenciado como um conflito político. Nesse contexto, as pessoas
empobrecidas, especialmente os homens jovens e negros, são alvo e executadores
principais dos crimes violentos, quadro no qual o Estado tem um papel importante. Por
sua parte, as facções também são atores políticos preponderantes, ao serem
experimentações políticas de formas de criar política e sociedade contra o Estado que,
no caso do Rio de Janeiro, tem como mecanismo importante a demonstração da força,
como apontado por Carla Mattos no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade
Urbana, em atos violentos, incluindo a tortura. Também, como assinalado por Carolina
Grillo neste Ciclo, as facções atendem às dinâmicas do mercado. Douglas Silva, no
mesmo evento, ressaltava a importância de não naturalizar as facções como o “tráfico”,
no sentido já apontado, em que elas têm um escopo amplo de comércio de drogas
140

ilícitas, de controle de território e mediação e estratégias de expansão de território,


produção de conflitos, circulação e interações sociais.
Antonio Barbosa (2006) faz uma série de apontamentos fundamentais para
pensar o tráfico de drogas, dos quais resgato alguns para a nossa discussão. Primeiro,
“não existe um único tráfico de drogas no Rio de Janeiro. [...] O que temos é um
emaranhado sem fim de redes sobrepostas a outras redes” (BARBOSA, 2006, p.121).
Ele aponta três “novelos” na cidade, todos com pontos de contato, segmentados e com
características singulares no que tange a rentabilidade, riscos e mecanismos de
negociação: “o tráfico que chega e parte das favelas; aquele que se processa no
‘asfalto’ e que não passa pelas favelas; o que utiliza os portos e aeroportos da cidade
como locais de passagem para a droga que irá abastecer os mercados consumidores
externos” (idem). Vale lembrar: mesmo que os jovens negros e empobrecidos que
participam das facções sejam os mais visados pelo Sistema Penal e Socioeducativo,
não significa que milhares de pessoas de classes médias e altas estejam longe dessas
redes (ZACCONE, 2011).
Segundo,

o aspecto rizomático do tráfico. Por rizoma entenda-se a característica dessa


rede que permite que seja rompida em qualquer parte e volte a se refazer
rapidamente. Característica esta que o tráfico compartilha com formações
políticas que têm como norte um ativismo contra-Estado: penso especialmente
nos grupos terroristas. Impossível o combate a tais grupos por parte do
aparelho de Estado, uma vez que não existem centros de poder que possam
servir como alvos nítidos para as ações repressivas. Redes não têm centros. O
que possuem são nós, interseções que são flutuantes do ponto de vista
temporal. Ademais, a repressão policial só não é inócua porque se inscreve na
própria dinâmica das facções. Vê-se isso claramente quando da prisão de uma
grande liderança de uma facção. Tal acontecimento é comemorado com festa
pelos membros da facção inimiga. Cai o controle de um segmento como desaba
um trecho de uma estrada rodoviária: imediatamente se forma, ao lado, onde
for possível passar, um outro caminho, uma nova conexão. Porque a demanda
sempre vai existir e os lucros, enquanto a droga for ilegal, exorbitantes (apesar
dos riscos, apesar das perdas com subornos e corrupção) (BARBOSA, 2006,
p.122).

Terceiro,

o tráfico enlaça o Estado, cooptando alguns de seus principais operadores –


policiais, carcereiros, deputados, juízes etc. Quatro características, quatro
maneiras de se relacionar com o aparelho de Estado: imitação e concorrência,
141

para o primeiro caso; atravessamento e acoplamento. E todas elas nos


conduzem à seguinte assertiva: a complementaridade entre ambos é uma
condição necessária ao funcionamento do tráfico de drogas. O que chega a ser
um paradoxo: sem Estado, sem a política repressiva do Estado não poderia
haver tráfico de drogas. Não como o conhecemos, gerando tantos lucros e
102
tantas desgraças . (Devemos falar, então, de um poder tangencial ou
complementar, ao invés de “poder paralelo”, se insistirmos na nomeação dos
modos de poder). De toda maneira, o mais importante aqui é prestarmos
atenção nos efeitos discursivos embutidos no emprego de tais expressões,
principalmente a de “crime organizado”. Tais efeitos se deixam perceber no
reforço da “sensação de medo e insegurança” que vem ao encontro das
demandas e apelos pelo incremento de políticas repressivas (BARBOSA, 2006,
p.123)

Vemos aqui a Segurança, destacada por esse autor como uma “palavra de
ordem suprema no cenário atual” e comparada com seu uso durante a ditadura militar
no Brasil, quando se falava em “segurança nacional” (BARBOSA, 2006, p. 124).
Por fim, outro ponto interessante que ele discute é a ideia de que

os Comandos no Rio de Janeiro são organizações centralizadas, de aspecto


piramidal, com lideranças acima das chefias locais (donos de morro) a conduzir
os negócios do grupo como um todo. Falso. O que denominamos “Comando” é
um conjunto de alianças, especialmente das lideranças que controlam os
grupos em nível local, e um espaço de negociação permanente entre elas,
construído a partir das cadeias. A hierarquia existe, sim, mas fica restrita aos
limites territoriais de cada grupo. O dono, o patrão manda no seu morro, na sua
favela. Somente ali. Distribui os cargos, escolhe aqueles de sua confiança,
estabelece os contatos com os fornecedores (de armas e de drogas), cuida da
família dos amigos que estão presos, manda um fortalecimento para quem se
encontra no sofrimento, dentro da cadeia. Pode ser chamado a dar explicação
aos irmãos sobre algum fato ocorrido em seu território (uma vacilação grave do
seu pessoal). Para isso uma reunião é convocada e os amigos são chamados.
Para isso as cartas circulam para dentro e para fora das cadeias. Pode
esquecer dos que estão no sofrimento, e por isso ser chamado a dar alguma
explicação. Pode, em razão de um desvio muito grave ou em razão de não
conduzir a bom termo o jogo das alianças, ter sua liderança questionada e um
outro, mesmo um gerente de sua confiança, receber o aval do Comando para
tomar o seu lugar. Pode, por fim, perder o controle de sua área em razão de um
ataque direto dos alemães, de um Comando inimigo. Os casos são muitos,
mas, em resumo, podemos dizer que não existe uma hierarquia entre o grande
“corpo” dos Comandos e os grupos locais. Ataque e defesa de territórios são
sempre resolvidos mediante a composição de alianças eventuais, com o
conhecimento, sempre que possível, de outros donos de morro da mesma
família ou irmandade (o que representa como um mecanismo para evitar que as
disputas internas levem ao fracionamento do Comando) (BARBOSA, 2006,
p.127).

102
Zaccone também aponta que “o atual modelo repressivo acaba por realizar uma função de intervenção
no mercado. Os varejistas são retirados da competitividade do comércio ilegal, aumenta-se a corrupção
na periferia e concentram-se os lucros do negócio ilícito junto às atividades legais, responsáveis pela
lavagem de dinheiro obtido com o comércio das drogas proibidas” (2011, p. 25).
142

Destaco o carácter rizomático, poroso e mutável das relações dentro das facções
ou comandos e entre elas o poder público, que também não podemos considerar
monolítico. No entanto, me parece importante olhar de perto de que forma os jovens
que são foco deste trabalho vivenciam essas relações, pois mesmo observando sua
capacidade de negociação e de afirmação de autonomia, o discurso da hierarquia
apareceu frequentemente, especialmente na configuração política bélica atual da
cidade.
Uma forma de organização pautada por um corporativismo militar, também
sinalizada por Barbosa, em vetores que conferem às facções seu aspecto de
“organização”: uma “forma-Estado”, percebida “nos sobrecódigos (a ‘lei’ do tráfico) que
afetam significativamente a vida comunitária e em sua disciplina interna, em suas
hierarquias, em seu controle territorial” (BARBOSA, 2006, p.129), que são em grande
parte aprendidas na prisão, e no Sistema Socioeducativo, em um modelo composto por
um “polo empresarial”, descrito por Bernardo acima, e um “polo militar”, reificado na
produção do inimigo a ser eliminado e violentado, que compõe um “ethos guerreiro
faccional” (MATTOS, 2014). Nesse ponto, alguns jovens do CAI relataram ter executado
diversos tipos de tortura e violência letal, alguns deles expressando prazer nisso, o que
é considerado por profissionais um grande obstáculo no trabalho com os jovens, que “já
chegam violentos, reproduzindo essa lógica”. Outros jovens se referiram a essas
práticas de forma negativa.
Pensar no tráfico, assim como nas demais atividades criminosas, como
“atravessado por um ‘devir-bando’, com suas organizações, reorganizações e
capilaridades, põe em análise a fixidez com que muitas vezes olhamos para elas. Uma
afecção que une alguns indivíduos, dando existência a esta formação, durante algum
tempo” (BARBOSA, 2006, p.128) parece primordial para pensar sua mutabilidade e
rizomaticidade, assim como as contradições e paradoxos do “mundo do tráfico”
(RAMOS, 2011).
Vemos também uma “expansão discursiva do mundo do crime” que está
“intimamente ligada à intensificação do confronto armado entre facções rivais e à
institucionalização de um exército de combatentes” (MATTOS, 2016, p.2). Isso afeta
inclusive as relações amorosas e sexuais, como na experiência de Israel:
143

Israel: eu conheci ela esse dia e no outro dia ela já me ligou. Aí já tava na casa
dela. E sabe onde ela morava? Em XXX, lá nos alemão, eu nem sabia que lá
era alemão.
Gabi: e aí tu foi lá?
Israel: fui
Gabi: mas você ainda não era envolvido
Israel: não, não era envolvido, mas lá lançavam uns negócio assim, asa delta,
que dava pra ver que era de Bandido.

Ser um sujeito político é poder construir um lugar, se apropriar do espaço de


vida, uma “tática de poder que garante ao homem o lugar de macho” (DOS SANTOS E
NARDI, 2013, p.934), e as facções acabam sendo uma alternativa para essa
possibilidade103. Contudo, a violência se apresenta como o único meio para tal,
atravessando novamente essa apropriação104.
Assim, as facções e seus símbolos vão se imbricando nos territórios ocupados,
com a sociabilidade local e cotidiana, incluindo o uso de gírias que transpassam a
localização nas organizações. Por exemplo, no CV se fala “é nós”, “suave”, “prevalece”,
“trem bala”, enquanto o TC usa “a gente”, como apontado por Carla Mattos e por jovens
e profissionais do CAI.
É importante também pensar os processos de afastamento e aproximação de
práticas e grupos criminais, existindo uma variedade de formas de relação e códigos
das pessoas que vivem nos territórios ocupados pelas facções com essas
organizações. Os moradores – termo que identifica quem mora no território mas não é
envolvido, independentemente de serem oriundos ou crias – expressam emoções e
práticas variadas entre rejeição, tolerância, cumplicidade, apoio, participação ativa em

103
É importante considerar que existem outras alternativas apresentadas por coletivos locais que, por
exemplo, reivindicam o “direito à favela” como produção alternativa de cidadania. Para muitos
movimentos de favela, a pauta é “nem polícia, nem tráfico”, entendendo ambas instituições-organização
como produtoras de violência e sofrimento, incidindo conjuntamente nas condições de vida das/os
moradores/as de bairros populares (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON, 2014).
104
Carla Mattos chama a “desnaturalizar a pressuposição de que as favelas, submetidas ao controle
estrito da violência do tráfico de drogas, são, ao mesmo tempo, lócus e causa da ‘violência urbana’. Na
etnografia analisada, o que se vê é uma ordem específica, mas nunca desordem, tampouco caracteriza
o lugar do Estado ausente. Ao contrário, governos locais, de Jorge Negão a Andrezinho Moral, e
governos externos, entre facções rivais, incursões policiais e políticas de segurança pública, são
práticas relacionadas e partes integrantes de um mesmo ordenamento. Desse conjunto de relações é
possível compreender o descaso sobre as fronteiras relevantes aos moradores em torno da
implementação do 22º. Batalhão da PM na Maré. Nessa lógica, o confronto entre facções rivais e a
atuação dos Caveirões complementam-se, sustentando uma complexa rede ilegal de ‘mercadorias
políticas’ (Misse, 2010) e econômicas (Feltran, 2014). Esses distintos regimes coproduzem a ordem da
favela estudada, repercutindo no restante da cidade” (MATTOS, 2016, p.11).
144

vários níveis e formas, todas as quais podem mudar e não são sempre planejadas ou
desejadas (MATTOS, 2016; FONSECA, 2004). Ao partilhar o mesmo espaço – em
relações familiares, religiosas, de vizinhança, de estudo e de trabalho – as fronteiras de
convivência, negociação, proteção, amizade, tensão, conflito e violência não são
possivelmente nítidas (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON, 2014).
Como apontado por Patrícia Birman, Adriana Fernandes e Camila Pierobon
(2014) em etnografia realizada em um processo de invasão do tráfico a uma ocupação
auto-gestionária no Porto Maravilha, na relação entre tráfico, moradores e polícia,
“combates, alianças e formas de evitação variadas se sucedem, associando seus
atores e apagando suas diferenças em certos planos e/ou reforçando-as em outros”
(p.432). Elas observaram um

emaranhado de práticas, de grupos de atores e de formas de pertencimento


que se sobrepõe, se conflita e se associa. Assim, muitas das situações que
perfazem esse contexto produzem efeitos que envolvem diferentes graus de
opacidade, contradição e indeterminação (BURMAN; FERNANDES;
PIEROBON, 2014, p.432).

A partir da perspectiva de poder de Foucault, as autoras apontam como “Estado


e poder (ou poderes) não se configuram para Foucault, portanto, como esferas
unívocas, estáveis, fechadas, mas estão sempre permeadas por disputas,
reconfigurações, negociações e rompimentos” (BIRMAN; FERNANDES; PIEROBON,
2014, p.455).
Bernardo relata como existem diversas formas de ser Bandido, o que vai se
compondo em um cenário geográfico e histórico das movimentações políticas na cidade
e por tanto de subjetividades:

Vou te falar, tem Bandido de trinta e poucos anos, que o cara, como, o cara
chega como, o cara nunca rodou com a polícia, nunca deu mole, sabe? Anda
na dele de bonezinho, pá, ninguém sabe que ele é Bandido, só as pessoa
morador da favela sabe que ele é Bandido. Mas tem diferença, do Bandido que
gosta de... de zoar com morador, e tem Bandido que gosta de ajudar o
morador, Bandido que ajuda o morador, morador não dá pra polícia não, agora
105
os cara que quer oprimir morador, ah, morador é X9 e dá um papo com a
polícia. Eu sou o tipo de pessoa que mesmo na favela, sendo traficante, as
pessoa sempre me ajudou, filha. Morador sempre me ajudou, quando via a

105
X9 é delator.
145

polícia atrás de mim querendo me pegar, que, correr dos cana, sabe? Os cana
mesmo, correr dos cana. Aí desde esse momento que nós corre dos cana, filha,
morador sempre abre a porta pra nós.

E Jonas (17 anos, negro):

Jonas: eu não sou, mas tipo assim, minha mãe também não é envolvida com
nada, e sempre morou no morro, muito tempo
Gabi: mas ela não é do Comando Vermelho
Jonas: ela é do Comando Vermelho. Se ela mora numa área do Comando
Vermelho, tem que se dizer da facção que eu sou. Tem pessoa que nem eu,
preso, mas tem pessoa que não

Com estas falas, se vislumbram mais uma vez as tramas de poder na


micropolítica do cotidiano, onde ele se pulveriza, se condensa, evapora, machuca,
protege, se quebra e continua.
Por último, podemos entender a “guerra às drogas”106 como uma “guerra de
gênero em situação”, como apontado por Carla Mattos no Ciclo sobre Violência, Política
e Sociablidade Urbana, onde a demonstração da força é eixo importante da trama do
poder. Nesse sentido, é importante também considerar de que forma as facções são
instituições-organização dominadas majoritariamente por homens heterossexuais,
mesmo tendo mudado bastante ao longo dos anos, quadro descrito por vários jovens,
como Carlos Iván

Jimena: elas fazem as mesmas coisas?


Carlos: não. Toca. Sabe o que é, tocar?
Jimena: não, me diga
Carlos: tipo assim, ela coloca droga dentro da vagina, leva pros cara lá da
cadeia. Vende droga, também vende, só não dá tiro, essas coisa. Mas porta
arma

No entanto, também soubemos de casos de mulheres nos altos escalões das


facções, inclusive a mãe de um dos jovens que participou da nossa pesquisa, que está
atualmente presa, formando uma população carcerária feminina que tem crescido
exponencialmente nos últimos anos. Eles também apontaram alguns poucos exemplos

106
Nilo Batista (ZACCONE, 2011) nomeia essa guerra de “política criminal com derramamento de
sangue”. Orlando Zaccone discute essa política em termos das suas contradições no campo da saúde
pública.
146

de gays nas facções, e vemos cada vez mais casos de gays e travestis entrando no
Sistema Socioeducativo, como acontece no Sistema Prisional.
Para os jovens que fazem parte das facções, a entrada ao Degase é um
momento crítico da “vida de Bandido”, que acaba reificando de alguma forma essa
trajetória, pois “faz parte”, mesmo fragilizando esse lugar por ter sido pego e ter “dado
mole”. É interessante explorar, nesse sentido, de que forma as disputas das
performatividades masculinas acontecem tanto nas facções quanto nas instituições de
privação de liberdade, que em muitos casos se tornam lugares “onde as
masculinidades criminosas são aprisionadas, reiteradas e (re) produzidas” (DOS
SANTOS E NARDI, 2014, p.935), mas também driblando os códigos machistas e
cisheteronormativos. Assim, nem só pela geografia e pela topologia do tráfico o Degase
se pauta.
Um profissional que está há quase vinte anos no Degase apontou que o cenário
tem mudado bastante, pois anteriormente tinha menos jovens, “porque existia emprego
e porque o tráfico não pegava menor de idade, mas agora pega porque o gasto é zero
com menor”. Ele também apontou que “antigamente o Exército recrutava os
adolescentes aqui dentro, com formação técnica e trabalho garantido na saída. Hoje,
quem cumpre esse papel é o tráfico”, que faz “lavagem cerebral” e “passa a ideologia a
jovens que não são envolvidos e acabam se filiando”, “isto aqui é escola de Bandido”.
Uma profissional relatou o caso de um jovem que “foi pego só com radinho e veio fazer
escola do mal, a gente botou outro menino na sociedade, ele sofreu muito aqui, foi até
estuprado, e ele vai cobrar esse preço”.
Vemos assim uma expansão discursiva e prática do crime na instituição-
estabelecimento, aparelhado pelas facções e suas alianças, sendo atravessadas pelas
instituições-forma e forjando ou agenciando subjetividades generificadas. Como
apontado por Thiago Melício, nessa densa amarra de vida entre facções e Degase, se
produzem efeitos de sociabilidade juvenil. Ou seja, a regulamentação, a
deshumanização e o biopoder agenciam normas cristalizadas a partir das quais os
jovens, na angústia provocada por essas amarras, produzem táticas de sobrevivência.
Muitas vezes, as táticas vão ao encontro dessas normas, como uma forma de manter
certa estabilidade, apesar de serem elas que produzem sofrimentos e mortes.
147

Assim, o pertencimento às facções é percebido como estimulado pela instituição-


estabelecimento unidade socioeducativa, uma vez que organiza seus alojamentos por
esta divisão (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Assim, por sobrevivência, os jovens
devem aderir a uma facção, como foi constantemente questionado por alguns
profissionais, que insistem que os jovens deveriam ser divididos por idade, gravidade
da infração e compleição física, como previsto no artigo 123 do ECA. Várias/os
profissionais destacaram que o trabalho na Provisória é importante, já que é ali que “o
menino se torna infrator”, pois eles chegam ali sem envolvimento nenhum e é na
provisória que se articulam e transformam.
Assim, a passagem pelo Degase pode ser entendida como fluxo de
subjetividades, onde jovens profissionais e pesquisadores/as estamos em trânsito,
circulamos com maior ou menor liberdade pelos espaços, temos os nossos corpos
controlados no tempo, na burocratização, na judicialização e na precarização do
trabalho. E é por isso que parece relevante construir territórios de resistência.
148

3 A DOBRA QUE APREENDE

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA/BRASIL, 1990), gestado no


período de abertura do Brasil, no bojo da Constituição Federal, com participação
intensa da sociedade civil, distingue as instituições destinadas à infância e juventude
perigosas – sistema socioeducativo e à infância e juventude em perigo – sistema
protetivo. Reconhecendo a condição peculiar de desenvolvimento de jovens menores
de idade, encontra em cada estado uma solução para o encarceramento desta parte da
população que comete ou é suspeita de ter cometido ato infracional, despertando
experiências e debates que ora distanciam, ora aproximam as unidades
socioeducativas de internação e as unidades prisionais, pondo em análise a noção de
socioeducação e suas possibilidades e vontades de operacionalização.
O ECA trouxe inúmeras mudanças em relação às políticas públicas e sistemas
de atendimento relativos a crianças e adolescentes (ABDALLA, 2016), e com isso
apresentou múltiplos desafios. Apesar de ele ser um instrumento de transformação,
diversas instituições-forma atravessam o Sistema Socioeducativo no seu processo
histórico, tais como o racismo, o classismo e a docilização dos corpos e subjetividades.
Assim, no seu objetivo de trabalhar com sujeitos de direito (ABDALLA, 2016), nos
provoca pensar de que direito estamos falando e como ele se efetiva. O Movimento
Moleque, através da sistematização de relatos de familiares, considera que “quase tudo
o que está previsto no ECA não tem sido cumprido e, na verdade, ele é muito mais
violado do que respeitado” (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p.42). Igualmente,
elementos como gênero e sexualidade não são considerados eixos importantes de
serem trabalhados nesse processo transformador, cenário que observamos no campo
da educação de forma geral, com investidas fundamentalistas que visam proibir a
discussão sobre esses temas na escola.
Por sua vez, apesar do Sinase ser um documento extremamente interessante e
ressaltado nos cursos de formação de profissionais, elas/es e os diretores
constantemente apontaram a impossibilidade de cumpri-lo, expressando que ele existe
“só no papel”, às vezes se expressando de forma dramática, dizendo que vomitariam ou
149

rasgariam o Sinase. Por exemplo, foi apontado que não existe o número de agentes por
jovem que está estipulado, que o número de técnicos/as também é reduzido, que a
lotação não é respeitada, que o sistema não é regionalizado ou territorializado – por
exemplo, no caso do público do CAI, que deveriam existir unidades de internação em
Caxias, Nova Iguaçu, Queimados, Niterói, e na região dos Lagos – e que durante as
férias da escola os jovens não têm nenhum curso.
Se, na sociedade de forma geral, vemos uma passagem da sociedade de
disciplina ao controle, da punição à vigilância (FOUCAULT, 1979/2011), quando
adentramos o mundo das instituições de privação de liberdade, onde as normas da
disciplinarização dos corpos são o ápice do processo de desenvolvimento e
aprimoramento da economia do castigo (FOUCAULT, 1975), coexistem com os
mecanismos de controle, no momento em que estão conjugadas “a função disciplinar” e
a “diminuição do risco” (SEFFNER; PASSOS, 2016), condensada na instituição-forma
Segurança.
Considerando que ambos sistemas não apresentam uma tendência a se
extinguir mas, muito pelo contrário, crescem de maneira desenfreada, atravessando
cada vez mais vidas – dos jovens, das famílias, das/os profissionais –, cabe pensar
como eles acabam não só sendo atravessados por uma instituição-forma disciplina,
mas eles mesmos se constituem como seus vetores. Vemos, então, ao mesmo tempo
“máquinas enérgicas” das sociedades disciplinares (DELEUZE, 2008) e uma expansão
e continuidade do controle.
Assim, podemos observar

a mecânica do poder, [...] em sua forma capilar de existir, no ponto em que o


poder encontra o nível dos indivíduos, atinge seus corpos, vem se inserir em
seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua aprendizagem, sua vida
quotidiana” (FOUCAULT, 1979/2011, p.131).

Nessa dinâmica, sexualidade e gênero são dispositivos de controle e de


disciplina e produtores da subjetivação na instituição-estabelecimento, em uma lógica
onde a privação de liberdade implica uma privação de desejo, como Fernando apontou
em uma ocasião. Acreditamos que seja por isso que, mais do que invisíveis, os temas
gênero e sexualidade são difíceis de abordar no estabelecimento CAI, e portanto não
150

reconhecidos e velados, no momento em que mexer com eles acaba sendo tocar em
feridas de grande parte do corpo profissional e diretivo, ao acreditarem, da mesma
forma que setores crescentes da população, que modelos disciplinares de gênero e
sexualidade são necessários e mais pertinentes do que aqueles que propõem
liberdades e constroem alternativas de vida.
Em Foucault, o poder disciplinar está constituído por características básicas,
todas inter-relacionadas: a organização do espaço, o controle do tempo, a vigilância e o
registro contínuo do conhecimento. Neste capítulo, pretendo discutir de que forma estas
características, que podemos entender como dobras, se instauram no cotidiano do CAI,
constituindo-o como um terminal de poder em que observamos diferenças e
semelhanças complexas e maleáveis quando comparadas com o Sistema Prisional e
com outras unidades socioeducativas.

3.1 A dobra-organização-do-espaço: muros e porosidades

A primeira característica do poder disciplinar é a organização do espaço. Nesse


sentido, as separações dos corpos e a divisão Dentro/Fora aproximam unidade
socioeducativa e unidade prisional, o que nos provocou bastante a pensar no sentido
das porosidades e demarcações entre os espaços, especialmente no momento em que
a sexualidade é um dispositivo importante nessas delimitações.
Ainda assim, por se tratar de dobras, que podem se redobrar e/ou desdobrar de
acordo com as forças que atuam sobre elas, a separação entre Dentro e Fora, bem
como a separação entre alojamentos, deixa de ser estanque e permite pensar na
maleabilidade e na circularidade, embora exista uma insistência na ideia de que são
espaços totalmente diferentes107. Neste jogo de intensidades e forças, linhas duras
justificadas pela aparente fixidez da gestão de riscos e linhas flexíveis que escapam e

107
Em um exercício visual, pensando dobra e porosidades, podemos imaginar uma esponja que é
torcida, o que provoca que alguns poros se fechem mais e outros se abram mais.
151

movimentam, constantemente se cruzam e formam diferentes possibilidades de


produção de novos processos de subjetivação.
Destarte, é importante pensar quais as especificidades deste território e porque é
diferente do Fora, sendo que as pessoas, as hierarquias (masculinas) e as
comunicações continuam e também os constituem. Podemos pensar, por exemplo, que
apesar de que o estado de confinamento absoluto é uma dobra muito concreta, o
trânsito – físico e simbólico – na cidade, por parte de quem está Fora dos muros,
também pode ser muito limitado. Por um lado, pelos corpos estatais de segurança e
outras organizações armadas, assim como pelas tensões da cidade produzidas
permanentemente pelo racismo, o classismo, o sexismo e o adultocentrismo, auxiliadas
pelo deficiente sistema de transporte, que limitam de forma violenta a circulação.
Também, a dinâmica entre facções, marcada pela rivalidade, tem impactado a
mobilidade desses jovens e de todas as pessoas, desde meados dos anos 90, como
assinalado por Carla Mattos, limitando a circulação urbana para além da repressão do
Estado. Como apontado por Bernardo: “você tá dentro da favela, mas você tá preso ao
mesmo tempo, porque você não pode ir pra lá, não pode ir pra cá, não pode sair. É a
mesma coisa, tá preso”.
No que tange às comunicações, notícias são levadas e trazidas através de
televisões108, rádios e conversas com visitas e profissionais, tendo momentos em que
inclusive profissionais ficam sabendo de fatos das comunidades dos jovens através
deles, que receberam notícias das famílias. Igualmente, circulam substâncias de troca,
de controle e de afeto, tais como cartas e fotografias. As comunicações, cabe apontar,
mostram as porosidades não só de Fora para Dentro, mas também de Dentro para Fora
e entre unidades, através da lógica de transferências que “possibilita tráfego de
informações e, logo, a constituição de redes de fofocas e controles”, abrindo “caminhos
para o estabelecimento de redes informais de comunicação” (PADOVANI, 2015, p.4).
Luisa Bertrami D’Angelo tem focado na questão do Dentro/Fora de instituições-
estabelecimento de privação de liberdade, usando a visita como dispositivo, pois ela,

108
As tramas das telenovelas, por exemplo, são constantemente referidas nas falas dos jovens como
referências dos mais variados temas, incluindo transexualidade, racismo e violência de gênero.
152

enfim, faz dobrar o espaço, apontando para como, ao mesmo tempo, há uma
marcação entre o dentro e o fora da prisão e inúmeras comunicações e
misturas entre estas duas instâncias – como se diferentes narrativas espaciais
habitassem o pátio nos momentos em que as famílias encontram suas
familiares privadas de liberdade: há o mundo da rua, há o mundo da prisão, há
o mundo da socioeducação e estes mundos se misturam, produzindo uma
experiência que entrelaça diferentes espaços em um. Por isso a visita é um
potente analisador: por um lado, ela evidencia a condição de privação de
liberdade; por outro, é a própria efetivação dos movimentos comunicantes que
atravessam os porosos muros da prisão e da unidade socioeducativa, o que
deixa ver as forças e poderes, instituídos e instituintes, que constantemente se
atravessam, produzindo, às vezes, mais linhas duras que vão de encontro ao
instituído e, outras vezes, linhas mais maleáveis que se irrompem contra estes
poderes (D’ANGELO, 2017, p. 130).

Também parece importante discutir a porosidade entre o Degase, os presídios e


as facções, em um fluxo que transborda muros. Por um lado, como os jovens apontam,
seja da de maior, instituição-estabelecimento nevrálgico para as instituições-
organizações das facções, inclusive a origem de várias delas, especialmente do CV, ou
da pista, os patrões enviam informações e ordens para serem efetivadas nas unidades
socioeducativas109. Assim, escutamos relatos de proteções a certos jovens: “aqui
ninguém encosta a mão em mim, o chefe mandou dizer”. Também existem cobranças,
como apontado por Carlos Iván:

Carlos: tem coisas que aqui dentro nós segue a continuidade da pista
Jimena: tipo o que?
Carlos: tipo X9. Nós mata. Não pode X9. Bom, não mata não, eu não mato, os
cara mata aí

Isso acontece com outras falhas realizadas na pista, tais como roubos fora da
área permitida ou em ônibus – considerado errado por “roubar trabalhador”110, pular ou
trocar de facção ou derramar. Dentro do estabelecimento, as cobranças são realizadas
a partir de direcionamentos específicos das facções, cujas punições devem ser
seguidas rigorosamente, o que, caso não aconteça, também poderá trazer

109
Isto tem suas diferenças entre as unidades. Por exemplo, a greve geral convocada pelo CV nos
presídios do Brasil (https://oglobo.globo.com/brasil/presos-de-faccao-criminosa-fazem-greve-de-fome-
por-retorno-de-irmaos-em-penitenciarias-federais-22058869), atingiu algumas unidades socioeducativas
no Rio de Janeiro, mas os jovens do CAI não aderiram, segundo profissionais.
110
Jesús disse “eu fazia assalto. Roubava comércio. Nunca gostei de roubar esse negócio de ônibus não,
nunca achei maneiro, que talvez eu poderia encontrar minha mãe, podia encontrar meu pai, uma tia, um
tio, aí nunca gostei não”.
153

consequências sobre quem não atendeu a sentença de forma adequada, por exemplo,
provocando a morte do jovem, quando o que se pretendia era apenas machucá-lo.
Igualmente, os lutos por mortes de pessoas importantes das facções e as
mudanças nas relações entre elas geram subsequentes alterações nas separações dos
alojamentos. A instituição-estabelecimento, sejam os centros de socioeducação ou
penitenciários, vira um

espaço-tempo do encontro. [...] É a cadeia que fornece as amarras para as


pontas soltas, o espaço maior de negociação. Espaço estriado, espaço duro, de
sofrimento, espaço da aliança no sofrimento. Espaço da ‘forma-Estado’ [das
facções] (BARBOSA, 2006, p.130).

Ou seja, ao mesmo tempo, tal como apontado por uma gestora, o Degase “cria
acontecimentos para as facções”, pois os jovens, por exemplo, devem orientar os
chefes do que aconteceu nas suas passagens pelo Degase, incluindo as práticas de
masturbação, um dos nossos analisadores, como expressado por Bernardo: “ah, não
acho legal não. Chegar na pista e falar, tipo assim parar os outros comigo e falar ‘ah,
você tava preso, como que você ficou lá dentro lá? Nenhuma garota pra você fazer
sexo, o que você tava fazendo?’” e Abel apontou:

Jimena: e você acha que isso é normal?


Abel: é normal. Mas isso, isso, o ronca que comanda aqui, vem lá da de maior.
Tipo, a mulher quer me dar um pena, né? Tipo assim, tô na mancada na cadeia,
111
mando uma carta pro meu chefe , boto o menor pra subir pra de maior, aí o
menor desce da de maior pra cá, aí já traz a cartola, “ô, o chefe mandou baixar
ninguém, quem encostar tá fudido”. Quem encostar vai ter prejuízo. Porque eu
trabalho com o ronca, sabe?

Também, o envolvimento sexual e/ou amoroso com outros jovens, como


apontado Bernardo:

Bernardo: se eu falar pra você que eu nunca tive relação com homem, é
mentira, sabe? Mas tipo assim, deixar homem trepar atrás de mim, nunca deixei
não, que nem viado faz, não. Agora, tipo, como, o cara querer emendar, ou
querer que eu tivesse a relação sexual com ele, fazer penetração com ele, já
fiz mesmo, sabe? Mesmo assim, se eu chegar na pista, tem que desenrolar

111
Carla Mattos (2016, p.3)ressalta as “tanto as intimidações como as relações entre prestígio,
masculinidade e honra (Lopes, 2011; Mattos, 2014a) compõem as performances dos litígios mediados
por moradores e traficantes”, interações que também percebemos entre os jovens e seus superiores.
154

com meu patrão do tráfico de drogas que responde por mim na pista. O cara
sabe tudo que eu faço. Tipo assim, o cara na pista não sabe o que eu faço aqui,
mas eu tenho que orientar ele, sabe?

Por outro lado, em entrevista individual, Bernardo apontou: “o negócio aqui, é


fogo aqui na cadeia, sabe?”, sinalizando a especificidade da intensidade da instituição-
estabelecimento. Assim, estar Dentro e estar Fora destes estabelecimentos produz (e
exige) diferentes estratégias de existência. O confinamento deixa os corpos e as
relações tensos na política do cotidiano, ainda mais nas condições de hiperlotação e
infraestrutura precária – em condições de insalubridade.
Nesse sentido, as normativas relacionadas aos dispositivos de gênero e
sexualidade diferenciam de forma acentuada o Dentro e o Fora. As práticas sociais
pautadas nesses dispositivos se dirigem a corpos marcados pela privação de liberdade,
o que faz com que eles se atualizem como fortes instrumentos da engrenagem
institucional.
Por exemplo, um profissional apontou que quatro fatores característicos desse
estabelecimento exacerbavam tensões nas relações entre os meninos e as mulheres
profissionais: “a sexualidade dos adolescentes está aflorada, eles estão ávidos por
atenção e, como são adolescentes, eles querem se mostrar e glorificar com os outros, e
estão em situação de confinamento”. Nessa análise, ele expressa sua percepção a
respeito da forma com que geração, gênero e classe se dobram de forma particular
nesse espaço. Outro profissional apontou que “o confinamento, a pressão e a
vulnerabilidade dos adolescentes afetam a sexualidade”. Nessa lógica, se tem a noção
de que O Adolescente que chega no Degase é carente, sexualizado e busca aprovação
dos outros.
No caso das unidades masculinas, vive-se uma homossociabilidade ainda mais
intensa e frequente do que a vivenciada nas facções, produzindo uma disputa de
masculinidades.
Quando perguntei para Carlos Iván se não dava nem para conversar com jovens
de outra facção, ele disse:

Carlos: a gente conversa. “ah, pá, suave”, vende uns bagulho, pá, vende umas
coisa. Mas é só por causa do interesse mesmo, é só interesse, por causa que
amizade nada, nada, nada. Nada aqui fica de graça
155

Jimena: aqui e fora também?


Carlos: ah, fora é diferente. Fora os amigos são os amigos, não custa nada

Isto se articula com um endurecimento das linhas de gênero e sexualidade que


nos atravessam, como apontado por um profissional ao dizer: “você vai encontrar mais
tabus e mais dificuldades aqui do que em qualquer outro lugar”.
Nesse sentido, foi importante em vários momentos em que profissionais falavam
que os jovens e sua cultura “são muito machistas” e com “barreiras religiosas e morais”,
evidenciar que costumamos apontar como traços individuais quando não nos
reconhecemos como agentes de enunciação coletiva nessa sociedade toda machista e
cisheteronormativa, com contornos que seletivamente naturalizamos e instauramos nas
práticas institucionais. Mesmo que os mecanismos e estratégias específicas do mundo
do tráfico sejam identificáveis, as instituições-estabelecimento que se constituem como
terminais de poder fazem parte da cultura em que todas/os vivemos. Por isso é tão
importante explorar as especificidades dos grupos que fazem com que essas
instituições se reifiquem de forma capilar, quanto entender que a manutenção destas
tem implicações molares de exclusão social.
Durante o confinamento, o exercício da sexualidade ao qual os jovens estão
acostumados é restringido (ou suprimido). A discussão em torno da visita íntima, que
tomamos como um dos analisadores, visibiliza a dobra-organização-do-espaço, tanto
pelo fato de os jovens serem considerados carentes no confinamento, quanto pela
necessidade de viabilizar um espaço físico com características específicas para que a
visita ocorra mas, e também pelo fato de que, enquanto uma modalidade de visita, faz
reforçar a separação espacial entre o Fora e o Dentro, que, por mais que comporte
maleabilidade, inegavelmente sujeita os jovens a se verem privados daquilo que há
para além dos muros.
Também, fotos e cartas eróticas são proibidas e as roupas vigiadas, reguladas e
censuradas superam as moralidades da organização social da cidade, marcada sempre
por gênero, raça, classe, localidade e geração. Nesse quadro de um misto de controle e
disciplinarização, os responsáveis seriam agentes do Estado e das facções, assim
como os próprios jovens, com poucas chances de driblar essas regras. A questão das
roupas que, em palavras de uma profissional, “toma outras proporções”, é naturalizada
156

por algumas pessoas, não apenas como uma forma de manter a calma na unidade,
mas também como um símbolo de respeito. Outras vozes estranham esta conduta que
apontam não fazer sentido, alegando que “saindo da unidade, as mães vão ver vários
jovens sem camisa na rua”. No entanto, como apontado em um papel oficial pregado
nas paredes da unidade,

Não será permitido entrar nesta unidade pessoas com roupas curtas (acima do
joelho), decotadas, transparentes, justas, usando bonés, sapatos de salto ou
plataforma, cinto, piercing, brincos, prendedores de cabelo (rígidos), no caso de
calça legging, esta somente com blusa longa.

Em um dos desdobramentos do primeiro curso, que consistiu em uma


apresentação do grupo de teatro dos jovens, discutimos com eles essa temática.
Quando questionamos o porquê da diferença entre Dentro e Fora nesse aspecto,
Everardo (16 anos, negro) disse: “eu sei que na praia pode, na rua pode, mas aqui não,
porque aqui é cadeia”. Nessa afirmação, ele não estava apenas constatando a ordem
da cadeia, mas também estava apontando as diferenças entre o Dentro e o Fora, onde
a excitação pode ter variados rumos e desfechos.
Ainda sobre normas, agora referente à masturbação, um importante analisador
na nossa pesquisa-intervenção, Carlos Ivan apontou:

o negócio de que quebrar aqui dentro não pode. Lá fora não tem nem essa,
pode ser mãe de vagabundo, pode ser mãe de mãe, tu viu assim, quando você
quebrar em casa, ninguém sabe que tu tá... ninguém sabe que tu vai fazer, que
tu pode fazer. Lá fora as coisas não tem nem consideração. Aqui não, aqui é
diferente”. Bernardo apontou: “aqui, filha, aqui é cadeia, é fora do normal.

Em outro momento, um dia de visita familiar, mais um dos nossos analisadores,


quando estava andando com Adán para fazer uma entrevista, passamos pelo pátio, que
já estava cheio de famílias, e eu ia atravessar o pátio e ele disse que não, que tínhamos
que rodear para não passar na frente de todo mundo. Eu perguntei por que La Fora não
tem problema em ver os corpos de outras pessoas e ele falou: “na pista é diferente,
porque aqui é cadeia e o governo não deixa”.
Isto revela um momento da inflexão espacial do estabelecimento, que é
entendido como um lugar completamente diferente. Mesmo compreendendo essa
157

inflexão, permanentemente tentamos pensar até que ponto essa diferenciação é


naturalizada e não trabalhada como parte da socioeducação, o que não significa que
outras urgências de saúde e garantia de direitos além dos relacionados com o exercício
da sexualidade não sejam atendidas. Outra questão interessante é que existe uma
insistência em dizer que essas regras “já vêm de Fora, que eles não as inventaram”, o
que por um lado nos lembra das porosidades entre Dentro e Fora, mas também outorga
um caráter de imutável.
Essa lógica é presente também em profissionais, que reafirmam uma
impossibilidade em mudar as normas, mesmo que acreditem que algumas não fazem
sentido. Outras/os já concordam com elas, pois, por exemplo, “não se vai de bikini para
a igreja”, e consideram que as regras da masturbação realmente garantem o respeito
dos jovens pelas familiares dos outros. A situação velada e silenciada da sexualidade
também oferece conforto. A instituição-estabelecimento, dessa forma, legitima as
normas, implementando-as, como revelado na fala de Adán, “o governo não deixa”, ou
como apontado por Jorge Antonio, “a regra é, como, a cadeia aí, a cadeia é dos
funcionário e a regra é dos menor mesmo, que faz essa regra, os menor que me
contou. Até o diretor mesmo, acha que tá certa também essa regra, quebrar dia de
visita não pode”.
Desta forma, o Degase como instituição-organização, com vivências em
instituições-estabelecimento, pode ser entendido como uma dobra de instituições-
forma, uma inflexão, um contorno de experiências específico nas trajetórias não apenas
dos jovens, mas das famílias, das/os profissionais e das/os pesquisadoras/es, com
múltiplas direções, experiências e ângulos no que diz respeito ao corpo, à violência, às
performatividades e às moralidades. Em outras palavras, gênero e sexualidade se
configuram como um problema porque quando adentramos as discussões sobre o
desejo, a vida escapa às amarras e às tentativas de adestramento, mesmo as mais
violentas. Nesse contexto, Dentro, Fora e através, é possível identificar intensas
relações de poder entre pessoas e coletivos.
Nesse sentido, o gênero passa a ser parte de uma política de adestramento à lei,
em que os sujeitos são classificados, rotulados e segmentados no tempo e no espaço,
com a finalidade de preservar a ordem. Ele é usado juntamente a uma série de outros
158

instrumentos que pretendem ressocializar os jovens em cumprimento de medida


socioeducativa, marcando diferenças e lugares de poder.
No campo do confinamento, característica destes estabelecimentos e cujas
complexidades são imensuráveis, como apontado por Maynar Leite, o cárcere, e
podemos acrescentar, a unidade socioeducativa, se constituem como

dispositivo de poder que, sob pretexto de propiciar segurança pública, se


constitui numa opção política de segregação, num espaço no qual toda fluidez é
restrita, prescrita e proscrita, que se organiza e funciona mediante barreiras e
bloqueios naturalizados (p. 797) [...] o regime carcerário consiste em pessoas-
objeto naturalizadas como criminosas e inseridas em relações verticais de
conhecimento e poder (p. 798). [...] A organização carcerária atinge todos os
envolvidos com o aprisionamento, dificultando a formação de vínculos
lateralizados ao bloquear a circulação, o fluxo das pessoas, das informações,
dos sentimentos, dos saberes e dos afetos, inibindo a produção de vida e a
potência. Relações de poder/saber predominantemente enrijecidas e verticais
tendem a colocar a comunicação a serviço do controle, a propiciar
atravessamentos e a prescrever modos de subjetivação mais cristalizados e
individualizados (p.799) (LEITE, 2014, p.797-799).

Assim, a separação dos corpos nos espaços dentro da unidade, já referido no


seu mapa físico e nos meandros das disposições permitidas, carrega fortes significados
e regulamentações. A distribuição dos corpos constitui uma tecnologia de poder
disciplinar que, ao mesmo tempo que massifica, identifica, esquadrinha e se decompõe
“em categorias que materializam certas trajetórias de vida” (SEFFNER E PASSOS,
2016, p.152).

Os dispositivos disciplinares presentes nas instituições socioeducativas se


materializam nas práticas institucionais, isto é, nas técnicas de distribuição dos
adolescentes através da inserção dos seus corpos em espaços
individualizados, classificatórios, combinatórios: os alojamentos, a escola, o
pátio, o refeitório, os lugares demarcados em horários estabelecidos, sob
vigilância constante (ABDALLA, 2016, p.34)

A organização do espaço é “uma técnica de distribuição dos indivíduos através


da inserção dos corpos em um espaço individualizado, classificatório, combinatório, [...]
fechado, esquadrinhado, hierarquizado” (MACHADO, 1997/2011, p. XVII). No CAI,
vemos as categorizações do espaço, com delimitações de circulação dos jovens,
dependendo da infração, facção, localidade, “ritmo” ou apego às normas da facção,
número de passagens e falhas ou castigos percebidos pelo estabelecimento ou pelos
159

outros jovens. Porém, é interessante pensar que as classificações são tantas, que a
separação dos corpos que seria ideal para se adequar a elas não se efetiva diante da
hiperlotação, onde as classificações superam os espaços.
Na atividade de teatro referida, os jovens também apontaram que as normativas
referentes à separação dos gays e bissexuais fazem parte da “neurose de cadeia”112. É
interessante pensar porque mancões e Jack devem compartilhar o espaço no
alojamento seguro que poderia ser simplesmente por proteção, pois, como apontado
por um profissional de outra unidade “no seguro podem ser violentados por 6, mas na
coletiva por 20”. Mas também no sentido deles serem equiparados de certa forma no
que diz respeito a sua transgressão à masculinidade, fornecendo a justificativa da
necessidade interinstitucional da regulação e contenção do sexo.
A separação não se restringe ao alojamento, mas também de talheres e copos.
Um profissional relatou o momento em que um grupo de outra unidade socioeducativa
visitou o CAI, e quando os jovens da outra unidade perceberam que os jovens
assumidamente gays partilhavam os mesmos talheres e copos, eles apontaram que
isso era uma transgressão às normas, o que os jovens do CAI não sabiam. A partir
desse momento, em uma porosidade entre unidades, a norma do estreitamento dos
poros entre corpos foi instaurada.
As categorizações se expandem às/aos profissionais, principalmente às
mulheres – nos incluindo –, que vemos geralmente recluídas nas salas e pouco no
espaço comum, inclusive na hora do almoço, e com mínimas possibilidades de contato
com os jovens fora dos atendimentos e atividades e, portanto, com o cotidiano, como
apontado por Gabi. Algumas delas relataram não terem liberdade para ir no banheiro
em qualquer horário, e também serem constrangidas pelos agentes ao se aproximarem

112
Conceito central nas análises de Carla Mattos (2016), a “neurose” pode ser entendida como um conflito
ancorado na chave de uma polarização violenta. “Ancorada em situações, eventos violentos, sensações
e expectativas”, sensações como “adrenalina/ excitação, medo, ansiedade, estado de alerta e frenesi na
vizinhança” (p.6). Por outro lado, quem é “neurótico” é “perturbado” ou “nervoso”. “O entrelaçamento da
guerra e da paz produziu a neurose como incerteza e especulação cotidianas que inviabilizaram o
trânsito entre estas fronteiras indefinidas. A neurose como paz na guerra permanece sendo uma
ameaça à produção pacificada da ordem. A evitação e a institucionalização da neurose como visão
dicotômica entre a guerra e a paz” (p.8).
160

dos jovens em momentos fora dos atendimentos113. Como descobrimos no segundo


Curso, poucas conhecem os alojamentos. Igualmente, os agentes não entram na sala
da equipe técnica.
Nossa circulação também foi limitada, conseguindo conhecer os alojamentos
depois de mais de dois anos de CAI, e éramos frequentemente convidadas a esperar
as nossas atividades em salas fechadas, saindo dos espaços comuns. Também as
nossas aproximações fora das atividades com os jovens que íamos conhecendo ao
longo da pesquisa eram constantemente vigiadas, ao ponto de me perceber me
distanciando de grupos de meninos no pátio para evitar constrangimentos ao ver
alguém que tenha participado da pesquisa sem que eu pudesse cumprimentar. Já em
outros momentos, ignorava o receio da possível repreensão e os cumprimentava,
percebendo imediatamente uma tensão entre eles e os agentes.
Nesse sentido, parece pertinente pensar a particularidade e o desafio de realizar
uma cartografia em um estabelecimento deste tipo, pois “a cartografia enquanto
metodologia de pesquisa poderia ser considerada como um exercício ético da
possibilidade de ir e vir, ao passo que a prisão seria justamente o moralizante
impedimento para tanto” (LEITE, 2014, p. 795).
Assim, o Degase entra como um terminal de poder, saber e modos de
assujeitamento, forjando trajetórias juvenis por esse tipo de ação do Estado que, em
cenário de crise, aciona tecnologias para a pobreza, como apontado por Silvia Aguião
no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana. Tecnologias que obedecem,
nas palavras de uma profissional do CAI, a uma “afetação tirânica “que vai além das
comunidades empobrecidas, pois “estamos num contexto de extremismo, de fascismo,
de pessoas lutando por conservar as relações de poder, e que no Degase fica mais
evidente porque é um espaço mais restrito”.
Nesse sentido, as porosidades entre Dentro e Fora justamente atuam veiculando
códigos de formas variadas, fechando-se, abrindo-se, multiplicando-se e atualizando-
se. Assim, instituições-estabelecimento como as unidades do Degase se constituem

113
Este tema foi discutido em um dos Cursos, onde uma técnica disse que para ela era muito complicado
o fato de ter estabelecido um vínculo de confiança com algum jovem no atendimento, e depois não
conseguir falar com ele no pátio, por exemplo. Os agentes entendem que essas aproximações
ameaçam a Seguranças.
161

como instituições de disciplina, pois fazem “reverberar a lógica disciplinar -microfísica


dos corpos no espaço- e de controle -homogênese do tempo” (ROCHA; UZIEL, 2008, p.
534), constituindo relações de tutela. É importante, na micropolítica dessas instituições-
estabelecimentos, evidenciar as condições sócio-político-desejantes, apontando para
“uma analítica das implicações dos coletivos com as práticas de inclusão/exclusão que
distribuem corpos num espaço-tempo, estratificando poderes-saberes em possíveis
graus de interferência” (p.535).

3.2 A dobra-controle-do-tempo: geração e isolamento

A segunda característica do poder disciplinar na perspectiva foucaultiana é o


controle do tempo. O cenário da instituição-organização Degase, a partir da noção de
socioeducação, em práticas operacionalizadas pela instituição-estabelecimento e sua
característica de confinamento e hiperlotação, produz efeitos específicos nas trajetórias
dos jovens, através dos dispositivos de gênero, sexualidade, geração, classe e raça. A
instituição-estabelecimento, como moralizadora, reifica os processos de sujeição
masculina cisheteronormativa através de distintos mecanismos, tais como a
manutenção de uma hierarquia nítida, mas sempre em disputa, que organiza o
cotidiano por meio de códigos aos quais os jovens – e as/os profissionais – estão
submetidos/as.
As moralidades, códigos e performatividades vão se torcendo no Dentro e no
Fora, espaços e tempos produzidos concomitantemente. Como apontado por um
diretor, “algumas coisas se endurecem na instituição, mas outras se relaxam”, tais
como, na narrativa dele, a desconstrução da postura de Bandido e a assimilação da de
Adolescente, atravessado pela geração, embora “ser Adolescente” não se limite a isso,
como já explicitado. Assim, vemos o enrijecimento e a fragilidade em constante tensão,
nas torções e dobras da experiência no estabelecimento, onde algumas porosidades se
estreitam e outras se expandem.
162

Além do Dentro/Fora, as fronteiras entre cadeia e Degase estão fortemente


marcadas pela dobra tempo, visto que o dispositivo da geração é o que define para qual
estabelecimento o jovem será encaminhado. Destarte, o atravessamento do dispositivo
geração é extremamente importante ao pensar a diferenciação que é feita entre o
Sistema Socioeducativo e o Sistema Prisional, tema que hoje em dia é debatido de
forma candente. A questão geracional atravessou intensamente o nosso campo, não
sendo este restringido ao CAI, mas prolífera a variedade dos discursos que circulam
nas ruas, nas universidades, na mídia, nos movimentos sociais, ao falar sobre idade
penal. Como apontado por algumas profissionais, a visibilidade e a abordagem que a
mídia hegemônica tem dado a casos em que jovens cometendo infrações são violentos,
tem instigado a sede pelo viés punitivo do Degase, que por sua vez contamina
recorrentemente a gestão sobre os jovens na instituição-estabelecimento.
Por um lado, escutamos pessoas falando que os jovens menores de idade ou
cometem ou assumem a responsabilidade de crimes que eles não cometeram, ou a
responsabilidade absoluta sendo que foram apenas alguns dos participantes, para
salvar os maiores de idade, já que eles não são punidos de forma tão severa – discurso
reproduzido pelos próprios jovens. Para esses grupos de pessoas, o ECA

criou um ambiente de impunidade que tem incentivado o ingresso destes jovens


no mundo do crime. Nesse sentido, propugnam por medidas estatais mais
duras em reação à criminalidade, reclamando, inclusive, a diminuição da
maioridade penal. Um subproduto ainda mais perverso dessa sensação de
impunidade é o extermínio (ABDALLA, 2016, p.24).

Este argumento evidencia a vontade de punição ao invés do investimento social


em alternativas de vida e garantia dos direitos dos jovens –entendendo que a
socioeducação seja um modelo que, mesmo que docilizador, é mais cuidadoso que o
modelo puramente prisional, ao propor um projeto pedagógico de inclusão social
(ABDALLA, 2016). Apesar de observar esforços na humanização do Sistema
Socioeducativo (ABDALLA, 2016), através do “protagonismo juvenil”, da “manutenção
da integridade física”, da “cultura da paz”, da “quebra de paradigma, sem violência”,
conceitos utilizados por um diretor e “da socioeducação como prática restaurativa
163

positiva que vai no sentido oposto a uma ideia de correção ou repressão”, este está
saturado de práticas e condições muito semelhantes ao sistema dos adultos.
Por um lado, um profissional que tinha trabalhado anteriormente no presídio
apontou em uma ocasião que achava o trabalho no Degase mais desafiador, pois “o
Adolescente é difícil de quebrar”. Outra profissional disse que trabalhar com
adolescentes é difícil, porque não são “nem crianças nem adultos”. Por sua parte, em
entrevista individual, Carlos Iván nos revela as complexas relações entre a prisão, o
Degase e o Fora

Jimena: pra você é igual aqui que a cadeia de maior?


Bernardo: nunca! De maior é mó tempão, aqui é folga, porque aqui ...tipo... aqui
é uma verdadeira fanfarronagem
Jimena: porquê?
Bernardo: porque... eh... tipo, lá na de maior um cara nunca vai deixar outro dar
um tapa na cara dele. Lá tem droga, tem celular, aqui não tem porra nenhuma.
Desculpa! (pelo palavrão)
Jimena: não importa!
Bernardo: aqui não tem nada. Não tem droga, não tem celular, lá você faz uma
casa, uma favela.

Assim como essa, escutamos outras falas dos jovens se referindo a uma
diferença entre prisão e Degase, considerando o segundo como mais leve, uma
fanfarronagem ou uma “colônia de férias pra cracudo”, “tem até sorvete e açaí”, “aqui só
tamos dando um tempo”, “se não tiver uma coisa pra me focar, eu vou voltar a fazer
besteira de novo. Ainda mais aqui, molezinho, internação, rapidinho vai embora”. Nós
também percebemos diferenças, como já apontei anteriormente, nos processos
burocráticos e nas possibilidades de ação no Sistema.
Para Christian Alfonso, “isso aqui não é cadeia, isso aqui é um parque de
diversão, sabe por quê? O cara falta de respeito com um menino, aí ninguém leva ele
pra delegacia, isso aí é preconceito”. Nesse caso, se referindo a casos de homofobia
por parte dos agentes, ele estava apontando que eles conseguiam ser mais violentos
com os jovens do que seriam no presídio, onde as ferramentas jurídicas e
argumentativas dos detentos seriam maiores do que as dos jovens. Jhosivani também
apontou que “lá o funcionário não agride assim, à toa, por besteira. Acho que lá, que é
de maior, eles tratam de igual pra igual, não tem oprimição”.
164

Contudo, também escutamos muitos relatos de semelhança entre Degase e


presídio, especialmente depois das 17h, que é quando as equipes técnicas saem do
estabelecimento e ficam os plantões, que são os que ficam “com eles na madrugada,
depois do expediente”, como apontado por um deles. É nesse momento que “vira
cadeia”. Em uma atividade de grupo, os jovens trataram com ironia o termo
“alojamento”, dizendo que na verdade eles estão alojados em “celas”, pois “isso aqui é
cadeia mesmo”. Nessa mesma atividade, disseram que “não é prisão, mas é cadeia”,
pois não são “tratados como seres humanos pela maioria dos funcionários, tratam nós
como Bandidos”, embora tenha alguns que “nos dão moral”. Em uma entrevista, Israel
falou em algum momento a palavra cadeia, diante do qual a Gabi perguntou:

Gabi: você acha que isso aqui é cadeia?


Israel: não, é socioeducativo, só que é internação.
Gabi: mas por que você chamou isso aqui de cadeia?
Israel: ah, porque não tem corrente, mas tem cárceres.

Alexander apontou outro tipo de diferenças:

Jimena: você acha que é muito pior?


Alexander: eu acho.
Jimena: por quê?
Alexander: ah, dormir na pedra, muito tumultuado
Jimena: mas aqui também tá lotado, né?
Alexander: tá lotado, mas tem colchão, lá não tem cobertor, não tem nada, tem
alguns que até dormem amarrado na grade, não dá. Se eu fosse parar lá, eu ia
tentar fugir toda hora.
Jimena: mas é mais difícil fugir
Alexander: é, é mais difícil

Várias/os profissionais afirmam que as condições do estabelecimento – no


sentido, por exemplo, de garantia do direito à educação e saúde e cidadania 114-, assim
como a atitude dos jovens e dos/as próprios/as profissionais, tem mudado e melhorado,
possibilitando diálogos que antes eram impossíveis. Um diretor apontou que “o Degase
é um ponto estratégico de políticas públicas, porque acaba garantindo um lugar social
para esses jovens, mesmo isso não sendo a situação ideal”. Uma profissional frisou não

114
Foi relatado que alguns jovens tiveram seus documentos de registro de nascimento graças à
engrenagem do Degase.
165

só a garantia, mas a educação sobre os direitos, o que, na experiência dela, também


acontece apenas ao chegar no Degase.
No entanto, como vimos na descrição dos alojamentos, no Degase existem
violações ao direito à saúde, como a falta de higiene, a falta de medicamentos e a
prática de levar os jovens algemados ao hospital (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007),
onde as pessoas ali presentes reclamam de “vagabundo ser atendido antes”, como nos
foi relatado por uma profissional do CAI. Ela também apontou que eles não deveriam
ser algemados, mas “todo mundo sabe que é assim que funciona”. Igualmente, devido
à hiperlotação, atualmente não existem vagas suficientes para a escola, e suas
atividades costumam ser precarizadas, o que formalmente viola os direitos dos jovens à
educação (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007)115 e provoca que os jovens passem mais
tempo nos alojamentos, assistindo televisão ou escutando o rádio. Assim, podemos
pensar numa certa “cadeização do Degase”.
Eventualmente os jovens no Degase ficam mais tempo encarcerados do que os
adultos, certamente não nos casos dos chamados crimes hediondos, que apesar de
serem minoria, são utilizados frequentemente como argumento para diminuir a idade
penal, inclusive por alguns/as profissionais do Degase 116. Ora, certamente, como já
apontado, escutamos um par de jovens relatar que assumiu um crime para que um
adulto de mais de 18 anos não fosse apreendido e portanto, como favor à facção,
fundamentando essa decisão no fato de ser “sujeito homem”, conceito que será
amplamente abordado no quarto capítulo. Neste momento, o que cabe pensar é a
questão da figura do menor e como ela é cooptada e utilizada por diversas instituições-
organização, o que nos fez pensar bastante sobre esse atravessamento. Como uma

115
Cabe, também, nos perguntarmos de que forma o Sistema Educativo de forma geral não é perpassado
por perspectivas docilizadoras e colonizadoras, como vimos em um projeto que realizamos com duas
turmas do Programa Acelera Brasil, que a partir de uma perspectiva liberal, acaba enxergando a escola
como um espaço para certificação de estudos a partir de um determinado modelo, não em um lugar de
gestão de conhecimento. “Na medida em que se pressupõe que a escola é um lugar de gestão da
mobilidade social, presume-se que promove a melhoria social e econômica, o que é questionável. Esta
ideia se coloca no contexto de um pensamento colonizado” (ZAVALETA, et.al., 2016, p.10). Outras
propostas autônomas, como a zapatista, no México, sugerem que os jovens sejam formados/as “em
rebeldia com uma formação política, técnica e cultural” (p.11).

116
Em casos extremos de gravidade de infração, algumas pessoas que os acompanhavam sugeriam que
os jovens passassem mais tempo no Sistema para receberem um tratamento psiquiátrico e psicológico
adequado. Eles concordavam com a necessidade desse tempo, mesmo achando que poderiam estar
fazendo atividades mais interessantes do que ficar nos alojamentos, no sentido da sua ressocialização.
166

profissional apontou, diminuir a idade penal faria com que entrassem jovens ainda mais
novos no Degase, ou seja, a lógica de usar os jovens para liberar os mais velhos
apenas se estenderia geracionalmente117. Um gestor do Degase se colocou contra a
redução da idade penal, argumentando que a pena de morte em alguns estados dos
EUA não diminuiu a criminalidade.
Um grupo de jovens estimou que não seria possível reduzir a idade penal porque
isso implicaria que tivesse mais jovens indo ao Sistema Penitenciário, e, mesmo assim,
se reduzir, “eles vão perceber que fizeram besteira, porque vai ter adolescente entrando
lá e querendo ir para paradas muito mais erradas porque os caras que estão lá são
muito mais cascudos e vão querer puxar os adolescentes”, disse Antônio. Eles
afirmaram não ter medo disso acontecer, mas que não gostariam. Já na perspectiva de
alguns agentes, além de ajudar a valorizar o Degase, diminuir a idade seria positivo,
pois reduziria os crimes, já que, novamente, “menor assume bronca de maior”, e porque
o tempo curto das penas os estimula a pensar que rapidamente estarão na rua de novo.
Uma diferença observada no início do campo entre prisão e Degase foi a revista
de familiares, pois o scanner que substitui a revista física só foi implementado
recentemente, o que foi percebido como um “passo na humanização” por um diretor,
melhorando as relações com as famílias, que por sua vez já reivindicavam esse
aparelho há tempos (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Quando começamos, ainda
não era utilizado, familiares – em geral mulheres – ainda tinham que se despir – ficando
em roupas íntimas, com a calcinha nos joelhos –, agachar três vezes, virar de costas e
agachar mais três vezes, tudo na frente de duas ou três agentes, para não ter
denúncias de abuso, como explicado por uma delas. Momentos constrangedores,
reportados pelos jovens, que em alguns casos solicitavam a familiares que não fossem
às visitas para não passar por isso, pois “ela não tinha porque passar por aquilo não, fui
eu que fiz isso”, como apontado por Giovanni (16 anos, negro). Familiares têm
considerado esse momento como revoltante (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007).
Agentes socioeducativas também relataram desconfortos ao esquadrinhar corpos

117
O encarceramento precoce daria origem a uma nova geração tanto de pessoas privadas de liberdade,
quanto de jovens ainda mais jovens assumindo a responsabilidade por atos cometidos ou não.
167

alheios118. Apesar da revista ser mais íntima do que no presídio, pois, como um
profissional apontou, no segundo as pessoas ficam do outro lado de um vidro escuro,
“ouvindo uma voz estranha dizer o que devem fazer”, enquanto no Degase se tinha um
contato com a pessoa que está fazendo a revista, naquele momento nas unidades da
SEAP não havia mais revista, enquanto no Degase, sim.
É importante destacar aqui que vários/as agentes e técnicas expressaram ser
absolutamente necessário esse filtro de entrada e relataram vários casos em que
familiares, especialmente mães e namoradas, tentavam entrar na unidade com objetos
proibidos, como drogas, dinheiro e celulares, às vezes em objetos como sabonetes e às
vezes dentro da vagina, utilizando uma camisinha que seria retirada no banheiro e
jogada fora, deixando evidência do ato. Uma técnica reportou receio de que um
canivete ou um instrumento do tipo entrasse na unidade e posteriormente fosse
utilizado para ameaçar a equipe no atendimento.
Outra diferença entre Degase e prisão seria a visita íntima, um dos analisadores
da pesquisa-intervenção, cuja implementação é perpassada por moralidades que
organizam as vidas. A visita íntima, mesmo que preconizada no Sinase no artigo 68 119,
em geral é percebida como inconcebível, seja pela opinião pública, seja por
profissionais do Degase. Raramente entendida como um direito – e quando entendida,
negada por eles terem “violado os direitos dos outros” ao cometerem infrações-,
claramente declarada algumas vezes uma moeda de troca120: os jovens deverão ser
mais obedientes para ganharem esse benefício, como expressado por Emiliano, que
disse que seria importante ter porque: “ah, sei lá, mané, tipo assim, que ia deixar o

118
Uma agente relatou um momento em que teve que solicitar que uma mãe retirasse um piercing do
clitóris, o que provocou sangramento e muita raiva na mãe, que queria bater nela.
119
Estabelece que as unidades devem “garantir a possibilidade da visita íntima aos adolescentes que já
possuem vínculo afetivo anterior ao cumprimento da medida socioeducativa e com a autorização formal
dos pais ou responsáveis do parceiro(a), observando os pressupostos legais e assegurando, sobretudo,
o acesso desses adolescentes a atendimentos de orientação sexual com profissionais qualificados,
acesso aos demais métodos contraceptivos devidamente orientados por profissional da área de saúde
(exclusivo para internação)” (BRASIL, 2006, p.64).
120
Esta não seria a única moeda de troca, pois existem outros “benefícios” que cumprem esta função, tal
como receber biscoitos e refrigerantes nas visitas familiares, pois “sabe-se que na instituição são
estabelecidas relações de troca e privilégios que visam manter um certo apaziguamento das tensões.
Ora o controle da ‘cadeia (forma como os adolescentes nomeiam a instituição) está nas mãos dos
internos, ora com a Direção” (DA SILVA; SERENO, GONÇALVES, 2014, p. 138)
168

pessoal mais tranquilo, muitos presos não iam querer dar problema pra, como, se não
ia ficar sem”. Ou seja, só poderia acessar o direito ao exercício da sexualidade aquele
jovem cujo corpo dócil se adequa ao sistema. Também foi apontado que “se ganhasse
melhor, até topava”, fala que, não identificada, foi utilizada em um dos Cursos
realizados com profissionais, deixando outros/as estupefatos.
Em uma ocasião, um profissional expressou: “pra mim, a visita íntima vai ser um
retrocesso, porque os meninos vão achar que virou Bangu, que eles já têm todas as
coisas que uma prisão tem, então que são Bandidos de verdade”. A fala nos instiga a
pensar que o desejo de reificar uma performatividade masculina de Bandido, que passa
pela passagem geracional, joga mais uma ficha na afirmação de que Degase é cadeia.
A diferenciação da visita íntima no Degase também se revelou na discussão
acontecida no Grupo de Trabalho interdisciplinar e interinstitucional para discutir a
temática (SILVA; ZAMORA, 2014). O GT optou por usar o termo “visita afetiva” ao invés
de “visita íntima”, o que

parece explicitar o tom elegido pela instituição para trazer à tona este tema,
pontuando duas questões relevantes: a preocupação em ponderar que a visita
não diz respeito apenas à relação sexual, mas a um momento de convivência
afetiva; e o que parece ser uma tentativa de tornar mais palatável a garantia do
direito ao exercício da sexualidade desses/as jovens (D’ANGELO e DE GARAY,
2017, p.89)

Como também aponto no texto produzido por mim e por Luisa, utilizando uma
entrevista realizada a gestoras/es do Degase e material de campo das unidades:

há uma série de requisitos pelos quais os(as) jovens devem passar para
pleitearem o direito à visita íntima: 1) casamento ou união estável comprovada -
havendo a possibilidade de que a/o técnica/o de referência comprove essa
união; 2) terem, tanto o/a jovem quanto a/o companheira/o, no mínimo 16 anos
– sendo que nossas conversas com os/as jovens nos revelaram que a maioria
deles/as já têm vida sexual ativa antes disso; 3) autorização de responsáveis
legais ou da equipe técnica, quando for o caso – ponto difícil para as mulheres
e para gays e lésbicas; 4) participação no Programa de Saúde e Sexualidade –
ponto que nos pareceu ter muito potencial para discutir e exercitar a
socioeducação, especialmente se não focar apenas na questão da saúde, mas
na sexualidade como uma experiência humana perpassada por relações de
poder e saber; e 5) cadastrar apenas um/a parceiro/a por passagem pelo
sistema – sendo que, especialmente no caso dos homens, uma grande parcela
mantêm relações com mais de uma pessoa ao mesmo tempo, e escolher um/a
parceiro/a não estaria em seus horizontes. Como é possível imaginar, existe
uma dificuldade de se encontrar jovens que se adequem a essas expectativas.
169

Além disso, diferentes moralidades parecem circular nos discursos sobre a


sexualidade dos/as jovens, que se veem, ao mesmo tempo, alvos de discursos
que os colocam no campo da infância e da tutela e outros que, vinculando-os à
vida adulta, legitimam o exercício da sexualidade (D’ANGELO e DE GARAY,
2017, p.89-90).

Outras questões relativas à visita íntima a inscrevem na dobra-controle-do-tempo


ao pautar geração: a necessidade de se discutir a partir de que idade jovens podem
receber e fazer visita, já que se trata de menores de idade e em que medida jovens
precisam ter o direito ao sexo garantido. Há uma tensão em torno da tutela do Estado
através do Sistema Socioeducativo, como se neste momento privado do sexo não fosse
possível ter total controle – que nunca se tem, sabemos – e o Estado deveria dar conta
do produto do que escapa, que pode ser uma gravidez ou a transmissão de ISTs. Outro
ponto é a discussão sobre a idade mínima para garantia deste direito, visto que no
Brasil não há uma idade do consentimento determinada.
Outra questão seria o questionamento sobre a necessidade de se garantir este
direito previsto no Sinase, com argumentos variados: além da dúvida sobre a
responsabilidade desses adolescentes – que já possuíam inclusive vida sexual ativa
antes de entrarem no Sistema –, a comparação com suas vidas faz profissionais
questionarem se o Estado deveria permitir relações entre menores de idade sob sua
tutela. Assim, o atravessamento geracional ou das características do Degase foi
importante em falas de profissionais como: “aqui nem ficam tanto tempo”, “eles são
muito novos para transar, têm que ser adultos responsáveis para ter uma vida sexual
ativa”, “pensar isso é fácil para quem está distanciado da realidade, nenhum pensador
que tem uma filha de onze anos vai querer isso, a filha transando com onze anos”, “não
chega a 10% o número de adolescentes que tem uma mulher de verdade” – referindo-
se tanto à questão geracional quanto da estabilidade comprovável. Por sua parte,
alguns jovens apontavam que “a única coisa que faltava aqui é mulher”, e Antonio
expressou “sou novinho, mas faz muita falta”.
Igualmente, ao pensar sobre a relação entre os jovens e as familiares, é
interessante pensar de que forma a entrada ao Sistema Socioeducativo de certa forma
provoca as relações de proteção entre elas e os jovens. Nos dias das visitas familiares,
são eles os que devem proteger a sexualidade delas, para garantir a honra masculina.
170

Igualmente, em algumas ocasiões, eles as protegem de maridos agressores ou de


condições financeiras miseráveis. Ao mesmo tempo, na maior parte dos casos, elas
ainda são responsáveis legais pelos jovens, apontando que eles não são inteiramente
responsáveis pelas suas vidas, nem sequer as sexuais, já que na implementação da
visita íntima, seria necessária uma autorização delas.
Outra dimensão da dobra-controle-do-tempo é uma “sujeição do corpo ao tempo”
(MACHADO, 197/2011, p. XVII-XVIII), característica do regime disciplinar. Observamos
um jogo com o tempo, que inclui a arbitrariedade e variabilidade da duração das
medidas socioeducativas e outros processos, perpassada por uma lógica burocrática da
ausência de informação e do abuso de poder, como Adán, que quando perguntado se
tinha previsão de quando ia sair, disse “tem não. Capaz de eu sair este mês, capaz de
eu ganhar mais tempo” se referindo a um aumento da internação. O tempo de estar nos
alojamentos como uma das piores penas de estar privados de liberdade; o tempo de
reflexão, fosse como castigo após uma falha ou como espera depois das visitas
familiares para poder se masturbar. Neste último ponto, foi relevante a constante
demarcação dos tempos possíveis, nas palavras de Adán:

Adán: dia de quebrar é terça, segunda e sexta. Quarta é visita, quinta é reflexão
e sexta é dia de quebrar, sábado é visita e domingo é reflexão
Jimena: e quem te falou sobre essas regras?
Adán: isso vem da maior, aí tá na cadeia tudo. Se tiver visita, não pode quebrar,
tá de ralo
Jimena: e nunca ninguém quebrou essa regra?
Adán: já teve já
Jimena: e o que aconteceu?
Adán: tomou panho
Jimena: mas morreu?
Adán: não, tomou panho. Não morreu, mas tomou panho. Tomou uns esporros
Jimena: e você concorda com isso?
Adán: ainda! (gíria para “sim”). Se tiver visita de vagabundo aí, vai quebrar?
Tipo assim, eu não faço isso, mas tipo, tem uma visita hoje, aí ficam na visita
várias mães de vagabundo aí, várias mães de menor, várias irmãs de menor,
pá, namorada, pá, esposa, pá, aí vou chegar lá em cima e já vou quebrar? Não
pode isso. Vai vir e nego vai querer tirar várias visão, “anda pensando na família
dos outro?” “Tá pensando em quebrar na minha mulher aí?”. Tira várias visão.
Aí nego quer circular, dar panho nos outro. Eu não dou esses mole

Vemos assim, no controle desse tempo, como transgredi-lo seria “dar mole”, ou
seja, dar oportunidade para ser vulnerável e dessa forma não sustentar a
171

masculinidade. Já Alexander, diferente da maioria dos jovens, entendia a nossa


problematização a essa norma:

Jimena: Como os outros vão saber em quem você tá pensando?


Alexander: é (risos), aí o problema, o cara diz “não pode quebrar pensando
nela”, mas como o cara vai saber em que que eu tô pensando?
Jimena: e isso independente de ser no dia da visita ou meses depois! Você
guarda a imagem na sua cabeça
Alexander: é, aí tá o problema (risos). Mas é a regra, tem a regra, se não seguir
dá problema, não dá. Dá problema no alojamento. Então é melhor segurar,
fazer segunda, quarta e sexta, não jogar lixo no chão, não entrar em discussão
com funcionário, não dá pra ficar na cadeia como nós tá na rua. Tranquilo. É
isso

É interessante pensar no conceito de reflexão como atrelado a um tempo e um


espaço de disciplina no sentido da proibição de certas práticas que transgridem as
normas sociais estabelecidas, e no qual as pessoas deveriam apenas “pensar no que
fizeram”. A reflexão é um tipo de isolamento, assim como o é a privação de liberdade,
principal característica dos Sistemas Prisional e Socioeducativo. Como apontado por
Mariana Barcinski no seminário Seminário Corpos e Sexualidade em Instituições
de Privação e Restrição de Liberdade', que organizamos na UERJ em 2015: “como
entender transformadora uma instituição que propõe ressocializar a partir do
isolamento?”. Apesar de que no discurso institucional atual, a instituição-organização
está passando por uma mudança de paradigma, passando de um foco na punição para
algo que frisa a responsabilização,

como podemos pensar a medida socioeducativa de internação como uma


instância educacional quando se utiliza da privação de liberdade e da disciplina
como instrumento de educação? Como a disciplina em questão vem sendo
121
operacionalizada em nome da educação? (SCISLESKI, et. al., 2014, p.662) .

Disciplina que tem nesse controle-do-tempo uma ferramenta fundamental, como


apontado por Christian Alfonso:

Christian: eu te falo, dona, essa vida, assim, o governo não tá nem aí, o
governo botou cadeia para achar que os preso simpremente no lugar, aí uma

121
É relevante a discussão sobre como a disciplina se instaura nos processos educacionais para além do
Sistema Socioeducativo, através de mecanismos de vigilância, avaliação, esquadrinha mento do tempo,
do espaço e do conhecimento (ARAÚJO, 2011).
172

hora o preso sai, o preso não vai ficar com a mesma mentalidade de sempre.
Eu, assim, eu tô com uma proposta, assim, de mudar, de estudar, arrumar um
trabalho, ajudar minha mãe
Gabi: mas porque quando você sai você não consegue botar essa proposta em
prática?
Christian: ah, sabe porquê? Porque eu fico muito tempo preso, ninguém gosta
de ficar preso. Quanto mais eu fico preso, eu fico “ah, eu fiquei esse tempo todo
preso, então não vou querer nada, não vou mudar nada, vou continuar na vida
errada”. Eu fico assim mesmo, dona, “não vou mudar nada, vou continuar nessa
vida errada”. Porque assim, todo mundo quer mudar, quando a pessoa quer
mudar, as pessoas não deixam mudar, como a pessoa vai mudar? A pessoa
não vai conseguir mudar assim não, dona.

Por sua parte, Alexandre, cumprindo medida socioeducativa por estupro e


assassinato, aponta que mesmo acreditando que deveria estar preso, a experiência não
está sendo construtiva para ele no sentido do uso do tempo:

Jimena: a resposta do mundo é te botar aqui, você acha que teria outras
formas? Ou aqui mesmo, o que poderia te ajudar?
Alexander: eu acho que aqui dentro. Com a defensoria, a técnica...
Jimena: mas estando aqui dentro, o que você acha que seria legal pra você?
Alexander: estar fazendo alguma coisa, fazer uma faxina, sei lá. Ficar parado...

A partir da experiência de mães e familiares cujos filhos estão no Degase, o


movimento Moleque

entende que não é aumentando o tempo de cárcere desses jovens que


estaremos solucionando o problema da violência, muito menos construindo uma
sociedade mais justa e humana. Sobre isso nos perguntamos: a quem essas
penas serão dadas? E mais, será que já não estamos vivendo de fato essa
redução da idade penal, tendo em vista a realidade de o sistema socioeducativo
ser muito próxima do sistema penal? (CUNHA, SALES, CANARIM, 2007, p.37)

A partir disso, podemos pensar na perspectiva punitiva, que mesmo tendo


resistências importantes dentro do Sistema em todos os segmentos, no quadro atual de
precarização do estado do Rio de Janeiro e da hiperlotação, acaba sendo
preponderante, pois as condições para fortalecer iniciativas que trabalhem autonomia e
direitos dos jovens são mínimas. E assim, o tempo no Degase acaba sendo de
isolamento e confinamento.
Destarte, a temporalidade e seus jogos têm um papel importante na logística
institucional, podendo entendê-la como uma dobra que parece ser constantemente
173

tocada pela questão da trajetória, da experiência, sobretudo quando se constata que o


tempo parece tomar medidas e velocidades diferentes em espaços de privação de
liberdade. A entrada no Degase dobra o tempo de uma maneira específica, nos tempos
das audiências, nos tempos de espera de sentenças122, relatórios e atendimentos, na
duração das medidas, nos tempos de fila para cada atividade da unidade, nos tempos
de espera que as famílias fazem Fora e Dentro da unidade 123, em filas e filtros, até
conseguir sentar com os jovens, e em ocasiões não conseguindo diante das restrições
de número e parentesco com os jovens (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007).
Nós também tivemos que nos submeter a esses jogos, adequando atividades à
dinâmica da unidade, esperando autorizações da pesquisa – sempre imensamente
mais rápidas do que no Sistema Prisional124, respostas a nossas propostas com
profissionais, articulação das iniciativas das quais participávamos – como os Cursos,
liberação entre portões e grades, autorização para liberarem os jovens, possibilidade
para sair do Curso no auditório porque Os Adolescentes estavam no refeitório.
O que parece relevante é pensar na dificuldade da logística nessas instituições-
estabelecimentos, e não na responsabilidade individual das pessoas encarregadas de
fazê-la andar que também são parte desta engrenagem que atravessa seus corpos e se
tornam extremamente sensíveis a violências e adoecimento. Nessa lógica, a pesquisa
era por vezes considerada mais uma carga. E, para nós, a paciência-ativa virou uma
postura ética na pesquisa.
Assim, demorávamos para começar nossas atividades, e constantemente
ficávamos muito tempo no pátio ou, depois de muita insistência de várias/os
profissionais e diretores, em uma sala, mas o final das nossas atividades com os jovens
era sempre certinho, marcado e relembrado pelos agentes.
Em uma das últimas visitas que fiz sem a Gabi, ficamos eu e Abel em uma sala
de atendimento, onde consegui fechar a porta e não nos interromperam em nenhum
122
O movimento Moleque sinaliza a violação do direito de acesso à Justiça, no momento em que “ainda
se observa que a quase a totalidade dos jovens internados não tem acesso a informações a respeito do
andamento de seus processo” (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007, p. 38).
123
Importante lembrar dos tempos que as pessoas das classes empobrecidas, especialmente as
mulheres, dedicam à espera de serviços de saúde.
124
Além de mais rápidas, é importante destacar que, diferente do presídio, as autorizações incluíam uso
de gravador e não tinha uma revisão das fotos e outros materiais que usaríamos com os jovens.
174

momento. A conversa com Abel fluiu tão bem que, quando percebi, já tinha passado
muito tempo e o almoço dos jovens já tinha acontecido. Falei para as/os agentes dA
Mesa que tinha sido minha culpa ele não ter saído, e de forma indiferente disseram que
dariam o almoço a ele em breve. Ele sentou no pátio, eu fiquei um tempo esperando,
mas várias/os profissionais insistiram tanto que eu almoçasse, que fiquei sem graça e
almocei na sala de docentes. Quando voltei, ele continuava esperando o almoço,
reclamando que estava com muita fome.
Minha anotação no diário de campo refletia minha preocupação ética.

a cena com o Abel foi muito complicada pra mim, pensando em ética de
pesquisa, porque a conversa tava muito boa e ele queria ficar, dizendo que
detestava ficar no alojamento e que no dia anterior tinha visto um rato nele, mas
eu deveria ter previsto que essa falta à logística atrapalharia a rotina dele na
unidade e que os agentes não facilitariam o processo pra ele.

Com essa cena observamos novamente uma postura punitiva por parte de
profissionais, compatível com a perspectiva já apontada, que argumenta que muitos
jovens entraram na “vida do crime” e, portanto, no Sistema Socioeducativo, por um
“excesso de liberdade” e uma “falta de responsabilidade” na trajetória educativa familiar.

3.3 A dobra-vigilância: a Segurança

Terceiro ponto no pensamento do Foucault que reverbera nesta instituição-


estabelecimento, a vigilância “contínua, perpétua, permanente, que não tenha limites,
penetre nos lugares mais recônditos, esteja presente em toda a extensão do espaço”
(MACHADO, 197/2011, p.XVIII). Julio César Mondragón (18 anos, branco) afirmou que
“aqui é pior do que Big Brother”, e constantemente escutamos relatos da extrema
vigilância no estabelecimento, exacerbada com a hiperlotação e péssima infraestrutura
da unidade, além de um aparelhamento espacial que dispõe pontos de vigilância que
controlam as informações de circulação, tais como A Mesa, deixando ínfimos espaços
de intimidade. No entanto, Christian Alfonso apontou que “tem um momento, quando a
175

grade está trancada, quando aqui tá trancado, não dá pra saber de nada do que
acontece nos alojamentos”. Assim, a vigilância opera com suas frestas, em alguns
momentos sendo levada a cabo por agentes, em outras por jovens da própria facção.
A vigilância atravessou o nosso percurso no campo, pois foi extremamente difícil
conseguir estabelecer momentos de privacidade com os jovens, o que tinha
implicações éticas importantes. No dia em que fizemos o primeiro grupo, pedimos à
direção que os agentes socioeducativos chamassem doze jovens que tinham se
mostrado interessados em participar da pesquisa:

Os primeiros a chegarem dizem que eles têm aula de teatro, que não podem
ficar. Perguntamos se não querem participar e dizem que sim, que se
colocaram na lista, mas têm teatro e não querem perder. Vão chegando os
outros. Outro chega e diz que não quer participar, que desistiu. Aí entramos
numa negociação com o agente que está no auditório, ele usando o rádio dele,
mas a “ordem” é que eles fiquem ali. Os meninos pedem para a gente ser
rápido. A gente se apresenta e Fernando começa ler o Termo de Assentimento,
como acordamos entre o/as três antes dos meninos chegarem. Além de ter que
usar outras palavras diante da complexidade e o tamanho do documento, ele
vai percebendo que o que está sendo dito ali não faz sentido. Não tem sigilo,
pois o agente está ali dentro, e os meninos não estão ali com vontade, mas
obedecendo uma ordem. Aí nós três ficamos muito constrangidas/o com a
contradição e no mesmo momento sentimos a impossibilidade de continuar,
pelo que rapidamente pactuamos e paramos. Perguntamos novamente para o
agente se os que não querem/podem devem ficar. O menino do teatro interpela
muito a gente, especialmente ao Fernando, dizendo que se ele que manda,
porque não manda eles para a aula? Fernando tenta explicar que não somos
nós que decidimos sobre a movimentação deles, pois podemos dizer de quem
não está a fim, mas não podemos dar ordem aos agentes. Pedimos para o
agente chamar algum dos diretores, mas os meninos ficam “bolados”, pensando
que ele vai chegar “esculachando”. Aí eu decido sair para falar diretamente com
um dos diretores que, mesmo não tendo gostado do acontecimento,
rapidamente diz que tudo bem, que eles podem sair, mas que não podem ficar
125
na quadra . Volto e falo isso, aí eles vão embora. Foi um momento bastante
tenso, mas o resto dos meninos (9, todos do CV), fica, o que nos faz pensar
que realmente querem estar ali (diário de campo. Junho de 2015).

Depois dessa cena, reforçada com um constrangimento com os jovens que não
sabiam escrever nem assinar, decidimos não levar mais o Termo de Assentimento.
Embora ele possa ser utilizado para suscitar aproximações com crianças e jovens e
valorizar sua responsabilidade na decisão da sua participação, como foi realizado por

125
Apesar do bom estado da quadra, pudemos perceber as limitações a sua utilização, que “permanece
condicionada ao bom comportamento e serve de mecanismo de punição extra-oficial” (CUNHA, SALES
E CANARIM, 2007).
176

Gizele Bakman (2013), nesse momento percebemos que usá-lo nesse espaço poderia
interromper o fluxo das atividades e não necessariamente garantiria o que se propunha.
Incluindo o fato de, diferente de outros espaços onde a autorização seria solicitada a
mães, pais ou responsáveis, neste caso era a própria instância estatal que estava
outorgando-a.
Destarte, uma sensibilidade foi necessária nesse momento para nos
deslocarmos desse lugar pré-estabelecido. Nesse sentido, procuramos não mais usar o
auditório e sim outros espaços, para evitar que os agentes tivessem que estar
presentes em um grupo que tinha sido pensado para uma interlocução entre nós e os
jovens. No dia em que realizamos o grupo na Provisória, novamente houve um agente
presente, tanto porque o espaço era mais aberto, no pátio desse prédio, quanto porque
se tinha a preocupação de que participariam jovens de diversas facções. Em outras
duas ocasiões realizamos as atividades no refeitório. Fora disso, realizávamos os
grupos em lugares mais isolados, como a biblioteca ou salas de atendimento, ou em
salas da escola, que não têm porta e os agentes ficavam no corredor. Para criar alguma
privacidade, nos afastávamos da porta e ligávamos os ventiladores. Nos momentos em
que alguém da unidade estava por perto, percebíamos diferenças nos jovens, que
adequavam suas narrativas, mesmo parecendo que nós ficávamos mais
incomodadas/os, especialmente pelo rádio, que apitava toda hora,
Em grande parte da pesquisa não usamos gravador, considerando que a vida
dos jovens já é muito vigiada e registrada através de relatórios, rotinas, câmeras, dentre
outras práticas institucionais. Também não anotávamos na hora o que acontecia,
tentando evitar a presença de mais instrumentos de poder (COUTINHO, 1997) além
dos já presentes nas nossas diferenças subjetivas com eles, tais como escolaridade,
classe, raça e o simples fato de nós não estarmos em privação de liberdade, análise
permanente e relevante para uma cartografia feminista. Nas entrevistas individuais, no
último ano, consideramos mais tranquilo usar o gravador, tanto porque não existiria
vigilância de outros jovens a respeito do que o entrevistado estava falando, quanto
porque os agentes não sentiriam tanta necessidade de vigiar uma entrevista com
apenas um jovem. Mesmo assim, alguns jovens chegaram a censurar algumas partes
das suas falas relacionadas ao funcionamento das facções e Adán me perguntou em
177

várias ocasiões, dias depois da entrevista, o que eu faria com a gravação. Eu garantia
que não a tornaria pública e ele respondia “ah, não tem problema, não”. Com ele,
inclusive, cheguei a fazer uma segunda entrevista, que decidi não gravar. Outro jovem
expressou receio de que mostrássemos as gravações à direção e eles sofressem
retaliações.
Outros tipos de questões éticas relacionadas à vigilância apareceram no campo,
incluindo recomendações de profissionais de não deixarmos os nossos celulares tão
acessíveis aos jovens e “não abrir brecha” para eles, no sentido de gerar oportunidades
para que houvesse aproximações eróticas ou não apropriadas de parte deles. Em uma
das primeiras atividades em grupo, Antonio gostou muito de uma foto que levamos
como disparador da conversa com os grupos. A imagem (Foto 11 do Anexo A) provém
de um programa de televisão e retrata uma mulher e dois homens dançando e
cantando em um palco. Antonio disse que a mulher na foto o deixava excitado e desde
o início deu sinais de que queria levar a foto, de forma discreta. Falamos que não era
possível, e ele pediu às escondidas para outro jovem, mais novo, que a levasse. Eles
quase conseguiram, mas descobrimos na hora que levantaram, pois ele a tinha
escondido nas costas. Dissemos que não era possível, pois podíamos arriscar um
problema com a unidade para eles e para nós, especialmente naquele início da
pesquisa. De fato, quando o grupo saiu, um agente revistou todos os jovens, se
justificando e dizendo: “você tira o Bandido das ruas, mas é muito difícil tirar o Bandido
do Adolescente”.
Como temos visto até agora, diversas instituições-organização e suas linhas de
territorialização compõem códigos na trama de poder, nem sempre se validando de
forma aberta, mas solicitando ou acionando certos posicionamentos e estratégias das
outras nos processos de limitação das possibilidades de vida. As facções do tráfico
produzem uma série de mandamentos e as respectivas punições para quem não os
cumpre, moldando subjetividades. Desta forma, podemos pensar que para as facções,
a prisão e o Sistema Socioeducativo são também estabelecimentos que veiculam
modelos de disciplina e controle específicos. Tanto Fora quanto Dentro, as facções
moldam e produzem determinados corpos e subjetividades através desses códigos, que
os jovens tendem a naturalizar de forma absoluta, onde os dispositivos gênero e
178

sexualidade aparecem como fundamentais nos agenciamentos machistas e


cisheteronormativos, delimitando categorias que definem performatividades masculinas
e femininas – tais como sujeito-homem, fiel, Bandido, mulher-de-Bandido e mancão,
dentre outros que serão explorados no quarto capítulo.
O Sistema Socioeducativo, mesmo com o discurso e as propostas de práticas
que procuram oferecer novas possibilidades e significados a esses jovens, gera toda
uma logística para evitar que essas punições sejam efetivadas, sem pôr em análise os
significados desses mandamentos nem propor formas de enfrentá-los. Em nome da
Segurança, o estabelecimento de certa forma absorve esses códigos, legitimando-os
para evitar conflitos. Esses códigos pertencem à dinâmica das diversas instituições-
organização, se entrelaçando, nem sempre de forma consciente e/ou explícita, em
regulamentações muito específicas do campo.
É por isso que, em nossa análise, podemos nomear esses códigos de
(inter)institucionais126, composição que vai criando uma série de caminhos de
cristalização e legitimação de práticas que impedem a passagem de afetos e
experimentações. O processo de criação, solidificação, defesa e mutação desses
códigos, sempre sob a justificativa da Segurança, vai desvelando uma contínua
territorialização dos modos de subjetividade permitidos para os dispositivos de gênero,
raça, classe, localidade e geração vividas pelos/as jovens. Nesse sentido, vale pensar
para onde estão direcionados os esforços e as logísticas da instituição-organização
Degase e de outras com as quais ela se relaciona.
Como visto até agora, assim como no contexto amplo da cidade, quanto deste
estabelecimento, muitos procedimentos são permanentemente justificados em nome da
Segurança. O que alguns jovens podem fazer pode gerar retaliações ou inclusive até
mesmo uma revolta generalizada que provocaria “perder a casa”, expressão recorrente
de agentes socioeducativos e diretores. Nessa noção, vemos de forma entrelaçada
uma logística para garantir a sobrevivência das pessoas e do espaço e uma
fiscalização da vida no estabelecimento, em uma “gestão de riscos” (SEFFNER;

126
É importante destacar que ao falar desses códigos, estou me referindo às linhas duras que aparelham
e circunscrevem as experiências no estabelecimento, naturalizando classificações de pessoas, assim
como atributos a essas classificações, rotinas e violências.
179

PASSOS, 2016), protegendo as pessoas delas mesmas, o que deixa pouquíssimo


espaço para pensar práticas democráticas de potencialização de vida.
Assim como Luisa Bertrami D’Angelo, considero a Segurança como uma
“categoria central da gestão da unidade” (2017, p.41) “que parece atravessar
transversalmente as práticas institucionais e as vidas daqueles(as) que, de uma
maneira ou de outra, se envolvem com estas instituições” (p.44), chegando a configurar

uma espécie de barreira intransponível que, muito mais do que tornar o


ambiente seguro, o torna dócil e controlado. Dessa forma, o argumento da
segurança inviabiliza uma série de ações e propostas que, se lidas sob outra
chave, poderiam gerar possibilidades interessantes de atuação e intervenção.
[...] Parece possível afirmar que, no que tange à execução das normas de
segurança, o que ocorre é um obscurecimento das práticas, de modo que é
comum que não se saiba por qual razão se cumpre determinada norma. A
segurança, assim, torna-se a Segurança, instituição que atravessa os corpos de
todos aqueles e aquelas que se encontram do lado de dentro dos muros
(D’ANGELO, 2017, p.41).

É importante, contudo, compreender as intensas forças que pressionam a


instituição-estabelecimento e a seus e suas gestores/as e profissionais, e as
porosidades dos muros que fazem com que aquilo que acontece Fora, entre e nas
facções tenha fortes influências na sua dinâmica interna. Isso se atualizou na entrada
de dois homens armados na unidade, relatada no primeiro capítulo, ameaçando os
jovens da outra facção que estavam cumprindo medida socioeducativa, frente à qual os
agentes socioeducativos e diretores tiveram que fazer um trabalho de negociação 127.
Igualmente, soubemos de um momento em que muitos jovens do CV fugiram do CAI,
invadindo uma casa e roubando um carro e posteriormente batendo o carro. No dia
seguinte da fuga, o tráfico local, da ADA, começou a bater na porta do CAI com fuzil,
situação tensa que exigiu que diretores e agentes fossem negociar.
Em uma ocasião, uma profissional relatou que o motorista do CAI tinha realizado
a transferência de 13 jovens ele e mais um agente, “naquela Kombi velha. Nós dois e

127
Percebemos que esse incidente impactou vários jovens na unidade, fazendo referência a ele. Adán
supôs que os jovens que entraram armados não passaram do estacionamento “porque ia dar ruim pra
eles. Porque se eles resgatar, aqui é favela deles, se eles resgatar alguém daqui, vai vir caveirão, vai vir
Bope, vai vir Choque, vai vir Civil, vai vir tudo. Vai pixar a favela deles, e o patrão deles vai matar, vai
mandar matar eles. Por isso, aí só veio pra tacar um terror em nós, pra nós ficar, como, tranquilo”. Por
sua parte, Alexander disse: “ia dar mó trelelé, aí os menor ‘não, se esses cara vier aqui vai lembrar a
favela’ e eu falei ‘se os cara entrar, matar todo mundo’”.
180

eles 13 cruzamos a Brasil inteira. Só Deus mesmo”, ao que a profissional reforçou


“realmente é perigoso, e que a instituição não resguarda seu profissional, que além do
perigo de serem 13 meninos juntos na Kombi, atravessar a Av. Brasil significa passar
por territórios de diferentes facções, que podem abordar a Kombi para liberar alguns
meninos e matar outros”.
No segundo Curso no CAI, um diretor disse que as regras de separar os jovens
por facção “vêm de Fora”, e que se eles obrigassem os jovens a se misturarem, quando
saíssem podiam ser mortos por ter convivido com jovens de outras facções, com o que
um jovem concordou. Outro diretor disse

as regras existem e às vezes temos que nos adaptar a elas. Hoje temos um
diálogo, antes eles se sentiam empoderados pela facção. Para a violência não
acontecer, tem que ter uma postura. Hoje em dia temos uma violência
institucional reduzida, mas temos menos controle.

No contexto do CAI, assim como em outros estabelecimentos de privação de


liberdade (SEFFNER; PASSOS, 2016), a cisheteronormatividade e o machismo
constituem duas instituições-forma que projetam e legitimam a necessidade de uma
série de códigos. Assim, na lógica da vigilância, podemos pensar que desde a chegada
dos jovens na unidade, eles recebem as orientações dos mais velhos do alojamento
para se manter na linha das regras de convívio. Essas tensões e normativas estão
frequentemente relacionadas com sexualidade, como dispositivo primordial para pensar
as relações de poder disciplinar e de controle, porque é ela a dimensão da vida na
unidade que mais é vigiada, a que justifica punições, tal como expressado por uma
profissional, que na época de maior hiperlotação, afirmou que estava chegando ao
atendimento muito jovem com olho roxo, por fricções relacionadas com as regras da
masturbação.
Também, em uma ocasião, chegou ao nosso conhecimento que um jovem da
unidade tinha sido espancado por outros jovens, e inicialmente a justificativa dada foi
que ele tinha se masturbado em um dia não permitido pelas regras de convívio, sendo
que na verdade ele foi confundido com outro jovem que tinha cometido outro tipo de
falha na pista. O que nos pareceu interessante é que a justificativa da transgressão
sexual foi suficiente e quase legítima para tal violência. Apesar disso, ao trabalhar
181

violência, poucas vezes os dispositivos de gênero e sexualidade são acionados para


serem repensados na unidade.
Assim, a vigilância foi um argumento constantemente usado para justificar a
impossibilidade de repensar práticas, especialmente ligadas a direitos sexuais. A
existência de relações entre os jovens internados, masturbação fora dos dias permitidos
e posse de fotografias ou cartas eróticas eram recorrentemente negadas por jovens e
agentes, que expressavam que se isso acontecesse, todo mundo saberia e não
permitiria, isso é lona, executando severas retaliações.
Isso foi evidenciado de forma mais concreta na hora de pensar a implementação
do preservativo na unidade, o que exigiria o reconhecimento da existência dessas
práticas, legitimando-as. Diante disso, alguns jovens do grupo de promotores de saúde
e as/os profissionais que participaram do 2o Curso propuseram estratégias, por
exemplo, pensando em que lugares os jovens que assim o quisessem poderiam ter
acesso a preservativos sem serem vigiados. Os jovens inclusive fizeram um mapa da
unidade pensando os melhores locais (Anexo A, imagem 1). Estas propostas geraram
reações de extrema resistência. No entanto, como fomos constatando ao longo do
campo, fissuras compõem esse regime de vigilância.
Mesmo entendendo a inevitabilidade das porosidades, nos parece importante pôr
em análise a sua naturalização, que faz com que a instituição-estabelecimento se
aproprie dessas regras, mas não assumam inteiramente sua responsabilidade por elas.
Igualmente, parece interessante observar as forças de poder que se imbricam nestas
negociações, driblando-as, fortalecendo-as, questionando-as.
Assim, o que pretendemos com essa problematização, que acionamos em vários
momentos na pesquisa, é justamente desnaturalizar a instituição-forma Segurança,
revelando de que forma seu enraizamento, fundamentado quase sempre em exemplos
que viram regras, operacionalizado em procedimentos já trazidos várias vezes como a
separação dos alojamentos, a proibição de certas roupas e a negação à distribuição de
preservativos e à visita íntima, impossibilita muitas vezes discussões, propostas e
mudanças, sobretudo no campo do gênero e da sexualidade. Tal como sinalizado por
Foucault (2009), as medidas de Segurança não têm como fim sancionar as infrações,
mas “a controlar o indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a modificar suas
182

disposições criminosas, a cessar somente após obtenção de tais modificações”


(FOUCAULT, 2009, p. 22).

3.4 A dobra-registro-contínuo-do-conhecimento: a socioeducação e os


especialismos

A última característica básica da noção de poder para Foucault é o registro


contínuo do conhecimento, extraindo informações “para os pontos mais altos da
hierarquia de poder” (MACHADO, 1997/2011, p. XVII), movimento que observamos
principalmente no final do segundo Curso, onde as informações sobre o cotidiano e a
dinâmica dos jovens eram constantemente usadas para barrar as nossas propostas de
garantia – e inclusive de discussão – desses direitos. Assim como nesse momento, em
outros escutamos falas que criticavam e inclusive ridicularizavam o pertencimento dos
jovens às facções, mas ao mesmo tempo legitimavam suas normas, sem promover uma
postura crítica.
Michel Foucault (1979/2011) questiona a ideia de que as prisões eram
inicialmente um depósito de criminosos, ainda presente em falas como estou guardado,
para depois passar a serem pensadas como espaços de transformação dessas
pessoas. O que ele propõe é que elas sempre foram ligadas a um projeto de
transformação dos indivíduos, cujo fracasso foi evidente ao pensar que ela funciona
fabricando novos criminosos ou afundando os delinquentes mais ainda na
criminalidade, pois isso é conveniente política e economicamente, pela geração de
necessidade de corpos policiais e de narrativas midiáticas sobre delinquência, o que
torna a prisão um “grande instrumento de recrutamento” (1979/2011, p.133). Junto a
isso, todo o esquema burocrático, a máquina judiciária, médica, psicológica que ele
apresenta, assim como discursos de limpeza social, conservadores, são cada vez mais
poderosos.

se a oposição jurídica ocorre entre a legalidade e a prática ilegal, a oposição


estratégica ocorre entre as ilegalidades e a delinquência; [...] Os tráficos de
183

armas, os de álcool nos países de lei seca, ou mais recentemente os de droga,


mostrariam da mesma maneira esse funcionamento da ‘delinquência útil’; a
existência de uma proibição legal cria em torno dela um campo de práticas
ilegais, sobre a qual se chega a exercer um controle e a tirar um lucro ilícito por
meio de elementos ilegais, mas tornados manejáveis por sua organização em
delinquência. Este é um instrumento para gerir as ilegalidades. Pode-se dizer
que a delinquência, solidificada por um sistema penal centrado sobre a prisão,
representa um desvio de ilegalidade para os circuitos de lucro e de poder ilícitos
da classe dominante (FOUCAULT, 2009[1975], p.265)

Alba Zaluar (2012) sinaliza as implicações da moralidade e os efeitos concretos


de certo tipo de comportamento denominado como crime. Héctor Ramírez (2015)
aponta que “a criminalidade e seus correlatos irrompem na história concreta, em
âmbitos discursivos muito particulares que excedem o domínio do estritamente jurídico”
(p.66, tradução livre) e que “o criminoso nasce junto ao cidadão. Este último, porém, ao
aceitar o contrato social reconhece também as leis que o fundamentam como sujeito de
direitos, leis que por sua vez são as mesmas que recaem sobre ele em forma de
castigo” (p.72, tradução livre).
No campo das unidades socioeducativas, além do poder repressor, é possível
também ver a dimensão produtiva do poder (ZACCONE, 2011), no sentido de um
aprimoramento e um adestramento do corpo e uma docilização política dos sujeitos
(MACHADO, 1979/2011), de uma regulação de divisões, definição de papéis e
modelação de sujeitos (CHARTIER, 2002) através de mecanismos, instrumentos e
técnicas que vigiam e assujeitam os jovens e as/os profissionais, moldando
comportamentos (ABDALLA, 2016) e reterritorializando configurações éticas e
subjetivas. Como apontado por Héctor Ramírez,

sob o pressuposto da correção, a prisão traspassa a existência total dos


sujeitos. Trata-se de um aparato disciplinar que abraça todos os rasgos
cotidianos do recluso, como são os casos de seu corpo fisiológico e seu
cuidado higiénico, passando por sua conduta e comportamento moral, até seu
desempenho nas atividades manuais na oficina do presídio” (RAMÍREZ, 2015,
p. 74).

No CAI, vemos uma dimensão produtiva, por exemplo, na insistência no discurso


de regeneração e mudança de vida, propondo que os jovens, Bandidos, virem
Adolescentes. Como informado por diretores, insiste-se com os jovens que “briga de
facção tem que ficar fora da unidade, aqui são todos adolescentes”, “chegou marginal,
184

aqui virou Adolescente”, “não importa se matou dois lá fora, aqui é adolescente”, e “aqui
não trabalhamos com vagabundo, vocês são sujeitos de direito e têm que se comportar
como tal”. Ele relatou que com os jovens nos mais altos escalões ou que são “filhos de
dono de morro” é mais difícil, pois vêm “montados no personagem do Bandido” mas
também têm que “virar Adolescente”, coisa que alguns jovens aceitam, tal como um
que, em uma atividade lúdica128, disse que não queria sair mais, pois estava tendo uma
experiência que como Bandido não podia ter.
Igualmente, ele disse que o trabalho de transmitir essa perspectiva também é
realizado com os agentes, especialmente com os que vêm de outras unidades ou os
que têm mais tempo no Sistema, que, como apontado por uma profissional, costumam
ser mais apegados a práticas duras justificadas pela Segurança. Muitas vezes, como já
foi apontado, a proposta oferecida é projetar futuros homens trabalhadores, honrados,
bons, de certa forma silenciados, como se não existisse possibilidade de subversão que
não fosse violenta.
Esse processo aciona constantemente os termos de “escolha”, individualizando
as problemáticas e fazendo-as alvo de vigilância. Se produz assim esse indivíduo O
Adolescente, dobrando a trajetória dos jovens, às vezes propondo alternativas, às
vezes docilizando, às vezes violentando, às vezes inclusive provocando que os jovens
que não estavam envolvidos nas facções adiram a essas organizações.
Neste campo de forças, constantemente observamos o reforço dos
especialismos nas áreas de atuação dos/as profissionais inseridos/as no projeto de
socioeducação, que exercem diversas funções no processo de cumprimento da medida
dos jovens e produzem saberes e exercem poderes sobre eles, contribuindo no
entrelaçamento de códigos.
Por um lado, temos as/os agentes socioeducativos que

são responsáveis pelos procedimentos de segurança, vigilância, ordem e


disciplina nas unidades para a prevenção das situações-limite (brigas,
rebeliões, fugas, incêndios, agressões) e pelas ações de contenção, em casos
excepcionais, quando tais medidas mostrarem-se ineficazes. Devem também,
como o próprio nome diz, exercer um papel socioeducativo e pedagógico na

128
A atividade à qual ele se referia era uma brincadeira com saco de batata, onde, segundo o relato do
diretor, o jovem estava tendo um momento muito agradável que não teria em sua rotina e
responsabilidades no tráfico.
185

relação com os adolescentes internados, contribuindo para seu


desenvolvimento durante sua passagem pelo DEGASE (VINUTO; ABREU;
GONÇALVES, 2017, p.58).

Dentro desse cargo, existem algumas diferenças. Por um lado, há os agentes de


plantão, que são os que ficam voltados para a Segurança, os únicos que conhecem
verdadeiramente aos jovens, os que estão às 17h quando a unidade socioeducativa
vira cadeia, os que entram mais explicitamente na disputa de masculinidades com eles,
os que negociam, que punem ou apoiam, mas que não têm nenhuma participação ou
influência na elaboração do relatório, elemento que alguns deles identificam como um
problema, mais por uma “falta de poder e de respeito”129 do que por se enxergarem
como socioeducadores e por isso mesmo serem capazes de contribuir no cuidado dos
jovens de outras formas além da Segurança.
Também há agentes nA Mesa, outros na escola, que são considerados mais
tranquilos e outro trabalhando na saúde mental. Os agentes masculinos são chamados
pelos jovens de funcionários ou seus, e em ocasiões mais privadas, no próprio grupo,
se referem a eles como vermes, termo geralmente utilizado para policiais, o que mostra
o comparativo que os jovens fazem com eles. A relação entre eles e os jovens costuma
ser bastante travada, pois, dependendo do momento político, da facção à qual
pertencem130 e do ritmo do alojamento, os jovens não são autorizados a falar com os
agentes para além do necessário, estando proibidas trocas mais substanciais de
contato físico, afetos e palavras, sob ameaça de retaliações – regra que vimos por
escrito no alojamento que visitamos. Alguns agentes e diretores relataram lamentar e
tentar quebrar estes comportamentos, especialmente nos encontros individuais com os
jovens, sendo em grupo mais difícil. Por sua vez, alguns jovens apontaram que
conseguem abraçar o papo de alguns agentes, dependendo de se estão sozinhos, do
clima da unidade e da postura do agente.

129
Por outro lado, outros apontam que participar no relatório traria mais responsabilidades e ocuparia
mais do seu tempo. Profissionais da equipe de saúde integral também apontaram sentir falta de maior
participação no relatório, argumentando elas/es necessariamente trabalham com todos os jovens.
130
Em vários momentos foi relatado por profissionais que o CV é mais duro nas suas normativas e os
jovens que pertencem a ele são “mais arrogantes”, enquanto os do TCP “respeitam mais”. Nas nossas
entrevistas não só no CAI, mas em outras unidades, também percebemos que os integrantes do CV
são mais apegados a normas rígidas de comportamento. Já para Jorge Aníbal (17 anos, negro), que
não é integrante de nenhuma facção, todas elas são igualmente violentas.
186

Os diretores frisaram o trabalho que fazem com agentes que estão há muito
tempo no Sistema e “beberam de uma fonte diferente” e nos que vêm de outras
unidades, pois, novamente, o perfil que está sendo proposto pelo CAI é diferenciado,
pois ali não devem ser cadeeiros, o que, para eles, contribui para um ambiente mais
relaxado apesar das tensões características do trabalho socioeducativo, em uma “dupla
demanda conter-educar”, “localizada entre a necessidade de punir e de recuperar”
(VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017, p. 60).
Também há agentes ocupando funções como assistente religioso 131, técnico em
recursos humanos, professores de elétrica, serigrafia, música e teatro, e que relatam a
mudança de relação com os jovens nesse processo, e os quatro diretores, que foram
inicialmente concursados como agentes. Em vários momentos foi apontado que o perfil
do agente tem mudado por conta de sua formação, visto no momento em que ensino
superior é hoje em dia um requisito, permitindo uma maior humanização.
O próprio termo referente ao cargo tem se transformado bastante, hoje se
configurando como “agente de segurança socioeducativa”, termo que estranhamos
frente a essa narrativa histórica de mudança. Também soubemos que alguns fazem
cursos do BOPE (Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar), o que nos
parece perpetuar o lugar de cão de guarda ou cadeeiro, que se fixa no cotidiano, com
poucas oportunidades de propor iniciativas e delimitando um único lugar para eles,
policialesco e punitivo, sem outro tipo de reconhecimentos e sofrendo também um
“controle rigoroso do sistema” (ZACCONE, 2011, p.28; VINUTO; ABREO;
GONÇALVES, 2017). Assim, muitos também parecem ter uma dificuldade em
desconstruir e participar de outra forma, se afirmando como “nós do cadeado”. Alguns,
no entanto, propõem atividades como hortas e oficinas de pipa, com desdobramentos
interessantes para os jovens, no sentido de uma socioeducação sensível e propositiva,
e para o dia a dia da instituição-estabelecimento.
A horta, especificamente, ideia de dois jovens, apareceu como uma atividade
extremamente importante, a partir da qual o agente responsável e principal promotor
conseguiu construir relações de confiança, compromisso, aprendizado e autonomia

131
Para entender mais sobre esta figura, que é entendida como de acordo ao papel humanizador do
Degase, ver o verbete de Costa, Figuereido e Ribas no Dicionário do Sistema Socioeducativo do Rio de
Janeiro (2016).
187

com os jovens, o que gerava uma série de emoções positivas nele e em outras pessoas
da unidade, incluindo os jovens. Os efeitos iam desde conseguir trabalhar com jovens
que eram considerados problemáticos, possibilitando lugares diferentes para eles
dentro da unidade, produzir alimentos para serem consumidos, no sentido da auto-
sustentabilidade, até melhorar as condições de Segurança, ampliando a visibilidade ao
podar árvores. Uma profissional se referiu a esse trabalho no plano do significado de
cultivar coisas que depois são colhidas, como uma reflexão importante para os jovens.
Ela também disse que, mesmo com possíveis críticas de que não se deveria pôr para
trabalhar menores de idade, a horta na verdade estava visibilizando a necessidade de
se preparar para construir caminhos de vida. Contudo, a horta atualmente está
abandonada, pois muitos agentes saíram da unidade, já hiperlotada, impedindo que
esse agente conseguisse dar continuidade ao projeto, por ser demandado em outras
tarefas. Assim, mais uma vez, a hiperlotação e a precarização se articulam para
fragilizar iniciativas importantes e provocam que os jovens fiquem mais tempo nos
alojamentos e os profissionais nas tarefas burocráticas, minando os propósitos da
socioeducação e afetando o trabalho e a saúde dos próprios agentes (VINUTO;
ABREO; GONÇALVES, 2017).
Por sua vez, as equipes técnicas de medida estão permanentemente imersas na
produção de relatório, tendo o poder da caneta, como expressado por uma profissional
que, por sua vez, pode implicar um outro tipo de cadeado. A prática disciplinar
apontada por Foucault tem como maior função o adestramento. Este se mantém na
utilização de três instrumentos específicos: a vigilância hierárquica, a sanção
normalizadora e o exame, técnica que envolve as outras duas (FOUCAULT, 1975). A
primeira pode ser traduzida como o exercício do poder por meio do olhar, de maneira
que o indivíduo sinta-se constantemente vigiado; a sanção refere-se a uma penalidade
dentro de um sistema de disciplina: micropenalidade do tempo, da atividade, do ser, do
corpo, da sexualidade, e que objetiva punir fisicamente, privar ou humilhar as condutas
desviantes, corrigindo-as. Esses dois elementos já foram apontados neste texto. O
exame, ou, neste caso, o relatório, “vigia, qualifica, classifica e pune” (FOUCAULT,
1975, p.164), exercendo um poder e produzindo um saber sobre “o adolescente-
delinquente e seus desvios” (ABDALLA, 2016, p.35).
188

O relatório, provavelmente o documento mais pessoal que alguns desses jovens


tiveram na vida, tem uma função no processo de individualização – não na
singularização, em termos de Guattari e Rolnik (1996) -, e a Psicologia como ciência
humana se insere nesse processo, produzindo o indivíduo ao avaliá-lo, como uma
prática política disciplinar, adequando-o à sociedade (SCISLESKI, 2014). Inclusive,
como apontado por uma profissional, o fato de a Psicologia ter um lugar tão importante
e delimitado no Sistema, sugere uma individualização do problema, como se os jovens
que estão ali fossem doentes.
Nesse sentido, também é possível pensar a prática da revisão e filtro de cartas e
fotografias que, como explicitado em um documento pregado nas paredes da unidade –
o mesmo que trata das roupas-, “devem ser encaminhadas à Equipe Técnica para
avaliação e somente após será entregue ao adolescente (máximo de duas fotos e duas
cartas)”. Podemos pensar que essas comunicações são extemporâneas, dobrando o
controle, o afeto e a linguagem em uma temporalidade distinta da atual sociedade do
imediato. Também, esta prática é considerada uma violação do direito à privacidade
(CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Uma profissional que questionava muito essas
questões relatou que o Conselho Regional de Psicologia tinha emitido uma nota,
provavelmente a partir de denúncias, dizendo que ler a correspondência dos jovens fere
o Código de Ética da profissão, o que provocou um debate muito interessante no CAI,
colocando em análise, por exemplo, de que forma a neurose com a sexualidade
também capturava a equipe técnica, cujas/os profissionais acabam censurando
conteúdo sem sequer concordar com essa censura e dessa forma se tornando vigias-
cuidadoras dos jovens.
Além disso, o relatório – e sua massificadora quantidade132- pode ser entendido
como um analisador da instituição-forma burocratização, que ao delimitar espaços,
tempos e funções, amaça profissionais e jovens e o próprio sentido de socioeducação,
sugerindo uma sobreimplicação, que

132
Uma profissional disse que elas tinham virado “produtoras de relatórios”, ao ter, em um momento, 60
jovens no seu módulo, que acabavam sendo punidos, porque as audiências demoram demais, e as
profissionais também, porque não conseguiam fazer nada além de relatórios deficientes, sem
elementos suficientes por não conseguir acompanhar os jovens, diante do qual o judiciário deixava mais
tempo ainda no Degase, superlotando-o ainda mais.
189

nos atola em desafetos não discutidos, em papeladas sem sentido, em conflitos


que se atropelam não abrindo espaço para potência de bons encontros e o
cotidiano acaba sendo vivido como fechado em si, em repetições que não
geram diferenças pela análise, um tempo meio perdido em tarefas sucessivas
sem densidade para criações coletivas (ROCHA; UZIEL, 2008, p. 550).

Assim, chama a atenção a forma com que a disciplina Psicologia, como em


muitos outros campos sociais, se apresenta como um campo de saber de controle e
modelização dos corpos, como um esforço “de construção de uma ordem do mundo ao
nível do saber” (GALLO; VEIGA-NETO, 2011, p.23).
Destarte, mesmo com resistências por parte das/os psicólogas/os das unidades,
algumas funções designadas a elas/es acabam reafirmando determinados lugares,
funcionando como “amoladoras/es de facas”, expressão usada por Luis Antonio
Baptista (1999). Como apontado por Pedro Bicalho, Bruno Rossotti e Jefferson
Reishoffer,

Atualmente, dentro do proclamado contexto de incerteza e insegurança pública,


cada vez mais o psicólogo é convocado a atuar nas agências oficiais de
manutenção da ordem e de promoção da segurança. Nada para se estranhar. A
própria constituição da regulamentação da Psicologia no Brasil, através da lei
4.119 de 1962, aponta como uma das funções do psicólogo a “solução de
problemas de ajustamento”. Complementar as engrenagens de vigilância e
disciplinarização com técnicos competentes, supostamente capazes de produzir
disciplina, com vistas à tarefa de “defender a sociedade” de seus refugos
parece ser, neste contexto, uma boa ideia. A atuação do saber-fazer psicológico
vai sendo convocada pelas instâncias da Ordem (BICALHO; ROSSOTTI;
REISHOFFER, 2016, p. 90).

Assim, vemos a Psicologia, em suas expressões hegemônicas, produzindo e


reproduzindo discursos sobre criminalidade, adolescência e sexualidade que
dificilmente potencializam a pluralidade e a democracia. Ou seja, mesmo não
apresentando práticas e discursos violentos como os que alguns agentes proferem,
algumas tarefas das/os psicólogas/os também se constituem como práticas de
tutelagem, de domesticação e, portanto, de controle sobre os corpos. Por sua parte,
uma assistente social também questionou sua profissão, que poderia encaminhar mais
esforços no sentido da responsabilidade pelo próprio corpo, pelo corpo das outras
pessoas, do que se contentar com sua contenção.
190

Nesse sentido, foi muito interessante ouvir as reflexões das técnicas de medida
nos Cursos, apontando que precisavam de “mais contato, menos burocracia”, e
apontando que nas ações que realizaram como desdobramentos dos Cursos tinham
conseguido sair da rotina do relatório e percebido a potência de fazer atividades
distintas com os jovens, além de provocar momentos de relações mais horizontais, sem
o peso da avaliação para relatório133.
A circulação das técnicas é completamente limitada Dentro e Fora da unidade,
inclusive ao não poder participar das audiências. Também, algumas delas relatam a
forte marca do gênero no seu exercício profissional, no momento em que são
apontadas como a mamãezada dos jovens, que “viram anjos quando estão com elas e
que elas passam a mão na cabeça deles, assumindo o lugar de mãe”, como apontado
por alguns agentes, e ao mesmo tempo limitadas a esse lugar. Por sua parte,
Alexander sinalizou que a técnica que o acompanhava “vive no meu pé, não me solta,
me dá bronca, caraca, parece até minha mãe me dando bronca (risos)”, destacando
outra dimensão da noção de maternidade.
As técnicas também discutiram muito durante a pesquisa sobre a vigilância e as
normativas que marcam seus contatos com os jovens, incluindo a limitação das suas
roupas, pois mesmo elas não estando relacionadas com os jovens, as regras de
contenção da sexualidade efetivadas nas visitas familiares se estendem a elas – e a
nós -, tendo que marcar uma constante distância. Eles, por sua vez, também devem
elaborar expressões de respeito para com essas mulheres, tais como o fato de não tirar
a camisa na frente das profissionais – com algumas exceções. Essa distância está
pautada tanto pela privação de liberdade, quanto pelo gênero e a geração, que
as/os/nos coloca em posições de sujeito distintas.
Em uma entrevista realizada com uma agente socioeducativa, desde a primeira
pergunta, que foi a mesma em todas as entrevistas com profissionais, em que
questionávamos de que forma o gênero atravessava seu exercício profissional, ela
relatou imediatamente o caso de um jovem que se apaixonou por ela. Nos pareceu

133
Segundo uma gestora do Degase, a criação dos grupos de saúde mental e saúde integral nas
unidades, diferenciando-os das equipes de medida, foi justamente uma forma de explicitar a captura
burocrática e disciplinadora das profissões – Psicologia, Serviço Social e Pedagogia- no Sistema e
possibilitar outro campo de intervenção dessas disciplinas.
191

interessante, nesse sentido, que para além do segmento, as profissionais mulheres se


pensam como sujeitos generificados em relação nesse espaço, enquanto os homens
geralmente se remetiam às vivências dos jovens, sobretudo a aquelas que fugiam da
cisheteronormatividade, revelando de que forma para o homem heterossexual, e neste
caso adulto e no lugar de poder do profissional, se pensar como ser nas relações de
gênero não é uma prática comum, mas muito pelo contrário, naturalizada, como se
todas suas normas fossem implícitas, generalizáveis e naturais. Assim, ao longo da
pesquisa, tentamos visibilizar de que forma o dispositivo de gênero perpassa não só os
jovens com essas características, mas as performatividades, relações e códigos das/os
profissionais nos diversos segmentos, incluindo a gestão da unidade e a nós
mesmas/os.
No entanto, como já apontado, existe uma divisão entre os segmentos,
expressada por uma profissional como uma diferenciação entre ter um olhar mais
“voltado à socioeducação” e outro “para a Segurança”. Para os agentes, as técnicas “se
acham em outro patamar”, “acham que somos monstros”. Uma agente expressou que a
divisão vem dos dois lados: o agente tem mais o viés da repressão, enquanto as/os
técnicas/os, como a sociedade, tendem a ver os agentes como os maus e os meninos
como os bons. Do mesmo modo foi apontado que “algumas técnicas nem dão bom dia
para os agentes, e chegam a abraçar os adolescentes” e que “tanto tem agente que
não gosta de bater quanto tem técnico que não gosta de atender, que só quer atender
adolescentes específicos, não gosta de atender meninos muito pobres, muito feios,
muito miseráveis”. Também foi expressado que as técnicas “chegam querendo aplicar a
formação delas, o que está certo, mas tem que se enquadrar nas medidas
socioeducativas, aqui é um lugar de disciplina” e que algumas “têm uma cabeça muito
maluca, de outro mundo”, ao ter uma postura diferente à dos agentes. Chegamos a
presenciar, inclusive, um conflito deste teor, onde um agente falou: “você aqui é técnica,
quem entende de Segurança somos nós”.
As/os docentes da escola, mesmo não entrando no racha entre agentes e
equipes técnicas, têm um lugar também bem delimitado, pois apesar de organizar
atividades e conseguir articular práticas e propostas diferentes e extremamente
interessantes e valorizadas, tais como o jornal do CAI e peças artísticas e musicais,
192

muitos não participam tanto do cotidiano da unidade fora do horário escolar. Escutamos
algumas críticas à escola, por parte de agentes e jovens, por utilizar apenas recursos
audiovisuais e por constantemente cancelar as aulas, coisa que outros setores, como
os agentes, não poderiam fazer134. Também ouvimos relatos de pouco diálogo entre
docentes e equipes.
Nas nossas atividades, as/os profissionais chegaram a chamar essa imensa
separação e até antipatia entre os segmentos de facções, assemelhando a falta de
comunicação, respeito, entendimento e reconhecimento entre eles, fenômeno que
começa desde a formação inicial135. Isto foi apontado também em cursos na EGSE,
como característica de todas as unidades. O especialismo entra, assim, como uma
instituição-forma da dobra do registro contínuo do conhecimento, segmentando e
segregando de forma naturalizada (ROCHA e AGUIAR, 2008) e produzindo saberes
específicos que ao tempo em que disputam entre si, exercem poderes sobre os jovens.
Assim, existe uma série de mecanismos na instituição-estabelecimento que
buscam padronizar e despersonalizar os jovens – e as/os profissionais-, nos permitindo
pensar o mundo em que esses jovens se inserem, no momento em que a noção de
socioeducação se constitui como uma dobra entre educação, ressocialização, punição
e docilização, em uma “vida institucional” marcada pela “engrenagem desumanizadora”
(ASSIS, 1999, p.15), cuja ineficiência e relações “completam um ciclo de estagnação do
próprio sistema” (idem), quase vinte anos depois do observado por Simone de Assis.
Neste contexto, vemos como o poder disciplinar não só faz parte da instituição-
estabelecimento, mas se posiciona como início, meio e fim desta, pois as pessoas
estão ali por conta das produções enrijecidas das relações, são atravessadas por estas
e as perpetram constantemente. Exemplo disso são os inúmeros e preocupantes
relatos de adoecimento de profissionais no Degase, incluindo afastamentos por

134
Além da rotatividade já mencionada, outras questões foram apontadas como desafio para o exercício
docente, tais como as rixas entre fracções, que impediam utilizar didáticas onde os jovens interagissem
mais do que numa aula tradicional.
135
Ainda outra diferenciação existe entre profissionais que entraram por contrato ou por concurso, sendo
que os/as primeiras estão em condições mais instáveis e precárias de trabalho, o que também
atravessa as relações. Também foram percebidas distinções entre as pessoas “mais antigas” no CAI e
as de entrada mais recente, além das diferenças geracionais.
193

problemas psiquiátricos136 e expressões como “depois de tanto tempo no Degase,


minhas ilusões foram para o ralo”.
Nesse sentido, focando no gênero e sexualidade e considerando todos os seus
atravessamentos, a nossa proposta cartográfica feminista de pesquisa-intervenção era
trabalhar a singularização como constituição de uma experiência, uma possibilidade
concreta de luta – a partir de táticas moleculares cotidianas - contra formas de
subjetivação capitalística e sobrecodificação molar.
No entanto, apesar da pouca comunicação entre e dentro dos segmentos do
CAI, o que foi perceptível na hora de articular nossas propostas, alguns/as profissionais
ponderaram que, pela distância de outras unidades, as equipes do CAI costumam ter
mais articulação entre si, uma engrenagem melhor, com um objetivo comum. Nesse
sentido, buscamos, a partir das nossas ações com profissionais, potencializar o diálogo
entre os segmentos que, apesar de reafirmar a divisão, reconheceram parcerias.

136
Essa questão foi colocada desde o início do campo. Chegamos a escutar que tinha reclamações de
que os jovens tinham acompanhamento psicológico e os/as profissionais não. Também, uma pessoa
que frequentava o CAI e era muito querida, disse que precisávamos trabalhar com as/os profissionais,
pois eles/as “trabalham no limite, sem suporte nenhum, que precisam de um acompanhamento, que
tem a vida colocada em risco cotidianamente por falhas da instituição”. Ela chegou a falar inclusive que
profissionais precisavam mais do nosso trabalho do que os próprios jovens. Por outro lado, duas
pessoas disseram que provavelmente seria mais difícil trabalhar com profissionais do que com os
próprios jovens.
194

4. A DOBRA QUE GENERIFICA

Israel: Gabriela, escuta uma coisa, vocês mulheres têm aqui uma
visão. Nós menino que tamos aqui dentro, é outra visão,
totalmente diferente. Que estamos uuuurrrrhh, como, aquele
nervosismo total. E os cara “vamo logo!!!”
Gabi: quem, os agentes?
Israel: é, “vamo logo!!!”. Israel [(18 anos, negro)]

A fala acima traz vários pontos importantes para a nossa discussão. Primeiro,
diferente da maioria das falas dos jovens, Israel utiliza aqui o termo menino. Com isso,
ele está acionando um léxico que ele sabe ser usado por profissionais e
pesquisadoras/es, especialmente mulheres. Além disso, afirma que a instituição-
estabelecimento unidade socioeducativa, onde circulam homens e mulheres, acaba
tendo um locus exclusivo que só os homens conhecem, vivenciam, disputam e sofrem,
uma “casa dos homens” (DOS SANTOS; NARDI, 2014)137 composta por múltiplos
personagens, tais como, nessa mesma frase, meninos e caras.
No momento em que Israel menciona “os cara”, se refere a um grupo distinto e
oposto a eles, que exerce uma autoridade, dando ordens, mas também disputa
performatividades nas tramas do encarceramento poroso. Neste caso, esta disputa gera
o que ele identifica como nervosismo, emoção que podemos diferenciar de medo.
“Estar nervoso” significa ansiedade, estar à espera, compreendendo a ameaça, mas
com uma possibilidade de resposta, de reação e, portanto, de participação no jogo
masculino de poderes, do qual “vocês mulheres” não têm uma visão precisa.
Anteriormente, vimos como vão se tecendo tramas de poder entre as
instituições-organização, instituições-estabelecimento e instituições-forma, produzindo e

137
Como apontado por Marcos Nascimento e por Thiago Melício, as facções também poderiam ser
entendidas como “casas dos homens”. Assim como as unidades socioeducativas masculinas, as casas
dos homens são produtoras, reificadoras ou transformadoras das performatividades masculinas. Vemos
assim uma transversalidade das regulamentações das “casas dos homens” que produzem
subjetividades.
195

naturalizando códigos, onde fissuras sempre abrem caminho. Neste capítulo, o objetivo
é discutir como essas tramas vão se compondo em performatividades dos jovens, em
dobras que produzem modos de relação, subjetividades, marginalidades e hegemonias
que por sua vez movimentam outras dobras nos diversos territórios, incluindo a
instituição-organização Degase, onde profissionais e pesquisadoras/es também se
relacionam com suas respectivas performatividades.
Na perspectiva de Judith Butler,

o gênero não é um substantivo, mas tampouco é um conjunto de atributos


flutuantes, pois vimos que seu efeito substantivo é performativamente produzido
e imposto pelas práticas reguladoras da coerência do gênero [...]. não há
identidade de gênero por trás das expressões de gênero; essa identidade é
performativamente constituída, pelas próprias “expressões” tidas como seus
resultados (BUTLER, 2003, p. 48).

Conforme explicado por Rodrigo Borba, performance e performatividade são


diferentes, pois

Performatividade não é performance; a performatividade é o que possibilita,


potencializa e limita a performance (Sullivan, 2003; Cameron & Kulick, 2003;
Pennycook, 2007). Entender gênero, sexo, sexualidade, raça, desejo como
performativos não é meramente afirmar que eles são uma performance (num
sentido estritamente teatral), mas sim que eles são produzidos na/pela/durante
a performance sem uma essência que lhes serve de motivação (BORBA, 2014,
p.449).

Deste modo,

ambas as posições, masculina e feminina, são assim instituídas por meio de leis
proibitivas que produzem gêneros culturalmente inteligíveis, mas somente
mediante a produção de uma sexualidade inconsciente, que ressurge no
domínio do imaginário” (BUTLER, 2003, p. 52).

A autora também aponta que

Ser homem ou mulher “é um termo em processo, um devir, um construir de que


não se pode dizer com acerto que tenha uma origem ou um fim. Como uma
prática discursiva contínua, o termo está aberto a intervenções e re-
significações. Mesmo quando o gênero parece cristalizar-se em suas formas
mais reificadas, a própria “cristalização” é uma prática insistente e insidiosa,
sustentada e regulada por vários meios sociais. [...] O gênero é a estilização
repetida do corpo, um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura
196

reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a


aparência de uma substância, de uma classe natural de ser. A genealogia
política das ontologias do gênero, em sendo bem-sucedida, desconstruiria a
aparência substantiva do gênero, desmembrando-a em seus atos constitutivos,
e explicaria e localizaria esses atos no interior das estruturas compulsórias
criadas pelas várias forças que policiam a aparência social do gênero (BUTLER,
2003, p. 59).

Como dito anteriormente, a passagem pelo Sistema Socioeducativo parece ser


um momento crítico nas trajetórias juvenis masculinas desses homens. Mesmo sem
uma certeza de qual a estatística dos jovens que fazem parte do tráfico de drogas antes
de entrar no Degase, é importante considerar a relevância dessa instituição na vida da
maioria deles, sobretudo na produção de subjetivações. Inclusive, porque, como já nos
foi relatado, muitos deles acabam se envolvendo no tráfico justamente quando estão
internados ali. É ali também que se inscrevem importantes linhas de subjetivação, que
vão produzindo e/ou reproduzindo o lugar de Bandido, traficante, e, no final, homem, e
tudo que isso traz como direitos e obrigações, na geometria das humanidades legíveis.
Nesse sentido, é importante lembrar que a cartografia considera a subjetividade
como indissociável da ideia de produção ou rede processual, como produção
permanente de si e da/o outra/o, como contorno provisório em processo (POZZANA;
KASTRUP, 2009). Com esse entendimento, é fundamental considerar o processo
indissociável em que “a criação de uma cartografia e a compreensão de quem a realiza
são indivisíveis e não podem se separar sem se deter no processo” (BENET; MERHY;
PLA, 2016, p.232, tradução livre). Ao privilegiar o conceito prático do plano de diferença
e de jogo de forças, a/o cartógrafa/o já põe suas questões na interação e na
interpelação do campo, enxergando a tensão como produtiva e a sensibilidade como
potencialidade para produção de territórios em comum.
Reafirmando o caráter feminista desta cartografia, é preponderante pôr em
análise que, na produção de subjetividades e portanto nas suas cartografias, os
dispositivos de gênero e sexualidade são potentes tanto na cristalização quanto na
emergência de existências, resistências e linhas de fuga de quem participa da
pesquisa-intervenção, sendo o nosso principal foco.
197

Nesse sentido, posso sugerir que embora existam cada vez mais mulheres
envolvidas no tráfico e em outras criminalidades138, “o mundo do crime” e as instituições
de privação da liberdade aparecem como um crivo na reificação das trajetórias dos
homens e como cenário de certa performatividade masculina139, compondo a
“masculinidade do Bandido”. Assim, mesmo com uma mudança radical de estilo de vida
e de posição de sujeito fora e dentro do Sistema Socioeducativo, parece que a
passagem por ele também faz parte da “vida de um Bandido”, como mais uma dobra
nessa experiência. Desta forma, ser Bandido é uma forma legítima de ser homem, e ser
encarcerado, mesmo vindo de uma possível falha nas operações ou de um sacrifício
por alguém mais velho da facção, faz parte dessa trajetória, o que entre as mulheres
não é, como expressado por Carlos Lorenzo, ao dizer que uma jovem estava
estragada, porque estava presa e grávida, ou por Jhosivani, ao apontar que “as
mulheres não gostam muito, gostam de estudar. Mas tem algumas que se perde. E é
pouco, não é muito”. E como tampouco é dos gays ou das mulheres trans, eis o fato
deles/as não terem um lugar “no convívio”.
Assim, é necessário afirmar que o gênero “não deve ser meramente concebido
como a inscrição cultural de significado num sexo previamente dado (uma concepção
jurídica); tem de designar também o aparato mesmo de produção mediante o qual os
próprios sexos são estabelecidos” (BUTLER, 2003, p. 25); “é uma complexidade cuja
totalidade é permanentemente protelada, jamais plenamente exibida em qualquer
conjuntura considerada” (BUTLER, 2003, p. 37).
Nesse sentido, parece importante pensar na noção de masculinidade(s),
entendida não como

uma entidade fixa encarnada no corpo ou nos traços da personalidade dos


indivíduos. As masculinidades são configurações de práticas que são realizadas
na ação social e, dessa forma, podem se diferenciar de acordo com as relações
de gênero em um cenário social particular” (CONNELL, 2013, p. 250).

138
Curioso que, no momento em que estava escrevendo a tese, fui roubada por três mulheres de mais de
sessenta anos, cujas dobras de gênero e geração transgridem o esperado nesse tipo de prática.
139
Raewyn Connell (2013) faz referência a várias pesquisas que apontam que os homens e os meninos
perpetram mais os crimes convencionais – e os mais sérios desses crimes– que as mulheres e as
meninas.
198

De acordo com a cientista social australiana Raewyn Connell (1995, 2000) as


masculinidades são construídas com base em projetos hegemônicos, que são criados,
construídos, imaginados, considerados como padrão e disseminados a partir do
discurso das experiências que, a cada momento, busca ser consolidado nas
performatividades significadas como masculinas. Desta forma, homens aprendem a se
tornar homens por meio dos projetos de gênero masculino com os quais se envolvem e
pelo pertencimento a determinados grupos.
Nessa perspectiva, para Raewyn Connell (1995), as masculinidades são
configurações em torno da posição dos homens na estrutura de relações de gênero e
refletem-se em suas experiências físicas, pessoais e culturais. Por outro lado, o
caminho para concretizar as regras da masculinidade precisa ser construído e
conquistado e a possibilidade de se desviar desse caminho é uma constante ameaça
na vida dos sujeitos. Como apontado por esta autora:

Relações de gênero são sempre arenas de tensão. Um dado padrão de


masculinidade é hegemônico enquanto fornece uma solução a essas tensões,
tendendo a estabilizar o poder patriarcal ou reconstituí-lo em novas condições.
Um padrão de práticas (isto é, uma versão de masculinidade) que forneceu
soluções em condições anteriores, mas não em novas situações, é aberto ao
questionamento – ele, de fato, será contestado (CONNELL;
MESSERSCHMIDT, 2013, p.272).

Depois de anos de ter proposto o conceito e de ter recebido tanto críticas quanto
argumentos empíricos para este, Connell (2013) faz uma revisita ao conceito de
masculinidade hegemônica. Ela aponta que alguns elementos da proposta inicial devem
ficar, tais como a pluralidade nas masculinidades e a hierarquia entre elas, entendendo
que algumas são “socialmente mais centrais ou mais associadas com autoridade e
poder social do que outras”, processo que acontece através do “consenso cultural, a
centralidade discursiva, a institucionalização e a marginalização ou a deslegitimação de
alternativas”. Igualmente, reafirma que a hegemonia de determinada masculinidade não
opera a partir do lugar comum da maioria dos homens e meninos, mas através da
produção de exemplos de masculinidade, mesmo que muitos não possam alcançá-los.
Igualmente, ela frisa que as masculinidades são constantemente contestada por
movimentos feministas e de mulheres, por homens “portadores de masculinidades
199

alternativas” e mudam ao longo do tempo, suscitando “novas estratégias nas relações


de poder” e em “redefinições da masculinidade socialmente admirada”.
Por sua parte, integra algumas críticas e propõe algumas reformulações. Por
exemplo, traz a importância da complexidade das relações entre diferentes construções
da masculinidade, sobretudo no nível local, contexto que também define “a motivação
em direção a uma versão hegemônica específica”. Também reflete no que tange à
incorporação que as masculinidades hegemônicas fazem de elementos de outras
masculinidades – marginalizadas e subordinadas, que exercem agência -, o que faz
com que mudem. Neste sentido, ela fala da “masculinidade de protesto”, entendida
como

um padrão de masculinidade construído em contextos locais de classes


trabalhadoras, algumas vezes entre homens etnicamente marginalizados que
encorporam a reivindicação de poder típica de masculinidades hegemônicas
regionais em países ocidentais, mas carecem de recursos econômicos e
autoridade institucional para sustentar os padrões regional e global dessa forma
de masculinidade [...] (esses padrões de masculinidade não hegemónica)
podem representar respostas bem trabalhadas à marginalização racial/étnica, à
deficiência física, à desigualdade de classe ou à sexualidade estigmatizada. A
hegemonia pode se realizar pela incorporação de tais masculinidades em uma
ordem de funcionamento do gênero, em vez de uma opressão ativa na forma de
descrédito ou violência. Na prática, tanto a incorporação como a opressão
podem ocorrer juntas (CONNELL; MESSERSCHMIDT, 2013, p.151).

Ela insiste no caráter relacional das masculinidades, ou seja, que elas se constituem
nas interações entre homens e mulheres, nas configurações de práticas. Também, se
instala nos corpos não apenas como “objetos de prática social”, mas como agentes. Por
último, trazendo a discussão do sujeito na prática de gênero, reconhece “a
estratificação, a potencial contradição interna, dentre todas as práticas que constroem
masculinidades” e que essas práticas representam “formações comprometidas por
desejos contraditórios ou emoções”, “resultados de cálculos incertos sobre os custos e
os benefícios de diferentes estratégias de gênero”, quer dizer, as “masculinidades são
configurações da prática que são construídas, reveladas e transformadas ao longo do
tempo” (idem, p.263).
Nesta mesma linha, o antropólogo português Miguel Vale de Almeida aponta que

masculinidade e feminilidade não são sobreponíveis, respectivamente, a


homens e mulheres: são metáforas de poder e de capacidade de acção, como
200

tal acessíveis a homens e mulheres. Se assim não fosse, não se poderia falar
nem de várias masculinidades nem de transformações nas relações de género
(1996, p.161).

O autor também sinaliza, em um dos primeiros trabalhos sobre masculinidades


inspiradores no Brasil, fundamental para pensar na pluralidade de masculinidades, que
“a masculinidade hegemónica é um consenso vivido. As masculinidades subordinadas
não são versões excluídas, existem na medida em que estão contidas na hegemonia,
são como que efeitos perversos desta, já lá estão potencialmente” (idem). Igualmente,
ele aponta que

a masculinidade hegemónica é um modelo cultural ideal que, não sendo


atingível – na prática e de forma consistente e inalterada – por nenhum homem,
exerce sobre todos os homens e sobre as mulheres um efeito controlador. Mais:
a própria masculinidade é internamente constituída por assimetrias (como
heterossexual/homossexual) e hierarquias (de mais a menos “masculino”), em
que se detectam modelos hegemónicos e variantes subordinadas (os termos
são de Carrigan, Connell e Lee, 1985). Isto só pode significar duas coisas: que
a masculinidade não é a mera formulação cultural de um dado natural; e que a
sua definição, aquisição e manutenção constitui um processo social frágil,
vigiado, auto-vigiado e disputado (VALE DE ALMEIDA, 1996, p.162).

Este autor, inspirado na perspectiva foucaultiana, entende a masculinidade como


um fenômeno discursivo -e do discurso enquanto prática-, e analisa, em um contexto
específico em Portugal, “a complexa relação entre homens concretos e masculinidade”.
Ele define esse contexto como “um campo de disputa de valores morais, em que a
distância entre o que se diz e o que se faz é grande” (1996, p.162).
Assim como este autor, estamos aqui nos referindo a um universo concreto, onde
certos discursos sobre masculinidades circulam e são agenciados em uma série de
normas, corpos e práticas. Nesse processo, as relações se definem no fluxo da ação
(NASCIMENTO, 2007), onde existe um patrulhamento de gênero que atravessa

a relação entre os homens e as configurações possíveis de masculinidade [...]


Dito de outro modo, há uma vigilância incessante sobre a performance, os
discursos e práticas cotidianos dos homens (por parte de seus pares
masculinos), tendo como referência um modelo idealizado de “homem de
verdade”. É no exercício do autopatrulhamento e do patrulhamento alheio que
os homens procuram obter o aval para suas credenciais masculinas. Esse
dispositivo controlador busca regular as expressões de afeto; fomenta o silêncio
de muitos deles em mostrarem-se com opiniões contrárias ao senso comum
machista devido ao medo do julgamento dos outros homens; reproduz um
201

modelo de criação dos/as filhos/as segundo uma ideologia machista, entre


outros efeitos (NASCIMENTO, 2011, p.175).

Desde a formulação do termo de masculinidade, e mais ainda com as


reformulações apresentadas, ele se distancia explicitamente de qualquer perspectiva
que fale sobre os “papéis de gênero”, entendidos como scripts onde sujeitos a priori
cumprem. Assim, a masculinidade pode ser entendida como um

modelo hegemônico, que busca se atualizar constantemente nas práticas


desses sujeitos ‘homens’, mas que nunca é alcançado por completo. Ela surge
sempre como fruto de um embate entre masculinidades subordinadas e
hegemônicas, sempre adquirida a partir de esforço e de conflito. Portanto, a
masculinidade é algo frágil e constantemente questionado nas interações entre
sujeitos; nas suas relações sociais que são, sempre, relações de poder
(COSTA, 2002, p. 258).

Como apontado pela cientista social brasileira Fátima Cecchetto, apesar de os


binarismos excludentes serem mais atraentes para a análise, ao pensar masculinidade
hegemônica vs. subalterna, há que se pensar que as masculinidades são
interdependentes e múltiplas. Nesse sentido, é importante buscar formas de reconhecer
agência e fluxo e pôr atenção aos significados locais, que são dinâmicos, à contestação
da essencialização. A partir disso, posso propor que o gênero se remete a
características e atributos que reconhecemos nos corpos e nos comportamentos, mas
também a lugares e a territórios intensivos, físicos e existenciais. Deste modo,
poderíamos pensar que a “masculinidade do Bandido” é subalterna, no sentido de
dobrar em sujeitos específicos que não têm acesso aos valores hegemônicos e de certa
forma os transgridem. Mas ela também se usa desses valores para afirmar certas
normas da masculinidade entendida como hegemônica, tais como não ter sentimentos,
ser honesto, falar a verdade, assumir responsabilidades, ser guerreiro, não ter medo de
morrer, se apoderar dos corpos feminizados e ao mesmo tempo respeitar a sexualidade
das mulheres de outros, ser heterossexual, o que mostra os limites de pensar apenas
nessas duas categorias. Elementos que, como será explorado, se desvendam em
performatividades e disputas específicas.
É importante, contudo, evitar reafirmar que esses grupos são a única fonte de
“masculinidades tóxicas”, no sentido do seu engajamento em práticas violentas e de
constante reafirmação de dominação, pois eles não são uma espécie de fonte, mas um
202

dos seus modeladores que lidam e subvertem a exclusão social e os valores


capitalísticos reforçados pelas diversas instituições-organização, onde os homens são
geralmente protagonistas.
No Colóquio de Masculinidades, o argentino Luciano Fabri apontava que ao
invés de adjetivar a masculinidade -hegemônica, nova, etc.-, seria mais interessante
entendê-la historicamente, politizá-la, explorar como ela se corporeifica, focar na
relação de poder mais do que na identidade, desindividualizando, descentrando e
complexificando para criar novos territórios. Assim, vemos um repertório de
masculinidade apresentada como modelo para os jovens, um tipo de instituição-
organização que contorna essa produção e perpetua certas violências, enquanto outros
grupos de jovens homens perpetuam outras ou em outros formatos, tais como os
justiceiros (que matam e amarram jovens negros), os neonazistas, ou os jovens
políticos envolvidos em redes de corrupção ou de tráfico de pessoas.
Nesse sentido, parece importante falar das contestações, dos embates, das
mudanças, mas indo além do fixado e apresentado como modelo, focando nos códigos,
patrulhamentos e punições que o reificam, e também nas performatividades, nas
circunstâncias, nas práticas que vão constituindo o sujeito enquanto desempenha atos,
nessas negociações com o contexto, com o modelo, com as dobras de subjetividade
desses jovens, de outros homens nesse universo e de mulheres que desenvolvem
diversas performatividades masculinas e femininas, compondo um campo tenso e
complexo. Eis como e por que a noção de performatividade pode nos auxiliar.
Como apontado por Miguel Vale de Almeida (1996, p.3), “é ao nível da negociação
quotidiana, das interacções carregadas de poder, das reformulações das narrativas de
vida, que o gênero como processo e prática pode ser apreendido”. Desta forma, como
abordado até agora, parece interessante pensar a masculinidade como um modelo
composto por dispositivos de subjetivação, mas também explorar performatividades
estéticas, emocionais, corporais, singulares.
Assim, podemos entender a masculinidade como agenciamento molar, definido por
“códigos específicos, que se caracterizam por uma forma relativamente estável e por
um funcionamento reprodutor: tendem a reduzir o campo de experimentação de seu
desejo a uma divisão preestabelecida” (ZOURABICHVILI, 2004, p.9) e as
203

performatividades masculinas como agenciamentos locais, moleculares, através dos


quais o sujeito como terminal investe e participa da reprodução dos agenciamentos
molares. Nos agenciamentos moleculares, o indivíduo

é apanhado, seja porque, limitando-se a efetuar as formas socialmente


disponíveis, a modelar sua existência segundo os códigos em vigor, ele aí
introduz sua pequena irregularidade, seja porque procede à elaboração
involuntária e tateante de agenciamentos próprios que "decodificam" ou "fazem
fugir" o agenciamento estratificado: esse é o pólo máquina abstrata (entre os
quais é preciso incluir os agenciamentos artísticos). Todo agenciamento, uma
vez que remete em última instância ao campo de desejo sobre o qual se
constitui, é afetado por um certo desequilíbrio (ZOURABICHVILI, 2004, p.9).

Deste modo, os agenciamentos molares repousam em agenciamentos


moleculares, que implicam “gestos, atitudes, procedimentos, regras, disposições
espaciais e temporais” e o indivíduo/sujeito “não é uma forma originária evoluindo no
mundo como em um cenário exterior ou um conjunto de dados aos quais ele se
contentaria em reagir: ele só se constitui ao se agenciar, ele só existe tomado de
imediato em agenciamentos” (ZOURABICHVILI, 2004, p.9).
Podemos, assim, pensar em alguns agenciamentos molares que operam através
de estratégias de reafirmação de um modelo territorializado neste contexto. Vemos
assim uma masculinidade capitalística, como projeto social que nos impacta a todos/as
através de dispositivos como a ostentação, em uma lógica que opera através das
instituições-organização como as facções do tráfico.
Desta forma, as intensidades corporais, de desejo, de modo de vida, de trabalho,
de relação com as/os outros e de construção de si, são perpassadas e produzidas por
classificações que se engrenam nessa ordem, pois

a ordem capitalística produz as modos das reIações humanas até em suas


representações inconscientes: os modos como se trabalha, como se é
ensinado, como se ama, como se trepa, como se fala, etc. Ela fabrica a relação
com a produção, com a natureza, com os fatos, com o movimento, com o corpo,
com a alimentação, com o presente, com o passado e com o futuro
(GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.42).

Também podemos pensar em uma “masculinidade do Bandido”, com regras


constantemente afirmadas e reafirmadas como se fossem naturais e óbvias, muitas
vezes através da violência, seja explícita ou latente.
204

Nesse sentido, vemos lógicas morais e discursivas que operam através de


dispositivos como o risco, o moralismo e o heroísmo, em dinâmicas complexas e
diversificadas. Igualmente, as classificações operacionalizam esses dispositivos, com
termos como X9, mancão, Jack, que delimitam quem é inteligível, quem deve morrer,
quem deve ser punido, quem deve permanecer afastado. Por exemplo, os
mandamentos do Comando Vermelho entram nessa engrenagem. Segundo uma
fotografia que a nossa equipe recebeu, estes são:

1. Não negar a pátria


2. Não cobiçar a mulher do próximo
3. Não conspirar
4. Não acusar em vão
5. Fortalecer os caídos
6. Orientar os mais novos
7. Eliminar nossos inimigos
8. Dizer a verdade mesmo que custe a vida
9. Não caguetar
10. Ser coletivo
Se eu avançar, siga-me. Se eu recuar, mate-me. Se eu morrer, vinga-me. Pois
somos guerreiros do Comando Vermelho

Como apontado por Carla Mattos no Ciclo sobre Violência, Política e


Sociablidade Urbana, estes mandamentos são um exemplo da “expansão discursiva do
crime”, ao propor fundamentos como forma de pensar fronteiras. Eles não são
necessariamente do CV, mas aparecem como se fossem, da mesma forma em que
categorias como novinha e fiel, pois são práticas de relação consigo e com os/as
outros/as onde a facção aparece como referência e como vigilante.
Desta forma, o tráfico, ao se articular como uma corporação militar, cria políticas de
subjetivação em tempos de guerra, se apropriando de elementos do modelo de
masculinidade capitalístico e encontra mecanismos, códigos, valores e linguagens para
oferecê-lo a jovens que não têm acesso a ele. Com este fim cria códigos que enrijecem
e formatam essa produção de masculinidade, propondo a “masculinidade do Bandido”,
cujos sujeitos portam armas, se apoderam de territórios e de mulheres. Essa
masculinidade e suas performatividades, por sua vez, coexistem, oscilam, disputam,
dialogam, se opõem e convivem com outras de forma situacional, como a
“masculinidade do crente”, a “masculinidade do policial”, a “masculinidade do
205

trabalhador/morador/responsa”, circunscrevendo o campo de possibilidades de atuação


e de distinção social.
Nesse sentido, como já abordado, mesmo com as coalizões entre algumas
facções e algumas comunidades religiosas, em muitas narrativas “ser da igreja” foi
apresentado como um caminho alternativo para os jovens, cujos modos de vida são
muitas vezes considerados opostos aos dos religiosos. Isto inclusive possibilita que eles
não recebam as pressões do estabelecimento, como apontado por Jonas:

Gabi: quando você chega aqui, a galera te pergunta?


Jonas: é, de qual facção, “da 2, da 3? Assim e assim?”, entendeu?
Gabi: ah é? Assim que entra?
Jonas: é. Tipo assim, você tá parado assim, por exemplo, você é um
adolescente que acabou de chegar agora, vai conhecer a casa, eu vou olhar
pra você e falar “dois, três”, aí é só você me responder “ah, assim”, aí eu sei
que é da mesma facção que eu,
Gabi: mas não existe nenhum menino que diga que não é de facção nenhuma?
Jonas: tem, tem. Já entrou menino da igreja aqui uma vez. Era da igreja e não
era de facção nenhuma
Gabi: e aí respeitam?
Jonas: respeitam, tranquilo, conversa na moral

No caso do agenciamento da “masculinidade do Bandido”, vemos uma


reconfiguração da masculinidade capitalística, regulada pelas possibilidades e
obrigações que o tráfico e a “vida do crime” apresentam no que tange ao domínio do
espaço público e das transações financeiras locais, gerando outro tipo de saturação das
relações sociais, outro tipo de sufoco - no sentido das restrições comerciais, de
moradia, de relação, de uso do espaço - que limita os espaços de experimentação de
relações menos violentas, de resistência aos saberes e poderes instituídos que
produzem exclusões e discriminações raciais e sociais.
Vemos isso em outros contextos trazidos por Gary Barker (2008), nos Estados
Unidos, no Caribe e na África subsaariana, assim como por Amaral Arévalo (2016), ao
falar dos “maras” na América Central, gangues compostas e lideradas majoritariamente
por homens jovens, onde também é possível ver disputas de controle de território,
normas de heterossexualidade compulsória –proibindo práticas homossexuais,
especialmente passivas-, estruturas hierárquicas, processos de iniciação, exercícios
extremos de violência, assim como estéticas particulares e as promessas da bravura,
da atividade genital heterossexual, de deixar de ser moleque.
206

Desta forma, podemos fazer uma geografia dos agenciamentos de


masculinidades e performatividades masculinas, cartografando mapas narrativos e de
experiência, acompanhando fronteiras, repertórios, experiências fluidas, processos
sensíveis, repertórios de práticas de gênero que entram em jogo no território político da
instituição-estabelecimento. A proposta é, com isso, extrair a potência imanente das
masculinidades em conflito, a partir da sua diversificação de performatividades. Para
isso, usarei um conjunto de falas dos jovens a partir do conceito usado por eles de
sujeito homem, revelando as tensões entre o que é justificado, regulado ou interpelado
pelos códigos (inter)institucionais –enquanto linhas duras- do tráfico e do Degase, que
se constituem como instituições-organizações pedagógicas e de assujeitamento.

Cutberto: a gente está aqui mas nem se conhece, eu não sei o que ele vai ser,
sujeito homem ou sujeito a homem

A primeira vez que escutei a expressão sujeito homem, nessa frase, em um dos
grupos, fiquei extremamente curiosa, o que por um lado mostra de que forma o fato de
ser estrangeira pode permitir prestar atenção a alguns detalhes sem naturalizá-los, ao
tempo em que pode impedir entender muitas nuances. Naquele momento não consegui
explorar o que Cutberto queria dizer, pudendo só imaginar que um sujeito homem
sugeriria uma autonomia, enquanto que sujeito a homem revelava uma dependência
e/ou uma submissão. A importância dada por Cutberto a esta distinção me levou a
querer explorar essa expressão e seus significados para os jovens em termos de
agenciamentos molares e moleculares.
A partir disso, decidimos perguntar nas entrevistas individuais como eles definiriam
esse conceito, pergunta que alguns estranhavam, por considerar que era dado. O
conceito de sujeito homem pode funcionar como um dispositivo de controle que “fabrica
fronteiras de produção de comum e de desigualdade”, em palavras de Fátima
Cecchetto. É um analisador das masculinidades em situação e das performatividades
masculinas em processo, no momento em que suas definições e contextualizações,
surgidas em atividades em grupo e entrevistas individuais, foram múltiplas e muitas
vezes atreladas umas a outras, revelando de que forma os dispositivos de sexualidade,
gênero/masculinidade e idade/juventude perpassam rizomaticamente a composição de
207

discursos, relações de poder, performatividades e trajetórias, produzindo sujeitos e


significados.
Assim, podemos pensar nas disputas entre essas performatividades no campo
Dentro e Fora do estabelecimento, em um campo tenso de regulações, transgressões e
contestações que atuam ao mesmo tempo, sem se suprimir.

4.1 Sujeito-homem-ostentador

Bernardo: tem mulher também que vem na boca de fumo pra


vender o corpo em troca de droga, dinheiro, e ali, filha, o cara que,
vai fazer o que, cara, vai pegar a mulher. Nós somos homem,
somos sujeito, somos isso tudo, isso acontece.

Nesta fala, podemos destacar dois pontos. Primeiro, vemos de que forma “o
homem viril sente sempre disposição à conquista, e sua dignidade, sua moral depende
de não dizer não diante de uma oportunidade” (MACHADO, 2004, p.44). Igualmente,
observamos uma narrativa recorrente, a respeito de como o status da boca de fumo
significa para os jovens uma possibilidade de atrair mulheres, o que é considerado uma
conquista em grande parte das masculinidades (BARKER, 2008) e aqui consideramos
como parte de um agenciamento molar.
Como apontado anteriormente, a instituição-organização-tráfico oferece a
reafirmação de uma masculinidade capitalística a jovens que crescem em um contexto
de desigualdade racial, pobreza, judicialização e retrocesso nos avanços dos direitos
humanos, que por si já são seletivos na nossa sociedade, o que produz situações de
violência de diversos tipos. São apresentados a um lugar onde é possível exercer certo
tipo de poder, onde se tem acesso a um status, onde se pode se aproximar de um
modelo de masculinidade configurada como projeto de distinção social (VALE DE
ALMEIDA, 1996) através da ostentação, para utilizar um termo caro ao campo, que
significa ter de armas, motos, joias, roupa de marca – itens sempre integrados nos
208

desenhos que os jovens faziam nas nossas atividades-, assim como relações com
muitas mulheres, o que também foi observado por Silvia Ramos (2011). Assim,
ostentação, como dispositivo de distinção social, vira um crivo primordial na produção
de performatividades masculinas, como apontado por Marcos Nascimento.
Israel traz vários pontos para essa análise, incluindo a instabilidade da vida no
tráfico, que, como apontado por jovens que saíram dele, entrevistados por Silvia
Ramos, “já não dá tanto dinheiro, é incerto, arriscado, paga mal, é cansativo e impõe
jornadas e encargos de trabalho que se não forem cumpridos podem custar a vida e
ainda é um mundo cheio de ‘vaidades’ e ‘falsidades’” (RAMOS, 2011):

Gabi: porque você se encantou por essa vida?


Israel: não, não é uma vida boa. Já pra começar, não é uma vida boa, porque já
vi várias pessoas morrendo, por cometer certas falhas. Não é uma vida boa,
mas, eu gostava disso no dia a dia, da adrenalina, às vezes era uma coisa boa,
mas também era uma tristeza. Não é uma vida muito boa não.
Gabi: você gostava da adrenalina?
Israel: é.
Gabi: e o poder que o tráfico dava?
Israel: o poder que o tráfico dá é um poder normal, mas fora isso, o resto é
ilusão
Gabi: por que?
Israel: porque a gestão muda, ne? Eu posso te dar um poder agora, mas se eu
morrer? Acabou o poder. É tudo ilusão, sabe por quê? Porque é andar de fuzil,
pra lá e pra cá, é aquele poder, até maneiro, mas... qual o seu nome?
Gabi: Gabriela
Israel: Gabriela, eu sou experto pra caramba, eu tô no segundo ano do ensino
médio
Gabi: você tá estudando aqui?
Israel: to estudando aqui. Eu parei na pista no primeiro ano, porque eu quis
Gabi: e você foi do tráfico quanto tempo?
Israel: dois anos.
Gabi: conquistou alguma coisa?
Israel: conquistei nada não, cara.
Gabi: tudo que entrava saía?
Israel: não. Dá pra trabalhar com inteligência, dá pra juntar dinheiro.
Gabi: você juntou?
Israel: cheguei a juntar, mas gastava. Com drogas, com maconha. Mas só
usava esse tipo de droga.
Gabi: gastava tudo nisso?
Israel: não, eu gastava mais com roupa, pá. Comprava roupa pra mim. Às vezes
chegava o dia de baile e bebia. E assim, no dia a dia.
[...]
Israel: O tráfico é o poder da mentira. Eu, na verdade, sabia lidar com isso,
porque várias garota vinham me dando mole, porque já .... já pegava visão que
elas só quer o que eu tenho, ela não quer o que eu sou, ela quer o que eu
tenho, então, eu tava sozinho
Gabi: você não se relacionava com ninguém?
209

Israel: não me relacionava, porque, ainda mais nessa vida, mulher... joga muito
homem de bola, já vi vários cara...
Gabi: que isso, jogar homem de bola?
Israel: é assim... jogar de ralo, tipo, arrumar problema pra vida ele. Já vi
acontecendo isso, por isso que eu evitava. Já vi muito cara sendo pivotado. É
difícil
Gabi: por isso que você ficava com o pé atrás e não se relacionava com
mulheres?
Israel: é

Uma profissional relatou ter conhecido um jovem que era

muito feio, muito magro, nordestino, que assim que entrou no tráfico e pegou
um fuzil, muitas meninas queriam ficar com ele. Se eu estivesse nessa mesma
situação, talvez escolheria esse caminho. A sociedade tem uma ideia de que o
menino é bom ou é mau, não é assim.

Com esta fala, ela expressa de que forma o dispositivo da localidade, a


compleição e o atrativo físicos seriam justificativas para que os jovens decidissem
começar um modo de vida cujos elementos de virilidade compensariam essas supostas
deficiências. Assim, são reveladas as tensões entre o que seria a escolha e as
pressões que apontam apenas uma forma de vida para quem deseja usufruir do que é
valorizado, o que novamente nos remete a como a ordem capitalística produz desejos e
subjetividades.
Em um grupo, Christian Alfonso disse “se chamar a mulher pra comer um
cachorro quente ela não vai querer, ela vai querer ir no Mc Donalds”. Nesse sentido,
escutamos recorrentes narrativas em que as mulheres se interessam ou se iludem pelo
status que eles fornecem enquanto Bandidos, da “vida que eles dão”, através do
dinheiro, do acesso ao shopping, à farra, às drogas, às próprias armas. Jesus relata:

Jesus: eu não me achava no poder porque eu tava armado não, me achava


no poder assim, porque as menina dava mole
Jimena: davam mais mole porque você tava armado?
Jesus: davam, davam, inclusive quando eu passava, uma vez eu passei lá na
rua lá, que eu tava marcando com o menor lá, o chefe, o amigo lá do morro, aí
já tinha ido dormir e deixou o fuzil, a pistola e o carro comigo, aí o carro era
Mercedes [...]. aí eu passei na rua, com as menina nem falavam comigo, nem
dava atenção pra mim não, [...] aí ficaram mexendo comigo

Christian Alfonso aponta:


210

mulher, assim, mulher, assim, esses roubo todo que eu, essas passagens que
eu tenho são de roubo, eu ficava roubando e tudo mais, porque a mulher,
mulher... assim, a mulher gostava de ostentação. Falava assim, comprava duas
garrafas de energético, dois uísque e água de coco. Ficava bebendo, bebendo,
bebendo, fumando maconha, bebendo, bebendo, bebendo. Nessa da bebida,
tudo, assim, as coisas começam da bebida alcoólica. Começava com a bebida,
e quando vi já tava rolando beijo, e aí outras coisas
[...]
Christian: fazer o que? É a vida que eu escolhi. Se eu não tivesse se misturado
com quem não prestasse, eu não estaria aqui dentro
Gabi: mas é difícil escolher outra vida?
Christian: é. Por que é difícil? Porque hoje em dia, pra pessoa arrumar uma
garota assim, bacana, tu não gosta de nada que não presta, é difícil. Para um
menino arrumar uma garota, assim, bacana mesmo, tem que correr atrás do
dinheiro. Tem mulher que gosta de dinheiro, tem mulher que não gosta. Tem
mulher que não é prostituta, mas tem mulher que gosta de relação por causa do
dinheiro, “ah, quero roupa, quero, isso, quero aquilo, quero isso, quero aquilo”.
E se tu não der, ela vai com outro. Já aconteceu de eu ser traído, mas traição é
uma coisa. Depois, mulher tem um montão, aí eu mandava assim pra ela, eu
falava na cara dela “aí, garota, mulher é igual biscoito, vai uma e vem dezoito” e
ela “ah, homem é igual papel, tu rasga e tem um montão”, eu falo “to nem aí, ô”.

Emiliano relata que

Emiliano: quando tava de traficante, na madrugada, aparecia várias


Gabi: aparecia como?
Emiliano: ah, tipo assim, vinha na boca, pegar droga.
Gabi: mas que moravam lá?
Emiliano: A mina é solteira e vai pegar uma droga. Aí, como? Aí já dava o papo
pra elas, aí elas levavam mais
Gabi: aí levavam você junto
Emiliano: é, me levavam de brinde
[...]
Gabi: e os pais dela sabiam que ela era sua namorada, q você era do tráfico e
tava tudo bem?
Emiliano: não, não tava tudo bem. Só que as mina se amarram com quem é do
tráfico. Aí eu entregava pra ela, tipo “eu comprei pra você”. Dava uns presentes
pra ela

Bernardo também aponta algo nesse sentido:

Bernardo: ah, tipo assim, na vida do crime, filha, é porque é muita mulher, é
muita mulher, filha
Jimena: e por que tem tanta mulher?
Bernardo: ah, porque tem muita mulher querendo Bandido, tem fama, tem
poder, tem arma de fogo, tem qualquer coisa, entende? É tráfico de drogas, é
muito dinheiro. A mulher chega, pô, a garota tá como, “pô, porque nós não vai
lá?”, aí já vem duas, três garota querendo ficar contigo, já vem quatro, aí, nisso,
filha, nós pega mesmo, filha, não tem essa não.
211

Israel relata de que forma o status de Bandido intensificou sua vida sexual:

Gabi: você nunca engravidou ninguém?


Israel: nunca engravidei ninguém (risos), de verdade.
Gabi: é mesmo? Foi sorte
Israel: foi sorte, porque eu já transei pra caraca sem camisinha, e eu nunca tive
doença. Porque eu já tirei exame aqui duas vezes e nunca deu nada, e eu já
transei muito sem camisinha. Ainda mais quando eu cheguei no tráfico, as
mulher tudo doida (risos)
Gabi: mas porque, porque andam de fuzil?
Israel: é, porque andam de fuzil, aí, pá, elas fica maluca. E dia de baile, então!
Caaa...elas vem tudo em cima

Felipe conta um pouco sobre sua vida antes do Degase:

Gabi: Como era sua vida fora daqui? O que você fazia?
Felipe: ah, curtir, ia na praça, curtir com as novinhas, andava de moto. O que eu
gostava mais era andar de moto.
Gabi: o que é curtir com as novinhas?
Felipe: ahhh, dar um rolé, leva-las pra umas treta
Gabi: o que é isso, pra um motel?
Felipe: casa, uma casa mesmo
Gabi: você morava com seu pai?
Felipe: é, só que aí é minha mesmo
Gabi: ah! Você morava sozinho, ou dividia com outros meninos?
Felipe: não, era só minha só.
Gabi: e aí você levava as novinhas pra lá
Felipe: uhum
Gabi: e aí elas iam?
Felipe: uhum. Ou às vezes ficavam, passavam a noite, e depois levava elas pra
casa.
Gabi: o que é uma novinha?
Felipe: ah, sei lá, uma companheira
Gabi: mas ela é menor de idade?
Felipe: ah, sim, menor de idade. 15, 16...
Gabi: mas o que faz você falar que uma menina é novinha e outra não?
Felipe: ah, porque é mais baixa. Tem carinha de nova, mas tem algumas que já
é maior
Gabi: tendi, é baixa, tem cara de nova, e tem 15, 16
Felipe: isso
Gabi: e você acha que por você ser envolvido primeiro com roubo e depois com
o tráfico, isso facilitava você pegar as novinhas?
Felipe: facilitava
Gabi: porque, as novinhas gostam?
Felipe: gostam da ostentação, né.
Gabi: você ostentava com que?
Felipe: Motos, dinheiro, cordão, relógio.
Gabi: você pagava coisas pra elas?
Felipe: dava coisas pra algumas, ou quando ela queria fazer pagando, pagava.
212

Adán descreve assim as “novinhas”: “quando tem doze, treze ano, catorze, aí
falam que é novinha. Até maior, porque quem vai falar novinha, porque é bonitinha, pá,
é bonita, como. É isso. Na pista nós tá no baile com uma novinha, aí vem outro menor,
“ah, é gostosinha”, fica falando isso, aí fala que é novinha”. Assim, a figura das
novinhas também apareceu nas relações com os jovens, muitas vezes como
companhias desejáveis e denotadoras de status, e por sua vez como um tipo de mulher
que se sente atraída pelo status do tráfico. Camila Fernandes, no Ciclo sobre Violência,
Política e Sociablidade Urbana, apontou a partir da sua pesquisa doutoral140 como as
novinhas são personagens de provocação, o que nos fez pensar nelas como
semelhantes ao menor, no momento em que dobram os dispositivos de gênero,
sexualidade, geração, classe social e localidade, produzindo um sujeito estereotipado
de transgressão da ordem. Assim como podemos pensar que um homem honrado é um
homem trabalhador e uma mulher honrada é que não é prostituta, o desvio do menor é
ser Bandido, o que entra no campo do trabalho - ou do não trabalho - e o da novinha é
o uso do corpo, as trocas que se dispõe fazer.
Como apontado por Camila, as novinhas são entendidas como possuidoras de
uma sexualidade devoradora, potencializada e poluidora, ao mesmo tempo que
devorável. Assim, a afirmação da autonomia sexual tem sentidos e efeitos diversos
neste universo machista em que vivemos, pauta importante para os movimentos
feministas e de mulheres dos mais variados contextos. Exemplo disso são as jovens do
grupo Bonde das Maravilhas (foto 13, Anexo A), que estavam retratadas em uma das
fotos que utilizamos nas primeiras atividades, e eram constantemente referidas como
rodadas, “se drogam”, “todas dão pra geral”, “todas gostam de uma pistola”, “geral já
comeu elas”, mostrando ao mesmo tempo um desejo por elas, mas também um
desprezo. Vemos assim diversas expressões como rodadas, safadas ou piranhas que,
ao tempo em que exercem sua liberdade sexual, são sujeitas a sofrer violência sexual
justificada.
Em uma atividade, José Eduardo relatou um caso onde combinou com uma
jovem de fazerem sexo, e ao mesmo tempo combinou com dois menor de “aparecer por
lá”, sem consultá-la, como pudemos constatar ao perguntarmos. Já no local, ele foi

140
A tese de Camila Fernandes foi defendida durante a escrita deste texto, no Museu Nacional.
213

“metendo na mente dela”, “pulando no miolo” e saiu, deixando a mulher com os dois
jovens. Nós e os/as profissionais problematizamos isso, apontando que ela tinha sofrido
violência e que ele não devia ter ido embora, o que ele dizia não entender, pois “ela era
piranha”. Rebatemos, dizendo que isso não justifica, que ela deve poder escolher com
quem e com quantos faz sexo. Chamou a atenção o fato de este mesmo jovem ter
sofrido um estupro coletivo tão grave no alojamento, que desenvolveu um calombo no
abdômen, e não relacionou os dois acontecimentos. Esse estupro tinha sido explicado
porque ele estava se relacionando, de forma consensual, com outro jovem, o que
justificava, na lógica do alojamento, que tivesse que se relacionar com todos mesmo
contra sua vontade.
Neste mesmo dia se espalhou na cidade a notícia de uma jovem que tinha sido
estuprada por 33 homens em Santa Cruz, notícia que veio carregada de argumentos
que a culpabilizavam da mesma forma em que José Eduardo tinha feito. Nesse sentido,
tanto elas são responsáveis pela forma como se apresentam no mundo, quanto eles
detém esse poder, se apoderando do corpo da mulher ou do sujeito feminizado e
impondo sua vontade (MACHADO, 2004, p.45).
O caso dos 33 homens, a maioria envolvidos com o tráfico, também revela a
complexidade da relação entre violência sexual e as facções, pois nesse caso, a facção
defendeu os jovens, ameaçando a vítima e convocando a comunidade a fazer uma
manifestação em apoio a eles141. É interessante pensar de que forma o tráfico reforça o
machismo e ao mesmo tempo administra essas violências, regulando essas forças e
marcando as fronteiras do aceitável. Assim, ao mesmo tempo em que se legitima
apoderar-se do corpo da outra pessoa e justifica o estupro de rodadas na pista e de
viados ou bebel – por serem pequenos ou jovens - dentro do estabelecimento, eles
rejeitam violentamente os Jack no estabelecimento e, segundo um jovem que falou com
Bárbara, eles os assassinam na pista142. Nesse sentido, o movimento de se apoderar
dos corpos femininos nem sempre é percebido como violento, o que foi visível quando

141
https://oglobo.globo.com/rio/moradores-da-praca-seca-protestam-contra-acusacao-de-estupro-
coletivo-19400444
142
Considero que cabe aqui mencionar o grande desafio emocional que foi para mim, mulher e feminista,
entrevistar um jovem que, em suas palavras, “responde processo por estupro e homicídio” da própria
irmã, tanto pela forma como ele se fechava corporal e verbalmente ao falar sobre isso, quanto pela
minha própria incapacidade de abordar o assunto, especialmente tendo tão pouco tempo.
214

falam das interações nos bailes e seus jogos, onde são acionados elementos que para
eles são atraentes, como o papo, o físico e o status de traficante. Assim, é posta em
prática a

expectativa da moralidade social vigente, que atribui ao homem a


transformação do não inicial da mulher em sim. Se o não continua é porque a
sua natureza viril, sua capacidade de conquista é a que está em jogo. O
esperado é que a mulher não diga não, porque este não poderia ser
denunciador da sua virilidade [...] O impensado da sexualidade, o fundamento
mais naturalizado é de que à mulher não cabe a iniciativa, nem o apoderamento
do corpo do outro, mas apenas a sedução. Assim, o seu “não” pode ser tão
somente uma forma de sedução. [...] É cultural e dominante a ideia de que o
“não” da mulher faz parte de um ritual de sedução. A concepção da sexualidade
dominante de longa duração inscreve um jogo cultural que já é perverso, um
jogo cultural em que o corpo feminino aparece como sacrificial (MACHADO,
2004, p. 42-43).

Carlos Iván disse “é muito difícil elas não querer, só se ela estiver menstruada”.
Porém, provocando mais ainda e perguntando o que eles fazem quando questionados
se elas dissessem “não mesmo”, eles disseram que não insistiriam. Cesar Manuel
também disse que uma vez uma mulher “estava querendo muito e na hora disse que
não queria mais”, frente ao qual ele “ficou puto”. Fernando perguntou se mesmo assim
ele tinha consumado o ato e ele respondeu que não, “eu não vou fazer forçado”. Em
entrevista individual, Christian Alfonso apontou: “forçar é estupro”.
Jorge conta:

Jimena: você falou que fica insistindo até ela deixar, mas se ela não quiser
mesmo?
Jorge: se ela não quiser, não quer, se não quiser, não quer
Jimena: mas o que você faz pra insistir?
Jorge: ah, tipo assim, eu fico conversando, pá. Tipo assim, tô vendo tipo assim,
quero ficar com ela, pá, mas ela não quer ficar comigo, pá, eu fico conversando
com ela, tentando convencer ela, dou uns papo nela
Jimena: mas já teve alguma que falou “não, de jeito nenhum”?
Jorge: já, sempre tem. Tipo assim, não teve muitas também. Tipo assim, a
maioria, tipo assim, tu chega, dá uma conversada, pá, “pô, não quero não”, pá,
às vezes não querem na hora, tá na palhaçada, mas depois quando ela tá
sozinha, aí começa a ceder, pá. Às vezes tá com a colega, aí não quer, e
depois tá sozinha, vai lá e cede, quer ceder, pá. Tem umas que é difícil mesmo,
pá, aí quando insiste muito, pá

Jesus relata que queria bater em outro jovem:


215

Gabi: porque ele beijou ela à força


Jesus: claro
Gabi: você nunca beijou ninguém à força
Jesus: t t t (não)
Gabi: fala a verdade
Jesus: não, à força assim de ssss uuuhh, não, aquele pique, de ela quer mas só
que
Gabi: tá fazendo charme
Jesus: é, charme, aí eu ia mesmo lá e pá, mas nunca foi porque a mina não
quis e eu fui lá beijá-la

Vemos aqui uma tensão entre a coerção sexual, que significaria uma fraqueza
como homem (MACHADO, 2004), e a virilidade, que supõe “a disponibilidade total para
a realização da atividade sexual e está associada ao lugar simbólico do masculino
como lugar da iniciativa sexual” (2004, p.43). Por sua vez, as jovens também não
podem ser muito ousadas, o que revelaria que não são confiáveis, pois “com certeza
fazem isso com outros nos bailes”, como apontado por Antonio, visibilizando as regras
diferenciadas no que tange à quantidade de parceiros/as sexuais onde mulheres que
transgridem a naturalização dessa diferença são consideradas incapazes de decidir se
algo é forçado ou não e portanto sujeitas a sofrerem violência sexual justificada.
Nesse sentido, em uma atividade com profissionais e jovens, os jovens diziam
que nos bailes são eles que se aproximam, pois “homem tem mais atitude”, que são
“mais maduros”, já que não têm “frescura na hora de se pegar”. Uma profissional
perguntou se não tinha mulheres com atitude também, e eles falaram que sim, mas que
elas gostam de carinho, de amor, enquanto eles, embora gostem disso, são “mais
atrevidos”, narrativas também encontradas por Nascimento, Segundo e Barker (2011) e
por Fabíola Cordeiro (2008):

A análise das trajetórias individuais, das representações sobre gênero e


sexualidade, dos modos de aproximação sexual e das experiências de conflito
na negociação sexual narradas pelos entrevistados revelaram que certos tipos
de constrangimento são considerados constitutivos das interações entre os
gêneros no universo investigado. Os jogos de sedução entre esses jovens
envolvem uma dinâmica de avanços masculinos e embargos femininos. Cabe
aos homens tomar a iniciativa, tentar obter contatos sexuais, insistir e
convencer as parceiras a permitirem tais avanços. As mulheres, por sua vez,
devem recuar do desejo masculino com vistas ao estabelecimento do vínculo e,
até mesmo, o comprometimento do parceiro para com um projeto
conjugal/familiar (CORDEIRO, 2008, p.1).
216

Algumas outras questões atravessam essas interações. Por exemplo, Alexander


aponta que mulher que não se relaciona com o tráfico “é mais reservada”, enquanto
“mulher de vagabundo, assim, de favela, usa uma roupinha curta, short curto, saia
curta, aí vagabundo mexe”. Em um grupo, a partir da foto 16 do Anexo A, de uma
mulher mostrando a marca de biquíni, José Luis disse que isso é um “sinal verde”.
Desta forma, vemos como não é só dentro dos muros do Degase que as vestimentas
das mulheres configuram significados específicos produzidos pela instituição-forma-
machismo. No entanto, dentro dos muros as normas se acirram, sob a justificativa do
confinamento.
Contudo, a questão é mais complexa, pois no momento em que uma mulher se
relaciona de maneira mais formal com um Bandido e vira fiel, que “é aquela assumida
publicamente pelo homem na relação conjugal, tendo a sua identidade marcada pela
fidelidade como atributo essencial que caracteriza a mulher de verdade para casar e
constituir família” (MATTOS, 2016, p.12), com promessas de status e ostentação, ela
deve ficar confinada no espaço doméstico e não usar mais roupas curtas. Na discussão
sobre mulher-de-Bandido, o termo escolha aparecia, pois para os jovens, elas tinham
livremente escolhido este lugar e tinham que arcar com as consequências. Discurso
parecido ao que se enuncia para falar das escolhas deles pela vida do crime, com
atravessamentos de gênero particulares.

Gabi: mulher-de-Bandido tem código de ética pra seguir?


Felipe: tem
Jimena: qual é?
Felipe: ahh. Não pode andar com outro. Nem de roupa curta. Não pode
trabalhar
Gabi: nem com você?
Felipe: nem comigo. É pra ficar dentro de casa. Se for sair pra dar um rolezinho
na praça, tem que ser comigo. Se for no shopping, vai comigo, se for comprar
roupa, fazer cabelo, fazer unha... mas ela tem que seguir a regra direitinho. Só
as de rua mesmo. As de rua já curte baile, já curte baile
Gabi: é melhor ser de rua, né? Porque de casa, é muita regra pra seguir
Felipe: mmmm. É, mas mulher de casa é que nem se eu trabalhasse em outra
coisa, obra, se eu trabalhasse em obra, quando eu chegasse já tinha o que?
Casa arrumada, comida
Gabi: então, coitada dela! Tem muita regra pra seguir!
Felipe: é, tem que seguir a regra!
Gabi: se fosse o contrário, se você fosse mulher, você ia preferir ser de casa ou
de rua?
Felipe: mmmmm se fosse, o cara ia ficar fudido.
Gabi: se o cara fizesse contigo o que você faz com ela, ele ia ficar fudido?
217

Felipe: claro. Eu não ia dar mole que nem ela dá, também. Porque tem umas
quebrada.
E o dispositivo de gênero atravessa fortemente o discurso da escolha.

Bernardo: Minha mulher já fez negócio de programa, sabe? Programa. Mas


depois de um tempo, eu cheguei assim pra ela: “po, mo, tu quer mudar de vida
143
mesmo?” , ela “quero”. Minha mulher é linda, sabe? Linda, linda, linda mesmo.
Assim, eu tirei ela dessa vida, sabe? Depois que tirei ela dessa vida, mas eu
também, não tirei ela dessa vida, mas não falei “po, tu deve tua vida a mim,
não, na hora que tu quiser terminar comigo, tu termina comigo”. Tipo assim, ela
foi ficando comigo tranquila, tranquila, e foi que rolou filha.
Jimena: mas você acha que ela voltaria a fazer programa?
Bernardo: ah, não sei não. É difícil, é difícil, é difícil tipo assim, é difícil a mulher
parar. Porque, eu mesmo, já parei várias mulher na minha vida, já parei várias
mulher na minha vida, garota certinha, mulher mais velha já parei também, mas
tipo assim, a mulher quando ela tá nessa vida, é difícil ela sair. É difícil também
quando a mulher é viciada em droga. Mulher em lugar de recuperação, clínica
de recuperação, CAPS, é difícil de recuperar mulher, filha. Qualquer problema a
mulher quer sair de casa, não sabe se tua mulher tá fazendo sexo com outro
homem, se tá te traindo. Eu, filha, tipo assim, porque hoje em dia eu to parando
de fazer essas coisa, mas se estivesse com ela, eu matava ela
Jimena: por que?
Bernardo: ahhh, eu to dando tudo, to dando casa, dinheiro, po. Nós dá de tudo,
filha, nós tira a mulher do sufoco, pra mostrar à mulher que nós quer ajudar ela,
que quer ficar com ela, qual é, pra mulher, pra ela crescer mulher-de-Bandido,
filha, ela também tem que saber qual são as consequências. Se ela trair nós, ou
nós quebra ela na madeira, porque tipo assim, a mulher trair nós, cara, nós
careca mesmo, cara, nós pega a máquina, arranca o cabelo dela todinho, filha.
Nós quebra as perna dela, se nós não quebrar nós dá uma surra, filha. (Eu
devo ter feito uma cara de espanto neste momento). Tipo assim, é errado, eu
falo pra você, é errado fazer isso com a mulher
Jimena: e elas fazem isso com vocês também?
Bernardo: não, mulher não pode fazer isso com nós
Jimena: por que?
Bernardo: porque não faz. A lei, filha, tipo assim, a lei, se ela quer ficar com
nós, ela tem que saber, quais são as nossas lei
Jimena: e por exemplo, quando ela é envolvida e o cara não é envolvido, como
que é?
Bernardo: ah...tipo assim, mulher, filha, tipo assim, a mulher sendo traficante, a
mulher traficante é bandida, ela fica com várias pessoa também, filha, se um
cara quer ficar com ela, tipo assim, tem uma lei, se eu sou Bandido, a mulher tá
comigo, eu posso trair ela, mas ela não pode me trair
Jimena: essa é a lei de
Bernardo: do tráfico de drogas
Jimena: de todas as facções?
Bernardo: de todas as facções. Ela não pode nos trair. Porque tipo assim,
mulher já sabe, ela quer ficar contigo, ela já sabe que Bandido pode ficar com
várias mulher, tipo assim, se eu tenho várias mulher e ela quer ficar comigo
porque ela quer, então, filha, ela tem que assumir a consequência
Jimena: você não acha que daria pra se relacionar de outra forma?
Bernardo: ah.......
[...]

143
Na atividade do desenho de personagem, Antonio desenhou uma prostituta de 17 anos, e falou que
ela podia “se apaixonar por alguém e ela podia mudar de vida, assim como a gente muda de vida”.
218

Bernardo: Tipo assim, ela foi a mulher certa pra mim porque foi a mulher que eu
consegui recuperar, sabe? Fazia muita merda e, eu falo que eu soube
recuperar uma mulher, filha. Que a mulher que fazia lá, eh, chegava sapatão,
pagava ela não sei quantos real, pra fazer relação sexual com ela, pá, depois
chegava outro maluco pra transar com ela, pá, filha? Tá maluco, filha? É
vergonhoso, é vergonhoso. Mas tipo assim, eu soube recuperar. Agora, eu não
sei se ela, como, botou na cabeça dela que isso é errado
Jimena: você acha que uma mulher que ganha dinheiro fazendo prostituição é
igual a alguém que trabalha no tráfico?
Bernardo: ah, é a mesma coisa (risos), só que ela é pior, ela tem risco de pegar
uma doença e nós não
Jimena: mas vocês têm o risco de morrer, não?
Bernardo: é

Neste forte diálogo, chama a atenção o discurso de “assumir as consequências”


como uma escolha que condena. Como apontado pela socióloga brasileira Lia Zanotta
Machado, que faz um contraste entre o masculino e o feminino no mundo relacional da
honra. Esse contraste

é posto no lugar de transição entre a mulher honrada e a mulher vagabunda.


Não se trata, aqui também, de as mulheres escolherem ou serem postas nestas
posições. É o feminino que se encontra inscrito nesta dupla posição. A figura de
mulher vagabunda é a de que não se submete à lei. Contudo, uma diferença
fundamental existe. A figura masculina do bicho danado, que também não se
submete à lei, está além da ordem social em seu ponto de origem, ou num
ponto superior à própria ordem. Já a figura feminina da vagabunda é pensada
como excluída da ordem social, no seu ponto final ou num ponto inferior. O
mesmo vale para a figura da mulher honrada em relação à do homem honrado,
ainda que ambos se submetam à lei. A figura do homem honrado, em nome da
lei, controla as mulheres, já as mulheres honradas não os controlam, mas
podem invocar a lei social para dizerem da sua inadequação, através da
enunciação das queixas (MACHADO, 2004, p.72).

Vemos como as mulheres fiéis que são infiéis recebem punições específicas,
reguladas pelas facções: raspar a cabeça, quebrar a perna ou, inclusive, matar. A
prática de raspar o cabelo chamou a nossa atenção e, ao perguntar a Julio Cesar o
porquê dessa punição, ele disse “porque para elas o cabelo é tudo, é pior do que a
morte”. Nesse ato de vingança e suplício, também vemos a dimensão moralizante que
torna pública uma transgressão144. Cabe apontar que, segundo Leonel, muitas vezes
quem decide como a mulher deve ser punida, tendo o direito a comprovar sua
“inocência”, é o chefe da facção. No entanto, vários jovens apontaram que não gostam
de bater em mulheres e que preferem terminar o relacionamento, como Carlos.
144
Esta reflexão foi realizada por Carolina Sette, integrante da equipe de pesquisa.
219

Por outro lado, como apontado por Carlos Iván, ao perguntar o que ele acha que
as mulheres gostam: “ah, depende do tipo de mulher. Tipo assim, tem garota que gosta
de arma, tem garota que já gosta de fazer certo, de namorar, tem garota que só quer
besteira, só isso”. Em um grupo, Marcial expressou que “hoje em dia não valorizo a
mulher porque a mulher também não valoriza, só está interessada no que você tem
para oferecer”, Quando interpelado por Gabi sobre sua atual companheira ele
respondeu: “não, ela é diferente porque ficou comigo mesmo quando saí do crime”,
revelando, com sua própria vivência, uma diferença do discurso dominante. Já Miguel
Angel disse "só quero uma mulher que tenha sentimentos por mim" e Bernardo, “agora,
vou sair daqui, filha, só quero ficar tranquilo, arrumar uma mina que goste de mim”.
Jhosivani disse gostar da ex-namorada “porque ela é verdadeira, é sincera”. Nesse
sentido, é possível pensar que, como vimos até agora, tanto eles quanto elas buscam o
exercício de um poder através da ostentação que o tráfico oferece, seja diretamente ou
a partir de uma relação, o que permite que os jovens usufruam de características que
os fazem atraentes e poderosos nas relações com as mulheres. Porém, ao mesmo
tempo, alguns deles também almejam relacionamentos não perpassados por esses
valores capitalísticos, que não só objetificam as mulheres, mas eles próprios (BARKER,
2008).
Por sua vez, Israel apontou que a namorada “pedia pra ficar comigo, e eu “não,
não, eu não quero ficar contigo, procura outro garoto, porque a sua mãe é maneira pra
caraca também, eu tô nessa vida, não quero demonstrar pra sua mãe que a filha dela
tem que namorar com Bandido”.

Jimena: e tem meninas que não gostam de ficar com traficante?


Bernardo: ah, tem.
Jimena: quem, por exemplo?
Bernardo: ah, as garota que é da igreja, até as garota que vai pra baile, mas
tem umas que são, como, que são certinha mesmo.

Nesse sentido, em um grupo os jovens relataram que “o 60% das mulheres


gostam de ficar com Bandido e o resto não”, o que vai produzindo diferenças entre elas.

Israel: Mas, nunca gostei de ninguém.


Gabi: nunca? Nem dessa primeira?
Israel: é. Bom, gostar até que sim, mas nunca amei. Nunca falei “eu te amo”
220

Gabi: nunca falou?


Israel: não (risos)
Gabi: e elas falavam pra você?
Israel: falavam. E eu já vi várias meninas que gostam de mim pra caralho. Mas
eu desperdicei, não dei valor e perdi.
Gabi: ah é? Se arrepende hoje?
Israel: me arrependo. Tem duas. Só que elas eram meninas direita, não curtia
baile, ela estudava. Aí de manhã eu ficava lá com fuzil, e aí ela passava pra
escola. E aí, como...

Carlos Iván também aponta:

Jimena: Você só namora essa menina, ou namora outras?


Carlos: já namorei com outras, mas com ela não. Tipo assim, já namorei com
duas garotas, mas com ela não.
Jimena: com duas ao mesmo tempo?
Carlos: é
Jimena: e com ela por que não?
Carlos: porque a menina é direita, é menina de igreja
Jimena: e as outras não eram?
Carlos: as outras eram putas. Desculpa (pelo palavrão)
[...]
Jimena: você acha que as meninas gostam de namorar traficante?
Carlos: gostam
Jimena: todas?
Carlos: algumas, porque a minha mesmo não gosta
Jimena: por que gostam e por que não gostam?
Carlos: por que gostam? Porque gostam de segurar pistola, segurar arma.
Maria fuzil. Gosta de andar de moto. Tem muita mina que já gosta de conquistar
as coisa. Que tipo, assim, supondo, você é adolescente, você vê um fuzil, você
gosta de ostentar, querer carro, querer andar de moto, querer dinheiro toda
hora, querer dinheiro, querer roupa, roupa, roupa, droga, droga. Se você for
desse tipo, você vai querer ficar comigo. Mas se você for de igreja, tipo assim,
eu já beijei garota, que eu tava com cheiro de cigarro e a garota foi e cuspiu. Eu
senti vergonha. Eu falei “tá certa”

Jorge relata:

eu tava com 14 pra 15 anos, conheci a mãe da minha filha, pá, aí me chamava
também pra sair da boca, pá, ficava me chamando pra morar na casa da avó
dela, lá, me chamou pra ficar com ela. Falou que não suportava esses negócio
de eu andar armado, queria me ajudar, se quisesse ficar com ela eu tinha que
sair da boca, pá.

Jorge Antonio revela como, apesar da hipótese da mãe, a companheira o


desencorajava a roubar, o que para ele fazia com que ela valesse a pena, destacando
uma responsabilidade das mulheres em fazê-los sair “dessa vida”:
221

Jorge: com ela já tô há quase dois anos. Antes, como, ficava com várias
pessoas, mas nada sério mesmo, porque eu não achava nenhuma ainda que
era pra mim parar, e quando conheci ela, pensei “eu acho que eu tenho que
ficar com ela”. Porque como, ela, quando eu roubava, ela falava pra mim não ir,
porque ela não gostava desses negócio de roubar, e falava pra mim. Mas eu
fiquei fazendo, desandei, rodei, ela foi me visitar, chorou pra caramba, aí eu
fiquei tranquilo, pô, vou sair dessa. To aí até hoje. Mas, como, eu gosto dela,
vou continuar com ela
Jimena: sua mãe sabia que ela te falava pra não roubar?
Jorge: minha mãe sabia, quando eu rodei também eu falei, ela falou “é por
causa dela que tu tá aí” e eu falei “não é nada, ela fala pra mim não roubar”. Aí
minha mãe já ficou com isso na mente, aí quando tava preso, minha namorada
ligou foi pra minha técnica, falando que ia vir, aí minha técnica falou, “po, vou
ter que conversar primeiro com ele pra ver se realmente ele quer que tu venha
pra visitar”, aí eu falei com a minha técnica “pode deixar ela vir”, mas ela falou
“mas só vou deixar ela entrar se tua mãe não vir”, eu falei “tá bom”. Mas sempre
que ela ia vir, minha mãe vinha também, aí não podia entrar, por causa que a
minha técnica achava que podia dar confusão, por isso que não deixava ela
entrar

Adán aponta:

Jimena: e tem algumas que nunca ficariam com Bandido? Que gostam mais de
crente, por exemplo?
Adán: crente, trabalhador normal, não gosta de Bandido. Mas tem algumas que,
como, cria de favela, já elas, desculpa eu te falar, mas elas perde, pá, já. Aí,
como, elas já quer Bandido. Mas o cara pensa que ela quer ele por causa dele,
mas não é por causa dele, é por causa de... hum

Destarte, destaco como alguns jovens relataram que as companheiras não estão
com eles por conta do status oferecido pelo tráfico, e muito pelo contrário, elas
reprovam esse modo de vida. Em entrevista individual, Jesús relatou:

Jesús: levei um tiro, aí eu parei, eu dei um tempo, eu tinha ficado com uma
mina, pá, aí eu falei pra ela que ia ficar tranquilo com ela. Eu fiquei com ela e eu
falei pra ela que ia ficar tranquilo, só que aí teve problema entre eu e ela, e
separamos. Aí ela... aí nós separou, falei pra ela que como, que se separasse
que eu ia voltar à vida como era antes

Jhosivani conta:

Jhosivani: eu separei. Separei não, ela separou


Jimena: quando você entrou?
Jhosivani: quando entrei
Jimena: e foi porque você entrou?
Jhosivani: foi
Jimena: o que que ela falou?
222

Jhosivani: falou que não gosta de gente dessa vida


Jimena: ela não sabia?
Jhosivani: não
Jimena: porque você não tava há muito tempo, ou porque você escondia isso?
Jhosivani: porque não tava há muito tempo

Em um grupo, Mauricio disse que a companheira não concorda com ele ser do
crime, que “todo dia que eu acordava para ir para a boca ela tentava me convencer de
não ir e no dia que fui preso ela foi na delegacia falar que eu não tinha que estar nessa
vida, e no Fórum falou a mesma coisa”.
Assim, as jovens “de igreja”, as direitas, que “não merecem” estar com Bandido,
de certa forma estão protegidas da dicotomia fiel/rodada, submetidas ambas aos jovens
do tráfico. Nesse sentido, esse caminho é uma forma de proteção das jovens, embora
também apresente inúmeras regras e limitações sobre o corpo que essas religiões
estabelecem para elas, que devem também performar uma contenção da sua
sexualidade e sua sociabilidade, sendo submetidas à lei da família e do dogma.
Nesse contexto em que diversas instituições-organização aparelham valores
capitalísticos, machistas e moralistas que classificam e limitam, vemos que as opções
para as mulheres se apresentam em um panorama tenso e com pouca mobilidade
(BARKER, 2008). Assim, a atribuição de pessoas como sujeitos de escolha revela as
relações éticas dos sujeitos consigo mesmos e com os outros, trazendo a questão da
responsabilidade, do autocontrole e do controle institucional, em uma forma de
individualização massificada que ao mesmo tempo universaliza através de mecanismos
imperativos, sem permitir ver as singularidades e dificultando a elaboração de agências.
Isto discute com o abordado no segundo capítulo a respeito da importância de evitar
estipular destinos irremediáveis, tanto dos jovens que se envolvem em organizações
e/ou práticas criminais, quanto, neste caso, da forma com que as mulheres vivenciam
suas próprias trajetórias juvenis, conforme elas são também perpassadas e delimitadas
por instituições-forma, instituições-organização e instituições-estabelecimento. Em
ambos os casos, é importante pôr em análise os jogos de forças, que envolvem
exercícios abusivos de poder e de controle dos corpos e das subjetividades, ao tempo
em que brechas possibilitam resistências e produções singulares tanto dentro quanto
fora dessas instituições. Neste sentido, é possível observar o grande desafio para elas
223

de construir caminhos de autonomia, o que não significa que não existam, a exemplo
de movimentos e coletivos artísticos, culturais e/ou políticos muito potentes145.
Voltando ao nosso campo, vemos como as relações de controle, afeto e erotismo
com as companheiras dos jovens têm inflexões perceptíveis a partir da entrada no
Degase. Por um lado, as comunicações continuam através de substâncias como cartas
e fotos levadas por elas ou por familiares146. As profissionais relataram ter lido em
cartas – prática já problematizada anteriormente - frases como “eu estou tranquila”, ou
seja, que não está se relacionando com outros homens, ou “você não vai me bater
como antigamente, né?”, que além de revelar que o jovem era violento com ela, mostra
de que forma ela aproveita a oportunidade desta inflexão para propor mudanças na
relação.
Ao pensar a forma com que o agenciamento da masculinidade se vê
desestabilizado com a infidelidade feminina, estar em privação de liberdade apresenta
uma fragilidade tanto no sentido de sustentar uma ostentação, quanto de consolidar o
controle cotidiano sobre os corpos das mulheres.
Assim, o poder financeiro dos jovens do tráfico entra novamente em jogo, como
apontado por profissionais que relataram que algumas jovens esperam os jovens
durante a medida socioeducativa para sustentar o status de “primeira dama do tráfico”.
Ou seja, as consequências de escolher ser mulher-de-Bandido se estendem neste
momento, pois existe no imaginário uma dívida que elas têm com eles por terem
oferecido esse status, o que elas devem pagar, por exemplo, esperando-os saírem do
Degase.

145
Destaco, por exemplo, o caso do Bosque das Caboclas, localizado na área rural de Campo Grande,
na Baixada Fluminense, onde um grupo de mulheres ocupa o espaço da Associação de Moradores/as
e, em articulação com o CREAS local, realiza atividades de pré-vestibular comunitário e agricultura
familiar urbana sob um viés de protagonismo juvenil e feminismo negro com as jovens da localidade. O
processo coletivo é extremamente interessante e desafiador, tendo que fazer contrapontos tanto a
ameaças da milícia local de expulsá-las do espaço, quanto a relações conjugais violentas que algumas
jovens estabelecem com os milicianos.
146
Interessante pensar nas cartas e fotografias como reverberações de tempos distintos aos da geração
desses jovens, no que tange às temporalidades e gramáticas de confecção e trânsito. São elementos
que mexem com as rotinas de comunicação, afetividade e controle dos jovens.
224

A manutenção do vínculo estabelecido com elas também depende da sua


solidez147, que implica a fidelidade dela apesar dele estar em privação de liberdade.
Emiliano disse:

Gabi: e agora, você acha que quando sair, vocês vão voltar?
Emiliano: uhum
Gabi: ela tá te esperando lá?
Emiliano: ainda
Gabi: mas você acha que ela não teve nenhum relacionamento?
Emiliano: ah, não sei
Gabi: por quê?
Emiliano: ah, porque tipo assim, sei lá, ela vai ficar um ano três meses sem
fazer nada com ninguém?
Gabi: o que você acha?
Emiliano: ah, eu acho que lá fora, não
Gabi: mas aí tudo bem? Já que você tá aqui ela não tem como não ficar com
ninguém lá fora? Ou se você souber que ela ficou com alguém vai ficar puto?
Emiliano: pô, nada, tipo assim, só não vou estar mais com ela
Gabi: se alguém te contar ou se ela te contar?
Emiliano: tipo assim, se ela não me contar, eu vou saber
Gabi: é?
Emiliano: é porque tem vários menor aí da área.

Jorge Antonio: ô, eu tenho 16, comecei a ficar com ela quando tinha 14 anos, tô
com ela até hoje, não sei se quando eu sair vou ficar com ela, porque não sei o
que ela tá fazendo lá fora também, aí ela tem 25 anos.
Jimena: você acha que ela tá com outra pessoa?
Jorge Antonio: não sei, e também não quero ficar pensando nisso daí também,
porque como, se nós não sabe ficar sem mulher, ela vai saber ficar sem homem
também? Penso nisso daí também, penso em várias coisas, mas não quero
ficar agoniado. Pô, imagina ela quando ela tá lá fora, toda essa tentação, nós
não sabe também. Aí quando nós sair nós tem como, aqueles menor de
confiança, que nós pode chegar e perguntar se rolou com alguém, se rolou com
outra pessoa, só chegar e falar “ô, nunca mais nada contigo, tu pro teu lado e
eu pro meu lado, minha vida contigo acabou”.
Jimena: e se ela não ficou com ninguém?
Jorge Antonio: se ela tiver ficado tranquila, vou ficar com ela
Jimena: e se ela ficou só uma vez?
Jorge Antonio: (nega com a cabeça). Porque assim, independente da minha
idade, só porque eu sou novo, partir pra cima pra ser desse jeito aqui, tipo
assim, eu vou ficar com ela, se ela quer ficar comigo, tem que ser um
relacionamento sério, comprometido, ninguém trair ninguém. Se ela vai pegar
geral pensando que eu sou burro, que eu vou ficar com ela só porque eu sou
mais novo, mas ela vai pensar assim, tá pensando assim, diferente, se ela me
trair só uma vez só, eu não fico mais não

147
Na foto 15 do Anexo I, que retrata uma aliança, os jovens em um grupo discutiram que só pode ser
usada “quando tem afeto”.
225

Madgaleno relatou que tinha terminado o namoro ao entrar no Degase, porque


tinha pouco tempo e não valia a pena pedir que a jovem o esperasse, pois “ainda nem
tinha confiança nela”. Alguns jovens relataram estar em relacionamentos de até três
anos. Quando os relacionamentos são identificados por eles como curtos, não tendo
necessariamente relação com o número de meses, é comum preferirem terminar ao
serem pegos.
Antonio sinaliza: “quando sair vou tentar voltar pra ela, até porque é mãe do meu
filho, e respeitar ela, mas só se ela me respeitou”. Eu perguntei se não poderiam
“começar de zero”, já que ele também traiu ela, mas ele disse “acho que não”,
Nesse relato também observamos que as relações familiares ajudam na
manutenção dos vínculos, incluindo filhos/as em comum. Mas também as mães dos
jovens têm um papel preponderante como guardiãs das noras com quem às vezes
moram, virando “protetoras” da sexualidade das jovens, e, portanto, garantidoras da
honra dos filhos, como apontado por Jonas, que disse “ela, tipo assim, ela tá querendo
vir me visitar, ela. Mas, eu falo com a minha mãe: “mãe, não deixa ela vir me visitar. Eu
sei que você tá vigilando pra mim lá fora””.
Felipe cita a irmã nessa função:

Gabi: se você morrer, quem ia chorar por você?


Felipe: acho que só minha irmã só
Gabi: e a namorada não ia chorar não?
Felipe: ihhh, sei lá. Eu não confio não
Gabi: mesmo ele morando com a sua família, na sua casa, enfrentar a família
dela para namorar com você, você não confia?
Felipe: não confio nada.
Gabi: por que?
Felipe: ah, porque o tempo que eu tô preso, ela vai segurar?
Gabi: você não acha?
Felipe: não, eu já sei que não
Gabi: mas alguém te contou alguma coisa?
Felipe: ah, me falaram pra ficar de olho
Gabi: quem?
Felipe: minha irmã mesmo, que já veio visitar
Gabi: falou o que?
Felipe: que ela tava zoando com um menor lá, com tranquilidade. Só aguardar
eu sair
Gabi: o que você vai fazer?
Felipe: o que eu vou fazer?? Ahh (risos) eu vou chegar explanando ela
Gabi: como?
Felipe: ah (risos), eu vou lá no bagulho, lá com os menor. Ainda pego o menor
que tá junto e caio na porrada.
Gabi: ué, por que tu não pede para ela sair, então?
226

Felipe: porque não é a minha vontade


Gabi: ah, tu quer ficar com ela?
Felipe: claro. Daqui a pouco ela volta de novo. Vou lá, entro na porrada, e daqui
a pouco ela volta de novo
Gabi: ah, tu quer sair daqui, dar uma explanada nela, bater nela, mas quer
continuar com ela?
Felipe: ela mesmo que vai voltar. De vez em quando eu falo “ah, não quero ficar
mais contigo não”, aí ela saía e depois voltava e ficava comigo de novo
Gabi: mas aí você queria ela de volta também
Felipe: mmm
Gabi: mas olha só, você mesmo falou que tá há onze meses aqui, ela vai ficar
se segurando?
Felipe: ela não se segura não
Gabi: porque é difícil pra ela. Imagina ela presa e você solto, você ia se
segurar?
Felipe: claro que não
Gabi: e por que você precisa espancar?
Felipe: porque ela não tá se segurando na pista. Imagina que eu tivesse filha
com ela, ela ia ter relação com outro, sustentando vagabundo na pista,
sustentando o macho dela
Gabi: mas você mesmo falou que é difícil segurar. Quando você fala que vai
explanar ela, é para mostrar aos outros?
Felipe: não, é pra você mesmo. É mulher-de-Bandido, vai trair? Ela que quis
ser, não fui eu que quis
Gabi: os dois quiseram. Você quis ela e ela quis você
Felipe: ahhh.

Para alguns jovens, o fato de as companheiras procurarem visita-los já é uma


mostra de compromisso com eles, pois “visitar é dar valor”, como apontado por Jorge
Luis (17 anos, negro). No entanto, na dobra que a passagem pelo Degase implica, a
viabilidade dessa visita depende de vários elementos. Por exemplo, algumas
companheiras não conseguem superar os obstáculos para visitar os jovens, os quais
são maiores quando elas são menores de idade, seja por questões burocráticas, seja
porque as famílias das jovens não autorizam as visitas por considerarem inapropriado
irem na cadeia148 ou porque não gostam deles por serem do tráfico e/ou violentos com
as filhas.

148
Jorge Antonio também relatou que a equipe técnica não deixou uma companheira entrar porque ela
“batia de frente” com a mãe dele, e queriam evitar problemas.
227

4.2 Sujeito-homem-guerreiro

Carlos Iván: Tem outros que acha que ser sujeito homem é tu já
como, como, tu já dar troca de tiro, mas também respeitar o Mano,
o Mano é o dono da boca, que tá na frente da favela, essas coisas

Como apontado por Gary Barker (2008), grupos como as facções do tráfico, em
vários contextos do mundo, “atraem homens jovens de baixa renda, em sua maioria,
para formas de masculinidade que usam a violência como um meio de lutar contra seu
sentimento de exclusão social” (p.11). Desta forma, as facções do tráfico não são
apenas corporações do lucro da ilegalidade, mas campos produtores de subjetivação.
Assim, para além do acesso a bens financeiros, o tráfico parece oferecer, por exemplo,
uma apropriação do território, do espaço, de onde eles são excluídos diante de projetos
de estratificação social, e por serem jovens. Como Lucia Rabello de Castro propõe, “a
espacialidade da megacidade contemporânea constrói-se numa intricada disputa onde
inclusões e exclusões são forjadas” (RABELLO, 2001. p.114), acrescentando que

excluídos da participação nos rumos da sociedade, restritos na sua liberdade de


expressão, manifestação e mobilidade, e desiguais perante a lei frente aos
adultos, crianças e jovens estão, nesta sociedade historicamente datada, numa
redoma onde dificilmente têm oportunidades de viver o aprendizado de direitos
e deveres, a não ser em situações de faz-de-conta que pouco acrescentam
para uma experiência verdadeira de cidadania (RABELLO, 2001, p.117).

Deste modo, o tráfico acaba oferecendo um domínio de e um pertencimento a


um território, mesmo que o delimite. Mesmo com as restrições e conflitos, existe um
território a defender, luta que se integra aos agenciamentos molares da masculinidade,
onde são utilizados componentes da força para domínio do território, seja este
geopolítico ou interpessoal. Os líderes são heróis e existe um sentimento de
pertencimento. Da mesma forma, como relatado ao longo deste texto, existem normas
muito específicas sobre os corpos, os comportamentos e as relações que esses jovens
devem acatar.
228

Lia Zanotta Machado fala sobre o

número ampliado de jovens envolvidos com agressões exibicionistas, isto é,


com o culto do valor do ato de agressão como símbolo de reconhecimento da
autoridade e de ser o maioral. [...] É uma “dessensibilização frente ao outro nos
momentos de confronto. [...]. Esses jovens revelam sua total adesão a um novo
conceito de tempo social. Seus projetos inserem-se num tempo curto, que lhes
abra imediatamente a porta para o sucesso, o hedonismo das sensações (daí o
fascínio pelas drogas) e o reconhecimento instantâneo do seu poder. [...] A
agressividade física, o exibicionismo do desafio corporal, o poder sobre a
vontade dos outros e a indiferença em relação às vítimas, que servem apenas
para contar vantagens, são valores fortemente conectados com não ser
bundão, isto é, com a concepção de masculinidade (MACHADO, 2004, p.66-
67).

Nesse sentido, vemos a possibilidade de criar e usar recursos discursivos e


práticos para exercer um certo tipo de controle e poder através de artifícios e símbolos
de afirmação, produzindo disputas e guerras, através de um “roteiro performático” onde
“o modo de se apresentar e fazer-se reconhecer socialmente passa pelo exercício
espetacular de ações agressivas que mostrem sua capacidade de desafiar e enfrentar
não importa quem” (MACHADO, 2004, p.62), como revela Abel:

Jimena: você tem mais medo de trocar tiro com quem?


Abel: com ninguém. Se tiver que matar, mato
Jimena: não tem medo?
Abel: não. Ô, entra no crime aquele que não tem nada a perder na vida. Tipo eu
já entrei no crime cheio de ódio mesmo, já matei polícia, já picotei mesmo, já
bebi sangue humano, já cortei corpo, já comi coração
Jimena: mas ódio de que, você tinha?
Abel: eu tenho ódio de tudo, desde que nasci
Jimena: por quê?
Abel: sei lá.

Nesse jogo, embora considerando os processos estatais de criminalização e


militarização dos corpos de segurança pública, para além de vítimas e agressores,
vemos processos de violência e legitimação onde os corpos se entregam não apenas à
adrenalina e ao glamour, mas à dor e ao sacrifício dos resultados dessa “vida”, como
apontado nos seguintes trechos de entrevista:

Gabi: você tem medo disso? De morrer cedo por causa do tráfico?
Felipe: ahhh, mas eu tô nessa vida também por outro caso
Gabi: por que?
229

Felipe: por causa do meu irmão mesmo. Se eu pegar o danado que matou meu
irmão, já era
Gabi: mas você sabe quem é?
Felipe: uhum
Gabi: também é do tráfico lá?
Felipe: não, é de outro tráfico.
Gabi: mas aí você tem essa ideia de se vingar
Felipe: claro
Gabi: não sente medo de morrer cedo assim que nem o seu irmão?
Felipe: não tenho
Gabi: mas você não tem medo porque acha que isso não vai acontecer, ou
porque faz parte?
Felipe: porque faz parte do crime. Uma hora vai morrer
Gabi: você já conheceu vários meninos da sua idade que morreram?
Felipe: uhum. Tem gente que morreu do meu lado
Gabi: e aí você acha que ok, você faz parte da vida do crime, pode morrer, é
assim mesmo. Sabe que é arriscado, que monte de gente morre cedo, que seu
irmão faleceu, mas você é bem resolvido com isso?
Felipe: ah, é tranquilo. Acho tranquilo
Gabi: você acha que isso vai acontecer com você?
Felipe: acho que uma hora vai chegar.

Jimena: e o que você sentiu quando soube que essas pessoas morreram?
Jhosivani: ah, fiquei triste, mas já sabia que isso ia acontecer, porque tava na
vida errada
Jimena: e você sente isso de você, que algum dia pode ser morto?
Jhosivani: já. Mas procurava não pensar, pensar sempre do lado bom. Igual
quando fui preso, só pensava em ir, e voltar pra casa. Não pensava em ser
preso, não pensava nada disso, tava com a mente de ir e voltar

Jimena: você tem medo de ser morto?


Bernardo: ah, tenho mesmo, tem vários policial querendo me matar lá fora
Jimena: você fica com mais medo quando tem confronto com polícia, ou com
outra facção?
Bernardo: os dois. Posso perder minha vida. Mas tipo assim, se tu tá na boca
de fumo traficando, o cara tá te pagando, filha, se tu morrer, filha, vai tar com
dinheiro, filha, tu vai ter o que deixar pra tua família, se tá na boca de fumo,
filha, tu já sabe que pode morrer, ou pode viver.

Na assunção de que o risco de morte é um aspecto ou possibilidade inegável da


“vida do crime”, se agencia uma referência normativa masculina “que os leva a buscar
situações de risco ou práticas temerárias para ‘se justificar como homens’, gerando uma
redução em sua esperança de vida e inclusive na qualidade da mesma” (FIGUEROA-
PEREA, 2013, p. 376, tradução livre), mas também ponderando essas perspectivas a
partir das interlocuções e fluxos:

Carlos Iván: a sensação de trocar tiros é boa, mas dá uma sensação pior
quando tu vê o cara dando tiro pra cima de ti.
230

Adán: algumas pessoa que gosta de, como, “ah, sou do crime desde pequeno”,
aí depois sai, entra pra igreja, vou e se revolta, e, como, “não quero mais ser da
igreja” e entra pra boca de novo. Mas tem algumas pessoas que gosta mesmo
do crime, aí fica mesmo até morrer. Até morrer, de morrer, ou dos cara matar,
não sei
Jimena: ou vai preso
Adán: ou vai preso. Ou vai ficar aleijado dentro de cama

A violência entre homens como expressão das relações de poder é um dos eixos
centrais da produção de masculinidades (KAUFFMAN, 1997). Nesse contexto, o “etos
guerreiro”, como contingência levada a cabo entre homens para obter prestigio
ancorado em desigualdade para “eliminar o inimigo” – mandamento do CV-, como
apontado por Fátima Cecchetto no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade
Urbana, está fortemente enraizado na relação dos jovens consigo mesmos, tanto na
disposição para o confronto, quanto na consciência da própria morte.
Segundo Carla Mattos,

O soldado ou o guerreiro do CV faz uma apresentação de si como o mais


violento e, para isso, executa ações que envolvem muita violência: vai pra
avenida, ou como se diz, vai pra “pista” de fuzil roubar carro e participa de
“invasões” em “favela de alemão” (facção rival). Ele se vê numa missão de
guerra, tudo em nome da facção. O “neurótico” acredita na sociabilidade
violenta em relação à dimensão que o conceito do Machado da Silva explicita,
qual seja, a crença de que o uso da força é um princípio de coordenação das
relações sociais. O perfil “neurótico” surge como uma forma de “ser bandido” do
tipo desconfiado e que suspeita de tudo e de todos. Ele é o tipo bandido-valente
que se impõe pela força e ameaça. O bandido-neurótico só se submete ao
“regulamento” da facção como meio impessoal de criar vínculos e impor a
violência exemplar. Mas o “neurótico” e sua visão de mundo só se sustentam
em contextos nos quais a “guerra” entre facções se prolonga. Então este é um
tipo social da “guerra” – o guerreiro ou soldado do CV (MATTOS, 2014, p.25).

Como apontado por Alba Zaluar (2012), o “etos guerreiro” se constitui no contexto
de uma dinâmica política local de disputa de territórios do crime-negócio como uma
“impiedade ao sofrimento alheio, de orgulho ao infligir violações ao corpo de seus rivais,
negros, pardos e pobres como eles, então vistos como inimigos mortais a serem
destruídos numa guerra sem fim” (ZALUAR, 2012, p.349). Para a autora, esse etos
guerreiro está vinculado a uma

hipermasculinidade, na qual o consumo conspícuo define as novas identidades


masculinas bem-sucedidas. [...] Esses estilos de masculinidade exacerbada ou
de exibição espetacular de protesto masculino criaram o contexto social do
231

conflito armado localizado, mas sem fim, que alguns chamam “guerra
molecular” (Zaluar, 1997; 2004), que opera pela desumanização do inimigo, o
que justificaria as atrocidades cometidas contra eles (ZALUAR, 2012, p.350).

Nesse sentido, existe uma pedagogização da violência com os homens, que é


apresentada como prazerosa através da aventura (FONSECA, 2004), como produtora
de “adrenalina”, sensação citada por vários jovens na hora de cometer infrações, sejam
estas organizadas nas/pelas/com as facções ou não. Por exemplo, Jorge Antonio:

sentia, como, adrenalina. Roubava, às vezes dava certo e às vezes não dava.
Um colega meu pegou e até morreu também, por causa de ficar roubando, aí
eu tinha parado um pouco, aí eu fui e roubei de novo, aí rodei. Agora eu tô aqui
no CAI Baixada.

Contou Jesús: “já matei pessoas em assaltos, às vezes porque reagiram, mas
também muitas das vezes eu ia mesmo com a cabeça quente e muitas vezes eu ia
roubar mesmo só pra satisfazer minha vontade, de matar mesmo. Eu tinha vontade de
matar desde criança”. Ele também reconheceu sentir prazer ao matar, e a partir disso,
Gabi começou a questionar se ele não pensava que essa pessoa podia ter família ou
filhos/as pequenos/as, ao que ele respondeu:

mas não fui só eu não, tinha mais gente que comandava por mim, tinha o meu
chefe, tinha chefe do chefe, eu era só o que os cara mandava eu fazer. Não pra
mostrar trabalho, porque mostrar serviço não preciso ficar matando os outros
não, demostrando serviço pras pessoas não.

Bernardo aponta:

Jimena: você já conheceu gente que não era do tráfico que morreu por conta de
troca de tiro?
Bernardo: já, bala perdida, morador, sabe? Tá maluco, rapá? Sem brincadeira,
um colega meu, que pegou um cana lá, tinha um tipo de pistola, aí que que nós
vai fazer com esse cara?, chegou assim os menor, “que que a gente vai fazer
com esse cara?”, falou comigo, “po, mas tipo assim, a lei do Comando é essa,
se nós não matar o cara, ele vai pegar nós, ele vai matar nós e vai levar nós
preso”, peguei uma arma desse tamanho, pum, na cabeça, dei um tiro na
cabeça, não foi nem um tiro na cabeça, foi um tiro aqui, ô, subiu isso daqui do
cara tudinho, essa parte da barriga pra baixo, arranquei o couro do cara quase
Jimena: caraca, o que você sentiu?
Bernardo: ah, se nós não matava, morre, sem dor e sem piedade
Jimena: desde a primeira vez foi assim?
Bernardor: isso quando nós não picotava, cara, com facão, picotava as perna
232

Estas narrativas que revelam de que forma se produz uma subjetividade violenta
que ora aciona a lei como algo que o controla, ora se percebe como “dono de si”. Como
apontado por Lia Zanotta Machado, “o malandro se constrói positivamente como aquele
que rouba, assalta, mata, bebe e se droga, associando estas atividades à valorização
positiva do macho: corajoso, dono de sua vontade e capaz de impô-la” (MACHADO,
2004, p. 45). Nesse sentido, os dois jovens que percebemos que mais se apegavam a
essa performatividade violenta trouxeram falas interessantes, especialmente no
momento em que criavam vínculos comunicativos conosco, misturando narrativas que
por um lado exaltavam essa performatividade, e ao mesmo tempo se
desresponsabilizando dela. Jesus apontava que “no fundo no fundo, sou ruim, mas não
sou tão ruim” e Bernardo disse

tipo assim, eu quando eu tava no tráfico de droga, eu era um cara mau, sabe?
Mas também tinha meu lado bom. Bandido é bom quando é bombom. Mas é
bom até certas etapa. Agora tipo assim, agora eu tando fora do tráfico de
drogas sou um cara excelente. Sou um cara excelente,

Dessa forma apontando que o trabalho nas facções forjava esse tipo de
performatividade.
Contudo, vale lembrar mais uma vez que a instituição-forma machismo e as suas
violências contingentes atravessam toda a sociedade, pelo que é importante
desmistificar que ela faz parte “da cultura deles”. Como apontado por Connell, “padrões
particulares de agressão” não são efeitos mecânicos da masculinidade hegemônica,
mas justamente componentes da “busca pela hegemonia” (CONNELL, 2013, p.247). O
que estou apontando aqui são os mecanismos específicos com os que, neste contexto,
o tráfico encontrou uma forma de se posicionar como produtor de normas sociais,
delimitando inclusive quais violências são legíveis e quais não e em que situações e
níveis, a exemplo do caso onde os jovens de um alojamento, ao punir um transgressor,
tinham ultrapassado o nível de violência, levando-o a morte, o que poderia trazer
retaliações para eles.
Igualmente, quando os jovens da ADA entraram no CAI, um jovem que
entrevistei disse que se tivessem ido para além das ameaças – “bota a cara alemão!!” -,
eles podiam ter sofrido retaliações do próprio patrão, pois este tipo de acontecimento
233

tensiona a relação com as instâncias estatais de segurança, o que não sempre é


desejado pelas facções, revelando as implicações e movimentações políticas da
violência. O mesmo acontece com as fugas dos jovens da unidade, que, ao se
desdobrar em um tensionamento, pode trazer efeitos indesejados para o coletivo de
jovens.
Podemos entender que os processos de projeção de “inimigos”, articulados em
grande parte por procedimentos violentos de docilização das diversas instituições-
organização, também constituiria uma violência de gênero e igualmente importante de
ser considerada como tal, no momento em que reconhecemos os homens como seres
generificados
É relevante pensar na disputa entre jovens de diversas facções, cuja relação
revela tensões e violências que afastam a discussão da identificação identitária, pois
mesmo sendo dobrados de forma semelhante, dependendo da localidade e das
trajetórias, se configuram como os inimigos, com quem não pode tirar foto – como
vivenciamos nas atividades, em que se recusavam a participar das fotos com jovens de
outras facções e com agentes- e nem se pode nem cruzar palavra, exceto em
determinadas circunstancias, a partir da performatividade masculina guerreira que
projeta o inimigo com uma constante ameaça de chegar na violência física 149, como
apontado por Giovanni, do ADA, quando perguntei porque as facções são separadas
por alojamento,

Giovanni: porque daria briga


Jimena: já teve?
Giovanni: eu aqui dentro, teve ainda não, mas já ouvi falar que tem briga, com
os cara do Comando Vermelho
Jimena: você acha que daria pra evitar essas brigas, se todo mundo estivesse
junto?
Giovanni: não. Porque tem uns que são marrento

Alexander relata as condições de tensão na época das olimpíadas:

Jimena: que acontecia quando tava tão lotado?


Alexander: dava muito problema

149
Jesus também nos contou sobre um confronto entre torcidas de futebol, onde ele quase esfaqueou um
homem de outro time. Vemos como, nesse campo, também se configuram guerreiros que projetam
inimigos, sempre dispostos ao confronto.
234

Jimena: tipo?
Alexander: briga
Jimena: briga de que?
Alexander: adolescente!
Jimena: por conta de que?
Alexander: ah, de facção. “ah, não sei o que da favela” e metia a porrada, só
briga. Desceu um montão pra triagem, mas não tinha espaço na triagem, aí ia
pra cima “quer brigar? Então briga aí, pode brigar à vontade”

Israel também apontou que, ao ter sido transferido, por pedido da mãe, para um
alojamento menor por ter se envolvido em várias brigas, estava começando a se sentir
receoso com os jovens da própria facção, o CV, pois o alojamento menor era do TCP e
ADA. Ele relatou: “já chegou vários moleque da minha área aí, vários, e os cara tá
pensando que eu pulei de facção. Aí eu falei pra minha mãe, e falei pro diretor me botar
lá pra cima de novo, porque os cara tá me olhando, já pensando que eu sou TCP”. Ele
também relatou que em algumas atividades, os grupos eram misturados, e que essa
mistura “até que dá, mas um fica olhando pra cara do outro. Porque se cair na
porrada...”. Outro jovem também falou para Bárbara que no grupo de promotores de
saúde, até dava para estar misturados e ter uma boa relação, mas quando voltava ao
alojamento tinha que explicar que estava sendo obrigado a conviver com eles.
Jesus apontou que, mesmo negando qualquer possibilidade de partilhar o
alojamento com mancões e Jack, ele os trata bem e pode conversar com eles, pois

Jesus: só alemão que não, se for da outra facção não.


Gabi: aí você não pode se relacionar?
Jesus: não, da ADA ou TCP
Gabi: e aí você faz o que?
Jesus: ah, não falo com eles, se não vai rolar caô
Gabi: mas tem atividades juntos, né?
Jesus: é, escola. Mas se brigar vai acontecer isso, vai pro castigo e fica super
tenso. Aí fica super tenso é o que, tua mãe vem na visita, não vai poder trazer
biscoito, guaraná

Nesse sentido, recupero a discussão sobre os encontros da pesquisa-


intervenção como terrenos para pensar as produções de subjetividade, pois por vezes,
mesmo que necessário um maior esforço para fluir nas enunciações, elas pelo menos
acontecem, o que não aconteceria com um jovem de outra facção, ou aconteceria com
uma tensão muito maior do que conosco. Podemos pensar que existem diversas
produções do outro, pois se por um lado existe um outro/externo que não vai entender
235

seus códigos e vai viver uma vida completamente distinta com escassíssimos espaços
de diálogo, existe um outro/inimigo que vai partilhar esses códigos a tal ponto, que sua
construção de si como inimigo impossibilitará o diálogo. Nos dois casos, diversos fluxos
de poder e violência acontecem, atravessados, novamente, pelas instituições-forma.
Tensões surgem, por exemplo, entre as dimensões do sujeito-homem-guerreiro e
aquele que ostenta conquistas amorosas. Em uma ocasião, enquanto almoçávamos no
refeitório, escutamos um diálogo que nos pareceu interessante, entre um jovem e dois
agentes socioeducativos:

Jovem: Tá vendo aquele menor ali que entrou comigo? Pô, então, ele é meu
cunhado, só que assim ele é do Comando Vermelho, mas eu pego a irmã dele.
Agente: Que isso, tu é do ADA e pega mulher do Comando Vermelho?! Vai se
virar como na visita? Vai morrer hein!
Jovem: Não, não, ela não vai me visitar não, eu só pego ela.
Outro agente: Esse negócio de facção não tá com nada, o negócio é passar o
rodo.

Nesse momento, vemos como o pertencimento às facções, aparentemente


inquestionável, se vê desestabilizado pela vida sexual, acionando diversos aspectos
das performatividades masculinas.
Já o confronto físico entre jovens e agentes, assim como a constante
possibilidade dele acontecer, foi relatado várias vezes. Soubemos de práticas violentas
utilizadas pelos agentes como procedimentos de controle dos jovens, especialmente
spray de pimenta, e também soubemos de casos em que os jovens agrediram os
agentes, o que imediatamente desatava cenas violentas de punição desses jovens.
Assim como com os policiais, é possível ver que a violência é muitas vezes legitimada
por parte dos agentes, pois eles a usam em uma perspectiva disciplinadora e de gestão
de riscos, embora eles sejam vigiados por outros/as profissionais, instâncias, familiares
e movimentos sociais para os quais sua violência não é legítima (FONSECA, 2004).
Igualmente, os agentes relataram casos em que jovens querem “botar moral nos
agentes” como uma busca da afirmação masculina. Também escutamos isso de alguns
jovens, como apontado antes, focando principalmente no momento em que estiverem
livres, onde seu poder seria reforçado e poderiam retribuir as violências vividas.
236

Como apontado por Helen dos Santos e Henrique Nardi, “a morte social é um
imperativo no cotidiano da prisão e que, para sobreviver, os homens necessitam reiterar
uma masculinidade que se fortalece a partir de relações conflituosas e hierárquicas”
(2012, p. 932). De forma semelhante, as unidades masculinas se constituem como uma
instituição-organização onde para sobreviver e “para ser respeitado”, é necessário
acionar certas performatividades masculinas, o que é diferente das unidades femininas,
como expressado por profissionais que já trabalharam em unidade feminina e conforme
observamos na pesquisa.
Essas performatividades não são homogêneas pois, como relatado por agentes
nos nossos Cursos, existem diferenças entre quem é de plantão, cadeeiro, e quem está
na escola ou em outras atividades como oficinas, grupos ou aulas, que são percebidos
como lugares mais tranquilos, mais próximos da equipe técnica e até mais frouxos na
percepção de outros agentes, sendo alvo de deboche e segregação ao não colaborar
com práticas viris (VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017).
Os que atualmente são professores, por exemplo, relataram ter quebrado
barreiras enormes que tinham se estabelecido com os jovens, agora podendo levar no
papo, mesmo continuando com postura e equilíbrio. Um deles disse que quando saiu
do plantão para dar aula, tinha receio de qual seria o tratamento dos jovens com ele,
mas que na hora em que isso aconteceu, eles mudaram completamente, chegando a
dar mostras de afeto, o que nunca antes tinha acontecido. Essas mostras também
foram relatadas por outros agentes que não estão mais no plantão.
Por sua vez, os que atualmente estão no plantão expressaram de que forma
nesse espaço eles percebem a necessidade de mudar de comportamento quando
estão na linha de frente, sendo exigida uma dureza que não faz parte da sua
personalidade com o objetivo de colocar uma “barreira para se impor como agente”.
Outros falaram que ao tentarem ser mais permissivos, os jovens tinham realizado
abusos, sugerindo que apenas com uma postura dura poderiam lidar com o coletivo de
jovens. Relataram inclusive que alguns jovens solicitam ser algemados nas audiências,
para não “tentar fugir”. Nesse sentido, “demonstrações de coragem e frieza são as
formas pelas quais a virilidade se manifesta nas unidades de internação, com o objetivo
de imposição do medo aos adolescentes” (VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017).
237

Retomando o tema da disputa entre os agentes e quem vem de fora, eles


reclamaram em uma ocasião que uma profissional da Psicologia externa tinha dito em
um curso “que se um adolescente bater na nossa cara, a gente tinha que dar dois
passos para trás. Acabou, a gente perde a casa, se fizermos isso”. Inclusive soubemos
de um jovem que apanhava dos agentes quando praticava autoflagelação, revelando
uma violência usada para impedir outra violência. Dessa forma, com cursos do Bope,
vemos como a performatividade masculina do que poderíamos chamar de “guerreiro
bom” é constantemente acionada por eles.
Aqui, ainda outra disputa é acionada na relação entre agentes e jovens, que
podemos perceber como uma dicotomia entre “homem bom” e “homem Bandido”. Por
um lado, os “bons” desprezam quem é submetido à facção, menores de idade
irresponsáveis, em privação de liberdade, enquanto os Bandidos desprezam os
mandados, que são submetidos à lei estatal e não têm fartura financeira. Lia Zanotta
Machado aponta algo semelhante ao pensar no “bicho danado” e o “homem honrado”:

Bicho danado remete ao que não se submete à lei social, ao que tudo pode: à
pura potência. Homem honrado remete ao que se submete à lei social, desde
que, em nome desta, sua posição seja a de exercer primordialmente o controle
dos outros. Não se trata de homens que podem escolher ou serem postos na
posição de bichos danados e homens honrados. É a própria concepção de
masculino que inscreve esta dupla posição de poder estar, ao mesmo tempo,
no puro lugar da potência e da lei, sem a ela se submeter, e no lugar de
representante ou depositário da lei social e, por isso, também submetido. Por
referência ao mundo relacional da honra, o bicho danado está no lugar de poder
decidir sobre juntar, casar, assumir ser pai ou não. Está no lugar de poder ser
fiel ou infiel nas relações conjugais. Como homem honrado, pode controlar as
mulheres e rivalizar com os homens, desde que cumpra seus deveres de
provimento (MACHADO, 2004, p. 71).

A narrativa da “escolha” é novamente posta, no momento em que muitos agentes


relatam possuir trajetórias semelhantes às dos jovens, de exclusão racial e social, o que
não fez deles Bandidos150. Alguns apontaram que a diferença está no “fundamento da
educação”, mais uma vez, culpabilizando as famílias por um “desvio de caminho”. Outro
profissional apontou que, apesar de ter vivido em uma favela, diferente dos jovens, ele
tinha escolhido “virar homem, pai de família, trabalhador”, “basta você querer ser

150
Outros/as profissionais relataram ter trajetórias semelhantes, passando também por situações de
racismo e classismo.
238

diferente”. Nesse sentido, casos como a entrada de jovens filhos de agentes


socioeducativos, policiais ou juízes/as acabam tensionando essa divisão, provocando
constrangimento para os “homens bons” e colocando esses jovens no lugar de inimigos
dos jovens Bandidos.
De qualquer forma, para ambos aplica-se a norma implícita de que “para
sobreviver no Degase, tem que ser homem”, “tem que se impor”, como apontado por
profissionais homens. Isto se aplica também para as questões de sexualidade, por
exemplo, no momento em que um agente apontou que, caso o preservativo seja
implementado, só as técnicas poderiam distribuir, pois os jovens ficariam com vergonha
de pedir para eles e/ou eles “perderiam a moral”, pois “isso aqui não é hotel, não é
abrigo”. Por outro lado, para alguns/as profissionais, apenas os agentes poderiam
realizar essa função, diante das suas capacidades e possibilidades de vigilância e
autoridade absoluta sobre os jovens.
Por outro lado, como apontado pelos diretores, atualmente, com o novo
paradigma do Degase, a linha de trabalho no CAI com os agentes tem três pilares:
“postura - tem que ter uma postura com os adolescentes para eles respeitarem-,
equilíbrio -não se deixar enfurecer151- e referência - saber que eles são referência para
os adolescentes e têm que se comportar como tal”. Chama muito a atenção como
existe uma performatividade masculina específica solicitada aos agentes em relação
aos jovens, novamente, acionando a dimensão produtiva do poder para além de um
viés punitivista que acionaria somente uma performatividade confrontativa e
massacrante. Vemos assim

a demanda por ações socioeducativas pautadas pelo cunho pedagógico


e não repressor. O paradoxo dessa demanda, que contrai a contenção e
a educação, é intensificado pela precariedade das unidades de
internação para adolescentes em conflito com a lei no Brasil, acentuada
nos anos recentes pela superlotação (VINUTO; ABREO; GONÇALVES,
2017, p.56).

Nesse sentido, escutamos várias falas de aproximações de alguns agentes com


alguns jovens, onde os segundos pedem conselhos. Um agente também relatou ter

151
Inclusive, uma ocasião vimos como um agente gritava com um jovem de forma repetitiva e dura, frente
ao que um dos diretores pediu para ele se tranquilizar, pois o jovem já havia entendido que tinha errado.
239

mudado bastante de perspectiva, buscando atualmente um maior diálogo com os


jovens, conseguindo realizar atividades e fazer propostas distintas.
Alguns profissionais apontaram que o relaxamento da postura dos agentes tem
possibilitado que a Segurança não seja mais uma prioridade, vulnerabilizando a
unidade. Outros, no entanto, disseram que ao longo dos anos, o fato deles deixarem de
ser tão truculentos tinha melhorado a relação com os jovens.
Atualmente, são nomeadas duas figuras como polos extremos: os truculentos e
os pão doce. Os primeiros parecem aderir a uma performatividade violenta e dura como
necessária para a manutenção da ordem no espaço, sendo cobrados para isso, mas
também ocupando e reificando esse lugar a partir dos seus próprios objetivos. Os
segundos “tentam amaciar os meninos no diálogo”, em palavras de uma profissional,
produzindo alguns vínculos de confiança. Essas figuras não são completamente
binárias e excludentes, mas se apresentam em um espectro de performatividades que
se tensionam, se complementam e se articulam em diversas relações com os jovens,
com os outros segmentos e com a direção.
Nesse sentido, os agentes participantes do Curso apontaram ter gostado de, a
partir dos seus desdobramentos, ter conseguido estabelecer um diálogo distinto com os
jovens, onde as opiniões deles eram escutadas pelos jovens, ao tempo em que outros
agentes percebiam que esses contatos podiam não ficar restritos à mamãezada e desta
forma desestabilizar a operacionalização e defesa da dinâmica defensiva do “cinismo
viril” (VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017).
Aqui podemos pensar que, nas táticas cotidianas, cada jovem e/ou grupo de
jovens estabelece uma relação diferente com cada agente e/ou grupo de agentes.
Como apontado por Gabi, dependendo do posicionamento de cada um e do clima
político do estabelecimento, a violência latente vai se deflagrar ou não. O mesmo
acontece com cada técnica/o, docente ou diretor, cujas posturas são variadas. Nós
também experimentamos isso, revelando que mesmo que aparentemente rígido,
estável e fixo, o estabelecimento é muito fluido em relações, acontecimentos, jovens,
profissionais, configurações e normativas.
No que tange ao tema da sexualidade, foi muito interessante escutar o processo
de um agente, que participou do segundo Curso justamente para se apropriar de mais
240

elementos sobre a temática, pois mesmo percebendo que alguns jovens estavam
vivenciando processos importantes, quase sempre violentos, relacionados com isso, ele
não sabia como os abordar sem parecer que estava querendo constrangê-los, prática,
segundo os jovens, bastante comum entre os agentes. Depois do Curso, ele relatou ter
conseguido criar estratégias para se aproximar dos jovens de modo que eles se
abrissem nesse sentido e não necessariamente ter que encaminhar para as técnicas.
Isso me fez pensar em como o gênero e a sexualidade como dispositivos de controle
impedem que na instituição se aborde o assunto, pois, se, como inicialmente nos foi
falado, os jovens não falam sobre sexo com as técnicas, pelo visto, tampouco com
muitos agentes, limitando as possibilidades de diálogo e portanto de transformação
nesse sentido. O que parece importante nesse sentido é que, além de tentar
desnaturalizar as rigidezes das relações de gênero entre os jovens e os/as
profissionais, se promova uma sensibilidade de todos/as eles/as (NASCIMENTO;
SEGUNDO; BARKER, 2011), para que os jovens se aproximem de quem eles desejam
e suas necessidades sejam escutadas e efetivadas.
Cabe apontar, também, que no terreno de relações de performatividades
masculinas no estabelecimento, não entram apenas agentes e jovens, mas também
diretores e professores, cada um com suas diferenças, que a partir de diversos
poderes, trajetórias e dobras de classe, localidade, geração e raça, apresentam
recursos emocionais e performáticos que aproximam e se distanciam dos jovens e das
pessoas dos outros segmentos. Em várias ocasiões, escutamos que os jovens, por não
terem “figuras paternas válidas”, buscavam nos profissionais homens, especialmente
diretores e docentes, vínculos desse tipo. Alguns professores também relataram
estabelecer vínculos de identificação e diálogo para, por exemplo, falar sobre saúde
sexual e família com os jovens, organizando atividades e conversas nesse sentido. Já
outros disseram que essas temáticas não eram abordadas no seu exercício profissional,
mas em um momento em que vimos uma aula, percebemos que os exemplos utilizados
para explicar gramática usavam frases próximas do cotidiano dos jovens, como “A mina
beija bem”, “Eu comi a minha vizinha”, que imediatamente apontamos como também
relacionadas com sexualidade.
241

Destarte, em um estabelecimento onde as performatividades masculinas são


recorrentemente acionadas, elas vão estabelecendo alianças, fluxos, disputas,
cuidados e reciprocidades que revelam limites de pertencimento, reconhecimento,
representatividade e possibilidade de encontro.

4.3 Sujeito-homem-herói-sacrificado

Felipe: sujeito homem é manter a palavra. Não entregar ninguém


na hora que tiver, como, cair na porrada
Gabi: o que você fez com seu primo foi ser sujeito homem?
Felipe: é. Mas aí, ajudei, e olha onde que ele tá agora. Já morreu
Gabi: mas aí não depende de você. Na hora que depende de
você, você assumiu a responsabilidade sozinho. E aí ele ficou na
pista e foi assassinado. Mas na hora você segurou tudo. Isso é ser
sujeito homem?
Felipe: uhum152

Gabi: essa vez que você rodou roubando carga, rodou um monte
de gente com você?
Jesus: não, só rodou eu
Gabo: mas você não tava sozinho
Jesus: não, mas aí eu, eu, eu sou sujeito homem, entendeu, antes
de eu ser Bandido, eu sou sujeito homem
Gabi: então me explica, o que é ser sujeito homem?
Jesus: ah, arcar tuas consequências, tuas consequências sozinho,
tipo, se o negócio tá contigo, tu tem que tratar teus negócios, não

152
Felipe relatou que tinha sido apreendido por policiais à paisana na favela que morava, e que tinha
segurado tudo sozinho, permitindo que seu primo, também de menos de 18 anos, fosse liberado. O
primo foi morto meses depois, enquanto Felipe estava no Degase.
242

os outros que tem que tratar teus negócios contigo. Aí ser homem
pra tu bancar com o que tu fez. Isso pra mim é sujeito homem
Gabi: você aprendeu essas regras de ser sujeito homem no
tráfico?
Jesus: mmmm muitas sim e muitas não
Gabi: você é Comando Vermelho?
Jesus: sou
Gabi: e lá tem essas regras todas de honrar, se ser sujeito
homem?
Jesus: claro! Claro. Falar a verdade até que custe sua própria vida

Jorge Aníbal: ah, eu acho assim, ser sujeito homem é falar que foi
ele que fez, assumir o que ele fez, não levar todo mundo de ralo

Como apontado anteriormente, vários jovens relataram terem sido apreendidos


por assumirem responsabilidade de atos ou não cometidos, ou não cometidos apenas
por eles, para “salvar” adultos que iriam para o Sistema Prisional. Nesse sentido, o
sacrifício entra como uma definição do ser sujeito homem que, como apontado por
Felipe, nem sempre surte os efeitos desejados.
No entanto, esse sacrifício não é realizado apenas pelo bem do coletivo, mas
justamente como componente fundamental da performatividade masculina, pois, como
apontado por Gary Barker, “mostrar uma atitude firme ou ser capaz de se defender é
uma obrigação; como dizem muitos jovens das áreas urbanas de baixa renda do Brasil:
“ser homem é tomar a atitude correta”, “cuidar de si próprio”, “impor-se quando
necessário”, e “defender sua reputação” (BARKER, 2008, p. 35).
Desta forma, Jesus aponta que, mesmo sendo parte dos códigos do CV, assumir
as consequências faz parte do ser sujeito homem, o que vai para além do ser Bandido.
243

4.4 Sujeito-homem-enunciador-honesto

Emiliano: sujeito homem é um cara que arca com suas


consequências. Independente dele estar fazendo essas coisas [se
relacionar sexualmente com outros homens], como, tu fez uma
coisa, tu não vai jogar pra cima de ninguém, tu vai se assumir,
bancar o bagulho

Carlos Iván: Que tipo assim, fez merda, assume seus bagulho,
banca seus negócio, assume. Sabe que assim, sempre trabalha
com o certo, nunca fala mentira, não gosta de falar mentira, fala
até mentira, mas tipo assim, não joga a culpa pra cima dos outros.
Essas coisas, isso é ser sujeito homem, pra mim.

Bernardo: ah, se eu sou sujeito homem de dar papo nele, porque


ele vai fazer uma coisa comigo? Quem fala a verdade não merece
castigo
Jimena: O que é ser sujeito homem pra você?
Bernardo: sujeito homem, filha, é o cara que sabe que tá fazendo
errado, mas chega lá e dá o papo correto no cara, “po, errei, não
vou cometer esse erro de novo, e vou mostrar pra tu diferente, que
eu posso mudar, mudar o que eu era antes, e me tornar uma
pessoa normal agora mais na frente”. Eu sendo sujeito homem,
filha, se to fazendo uma coisa errada, tenho que falar a verdade,
filha. Tipo assim, eu já menti pra caramba mesmo, agora tipo
assim, já menti pra minha mãe, pro meu pai, eu menti há pouco
pra minha mãe. Ser sujeito homem pra mim, filha, é tu reconhecer
tuas atitudes e nunca insistir no mesmo erro toda hora, nem
persistir no erro. Errou a primeira vez, a segunda vez, ou morre,
toma um pau também
244

Relacionado com o sacrifício que implica assumir responsabilidades, no ato de


“bancar o bagulho”, entra em cena o elemento enunciativo do ser sujeito homem. A
prática do desenrolo, “é uma expressão comum usada para ressaltar a seriedade de
uma conversa. Nela, alguém precisa criar argumentos para fins de convencimento ou
esclarecimento acerca de um assunto” (MATTOS, 2014, p. 10). Embora seja
atualmente mais utilizada para se referir a interações entre traficantes e moradores, é
interessante entendê-lo como um “dispositivo que aciona uma gramática patriarcal para
mapear e produzir conflitos, identificar riscos, antecipar e neutralizar a violência”
(MATTOS, 2014, p.10), como “interações possuidoras de gênero, cujas conversas
tendem a deflagrar tensões em torno do universo masculino” (p.39) que amplia
“argumentos entre sujeitos homens” (idem).
Esse conceito não se destacou nas narrativas trazidas para nós no campo ao
falar do cotidiano na pista, pois os jovens faziam mais referência ao confronto do que a
negociações verbais, o que pode estar relacionado com o atravessamento geracional,
em que eles desempenham funções mais confrontativas do que verbais, ou, como
apontado por Carla Mattos (2010), eles poderiam desenvolver “práticas guerreiras”,
enquanto os patrões se envolvem em “práticas patronais”. Nesse sentido, talvez a
experiência do Degase, onde a vigilância e a gestão de riscos – Segurança – são
permanentemente acionadas, faça parte de um mecanismo de certa docilização desses
guerreiros, de reforçar o código da fala mais do que a força, constituindo assim outra
dimensão sujeito homem, que tem certa igualdade ao ser capaz de desenrolar,
eliminando os conflitos ou pelo menos os gestionando de outra forma, através de
recursos argumentativos, como apontado por Mattos.
Nesse sentido, outro termo que chamou a atenção, foi o ato de orientar, no
sentido de enunciar os códigos e/ou suas transgressões, de acionar um certo poder
pastoral de tutela, mais do que concretizar punições às suas transgressões. Assim, os
“mais velhos da cadeia” ou do alojamento orientam os novos, e os jovens orientam seus
superiores caso tenham transgredido alguma norma da “masculinidade do Bandido”,
incluindo a heterossexualidade. Igualmente, esses mais velhos “botam o peito na
frente” para desenrolar – nesse caso foi usada essa palavra – com os agentes, que
chegam cheios de fogo quando os jovens do alojamento estão fazendo coisas
245

indevidas, como expressado por Emiliano. Nesse sentido, vemos o valor da


comunicação, da igualdade, da transparência, vistos como virtuosos no sentido da
manutenção da coesão social. Nesse sentido, o sujeito homem é “honesto, de caráter,
de confiança, com palavra” (FACINA, 2009).
Outro ponto interessante ao falar da comunicação e honestidade está
relacionado a com quem esses valores são acionados, sejam patrões, diretores,
agentes, familiares ou companheiras. Jesus aciona esse discurso ao falar sobre uma
jovem que ele gostava muito: “eu queria pá, que ela volte, eu tava na pista e ela ficava
falando pra mim ‘porra, ela falou comigo, se tu terminasse comigo tu ia voltar pra boca
mesmo, pá’, e eu ‘porra, mas minha palavra é de sujeito homem, eu falo, eu cumpro’”.
Igualmente, a comunicação com os agentes é uma tensão permanente,
dependendo de qual o ritmo da facção e a qual delas o jovem pertence, assim como da
função e postura do agente. Jonas, do alojamento Seguro, aponta:

Os agentes sempre brincam, tipo assim, às vezes os agentes brincam,


entendeu? Tipo assim, a gente está conversando, tem um aqui da igreja,
converso com ele direto, entendeu? Ele fala comigo, dá vários papos comigo
sobre o futuro, como vai ser minha vida quando eu sair, entendeu? Que que eu
vou fazer, que que eu vou fazer

Como apontado por Carlos Iván, existem negociações constantes:

Carlos: agente? ah, esses cara... tipo assim... tem uns que é legal, tem uns que
é tranquilo, tranquilo, tranquilo, mais a maioria dá tapa na cara, e, como, ficar
tomando tapa na cara...
Jimena: mas você fala com eles tranquilamente?
Carlos: falo, falo, só não dou base pra me diminuir, não falo besteira, porque
ficar dando mole, se tu fica falando muita bobeira pra eles, ficar falando muita
coisa tipo assim, eh, como se diz... se dá muita liberdade, eles quer montar
encima

Adán também aponta:

Adán: ah, não pode deixar na reta, não pode fazer marra, deixar eles na marra
deles. Às vezes, às vezes eles dão um papo, nós abraça o papo, às vezes nós
não quer abraçar, quer que se dane, tem nada a perder mesmo, apronta
mesmo.
[...]
Eles só agridem mesmo, se for, como, pra agredir mesmo, se nós estiver muito
errado. Aí eles agride mesmo. Eu, como, eu sei que vou ficar quieto, não vou
246

responder a funcionário se eu sei que to errado, não vou responder a


funcionário. Mas se o funcionário vem dar um tapa na minha cara, não vou
deixar não! Não deixo, tá maluco? Mas se eu tiver errado, baixo a cabeça pra
ele, e respeitar, pode bater

Jesús tem uma fala parecida: “aqui no Degase, eu sou menor pra cumprir minha
regra no dia a dia, não deixo na reta pros caras, os cara não entram no meu caminho
nem eu no deles, falo tranquilo com eles pra eles, como, pá ”.
Christian Alfonso, por sua vez, sinaliza:

se você não seguir as normas, se você não dá o respeito que eles quer, eles
quer “bom dia”, tem que dar bom dia pra eles, eles quer que tu respeite, se tu
desrespeitar eles te dá tapa na cara, ou eles chama o prantão e taca spray de
pimenta. Antes de ir embora eu tomei foi sprayzada na cara porque o moleque
abriu a chapa e ninguém assumiu, só eu se assumiu sozinho. Aí eu fui falar pro
coordenador e tomei sprayzada na cara.

Já Alexander aponta:

Alexander: tem uns menor que fala “ah, aperta mão de funcionário não”, mas eu
aperto, ninguém manda em mim, ninguém fala o que eu tenho que fazer. Se o
cara quiser apertar a minha mão, eu vou apertar. “Ah, não dá mão em
funcionário, ainda apanha”. Vou ficar batendo em funcionário? Fico na minha.
Não dou motivo pra apanhar. Os funcionário me conhece. Aí to prosseguindo.
Jimena: e porque os outros têm essa atitude?
Alexander: sei lá. É implicância. É neurose, porque não é polícia. É besteira.

Mas também considera as tensões do estabelecimento ao apontar que “não


pode responder a funcionário, não pode ficar falando, só escuta. Se não, funcionário vai
entrar no alojamento. É melhor ele ficar falando sozinho”. Quando visitamos os
alojamentos, vemos um papel grudado na parede de um deles, que, segundo Julio
César, são as normas do coletivo. Um dos diretores também repara no papel, e diz “tô
lendo, tá certo, cada um com seu cada um, só não concordo com a 23”, que era “não
abraçar o papo dos funcionários”, mas fez a ressalva dizendo “pelo menos já avançou,
porque antes eram mais violentas”.
Na relação entre as performatividades masculinas, os agentes ora se distanciam
dos policiais, vistos como “inimigos”, ora se apresentam como Seus, em uma postura
mais amigável ou próxima, mas também diferente e em disputa. No entanto, mesmo
com as tensões, tinha momentos nas atividades em que jovens e profissionais
247

participavam, em que os jovens de certa forma expressavam que nós ou as


profissionais não estávamos entendendo o que estava se passando. Em uma atividade
onde o diálogo entre 50 jovens, duas profissionais e eu estava sendo desafiador ao
falar de homossexualidade, um agente, que estava silencioso até esse momento, pediu
a palavra, frente ao qual Dorian disse “sim, manda um papo pra mim”, de certa forma
legitimando a fala do agente por ser homem e inclusive expressando que era
necessário que ele se posicionasse. O agente perguntou se nenhum deles tinha
fantasiado com “transar com duas gatas”, ao que eles responderam que “sim, mas nós
pegando as duas, não elas se pegando”. Aqui, mesmo o agente sendo considerado
uma espécie de inimigo para os jovens e um aliado para nós, abria um espaço com
eles, pois partilhava da perspectiva dos homens nas relações, confirmando o desejo do
Dorian de escutá-lo. Assim, as performatividades masculinas são acionadas em alguns
momentos para potencializarem códigos territorializados.
Um ponto interessante neste tema é que, apesar de ser honesto e orientar fazer
parte do ser sujeito homem, percebemos que muitas vezes ao descrever o que para
eles era importante nas mulheres, essa também era uma característica. Como já foi
apontado, espera-se delas que enunciem quando não querem mais estar com eles, por
exemplo. Bernardo apontou algo nesse sentido:

Po, lá fora, se minha namorada vai presa porque roubou, fica presa na cadeia
de maior lá, fica se relacionando com mulher, chega pra mim, pá, sem me
passar visão, filha, po, a primeira coisa que eu vou chegar pra ela vai ser “po, tu
teve relação sexual com mulher na cadeia? Se tu fez, tu dá o papo reto, não
vou fazer nada contigo nem vou terminar contigo, mas eu quero o papo reto”,
sabe? Agora, eu vou falar, “me pergunte se eu tava me relacionando com outra
mulher quando tu tava presa?” Sabe? Que é o direito que a mulher tem de
fazer pergunta, também, filha, igualdade é pra tudo.

Jimena: você acha que existe um ser “sujeita mulher”?


Jorge Antonio: sujeita mulher? Aí não sei (risos). Eu acho que existe, porque
tem mulher que... que... que respeita também

4.5 Sujeito-homem-honrado

Gabi: e o que é pra você ser sujeito homem?


Israel: ehhh... não bater numa mulher
248

Gabi: você nunca bateu numa mulher?


Israel: já.
Gabi: como assim?
Israel: não, mas não assim de pá, porrada, só dei um soquinho só
Gabi: ah, um soquinho pode?
Israel: ah, um soquinho de leve
Gabi: isso não é bater?
Israel: mas a mulher vacila, também. Também bate. Tipo, a mulher
que eu namorava, ela também me agredia, e eu agredia ela.
Gabi: a que você ficou cinco meses?
Israel: não, não. A outra. Ela era fortezinha, assim, bonitinha, aí
qualquer bagulho, ela já queria brigar comigo. Mas fora isso, eu
nunca bati numa garota, não. Só nela mesmo. Ser sujeito homem
é...mmm... seguir as regras... tipo...
Gabi: regras de quem?
Israel: suas mesmo, saber o que está fazendo.
Gabi: agora, no tráfico não existe regra sobre bater em mulher
Israel: existe. Os cara bate!
Gabi: e porque existe essa regra?
Israel: ah, sei lá, né?
Gabi: a maioria dos meninos que a gente conversa que são do
tráfico, batem em mulher, porque acham que ela justifica apanhar
Israel: não, mas eu assim, desse jeito que você pensa, eu sou
não, mas às vezes ela dá uma vacilada, começava a discussão.
Mas fora isso, eu nunca levantei a mão numa garota, não.
Gabi: que jeito que eu penso que você é?
Israel: ah, acho que pensa que sou bruto
Gabi: não, não acho q você é bruto, é porque você falou que
sujeito homem não pode bater em mulher, aí perguntei se você
nunca bateu e falou “já, mas é porque ela era vacilona e também
249

já bateu em mim”. E aí eu perguntei “ah, mas isso é ser sujeito


homem? Bater na mulher pode?”
Israel: não.
Gabi: quando você vê algum outro colega do tráfico batendo numa
mulher, você faz alguma coisa? Faz alguma intervenção?
Israel: faço uma intervenção sim. Não deixo não. Falo “vai, vai, vai
logo, que ele tá boladão e ele quer te pegar”. Tenho muita
amizade de garota que eu nunca fiquei, muita menina, e já vi
vários garoto batendo nelas, colava no miolo delas, e já defendi
elas, minha irmã então já foi uma
Gabi: colava no miolo é o que?
Israel: defender
Gabi: sua irmã apanhou?
Israel: não. O garoto só deu um soco nela
Gabi: era do tráfico, ele?
Israel: não, não era nada do tráfico. Era normal. Era um bobão lá
Gabi: foi dele que ela engravidou?
Israel: foi. Que não tá com ela
Gabi: nem assumiu a criança?
Israel: assumir, assumiu. Se ele não assumir...
Gabi: mas dá pensão?
Israel: dá.
Gabi: e ele bateu nela?
Israel: bateu
Gabi: por quê?
Israel: ah, não sei não. Minha mãe não quis me falar não. Porque
a minha mãe... como eu tava muito doidão de maconha, assim,
qualquer coisa eu já ficava furioso, qualquer probleminha, aí não
me contava nada, aí.
Gabi: mas você chegou a falar com ele, quando você soube que
ele bateu nela?
250

Israel: isso foi uma semana antes de eu rodar. Eu só vi ele uma


vez. Porque eu não ficava na casa da minha mãe, não. Ficava
mais sozinho lá na favela. Deixava a minha mãe muito de lado.

Esta fala revela fluxos e tensões narrativas do ser sujeito homem no que tange às
relações com as mulheres e com as normas do tráfico. Lia Zanotta Machado (2004)
disserta sobre a “articulação entre os valores hegemônicos do masculino e os valores
inscritos no exercício da violência física” (p.35), assim como “a articulação entre
masculinidade e a busca pelo controle dos desejos e vontades de outrem” (p.36) e a
“articulação entre masculinidade e encenação ritualizada do poder e do controle”
(idem). A partir da análise de narrativas de sujeitos que “participam de relações
violentas e são agentes de violência física”, ela evidencia

as armadilhas que os valores da concepção sobre a posição masculina tendem


a oferecer aos sujeitos sociais. O masculino, tal como vivenciado por sujeitos
enredados nas relações violentas, parece tender a prendê-los às armadilhas de
se confundirem, se identificarem e representarem a lei e a potência, como se a
elas não precisassem se submeter (MACHADO, p.40).

Desta forma, vemos uma tensão entre julgar ou não as ações que devem ser
tomadas para submeter o sujeito homem às leis, neste caso, das facções. Como
apontado por Machado, o homem

tudo pode sem precisar obedecer às leis sociais. Ele está fora e além delas, só
obedece se quiser se inserir. Quando opta pelo mundo da bandidagem, só
obedece estas regras, exatamente para poder fazer o oposto, isto é, não se
submeter a nenhuma regra. Assim, ele não faz porque quer agredir ou matar,
mas porque estas são as regras bandidas. Esta violência cínica funda-se nas
armadilhas do que se exige para ser ‘macho’ (MACHADO, 2004, p.68).

Israel frisa no ‘autocontrole’ da força, não ser ‘bruto’ ou, em palavras de Adán ao se
referir a um jogador de futebol que matou a companheira, vacilão, se apropriando das
normas machistas do tráfico, e estar disposto ao confronto físico para defender a honra,
sempre de forma justificada, pois mesmo quando a agressão contra as mulheres é
reprovada, continua “a visão estereotipada que responsabiliza a mulher pela agressão
sofrida” (CECCHETTO, et. al., 2016, p.859; BARKER, 2008).
251

Adán: bater, tipo assim, bater já bati. Tipo assim, nessa garota aí, que morreu,
antes de eu pegar, antes de eu ficar com ela, tipo ela era da boca, ela tinha me
achincalhado com os melícia. Aí, como, fiquei bolado, aí depois, como,
começou o papo, aí ela falou que não foi ela, aí... mas assim, só essa vez eu
bati, só. Não gosto de bater em mulher, bater em mulher é covarde. Só bati nela
porque ela me achincalhou com os milícia, e eu podia morrer se os melícia me
pegar. Só ela mesmo, só. O resto...

Por sua parte, Jesus relata:

Gabi: você bate em mulher?


Jesus: não
Gabi: nunca bateu?
Jesus: já, já, já
Gabi: porque?
Jesus: ah, só nela só mesmo, que deixa na reta...
Gabi: o que que ela deixou na reta?
Jesus: ah..... bagulho uma vez ela foi pra festa, tá ligada? Um amigo pegou ela,
tipo beijou à força, aí eu dei uns papos nele também
Gabi: o errado foi ele, né?
Jesus: é... só que ele.... não era da boca não, ele era até do passinho, aí eu
tomei uma atitude com ele, mas só que eu deixei tranquilo, e ela deu uns papos
de maluco nele e ela, como
Gabi: mas ele que beijou à força, porque você bateu nela?
Jesus: porque a culpa foi dela também, eu falei pra ela não ir
Gabi: nessa época vocês eram namorados?
Jesus: é. Falei pra ela não ir, aí ela foi, ela deixava na reta, ela ficava me
ameaçando no whatsapp, um bagulho, eu ia na direção dela, pegava ela
Gabi: tá explicado porque que a mãe dela não gosta de você, né? Tu ia gostar
se alguém batesse na tua irmã?
Jesus: não ia nada! Mas tipo assim, elas deixam na reta, se ela deixar na reta,
eu bala. Não pode, assim, tu não fizer nada comigo que eu te vejo no baile, do
meu lado, tou tou tou tou, sair te agredindo, porque? Por causa de nada, porque
eu tive vontade, não pode isso
Gabi: é, mas você falou que ela não tinha que ir pro baile, por quê?
Jesus: não foi no baile não, que se fosse baile, se fosse baile, ele não ia tar
vivo, eu ia matar ele, eu ia matar ele
Gabi: foi o que?
Jesus: foi na festinha mesmo, festa que os cara faz. Se fosse baile não ia sair
nem do morro, ou eu ia quebrar as perna dele, o braço, ia quebrar todos os
dentes que ele tem na boca

Muitas vezes, regular a força implica entender a posição de sujeito dentro do campo
de forças de poder em que se está, seja maior, como no caso das companheiras, seja
de igual para igual, no caso das amizades, seja como ser subalternizado no
estabelecimento, como expressado por Jhosivani:
252

Jhosivani: sujeito homem? Sujeito homem ser é um cara sem brincadeira, tomar
a atitude certa, saber a hora de brincar, manter a postura, não responder, tipo
não ficar respondendo funcionário de igual pra igual, respeitar
Da mesma forma, o fato de estar em uma posição, por exemplo, de subalterno numa
facção, pode implicar ter que exercer violências sem desejá-lo, tal como apontado por
Bernardo tanto na relação com as mulheres, quanto com outros homens:

Bernardo: mulher, ela gosta de ser tratada com carinho, mas tipo assim, tem
cara, tá ligada? Que trata a mulher com mó carinho a primeira vez, a mulher vai
lá e aceita ficar com ele, e tem cara que gosta de espancar mulher, queimar a
esposa, esfaquear. Tipo assim, eu sei que o que eu fazia, que eu batia na
minha mulher, pá, que era a lei do tráfico, sabe? Me traiu... porque tipo assim, o
tráfico de drogas, se eu ficar com uma mulher e a minha mulher me trair, os
cara vai ficar me gastando, filha, vai falar “não, pega, menor, pega ela, menor”,
“não, vou pegar mesmo, vou dar porrada”, porque tipo assim, eu dei tudo pra
mulher, pra mulher me trair, não tem como
Jimena: e ela não dava coisas pra você também?
Bernardo: ah, ela me dava de tudo. Atenção
Jimena: e você bateu mesmo?
Bernardo: ah, de bater eu bati (risos), mas tipo assim, não foi aquela surra
assim, bater com madeira, que nem os cara batem na mulher na boca de fumo
não, dava só uns tapinhas mesmo. Mas eu não maltratava minha mulher não

No entanto, para Jorge,

Jimena: você falou que você ficava com outras enquanto tava com ela. Ela
ficava com outros?
Jorge: não, que eu saiba não
Jimena: como você reagiria se você ficasse sabendo?
Jorge: ah, tipo assim, eu não gosto de bater em mulher, esse negócio não tá
certo. Se os outros vir me falar “tua namorada tá saindo com outros”, eu vou
tentar fazer uma pegadinha pra ela me ver, saber a verdade, se é verdade vai
doer, mas eu vou terminar.
Jimena: mas tem gente que bate mesmo
Jorge: é, que bate, que quer cortar o cabelo, quer matar, monte de coisa
Jimena: mas isso é regra do tráfico?
Jorge: não é nada!!! Tudo isso vale pra mulher, a senhora não vê na televisão
que tem mulher que matou o homem que traiu ela?
Jimena: mas é muito menos, né?
Jorge: é, muito menos, mas tipo assim, isso aí também depende da pessoa,
tem gente que suporta ser traído, tem gente que não suporta, tipo assim, eu
não vou querer saber que ela me trocou por outro cara, eu vou pensar que o
que a gente faz, ela faz com outro cara, eu vou ficar pensando naquilo, né?
Então isso é com a pessoa, aí tu faz coisas sem pensar. Eu não sou assim, sou
mais de terminar do que fazer uma coisa assim. Eu prefiro terminar e continuar
a minha vida. Tipo assim, ela me traiu, né? Ela pode ter gostado de outro cara
porque ele fazia a vontade dela, ele gosta dela e ela vai namorar o cara, aí o
cara maltrata ela, ela vai ficar pensando em mim.
253

Para Barros e Passos (2012), a violência de gênero está relacionada à


experiência da desigualdade social, que se instaura em e produz as diferenças e ganha
“historicamente um sentido político”, sobrecodificando “a partir de crivos
hierarquizantes” (BARROS; PASSOS, 2012, p. 237). Cabe, contudo, diferenciar
“violência de gênero” de “violência contra as mulheres”, pois:

a violência de gênero, estrito sentido, não deve ser confundida com a violência
contra as mulheres. Esta seria uma concepção que ignora as dimensões
relacional e de performance que constituem as matrizes formadoras daquilo que
convencionamos chamar de ‘gênero’34. Nessa linha, a figura da mulher é,
geralmente, situada como vítima desprovida de agência, à mercê de uma
‘masculinidade patriarcal e dominadora’, que é atribuída aos homens em geral.
Além de naturalizar atributos sexuais nos marcos estritamente
heteronormativos, tal perspectiva não problematiza as hierarquias de poder,
tratando-as como dadas e universais. Por isso as violências que atingem os
homens não são entendidas como violência de gênero, o que pode contribuir
para a naturalização da agressão entre casais (CECCHETTO, et. al., 2016, p.
860).

No entanto, diante da desigualdade nas relações de poder entre homens e


mulheres em todos os ambientes sociais, é importante perceber de que forma essa
violência tem como principal alvo as mulheres, especialmente ao considerarmos as
relações amorosas. Assim, é importante ressaltar que mesmo os homens sendo muitas
vezes violentados ou mortos por outros homens, as mulheres são muitas vezes
violentadas e mortas pelos parceiros amorosos e sexuais, o que tem implicações
importantes de produção de subjetividade. Ambas problemáticas são relevantes e
imbricadas em um repertório violento, com mecanismos e sofrimentos distintos, diante
do qual é necessário construir alternativas, pensando permanentemente no dispositivo
de gênero e suas dobras com outros dispositivos.
A violência contra as mulheres se configura como uma dimensão dos
agenciamentos de masculinidades que é conveniente para a manutenção da
desigualdade, de forma relacional, pois, segundo Michael Kauffman (1997), é “uma
expressão da fragilidade da masculinidade combinada com poder dos homens”, com
um “lugar na perpetuação da masculinidade e a dominação masculina” (KAUFFMAN,
1997, p.8), pois é uma forma de “afirmar o poder pessoal na linguagem do nosso
sistema sexo/gênero” (p.9).
254

Relatos e expressões de machismo e violência contra as mulheres apareceram


bastante no campo, a partir de uma série de naturalizações, tensões e preocupações.
Por exemplo, profissionais relataram ter visto violências dos jovens às companheiras
nesse momento. Em um momento relatado por uma profissional, um jovem bateu na
companheira, e quando a equipe interrogou a mãe do jovem, ela disse que isso já
acontecia antes, diante do qual a profissional respondeu “mas isso na sua casa, aqui
não”. Depois disso, a equipe proibiu as visitas da jovem, diante do qual a mãe do
jovem, que morava com a companheira, disse “e o que eu vou fazer agora com essa
menina?”. Nesse caso, houve uma ação do estabelecimento para desnaturalizar a
violência, mais direcionada a conter essa violência e afastá-la do estabelecimento, sem
tempo ou espaço para discutir a violência contra as mulheres.
Nesse sentido, vários/as profissionais, com as respectivas dissidências,
consideraram que o fato de os jovens serem violentos com as companheiras deveria
ser trabalhado antes de se implementar a visita íntima, momento onde poderiam
acontecer ainda mais violências machistas e com menor controle. A instituição-forma
machismo atravessa também o Sistema Socioeducativo em sua dificuldade de lidar com
essas questões, e de aproveitar momentos como a visita familiar ou a visita íntima para
promover outros tipos de relações, já que nem sempre um trabalho prévio é possível,
em função da rotatividade dos jovens.
Nas nossas atividades, ouvimos jovens relatando que eles e/ou as suas mães
tinham sofrido violência pelo pai ou padrasto153, o que lhes provocava raiva a tal ponto
de, em alguns casos, procurarem o tráfico justamente para procurar uma vingança ou
proteção, fosse concretizada ou simbólica, invertendo assim as relações de poder entre
homens (ZALUAR, 2012). José Angel, por exemplo, relatou que o padrasto batia na
mãe, até que um dia ele o ameaçou com uma arma e o padrasto sumiu. Nos momentos
em que relatavam isso, tentávamos comparar essas experiências com a violência que
eles estavam perpetuando contra as companheiras, diante do qual eles diziam que eles
não iriam machucá-las “se” elas não “saírem da linha”, ou fizessem “tudo certinho”, o
que implica não apenas não se envolverem com outros homens, mas, muitas vezes,

153
Jonas relatou ter tido graves desdobramentos a partir dos espancamentos do padrasto, o que fez com
que saísse de casa e entrasse na rede de acolhimento.
255

não irem a bailes funk. Diante dos nossos questionamentos sobre o porquê de não
poder ir aos bailes, eles geralmente se referiam a esses momentos como de uma
intensa expressão da sexualidade, o que os levaria a fazer algo errado - palavra usada
por Christian Alfonso- para uma mulher e um momento de procura de outras mulheres
para eles (BARKER, 2008).
Em um momento em um grupo, apareceu a foto 11 do Anexo A, com uma jovem
dançando com dois homens, e Magdaleno falou: “tá vendo? O baile é isso, eu não ia
poder continuar com ela [se ela fosse nos bailes]”. Sobre essa mesma foto, em outro
grupo, se disse que a mulher dançava assim porque queria algo, tinha alguma
pretensão, ou porque estava drogada, e não porque quisesse apenas se divertir.
Também disseram que estava "instigando vagabundo" pelo tamanho do short. Marco
(16 anos, branco) disse que a sua namorada tinha que usar “saia até o pé”, diante do
qual Gabi perguntou se ela de fato fazia isso e ele disse “não, se usasse eu ia falar que
era abençoada”. Foi interessante que mesmo que não fosse real, o desejo dele era que
a performatividade da mulher fosse completamente contida em público. Ainda em outro
grupo, Carlos Lorenzo falou “uma mulher que bota uma roupa dessa, tá querendo o
que?”. Ainda sobre os bailes, vários relataram que, quando estão “na pista”, eles vão ao
baile sem as companheiras. Emiliano disse que ele ia para os bailes e a namorada
ficava em casa, “porque eu vou ficar tranquilo no baile com ela do meu lado? Pô, vou
ficar tranquilo no baile? Tipo assim, às vez, às vez, eu, como, eu levava ela pro baile ”.
Como apontado por Lia Zanotta Machado, que fez pesquisa com “agressores em
relações conjugais violentas”,

é no contrato conjugal que buscam o sentido de seus atos violentos: são


considerados atos “corretivos”. Alegam que as mulheres não obedeceram ou
não fizeram o que deviam ter feito em função dos cuidados com os filhos, ou do
fato de serem casadas ou “amigadas”. A violência é sempre disciplinar. [...]. Os
atos de violência parecem não interpelar os sujeitos agressores sobre por que,
afinal, agrediram fisicamente, e se têm alguma culpa. São vividos como
decisões em nome de um poder e de uma ‘lei’ que encarnam (MACHADO,
2004, p. 47).

Nesse sentido, o agenciamento de masculinidade deve ser conquistado e


mantido por dispositivos como a honra, firmemente defendida, muitas vezes com o
256

termo de “respeito”, o que também foi observado por Fátima Cecchetto et. al. (2016) e
por Miguel Vale de Almeida

O “respeito” é isso mesmo: tem-se por inerência de estatuto (um filho por um
pai, um empregado por um superior hierárquico, um aluno por uma professora)
mas deve-se dar “provas de respeito”: honestidade, franqueza, justiça, saber
encarar ameaças e provocações de frente, dominar a retórica da linguagem, ter
sentido da medida nos gastos, excessos e prazeres, providenciar mulher e
filhos. Tal como na “honra”, o respeito (que se pode entender como a glosa
local de “honra“) é um bem periclitante, quer por ameaça dos outros (o mau
comportamento dos que dele dependem) quer por ameaça das tentações e
vícios próprios (VALE DE ALMEIDA, 1996, p.166).

O respeito se configura assim como uma categoria fundamental, como um valor


que se dá de forma relacional e que opera através das performatividades e das
relações de poder a partir dos dispositivos e das dobras de cada contexto.
Por um lado, vários jovens relatam que têm relações estáveis com uma pessoa
só, com quem ficam “firmes”, ou que, quando são infiéis, se arrependem, como
apontado por Jorge:

tipo assim, eu não posso dizer que cheguei a amar, porque tipo assim, a gente
é adolescente, agora tipo assim, eu tô um pouco mais maduro, mas menorzão,
mais novo, fazia certas coisa, que tipo assim, hoje em dia me arrependo, me
arrependo de certas coisas que eu fiz. Mas essa garota, eu gostava bem
mesmo, tipo assim eu gostava da companhia dela, queria ficar perto dela, já
chegou assim de dia de baile, garotas querendo ficar comigo, ela aqui, eu podia
sair de perto dela e ficar com outra garota aí, que tinha umas casa vazia, de
gente que saia da favela, eu podia chegar, pegar, ir lá, fazer sexo rapidinho,
com outra pessoa, depois voltar, pá. Tipo assim, quando, muitas das vezes, eu
não fazia, quando fazia, uma vez ou outra, eu me arrependia,

Jorge Antonio disse:

Jimena: e você nunca traiu ela?


Jorge: (nega com a cabeça, sorrindo)
Jimena: e por que você sorri?
Jorge: não, acho engraçado, porque como, porque eles falam que homem não
presta, mas nem todos homens não prestam, né? Aí como, às vezes ela fica
inventando que eu trai ela, mas também é isso, de briga mesmo.

Algumas vozes, como a de José Eduardo, expressavam que a fidelidade “deve


ser dos dois lados”, ou como Jhosivani, que ao perguntar o que achava da possibilidade
para os homens de serem infiéis e as mulheres não, respondeu: “acho certo não. Acho
257

que se tem traição, tem que conversar pra ver se continua ou se vai separar, aí
depende da pessoa. É porque eu não gosto, então, terminar logo”.
Alguns relataram reações violentas das parceiras ao saberem de traições deles,
tais como Julio Cesar, que disse “mulher traída é cão”, diante do qual eu perguntei “e
homem não?”. Em outro grupo, Miguel Ángel contou que a namorada tinha batido nele
com um soquete de alho quando, através do Whastapp, descobriu que ele a tinha
traído. Ele disse que não bateu de volta porque ele sabia que estava errado. Emiliano
disse que no momento em que a namorada descobriu que ele a traia, ela terminou com
ele, e aí ele começou a namorar outra garota. Julio disse que se ele descobrisse a
namorada traindo, “mataria, baixava o pau”, enquanto ela, quando descobre que ele se
relaciona com outras mulheres “fica com raiva, me bate”. Jorge disse que não contava
para a namorada quando a traía porque “ficava com medo, tipo assim, da reação dela,
pá, dela terminar comigo, dela brigar comigo, dela depois também querer dar o troco,
pá”. Desta forma, como apontado por Cecchetto et. al. (2016), a violência se cristaliza e
reproduz como estratégia de resolução de conflitos nas relações íntimas entre
adolescentes, incluindo de mulheres a homens, especialmente ao se tratar de ciúmes.
Ainda assim, é evidente a relação de desigualdade entre homens e mulheres,
constituída pela instituição-forma machismo, onde mesmo ambas infidelidades pudendo
ser repudiadas, a infidelidade feminina é vista como uma violência, mostrando padrões
de sexualidade distintos entre homens e mulheres (CECCHETTO, et. al., 1996,
BARKER, 2008). Como apontado por Lia Zanotta Machado, “parcela importante do
núcleo da honra do homem depende da fidelidade da mulher e do seu estatuto de ser
reconhecida como respeitada. A fidelidade masculina não é exigida pelo código
relacional da honra” (MACHADO, 2004, p.53).
Nesse sentido, retomo a discussão d’a fiel, que se apresenta como um lugar
moral autorizado. Deste modo, a fiel não é uma sujeita, é um pilar da performatividade
masculina, ao tempo em que é naturalizado que “os homens traem mais porque é fácil
enjoar de uma mulher só”, fala proferida em um grupo, diante da qual Gabi perguntou
se elas podem se enjoar deles, ao que Antonio respondeu “podem, mas aí elas têm que
falar na minha cara e terminar antes de chifrar”. As normas de conduta são
diferenciadas, e a honra ou respeito vira “uma moeda por meio da qual eles negociam
258

seu lugar, sobretudo, no que diz respeito às desigualdades de poder entre os gêneros.
Nisso se insere uma gramática hierárquica, cujo binômio ‘vadia’/‘garanhão’ refere-se às
interdições do exercício do desejo e da sexualidade de modo distinto entre os sexos”
(CECCHETTO, et. al., 2016, p. 860).
Nesse mesmo sentido, em outro grupo eu perguntei se existia o “homem
rodado”, ao que imediatamente responderam que não. A fidelidade masculina é, na
maioria das narrativas, não só desnecessária, mas impossível de alcançar,
especialmente para os Bandidos, para quem as mulheres chegam. Alguns comentavam
que conseguem ser fiéis quando gostam muito da mulher, mas outros apontavam que
se até o marido da modelo brasileira Gisele Bunchen foi infiel, por que eles não seriam?
Para eles, a fidelidade por parte das companheiras é um requisito fundamental para a
manutenção da honra, o que não acontece no outro sentido, como visto. E não só por
serem homens, mas por serem traficantes, como apontado por Antonio, que disse “lá
fora eu sabia que não era traído porque era traficante e ela era zé ninguém, se alguém
soubesse alguma coisa dela, iam falar pra mim”, o que não aconteceria caso contrário.
Isso se configura no sentido da divisão do espaço doméstico e público, como
também apontado por Felipe:

Gabi: você se relacionava com várias ao mesmo tempo, ou com uma e depois
com outra?
Felipe: tinha uma que era minha mesmo, mulher de casa, e eu se relacionava
com outras
Gabi: mas ela morava com você?
Felipe: morava
Gabi: mas quando você se relacionava com outras, como você fazia?
Felipe: ah, ela não sabia.
Gabi: nunca soube?
Felipe: não
Gabi: e ela podia se relacionar com outros?
Felipe: claro que não
Gabi: e porque ela não sabia?
Felipe: porque se ela soubesse ia querer me chifrar também
Gabi: e ela nunca descobriu?
Felipe: não
Gabi: e ela te chifrou?
Felipe: eu não soube

Felipe: Já namorei novinha que veio brigar comigo, querendo entrar na porrada,
aí era espancada. Mas ela é menor do que eu, mais baixa.
Gabi: mas vcs já brigaram?
Felipe: já mesmo, discussão.
259

Gabi: no tapa?
Felipe: só nas perna. Não chegava a bater na cara, não
Gabi: mas ela também te bateu?
P: mmmm ela já bateu, tacou soquete. Às vezes ela mesma que vem discutir,
chega “ai, não sei o que, aí tu fica na rua e só fica me prendendo”. Aí eu já falo
logo: quer terminar?
Gabi: se ela quiser terminar e voltar pra casa dos pais dela, é tranquilo pra
você?
Felipe: é.

Assim, “as atitudes femininas são reduzidas à aproximação ou distanciamento


em relação ao ideal do comportamento feminino, o qual cabe a eles controlar”
(MACHADO, 2004, p.48). Desta forma,

O parâmetro do comportamento masculino socialmente legitimado nas suas


relações amorosas: a rivalidade e a concorrência com os outros homens e o
controle do objeto amoroso feminino. Contudo, não há como tornar
“exclusivamente desviantes”, “psicologizados” ou “patológicos” os
comportamentos dos agressores, pois tais formas de atos violentos revelam a
inscrição de valores sociais e sua íntima associação com o modo dominante de
dar ao masculino e ao feminino nexos de sentido que interpelam os sujeitos
(MACHADO, 2004, p.51).

Outra questão importante abordada em vários grupos foi a via pela qual eles
gostariam de saber se ela o traiu. A maioria disse que gostariam de saber através dela.
Porém, depende do lugar, pois José Luis, (18 anos, negro) relatou que ele se
relacionava com uma jovem do tráfico e um dia estava todo mundo fumando maconha,
quando ela lhe disse, na frente de todo mundo, que tinha chifrado ele e que inclusive
tinha “tirado um filho dele”. Ele contou tê-la espancado na frente de todo mundo e que
“quase fiz coisa pior”, que, respondendo à pergunta da Gabi, seria matar.
Assim, no caso dos jovens que pertencem às facções, como já discutido, a lei
encarnada é articulada em muitas ocasiões pela facção, revelando múltiplas tensões.
Igualmente, a honra como um dispositivo relacional e fundamental do agenciamento
das masculinidades a partir da legitimação dos códigos se dobra na experiência de
privação de liberdade. A tensão que o respeito produz está justamente nas relações de
cuidado e controle, no momento em que é função dos homens garantir a honra das
mulheres da sua família, ou em que a mulher desonra o homem ao transgredir as
regras de gênero. Como apontado por Machado, no contexto brasileiro,
260

a força da categoria relacional da honra funda a construção simbólica dos


gêneros, no que eles têm de mais impensado e naturalizado. A construção
hegemônica dos valores do masculino fez lembrar os padrões mediterrâneos da
construção simbólica masculina em torno do desafio da honra, do controle das
mulheres e da disputa entre homens” (MACHADO, 2004, p.52).

Nesses padrões, o homem honrado é aquele que tem a responsabilidade diante


da família.
A honra como conceito pode ser analisada através de quatro eixos: o modelo de
masculinidade, os códigos do que pode e não pode, as práticas e relações para
sustentá-la e a violência como estratégia de resgate. Os jovens estabelecem códigos
(como o de não se masturbar, por exemplo) com a expectativa de reificar o lugar de
guardião da sexualidade familiar, pois “a honra de um homem depende, no mundo do
código relacional, da “respeitabilidade de todas as mulheres”, não só da esposa como
das mulheres que compõem a sua parentela consanguínea” (MACHADO, 2004, p.55).
Assim,

as categorias de masculinidade transitam, paradoxalmente, entre, de um lado, o


homem bicho danado, não domesticável, irresponsável, perigoso para as
mulheres porque não confiável; e, de outro, o homem honrado que, em nome
da responsabilidade face à parentela em que se insere, tem o poder e o dever
de controlar suas mulheres (inclusive usando violência física) e de defender
(inclusive usando força física) a “honra de suas mulheres” contra homens que
delas se aproximam de forma considerada inadequada. A “honra feminina”,
segundo este conjunto de valores, conspurca a “honra masculina” (p. 56).

As mulheres desonram os homens com o mal uso do corpo, expondo-o a outros


homens, e ao mesmo tempo, um homem pode desonrar o outro através do uso do
corpo da (sua) mulher, mesmo que seja no plano das fantasias. Assim, os homens são
protetores da honra das mulheres da família e simultaneamente transgressores ou
ameaçadores da honra dos outros homens através das mulheres das suas famílias, o
que deve ser considerado ao se relacionar com as normas, como apontado por Julio,
cuja fala lembra os mandamentos do CV:

Jimena: o que é pra você sujeito homem?


Julia: que não tem mancada
Jimena: e o que é mancada?
Julio: mancada é vacilar na pista, roubar carro, derramar, pegar a mulher dos
outros
261

Nessa disputa, por exemplo, é justificável que os jovens não tenham fotos das
companheiras ou que a masturbação não aconteça nos dias da visita familiar. Adán
fala: “se tiver foto de família não pode ver. Se o menor quiser ver, se o menor quiser
mostrar, mas vai ficar de ralo a pessoa que viu, vai ficar de ralo uma semana, não vai
poder quebrar”. Carlos Iván aponta:

Carlos: eu preferi ela [a namorada] mandar fotos não, por causa dos outros
caras que tá aí. É uma neurose, é uma neurose sim. Aí ninguém pode ver foto
de ninguém, e eu falo “não, não precisa trazer”
Jimena: o que você acha dessa neurose?
Carlos: essa neurose? Eu acho certa. Por causa que não fica vendo a família
dos outros, a namorada dos outros. Não fica pensando maldades com a mulher
dos outros
Jimena: no alojamento não dá pra manter a privacidade? Nem só vocês dois?
Carlos: não, com ele até dá pra manter a privacidade, mas daqui a pouco ele
vai subir, aí desce mais menor, desce mais pessoa, pra lá, e eu não vou ter
essa privacidade
Jimena: e falando em neurose, essa coisa de que quando tem visita familiar,
não pode se masturbar, rola isso?
Carlos: ahh, não, isso é papo de apanhar
Jimena: você já soube de casos em que alguém apanhou por isso?
Carlos: muitos, já até bati
Jimena: porque?
Carlos: por causa que não pode! Não pode fazer isso. Pô, eu tô falando aqui
com a senhora, já vou ter que ficar uma semana sem queb...desculpa... sem
quebrar, sem se masturbar, ficar uma semana, só por ter olhado pra senhora
Jimena: mas quem fala que não pode?
Carlos: todo mundo (riso)
Jimena: quem te falou isso pela primeira vez?
Carlos: ah, quando eu vim pra cadeia
Jimena: no abrigo rola isso?
Carlos: não, no abrigo não faz isso não, no abrigo nem se masturbava
Jimena: não? Porque não?
Carlos: ah, tinha mulher!
Jimena: mas nem no banheiro, escondido?
Carlos: não, para que, se tinha mulher!?
Jimena: ah, tá, tinha com quem transar
Carlos: é!

Alexander, que na entrevista criticou várias outras normas, apontava que

Alexander: Sou o mais velho do alojamento, quando chega novo eu explico,


explico várias vezes, para o cara não ficar, como, “não me avisou”.
Jimena: mas você concorda com essa regra de quebrar?
Alexander: ah, claro, vai quebrar e o outro vai pensar “tá quebrando, tá
pensando na minha mulher”. Rola o maior trelelé. Tem que ficar tranquilo
Jimena: mas, por exemplo, você que gosta de homem e de mulher, aqui tem
homens, ninguém fala “ah, você não pode quebrar porque vai estar pensando
em mim”?
262

Alexander: ah, alguns fala. Mas no meu alojamento não tem isso não
Jimena: e quem explicou pra você quando você entrou?
Alexander: em outra unidade me orientaram já, falaram, “olha, aqui, pá, lá fora,
pá”, e eu “tranquilo”. Aí quando eu vim pra cá eu já sabia o ritmo
Jimena: que outras coisas fazem parte desse ritmo? Não quebrar, que outras?
Alexander: não quebrar, quando tem visita só olha pra sua família, não olha pro
lado, não pode vir de short com a perna pra fora.

Jesus sustenta as regras, mas não necessariamente concorda com elas:

Gabi: e você concorda com essa regra?


Jesus: concordo. Concordo porque, infelizmente, é a regra, mané, não pode
quebrar regra. Pelo menos no meu alojamento, que eu mesmo sou o primeiro
mais velho. Pelo menos ali no meu alojamento é assim, e eu tenho pra mim que
nos outros é assim
Gabi: mas aonde que inventaram essa regra?
Jesus: não sei, cara, não sei, não sei, tipo assim, não tem lógica, também não
acho a lógica
Gabi: que lógica?
Jesus: nós não vai quebrar pensando na visita da pessoa. Eu não vou chegar
dentro do alojamento, desculpa eu falar, vou chegar dentro do alojamento e
quebrar pensando na senhora? Não tem
Gabi: até porque, se você tem uma visita no sábado, você pode quebrar
pensando nela na segunda
Jesus: é. Não vou esquecer. Que a mente não esquece. Que a gente lembra de
negócios de 10 anos atrás, nove anos atrás
Gabi: então, não tem lógica, mas todo mundo obedece. Porque você obedece?
Jesus: ah, porque se não os cara quebra na quebrada. Os cara agride
Gabi: mesmo você sendo o mais velho?
Jesus: não. É, mesmo sendo o mais velho, mas tipo assim
Gabi: se você quebrar a regra os outros podem te agredir?
Jesus: não, me agredir não, vão me botar pra dar um rolé
Gabi: ah, botam você pra fora do alojamento?
Jesus: é

E Jhosivani disse:

Jimena: o que você acha das regras que tem aqui? De não poder quebrar em
dia de visita, nem no dia seguinte
Jhosivani: ah, isso daí eu acho certo
Jimena: porque?
Jhosivani: porque se não, pensa que olhou pra, às vezes vem a sua mãe, aí
pensa que os outros tão olhando pra sua mãe de mau olhar
Jimena: mas você não acha que a gente pode pensar em coisas que
aconteceram ontem ou há um ano?
Jhosivani: é, acho também, mas, assim, a gente assim até que tem uma lógica
também
Jimena: como você ficou sabendo dessa regra?
Jhosivani: assim que eu cheguei
Jimena: quem te falou?
Jhosivani: foi o mais velho que tá ali
263

Jimena: e como que ele contou?


Jhosivani: eu cheguei, aí... aí circularam, aí falaram as regras da casa: a camisa
no dia da visita não tem que ir embaixo, short abaixo do joelho, aí falou: “gente,
quebrar é só segunda, terça e sexta”, porque quarta tem visita, como hoje,
amanhã é quinta, só sexta. É tipo limpar, pra deixar se esvaziar do dia da visita,
é como se fosse isso

Constantemente interrogávamos qual a proveniência dessas normas e a


confusão sobre sua gênese só revelava de que forma sua naturalização e continuidade
por todos os grupos no estabelecimento expressam as moralidades que atravessam
essa questão, mostrando como as normas do tráfico são legitimadas e projetadas no
Degase, que estende suas normas aos jovens que não pertencem às facções.
Para Abel, as regras vêm do ronca

Abel: Tipo, que você vê aqui, somos nós, pá, mas aqui dentro tem o ronca,
sabe, o ronca da cadeia, do Comando, que bota ali “ô, o dia de quebrar é
segunda, terça e sexta”. Aí tipo eu fui na rua, né? Eu to uma semana de ralo
Jimena: porque?
Abel: eu não posso fazer nada sexual
Jimena: por quê?
Abel: porque eu fui na pista!
Jimena: por quê?
Abel: tipo assim, tu viu a tia lá da igreja, vamos dizer assim, eu vi uma tia da
igreja, que não trabalha aqui, aí vamos dizer assim, eu tô de ralo, um dia.
Vamos dizer assim, eu vou na audiência, aí vou de ralo um mês. Tipo, aqui tem
punição, se tu der mole na cadeia, solta o balão
Jimena: e o que você acha dessas regras de não poder quebrar?
Abel: não, é certo, mas tipo assim, eu acho também que, sei lá, tipo, já que é só
segunda, terça e sexta
Jimena: mas então você concorda com essa regra?
Abel: tá certa
Jimena: você não acha que as pessoas podem estar pensando em outra
pessoa que viu há cinco meses? Porque você necessariamente vai estar
pensando na pessoa que acabou de ver? Você vê sentido nessa regra?
Abel: vejo. Vai que tu sai daqui e eu vou e quebro
Jimena: qual o problema? Você pode estar pensando em qualquer pessoa
Abel: não (gargalhada)
Jimena: pode pensar em mim daqui a cinco meses!
Abel: não, aí eu vou ter te esquecido totalmente

Já Jonas também apontou que essa regra não é só nos alojamentos das
facções, pois faz sentido para a noção de honra que ele partilha, e que, como
sinalizado por Marcos Nascimento, denota de que forma é intrinsecamente relacional,
no momento em que depende do patrulhamento dos outros homens – e, de outras
formas, das mulheres também-:
264

Gabi: vocês obedecem essas regras, nesse alojamento? Não é só galera de


facção que obedece?
Jonas: de que, de dia? Todo mundo obedece
Gabi: ah, pensei que era só a galera de facção
Jonas: não, todo mundo obedece, tipo assim, os dias que pode se masturbar na
casa, segunda, terça e sexta. Quarta é dia de visita, quinta é dia de reflexão,
sábado é dia de visita e domingo é dia de reflexão
Gabi: você concorda com essa regra?
Jonas: sim
Gabi: porque?
Jonas: eh, tipo assim, por exemplo, vou falar pra você, eu to passando mal,
hoje é dia de visita, se eu to passando mal, vou lá embaixo, vejo a visita de um
adolescente, vejo a namorada dele, a irmã, é bonita, aí vou chegar no
alojamento e se masturbar pensando na menina, entendeu?
Gabi: ué, mas, você pode pensar numa coisa que aconteceu 10 anos atrás
Jonas: pode pensar em outra coisa, mas tipo assim, o resto dos camarada, o
que que vão pensar? Vão pensar que eu tô pensando na garota lá de baixo
[...]
Jonas: a gente segura, entendeu? Se você não saber se controlar...
Gabi: o que que é não saber se controlar?
Jonas: ah, saber se controlar, tipo assim, eu quero que meu pênis sobe, eu lá, é
fácil, entendeu? Você pensa em alguma coisa, você imagina na sua cabeça

Nesse sentido, também vemos como a honra atravessa todas as


performatividades tanto masculinas quanto femininas na instituição estabelecimento, e
sua sustentação se apresenta como uma distinção social, como sinalizado por Marcos
Nascimento. Como já apontei anteriormente, as roupas das familiares e das
profissionais são constantemente escrutinadas neste espaço. Os jovens também devem
se submeter a certos códigos de vestimenta e comportamento com elas, o que é
vigiado pelos agentes, como expressado por um deles, que em uma ocasião comentou
que depois da visita, eles tinham “liberado a camisa” para os jovens, evidenciando que
apesar de os códigos serem dos jovens, a instituição os reafirma, cristalizando-os.
Muitas vezes existe uma relação sacralizada com a mãe, a avó, as mães de
consideração e outras mulheres que cuidam deles, que são figuras de proteção. Ao
mesmo tempo, a condição de homens, especialmente aqueles envolvidos nas facções,
permite uma inversão no cuidado – por exemplo, as protegendo de companheiros
agressores –, no respeito, pois, como Carlos Iván apontou, quando entrou no tráfico
começou a “desrespeitar” a mãe dele, e na posse, seja do corpo, seja do controle da
vida delas, que, segundo algumas profissionais, “se submetem ao masculino dos filhos”.
Por sua vez, vários jovens relataram exercer uma autoridade sobre as irmãs, por
exemplo, ao proibir certas roupas “na pista” ou impedir ir a bailes funk.
265

No entanto, foi interessante escutar o relato de uma profissional que trabalha na


Casa das Mães, apontando que algumas delas questionam as normas da unidade a
respeito das suas roupas, dizendo que “é palhaçada” e que os filhos “não mandam
nelas”. Assim, a instituição-estabelecimento acaba legitimando as normas do tráfico, na
porosidade instalada por ele ali Dentro, instaurando um poder dos jovens sobre elas
que não necessariamente existia, novamente, justificado pela Segurança, pois a
explicação que é proporcionada a elas é que “se a senhora entrar com essa roupa, a
senhora vai embora e seu filho pode ter problemas aqui dentro”. Essa mesma
explicação é dada às namoradas que, querendo elaborar uma estética atraente para os
companheiros nas visitas, usam roupas curtas demais, pelo que são repreendidas com
o argumento de que eles poderiam se envolver em conflitos com os outros jovens.
Por outro lado, um ponto nos deslocou do nosso pressuposto inicial, no momento
em que os agentes relataram também ter uma série de restrições para evitarem ser
enxergados como ameaças à honra dos jovens, através de aproximações eróticas das
familiares. Assim, os profissionais reportaram que não é apenas o corpo feminino e o
dos jovens que deve ser contido, mas que eles também não poder usar piercings,
assim como óculos escuros que impeçam ver a direção do seu olhar. Também apontam
que tem uma “neurose de família, funcionário não pode nem coçar na barriga, porque
os adolescentes já ficam putos, vira uma bagunça”.
Isto revela de que forma suas performatividades masculinas, embora pareçam
garantidas em função de serem as superiores hierarquicamente neste espaço, também
estão em disputa e conflito com as dos jovens, o que foi utilizado como argumento
contra a implementação da visita íntima, pois os jovens “não têm preparo”, “não têm
maturidade, se na visita familiar ficam dizendo que o funcionário olha para a mãe dele,
imagina como vai ser na visita íntima, com um agente na porta?, isso poderia gerar um
ódio ao funcionário”. Por sua parte, Jonas pensava na possibilidade de que os agentes
ultrapassassem os limites da intimidade, a partir dos mecanismos de controle que
possuem no estabelecimento:

às vezes eu fico pensando: quando acabar a visita íntima, será que o


funcionário já abre assim, ou será que ele espera a gente botar roupa? É uma
coisa que eu fico pensando muito, que eu penso muito. Por isso que eu não sou
a favor. Tipo eu sou a favor e não sou a favor ao mesmo tempo, entendeu? Eu
266

sou a favor, como, que você vai matar a vontade, vai ser bom, entendeu?
Conversa um cadinho lá na cama, entendeu? E tipo assim, às vezes não sou a
favor porque assim, um exemplo, acabou a visita íntima aí, aí o funcionário,
será que ele espera a gente se vestir?

Também foi apontado por uma profissional a dificuldade que apresentaria se os


jovens recebessem visita íntima ao mesmo tempo que outros jovens estivessem
fazendo atividades no espaço comum, pois esse tipo de conflito já tinha acontecido na
visita familiar. É interessante ver como em um espaço de confinamento e
homossociabilidade - expressado por Benjamin como “na pobreza”, sem mulheres - os
cuidados para estabelecer abismos entre a sexualidade, o corpo das mulheres e “os
outros homens” são muito intensos, apresentando novamente desafios para a logística,
“uma dor de cabeça”, segundo outro profissional. No entanto, para alguns jovens e
profissionais, a visita íntima acalmaria o cotidiano, pois os jovens, novos, ficam “muito
ansiosos” ou “cheios de energia pra distribuir” sem mulheres, como apontado por Israel,
e com a “paranoia da mulher transando lá fora”, como sinalizado por Emiliano. Ele
também disse que a visita diminuiria muito a relação entre os jovens, o que também foi
enunciado por alguns/as profissionais, junto com mais atividades para que os jovens
não ficassem ociosos.
É importante também considerar que não são apenas as performatividades
masculinas em jogo, mas também as femininas, no momento em que existem diversas
mulheres e grupos de mulheres que atuam no espaço. Como já foi apontado, as
profissionais tiveram maior facilidade de identificar de que forma gênero e sexualidade
atravessam seu exercício profissional e suas relações na instituição-estabelecimento,
não apenas com os jovens, mas com os profissionais homens. Nesse sentido,
ressaltaram a discussão da restrição da circulação no espaço e as normas a respeito
das roupas das profissionais. Foi discutida, por exemplo, a necessidade de pensar
estratégias como o uso de jalecos, e escutamos várias vezes uma brincadeira em que
se sugeria que as profissionais usassem burca, revelando de que forma a Segurança
configura práticas de contenção da sexualidade. No entanto, como apontado por
Antonio, “mesmo quando elas usando calça, a gente olha”.
Em uma ocasião, uma agente me disse que não podia ir na unidade vestida
“assim” porque ficava “indo de um lado para outro e os meninos ficam te olhando”, e
267

que “a unidade proíbe essas roupas para as mães”. Outra agente disse que achava
difícil cobrar isso de mim quando tinha “pessoas da equipe dando o mau exemplo”,
momento em que percebi que essa interpelação não estava apenas me
desestabilizando, mas que podia trazer implicações para outras profissionais. Minutos
depois, um agente se aproximou da Mesa, onde eu estava, e perguntou, brincando, se
era a nova mesária, e que deveria trabalhar ali, ao que respondi, também brincando,
que não gostaria porque teria que mudar as minhas roupas. Uma das agentes
respondeu: “pois é, aí você teria que ficar feia que nem a gente”. Desta forma, revelava
de que forma nós como pesquisadoras de Fora, apesar de passar pela rede de
vigilância que impedia certas roupas, ainda tínhamos certa liberdade que nos permitia
negociar de outras formas com essa máquina institucional.
Outra agente falou das diferenças entre as roupas das agentes e as das
técnicas, sendo que as agentes devem usar uma roupa padrão. Também disse que
algumas mães reclamam de serem obrigadas a usar certas roupas, enquanto “tem
técnica com decote atendendo meu filho”, ao que ela explicava que “as técnicas não
têm filho aqui dentro que possa se envolver em problemas”. Ela apontou que em uma
ocasião um jovem fez tssss pra ela, pelo que ela chamou a mãe dele para conversar na
direção, falando que “eu respeito a mãe –na revista- e espera que o menino me
respeite”.
Um profissional também relatou casos de aproximações consideradas
inadequadas entre mulheres profissionais e os jovens, especialmente quando essas
mulheres são “jovens e bonitas”, e/ou que “dão uma liberdade excessiva aos
adolescentes”, incluindo usar roupas não permitidas ou fazer contatos mais íntimos.
Alguns casos se desdobraram no desligamento dessas profissionais, sem aproveitar a
situação para falar sobre gênero e sexualidade com os jovens.
Um relato interessante foi o proferido por uma agente, que era contratada como
técnica e posteriormente fez o concurso para ser agente, diante do qual sentiu a
necessidade de ser transferida de unidade, pois considerou que seria complicado
“revistar as mães que antes atendia”. As agentes expressaram a necessidade de que
os jovens as tratassem com respeito muito mais do que as outras profissionais. Assim
como no caso dos homens, vemos como os lugares ocupados dentro do
268

estabelecimento vão definindo performatividades distintas. Ela também apontou que as


agentes são dispensáveis, pois “quem faz a casa andar são os agentes”, revelando
como essas distinções são marcadas pelas dobras de gênero nos segmentos
profissionais.
Ainda em outro momento durante o campo, soubemos de um evento no CAI em
que participaram modelos, que quebrou as delimitações apresentadas anteriormente a
respeito das roupas, pois as jovens estavam com pouca roupa. Por um lado, as
profissionais apontaram que elas não podem usar essas roupas. Igualmente, um
agente relatou ter tido que “dar satisfação” a uma mãe, que reclamou desse movimento.
Ao ser relatado em várias ocasiões, percebemos o quão desestabilizador foi o evento,
no momento em que se configurou um espaço de erotização que mexeu com o
cotidiano, para os jovens, para os/as profissionais e para as famílias.
No entanto, Carlos Iván me disse que as normas dos dias de masturbação são
distintas com as profissionais e com as mulheres “externas” – visitas e pesquisadoras-,
pois as primeiras “já trabalham aqui”. Mesmo assim, como sinalizado por Alexander,
“não pode quebrar em técnicas, nem em professora, nem outra pessoa da casa”,
mesmo que concorde que isso é impossível de comprovar.
Isto tudo nos fez perceber de que forma as normas vão se ajustando e se
retroalimentando: as mulheres externas e profissionais não podem se vestir de certa
forma porque as mães não podem, enquanto as mães não podem porque os agentes
dizem que os jovens não deixam. Isso tudo, mesmo sendo questionado, tem pouco
espaço para diálogo, tendendo a ser naturalizado sob a justificativa da Segurança. Há
uma tensão na unidade expressa por dirigentes que ficam entre abordar a vestimenta
das mulheres e serem criticados e defende-las ou não quando são cantadas pelos
jovens.
A partir disso, pensamos de que forma a corporalidade em suas diferenças, entre
as mulheres que circulam na unidade, atravessam suas relações, relações entre elas e
a instituição-estabelecimento e entre elas e os jovens. Como apontado por Fernando, a
instituição-estabelecimento movimenta pessoas em desejos e posições, o que é uma
expressão daquele lugar, que produz e agencia moralidades.
269

Mas também escutamos fissuras. Algumas profissionais, especialmente as que


se sentem mais vigiadas, criticadas e incomodadas a esse respeito, questionam
frequentemente a naturalização dessas normas mostrando que não provém apenas dos
jovens, mas principalmente do estabelecimento, frisando no fato das normas estarem
por escrito e pregadas nas paredes da unidade, e constantemente repetidas por
colegas. Além das roupas, elas comentaram, por exemplo, terem sido questionadas por
tocar temas sobre sexualidade com os jovens, falando que “esse não é tema para
trabalhar no atendimento”, por usar palavrões ou nomes de genitália e por usar tons de
batom muito chamativos. Em um dos desdobramentos que acompanhamos dos Cursos,
uma profissional usou alguns nomes de genitália, ao que os jovens reagiam rindo,
revelando que mesmo não sendo considerado comum, eles não se sentiam ofendidos
ou constrangidos. Era apenas uma provocação que podia fazer com que eles
pensassem o porquê da sacralização das profissionais.
Além dos questionamentos diretos das profissionais, algumas brechas de
discussão aconteceram no campo. Um momento extremamente importante foi a
apresentação de teatro, onde essa temática foi central em uma das esquetes. A trama
relatava com uma técnica nova era imediatamente apresentada às normas de
vestimenta da unidade. Durante a esquete e com as intervenções da plateia, várias
vezes os jovens expressaram que a insistência nessas normas é muito maior por parte
dos agentes e dos diretores do que deles mesmos. Na hora do debate, eles realmente
admitiram acreditar que as mulheres devem se cobrir para garantir o respeito, mas que
mesmo achando isso, consideram importante alguém falar sobre esses temas com eles
da forma com que estava acontecendo nesse momento, porque muitas coisas eles não
tinham pensado antes, revelando a importância desse tipo de diálogo. Quem encenou o
diretor falou que o estabelecimento trabalha reduzindo tensão e por isso a importância
da roupa padrão, sugerindo inclusive o uso do jaleco como uma boa estratégia, ao que
várias pessoas na plateia retrucaram dizendo que era mais importante trabalhar na
desconstrução do machismo. Eu apontei que talvez fosse mais interessante fazer um
esforço para que os jovens e os profissionais entendam que independentemente das
roupas, as profissionais são mulheres que estão trabalhando ali, em um lugar onde eles
270

mesmos são os usuários, e que a vestimenta não está vinculada ao desempenho


profissional.
Outras profissionais também relataram ter conseguido conversar com os jovens
sobre sexualidade, em ocasiões não só em termos de saúde, utilizando diversos
materiais e disparadores, processo que, segundo elas, se viu potencializado por nossa
pesquisa-intervenção. Assim, uma vez que “o gênero é limitado pelas estruturas de
poder no interior das quais está situado”, existem “possibilidades de proliferação e
subversão que se abrem a partir dessas limitações” (SALIH, 2013, p.72). E, essas
possibilidades, marcam, produzem e reverberam por/com os corpos.
Foi por isso que, mesmo compreendendo que seria pouco o deslocamento que
poderíamos fazer com os jovens em tão pouco tempo de atividade, os significados e
contornos do exercício da sexualidade eram pontos que gostávamos de provocar a
partir do nosso compromisso político. Por exemplo, em um grupo, onde participaram
estagiários/as do IFRJ, José Luis perguntou ao Max o que ele acharia se Sara tivesse
se relacionado com quatro homens, ao que Max respondeu que era direito dela pegar
quem quisesse, provocando uma reação de decepção por parte do David. Às vezes,
inclusive, era impossível esconder as reações que os relatos de violência dos jovens
nos provocavam, diante do qual preferíamos tentar um diálogo desnaturalizador e
propositivo do que, em uma falsa neutralidade, acabaríamos censurando corporalmente
o que os jovens estavam expressando.

4.6 Sujeito-homem-adulto

Carlos Iván: sujeito homem? Como, que não é moleque. Que não
é moleque.
Jimena: o que é bebel? Até quantos anos é bebel?
Julio César: 15 anos
Jimena: e depois é o que?
Julio César: sujeito homem
271

Novamente vemos a dobra geração, no momento em que o bebel não é sujeito


homem, pois deve passar por certos filtros para ser considerado como tal. O bebel,
assim, é passível de ser obrigado a se relacionar sexualmente com os outros, seja de
forma violenta, ao ser estuprado, ou através de relações de desigualdade, onde ele
fortalece os outros e com isso “ganha sobremesas”, práticas relatadas por profissionais,
que sugerem que os jovens usam o sexo como moeda de troca 154. Novamente, esta
distinção foi apontada como extremamente difícil de se fazer, especialmente quando a
lógica institucional acaba responsabilizando as “regras do tráfico” e com isso sendo
cúmplice da cisheteronormatividade.
Assim, o bebel precisa de proteção ao estar em um espaço de “homens”, como
expressado por Emiliano, ao apontar que “tavam querendo montar encima das costas

do Abel só porque ele é bebel, só porque ele é pequeno” e por Jonas, a partir das

redes e narrativas que se acionam e de fluxos de informações que se travam:

Jonas: tem o bebelzinho, o bebelzinho é do Comando Vermelho, não tem nada


a ver, ele vai subir pra individual hoje
Gabi: porque?
Jonas: porque, tipo assim, ele vai ficar com aquele moleque que é da área dele,
que conhece o pai dele. O pai dele é dono do morro onde que ele mora.
Gabi: e ele é a primeira vez que tá aqui?
Jonas: sim
Gabi: e ele tá há quanto tempo dentro do alojamento?
Jonas: ele tá há uns sete dias. Ele tava aqui, agrediram ele e ele foi pra lá
Gabi: agrediram fisicamente?
Jonas: ahá. Ele falou que quando ele sair, vai falar com o pai dele e o pai dele
vai na direção deles.
Gabi: estupraram ele?
Jonas: não, só bateram
Gabi: mas porquê?
Jonas: não sei. Não falou nada, falaram que ele era X9, mas não sei.

Ao falar de masculinidades e sexualidade, Miguel Vale de Almeida aponta que a


idade constitui um fator de peso, no sentido de que, na “cultura da experiência”, nos
valores locais, “continua operante a hierarquia da idade (a senioridade) como sinônimo
de saber” (1996, p. 166). Nesse sentido, podemos nos inspirar nas reflexões feitas por

154
Um profissional inclusive falou que antes acontecia mais, quando o tabagismo era permitido e quando
“não tinha lanche”, “mas agora que as condições e a estrutura são melhores, os meninos não têm por
que trocar favores”.
272

Fernando Pocahy (2011), pensando na idade como um dispositivo associado a práticas


regulamentares, que parte da perspectiva normatizadora, e a geração como
performativa, onde os sujeitos produzem inteligibilidades sobre si mesmos.
Diante disso, os jovens frequentemente exercem performatividades que os afastam
de um ser bebel e os aproximam de um ser sujeito homem, processo em que as
inteligibilidades também passam pela compleição física, que se bem muitas vezes estão
vinculadas com a geração, isso não é natural, tal como apontado por Alexander, que ao
relatar uma briga, disse “ele era de maior, eu ainda era de menor. Só que ele era do
meu tamanho”.

4.7 Sujeito-homem-heterossexual

Israel: Tipo, tu não vai comer... não vai fazer sexo com outro
homem
Gabi: isso não é sujeito homem?
Israel: isso não é sujeito homem.
Gabi: existe essa regra?
Israel: existe
Gabi: no tráfico?
Israel: uhum

Como essas, muitas referências ao ser sujeito homem estavam relacionadas


com a heterossexualidade compulsória, pois era nesse registro que a sua noção era
pensada e enunciada. Assim, para muitos, ser homossexual ou praticar relações
homossexuais, especialmente passivas, necessariamente despoja as pessoas do seu
ser sujeito homem, ou da “postura de homem” – conceito que os jovens não
conseguiram definir, como se fosse evidente- como se essas categorias fossem ainda
mais opostas do que “mulher” e “homem”155 mostrando de que forma as

155
Carlos Iván também considerou que “mulher” e “lésbica” seriam opostos, mas Bernardo disse “mulher
sapatão é normal, mulher sapatão é mulher, mulher é mulher, independente que ela é sapatão”.
273

performatividades atuam em uma rede complexa que apresenta polarizações, mas


também aproximações entre corpos, práticas e atributos.
Como apontado por Butler,

A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de oposições


discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”, em que estes são
compreendidos como atributos expressivos de “macho” e de “fêmea”. A matriz
cultural por intermédio da qual a identidade de gênero se torna inteligível exige
que certos tipos de “identidade” não possam “existir” -isto é, aquelas em que o
gênero não decorre do sexo e aquelas em que as práticas do desejo não
“decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. Nesse contexto, “decorrer” seria
uma relação política de direito instituído pelas leis culturais que estabelecem e
regulam a forma e o significado da sexualidade (BUTLER, 2003, p. 39).

A expressão sujeito homem como heterossexual é, assim, a reafirmação de uma


identidade normativa constantemente vigiada (KAUFFMAN, 1997), enquanto que o ser
que não é “sujeito” deve ser classificado, separado e, em certas condições de contatos
corporais ou verbais inadequados, punido de forma mais severa, a partir da afirmação
da virilidade. Neste sentido, podemos pensar que o “viado”, o “corno” e o “estuprador”
são os fantasmas do agenciamento molar da masculinidade. O “viado” é uma
transgressão do próprio homem à sua masculinidade (KAUFFMAN, 1997), o “corno”
sofre dessa desqualificação a partir da transgressão da mulher que neutraliza sua
masculinidade (CECCHETTO, et. al., 2016), e o “estuprador” transgrede os limites da
iniciativa sexual masculina.
É interessante observar como, no campo da instituição-estabelecimento, essas
categorias são ao mesmo tempo reafirmadas e tencionadas. Assim, neste contexto de
homossociabilidade, de privação de liberdade, de patrulhamento dos corpos, se cria um
território de masculinidades em disputa, onde a dominação e a subordinação são
performáticas, com múltiplos atravessamentos. Miguel Vale de Almeida aponta que no
território de disputa masculina, acontece uma “avaliação do comportamento [...] feita em
função de um modelo, e a disputa dos atributos e da pertença ou não ao modelo
provam que este é uma construção ideal. Só que, como as avaliações se fazem a partir
de atos vistos e narrados, o comportamento dos homens tende a “mimetizar” as
prescrições do modelo” (1996, p.171).
274

No que diz respeito à heterossexualidade, o contexto de homossociabilidade


revelou inúmeros nuances, incluindo, por um lado, uma intolerância a quem é
homossexual, diferente do que acontece na pista, onde, mesmo que existam práticas e
discursos homofóbicos, ali a distância entre os corpos está garantida e a convivência
com um homossexual não ameaça de forma tão direta a masculinidade 156. Aqui, como
expressado por Cesar Manuel, se um homossexual estiver no alojamento dele, “vai pra
lona, vai sujar o nosso alojamento”.
Em uma atividade, no momento em que estávamos falando de
homossexualidade, um jovem disse “o que vai acontecer com a sociedade se a gente
deixar que role esse bagulho?”, ao que respondi perguntando, o que ele achava que ia
acontecer, e ele não teve resposta. Nesse mesmo grupo, alguns jovens disseram que
“deus fez homem e mulher”, ao que as profissionais e eu provocamos, perguntando se
eles sempre seguiam as normas da religião no que tange à sexualidade, por exemplo, a
proibição do sexo extramarital. Todos riram, mas foi revelado de que forma o discurso
religioso foi acionado para argumentar em favor da cisheteronormatividade.
Para Jhosivani, o fato de ter filhos/as já implica uma distinção entre quem é
homem e quem não é, classificações que devem ficar separadas:

Jimena: aqui não tem relações entre meninos?


Jhosivani: não
Jimena: você nunca ouviu falar de nada?
Jhosivani: já ouvi já, mas no nosso aqui não pode não
Jimena: quem diz que não pode?
Jhosivani: não pode não, porque... aqui que... aqui só... não tem... não é
misturado não. Se ele é homossexual, ele fica em outra cela, aí ele fica
com outros. Aqui é... todo mundo tem filho, tem mulher, aí nós não fica
junto não, fica separado

Jesus disse:

Jesus: Os cara tão separados de nós. No nosso alojamento, jogando nós de


ralo, bebendo da mesma garrafa que os cara
Gabi: o que que isso tem a ver?
Jesus: o que que tem a ver??

156
Alguns jovens expressaram desejos de violência homofóbica nas suas comunidades ou famílias, mais
poucos relataram de fato ter efetivado essas violências. Por outro lado, muitos apontaram conhecer ou
se relacionar com pessoas LGBT sem nenhum problema.
275

Gabi: que que tem a ver beber da mesma garrafa se eles quiserem transar de
madrugada?
Jesus: os cara são viado, vai ficar bebendo, os cara beija homem! Tem mulher
que beija homem, pá, aquele pique, tipo assim, é os cara!! Por mim, também,
tipo assim, os cara vai falar que nós está separado, é os cara!! Essa é a regra,
o pessoal tem muita regra
Gabi: ok, mas você concorda com elas?
Jesus: tem que concordar
Gabi: não dá pra questionar?
Jesus: não pode
Gabi: aí você acha que se tivesse dois meninos transando
Jesus: ia acordar tomando porrada, filha, ia botar pra dar um rolé
Gabi: mas você não acha que não dá pra sentir atração?
Jesus: ah, vai sentir atração em outro alojamento, filha
Gabi: você obedece a regra secamente?
Jesus: ....vou te falar, acho que até na de maior é assim, não é assim, tipo
assim, tem viado no alojamento, vai embora. Acho que não é assim
Gabi: porque que não?
Jesus: não sei, nunca passei na maior, que eu nunca perguntei meu chefe,
entendeu? Antes de eu estar na pista, não perguntei muitas coisas ao meu
chefe, se o cara for da facção e o cara for viado, não pode estar no alojamento

Nesta fala, é importante ressaltar que quando conversávamos com os jovens


sobre as regras, era difícil que eles enunciassem suas opiniões sobre elas, pois
geralmente se referiam a elas como algo natural que devia ser aceito e, quando
problematizados, alguns diziam “não sei explicar”. No entanto, conseguimos gerar
condições para pensá-las com alguns deles.
Em alguns grupos, o simples fato de trazer o tema da homossexualidade à tona
já provocava desconfortos muito grandes entre os jovens. Novamente, as diferenças
entre os grupos foram sendo cada vez mais nítidas no nosso conhecimento do mapa
intensivo da unidade, pois alguns alojamentos eram mais flexíveis nesse sentido.
Bernardo apontou, depois de reconhecer que tinha se relacionado sexualmente, na
postura ativa, com alguns jovens:

ah, tem quem não gosta disso daí não. Esse negócio dificulta pra caraca. Aqui
dentro? Dar lona aqui dentro? Pega fazendo sexo no alojamento, homem com
homem, sem brincadeira mesmo, isso daí é mó vergonha, mano, isso é
neurose, isso é vergonha isso daí, filha. Perder o gosto de mulher.

Por outro lado, observamos demonstrações de afeto que dificilmente vemos em


outros contextos, como toques e abraços constantes durante nossas atividades. Neste
sentido, uma questão fundamental no campo foi a noção, especialmente expressada
276

por profissionais, de que os jovens apresentam uma “homossexualidade circunstancial”,


no momento em que estão privados de liberdade e portanto carentes e confinados,
além de “com os hormônios à flor da pele”.
Destarte, é importante destacar que vários jovens, nas entrevistas individuais,
assumiram ter tido trajetórias homossexuais ou bissexuais antes de entrar no Sistema,
alguns inclusive tendo começado a vida sexual com homens.

Gabi: você é sujeito homem?


Emiliano: ainda!
[Em outra entrevista]:
Jimena: como você reage quando você é discriminado? Quando alguém vem te
gastar, te zoar
Emiliano: ....tipo assim...tipo assim....tipo assim, o que eles faz, então tipo
assim, quem faz não sou eu? Tipo assim, quem faz ou deixa de fazer sou eu,
eles não tem nada a ver com a minha vida não, filho, eu faço o que eu quero da
minha vida, filho. Mas tipo assim, às vezes como, sinto vergonha
Jimena: de que?
Emiliano: ah, dos cara ficar gastando, mas se os cara ficar me gastando, é
maluco?, saio com o pé voando, tipo assim, se os cara ficar me gastando muito
também, os cara tipo assim, tem um menor que falava “po, o menor pode fazer
o que ele fizer”, mas tipo assim, o menor falou lá na favela, os cara tem medo,
os cara falar alguma coisa pra mim aqui, aí prejudica lá quem tá na favela, lá na
favela, aí os cara fizeram comigo lá, os cara é preso também. Tipo assim, que
eu tenho que dispor da favela. Tipo assim, eu posso estar preso, mas tipo
assim, na cadeia toda, ninguém pode me encostar a mão desses menor aí, tá
ligada não? Por causa tipo assim, que só me encostar a mão mesmo, se o
patrão tinha que lá mandar, “ah, ele deu mole? Então pode encostar a mão
nele”. Eu to há um ano e eu nunca tomei um soco de ninguém não, nunca
ninguém me deu uma cobrança aí, porque eu não deixei na reta, acho também
que os cara também não me gastam pela minha postura também. Porque eu
não tenho aquela postura “ah, ele faz”, to na minha postura de sujeito homem.
J: o que que é postura de sujeito homem?
L: é...tu não ficar... muita explicadeira, ah, quer falar? Fala o necessário só.
Quer zoar? Saiba zoar, saiba brincar. Tipo é assim

Jimena: e sujeito homem? O que é pra você?


Alexander: sei lá. Ter postura, cumprir com as pessoas
Jimena: muita gente fala que ser homossexual é não ser sujeito homem
Alexander: é
Jimena: o que você acha disso?
Alexander: acho besteira. Fica “ah, porque é viado sei lá o que”. Pra meter a
porrada, pra discutir, vai fazer diferença? Mesma coisa! Só muda aquilo ali. Não
quer dizer nada.
[...]
Alexander: Aí a rapaziada na boca de fumo viu que vivia com homem, aí “é
viadão, é viadão!!!” e falou “vai falar com teu irmão”. O cara disse: “se o cara
gosta desses bagulho, deixa o cara. O cara não tá fechando no tiroteio junto
com nós?”

Jimena: porque você acha que a maioria fala que não rola, sendo que rola sim?
277

Adán: ah, porque eles, vai falar que, como, eles fala que quem come viado é
viado, mas eu já comi e não sou viado. Eu sei que não sou viado, pá. Os cara
pensa que só quem come viado é viado, é nada, eles fala que não come, é
sujeito homem, mas conheço vários que comem viado, esse viado que tava aí
Jimena: o que que é pra você ser sujeito homem?
Adán: ah, sujeito homem, é como, não botar viado pra mamar, só mulher
mesmo, pá. Só ficar com mulher, pá. Não ficar de brincadeirinha, os cara fica
falando, bobeirinha, não ficar mostrando o negócio pro outro.

Christian Alfonso: ser sujeito homem, é tão forte, porque ser sujeito homem é
um homem que não faz essas coisas, tudo mais
Gabi: que coisas?
Christian Alfonso: sexo com homem. Só faz sexo com mulher
Gabi: não pode ser sujeito homem e fazer sexo com homem?
Christian Alfonso: não
Gabi: porque?
Christian Alfonso: porque não
Gabi: e você é o que, então?
Christian Alfonso: eu sou homossexual
Gabi: homossexual não pode ser sujeito homem?
Christian Alfonso: não
Gabi: então ser sujeito homem é definido pela sexualidade?
Christian Alfonso: (sim)
Gabi: e que mais?
Christian Alfonso: é porque assim, o homem foi feito, tipo assim, eu nasci como
homem, minha mãe me fez como um homem, mas desde o momento que eu
comecei a mudar, fazendo essas coisas, essas coisas, assim foi falta de
dinheiro, porque às vezes eu precisava de dinheiro pra subtrair as drogas, não
tinha dinheiro pra usar drogas, então eu se prostituía.

Jimena: o que que é sujeito homem pra você?


Abel: é um homem, sei lá, um sujeito, homem, totalmente homem
Jimena: o que que é ser totalmente homem?
Abel: ser totalmente homem é ter postura, casar, ter filho, mulher, e não dar a
homens, isso é totalmente homem (gargalhada)
Jimena: e tem que manter essa imagem
Abel: é, e se falar que eles dá, vão te agredir

Estas quatro falas são de jovens que se relacionam com homens e com
mulheres. Emiliano afirma que apesar de se relacionar com homens, ele é sujeito
homem por apresentar outras características, incluindo uma posição dentro do tráfico,
que o protege, e o fato de enunciar, mas só o suficiente, o que traz mais um elemento
importante a considerar nas comunicações. Também, uma profissional disse que ele
constantemente tentava se “reafirmar como homem”, trabalhando na horta e
carregando coisas pesadas. Alexander também enuncia essa espécie de
“compensação”, que, assim como Bernardo aponta, é aceita, pois apesar de que os “kit”
tem que ficar separados na boca de fumo, eles “sendo da boca ele tem um privilégio,
porque ele é da boca, tá traficando com nós”.
278

Já Adán parece precisar demarcar que ele não é passivo nas relações, para se
distanciar dessa noção. Isso, no caso do Adán, inclusive trazia um sofrimento, palavras
das técnicas que o acompanhavam. Elas me relataram isso esperando também que eu
entrasse na roda para pensar formas de ajudá-lo, o que me provocou um pouco de
angústia diante das limitações do meu tempo no estabelecimento, embora tenha
conseguido ter uma boa conversa com ele, tentando oferecer repertórios de
desestabilização da cisheteronormatividade que o fazia sofrer.
Christian Alfonso aponta que ele não é sujeito homem, justamente por se
relacionar com homens, mesmo que seja para fins financeiros. E Abel provoca a
definição, ao apontar como ela define algo que não é sustentado no dia a dia do
estabelecimento.
Alguns desses jovens geralmente expressavam discursos bastante consolidados
de conhecimento dos preconceitos vivenciados e dos seus direitos. Por exemplo, Luis
Angel (17 anos, negro), no grupo que participou, falou que “a gente já tem suficientes
confusões nas nossas cabeças, para ficar julgando os outros”, e relatou que não se
sente ameaçado na unidade, que “tem que aprender a entender a cabeça dos outros”.
Ele também relatou que ele sempre soube que era gay e que ninguém o tinha
“influenciado” ele nesse aspecto, problematizando uma fala de Leonel, de que um
menino conhecido tinha virado gay porque “a mãe nunca deixava ele sair”, e que “agora
que ele está virando”, ela estava mostrando filme pornô para a criança, “mas não está
adiantando”. Este relato, além de destacar a desnaturalização da “transmissão”
homossexual que Luis Angel fez, revela uma tática bastante severa utilizada para
reafirmar a cisheteronormatividade.
Christian Alfonso disse

Christian Alfonso: ah, tem preconceito, tipo assim, ficam “ah, já deu o cú, esse
aqui, ô, já deu o cú” “você já deu o cú, já fez isso, já fez aquilo”. Isso é um
preconceito, ficar falando o que os outro faz. A bunda é minha! dou na hora que
eu quiser! Ninguém vai ficar dando conta da minha vida. Vai ficar criticando os
outros? Essa é uma criticação que não pode acontecer
Gabi: eles te recriminam por causa disso?
Christian: tem moleque de facção igual, tem um moleque lá do meu alojamento
que também já deu o cú, assim, eu não gosto de falta de respeito, ficar falando
dos outros não me dá nada, do que os outros fez na cadeia. Os outros não
pode falar da vida dos outros não. Não pode ficar criticando os outros.
279

Foi interessante ver a forma como as classificações supostamente rígidas entre


quem é homossexual eram múltiplas. Em um grupo, Saúl disse que homens que
transam com homens, embora na posição “ativa”, também são gays, e que “homem
com homem não é adequado, é desrespeito a mim como homem”. Adán disse, “nego
fala que quem come viado, viado é, mas sendo que não é isso, eles tira a visão deles é
essa, mas, ser viado é isso aí, que eles faz, dar o cú, chupar pau”. Jesus disse:

Jesus: os cara fala que viado é quem come e quem dá, filha
Gabi: não, quero saber a sua opinião
Jesus: a minha opinião, quem come não é viado, pô
Gabi: então se tivesse alguém aí querendo, te convidasse, você comeria?
Jesus: não
Gabi: nem se tivesse distribuição de camisinha?
Jesus: não
Gabi: porque não?
Jesus: porque não sinto prazer, um homem
Gabi: mas nunca fez pra saber!
Jesus: mas já até imagino, pô, nada a ver se relacionar com um homem que
tem o que eu tenho

Já Christian Alfonso disse

Christian: homossexual é um homem que gosta de outro homem


Gabi: você é homossexual?
Christian: eu, assim, lá na rua era
Gabi: e aqui dentro não?
Christian: aqui dentro não, eu prefiro ficar longe
Gabi: porque?
Christian: porque aqui dentro não tem camisinha

Foi relevante observar como a inicial afirmação de que apenas um reduzido


número de jovens realizava estas práticas foi se desmontando ao longo do nosso
percurso no campo, revelando cada vez mais experiências de poder, prazer e também
afeto. Nos primeiros grupos, especialmente os dos alojamentos coletivos, os jovens
respondiam de forma muito hermética, dizendo que ao perguntar sobre relações entre
eles, nós estávamos “de bobeira” que “aqui não tem esse troço, só na enfermaria”,
“neste alojamento só tem homem, não tem isso de misturado não”. Posteriormente,
começamos a escutar falas dissidentes, especialmente ao reconhecer que tinha muito
contágio de ISTs.
280

No desdobramento do primeiro Curso, na atividade de teatro, este tema foi


trazido em uma das esquetes e discutido com profissionais, direção e jovens. Na trama
da história, o jovem gay é levado para o alojamento e os outros não o aceitam, mas não
tem espaço em outro lugar e se cria o conflito. A pessoa que desempenhou, na
esquete, um dos jovens do alojamento, disse em algum momento “a gente já tem um
acordo com a direção”. No debate, uma profissional surpreendeu os jovens ao dizer que
o fato de ser gay não faz com que a pessoa queira estar no espaço destinado a este
grupo.
Posteriormente, foi nos sendo relatado que alguns jovens estavam se
relacionando de forma mais estável, formando um casal, por isso sofrendo preconceitos
dos outros jovens, e que a unidade estava muito mobilizada, mais pelo fato de um casal
ter se formado do que pela homofobia que estava acontecendo.
Já nas entrevistas individuais, alguns, como Israel, disseram que nos
alojamentos coletivos isso não acontecia porque “não, eles não arriscam, esse negócio
.... como.... é homem mesmo... os cara não gostam desse bagulho não. Só dia de
quebrar mesmo”. Porém, ele reconheceu que até nesses alojamentos tinham alguns
jovens que “tinham mancada”157, ou seja, que se relacionavam sexualmente e inclusive
chamavam outros para participar, incluindo ele mesmo, convite que ele recusava
porque achava “feio” e porque “Deus criou Adão e Eva. Aí ele me chamou e eu “tá
maluco?””. Ele apontou que alguns jovens aceitavam o convite, e o jovem que tinha
realizado o convite, que “virou viado”, relatava com quem ele já tinha tido relações.
Felipe apontou:

Gabi: Não existe relação entre homens?


Felipe: não. E se tiver, também não reparei.
Gabi: será que não existe e todo mundo fica caladinho?
Felipe: aah mas todo mundo dá uma de machão. Todo mundo “ah, peguei
mulher, peguei mais mulher do que tu”. Aí ninguém chega a desconfiar

Emiliano também sinalizou:

157
Nos pareceu interessante a expressão “tem mancada”, por ser algo que se possui, não que se é ou
que se faz.
281

Jimena: aqui a maioria come ou dá?


Emiliano: tipo assim, tem os que falam que não comem, tem os que falam que
não dão, mas sempre que não fala, sempre faz
Jimena: aí você acha que aqui dentro todo mundo faz? Porque a maioria diz
que não faz, certo?
Emiliano: é. Mas tipo assim, eu vou falar pra senhora, teve um aí que falou “eu
não faço, eu sou frente de boca, eu não faço, eu sou bandido, e isso e aquilo” aí
chegou no alojamento, aí o menor saiu, tipo de toalha, na frente do banheiro pra
pegar a roupa dele, aí “ah, vai ficar pelado no alojamento!!”, pá, aí daqui a
pouco já atacando o viado. Caraaca, moleque. Cara, esses cara maneirinho. Aí
tipo assim, tem gente que fala, mas faz, faz porque gosta
Jimena: e porque você acha que a maioria não fala que faz?
Emiliano: ah, vergonha de que vão gastar.

No entanto, alguns jovens, começavam a mudar o discurso. Em processos bem


interessantes, nas entrevistas, alguns começavam a assumir a existência de relações
no estabelecimento e, ao longo das conversas, superando performances iniciais
perpassadas por exageros e omissões, reconheciam que eles mesmos as praticavam.
Assim, ao invés de um alojamento Seguro, das loucas ou o “cabaré da enfermaria”,
fomos cartografando fissuras no cotidiano nos alojamentos e nas próprias
performatividades masculinas, como expressado nas falas acima.
Um caso em particular aconteceu no nosso campo, que se revelou de forma
extremamente interessante. Em uma ocasião, Gabi entrevistou um jovem e eu outro.
Emiliano, entrevistado por Gabi, começou a entrevista falando que anteriormente havia
relações entre jovens, depois reconheceu que ele as praticava, tanto passiva quanto
ativamente, e afirmou “não tenho nada pra esconder, eu faço o que eu quero”.
Finalmente, ele expressou que apesar de ter muitos jovens abertos a se relacionar
sexualmente, atualmente ele “fechava com um menor” e que ambos estavam
amarrados – apaixonados - e estavam tentando manter um relacionamento
monogâmico, se cuidando ali dentro e fazendo planos para saírem juntos e construir
uma vida fora do Desgase. Também revelou que esse outro jovem era Adán,
justamente quem eu estava entrevistando. Disse que não deixava ninguém ser
preconceituoso com eles, devolvendo as gastadas dos outros jovens, e dando o papo
reto a agentes e diretores que, reconhecendo o fato dele falar que aquela
fanfarronagem estava acontecendo, apenas aconselhavam “tudo bem, só se previna”,
embora a instituição não oferecesse preservativo. Disse que Adán era mais fechado
com esse tema, não gostando que se soubesse na unidade, e que era extremamente
282

ciumento, chegando a se machucar quando estava muito afetado. Inclusive, disse que a
relação entre eles começou quando Adán provocou uma briga física entre eles, a partir
da qual conseguiu expressar que gostava dele.
Adán, em entrevista comigo, começou dizendo que “aqui é foda. Não pode fazer
nada”, depois apontou que

Adán: tem esse negócio de, como, de papo viado, mas eu não faço, eu não dou
não. Sou mais de pá, de comer, pá. Já comi, teve viado que já veio e já foi
embora, comia ele direto
Jimena: ele queria?
Adán: ele queria! Era viado mesmo, assumido. Ele me chamava e eu ia.
Jimena: ele chamava alguns, ou todo mundo?
Adán: ah, se eu te falar, quase a cadeia toda (risos)
Jimena: muita gente fala que não rola
Adán: é, muita gente fala que não, mas às vezes, como, fala que não, mas faz
sim. Eu não, eu falo mesmo. Mas também tomo cuidado, não pode ser qualquer
um também assim não.
Jimena: tomar cuidado em que sentido?
Adán: desses negócio de doença aí
Jimena: você usa camisinha?
Adán: aqui dentro?
Jimena: aha
Adán: como ele tava aí, ia passar a dar, só que ele foi embora, aí não mais,
porque não tem viado mais
Jimena: você acha que deveriam distribuir camisinha aqui dentro?
Adán: ahh, acho que sim, porque muita gente fala que não faz, mas, olha,
várias coisas eu sei
Jimena: e em que momento rola isso, à noite?
Adán: ah, é, à noite. Porque tem alguns que não gostam de se ver, e até
apanha. Bate nos menor e tudo.
Jimena: como saber quando quer e quando não quer?
Adán: ah, ou pede, ou ele vai me chamar, ou pede ou vem chamar
Jimena: já teve alguma vez em que ele te chamou e você não quis? Ou o
contrário, que você queria e ele não?
Adán: ah, às vezes eu não queria, às vezes eu queria. Às vezes só ficava
refletindo mesmo, na minha família

Ao longo da entrevista, foi apontando de que forma a relação de amizade com


Emiliano era importante, pois este lhe dava conselhos, o acalmava “dando papos pra
mim ficar mais tranquilo, pra não arrumar confusão”. Também reconheceu em um
momento que ele se relacionava atualmente sexualmente com um jovem, não só no
passado.
Ao terminar as duas entrevistas, quando saímos para o almoço, percebemos a
diferença entre as duas entrevistas, considerando os estilos de cada uma e a abertura
que cada jovem tinha a respeito do tema, mas nos pareceu extremamente potente que
283

Emiliano tivesse falado sobre a relação, justamente por ir de encontro a muitas coisas
que tínhamos escutado até esse momento.
Depois disso, enquanto jovens dos alojamentos coletivos continuavam negando
qualquer tipo de possibilidade, outros jovens dos alojamentos Seguros relataram ter se
relacionado sexualmente e/ou amorosamente com outros jovens, que inclusive estavam
nesses alojamentos.
Abel apontou:

Abel: Na coletiva é onde tem mais. É onde mais vai achar


Jimena: e porque que eles falam que não tem?
Abel: eles vão falar? (gargalhada)
Jimena: porque? Me explica isso
Abel: você acha que eles vão falar que eles faz? Porque aqui são tudo Bandido,
perigoso
Jimena: mas eles dão e comem?
Abel: eu dou e como
Jimena: e os outros?
Abel: dão e comem também, filha, todo mundo aqui dá e come.

Alexander comentou em entrevista individual:

Jimena: Você se identifica como homossexual?


Alexander: eu me identifico, mas gosto de mulher também
Jimena: você gosta de homens e de mulheres?
Alexander: é
Jimena: aqui dentro você se relaciona com alguns meninos?
Alexander: me relacionava. Ele ficava comigo aqui, aí se relacionava, só que
ele foi pra lá, pra cuidar de um menor, que tavam querendo bater num menor lá,
e eu fiquei aqui. Então, agora to sozinho.
Jimena: e quando ele tava aqui embaixo, vocês só transavam, ou também
tinham uma relação amorosa?
Alexander: também
Jimena: as duas?
Alexander: uhum
Jimena: e você não sente falta dele?
Alexander: sinto
Jimena: vocês não conversam mais?
Alexander: ah, de repente a gente troca uma ideia, mais a maior parte do tempo
fico trancado
Jimena: e agora não tá se relacionando com ninguém, então?
Alexander: não
Jimena: e quando rolava, todo mundo do alojamento ficava sabendo?
Alexander: todo mundo sabia. Ah, tranquilo, pá, vai fazer como? A gente fazia
quando tavam dormindo
Jimena: e os agentes sabiam também?
Alexander: os agentes sabiam
Jimena: e como que eles reagiam?
284

Alexander: ah, no começo começavam até a bater, mas com o tempo, pararam
de mexer
Jimena: todos?
Alexander: tinha alguns que até entraram querendo agredir, tem uns que
pararam não, entravam batendo, “ah, faz isso não”
Jimena: e porque você acha que eles partiam pra agressão?
Alexander: sei lá. Homofóbicos.
[...]
Jimena: como foi isso, quando você começou a se relacionar com ele?
Alexander: a gente conversava bastante, gostava um do outro. Aí um dia acabei
que beijei ele. Aí ele “ah, repita a dose”, e eu “eh!”. Aí começamos a namorar
Jimena: você que pediu pra namorar?
Alexander: é. E foi tranquilo. Passamos pros caras do alojamento, que a gente
namorava, tranquilo. Aí começou a namorar. Conversamos com o funcionário.
Dava conselho pra ele, dava conselho pra mim também. Aí tavam querendo
bater num menor, e ele “vou ter que ir lá pra resolver. E eu “pode ir”, “não fica
decepcionado comigo não” e eu “não”. E foi. Tá lá encima até hoje. E eu to
aqui.
[...]
Alexander: Outro dia os funcionários ficaram falando que eu era viado, e ele
“que isso?”, e eu “deixa o funcionário ficar falando, se eu ficar batendo boca, ele
vai querer entrar aqui, vai querer agredir menor, nós não vai deixar, o pau vai
comer, nós vamos pra delegacia, e aí?”. Aí falei forte “ele vai ser acusado de
homofobia!”. Botou a mão na boca, “mmmm”, só virou as costas e saiu.

Nestes trechos de entrevistas, vemos, além de fissura, novamente a importância


de orientar aos outros como um valor importante para sustentar as decisões, e o
conhecimento dos direitos como forma de se defender e se posicionar na disputa de
masculinidades.
Por sua parte, Bernardo, que ao longo da entrevista se mostrou bastante
apegado às normas da “masculinidade do Bandido”, em um momento disse “tipo assim,
se eu falar pra você que eu nunca tive relação com homem, é mentira, sabe? Mas tipo
assim, deixar homem trepar atrás de mim, nunca deixei não, que nem viado faz, não.
Agora, tipo, como, o cara querer emendar, ou querer que eu tivesse a relação sexual
com ele, fazer penetração com ele, já fiz mesmo, sabe?”.
A história de Emiliano e Adán continuou, sendo cada vez mais conhecida e
provocando uma série de movimentações no estabelecimento. Eles nos procuraram
mais algumas vezes para conversar, e as profissionais que estavam os acompanhando
constantemente nos atualizavam. Foi relatado que eles chegaram a ter demonstrações
de afeto físicas e verbais na quadra e nas atividades – incluindo elogiar a beleza e o
companheirismo um do outro, segundo uma profissional –, que eles procuravam fazer
todas as atividades juntos, que inclusive a família de um deles tinha conhecido a família
285

do outro. Eu entrevistei os dois novamente, em momentos separados, seguindo a


recomendação de uma profissional, pois o fato de o caso estar sendo conhecido e
chamando a atenção de várias pessoas da unidade, estava provocando desconforto
principalmente em Adán.
Apesar do receio dessa profissional e do fato de na primeira entrevista ele não
ter sido explícito, decidi fazer mais uma entrevista com ele, sem usar gravador e propus
que ele desenhasse enquanto conversávamos para que ele se sentisse mais
confortável. Ao longo da entrevista, ele foi se abrindo aos poucos, relatando, no início,
que Emiliano era o que fazia essas coisas, e depois contando que ele também,
chegando finalmente a relatar a situação do seu relacionamento, que era “só nós dois”,
que sentia ciúmes, que os dois eram ativos e passivos e que ele gostava de “abraçar o
papo” do Emiliano.
Ele não reconheceu sensações negativas por preconceito na unidade, mas, em
um momento muito interessante, em que disse que queria fazer uma tatuagem com o
nome de Emiliano, disse que ao não ter parente com esse nome, não poderia explicar
essa tatuagem. Nesse momento, sugeri que ele poderia colocar apenas a inicial e dizer
que era outra coisa, ideia que ele gostou. Eu provoquei, então, dizendo que então ele
se importava com o que outros dizem sobre eles, ao que ele respondeu: “não, eu faço o
que eu quero”, o que me fez pensar na tensão dos agenciamentos da masculinidade no
que tange à relação com as regras e o autogoverno. Parece ficar subentendido que as
regras são justamente para sustentar performatividade masculina que os apresenta
como donos de si. Ao mesmo tempo, ele disse não estar apaixonado, que ele só se
relacionaria com mulheres porque “não sou viado”. Contou que no alojamento dele todo
mundo tinha relações, e que em outros, mesmo sendo mais complicado, “também tem
gente que faz”.
Entrevistei Emiliano outro dia, quando eles tinham solicitado ficar em um
alojamento separados do resto. Eles também chamaram Abel para protegê-lo, pois ele
tinha sido diagnosticado com HIV e estava sendo ameaçado pelos jovens com quem
tinha se relacionado sexualmente, apesar, segundo Emiliano, das advertências dele e
da equipe de saúde. No alojamento, a privacidade era difícil de levar, pois Abel
continuamente olhava eles tendo relações sexuais, diante do que Emiliano disse,
286

com a maior paciência do mundo, “bebel, pô, tu não pode fazer esse bagulho
não”, tipo assim, aí eu destravei nele, dei só papo reto nele, e tipo assim, eu
falei tudo que eu tinha que falar, “não, bebel, tu tem que se enquadrar, a gente
tá fazendo um bagulho aqui embaixo, tu quer ficar olhando, tu ia gostar? Que tu
estivesse fazendo um bagulho com alguém e nós ficasse olhando?” e ele “não”,
“então, o bagulho é separar, tu escuta, tu abraça o papo, tu compreende, não
dá vacilada aí” e aí ele nunca mais ele, ele abraçou o papo.

O alojamento em que eles estavam era na Triagem, para onde são direcionados
jovens que estão “de castigo”, o que acabava fazendo, segundo Emiliano, com que eles
fossem considerados como estando “de castigo” também. Relatou várias cenas de
afeto, ciúmes e brincadeiras próprias de casais, além dos acordos para “parar pra ficar
só nós dois” e explicou a diferença entre os dois para tratar da relação com outras
pessoas: “eu já tinha a prática de falar com as pessoas”.
Essas fissuras, que não necessariamente implicam uma identificação dos jovens
como gays ou bissexuais, permitem ver a dimensão singular do desejo e do afeto, que
mesmo que perpassados pelas instituições-forma cisheteronormatividade e machismo,
são ao mesmo tempo produtoras de singularidades históricas e políticas, relacionando-
se com paradoxos das normas e dos modelos e com o desafio de cumpri-los e/ou
driblá-los. Os jovens, ao encontrar contradições, revelaram de que forma os circuitos
dos desejos se encontram, entre o que queremos e o que o espaço de pertencimento
permite, possibilitando ver as linhas de fuga dentro das durezas.
Como já foi apontado, reconhecer isto era extremamente difícil para a instituição,
dificuldade vista no ápice durante o Curso de direitos sexuais e direitos reprodutivos, a
partir do analisador da implementação do preservativo, sempre sob a justificativa da
Segurança, no sentido tanto de proteger os jovens que assumissem essas relações de
retaliações homofóbicas, quanto de evitar relações sexuais de submissão e
desigualdade. Porém, é importante destacar que vários profissionais apontaram que
implementar o preservativo “liberaria o sexo entre homens” ou inclusive o incentivaria, o
que para eles era um problema, enquanto outros reconheciam que isso já acontece e
que isso simplesmente seria uma “redução de danos”, evitando contágio de ISTs. Um
deles relatou, inclusive, ter visto um jovem “pegando um plástico para talheres para
usar como camisinha”, o que já revela as táticas dos jovens frente à estratégia de
contenção da sexualidade.
287

Para essa lógica, ter um ou alguns alojamentos separados, onde os jovens


classificados como mancões estivessem protegidos, aparece como mais conveniente
do que enfrentar as capilaridades das performatividades. A tendência a generalizar,
mesmo que seja compreensível pela grande quantidade de jovens e demandas, acaba
impossibilitando enxergar a diversidade de vivências e desejos, ocultados pelas
normas. Nesse sentido, casos de jovens gays ou transexuais que entram ao Sistema158,
assim como jovens com HIV, acabam sendo considerados/as um problema de logística
na busca de proteger e isolar, especialmente na situação de hiperlotação e
precariedade, argumentando que “a discussão toda sobre tolerância é muito linda no
papel, mas “para você lidar com 200 adolescentes, não pode”, “você mexe em toda
uma estrutura”, como apontado por uma profissional, ou, como sinalizado por um
diretor, “é difícil encontrar a força para mudar e não apenas evitar problemas”.
No entanto, foi possível também vislumbrar como essa lógica não resolve as
violências, pois escutamos que quando os jovens do alojamento coletivo são enviados
para reflexão, eles são enviados para o Seguro, com os mancões, que devem ser
espancados pelos jovens do coletivo, sob risco de sofrer retaliações na volta ao
alojamento.
Nas entrevistas e atividades em grupo, percebemos aberturas de alguns dos
jovens para estabelecerem relações de amizade, respeito e/ou cumplicidade com esses
jovens, enunciando, como Jorge Aníbal, que “não posso criticar os gays, se ele gosta,
não posso fazer nada, cada um com seu cada um. Eu não gosto, tem várias mulheres
na rua”, ou, como Leonel falou para Luis Ángel, “eu não tenho problema contigo, se
não, não dormiria ao teu lado”. Jonas também disse que era “tranquilo” dividir cama
com um jovem bissexual, pois “tenho preconceito nenhum. Brinco na moral.”. Embora
jovens do alojamento Seguro ou da provisória já fossem considerados como com uma
flexibilidade maior do que, por exemplo, os que estão no alojamento coletivo, o que
implica um apego maior às “regras de convívio do tráfico”, essas vozes dissidentes
permitem enxergar fissuras que poderiam ser aproveitadas. Por exemplo, Jorge Antonio
disse, ao falar sobre jovens gays:

158
O Degase reconheceu a necessidade de discutir questões de gênero e sexualidade, pelo que criou um
Grupo de Trabalho para tratar esses temas, de modo que se contribuísse com a tomada de decisões de
construções de normativas para garantir os direitos de jovens gays e trans.
288

Jorge: eu não tenho esses preconceito com esses negócio também não
Jimena: mas o que você acha dessa regra deles terem que ficar separados?
Jorge: ah, eu não acho também, por mim podia ficar todo mundo junto, que eu
não tenho esse negócio também, porque eles faz, às vezes ele fazia com eles,
o que eu posso fazer? Pensava assim mesmo, o que eu posso fazer? O que
eles faz é com eles mesmo, quem vai ficar mal falado é eles, porque tem os
outros que fala mal pra caramba desses negócio. Aí eu falo, eu gosto só
mulher. Igual esses negócio de homossexual, também como, eu gosto da
amizade, pode ser uma pessoa boa
Jimena: você tem amigos homossexuais?
Jorge: tenho, mas aí como, vai ficar gastando em tudo, porque de vez em
quando esses cara aí, porque a técnica ficava falando esses negócio de
homossexualidade, aqui não tem nada desse negócio, os cara quer e a outra
pessoa também quer, é várias relação homossexual, aí o que eu falo mesmo
“caraca, como que tu pode, cara? Fazer relação com outro homem”, eu falando
e gastando eles, e ele “ah, eu gosto mesmo”, e eu “tu gosta?” e o cara “gosto
mesmo, é só pensar em mulher mesmo, pô, relação com outro homem não me
interessa, nunca fiz mesmo, é só na cadeia mesmo”

Desnaturalizar certos conceitos foi um objetivo primordial do nosso percurso.


Indagar de onde os códigos vêm, como eles entraram na vida dos jovens e que sentido
eles fazem atualmente revelou acordos coletivos, resistências, negociações,
obrigatoriedades, e poderes para praticar e para legitimar. Nesse sentido, foi muito
interessante pensar na complexidade em que as normas são instauradas, pois ao
mesmo tempo em que os jovens relatam uma constante vigilância externa sobre seu
cumprimento, revelando como as regras extrapolam suas vidas, também reforçam
concordar com essas normas, revelando como essa masculinidade supostamente
autoproduzida os tranquiliza ao negar que estão dando satisfação a um superior. Nesse
sentido, as normas aparecem como um agenciamento molar, uma construção não
personificada, com a qual os jovens se identificam, produzindo-a no plano molecular.
Em alguns momentos, chamava tanto a atenção dos jovens a nossa insistência
com esses questionamentos, que indagavam sobre ela, tal como aconteceu em uma
atividade com jovens facilitada por profissionais, onde insisti tanto na desconstrução da
discriminação por orientação sexual, que um jovem me perguntou, “com todo respeito”,
se eu era lésbica. Carlos Iván e Jorge Antonio também me perguntaram o mesmo em
entrevistas individuais.
Desta forma, apesar das práticas repressivas a quem não cumpre a norma
heterossexual, vemos pulsar a dimensão produtiva do poder, constituindo modos de
vida e formas de lidar com as normas. Como apontado por Judith Butler:
289

Os sujeitos são constituídos mediante normas que, quando repetidas,


produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são
reconhecidos. Essas condições normativas para a produção do sujeito
produzem uma ontologia historicamente contingente, de modo que nossa
própria capacidade de discernir e nomear o “ser” do sujeito depende de normas
que facilitem esse reconhecimento. Ao mesmo tempo, seria um equivoco
entender a operação das normas de maneira determinista. Os esquemas
normativos são interrompidos um pelo outro, emergem e desaparecem
dependendo de operações mais amplas de poder, e com muita frequência se
deparam com versões espectrais daquilo que alegam conhecer (BUTLER,
2015, p.17).

Assim, mesmo tendo escutado cenas de severa violência homofóbica verbal e


física, pensamos que se as normas fossem tão rígidas quanto são apresentadas, mais
jovens já teriam sido alvo delas. E isso não está relacionado apenas às precauções que
a Segurança estabelece, mas às negociações que os próprios jovens fazem das suas
performatividades, a partir dos seus recursos, que também são variáveis. E das fissuras
que se imiscuem sem pedir passagem.
Assim, alguns jovens mostraram ter mais facilidade para lidar com essa
dimensão que outros, da mesma forma em que escutamos “posições dissidentes”
(BARKER, 2008) no que tange às relações com as mulheres o que, para nós, oferecia
oportunidades para começar com eles processos de discussão sobre relações mais
igualitárias e justas. Deste modo, diante da complexidade e da heterogeneidade das
relações com os códigos, normas e práticas, é importante

prestar atenção às variações presentes nos discursos dos rapazes e nas suas
maneiras de ser, e compreender, através dessas vozes de resistência, que as
formas de masculinidade nesses contextos não são inerentemente violentas,
indiferentes ou abusivas em relação às mulheres. Todas as formas de
masculinidade, sejam mais ou menos violentas, mais ou menos sensíveis à
equidade entre os gêneros, são construídas segundo contextos e conjunturas
determinados (BARKER, 2008, p.40)

E esses contextos e conjunturas, apesar da sua aparente estabilidade, são


também passíveis de serem interrogados e modificados. Mesmo Jesus dizendo que não
conhece nenhum homossexual no seu morro, Bernardo sinalizou que “já conheci
Bandido homossexual, mas é difícil”, e Emiliano apontou conhecer chefes do tráfico que
são homossexuais, virando referência para os jovens que afirmavam que o fato de se
relacionar com outros homens não os despojava da sua virilidade. José Angel já
290

apontou que “se for gay Bandido, pode”, porque “gay Bandido é parceiro”, é do crime,
mas se não for Bandido, eles “fritam”. Dessa forma, o ser Bandido outorga o que ser
gay retira. Vemos outro tipo de compensações nesse sentido, tanto se referindo a
outras pessoas, como Carlos Lorenzo, que disse que Cazuza “era um homem legal,
mas era bicha”, quanto na própria performatividade, como Luis Angel, que disse “vejo
minha sexualidade como apenas uma parte da vida, antes de qualquer coisa sou
homem, gosto de estudar e de outras coisas, tenho caráter”.
No entanto, a cisheteronormatividade como operacionalização das
masculinidades é recorrentemente naturalizada, o que na instituição-estabelecimento
gera uma série de curtos circuitos ao revelar suas nuances e fissuras, o que vimos, por
exemplo, na reação de surpresa de um grupo de agentes ao relatar que tinham visto
dois “chefinhos do tráfico dormindo de conchinha”, ou ao falarem que a proposta de que
jovens gays recebessem visita íntima fazia “um nó na cabeça”.
Cabe destacar que vários agentes constantemente relataram sua reprovação
diante das demonstrações de afeto e erotismo entre os jovens, tanto nas nossas
conversas com eles, dizendo que “a “prática do homossexualismo é depravada”, “não
concordo, sou conservador”, “já estava na bíblia, é homem e mulher”, “não tenho que
ficar vendo isso aí”. Também relataram ter separado os jovens ao dizer “que isso?”,
“que viadagem é essa?”, ou achando “esquisito” que os jovens ponham a perna encima
do outro, “botem um lençol no beliche” ou “demorem no banheiro”. Em um grupo com
agentes, Fernando provocou, dizendo que as pessoas estão em privação de liberdade,
não de desejo, com o que vários concordaram, mas alguns apontaram que “podem
trabalhar esse vazamento normal, fisiológico, com os 10 mandamentos – a
masturbação-, sem necessidade de fazer o amorzinho”, “agora todo mundo vai querer

ser preso”, “o que as famílias vão achar?”. Outro jovem também disse: “ah, dona, vou

falar uma coisa. Quando aconteceu esse negócio de eu ser abusado aqui, tem uns
funcionário que ficaram me criticando aí, falando que eu dou o cú, que isto e aquilo.
Ficam falando pra todo mundo escutar!”. Um agente relatou que em uma ocasião
chamou um grupo de jovens de “vamos, moçada” ao invés de “vamos, rapaziada”, e
eles reagiram tão negativamente que “quase teve rebelião”. Os agentes também
apontaram serem “cobrados”, ao mesmo tempo, de tomarem uma atitude frente a fatos
291

que não são considerados normais, tais como ter dois jovens se relacionando entre si,
e, por outro lado, de respeitarem os direitos sexuais dos jovens. Como apontado por
Dos Santos e Nardi ao se referirem ao Sistema Prisional,

tanto os presos como os agentes penitenciários estão expostos a reiterarem os


padrões heteronormativos de masculinidades como forma de sobrevivência
perante as contingências locais da prisão. Qualquer sinal de fragilidade ou
qualquer outro atributo que não cole ao regime de masculinidade imposto pode
trazer graves consequências, como a humilhação ou mesmo a morte. O
masculino é, ao mesmo tempo, submissão ao modelo e obtenção de privilégios
(DOS SANTOS E NARDI, 2014, p.943).

Vemos assim outra dimensão dessa disputa de performatividades masculinas,


que outorga e naturaliza a responsabilidade de “botar ordem” na casa pra algo que tá
ferindo a masculinidade de todos (KAUFFMAN, 1997), criando um território comum
entre homens, como apontado por um agente:

Agente: às vezes falamos para os adolescentes: “você é sujeito homem, eu


também sou sujeito homem”, para moralizá-los.
Técnica: não gosto dessa fala, um dia um jovem ficou repetindo muito isso no
atendimento: “sujeito homem”, “sujeito homem”, e eu disse “você é sujeito
adolescente”, para tirá-lo desse lugar.
Agente: se você não gosta do jeito que a gente fala, diga como que a gente tem
que falar.
Técnica: não sei, mas acho que temos que problematizar essas coisas.

Fernando e Gabi consideraram este diálogo muito interessante, enxergando-o


como um analisador que provocou pensar a necessidade da construção de
encaminhamentos articulados frente a diversas situações. Também é importante
ressaltar de que forma os agentes e suas performatividades entram em um território de
disputa de masculinidades, disputa que tem várias forças, incluindo cumplicidade,
compreensão, conflito e comparação, entre outras, sendo dobrada e desdobrada a
partir dos dispositivos de classe, localidade, geração, gênero, sexualidade e privação
de liberdade. Sujeito homem não é uma categoria única do tráfico, embora ela seja
constantemente reafirmada dentro das suas configurações subjetivas, o que permite
que dialogue em territórios comuns de masculinidades, e ao mesmo tempo se distinga
como uma performatividade concreta e digna de ser moralizada.
292

Deste modo, escutamos que, mesmo abrindo as possibilidades para relações


entre os jovens, eles devem “se preservar”, ou “se moderar”, ou seja, não devem fazer
essas mostras frente aos agentes por “respeito” a eles. Um diretor disse que, apesar de
ter muito preconceito entre os agentes, para eles – diretores- não tinha problema, mas
eles tinham que pensar “na questão da segurança, a higiene, o respeito e a
preservação”. Eu apontei que eles se preservavam, se cuidando entre si, mas ele
respondeu que “só entre eles, eles não se preservam com o resto da unidade”. Alguns
agentes afirmaram que para eles é melhor que as práticas fiquem mesmo escondidas e
silenciadas. Emiliano, evidenciando a intensidade da noção de “respeito”, apontou:

Emiliano: tipo assim, só não pode deixar o agente pegar, senão vai falar que é
falta de respeito com ele, aí vai querer agredir nós, aí vai fazer vários negócio
Jimena: mas isso chegou a acontecer?
Emiliano: não
Jimena: eles nunca implicaram com vocês?
Emiliano: não, o diretor sempre me orientou, “quer fazer, não deixa o agente
pegar, se o agente pegar, eu to liberando dar tapa na cara, ein? Eu to
liberando”, e eu “caraca, isso é brabo” e ele “eu me ponho em teu lugar, eu sou
adolescente, eu tenho que me dar ao respeito, se o funcionário, chega no
alojamento, e pega eu trepado com outro, você vai fazer o que? É uma falta de
respeito”. E eu, tipo assim, “tem que se dar ao respeito pra ser respeitado, pode
ficar tranquilo que isso não vai acontecer não” e ele “se acontecer, você já sabe
como que vai ser o procedimento”

Escutamos outras falas nesse sentido, solicitando que o contato entre dois
homens fosse contido, e sugerindo que as normas do tráfico eram nesse tema algo
positivo, ou dizendo que ““tem que se segurar aqui dentro, lá fora tem tanta menina!” e
que “eles ficam sem coisas muito mais importantes”. Novamente, vemos de que forma a
instituição-estabelecimento, que pretende desmontar a o Bandido, reifica ao mesmo
tempo a cisheteronormatividade como parte fundamental do agenciamento dominante
da masculinidade. Cabe apontar, no entanto, que não são só os agentes, que estão
mais em contato com os jovens nos alojamentos, que apontaram a necessidade da
contenção de práticas ou expressões homossexuais. Igualmente, como apontado por
um docente que trabalha em escolas com jovens, essa lógica de contenção da
sexualidade acontece nessas instituições-estabelecimento também.
293

4.8 Sujeito-homem-pai

Adán: Eu sei que se eu fizer, vou ter que bancar, eu vou bancar,
eu sou sujeito homem e vou, como, não vou ser esses caras que
às vezes, como, engravida a mulher, deixa o filho pra lá, fala que
não é dele. É um bagulho doidão, esses cara aí. Aí o filho nasce
sem pai, o bagulho é foda.

Nesta fala, Adán considera o fato de assumir a paternidade como mais uma
dimensão do ser sujeito homem. Bernardo também fala nesse sentido, revelando uma
série de tensões entre as performatividades masculinas no que diz respeito à
paternidade:

Bernardo: ah, eu não tava nem preparado pra esse negócio não. Eu não sabia
que ela tava grávida não, depois de um certo tempo que eu tava roubando
bastante, que como tinha esse problema que eu brigava bastante com ela, eu
ficava cinco, seis dias fora de casa, sabe? Roubando, traficando. Aí depois
quando eu fui chegar na boca o cara foi falar comigo, um menor que trabalha lá
pra mim, foi falar “po, tua mulher tá grávida”, “tá grávida de quem?”, “de tu, po”,
aí eu falei “tá maluco que a mulher tá grávida de mim?”. Eu pensei que ela não
tava grávida, falei que era até sacanagem, filha, “po, tá maluco? É meu filho?”.
Aí depois eu, “po, será que é meu mesmo?”. Aí como, nós for fazer um teste lá,
na moral, saiu um papel, “ah, o filho é teu, filho”, e mesmo que não fosse meu
eu criava, porque tipo assim, às vez, quando eu cresci minha mãe falou assim
comigo: “meu filho, nunca tenha filho antes do tempo, mas se você tiver, banca
o seu bagulho, cria seu filho”. Tipo assim, pai não é o que faz, pai é o que
cria. Fazer é fácil, criar não é fácil, agora o que tem que fazer é criar. Mesmo se
não fosse meu, filha, ia criar do mesmo jeito, filha. Porque existe o sofrimento
da mãe, o sofrimento da criança. Não vou deixar a criança passar fome. Não
vou deixar. Ainda mas ela, po, tirei a mulher daquela vida ali, hoje em dia a
mulher tem casa, tem trabalho
Jimena: ela trabalha com que?
Bernardo: ela trabalha também em casa de família, sabe? Mas ela ganha o
dinheiro dela, ela é carteira assinada. Ganha o dinheiro bem, dá pra sustentar a
criança agora. Agora, o dinheiro que vem, vem de mim também, sabe? Eu
coloco o que, 600, 700 reais, pra ela lá.
Jimena: e agora que você tá aqui, alguém tá dando esse dinheiro pra ela?
Bernardo: tá sim, pela minha postura na boca de fumo
Jimena: e pra você o que é criar, além de dar dinheiro?
Bernardo: ah, tem que tar do lado da criança, que é o seu crescimento, filha.
Tem que ficar. Porque um filho sem pai vai chegar... porque tem gente que fala
assim, “ah, você tem pai”, mas se seu pai te deserdou, se o pai não quis você,
agora tu já cresce com “po, meu pai não me quis, aí já fica com aquele ódio”, aí
vai que um dia eu volto com meu filho lá e meu filho fala “ah, você não é meu
294

pai, você não quis ficar comigo”, sabe? Eu já não. Eu to nessa vida aqui, mas
posso mudar. To nessa vida aí pra ficar tranquilão.
Jimena: não, ela é daqui. E aí na gravidez você ia no médico, essas coisas?
Bernardo: pré-natal, essas coisas assim, eu não fui
Jimena: e durante o parto, você tava?
Bernardo: eu não tava nessas coisas aí não
Jimena: mas você tava no hospital?
Bernardo: tava
Jimena: e o que você sentiu quando viu?
Bernardo: ah, eu vi, minha filha, eu olhei, po, será que eu vou tar pronto pra
essa responsabilidade?, só vi a criança, aí ficou passando na minha cabeça
várias coisas, “posso criar, ou posso ir embora, deixa-la pra trás”. Mas tipo
assim, a mulher já como, a mulher já fazia programa, vai criar o filho sozinha?
Aí é fogo, vai jogar o filho no internato, internar o filho dela, não conseguir,
deixar o filho pra trás porque não pode criar, aí a criança crescer e não ter o pai
e não ter a mãe. Agora, eu pudendo ajudar, ajudo mesmo... pra mim foi, um
impacto pra mim

Em um grupo, na atividade que propunha fazer um personagem de papelão


(Anexo B), a negociação a respeito da vida do personagem foi interessante:

Benjamin: O cara trabalha num banco, é gerente e trabalha com dinheiro


Giovanni: Mas não pode ser o Itaú porque agora não tem dinheiro.
Benjamin: Então é um funcionário da CSN, ele construiu isso para a vida dele,
ele coordena a parte de liberação do ferro
Gabi: Como ele chegou ali?
Benjamin: Fez um curso técnico de Petróleo, gás e logística. Pode ter uma
tornozeleira porque já foi preso
Giovanni: Não, isso vai estragar ele
Benjamin: Então passou pelo Sistema Socioeducativo na adolescência dele, se
envolveu no latrocínio porque era viciado. Ficou três anos, dos quinze aos
dezoito. Saiu de lá com a cabeça modificada e deu um outro rumo na vida. Já
na rua, conhece uma mulher e se apaixona.
Jimena: É a noiva? Tem uma aliança desenhada aí
Benjamin: sim. Mas quero complicar mais a história. Ela era uma mulher que se
vende, e não cuidava bem da criança que tiveram, então ele decidiu pegar a
criança e cuidar dela sozinho. A criança é um menino que atualmente tem
catorze anos. O cara tem quarenta.
Gabi: tem o cabelo raspado?
Benjamin: não, é careca pela vida difícil que levou. Também tem umas rugas na
testa. Ele e o filho moram sozinhos numa casa muito legal perto da CSN, no
interior. O cara passa a história de vida para o menino, para o menino não
repetir os erros dele.
Jimena: o que que ele faz além de trabalhar?
Everardo: joga videogame
Benjamin e Giovanni debocham, ele não é moleque
Everardo: é para estar com o filho
Benjamin: ah, tá bom
Giovanni: gosta da balada, do baile funk, só depois que o filho dorme, porque aí
não tem mais que pagar a babá.
Gabi: como é a vida sexual dele?
Giovanni: pega algumas na balada, mas são interesseiras porque ele parece ter
dinheiro, e ele usa a aliança para espantar elas, porque não é noivo de
verdade.
295

Everardo: ele pula o muro para visitar a vizinha à noite.


Benjamín: e ele está interessado na professora do filho, coisa que o filho não
curte muito, porque nenhum filho gosta.
Jimena: e esse brinco na orelha?
Benjamin: pois é, eu que desenhei, mas não é bom, vai perder a postura da
empresa.

Este relato revela de que forma as performatividades masculinas vão acionando


as dobras discutidas na pesquisa, incluindo de que forma os dispositivos de gênero,
sexualidade, classe, localidade e geração vão se dobrando ao pensar trabalho,
privação de liberdade, relacionamentos, corpo e paternidade. Desta forma, um tema
que também atravessa a discussão das performatividades masculinas e das trajetórias
juvenis é a paternidade, no sentido de pensar quais as dimensões da paternidade são
produzidas e produzem certas performatividades, e quais as modificam ou interpelam.
As trajetórias na “vida do crime” e as passagens pelo Degase também marcam e são
marcadas por essas relações.
Como nos foi apontado desde o início do campo, uma grande parcela dos jovens
do CAI é pai, em geral em torno de 10%. Nesse universo, existe diversidade no que
tange ao contato com as crianças, à continuidade da relação conjugal com as mães das
crianças e à recepção de visitas das crianças. Inclusive, alguns têm filhos com mais de
uma parceira, e a relação com cada uma e com as crianças é diferente.
Manoel, de 16 anos, disse que “devemos respeitar as mulheres, pois precisamos
delas para cuidar das crianças”, o que sugere a relação da paternidade com a
conjugalidade. Leonardo disse que não via mais a filha, pois tinha se separado da
companheira, mas que não estava “nem aí”, pois nunca estava em casa e não tinha a
prática de cuidar da filha.
Ao mesmo tempo, uma profissional contou que a mãe da filha de um jovem não
estava mais levando a criança para a visita, porque estava namorando outro homem, o
que estava deixando-o muito chateado. Diante disso, a profissional ligou para a mãe do
jovem e pediu para entrar em contato com a jovem, dizendo que ao ter registrado a
criança, o jovem tinha direito de receber sua visita.
Alguns jovens relatam ter tido filhos/as com outras parceiras sexuais e assumi-
los/as enquanto estavam em uma relação estável com outra mulher, o que às vezes
gera conflitos com as companheiras. Uma profissional falou que em algumas ocasiões,
296

as mulheres não sabem da existência de outros/as filhos/as do jovem, o que exige


negociações para as visitas familiares. Em outro momento, um jovem nos relatou que
em uma visita, a companheira levou uma criança, filho dele com outra mulher, da qual
ele não tinha conhecimento. Assim, a dobra da passagem pelo Sistema acaba
reconfigurando as relações filiais e conjugais.
Alguns jovens expressam uma emoção e um orgulho de ter filhos/as, como
Marcial (16 anos, branco), que, em uma atividade em grupo, virou a foto da mulher
grávida e disse "caramba, tinha que cair comigo, porque vou ser pai!", dizendo que
tinha recebido a notícia dois dias antes e se emocionou muito quando soube: “até”
chorou, "porque é meu filhote, né!". Marco disse que ele deliberadamente deixou de
usar camisinha porque queria ser pai. Carlos Iván ficou extremamente impactado
quando eu falei que eu não quero ter filhos/as, especialmente por eu ter “olho azul”.
Carlos Lorenzo e mais dois jovens em uma atividade também ficaram muito perplexos
quando afirmei isso. Vemos assim uma naturalização do desejo de procriar, muitas
vezes mais ligado a uma transcendência biológica do que a uma experiência de vida,
como expressado por Jesús: “depois que eu tomei o tiro, que eu fiquei com isso na
mente, que eu quase morri, quase fiquei paraplégico, aí fiquei com medo de não poder
mais fazer filho, aí eu como, fui lá e fiquei com isso na mente, fazer um filhozinho nela”.
Assim, deixar sua marca no mundo é visto como comprovação da virilidade e
valorização da performatividade masculina. Como apontado por Gary Barker, “talvez a
determinação-chave para se alcançar a masculinidade na maior parte do mundo é
conquistar algum grau de independência financeira, arranjar um emprego ou algum
rendimento e, subsequentemente, formar uma família” (BARKER, 2008, p. 35). Assim,
essa dimensão aparece em muitos momentos como mais importante do que o vínculo
cotidiano. É por isso que muitos relataram a importância de fazer o exame de sangue
para comprovar que a criança era efetivamente deles159 e, aí sim, “assumir e dar o
nome”.
Por sua vez, vários jovens relatam não ter participado do processo da gravidez e
nem do cotidiano das crianças, não apenas por estarem presos, mas porque “na vida

159
Um jovem disse para Anna que uma mulher diz que o filho dela é dele e ele não acredita, e que ela
disse que “eu sei pra quem eu abro as pernas”.
297

que nós leva não dá tempo”, como expressado por Mauricio. Alguns deles têm a noção
de que vão morrer cedo e por isso querem ter uma vida sexual precoce e ativa, avaliou
uma profissional. Como apontado por Orlandi e Toneli (2005), a naturalização da
maternidade, que inclui a atribuição de todos os direitos parentais, “corresponde à
essencialização da não-paternidade do homem, sendo estes dois processos
interdependentes, não complementares, nem fixos” (ORLANDI; TONELI, 2005, p. 257).
Se destaca a responsabilidade da parentalidade e o seu destino como designados às
mulheres (NASCIMENTO; SEGUNDO; BARKER, 2011), noção reproduzida
constantemente na sociedade através das instituições-organização. Lembrando o
apontado por Carlos Lorenzo ao se referir a uma jovem grávida como estragada, é
importante pensar de que forma, no caso das mulheres, a parentalidade marca uma
passagem obrigatória para o ser “adulta”, enquanto, no caso dos homens, traz um
status de “homem” que pode ser acionado ou não.
As técnicas relatam que a maioria dos jovens não tem “pai presente”. Também
percebemos uma presença maior de mulheres na visita familiar, o que nos lembra a
discussão sobre a responsabilização das mães nas trajetórias dos jovens. Assim, por
um lado vemos uma produção de determinados modelos, o que corrobora o que
imaginam para suas próprias paternidades, apesar de muitas vezes criticar esses
modelos, como relatado por um profissional, que escutou o caso de um jovem que
“reclamava muito de que o pai fez questão de botar o nome todo no registro, mas nunca
quis lhe conhecer”. Ele também disse que “muitos estão revoltados com o pai,
justamente por essa violência ou ausência”.
Percebemos também, em algumas falas, uma diferença entre ter filhos e filhas.
As filhas devem ser cuidadas pelas mães, para deixá-las bonitinhas e escolher roupas
para elas. Também, elas “podem dar muito trabalho”, segundo Carlos Iván. Jonas disse
que “preferia menino, mas eu gostava de uma menina também”. No caso dos filhos, a
perpetuação da performatividade diz Jesus ao falar sobre o que queria fazer com seu
filho: “ahhh, sei lá, dar um rolé com ele, jogar uma bola, soltar uma pipa, ensinar as
coisas que não deve pra ele, que eu já passei, que eu vou ensinar, vou falar pra ele,
não vou esconder dele, “filho, já fiz isso, não é bom, já quase morri, já passei por várias
dificuldades, e não é maneiro, é melhor você pedir pra mim, falar comigo o que tá
298

precisando, vou dar um jeito, do que fazer o que eu fiz na vida”. Quando, em um grupo,
Jose Angel disse que se tivesse um filho gay, o mataria, José Eduardo divergiu,
dizendo que se ele tivesse um filho gay ou uma filha lésbica, “nunca ia bater, ia tentar
falar com eles, mas se decidirem continuar, tudo bem”.
Podemos também fazer uma análise do que, em diálogos com Anna e Marcos
Nascimento, podemos chamar de “paternidade ostentação” – e dessa forma
visibilizando o atrelamento entre os sujeitos-homem-, no momento em que os jovens
destacam de que forma seu envolvimento nas facções garantem que o jovem possa
oferecer certo status econômico às crianças, como apontado por Bernardo: “meu filho
nunca faltou nada com meu filho, sempre teve roupa de marca, tipo, fazer o que, filha,
uma hora a casa cai”. Foram apontados por profissionais casos de jovens pais que
voltaram para o tráfico para sustentar as famílias, o que os coloca em uma posição
diferente em relação ao exercício parental que optaram desempenhar.
Isso não significa que eles sejam conscientes dos gastos permanentes que
implica uma criança, como foi recorrentemente apontado por Anna e como sinalizou
Leonel (18 anos, negro) ao relatar que, ao expressar o desejo de ser pai para a sua
mãe, ela tinha falado que “não é tão fácil assim, tem que cuidar, comprar os bagulho
pra ele...”. Nesse sentido, um jovem ficou muito orgulhoso de ter três filhos a caminho,
mesmo que não os conheça por estar no Degase. Quando perguntamos o que faria
com três crianças, ele disse que compraria um carrinho com três lugares. Outro jovem
falou para Anna que queria dar para o filho “o que eu não tive” e que “queria ter filhos
para cuidar”. Anna perguntou como faria para sair à noite, e ele disse que a mulher dele
ou a sogra fariam isso. Anna perguntou o que seria cuidar, e ele disse que seria “levar
na pracinha, comprar coisas pra ele”.
Isso aparece no momento em que, apesar de serem cientes da instabilidade de
suas vidas, e por isso, como alguns relataram, se afastam das suas famílias para não
pô-las em risco, sobreviver ou não ser preso para incluir a paternidade ativa no seu
projeto não apareceu nas narrativas antes de entrar no Degase. Alguns pensaram essa
questão estando privados de liberdade, reparando de que forma essa nova situação
vulnerabiliza suas famílias nesse sentido, tendo que recorrer às famílias de origem,
especialmente trabalhadores/as que não estão envolvidos nessa vida instável, para
299

cuidar e sustentar companheiras e filhos/as. Destarte, enquanto a ostentação é do


Bandido, o sustento é do trabalhador, e o cuidado é responsabilidade da mãe da
criança e, em ocasiões, da mãe do jovem também.
Assim,

A paternidade é referenciada como constitutiva da ideia de honra: ela parece


reforçar e consolidar o valor da função de provedor, fazendo paulatinamente
“nascer” o sentimento de responsabilidade. Um grande silêncio permanece
sobre a paternidade enquanto sentimento na relação com os filhos. Este
silêncio está inscrito na redução da paternidade ao valor do provimento e ao
poder de controle que dele deriva (MACHADO, 2004, p.53).

Igualmente, na atividade da árvore genealógica, um jovem apontou que a pior


coisa que poderia acontecer é “que meu filho chame outro de pai”, revelando uma
noção onde o nome e o sangue, como sustentadores da sua virilidade, são mais
importantes do que o processo concreto de criação de um filho, que seria
responsabilidade da mulher. No entanto, alguns divergiram desse posicionamento,
relatando relações muito significativas com padrastos ou companheiros das avós, que
“os cuidaram como se fossem seus”. Igualmente, duas profissionais relataram casos de
jovens que assumiram os cuidados de crianças que não eram seus/uas filhos/as com
mulheres mais velhas, o que para elas seria um ato de responsabilidade que muitas
vezes pessoas adultas não têm.
Igualmente, a distância ou ausência dos pais, como foi apontado anteriormente,
é um processo atravessado pelas instituições-forma do racismo, do machismo e do
classismo, que ao tempo em que encarcera, explora e mata os homens, não permite
que experimentem experiências gratificantes no cotidiano da paternidade (FIGUEROA-
PEREA, 2013). Contudo, existem vozes dissidentes, que assinalam que moram com o
pai ou que, mesmo estando separados, eles os encontram muito. Também observamos
muitos homens na visita familiar, inclusive alguns idosos, o que também foi reconhecido
por elas como um fenômeno crescente e que confirmamos nas entrevistas com os
jovens.
Alguns enunciam, inclusive, os pais como referência de homem, no momento em
que “apesar de ter dado maus passos, hoje é um homem de bem”, ou como
expressado por Jhosivani: “quero ser igual meu pai, porque ele já passou por essa vida,
300

aí hoje em dia ele mudou bastante, então eu queria ser igual a ele”. Igualmente, como
visto no trecho acima no desenho do personagem, este construiu uma paternidade mais
presente e ativa, inclusive sem cônjuge, como parte de uma “nova vida”, “longe do
crime”, o que não fez com que parasse de frequentar festas e se relacionar
sexualmente.
Alguns jovens falaram que acompanharam a gravidez, por exemplo, indo com as
mulheres na ultrassonografia e/ou no pré-natal, comprando comida para as grávidas,
decidindo o nome da criança, trocando fralda e dando banho nas crianças. Nesse
sentido, também escutamos alguns relatos de participação ativa na criação de
irmãos/ãs mais novos/as, incluindo cozinha, cuidado e proteção de um padrasto
violento.
Assim, vemos a paternidade como um motivo para sair do tráfico ou da vida do
crime, como visto também por Gary Barker (2008) e por Lia Zanotta Machado, numa
reinvenção da masculinidade que não cultua mais a agressividade, onde “ser pai o
seduz para uma nova forma de reconhecimento, a posição de homem” (MACHADO,
2004, p.68).
Bernardo aponta:

Bernardo: Tinha vez que deixava até entrarem com meu filho em casa. Aí é
fogo. Uma casa, que o pai não trabalha... tipo assim, um local que o pai não
trabalha de administrador, não sabe administrar a vida da família, filha, acaba
sendo um ambiente... um ambiente ruim. Pra me criar uma criança, o pai
traficante, o filho dentro de casa, recém-nascido, no tráfico de drogas é questão
difícil, né, do filho crescer, arrumar um trabalho, um conhecimento da vida. Aí
agora que tô aqui tô pensando mais em, como, ficar mais do lado do meu filho
Jimena: e você acha que mesmo separando da mãe dele você conseguiria ficar
por perto?
Bernardo: é. Mas também, se a mãe quiser criar ele, filha, por mim tranquilo,
pelo menos, tipo assim, com, foi isso que aconteceu, tipo ainda não tô em
condição de ter essa responsabilidade toda, mas já que já veio até o mundo,
que o filho veio até o mundo, porque não vou criar ele não? Tem que criar,
mesmo ele estando com a mãe, tem que pedir visita pro meu filho, tranquilo
Jimena: ele vem pra cá visitar?
Bernardo: não, não gosto que ele vem pra cá não, porque aqui é um ambiente
muito pesado, muito colocado aqui, filha, imagina, meu filho agora ele tem dois
aninho, quando ele estiver fazendo cinco, que ele já fala já “papai”, “mamãe”,
alguma coisa. Imagina ele com cinco, seis aninhos, vindo pra cá me visitar?
Como, um ambiente desse, vários cara preso... é fogo, filha, não quero que ele
passe uma situação dessa daqui. Quero sair daqui e mostrar diferente pra fora
301

Na atividade da Semana do Bebê, vários jovens falaram da importância de “dar


um bom exemplo” para os filhos. Israel disse que quando sair do Degase queria
“arrumar uma namorada, quero fazer um filho”, para “pra me... focar em outra coisa.
Porque se não tiver uma coisa pra me focar, eu vou voltar a fazer besteira de novo”.
Carlos Iván disse:

senti foi vergonha de mim mesmo, por causa de, se meu pai morreu nisso, eu vi
minha mãe morrendo nisso também, e eu entrar nisso, eu mesmo assinando
meu próprio relógio.. falando assim... eu vou morrer, mas, eu não tinha nada a
perder mesmo, mas agora eu percebi que tenho sim uma coisa a perder: tenho
a minha irmã mais nova, tenho um irmão mais novo, sou o mais velho dos
irmão, tenho que dar um exemplo, tenho minha tia, tenho vários tio, que não é
do meu sangue, que me acolheram, por causa que a minha tia, ela é avó da
minha irmã, mas não é a minha avó, entendeu? Minha mãe teve um caso com o
filho dela, com o filho dessa mulher

Jesus disse “podia estar morto, podia estar com meu filho. Meu filho não poder
ter o pai verdadeiro dele, eu não poder, como dar um rolé, que eu gosto, com a família,
poderia estar aproveitando a família. Pensei nisso, quando sair daqui aproveitar a
minha mãe, dar um rolé com a minha mãe, com meu filho”. Bernardo relatou as
negociações no estabelecimento a partir desse desejo, revelando de que forma a
experiência na dobra de passagem pelo Degase também é perpassada pela
paternidade:

Bernardo: já passei pelo convívio já


Jimena: e porque você desceu?
Bernardo: eu desci pra cá porque, tinha um pique da cadeia de maior, aí vim
pra baixo pra ficar mais tranquilo, pra eu ficar mais na medida certa, pra me sair
daqui, porque eu tenho filho na pista, tenho mulher na pista também. Quero
ficar tranquilo, pra me sair daqui mais rápido possível.
Jimena: mas você pediu pra descer, ou eles te mandaram?
Bernardo: eu que pedi pra descer. To com saudade do meu filho. Só não sei se
vou ficar com a minha mulher na pista não, porque sempre aparece coisa
melhor, né?

Adán também disse:

eu falo que não tenho nada a perder, mas eu tenho coisa pra perder, eu não
tenho coisa pra perder, mas tenho vó, já perdi meu pai, posso perder minha
mãe se a minha mãe [atualmente presa por tráfico] não ficar tranquila, então eu
tenho alguma coisa a perder. Minha avó também pode me perder, se eu não
ficar tranquilo
302

O que já implica outros deslocamentos. Julio Cesar disse “quando eu sair quero
dar valor para a minha família”. Jorge Antonio disse “aqui que parei pra pensar, meu pai
não me botou no mundo pra roubar, minha mãe me botou no mundo pra trabalhar”, e
Julio disse que vai sair do tráfico porque “não quero dar mais dor de cabeça pra minha
mãe”. Assim, esse tipo de falas se referia não apenas aos/às filhos/as, mas também ao
resto das famílias.
Percebíamos, nesse sentido, demonstrações efusivas de afeto e intimidade nas
visitas familiares, assim como um cuidado mútuo, incluindo, por parte das famílias, uma
mobilização para comprar as coisas para levarem aos jovens, os deslocamentos pela
cidade, as negociações no emprego e, em alguns casos, intercalando visitas com
outros/as familiares no Sistema Prisional, enquanto os jovens elaboram artesanatos
para elas. Isso nos fez pensar no tipo de relação que os jovens tinham antes da dobra
da passagem pelo Degase e se essa dobra tinha suscitado mudanças na relação.
Nesse sentido, é importante pensar que, a partir do apontado anteriormente a
respeito das noções de adolescência como caracterizada por uma instabilidade e
irresponsabilidade, a parentalidade nesse período, quase sempre pensada como
restringida à maternidade, tem sido compreendida como um problema como se a
instabilidade e a irresponsabilidade não pudessem também atravessar vidas adultas e a
parentalidade nesses casos fosse sempre planejada e desejada por ambas pessoas
(ORLANDI; TONELI, 2005; BARKER, 2008).
Nesse sentido, é interessante destacar o trabalho realizado na Semana do bebê,
onde profissionais focam na construção de paternidades com os jovens, por exemplo,
propondo fotografias deles com brinquedos para criança, fomentando, através da
apresentação estética de si, o exercício de outras performatividades e
responsabilidades. Também foram relatadas ações específicas para garantir que os
jovens pudessem registrar as crianças ou que recebessem as visitas delas - às vezes
inclusive para conhecê-las, pois haviam sido apreendidos antes delas nascerem-,
apesar dos obstáculos burocráticos e jurídicos e, em alguns casos, do desejo das mães
das crianças de se afastar dos jovens. Assim, ao invés de reprovar a “paternidade
303

adolescente”, esse tipo de iniciativas busca construir outros significados para ela e
aproximar os jovens de uma construção desses vínculos.
Nos parece que isso pode ser uma semente para começar a desestabilizar as
instituições-forma, mesmo que, como apontado anteriormente, a entidade “família
desestruturada” seja um processo histórico extremamente complexo que não pode ser
enfrentado individualmente. Nesse sentido, o que insistimos com o exercício da árvore
genealógica, que gostamos de chamar de rizoma genealógico, usado na Semana do
Bebê e no segundo Curso com profissionais, é na apresentação da multiplicidade de
configurações e trajetórias familiares160, e de que forma consideramos que a abertura
para a diversidade e o questionamento à família tradicional, sustentada por noções
burguesas, machistas e cisheteronormativas, pode estar vinculada a uma busca de
relações igualitárias, responsáveis, justas e livres.
Assim como a paternidade dos jovens é utilizada como analisador de
intervenções com eles, novamente podemos pensar em como a visita íntima e a
implementação do preservativo poderiam ser usadas nesse sentido, em palavras de
uma profissional, “trazendo a dimensão humana, a sexualidade, o afeto, quebrando a
noção de ‘Bandido menor’, porque com ele ainda não se trabalharam essas questões
amplamente”. Na “casa dos homens”, as modalidades de sujeito homem se dobram de
formas diversas. A ostentação não pode ser sustentada da mesma forma, a geração é
recolocada nas relações, a vivência da paternidade é modificada, as práticas sexuais
são reguladas de maneiras distintas, as enunciações tomam outros contornos.
Nesse contexto, como apontado por outra profissional, “quem não assume essas
discussões está perdendo a oportunidade como socioeducador, de preparar um menino
para viver em sociedade”. Assim, as performatividades masculinas e suas dobras,
focando nos direitos sexuais e direitos reprodutivos, poderiam ser um dos eixos do
trabalho da instituição-estabelecimento, entendendo como elas vão se compondo nas
trajetórias juvenis em formas de agenciamentos coletivos. Mas, para isso, as pessoas
que circulamos nesse estabelecimento devemos também indagar as nossas

160
Foi interessante, por exemplo, ver rizomas tão grandes que brincamos com os jovens falando que
eram “florestas genealógicas”, mostrando a amplitude das suas famílias e os múltiplos vínculos e
mobilidades. Já outros, relatavam ter pouquíssimos vínculos familiares, o que fazia com que morassem
na rua. Também foi interessante ver a forma em que cada jovem compunha a produção, desenhando
figuras e linhas diversas e escrevendo nomes ou relações.
304

performatividades e de que forma estamos reproduzindo modelos nocivos e violentos


ou propondo rotas de transformação.
Diante deste vasto campo de tensões, definições e interlocuções, foram
inúmeros os processos de violência, mas também observamos resistências e as táticas
de contestação.
305

5 A DOBRA QUE CORPOREIFICA

Israel: ah, já briguei, os caras já pichou a minha cara de spray, no


meio do pátio. Um moleque levantou pra cima de mim primeiro, já
fui, pá
Gabi: porque?
Israel: ele tava me chamando de otário, falando que eu escutava
visita dos outros. Sendo que eu... eu fiquei irado, ne? Na hora eu
falei “eu faço isso não”. E aí ele levantou e pum!

Nessa fala, em que Israel relata um encontro entre ele, outro jovem e agentes,
vemos de que forma o corpo dobra e é dobrado nas performatividades, trajetórias e
relações dos jovens do CAI, pois “o corpo é em si mesmo uma construção, assim como
é a miríade de “corpos” que constitui o domínio dos sujeitos com marca de gênero”
(BUTLER, 2003, p.27).
Assim, o corpo entra nesta pesquisa como um eixo fundamental. Miguel Vale de
Almeida aponta que

a relação entre feminino e masculino não é, na avaliação moral, como as duas


faces de uma moeda mas sim assimétrica, desigual. Trata-se de uma forma de
ascendência social que se reproduz, pois, na base de um processo de
naturalização. O corpo é o lugar investido simbolicamente para confirmar esta
ontologia. [...] Daí ser necessário um estudo do corpo socializado e subjectivado
e dos processos de incorporação, de uma forma que ultrapasse o estudo das
representações do corpo ou do corpo como receptáculo passivo do poder, mas
sim como “base existencial da cultura” (VALE DE ALMEIDA,1996, p.163).

O corpo e suas dobras são entendidos aqui como protagonistas na produção e


materialização de performatividades masculinas e trajetórias juvenis.
306

5.1 Corpo de menor

Paulo Malvasi analisa

as contradições entre o objetivo institucional de evitar a reincidência de atos


infracionais, auxiliando o adolescente a tornar-se um cidadão autônomo, e as
narrativas e expressões corporais dos adolescentes durante o cumprimento das
medidas [...] Aponta ainda que “o desempenho na vida cotidiana de um “estilo
bandido” revela formas de resposta ao discurso dominante no Sistema
Socioeducativo, contexto que indica o paradoxo do Estado brasileiro, que
garante uma democracia formal enquanto viola direitos civis (MALVASI, 2011,
p.156).

Várias denúncias de violência física exercida pelos agentes ou entre os jovens,


facilitada ou silenciada pelos agentes, faz parte da encarnação dessa subjetivação. O
autor acrescenta:

a aposta nas medidas socioeducativas como um mecanismo de proteção e


promoção é um grande desafio para a gestão da política de direitos ao
adolescente e para uma pedagogia emancipatória. Como será possível levar a
cabo o projeto de uma “pedagogia da presença” em um cenário de serviços
burocráticos em que o ideal da punição se sobressai?” (MALVASI, 2011, p.160).

No relato que inicia esta capitulo, Israel evidencia a tensão do encontro dos
corpos no estabelecimento, onde a força tem uma dimensão importante161, razão pela
qual a compleição física é um critério oficial de divisão dos alojamentos e reivindicada
por um profissional, que diz que deveria ser mais relevante do que, por exemplo, as
facções. Além disso, vemos muitas dimensões corporais atravessadas pela experiência
no CAI, ou inclusive antes de chegar nele, a exemplo dos jovens que chegamos a ver
com feridas e/ou complicações de tiros, materializando as situações de risco que eles
vivem na pista.
Mudanças corporais grandes são observadas nas passagens pelo Degase,
especialmente nos jovens que cumprem medidas socioeducativas longas, assim como
os que entram muito novos, e ganham peso e altura, assim como é possível observar o
161
Estes embates acontecem também “na pista”, como relatado por Bernardo, que sofreu “bullying” na
escola por ter cicatrizes na cara, e anos depois, quando entrou no tráfico, a facção possibilitou que ele
“corresse atrás do prejuízo”, matando esses jovens.
307

crescimento de pêlos no corpo e no rosto e mudanças na voz. Muitas vezes passam


encarcerados esta fase de transformação acelerada de seus corpos. Observamos
também, nas atividades no CAI e nas outras unidades, que a falta de espelhos afeta a
passagem dos/as jovens pelo Sistema, sobretudo diante das mudanças que os corpos
vivenciam em pouco tempo. Quando ao acaso se deparam com um espelho, o espanto
costuma ser grande.
É relevante também pensar uma série de questões que atravessam a saúde dos
jovens cujas performatividades masculinas foram produzidas a partir de agenciamentos
violentos e de pouco cuidado de si, em um estabelecimento onde, como já foi apontado,
muitos jovens acessam serviços pela primeira vez, ao tempo em que reitera práticas
múltiplas de marginalização desses jovens, colocando-os em situações de risco (DOS
SANTOS; NARDI, 2014). Nesse sentido, foi-nos relatado que alguns jovens de
trajetórias extremamente empobrecidas tiveram acesso pela primeira vez a vacinas,
assim como a atendimento psiquiátrico e odontológico no Degase162.
A proibição do uso de drogas ilícitas como cocaína, maconha, crack e loló e
licitas como álcool e tabaco, presentes no cotidiano dos jovens na pista, muitas vezes
desde a infância, provoca mudanças grandes nos corpos e comportamentos dos
jovens, cujas famílias “os desconhecem quando vêm, porque só conheciam ele doidão”,
relatam profissionais.
A eliminação do tabagismo no Degase, mesmo com um receio inicial de que os
jovens “quebrassem a casa”, foi relatado com orgulho, uma ação conjunta e articulada
entre equipes, coordenadores de plantão, gestões das unidades, coordenação de
saúde e municípios, incorporando as famílias, que em alguns casos levavam os
cigarros para os jovens. O cigarro também é um elemento de disputa de

162
Uma das mudanças de paradigma do Sistema Socioeducativo atual é a perspectiva da linha do
cuidado e o foco na educação em saúde, com os eixos principais: saúde mental, saúde sexual e
reprodutiva, cuidados integrais e saúde bucal. A possibilidade de dar continuidade à garantia desses
direitos para os jovens egressos do Sistema foi apontada como uma preocupação de profissionais,
incluindo o atendimento de jovens vivendo com HIV e sífilis, desafio para o estabelecimento que
enfrenta deficiências para garantir testagens, vacinas e tratamentos por conta da precariedade dos
municípios – implicando tempos, burocracias e negligências. Esta situação de precariedade fez mais
profícua a articulação com a Secretaria de Saúde, que promovemos através do segundo Curso, e com
a qual algumas profissionais se mostraram ávidas em partilhar experiências e fazer demandas de
serviços. A Secretaria também destacou grande dificuldade ao longo dos anos para chegar a esse
espaço.
308

masculinidades, visto que os agentes fumam na frente dos jovens, marcando assim
uma distinção de poder.
O uso de medicamentos para dormir é recorrente, para lidar com ansiedades que
não podem ser trabalhadas de outra forma, vide a saturação das/os psicólogos/as e da
falta de oportunidade de desenvolver atividades artísticas e esportivas. Estes
medicamentos também são usados como moeda de troca, para tentar suicídio ou
mesmo manterem-se alterados, como presenciamos algumas vezes. No entanto,
alguns apontavam um cuidado em não ficar dopados para que os agentes não
“fizessem algo com eles”. Há grande risco no uso abusivo de drogas lícitas como mais
uma inflexão do Sistema, que ao não conseguir oferecer alternativas, medicaliza,
atualizando “estratégias biopolíticas no controle da população e na disciplinarização dos
corpos” (DOS SANTOS; NARDI, 2014, p.936) - o que não significa que jovens que
precisem de tratamento psiquiátrico ou para dependência química não devam ser
atendidos.
Muitos mecanismos de disciplina dos códigos (inter)institucionais passam pelo
corpo, delimitando lugares e performatividades, em uma engrenagem em que
mecanismos produtivos do poder coabitam em uma fronteira borrada com seu ângulo
repressivo e centralizador, o que não deixa, por sua parte, de fazer um grande labor na
regulação e produção de sujeitos. São frequentes abuso, opressão e coerção, muitas
vezes através de práticas concretas de punição executadas especialmente pelos
agentes socioeducativos, tais como xingamentos a jovens e suas famílias (CUNHA;
SALES; CANARIM, 2007), deboches, humilhações, provocações, espancamentos e
excessivo uso de spray de pimenta, que inclusive é considerado um avanço para
alguns profissionais, frente à “tradição madeira”163 que a instituição tinha anteriormente.
Também ouvimos casos de ameaças de violência física, falas preconceituosas e
exposição de condições de saúde – incluindo tentativas de suicídio-, atos infracionais e
práticas sexuais, e “facilitação” de violência física entre os jovens, inclusive letal.

163
Como apontado em vários momentos do texto, foi recorrentemente relatado que o Degase tem
mudado de um paradigma “mais punitivo”, onde a “porrada” seria frequente e legitimada, a um “mais
humanizado”, destacando “o direito dos socioeducandos em preservar sua dignidade, com sua
participação, responsabilização e autonomia” (ALMEIDA, 2016).
309

Outras vivências, aparentemente mais sutis, também nos pareceram violentas,


tal como os jovens não usarem meias no inverno, o fato de não ter colchões e
cobertores suficientes e alguns jovens terem que dormir no chão. Igualmente, em uma
economia dos objetos, direitos e relações, vemos como uma punição comum é impedir
os pertences, ou seja, as comidas e objetos de higiene que as famílias levam, tais como
escova de dentes, sabonete, desodorante e toalha que, por sinal, deveria ser o Sistema
a providenciar164165.
Em menor quantidade, mas sempre ressaltados e revelando a pulverização
desse poder, escutamos relatos de tentativas ou efetivações de fuga e de violência dos
jovens contra os agentes, depois das quais o clima da unidade ficava bem mais tenso,
incluindo a presença de camburões da Polícia Militar no estacionamento da unidade, o
que presenciamos uma vez. Também soubemos de casos onde agentes do Degase
foram violentados na pista, incluindo sequestro, experiência distinta da de outros/as
profissionais, que relataram que a maioria das vezes os jovens se mostram carinhosos
quando os encontram na rua. Um jovem falou em entrevista individual:

os funcionário aqui tudo agride nós, agride nós aqui dentro, não lá fora porque
ele sabe que nós pode matar ele lá fora, que se bato de frente com ele lá fora,
filha, eu mato, filha, eu mato lá fora. Eu só vou guardando, filha, tudo que faz
comigo aqui dentro, pra quando chegar lá fora, um dia ele bate de frente
comigo, aquela cena, filha.

Além disso, observamos uma série de posturas corporais exigidas, como ter uma
circulação muito limitada nos espaços fora do alojamento (CUNHA; SALES; CANARIM,
2007), sentar no chão na hora de esperar atividades e almoço 166, serem revistados
constantemente, andar de cabeça baixa e com as mãos para trás como se tivessem

164
Essa punição tem efeitos financeiros para as famílias, como apontado por Cunha, Sales e Canarim
(2007), argumento utilizado pelos diretores na hora de explicar aos jovens de que forma a família deles
vai ser afetada pelo mal comportamento deles.
165
Televisão e ventilador também são providenciados por algumas famílias e compartilhados nos
alojamentos.
166
Um dia essa questão me incomodou especialmente, porque a unidade tinha passado recentemente por
uma dedetização e tinha muitas baratas mortas e moribundas no chão. Alguns jovens costumam pôr os
chinelos no chão e sentar encima deles, para não estar em contato direto com o chão.
310

algemas167, fora do uso de fato delas para sair e entrar na unidade 168 e em alguns
momentos de conflito. A justificativa, mais uma vez, é a Segurança, pois, com as mãos
para atrás, os agentes podem ter mais certeza que os jovens não vão os atacar.
Jhosivani apontou que “não acho errado não, acho certo, porque tamos preso, né, pra
segurança deles mesmo, andar com a mão pra trás, pra eles mesmo se sentir em
perigo, que vai que estamos com alguma coisa na mão, uma coisa assim” e “a cabeça é
normal, ter que andar com a cabeça baixa é normal, é igual quartel, só que é mil vezes
pior que quartel”. A ordem de abaixar a cabeça inclusive foi encenada na apresentação
de teatro que os jovens fizeram como desdobramento do primeiro Curso, quando
desempenhavam papéis de agentes, que insistiam nessa postura corporal.
Uma profissional que trabalhou em uma unidade de semiliberdade apontou que a
cabeça abaixada, o cabelo raspado, as mãos para atrás e a “roupa que fede” a
chocaram muito quando foi transferida para uma unidade de internação, chegando a
fazer com que se sentisse “em Auschwitz”. Para Machado,

o ritual da submissão é o de fazer o outro baixar a cabeça e os olhos. Há aqui


uma reapropriação dos valores e rituais da lógica relacional da honra, em que a
cabeça também representa o lugar superior da ideia de pessoa: fazê-la baixar
ou nela bater é o significado maior do ato de envergonhar e desonrar (2004,
p.64).

No entanto, os jovens ressaltaram algumas diferenças do CAI nesse aspecto:

Jhosivani: oprimição aqui não é tanto, em outras unidades já é mais. Aqui é


mesmo só se você pisar na bola
Jimena: tipo o que?
Jhosivani: responder o funcionário, xingar, coisa assim, relacionada a isso. Em
outras que já passei, por qualquer motivo, se você olhar pro alto, já vem te
agredindo, qualquer bobeirinha

Adán, falando das posturas corporais exigidas, expressou que:

167
Esta imagem me marcou tanto que, tempo depois, andando pela cidade, quando percebia que um
jovem estava com as mãos nessa posição, ficava imaginando que ele tinha passado pelo Degase.
168
Este tipo de conduta foi muito mais chocante no início do campo, e fomos ao longo do tempo nos
“acostumando” a elas de certa formam processo que vivem alguns/mas profissionais também afirmando
a naturalização ser condição para continuarem ali.
311

Adán: isso aí é, como, regra da cadeia mesmo, pra mim isso daí é normal. Já se
acostumei. Lá no XXX [outra unidade] é pior, é duas mão, cabeça abaixada, lá
é oprimição. Pô! Lá é oprimição mesmo. Lá, tipo assim, se tu olhar pro lado, tu
apanha. Lá é foda”.
Jimena: e aqui não?
Adán: aqui não acho, não. Aqui os funcionário é mais de dar papo, se tiver
problema eles agride, mas eles são mais de dar papo. Errou uma primeira vez,
aí dá um papo, errou uma segunda, aí como, aí já não tem conversa, eles
agride.

Jonas nos lembra das diferenças percebidas entre prisão e unidade


socioeducativa, além de demarcar distinções entre as unidades:

Jonas: que meu colega passou por aqui uma vez, só que ele ficou lá no XXX.
Como que eu posso dizer? Ele ficou lá, não tinha nada, só ficava preso dentro
do alojamento, ninguém chamava pra nada, é uma coisa, entendeu? Ninguém o
chamava pra nada, tipo assim, lá não tinha escola, tipo assim, funcionário te
batia, essas coisa assim, entendeu? Ele foi pra lá por causa que ele rodou no
tráfico de droga.
Gabi: aqui não tem isso?
Jonas: não. Aqui já sai mais, entendeu? Aqui tipo assim, posso falar, é só um
centro. Eu pensei que aqui era cadeia mesmo. Tipo assim, aqui é só um centro
de menor. Tipo assim, você vem aqui dentro pra refletir naquilo que você fez. E
o que você não fez, e você tá sendo acusado, entendeu?
[...]
Jonas: quando você chega aqui, tipo assim, “ah! Os agentes são isso, os
agentes são aquilo, os agentes são ruins, eles vão te bater, à toa”, mas quando
a gente chega aqui, vê que os agentes são muito tranquilos. Muito tranquilos,
muito tranquilos

Jorge Aníbal relatou ter passado muitas violências em outra unidade, ao ponto
de a família chegar para visitar, ele estar marcado corporalmente e não poder falar a
verdade porque os agentes “ameaçam de morte”, e então inventar que foi briga entre os
jovens169, enquanto no CAI nunca presenciou violência por parte dos agentes. No
entanto, Gabi ficou muito impactada com o fato de que, no momento da entrevista, ele
tinha que dormir no chão usando um único lençol, pois não tinha colchão, o que ele não
percebia como uma extrema violência do Estado. Por sua parte, Alexander aponta:

ah, aqui tem que botar a mão pra trás, mas não precisa ficar de cabeça baixa.
Tem funcionário que fala ‘levanta a cabeça, tu não tá oprimido’, mas daqui a
pouco tem outro ‘baixa essa cabeça, pá, pá, pá’. Se o funcionário falar pra
baixar a cabeça, vou baixar não, não tô com torcicolo (risos).

169
Esta prática também é relatada pelo Movimento Moleque (CUNHA, SALES, CANARIM, 2007).
312

Pensando no atravessamento da geração/tamanho/força e como se instaura nas


relações entre jovens e agentes e se imprime nos corpos, duas expressões traduzem
lugares que habitam: alguns jovens dizem que os agentes “se crescem pra mim”,
enquanto, segundo os agentes, os jovens “nos afrontam”.
A calça jeans do uniforme, que sugere uma aparência relaxada, convive com
aparatos na vestimenta que se assemelham aos usados por policiais, como botas
grandes de tipo militar, o que contrasta com os chinelos simples e bermudas dos
jovens. Detalhe que faz uma nítida distinção entre os Adolescentes e os “homens do
CAI”, como parte das táticas de docilização da instituição-estabelecimento, sugerido
uma necessidade e uma imposição de um corpo masculino viril para a manutenção da
ordem (VINUTO; ABREO; GONÇALVES, 2017).
Por sua vez, é possível pensar que a quantidade de jovens é muito maior que a
dos agentes, que em ocasiões expressaram sua vulnerabilidade, por vezes inclusive se
referindo ao tamanho de alguns jovens, mais altos do que eles. Existe assim uma
constante regulação da força, onde a ameaça de rebelião é latente e a busca de
estratégias para contê-la, necessária.
No adestramento dos corpos vemos uma disputa de masculinidades, que é
perpassada pelo dispositivo geracional, novamente nos remetendo à insistência do ser
Adolescente, embora o termo adolescente e até socioeducando busque mudar o
paradigma de criminalização dos jovens contido em termos como Bandido ou menor.
Ele é usado de tal forma que, a expressão “O Adolescente” ao se referir a grupos de
jovens, citando características homogêneas como se não existisse uma diversidade de
trajetórias e subjetividades, revela uma massificação das singularidades.
Nesse sentido, observamos uma série de mecanismos de massificação, tais
como o uso do uniforme, a retirada imediata do cabelo de pista170,o número com o qual
os/as agentes vão se referir aos jovens. Como sentidos são sempre múltiplos,
escutamos de profissionais que alguns jovens preferem os números, o que ajuda a
manter o anonimato na hora de sair do Sistema. Porém, quando os jovens promotores
de saúde contaram a todos/as os/as profissionais e diretores que estavam participando

170
Foi relatado, no início do campo, que uma jovem transexual também tinha tido o cabelo raspado. No
entanto, como já apontei, mudanças têm acontecido nesse ponto.
313

do nosso Curso quais eram as vantagens de participar do grupo, um dos destaques,


além de usar uma camisa diferente, foi serem chamados pelo nome, o que os
diferenciava no coletivo de jovens. Carlos Iván considera feião o uso do número; uma
profissional disse que o uso do número coisifica, assim como outro tipo de expressões,
tais como “vamos guardar os adolescentes”. O discurso institucional do Degase é que o
número desumaniza. Na nossa pesquisa, nos recusamos firmemente a usa-los o que
não sempre era bem recebido por alguns/mas agentes. Os jovens tendiam a naturalizar
essa questão, se apresentando com o número ou utilizando-o nas produções das
nossas atividades, o que rapidamente sugeríamos trocar por seus nomes, apelidos ou
iniciais.
Ainda no plano da afirmação e apagamento de singularidades, importante tratar
da circulação no espaço da Unidade. Alguns jovens relatam não gostar que as famílias
os visitem, porque o lugar e a forma em que eles o ocupam é humilhante ou tristão. Isto
acontece especialmente com as crianças, que mesmo estando presentes nas visitas,
alguns jovens, como Jonas, apontam que:

Jonas: Eu falei pra ela não trazer, pra ela não entrar
Gabi: porque?
Jonas: pra falar a verdade, eu não... é uma experiência que eu não quero que
ela... tipo assim, ela é uma criança, nem sei quantos meses ela tem, ela nasceu
em outubro. Cinco meses já. Ela vai olhar pra um lado, vai olhar pro outro, e vai
ficar pensando “o que que eu tô fazendo aqui?”

Também soubemos de um jovem que, por não “ter o perfil” do Degase,


especialmente pela escolaridade, por ser gay e por ter cometido uma infração de forma
eventual sem estar envolvido na “vida do crime”, estranhava muito ser revistado ao
ponto de evitar fazer atividades fora do alojamento, pois essa prática não fazia sentido
para ele, pois não era parte do imaginário do que o próprio corpo podia passar – e
provavelmente por ter receio de sofrer violência sexual por ser gay. Já outros pareciam
naturalizar essas experiências ou driblá-las, como Alexander revelou no relato acima.
Outras normas no campo da massificação se referem ao uso das roupas tendo
que usar a blusa por baixo da bermuda, para não conseguir esconder nada sob ou
entre as peças, regra que muda no dia da visita familiar, pois eles devem usar a blusa
por fora e obrigatoriamente usar cueca, para não que o volume da genitália não seja
314

visível para as familiares. Nesses dias, eles também devem ter cuidado com o
cumprimento do short e para não deixar partes do corpo, como a barriga, aparecerem.
Essas regras, novamente, são apresentadas como criadas pelos jovens, enquanto a
instituição-estabelecimento as legitima com a finalidade de manter a Segurança, que se
vê ameaçada de conflito entre eles caso um as descumpra. O não questionamento das
regras dos jovens e seu patrulhamento acaba parecendo uma trava para o processo
pretendido da socioeducação, que, segundo um gestor do Degase, implica “educar para
a sociedade”.
Como questionado por alguns jovens inclusive em eventos públicos, eles são
proibidos de usar cabelo de pista, tendo sua cabeça raspada e deixando-a conforme “o
padrão”. Embora agentes do Sistema saibam da proibição desta intervenção no corpo e
concordem com esta perspectiva, na prática muitas vezes o corte é feito, sob a
justificativa de desidentificar as facções e conter eventuais epidemias de piolhos. No
entanto, podemos entender esses penteados, incluindo o corte do Jaca, as luzes e
outros que os jovens relataram, como uma expressão estética171 não violenta com
grande significado para eles, o que fez vários solicitarem curso de cabelereiro no CAI e
notarem a mudança de penteado de um agente, que inclusive recebeu várias
sugestões.
Apesar dessa proibição, vemos o estabelecimento de marcas corporais
executadas pelos próprios jovens no sentido de uma reafirmação estética em um lugar
massificador, como deixar as unhas grandes ou fazer tatuagens, prática esta que pode
sugerir uma marca eterna de uma temporalidade aparentemente efêmera e, com isso,
uma inscrição de uma determinada experiência que, embora se pretenda esquecer, fica
marcada em uma forma singular e reconhecível. A maioria dos jovens tatua nomes de
mulheres da família, como mães, avós e irmãs, ou mensagens religiosas. Os métodos
são variados: derreter escova de dente, afinar grampos e usar chinelos derretidos como
tinta,

Bernardo: ah, fiz com tinta, faço tinha caseira aqui na cadeia
Jimena: com que?

171
Esta reflexão foi realizada por Marcos Nascimento.
315

Bernardo: ahh, tipo assim, não tem esse chinelo? Pego o chinelo, corto ele
novinho, pego a quentinha essa que nós come, taco fogo, aí aquilo dali, ela vira
uma fumaça, que vai subindo tipo como se fosse um vapor, aí eu fecho ela.
Nisso, que quando tira a quentinha, por dentro fica todo preto, churrasco,
churrasco ela, aí tem esses desodorante, esses desodorante que tem aqui na
casa, rollon, eu tiro o líquido dele, coloco ali e formo a tinta
Jimena: caraca, como você descobriu isso?
Bernardo: ah, é de cadeia

Jorge Antonio disse: “nós faz agulha mesmo. Pega um cotonete, queimava um
cotonete, aí ficava a agulha, aí nós fazia a tinta com chinelo, nós queimava um chinelo,
deixava na quentinha e grudava. Aí nós raspava, e botava o rollon, aí fazia a tinta”.
Jhosivani relatou que fez “com papel alumínio. Fui só raspando e raspando, aí ficou em
carne viva e depois saiu a casca e fui arrancando a casca”, e mesmo tendo doído, não
infeccionou porque “meu sangue é bom”. Carlos Iván contou que “saí que nem um
maluco, fazendo. Chegando na pista vou fazer direitinho, porque aqui na cadeia, o cara
fez e saiu errado. Na pista vou fazer certinho”. Já o caso de Alexander, que fez em
outra unidade, teve complicações:

Alexander: fiz com tinta xadrez e agulha. Agulha arrumei na rouparia, de


costura. A tinta era do curso de cerâmica. Ou pegava uma caneta e com essa
tinta
Jimena: mas você fez sozinho, ou alguém ajudou?
Alexander: aqui foi um menor que fez, aqui e aqui (mostra, tem várias). Essa
aqui deu merda, essa daqui o braço ficou inchadão, parei até no hospital
Jimena: infeccionou?
Alexander: caraaa, fiquei desesperado, e disseram que iam ter que amputar o
braço, e eu algemado “não, não vai cortar meu braço não! Não, seu, deixa não,
sou muito jovem, não vai cortar meu braço”, “tranquilo, tranquilo, tranquilo, vai
cortar não” “moleque, já te falei pra não ficar fazendo essas tatuagens, podem
te matar”.

Assim, ao serem realizados de forma clandestina, esses procedimentos são, por


um lado, extremamente criativos, mas também apresentam riscos para a saúde,
incluindo transmissão de doenças, tema em que a equipe de saúde insiste bastante.
Igualmente, as condições de hiperlotação e precariedade produzem doenças
dermatológicas recorrentemente citadas por jovens e por profissionais de saúde como
um dos maiores problemas de saúde no Sistema tanto por profissionais de saúde da
unidade quanto por movimentos sociais (CUNHA; SALES; CANARIM, 2007). Um jovem
também relatou que, devido à hiperlotação dos alojamentos, não tinha espaço
316

suficiente para secar a roupa, e tinham que usar a roupa úmida. Nesse sentido, foi
curioso que durante o campo, mas não necessariamente nele, fui atingida por uma
micose, o que, por sinal, me provocou uma imensa empatia por esses jovens. Diante
disso, algumas profissionais de saúde, às quais solicitei apoio, falaram “tá parecendo
adolescente do Degase”. Dessa forma, é identificável como a doença é característica
das condições desse lugar.
É importante destacar como esse tema foi trabalhado por várias profissionais
durante o nosso percurso, fomentando constantemente práticas de higiene nos jovens
apesar das condições de precariedade e de práticas como a “parede do cuspe”, tais
como incentivar a limpeza rotineira dos alojamentos e ensiná-los a lavar roupa, pois,
como apontado por elas, alguns estavam lavando no vaso sanitário, o que foi
confirmado por um jovem. Essa iniciativa me pareceu extremamente potente, no sentido
em que promoveu nos jovens uma prática de cuidado de si que os homens geralmente
não realizam (SCHRAIBER; FIGUEIREDO, 2011). Também é interessante pensar de
que forma os agentes socioeducativos, ao serem as pessoas que mais convivem com
os jovens, são muitas vezes os que percebem, escutam e/ou reportam problemas de
saúde dos jovens, exercitando uma função de cuidado e tornando-os, como apontou
uma profissional, “ponta na linha do cuidado”, o que visibiliza outras dimensões que
compõem e contrapõem espectros diversos de performatividades.
Outros exercícios interessantes nesse sentido eram realizados na atividade de
teatro, onde papeis e cenas que os jovens desempenhavam desestabilizavam
performatividades masculinas mais rígidas, a partir da experimentação do corpo 172.
Apesar do reconhecimento dessa atividade atualmente, chegamos a escutar a uma
profissional que está há muito tempo no CAI, dizendo que antes era criticada por
colegas por ser “tudo boiolinhas, bailarinos”.

172
Também foi apontado que no teatro é possível trabalhar com grupos misturados de jovens, incluindo
várias facções e outras classificações. No entanto, foram relatadas algumas restrições, como a
impossibilidade de que os jovens apresentassem personagens sem camisa, por exemplo, indígenas ou
capoeiristas.
317

5.2 Corpo de quebrador

A respeito da prática da masturbação, foi interessante, além do apontado


anteriormente a respeito das regras de quais dias podem quebrar e quais não, para
alguns jovens, essa prática sequer tem sentido. Alguns dizem que é “pecado”, pois é
um “desperdiço de possibilidades de vida”, aderindo a um discurso religioso. Outros,
como Israel, dizem que “ah, eu não fico fazendo isso muito, não. Porque fica gastando
esperma”, ao que Gabi apontou “ah, mas dá prazer”, e ele respondeu “é, dá, mas me
disseram que não é bom fazer isso direto, porque gasta muito hormônio”. Bernardo
disse: “ah, tipo assim, mano, eu não fico fazendo esses negócios não, tipo assim, às
vez eu faço mesmo, mas não é direto não, filha, maluco, mano? Que tesão é essa pra ir
toda hora lá no banheiro se masturbar? Não gosto de ficar fazendo esses negócio não.
Eu por mim próprio não faço esses negócio não”. Outros apontaram que “se masturbar
muito causa pedra no peito ou morte”. Jorge Aníbal também aponta:

Jorge Aníbal: ah, acho que nem tinha que se masturbar aqui
Gabi: ué? Tu vai ficar aqui meses e meses sem se masturbar?
Jorge Aníbal: mas todo dia tem mulher na casa! Aí nas outras mulheres a gente
pode pensar? E na mãe não?
Gabi: mas qual a diferença na hora de você se masturbar? Você sabe o que tá
na cabeça do outro?
Jorge Aníbal: ah... sei lá, né? Na minha não vai passar, mas...
Gabi: ué, mas o outro vai saber que tu tá pensando na mãe dele?
Jorge: ah, sei lá, né? O outro não vai saber, só se tu falar, mas sei lá

Já alguns jovens relataram que outros “têm vício” e “ficam fazendo cinco ou seis
vezes por dia”. Quando Gabi perguntou, disseram que se masturbavam no banheiro,
um de cada vez. Em outros grupos, disseram que usam como inspiração os filmes
Corujão ou fotos de revistas. Um profissional relatou ter escutado sobre a existência de
campeonatos de masturbação entre os jovens, onde quem ejacular primeiro, perde.
Jonas relatou que “TV fama passa várias atrizes, dessas atriz nua, sabe? Aí a gente
olha. Olhou, filho, “ah, eu sou o primeiro no banheiro”, acabou”.
A prática da masturbação e as crenças relacionadas a ela apareceram bastante
na pesquisa, como já pudemos relatar. No entanto, nem sempre é abordada para se
318

discutir direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o conhecimento do próprio corpo, a


exploração do prazer sexual e as alternativas à penetração (BARKER, 2008). Até o
momento, no entanto, talvez seja possível dizer que com todas as limitações, regras e
tabus dos próprios jovens em relação a esta prática, ela põe em análise
performatividades masculinas ligadas a corpo e prazer.

5.3 Corpo de mancão

A separação de talheres e copos quando tem mancões, regra que os jovens


defendem, também traz uma discussão interessante sobre corpo. A justificativa
oferecida em várias ocasiões em que problematizávamos isso, era que a “neurose do
homem”173 faz com que pensem que a boca do jovem poderia haver estado em contato
com o bagulho de outro homem, forma como em geral se referem ao pênis, no sexo
oral. Com o objetivo de provocar, colocávamos contrapontos, por exemplo, apontando
que uma mulher, inclusive nós, que dividisse copo ou talheres com eles também
poderia ter realizado essa prática, ao que eles afirmavam que as mulheres escovam os
dentes, diante do qual respondíamos que os gays também. Eles argumentavam que
também era importante o fato de que o pênis tocado era de um viado, não de um
homem.
A questão do sexo oral é interessante, pois eles também apontaram, em alguns
grupos e entrevistas, que o fato de fazer sexo oral já marcaria uma pessoa, sendo
homem ou mulher. Por exemplo, José Angel disse que se terminasse com sua mulher,
ejacularia em sua boca para gastar o próximo, fazendo alusão ao prejuízo que o
próximo parceiro da mulher teria. Carlos Iván expressou:

Jimena: e é verdade que não pode usar talher, copo?


Carlos: do viado?
Jimena: é
Carlos: se não fica de ralo. Tipo assim, supondo assim, que o viado beber
dessa garrafa, eu nunca vou beber dessa garrafa

173
Vemos aqui a reafirmação da categoria afetiva de “neurose” como intrinsecamente generificada.
319

Jimena: por quê?


Carlos: porque ele... Porque ele já chupou o negócio
Jimena: mas mulher também pode ter chupado
Carlos: ahhhh, aí que tá! Tem mulher que faz isso também
Jimena: sim
Carlos: sim. Mas é mulher, é diferente. Tem viado que deixa que... Na boca
(dando a entender que deixa que ejaculem dentro da boca)
Jimena: mas aí, tem mulher que deixa também
Carlos: se a mulher deixar, e ela não me orientar, eu raspo o cabelo dela
Jimena: como assim?
Carlos: se ela deixar um cara gozar na boca dela e depois ela não me orientar e
vir me namorar... Se ela não me orientar me beijar...
Jimena: mas no mesmo dia, você tá falando?
Carlos: não, qualquer dia
Jimena: mas se ela escovar o dente?
Carlos: e aí que ela escove dente? O esperma fica na boca!
Jimena: não!!!
L: não fica??
Jimena: não!! Claro que não!!
Carlos: eu acho que fica
Jimena: não fica não!!!
Carlos: não(risos)
Jimena: por exemplo, se você fizer isso com sua namorada, e depois vocês
terminarem, ela nunca mais vai poder beijar outro homem?
Carlos: ah, aí é com ela, e com os cara que vai pegar ela
Jimena: mas por exemplo, sua namorada, você é o primeiro dela?
Carlos: eu sou o segundo. Foi só um, e ela ainda era virgem
Jimena: ah, quando ela ficou contigo era virgem?
Carlos: era virgem

Já para Alexander, que se assume bissexual, a separação de copos e talheres:

Alexander: isso aí pra mim é besteira. É neurose. Os menor aqui bebem do meu
copo, querem saber neurose não
Jimena: aqui nesse alojamento?
Alexander: uhum
Jimena: porque você acha que aqui é diferente?
Alexander: porque aqui nós se entende. É sem facção, na tranquilidade. Não
fica vendo o que os outro fez, fica aqui dentro, convivendo
Jimena: você acha que essa neurose é mais de facção, então?
174
Alexander: é mais de facção
Jimena: bom, mas a homofobia tá em todos os espaços, né?
Alexander: é
[...]
Alexander: sei lá. A mente dos caras é: a única pessoa que pode chupar pau é
mulher. Homem se chupar pau é ralo. “Como, mulher pode chupar?” “Ah,
porque ela escova o dente, e tá novinha de novo”,
Jimena: e homem não escova o dente?
Alexander: é. Eu falo “mas eu escovo o dente”, “ah, continua de ralo”
Jimena: eu acho ridículo

174
Como sinalizado por Carla Mattos, vemos aqui como a facção é produtora de neurose (violenta e
machista) e de pacificação.
320

Alexander: cara, esses caras são paranoicos, meu deus do céu (risos). Eu falo
“cara, acabei de escovar os dentes, não tem nada de ralo”, “ah, é sim”

Com esse tipo de provocação a intenção era mostrar a insustentabilidade desta


regra. No momento em que os jovens não tinham mais argumentos, alguns repensavam
a questão, mas outros simplesmente respondiam que “as coisas são assim”. E,
novamente, vemos a legitimação das regras por parte do estabelecimento, mesmo
considerando-as estranhas. No entanto, em um dos cursos na EGSE, um agente
relatou que em uma unidade de semiliberdade, seu plantão decidiu impedir que os
jovens fizessem essa separação, o que não foi fácil, mas os jovens acabaram acatando
a norma dos agentes, de partilhar os talheres e copos. Não houve violência, mas não
durou muito pois seria necessário que os plantões estivessem dispostos a bancar mais
esta tensão.
Outra questão interessante apareceu na forma com que os jovens se
relacionavam com o corpo dos outros. Por exemplo, nas nossas atividades, ao virar a
foto 14 do Anexo A, que retrata um jovem negro malhando, alguns jovens reagiam
negativamente, virando a foto novamente, sugerindo que não queriam analisar uma
fotografia com outro homem mostrando o corpo, como se ver o corpo de outro homem
com atenção já sugerisse uma afronta à masculinidade. Observamos isso também na
atividade do personagem de papelão, onde pedíamos para os jovens que um deles se
deitasse no papel e os outros desenhassem a silhueta do corpo. Geralmente, os jovens
mais descontraídos eram os que se voluntariavam para ser a silhueta, e mesmo
observando diferenças no contato dos que desenhavam com o corpo do modelo, em
todos os grupos que usamos essa técnica, no momento em que a caneta chegava na
região entre as pernas, surgia uma tensão. Em um caso, essa parte do corpo ficou sem
ser desenhada, e em outro, Dorian, o modelo, perguntou a Cutberto, que estava
desenhando, se ia pedir o pinto para desenhar, ao que Cutberto disse que não tinha
visto muito pinto na sua vida.
Outro disparador sobre o mesmo tema foi a foto de dois homens fazendo luta
greco-romana (foto 17 Anexo A), que geralmente despertava acalorados debates nos
grupos para decidir se era uma prática de luta “normal” ou se o contato entre eles era
321

demasiado, sugerindo uma boiolagem175, ou expressando “fala sério, tá de mancada”,


que estava “muito agarrado”, ou que se um deles tinha uma expressão de prazer ou
uma posição que aproximasse mais seu quadril do outro.
Por sua vez, a imagem de duas mulheres se abraçando geralmente não
provocava essa dúvida e, quando a provocava, não era considerado tão alarmante
quanto o caso de dois homens. Muito pelo contrário, nesses casos, se referiam à
fantasia, efetivada ou não, de que “chegaria junto para participar”, "sapatão dá pra
recuperar", "sapatão?! pego as duas!", “sonho em participar de uma relação à três”, ou,
como apontado por Carlos Iván:

Carlos: é, mulher é normal. Se eu ver duas mulheres se beijando...


Jimena: não ia ter problema
Carlos: não ia ter problema e eu ia... Pá...
Jimena: porque que pra mulher é normal e pra homem não?
Carlos: ah, porque.... Tá maluco? (risos) o negócio é... Sexo anal, pra homem,
tenho nojo
Jimena: porque?
Carlos: porque.... É uma coisa que deus deu pra nunca ser tirado
Jimena: mas também tem sexo anal
Carlos: homem com mulher?
Jimena: é
Carlos: ah, mas se o homem comer o cu da mulher, ah, desculpa
Jimena: tranquilo, pode falar à vontade. Porque pode homem com mulher e
homem com homem não?
Carlso: porque pode homem mulher? Por que pode a mulher fazer isso?
Jimena: porque pode homem fazer em mulher?
Carlos: porque é o natural da vida
Jimena: anal também?
Carlos: anal? A mulher não gosta?
Jimena: tem algumas que gostam, tem algumas que não gostam. Mesma coisa
que os homens
Carlos: é, mas... É, mesma coisa, mas...
Jimena: olha, pra mim é certo se as duas pessoas estiverem de boa
Carlos: é, isso, isso. Eu não acho, tipo assim, eu não acho certo, mas eu
respeito. Eu respeito. Assim, eu gosto? Eu não gosto, mas é problema deles

A fantasia de estar com duas mulheres está no imaginário de grande parte dos
homens heterossexuais, incluindo alguns profissionais. Cesar Manuel, contudo, fez uma
ressalva, falando que seria ótimo “desde que elas não vierem de vacilação”, que, como
responderam a Gabi, significaria “usar o dedo”, pois aí “ela morre”. Em outro grupo,

175
Outros termos usados, além de viado e mancão, foram baitola, bichona, vira-mão, homensexual,
mandado, divo e kit.
322

também rejeitaram essa prática. Interessante ver, novamente, de que forma o corpo e
seus prazeres são explorados ou não a partir das performatividades masculinas.

5.4 Corpo de Jack

Como já abordei anteriormente, outro tema relevante para pensar os


agenciamentos das masculinidades e performatividades masculinas Dentro e Fora do
estabelecimento, articuladas com o dispositivo da sexualidade, aparece na forma com
que a prática do estupro é tratada, considerada uma extrapolação da iniciativa sexual
do homem, uma transgressão corporal e de poder imperdoável 176. Antonio, que relatou
já ter matado e roubado, disse que não consegue entender o crime do estupro,
indicando que outro tipo de práticas são passíveis de arrependimento, mas essa não
tem justificativa, delimitando fronteiras entre o prestígio e as transgressões ao pensar
em tipos de crime, com categorias muito bem delimitadas, que por sua vez já é uma
forma de se posicionar a respeito da performatividade masculina que esses crimes
oferecem.

Adán: Eu não tenho coragem de matar não, mas tipo assim, se for um cara
vacilão mesmo, estrupador, que tem ai, tipo tem um menor que estrupou uma
garota de quatro anos, acho que se eu pegar ele na pista, eu, pô, dou muito tiro
na cara dele. Se eu ficar tranquilo, capaz de eu falar só com os menor da boca
pra pegar ele pra eu ficar tranquilo, mas se eu sair, voltar pro crime, e eu ver
ele.... Tem outro que estrupou a própria irmã, bagulho doidão. Sabe porque eles
faz isso? Porque não tem desenrolado com as mina. Não tem desenrolado
papo com as mina pra pá. Não tem desenrolado, aí tem que estrupar.
Jimena: você nunca passou por isso, de querer transar com uma menina e ela
falar que não?
Adán: não. Se falar que não, não é não. Mulher é igual biscoito, nós dá pra uma
vai uma e depois vêm dezoito.

176
Podemos ver isso no caso sobre o guarda que abusou sexualmente de uma menina no abrigo, o que
provocou no Magdaleno (17 anos) muita raiva, ao ponto de ir bater no guarda, se sentindo na
necessidade de proteger a menina, que ele considerava irmã. Um profissional também relatou ter
conhecido um jovem que estava cumprindo medida por ter assassinado o tio, que abusava sexualmente
dele.
323

Assim, no estabelecimento, os Jack, enquanto abjetos ou aberrações, devem ser


afastados do convívio, pois são considerados como executores de um excesso de
violência contra seres que não podem se defender, sendo a maioria crianças, que não
poderiam ser culpabilizadas, como acontece no caso das piranhas.
Nos foi relatado o caso de um jovem que tinha cometido uma infração sexual
muito grave e que ele tinha sofrido muita violência no Sistema, revelando o drástico
comprometimento do “status de humano” que acontece com esses jovens ainda mais
do que com o resto (SEFFNER; PASSOS, 2016). Isto, para a pessoa que nos relatou,
fere a cidadania dos jovens, pois esse nível de punição tornaria o jovem uma vítima, o
que faria com que a instituição não fizesse mais sentido para ele, não tivesse uma
ressocialização digna e não tivesse possibilidade de tratamento.
Nesse contexto, os jovens que estão no CAI por terem sido acusados de estupro
fazem uso de certos recursos para se defenderem corporalmente da disputa de
performatividades onde eles são considerados transgressores. Alexander relatou que
“dei na cara de um menor e o menor desmaiou, entrei lá com o diretor e falei “pô, ainda
falei com o funcionário, o cara tava mexendo comigo, me chamando de estuprador,
dizendo que ia morrer, o funcionário não fez nada, aí tomei uma atitude”, e o
funcionário: “até que falou, pá””. Percebemos também que ele e outros jovens acusados
de estupro elaboravam narrativas para lidar com essa situação. Ele mesmo relatou:

Divido com um menor. A gente conversa bastante. O processo dele é parecido


comigo. Quando ele chegou queria matar ele, falava “ah, vamos matar, vamos
fazer isso, vamos fazer aquilo”. Só que eu parei, pensei que eu errei, ele
também pode ter errado eu passei pelo mesmo e dei um papo “ninguém vai
encostar a mão no menor, não”, e todos “hã?”, “não vai encostar no menor
não”, e os cara “tranquilo”, aí tomei remédio, fiquei vendo televisão, e dormi.
Esperou eu dormir, ia matar ele, mas abortaram, iam matar o menor e fugir por
um buraco na parede. Mas abortaram. Eu no alojamento percebo qualquer
coisa, aí eu fui no banheiro, aí olho pra parede e um buraco. E eu “nunca vi
esse buraco aí”. Aí depois fiquei sabendo, “não, naquele dia os cara ia matar
ele e ia fugir”, “ahhh”. Aí eu fui “ah, vocês iam matar o menor!!! E iam fugir e
deixar eu aqui pra assumir o bagulho!!! Maneiro!!! Maneiro!!!” (risos). “Agora ele
vai ficar aqui, ninguém vai agredir ele, seu diretoooor!! Olha aí, o menor chegou,
os cara iam matar o menor e deixar eu dormindo aí, ô, pra eu segurar o bagulho
todo” e ele “isso é verdade, rapaziada?”. Aí comecei a botar o menor pra dormir
comigo, pra eu estar monitorando. Eu durmo segurando ele pelas pernas, aí se
alguém puxar ele, eu seguro ele pelas pernas. Beleza
324

O relato de Jonas evidencia as disputas das performatividades masculinas,


incluindo as hierarquias no organograma das facções:
Jonas: um menor lá, um meleca, me chamou de estuprador na sala de aula, lá
na sala de aula. Eu não deixei barato também. Ele tinha rodado desse negócio
de radinho, como se fala, negócio de boca, entendeu? Que eu nunca trafiquei,
só acho que fiquei uns dois dias na boca, sabe assim? O negócio de radinho,
que ele fica no morro, entendeu? Aí ele rodou de radinho, fica me chamando de
Jack e falei “ah, você não pode falar nada, você rodou de radinho. Você falou
que era gerente, mas rodou em radinho, tá querendo me zoar?”. Depois a gente
foi pra direção, aí amanhã o Seu que fica na escola, falou que amanhã quer
conversar comigo, do que aconteceu lá na sala, entendeu?
Gabi: mas aí rolou porrada dentro da sala?
Jonas: não não não, foi só discussão mesmo
Gabi: mas foi a primeira vez que você sofreu esse preconceito?
Jonas: não, fi. Tem vários preconceitos que já sofri na casa
Gabi: é? O que?
Jonas: tipo assim, várias pessoas, passa do meu lado e fala “ô, o Jack lá, isso,
isso, isso e assado”, entendeu? “foi acusado de estupro de um viado, isso, isso,
isso e assado”, entendeu? Mas, tipo assim, às vezes nem ligo, às vezes só
passo assim, vou passando, passo, nem ligo, deixo falando sozinho. É como diz
o ditado, fica quieto pra você não fazer uma besteira.
[...]
Jonas: a minha namorada já sabe que não fiz. Ela sabe que eu não tinha feito
isso. Ela sempre confiou em mim. Ela sabia que eu não tinha feito isso,
entendeu? Que pra falar verdade, eu nunca pensava que eu ia, um dia, parar
aqui dentro por causa desse artigo. Eu via muito isso na televisão. Eu via: “o
estuprador foi morto, isso, isso, isso”. “O estuprador foi preso por isso, isso, e
isso”, entendeu? Eu sempre disse “nunca vou fazer isso na minha vida”. Nunca,
nunca. E eu fui parar por causa desse artigo, entendeu?

Por outro lado, como já foi discutido, quando conversamos com os jovens sobre
estupros de mulheres na pista, observamos que para eles o significado do que nós
consideramos estupro, inclusive estupro coletivo, não é igual, pois as mulheres alvo
dessa prática são piranhas. Esta discussão também foi levada ao campo das relações
sexuais entre os jovens no CAI, ao pensar a existência ou não do consentimento delas,
o que foi apresentado como um grande desafio.
Alguns/as profissionais relataram que no momento em que o sexo não é
consensual, as denúncias são rapidamente realizadas. Inclusive, um jovem nos relatou
ter sido estuprado e ter realizado uma denúncia, caso que foi levado à delegacia. Ele
também mostrou que para ele é muito nítido quando é consensual e quando não é,
apesar de ter sido criticado por alguns profissionais, que insistiam que ele queria.
Porém, outros/as profissionais disseram ser difícil diferenciar quando é consensual ou
não e apontaram haver uma subnotificação de casos, pois muitas vezes os jovens não
325

denunciam, por medo das retaliações. Um profissional também apontou ser difícil que
as relações entre os jovens sejam só por desejo, pois muitas vezes elas acontecem por
influência ou como moeda de troca, o que sugere certa concepção sobre o sexo entre
homens e seus motivos.
Como comentamos anteriormente em relação ao que dizem sobre as mulheres,
a violência sexual é muitas vezes justificada quando o jovem “já deu para um, tem que
dar para todos”. Como expressado por Felipe, as fronteiras são tênues e perpassadas
por naturalizações em termos das instituições-forma machismo e
cisheteronormatividade:

Gabi: e você já soube de casos de estupro aqui dentro?


Felipe: já vi já. Um
Gabi: você participou?
Felipe: eu tava no alojamento
Gabi: mas foi consentido?
Felipe: foi consentido, porque tinha viado no alojamento. Ele que provocou
Gabi: Mas peraí, não é porque o cara é gay que queria dar pra todo mundo
Felipe: humpf (sarcástico)
Gabi: podia querer só com um. E todo mundo do alojamento foi lá pegar ele?
Felipe: não. Foi só um
Gabi: foi ele?
Felipe: foi. Foi, chamou na chapa, foi “aí ô, aí da três” aí foi todo mundo do
alojamento
Gabi: chamou pra todo mundo ver?
Felipe: (risos) é
Gabi: e aí todos foram se masturbar?
Felipe: iiih. Aí o que o outro vai pensar no alojamento? Se tu tá olhando aí e
daqui a pouco tu vai lá pra dentro, vai pensar o que? Que tu também gosta.
Gabi: e ninguém do Degase ficou sabendo?
Felipe: funcionário. Funcionário pegou
Gabi: mas foi o menino que foi estuprado que contou?
Felipe: não, o funcionário passou, passou na galeria e ficou “o que é essa porra
dessa viadagem? Você vê, é homem na pista e vai virar viado aqui dentro?”. E
jogou gás de pimenta.
Gabi: e separou?
Felipe: não, continuou aí
Gabi: ah, continuou?
Felipe: continuou
Gabi: mas continuou porque o outro queria?
Felipe: ah, gostar.....ah......

Esse tema foi amplamente abordado no segundo Curso com profissionais


variados, onde, na perspectiva de algumas pessoas, distribuir preservativos aumentaria
a violência sexual entre eles. Apesar de compreender o desafio, acreditamos ser
importante discutir e não naturalizar essas práticas, de modo a não sustentar o
326

agenciamento molar de masculinidade e oferecer outros recursos para que os jovens


experimentem performatividades. Como apontado por Anna na época, um movimento
interessante seria – e está sendo para algumas pessoas- criar as condições para que
os jovens se aproximem das/os profissionais tanto pra falar quando é por prazer,
quanto para tirar dúvidas e para falar de forma sigilosa quando uma violência está
acontecendo.

5.5 Corpo iniciado

A discussão da visita íntima trouxe à tona compreensões sobre a iniciação


sexual dos jovens, no momento em que foram acionados discursos sobre a não
necessidade ou até impossibilidade de ter visita íntima para menores de idade, e ao
mesmo tempo a constatação constante de que a grande maioria dos jovens já iniciou a
vida sexual antes da internação. A partir dessa inquietação, exploramos o tema da
iniciação sexual nas atividades em grupo e nas entrevistas individuais.
Nos grupos, usamos como disparador para a temática a foto de uma pulseira do
movimento “Eu escolhi esperar” (Foto 9 no Anexo A), de cunho religioso, direcionada a
jovens e que promove a manutenção da virgindade até o casamento. Nenhum dos
jovens conhecia o movimento, mas alguns o relacionaram a discursos religiosos, e as
reações foram variadas: alguns ficaram curiosos, dizendo que “ai a mulher se
compromete contigo e você com ela” ou “ih, essa pulseirinha chegou tarde demais pra
mim”; outros acharam ridículo, dizendo que aí “teria que casar aos dezessete; e outros
disseram que isso exigiria “muita paciência”. A fala de Saúl nos chamou muito a
atenção: “na vida que nós leva, não dá para esperar... eu não sei se vou estar vivo ano
que vem...”, revelando que pensar em uma gestão de vida ao longo prazo, inclusive
sexualmente, não faz sentido nas suas trajetórias.
327

A iniciação sexual de quase todos os jovens, segundo suas narrativas177,


acontece entre 09 e 13 anos. Alguns relataram terem ficado nervosos, outros não.
Muitas vezes, a iniciação foi dentro do ambiente familiar, especialmente com primas,
como apontou Jesus, “é normal, brincadeira de primo e prima, papai e mamãe, aí
evolui, mas depois que comecei a criar hormônio dentro de mim, espermatozoide, aí eu
fui fazer sexo com outras pessoas, mais evoluídas”. Julio César disse que a sua
primeira vez foi aos 13 anos com a filha de sua madrasta, sendo a primeira vez dela
também, que estavam os dois jogando videogame, se sentiram entediados e fizeram
sexo. Perguntamos se foi bom e ele respondeu que ainda estavam aprendendo, que
“não é tão bom como hoje”. Jorge relatou:

Jorge: perdi a minha virgindade com 10 pra 11 anos.


Jimena: foi com uma menina da sua idade? Mais velha, mais nova?
Jorge: foi com uma mais velha do que eu, morava perto de casa, ficava
brincando com ela, pá, aí foi e aconteceu
Jimena: qual era a idade dela?
Jorge: um ano mais velha do que eu, ela tinha 12 anos
Jimena: e como foi?
Jorge: tipo assim, a gente tava brincando no quintal, meu padrasto tem um sítio,
aí a gente tava brincando, pá, aí ela sempre vinha, me dava um beijo, eu
beijava ela, pá, a gente ficava se beijando, um passava a mão no outro, aí no
outro dia a gente tava lá no meu tio, aí aconteceu, a gente foi, fizemos sexo, aí
ficamos pá, ficamos saindo direto, aí foi ela foi pra casa da avó dela, aí sempre
que eu ia a gente ficava, pá, aí ficamos, aí daí pra frente eu fui, né, tendo outras
relações

Julio Cesar disse que foi aos 11 com a prima de 18: “a minha mãe morreu e
minha prima ia cuidar da minha irmãzinha, e um dia me puxou ele pra debaixo do
cobertor e transamos”. Cesar Manuel relatou “minha tia de 27 me apanhou quando
tinha 11 anos. Ela estava tomando banho e pediu para eu passar a toalha, e aí ela me
puxou pra dentro do box. Eu já olhava para ela, e ela para mim. Depois disso
transamos mais algumas vezes”. Cutberto relatou ter se envolvido sexualmente com a
madrasta, para implicar com o pai, que ele detesta.

177
Desde o início, nos perguntamos se todos os relatos a respeito da iniciação sexual eram verdadeiros,
pensando nas performances que eles acionavam nessa interlocução conosco. Também, um profissional
apontou que ele acreditava que alguns jovens que eram virgens falavam que não eram devido às
pressões dos outros. Um deslocamento aconteceu nesse sentido, que nos fez focar nas narrativas,
independente da sua veracidade, para pensar, a partir delas, no que os jovens querem expressar e o
que faz sentido para eles, que neste caso, se refere à iniciação sexual como parte da afirmação da
performatividade masculina.
328

A questão das mulheres mais velhas, de até 40 anos, algumas das quais tinham
funções de cuidado com eles e que os provocavam “passando de calcinha ou de
toalha” na sua frente, foi interessante, pois eles relatavam que elas eram “mais
experientes” e por isso melhores para essa iniciação. No entanto, também denota uma
naturalização de que os homens, independentemente da idade, vão aceitar o sexo,
diante do qual um ato como “puxar pra dentro do box” por uma mulher mais velha não
seria considerado uma coerção sexual, assim como pressões para ter relações não são
consideradas violência. Bernardo disse que o irmão mais velho o chamou para um
“puteiro clandestino, puteiro é onde tem mulher que vende o corpo, sabe? Aí, pá, filha,
eu falei pra mulher que eu era virgem, pá, a mulher como, me deu um dia todo pra
mim”.
Alexander traz um relato interessante:

Jimena: e quando foi a primeira vez que você se relacionou sexualmente com
uma menina?
Alexander: tava com 13. Ela era experiente, conheci na escola, trocava ideia na
sala. Aí acabou em que ela me pediu em namoro, e eu, ah, tranquilo (riso). Aí
começamos a namorar, e rolou. Aí a minha mãe no outro dia “ah, me conta o
que aconteceu” e eu “po, mãe, não posso estar contando essas coisas não”,
“conta, conta, conta”. Ela ficou a semana inteira querendo saber, aí eu contei,
ela “tudo bem”, pá. Mas só foi saber que me envolvi com homem quando já tava
no sistema.
Jimena: e como foi?
Alexander: iihhhh. Começou “não!!, não meu filho, não pode fazer essas coisas
não!”, e eu “mãe, já acontecem essas coisas, ô, desde os 12 anos, e a senhora
não sabia
Jimena: e o que que ela disse?
Alexander: ela ficou desesperada, queria dar uns tapa. E minha irmã caçula “eu
sabia”, “você sabia e não me contou!!”, “não, pediu pra mim guardar segredo!”,
“ah, sou sempre a última a saber”, “ah, a minha irmã sabia, meu pai sabia, só a
senhora que não sabia”
Jimena: seu pai sabia?
Alexander: sabia
Jimena: você contou pra ele?
Alexander: não, me pegou no flagra
Jimena: e aí?
Alexander: “que que tá acontecendo aqui?”, “ah, o que o senhor tá vendo” e aí
ele “ah não”, aí olhou, “caraca”, e eu “é, pai”, e ele olhou com a cara assim,
“que isso meu filho”, aí eu fui, conversei, ele entendeu, “tu quer fazer, é por sua
conta, mas se previna”

Christian Alfonso, ao relatar a primeira vez com um homem, relatou:


329

Christian Alfonso: foi em Copacabana


Gabi: como foi?
Christian Alfonso: assim, não foi com homem novo não. Foi num taxi
Gabi: um taxista te contratou?
Christian Alfonso: uhum
Gabi: e quanto que ele pagou?
Christian Alfonso: 50 reais
Gabi: e como ele te chamou?
Christian Alfonso: assim, eu tava lá em frente à boate, parado. Aí ele foi e parou
do lado e começou a trocar um papo comigo sobre hotel, aí falou que tinha um
amigo que gostava disso e daquilo, e conseguiu me convencer
Gabi: ah, não era pra ele?
Christian Alfonso: era pro amigo dele, aí depois disse que era pra ele.
Gabi: aí tu foi no hotel?
Christian Alfonso: não
Gabi: foi no carro?
Christian Alfonso: foi
Gabi: e o que ele fez?
Christian Alfonso: só chupei ele só
Gabi: e ele te deu 50 reais. Você gostou?
Christian Alfonso: gostei
Gabi: e aí depois você fez com outros homens?
Christian Alfonso: uhum

Carlos Lorenzo disse que foi no abrigo, tinha 11 anos e foi na casinha de
bonecas, com uma menina, e que viu sangue, e que nunca mais ele quis. Aí todo
mundo criticou ele e rapidamente mudou de discurso, dizendo que “nunca mais quis
parar”.
Carlos Iván relatou:

Jimena: e você, quando foi sua primeira vez?


Carlos: minha primeira vez? (risos) você não vai acreditar, eu tinha seis anos
Jimena: seis?!
Carlos: seis anos. Aí, quando eu coloquei, sangrou um pouquinho
Jimena: mas com quem foi?
Carlos: ah, com quem? (como se fosse óbvio) com uma garota!
Jimena: da mesma idade?
Carlos: mais velha
Jimena: quantos anos?
Carlos: acho que tinha oito ano
Jimena: foi aonde?
Carlos: na casa da minha mãe
Jimena: no quarto?
Carlos: no quarto. Mas foi coisa de criança. Não foi minha intenção. Aí sangrou
e eu sai correndo
Jimena: ela queria também?
Carlos: ela queria! Ela falou brincando, e ela era mais maldosa do que eu, aí eu
fiz. Mas a minha primeira vez, porque assim, essa aí eu não considerava a
primeira vez. A minha primeira vez mesmo foi com 12 anos. Com 12 anos eu já
aprendi, já sabia fazer, tipo, aprendi a fazer as coisas
330

Emiliano disse: “ah, tipo assim, ah, foi, com 8 anos eu pensava que já tava, mas
nem tava ainda...depois disso a primeira vez foi, que foi mesmo, foi com 13 anos”.
Muitos apontaram que a pornografia era a maior referência e inspiração para
saber como agir na relação sexual, tentando imitar o que tinham visto em vídeos e
filmes, e também as mulheres ensinavam algumas coisas. Christian Alfonso disse que
“ninguém nasce sabendo não, vai aprendendo”, Jonas apontou: “a primeira vez você
tem a sensação ‘será que vai dar certo?’”. Quando Gabi perguntou se a mulher tinha
gozado, Israel respondeu: “ah, eu acho que sim, porque ela... na hora... também pá...
tava se mordendo, se arranhando, acho que era porque tava sentindo prazer”. Gabi
perguntou se ele tinha perguntado: “perguntei não. Porque eu acho que ela tava com
vergonha. Porque ela era da mesma idade do que eu, treze, aí acho que tava com
vergonha”.
Alguns jovens também falaram sobre a perda da virgindade das mulheres,
dizendo que as jovens virgens “trancam as pernas, mas na hora desistem, sobem na
parede”, ou que “tirar a virgindade da mulher é encrenca”. Relataram que algumas
mulheres perdem a virgindade e depois começam uma vida sexual com vários homens,
enquanto outras “ficam junto” do primeiro parceiro. Bernardo disse que “tem muita
garota virgem que tá perdendo a virgindade pra Bandido. Pô, sem brincadeira, já peguei
várias garota assim, de 12, 13 anos, [...]. Tipo assim, eu já peguei muita garota virgem,
de 14 anos, 15 anos, novinha, que nunca fez, tipo assim, é a sensação sexual, filha,
que, sem brincadeira mesmo”.
O tema da iniciação sexual dos jovens foi polêmico no primeiro Curso com as/os
profissionais, que mesmo criticando inicialmente a sua precocidade, acabaram
reconhecendo que a “perda da virgindade” é um ritual importante nas trajetórias juvenis
(CORDEIRO, 2008), inclusive nas dos profissionais, e a sua precocidade aparece como
parte das características do agenciamento dominante da masculinidade (BARKER,
2008).
331

5.6 Corpo que faz sexo e/ou faz amor

A partir dessa iniciação, as trajetórias sexuais e afetivas dos jovens são diversas.
Como já foi apontado, muitas trajetórias sexuais são marcadas pela “vida do crime”, não
só no sentido de terem mais mulheres, mas também de ter mulheres que se afastam
deles por “serem direitas”.
Alguns jovens têm uma parceira fixa e se relacionam ou não com outras, muitas
vezes, segundo eles, a partir de um interesse delas. Outros têm ou desejam ter várias
parceiras ou são solteiros, o que, por exemplo, consideram um problema na hora de
pensar a visita íntima, onde teriam que comprovar uma união estável com apenas uma
jovem, e “casar para isso não vale a pena, porque as mulheres hoje em dia não valem
nada”, ou “uma mulher só enjoa” ou “as mulheres hoje em dia são chatas, enchem o
saco”. Por sua parte, outros que têm relações estáveis de até três anos, afirmaram que
seria muito positivo.
Alguns namoram novinhas, outros, mulheres mais velhas, com relatos de
mulheres de até 35 anos, com até 16 anos de diferença, mesmo que tenham relatado
que muitas vezes é com as novinhas que gostam de sair para denotar certo status.
Alguns também relataram contratar prostitutas e um jovem relatou ser contratado para
ter sexo por homens mais velhos.
Outro ponto que surgiu a respeito das relações e a performatividade masculina
foi a reafirmação dos jovens de que os homens não se entregam emocionalmente às
mulheres. Miguel Angel disse em um grupo que ele ama a sua companheira, com quem
ele está há três anos, mas que não é apaixonado, e começou uma conversa com os
outros jovens sobre a diferença entre amar, estar apaixonado e ter sentimento. Carlos
Lorenzo disse que “amor verdadeiro é só o de mãe, o resto rola um sentimento e
passa”. Carlos Iván disse “meu coração é de pedra. Tipo assim, de pedra não,
desculpa, meu coração não é de pedra, mas não vou me apaixonar por uma garota. Eu
posso gostar da garota, mas se ela me fizer mal, eu tenho um, um dom, de desapegar
das pessoas rapidinho, eu me desapego muito rápido”. E Bernardo apontou:
332

Bernardo: não sinto mais nada não, filha, sinto mais nada não. É difícil de eu
me apegar com mulher, consigo me apegar com mulher não
Jimena: por quê?
Bernardo: ah, mulher tipo assim, pra mim, amar, mas tipo assim a mulher
vacilar comigo, perde tudo, vacilou a primeira vez, não tem mais chance não

Por sua vez, Emiliano disse que namorava “o amor da sua vida”, que “se não
fosse minha não podia ser de ninguém”, mas ao mesmo tempo transava com outras
mulheres, incluindo a prima. Mauricio apontou que estando privado de liberdade, toda
vez que escuta um pagode ele vê a foto da namorada e chora, frente ao que o resto do
grupo implicou com ele, dizendo que tinha uma “dona”. Christian Alfonso também
relatou ter se apaixonado por uma jovem que está na unidade socioeducativa feminina,
e na nossa atividade pediu para desenhar um coração com o nome dela e dele. Jesus
disse que uma vez que terminou com uma namorada, chorou durante uma semana,
“chorei porque eu gostava dela mesmo, queria ter um futuro com ela”. Jorge apontou
que

tipo assim, eu gostava dela mesmo, eu gostava de ficar junto com ela, ela me
178
chamava pra sair, conhecia a família dela, conhecia a minha família , ficava
junto mesmo, a gente ficou morando junto. Eu gostava, ficava perto dela. Tipo
assim, quando ela saia pra casa da avó dela, eu sentia falta dela, ligava pra ela,
ficava falando com ela no telefone, pá.

O prazer também apareceu como um elemento importante nas narrativas de alguns


jovens, o que nos faz pensar na importância de frisar esse aspecto ao falar sobre
sexualidade com eles, e não apenas na dimensão negativa das relações sexuais, o que
é mais comum (BARKER, 2008). Em um dos grupos, à imagem de um beijo (Anexo A,
foto 6), os jovens se referiram como “momento de felicidade”, o que não acontece
sempre, pois “às vezes você pode estar fazendo aquilo mas não é legal, a mulher pode
não ter higiene e na hora que vai beijar não é bom”.
Em outro grupo teve um debate sobre a diferença entre “fazer o amor” e “fazer
sexo”, apontando que apesar de fazer mais o segundo, o primeiro é mais gostoso.
Também fizeram uma diferenciação entre as parceiras quietinhas e as explanadas, e
Jose Angel apontou que “quando estava na madruga e não tinha opção ficava com as

178
Conhecer a família da companheira e vice-versa apareceu como um elemento importante da solidez
dos relacionamentos.
333

explanadas, mas ia dormir com as quietinhas”. Mauricio relatou que transa com várias
jovens, mas que “não sente a mesma coisa” do que com a companheira.
Alguns relataram gostar de sexo “duro” “puxando o cabelo” ou “dando tapa na
bunda”, dando “porradinha de amor”, ‘chamando de cachorra”, “mordendo o lábio” ou
delicado, “falando no ouvido”, ‘beijando o pescoço”, “chupando o peito”, “dando prazer
para a mulher”. Em um grupo discutiu-se também sobre sexo oral, Jose Ángel disse que
não beija a mulher após o sexo oral, pois tem “nojo”, e Marco disse que também não
gosta, pois não gostaria de “saborear o espermatozoide”. Eles também disseram que
não gostam de fazer sexo oral “em mulher de pista”.

Jesus: ah, eu gosto de dar sexo oral. E gosto de receber também, mas não é
qualquer uma também
Gabi: qualquer uma que gosta de dar ou qualquer uma que gosta de receber?
Jesus: qualquer uma que gosto de receber, porque tipo assim, eu não sei o que
elas, tipo, não sei qual elas, qual foi a trajetória delas pra ela passar até onde
chegou
Gabi: em que que isso interfere, me explica
Jesus: mm sei lá, interfere, interfere porque eu vou fazer sexo oral com ela
Gabi: tu vai botar a boca lá e não vai saber onde elas passaram, ué, mas elas
também podem botar a boca aí e não sabem por onde você passou, né?
Jesus: (risos)
Gabi: mas aí tudo bem?
Jesus: (risos) mas eu sei onde eu passei
Gabi: mas elas não, né?
Jesus: não
Gabi: e aí como é que você diferencia? Qual é a mulher que você pode fazer
sexo oral e qual você acha que não pode?
Jesus: mulher de casa
Gabi: me explica, o que que é ser uma mulher de casa?
Jesus: ah, a mulher que tu, a mulher que é certa, que tu pega sempre
Gabi: aí essa pode?
Jesus: pode
Gabi: e a mulher de rua? Você não gosta?
Jesus: não, gosto, só que muitas das vezes não, muitas das vezes era baile,
final de baile

Eles também falaram e debateram sobre uma diversidade de práticas sexuais.


Falaram de algumas posições, como o “69” e o “frango assado”, de forma bastante
descontraída, se referindo também ao “jogo dos dados”, onde devem fazer uma posição
dependendo dos números dos dados. Também conversamos sobre os locais dessas
práticas. Carlos Lorenzo disse que “tem novinha de doze anos que quer transar na
mata, mas eu gosto de hotel porque tem espelho”. Teve outros relatos de hotéis, casas
334

abandonadas, piscinão de Ramos e a pedra do Leme. Outros jovens relataram que no


baile funk eles fazem em pé, embrasados.
Um tema que Gabi abordou nas entrevistas de forma muito interessante foi se os
jovens garantiam que a mulher chegasse ao orgasmo ou não, revelando uma
importante dimensão das performatividades masculinas, incluindo quem só se
preocupava com o próprio prazer:

Gabi: quando você tá transando com uma menina, você se preocupa se ela
sente prazer? Você sabe se ela sente prazer, se ela vai gozar?
Felipe: eu fico preocupado comigo
Gabi: você não tá nem aí se ela gozou ou não? Você nem pergunta?
Felipe: não

E quem dava por certo que sabia produzir prazer:

Gabi: e quando você transa, você se preocupa se tá sendo bom pra menina
também? Se ela tá tendo prazer, se tá gozando?
Jesus: me preocupo
Gabi: você sabe? Você pergunta pra ela?
Jesus: ah, vou te falar, às vezes pergunto, às vezes não pergunto
Gabi: por que? Depende de que?
Jesus: eu pergunto, se foi bom, pá, porque como, se ela falar pra mim que não
foi bom, eu vou falar “ah, não foi por causa de que?”
Gabi: porque elas tem direito
Jesus: é, mas eu faço direito
Gabi: mas você pergunta na hora da relação? Qual a melhor posição pra ela
gozar, se ela tá gostando?
Jesus: não. Eu descubro (risos)
Gabi: você tem certeza que as mulheres que transaram com você sentiram
prazer e gozaram?
Jesus: absoluta não, mas eu tenho
Gabi: você acha?
Jesus: eu acho
Gabi: por que você acha?
Jesus: ah, porque ela demonstra
[...]
Jesus: Uma vez tava lá no morro, final de baile isso, aí eu tinha falado com uma
mina que é mais velha que eu, eu tinha 17. Aí ela tinha falado comigo, eu tinha
dado uma cantada, sempre que passava eu dava uma olhada, aí eu fui lá e
cantei ela, dei uns papo nela, pá, meio embriagado, dei uns papo nela, ela falou
que não, que ela tinha uns 30 anos, vinte e poucos, por aí, que não, que eu
tinha idade pra ser sobrinho dela, que eu não bancava com ela. Fiquei tranquilo,
aí passou-se um dia, aí final de baile, tava de plantão, aí foi ela e me chamou
pra dormir na casa dela, no outro dia, saí de plantão, peguei as carga, aí fui na
casa dela, ela que falou comigo, aí fui na casa dela, eu tive relação com ela, aí,
como, dei umas namorada com ela e ela gostou, fiz ela gozar. Aí ela, como
Gabi: como você sabe que fez ela gozar?
Jesus: po, vou te falar (risos)
335

Gabi: como?
Jesus: na hora assim, eu senti tipo um negócio caindo encima de mim, e
também quando ela acabou, ela falou “caralho, ninguém nunca”... eh, ela falou
“ninguém nunca mais me fez gozar assim”. E falou, tá ligada? Pras amigas dela
“esse menino aqui, com a cara que ele tem, assim, de bobinho, ele é muito
gostoso”, falou na minha frente ainda, eu perguntei pra ela, “fala pra ela”, pá,
ela falou na minha frente. E também, depois de um tempo, eu na boca de fumo,
aí veio uma amiga dela, “me dá teu whatsapp” aí eu “mas qual foi”, “uma amiga
minha falou que tu é muito gostoso, pá, eu queria saber” aí eu “á, dou meu
whatsapp mesmo”, mas não tive relação com ela não
Gabi: você gostou do elogio que você recebeu da outra?
Jesus: claro!!
Gabi: por que?
Jesus: ahhh, porque? Porque foi uma prova, porque ela achava que não era,
mas se enganou
Gabi: achava que tu não ia dar conta
Jesus: é, mas se enganou
Gabi: e pra você é importante saber que a mulher sente prazer quando transa
com você?
Jesus: claro, caso que se não, ela não vai querer de novo. Pô, não tem graça,
se a mulher não sentir prazer no sexo

Jonas: sim sim, ela sentiu muito prazer


Gabi: como você sabe?
Jonas: ela que falava pra mim. Eu via gemendo. Tipo assim, como eu descubro,
é porque a mulher tá gemendo ou ela já tá com alguma coisa líquida, uma coisa
assim. Eu aprendi isso muito rápido

Para Jorge, dependia da relação:

Jorge: tipo assim, namorar, você tá sentindo alguma coisa pela pessoa, você tá
junto com ela, tá gostando dela, pá, você vai ter relação com ela, você vai fazer
relação tipo assim, mais amorosa, mais sentimento, pá. Agora, ficar é mais tipo,
a garota, pá, só quer ficar com ela na hora que tu quer mesmo, se ela quiser, se
tu não quiser, você só vai fazer sua vontade, não vai fazer a vontade dela, vai
fazer sexo só por fazer mesmo, por sua vontade, pá. E tu gostando de uma
pessoa, namorar, já é diferente, né, tipo assim, tu vai fazer sexo, tu vai fazer
porque tipo assim, tu vai ter um sentimento, pá, tu vai fazer a vontade dela, não
vai ficar nessa de “acabou, pá, gozou, gozou, pá, já foi”, vai fazer a vontade
dela, pá. Namorando já é diferente, pá, tu quer ficar perto da pessoa, pá. Tu
quer sair pra algum lugar, tu sente falta da pessoa, tu divide tuas opiniões com
ela

Em outras falas, isso dependia da mulher. Por exemplo, em um grupo, Carlos


Lorenzo disse “quando a mulher é arrombada não sente prazer”, ao que Abelardo
interpelava, dizendo que não gostava do que ele falava, que tinha que calar a boca
porque estava falando besteira, que “depende do homem, de como ele vai fazer,
porque o prazer não é só na metida”. Carlos Lorenzo também foi interpelado quando
336

relatou, com orgulho, que “as gringas doidonas na Lapa vão e pegam nós”, diante do
qual Abelardo disse: “quero te ver pegar mulher tranquila, papo referente”.
Também perguntamos sobre uso do Viagra, ao que responderam que não era
necessário, que eram “muito potentes”, ou “muito novo não broxa”, que “isso é para os
coroas”, “não sou disso não, nunca, não preciso”, “se gostamos da mulher, não tem
porque ficar broxa” e que se ficarem nervosos é só “‘fumar um baseado e partir pra
cima”. Mauricio disse que quando vê uma - e faz o símbolo da vagina com as mãos - já
fica feliz e não precisa de mais nada. Alguns falaram de outros tipos de medicamentos
usados para o sexo, tais como uma “bolinha que estoura dentro da mulher”, ou uma
pílula “cor de abóbora” ou uma “balinha que acelera o coração”.
Em uma atividade com profissionais, uma delas perguntou aos jovens se eles
sempre queriam pegar qualquer mulher, e um deles falou que não, que “as feias” não.
Outra profissional perguntou se eles nunca tinham “ficado broxa” e todos riram e
refutaram, mas ela provocou, dizendo que assim como as mulheres podem não querer
em um momento, os homens também. A surpresa dos jovens frente a isto indica uma
naturalização da impossibilidade de que os homens sejam alvo de coerção para
atividade sexual, diante do seu “incontrolável” exercício ativo da heterossexualidade,
onde “a tentativa de recusa ao intercurso sexual coloca os rapazes no papel inverso ao
prescrito para eles no jogo de insistências (masculinas) e resistências(femininas) que
pauta as interações sexuais entre os gêneros neste cenário, o que pode implicar em
certa feminilização, o que é capaz de pôr em risco sua honra” (CORDEIRO, 2008, p.4).

5.7 Corpo de vagabundo

Anteriormente, abordei de que forma a cidade é permanentemente produzida


pelo dispositivo do racismo, que atravessa a leitura desses corpos e se articula com
estas noções, forjando trajetórias juvenis tornando os/as jovens negros/as alvo principal
de projetos de docilização, pauperização e criminalização (CAMPOS; GIROTTO, 2015;
CALAZANS, 2015; CAETANO; SCHILESKI, 2015, RAMÍREZ, 2015).Nas entrevistas
337

individuais com os jovens, perguntei a eles se já tinham passado por uma experiência
de racismo. A maioria deles disse que não, como Carlos Iván (16 anos, negro):

Jimena: você se considera de qual cor?


Carlos: eu sou negro
Jimena: você já sofreu racismo?
Carlos: não, isso aí já passou
Jimena: nunca passou por nada assim?
Carlos: não, nunca ninguém me chamou de macaco, nada
Jimena: mas você nunca achou que o policial tava te revistando só porque você
é negro?
Carlos: esse negócio é normal. Tipo assim, ele vai te revistar, se você for negro,
ou branco. Todo mundo pode ter revistar

Alexander disse que um jovem em outra unidade o chamou de “macaco”.


Também relatou o cotidiano dos encontros com a polícia, embora não pertença a
nenhuma facção:

Ah, eles ficam me chamando de vagabundo, né? Uma vez passou um:
-vai lá, seu vagabundo!
-sou vagabundo não, sou trabalhador, eu trabalho
-trabalha onde?
-trabalho na oficina, ali na praça
-você tá mentindo
-me bota na viatura e vamos lá
Aí fomos. Quando chegamos, meu pai ficou desesperado,
-o que você tá fazendo na viatura?! Que que ele fez, seu policial, que que ele
fez?(imita voz de quem está chorando)
-não, só veio confirmar se ele trabalha aqui mesmo
-esse é meu filho, trabalha comigo (imita voz chorando)
E eu: -não falei, seu policial?
Aí ele: -que foi?
E eu: -tava passando lá, me parou, falou que era vagabundo, falei que era
trabalhador, que trabalhava com o senhor, que podia me botar na viatura pra ir.

Em uma atividade em grupo, quando abordamos o tema do racismo, Dorian (16


anos, negro), disse que “quando um negro está correndo, todo mundo acha que é
ladrão”. Por sua vez, no verão de 2016, uma profissional da unidade relatou que no final
de semana, no ônibus, ela tinha ouvido um grupo de jovens da Baixada, a maioria
negros, decidindo a qual praia ir, porque em Ipanema estava tendo muito arrastão e se
a polícia fosse procurar os autores, eles seriam considerados suspeitos. Eles acabaram
indo a outra praia. Com estes relatos, observamos como os jovens negros são
338

constantes alvos de perseguição policial, discriminação e injustiça 179, o que, no caso


dos que realmente cometeram infrações, pode aumentar a possibilidade de entrarem ao
Sistema, mas também pode acontecer de entrarem jovens que não cometeram
nenhuma infração, como escutamos em várias ocasiões. Assim, “aquilo que as
autoridades policiais chamam de atitude suspeita se mostra na prática como
exteriorização do racismo da sociedade” (JÚNIOR, 2016, p.604)180. Como apontado por
Thiago Melício, esse racismo de Estado faz parte de uma política de extermínio que
coexiste em uma sociedade que produz uma gestão de vida, de saúde, através da
deshumanização de certos grupos, que sugere que sem esses grupos a sociedade
estará se fortalecendo. É o campo do “deixar morrer”, seja em um tiroteio, seja em uma
cela ou alojamento, que faz parte do biopoder.
O tema do racismo também apareceu no nosso primeiro Curso com profissionais,
através do desejo de vários/as profissionais negros/as de realizar atividades para
trabalhar com a autoestima dos jovens negros, frisando a necessidade de “não cair no
estereótipo de que todo negro é marginal” e trazendo informações sobre direitos tais
como as cotas raciais. Infelizmente, a atividade não foi efetivada. No segundo Curso,
durante a realização de uma colagem de recortes de revista que falava sobre
juventude, um dos grupos de profissionais observou que a maioria das imagens de
jovens negros/as na mídia hegemônica está relacionada à violência, e frisaram a
importância de dar visibilidade a conquistas e caminhos alternativos educativos,
profissionais e esportivos. Os jovens também se mostraram interessados em explorar a
temática do racismo em um Curta-debate mensal realizado por duas profissionais.

179
Um caso emblemático desta questão é o de Rafael Braga, jovem negro empobrecido que tem
provocado muita indignação e mobilizações no Brasil, ao ter sido preso apenas por portar Pinho Sol no
contexto das manifestações de 2013, com provas forjadas e um processo por demais injusto. Por outro
lado, durante a escrita desta tese, políticos de altos cargos no estado do Rio de Janeiro eram presos,
recebendo um tratamento bastante diferenciado, levantando inúmeras discussões na opinião pública
sobre o sistema de justiça e sobre como os diferentes tipos de criminalidade estão imbricados com
moralidades, racismo, senso de justiça e impunidade.
180
Bárbara Rocha, integrante da equipe, está atualmente desenvolvendo uma pesquisa sobre abordagem
policial a homens jovens negros, mostrando de que forma o escrutínio direcionado a esses corpos faz
parte do controle cotidiano.
339

No Ciclo de Violência e Sociabilidade urbana, a cientista social feminista negra


Silvia Aguião Rodrigues comentou que o homem negro, desde muito jovem, tem que
aprender a lidar com o mundo sob suspeita, sempre ameaça em potencial.
Profissionais relataram acontecimentos onde o racismo e o classismo atingiam
as famílias dos jovens. Uma profissional do CAI que também trabalha na Casa das
Mães contou um caso em que uma mãe, negra, chegou com o rosto extremamente
machucado porque a polícia foi buscar o filho dela para levar para o Degase e queriam
bater nele. Ela impediu que batessem, e o policial a ameaçou e a espancaram na frente
do filho181. A própria profissional relatou ter sofrido racismo e classismo em uma
situação laboral em um bairro de classe média-alta.
Silvia Aguião Rodrigues também instigou a pensar em que momento esses
processos naturalizados são problematizados, chamando a atenção apenas quando os
casos são escandalosos, destacando a importância de fazer análises mais finas de
como a raça atravessa as relações das pessoas.

5.8 Corpo desejável

Foi muito interessante pensar de que forma as performatividades e os corpos


desejáveis implicam múltiplas dobras. Na atividade das fotografias, na maioria dos
grupos, os jovens estranhavam muito a imagem de uma pessoa andrógina (foto 4
Anexo A), discutindo se era homem ou mulher por ter os peitos pequenos. Outros, na
foto 2 do Anexo A, que retrata um corpo feminino segurando uma foto com um peito
masculino, disseram que achavam feio e que não “pegariam mulher assim”.
Por sua vez, transar com grávidas (foto 5 do Anexo A) para alguns não é
adequado, ou deve ser feito com cuidado. A partir da foto que tem uma mulher gorda e
uma magra (foto 3 do Anexo A), conversamos sobre transar com mulheres gordas e os
jovens de um grupo disseram que as mulheres devem se cuidar “por saúde”, mas que o

181
Um jovem também relatou um acontecimento em que um guarda civil abusou sexualmente de uma
jovem de um abrigo onde ele estava. Assim, vemos as instituições-forma (machismo, racismo)
atravessando fortemente as corporações policiais.
340

que importa no caso dos homens é ter dinheiro. Em outro grupo, disseram que não se
importavam que fosse gorda, ainda mais neste momento em que estavam há tanto
tempo sem ter relações sexuais, e que quando saíssem da unidade, iriam transar com
qualquer uma, desde que fosse “limpinha” e “cheirosinha”. Contudo, Cutberto disse que
tinha gostado mais da mulher magra na foto, e que inclusive a usaria como inspiração
para o dia de quebrar. Outros disseram que “o que importa é o coração e a cabeça, não
o corpo”, o que Fernando usou para provocar, dizendo que então podia ser uma
travesti, já que o corpo não importava: não, disseram, tinha que ser uma mulher cis,
apesar deles não terem usado esse termo.
A questão de estar arrumada aparece em outros momentos, como na fala de
Bernardo: “mulher, filha, mulher, vou te falar, pode ser a mulher que chega na boca de
fumo, sem ter relação sexual, mas quando chega assim pô, tal tal dia no baile, quero
ver tu do meu lado, dou dinheiro pra fazer unha, unha do pé, comprar roupa, estar
bonita, fazer cabelo, brinco, qualquer coisa, batom, filho, tipo assim, qualquer coisa,
filho, ela pode ser feia, filho, mas se tá bem arrumada...”
Em um grupo discutiram se era bom ou indiferente transar com mulheres com
piercing no grelo – clitóris. Em outros debateram sobre transar com mulheres
menstruadas, o que em um grupo foi considerado nojento, diante do qual eu disse que
nós mulheres passamos por isso cada mês e não achamos nojento, ao que eles
responderam “nós sim”. Antonio contou que uma vez uma jovem não disse que estava
menstruada, e quando ele a viu tirando o absorvente, ficou chocado. Em entrevista
individual, Carlos Iván ficou tão impactado com a possibilidade disso acontecer, que me
perguntou se eu achava legal transar menstruada, pois ele achava feio. Já em outro
grupo, falaram que a mulher estar menstruada não representava um problema.
Ao pensar nos dispositivos de raça e classe, além das vivências de
criminalização abordadas anteriormente, foi interessante observar de que forma eles
apareceram bastante em termos de corpos desejáveis, ao se referirem às mulheres
com as que se relacionam e a eles mesmos, como no relato de Jorge Antonio:

Jorge: No começo foi difícil mesmo, minha família aceitar que eu tava ficando
com uma mais velha. Minha mãe falou assim pra mim: “ela só quer ficar contigo
porque tu é novo, pá, porque tu é bonito” e eu “não, mãe, não é isso não”, aí
como, minha mãe fala que ela não é muito bonita não, mas eu acho ela bonita,
341

aí a minha mãe falou assim “po, tu quer ficar com ela? Ela é feia pra tu! Ela é
feia, tu tem que ficar com umas menina da zona sul”, minha mãe falando, só
que ela morava em comunidade. Minha mãe falando “tu tem que namorar
menina da zona sul, aquelas menina de olhos azul”, só porque meus olhos é
claro também. Aí eu, como, se eu gostar da pessoa realmente, pode ser feia ou
pode ser bonita
Jimena: ela é negra?
Jorte: não, ela é tipo morena, da minha cor, um pouco mais escura ainda. Mas
eu fiquei com ela não por causa que ela é bonita, é porque eu gostei dela, do
jeito dela agir, do jeito dela ser, eu gostei dela

Nas paredes da escola, vimos um desenho de um jovem negro atrás de umas


grades, sugerindo seu encarceramento, e uma jovem branca, de cabelo amarelo e
olhos verdes do lado de fora, olhando para ele, sugerindo que tinham uma relação
amorosa. Jorge disse que a namorada dele era “morena, bonita”. Já Carlos Iván, insistiu
em que eu devia ter filhos/as porque eles/as iam ter olho azul, que é mó legal. Emiliano
também disse que uma namorada era muito bonita porque “o cabelo dela era castanho,
e de olho verde. Me apaixonei por ela, era loirinha, me apaixonei por ela ”. E Jonas disse
que a sua filha era “branquinha, muito lindinha”.
Igualmente, houve diálogos sobre as relações com mulheres negras e brancas,
disparados especialmente pelas fotos 1 e 10 do Anexo A. Em um dos grupos, Carlos
Lorenzo (17 anos, branco) virou uma das fotos e disse para Luis Ángel Francicso (18
anos, negro), “pra você, que gosta de pretinha”. Em outro grupo, a partir da foto da
cantora estadunidense Beyonce, Saúl (16 anos, negro) disse gostar de mulheres
negras, que elas “têm ziriguidum”, enquanto Julio Cesar, (17 anos, branco), disse
preferir as mulheres brancas, pois com as negras “é difícil enxergar” na hora de fazer
sexo oral, o que é diferente no caso das mulheres brancas, que têm “aquela parte
rosinha”. Saúl considerou isso uma ofensa, dizendo “também sou preto, está mexendo
com minha cor”. Contudo, minutos depois, Saúl afirmou que quando vê uma mulher
branca “com marquinha” de biquíni, não consegue aguentar. Nesse sentido, na noção
de limpeza, se revelavam “acusações estigmatizadas”182, termo usado por Carla Mattos
no Ciclo sobre Violência, Política e Sociablidade Urbana, que visibilizam a instituição-
forma racismo.

182
Outra acusação nesse sentido foi quando Carlos Lorenzo disse que “cabelo rastafári é feio, é cabelo
de maluco”.
342

Também foi perceptível que o encontro dos jovens conosco revelava de que
forma os dispositivos raça, gênero e sexualidade se articulam. Por exemplo, se dirigindo
a Sara, estagiária do IFRJ, Saúl disse que “morena que nem ela mexe comigo”. A
entrevista com Bernardo foi muito instigante nesse sentido, pois ao longo da entrevista,
ele voltava a falar coisas nesse sentido:

Bernardo: Eu com 14 anos fiquei com uma mulher de 35. Linda, linda, linda,
olhos azuis, loira, branquinha, toda bonita, toda preparada
Jimena: você acha mulher branca mais bonita?
Bernardo: ah, me amarro na mulher branca, sem brincadeira
Jimena: porque?
Bernardo: ah, tipo assim, tem mais opção, sabe? A mulher branca é, assim,
mais afetiva. Me amarro, sem brincadeira, tipo assim, eu me amarro em mulher
morena, mas a mulher que eu mais gosto é uma branquinha, loirinha
[...]
Bernardo: po, não paro mais com uma pretinha não, morena não, filha, agora só
branca, filha, na pista, brincadeira
[...]
Bernardo: meu bagulho agora é arrumar uma mulher certinha, uma loirinha,
branquinha, ah, sou apaixonado por mulher de olho verde, sem brincadeira

Em um dos grupos, os jovens, embora reconhecessem que por serem negros


sofrem preconceito, pontuaram que as mulheres negras sofrem mais. No entanto, ao
falar deles mesmos, alguns jovens expressaram perceber os padrões estéticos
eurocentrados, apontando, por exemplo, que nas novelas não aparecem personagens
negros. Jorge Antonio nos fez pensar em como as questões corporais se articulam:
“meu irmão tem 18 anos, ele é baixinho, mas é grandão, fortão, de olhos azuis. Aí eu
fico falando que não vai crescer mais, que vai ficar baixo, e ele fica boladão”, Assim, a
compleição também é importante, por exemplo, no momento em que Cutberto relata
sofrer preconceito por ser baixo, ou quando observamos que um jovem é chamado de
Pitbull de forma implicante.
Em alguns grupos, usamos a foto do homem malhando (14 do Anexo A) para
perguntar sobre os padrões de beleza. Alguns chamaram ele de “bobão”, o que nos fez
pensar em como, para alguns deles, a performatividade masculina passa mais por
elementos como armas. Em outro grupo, os jovens falaram que não sentem a pressão
dos padrões de beleza, e Leonel disse que as mulheres estão com eles “por conta do
dinheiro”. Em alguns grupos, os jovens contaram que fazem exercício para estarem
343

malhados, mas que mesmo assim, o que conta é “saber ganhar dinheiro”, e que as
mulheres também gostam de segurar armas, especialmente fuzis.
Em um grupo, a partir dessa foto, perguntamos o que eles achavam que as
mulheres consideravam atraente. Martin (17 anos, negro) disse: “não adianta ter corpo,
tem que ter papo”. Mauricio (18 anos, negro), que parecia ter um lugar de líder,
argumentou que "pra pegar mulher vale o bolso, porque mulher gosta de uma moto,
gosta que leve em um restaurante". Martin continuava defendendo que podia conquistar
através da conversa, até que Christian Alfonso disse: "você é muito mais fácil chegar
numa menina, porque você tem dinheiro, e dá pra ver no dente!", Martin perguntou: "e
por que no dente?", Christian Alfonso disse "porque você tem aparelho!"183. Depois
disso, alguns no grupo expuseram outro jovem, dizendo que estava usando aparelhos
falsos. Desta forma, um certo tipo de intervenção corporal, ou a aparência de tal, se
sugere como um elemento de status socioeconômico, que delimita características
atraentes para as jovens.
Em uma roda de conversa desdobramento do primeiro Curso, José Eduardo, ao
falar de outro jovem, disse que tinha muito sucesso, pois era “bonitinho que nem eu”.
Carlos Iván apontou que as jovens gostam de ficar com ele não só porque é do tráfico,
mas porque dança funk e é famosão. Já Bernardo, sinalizou que

já parei com várias garota, garota da igreja, po, que tipo assim, que tive um
acidente, esse negócio aqui no meu rosto foi um acidente de fogo com álcool,
mas tipo assim, po, já parei com várias garota bonita, todas elas garotas que
param pra ficar comigo, porque gostam de mim pelo jeito que eu sou, não
gostavam porque eu tenho dinheiro não, porque eu mesmo não tando no tráfico
de droga, filha, paro com qualquer garota aí, filha, paro, desenrolo qualquer
garota aí, consigo arrumar uma namorada
[...]
não tenho nem vontade de fazer mais plástica mais, isso aqui não me dificulta
pegar mulher na pista não

183
De fato, esse jovem aparentava ter uma maior escolaridade, usando linguagem mais elaborada, talvez
devido à classe social percebida por Christian Alfonso no tratamento odontológico.
344

5.9 Corpo que (não) se previne

Um tema importante no que tange ao corpo é a questão da saúde. Como


apontado por Raewyn Connell, o compromisso com práticas de risco é significante
“para o estabelecimento da reputação masculina em um contexto grupal de pares”
(CONNELL, 2013, p.269). Ou seja, um dos mecanismos de reificação da masculinidade
nas performatividades é a falta de cuidado com o próprio corpo, se envolvendo em
situações de risco. E isto tem implicações importantes ao se atrelar com os
comportamentos sexuais. Barker (2008) discute as implicações do comportamento
sexual masculino na epidemia do HIV, tanto pelo envolvimento em situações de risco,
quanto pela dominação na hora da negociação da prevenção. Alerta, com muita
pertinência, que é importante não demonizar os homens individualmente por esta
problemática - política que tem sido assumida por vários países, especificamente contra
migrantes, minorias étnicas e homens jovens de baixa renda -, mas entender de que
forma a socialização de homens e meninos leva a esse tipo de comportamento.
Como já foi mencionado, as ISTs, especialmente Sífilis, gonorreia e HIV,
aparecem também como uma grande problemática no Sistema, que revela vários
pontos. Primeiro, muitos jovens chegam com essas doenças, o que denuncia um
contexto social extremamente precário no que tange à saúde nas trajetórias dos jovens,
além da tendência de homens jovens de pouco ou nulo cuidado de si, especialmente na
área da saúde sexual, e da atenção focalizada nas mulheres nos serviços dessa área
(NASCIMENTO; SEGUNDO; BARKER, 2011). Segundo, a dificuldade do CAI de
garantir testagem e tratamento diante da precariedade do município. Por último, a
existência das relações entre os jovens, configurando um analisador na nossa
pesquisa-intervenção184.

184
Isto não é específico do Degase, pois a população em privação de liberdade tem sido considerada uma
população chave no contágio destas infecções no contexto mundial (World Health Organization, 2014).
345

Segundo dados da equipe de saúde do CAI, no período de agosto de 2016 a


abril de 2017, foram testadas185 no total 198 pessoas para HIV, Sífilis, Hepatite B e C,
162 jovens e 38 familiares, obtendo 03 resultados positivos para HIV -02 jovens, um
dos quais entrevistamos186, e um familiar-, e 15 para sífilis -08 jovens e 07 familiares187.
Várias/os profissionais têm se debruçado sobre esse tema desde antes da nossa
pesquisa começar, levando informações e palestras regularmente, incluindo algumas
direcionadas às famílias, usando a Caderneta do Adolescente 188 para falar do tema e,
no último ano, espalhando cartazes sobre o uso do preservativo pela unidade 189, além
da preparação de uma sala de aconselhamento e a obtenção de panfletos informativos
e preservativos. Ainda assim, o uso da camisinha não é considerado de forma
generalizada como um tema importante para socioeducar no estabelecimento, apesar
de estar contemplado na publicação “Socioeducação: Legislações, Normativas e
Diretrizes Nacionais e Internacionais”, do Novo Degase (2013) como parte das “ações e
práticas educativas” (p.329).
A saúde sexual, como direito inegável e preocupação do estabelecimento no
momento concreto em que se descobre que jovens que relatam estar se relacionando
sexualmente com outros são portadores de HIV, ajudou a provocar discussões a
respeito dessas relações, no sentido da necessidade de construir estratégias para

185
Foi apontado que essa testagem é um direito e não deve ser obrigatória, o que não é consenso entre
as equipes.
186
Tanto ele quanto os jovens que dividiam alojamento com ele e profissionais relataram a dificuldade que
ele estava tendo para lidar com o fato de viver com HIV. Na nossa entrevista, ele mudava
completamente de postura e narrativa ao falar sobre esse tema, revelando o quanto afetava ele.
187
Alguns jovens também relataram falecimentos de familiares e ex-companheiras por HIV.
188
A Caderneta do Adolescente, tendo uma versão para homens e uma para mulheres, aborda várias
temáticas, tais como adolescência, responsabilidade, higiene dental, saúde sexual e reprodutiva,
drogas, alimentação. Um grupo de gestoras nos informou que o Sistema tem dois anos de trabalho com
ela, e que está sendo implementada nas medidas provisórias, semanalmente, em rodas de conversa,
de modo que os jovens “já entram na internação com esse conhecimento ou voltam pra casa com ele”,
como uma “célula que se planta no jovem”. A equipe trabalha com a caderneta em folha A3 para
trabalhar em grupo, e cada jovem leva a individual.
189
Os cartazes, do Ministério de Saúde, estão no anexo H. Confesso ter gostado mais do segundo, que
frisa no prazer, do que o primeiro, que me pareceu ter um tom moralizador, mesmo sendo
extremamente criativo e fazer uso de uma representação religiosa que pode dialogar com o contexto.
Igualmente, devo reconhecer a importância e relevância de ter colocado os cartazes na unidade.
346

garanti-la, o que, para nossa perspectiva, necessariamente inclui uma visão mais ampla
de direitos sexuais e reprodutivos.
Isto, contudo, também traz à tona o que muitos/as profissionais relatavam, no
sentido de que os jovens não usam camisinha Fora e, portanto, não usariam Dentro,
pois não poderiam ser obrigados pelas/os profissionais, o que poderia trazer
consequências jurídicas no momento em que as parceiras das visitas íntimas
engravidassem, como mencionado anteriormente. Relataram também várias
desinformações dos jovens, tais como acreditar que “transar de chinelo não engravida”,
ou acreditar que um homem pode engravidar190.
Nas nossas atividades, além de perguntar diretamente nas entrevistas
individuais, provocamos a discussão sobre o assunto na primeira atividade em grupo,
usando outra fotografia com diferentes métodos contraceptivos (foto 7 do Anexo A).
Certamente, nos deparamos com uma falta de informação que consideramos grave em
alguns dos jovens, como achar que apendicite é sexualmente transmitida, acreditar que
fazer sexo cinco vezes “não bastava para ela engravidar”, que transar com uma mulher
grávida não seria bom porque fariam uma “mossa na cabeça da criança”, ou nunca ter
visto uma camisinha feminina. Também, alguns nos relataram ter tido gonorreia ou
sífilis. Poucos conheciam a palavra clitóris, que não estava, segundo eles, no seu
dicionário. Em um grupo, ao falar sobre o tema, o jovem mais velho percebeu que os
outros não estavam entendendo, e disse que explicaria no alojamento. Este seria outro
tema importante a ser abordado em debates sobre sexualidade, ampliando a discussão
para além de aspectos relacionados a prevenção (BARKER, 2008).
Muitos jovens aproveitaram esse espaço para fazer perguntas sobre métodos de
prevenção de ITSs, gravidez, e práticas sexuais, assim como de aborto, às quais
respondemos, e informaram ter poucos espaços Dentro e Fora do estabelecimento para
discutir suas dúvidas, mesmo reconhecendo em alguns momentos o trabalho de
vários/as profissionais do CAI em abordar esses temas em atividades que, infelizmente,
não atingem a todos.

190
Cabe apontar que também observamos faltas de informação nessa temática por parte de alguns
profissionais.
347

Escutamos uma grande maioria de jovens afirmar que não gostam de usar
preservativo, o que não é único dessas trajetórias. Isso faz com que alguns nunca
usem, outros usem ocasionalmente e outros, mesmo não gostando, usem. Alguns
tinham o costume de buscar no posto de saúde ou comprar na farmácia e afirmaram
usar sempre, fazendo questão de ressaltar isso nos grupos. Outros disseram que o pai
ou a mãe entregavam para eles, insistindo em que usassem para “não repetir” uma
parentalidade “tão novos” quanto eles/as. Um jovem inclusive disse que gostava que as
mulheres colocassem a camisinha nele como parte do erotismo. Outro disse que tinha
repensado a sua rejeição depois de uma palestra que ouviu no CAI.
No entanto, foi muito recorrente a recusa ao uso da camisinha, o que passa por
várias questões para além da falta de informação, incluindo os agenciamentos da
masculinidade (BARKER, 2008), expressados em falas como “eu gosto pele com pele”,
“não é tão bom com camisinha”, “não é a mesma coisa”, “atrapalha”, “é muito ruim”,
“usar dá uma amolecida”, “quando a vontade vem, esqueço de usar”, “demora para
colocar, é complicado”, “tenho medo de doença, mas vai rolar a situação, esqueço de
tudo”, ou, como apontado por Antonio, “camisinha rasga”, ao que eu apontei que isso
poucas vezes acontece, e ele disse “quando o sexo é bonzinho não rasga, mas quando
é de verdade, se o homem pega mesmo, pode rasgar”, pois “homem viciadão
machuca”.
Alguns jovens relataram que é raro as parceiras pedirem para usar, e quando
pedem é só na primeira vez. Outros falaram que muitas mulheres não gostam de usar.
Também disseram que “se elas pedirem, eu uso”, ou “insisto um pouco para não usar e
elas esquecem”, “tento dar uma enrolada, mas se ela quiser usar, tudo bem”, dentre
outras negociações que revelam as relações de poder e prazer e a relevância da
dimensão relacional do gênero ao pensar saúde sexual e reprodutiva (SCHRAIBER;
FIGUEREIDO, 2011; NASCIMENTO; SEGUNDO; BARKER, 2011). Miguel Ángel já
apontou que “quando uma mulher não quer usar a camisinha deve estar mandada”,
quer dizer, com Aids.
Nesse sentido, também foi muito interessante escutar de que forma alguns
jovens decidem quando usar preservativo e quando não, evitando o contágio de ISTs
através de um filtro. Christian Alfonso, por exemplo, disse usar camisinha só com
348

homens, pois não temia contágios de parte de mulheres. Outros relatavam filtros com
as mulheres que revelam dobras de gênero, classe e raça: Mauricio disse que não usa
camisinha com a companheira, só com as outras parceiras sexuais, Jesús já fica atento
a se elas são “faladas, pegadas”. Antonio diz que “se for muito magrinha, pode ter
Aids”, ou “eu logo vejo se os pés são russos – limpos”. Jorge aponta de que forma a
estética atravessa esse filtro:

Jorge: de doença, tipo assim, eu tenho medo, pá, mas tipo assim, o que eu to te
falando, o que eu to falando pra senhora, pra você, eu não sei se tenho essa
condição, mas eu sou mais de escolher, pá. Aí tipo assim, eu olho assim, pá,
fico escolhendo, pá, eu não vou pegar aquela garota que não é muito vaidosa,
pá, eu gosto de vaidade, eu fico vendo, pá, se a garota é bonita, pá, tipo assim,
se tá bem produzida, pá, né? E sempre que as garotas vem eu dou aquela
olhada, pá, tipo assim, não é na hora tirando a roupa, fazendo sexo, eu
converso primeiro, olho, faço pergunta, pá. Tem garotas gostam que eu
pergunte, ter uma conversa, pá. Mas, tipo assim, se eu vejo que a garota não é
vaidosa mesmo, que não tem uma fama muito boa, pá, e eu não tenho
camisinha, eu não faço sexo não. Se é uma garota que não tem uma fama
muito boa, mas a garota é bonita, que eu quero pegar, uso camisinha, se não
tiver, não faço não.

Jorge Antonio trouxe, novamente, os atravessamentos de raça e classe no filtro


realizado pelo irmão:

ah, meus irmão são muito maluco, sei lá, um não gosta de usar camisinha de
jeito nenhum, e eu falo “pô, usa camisinha, esse negócio é coisa séria”, e ele
“po, deixa comigo, vou usar, vou usar”, mas ele não usava também. Mas ele fez
teste e não tava com nada também, porque pegava essas meninas, como,
bonitonas, meu irmão é mais bonito do que eu, tem olhos azul, cabelo loiro
também, aí pegava várias mulher lá, só patricinha, aí pegava várias patricinha.

Carlos Iván também, ao falar das “putas” com as que se relacionava:

Jimena: mas elas também ficavam com outros, é isso? E você ficava sabendo?
Carlos: ficavam mesmo. Por isso que eu usava camisinha
Jimena: e com sua namorada atual você não usa?
Carlos: não
Jimena: e se ela engravidar?
Carlos: ah, assumo (com tom de que é obvio)
Jimena: você gostaria de ser pai?
Carlos: claro!!
Jimena: agora?
Carlos: agora. Assim, trabalhar, responsa
Jimena: e com as outras usava?
Carlos: com as outras, claro!! To maluco? Pode dar doença dessas aí
349

Emiliano disse que ele usava com as mulheres que iam na boca buscá-lo, não
com a namorada, e Felipe aponta:

Gabi: e você se previne pra não ter filho?


Felipe: uhum. Com a mulher de casa, uso camisinha
Gabi: e com as novinhas?
Felipe: ah, com as novinhas que é tranquilo, já fiz sem camisinha mesmo
Gabi: e aí? Se a novinha engravida?
Felipe: ah, mas eu tenho a consciência.
Gabi: na hora tu tira?
Felipe: na hora eu tenho a consciência.
Gabi: na hora tu goza fora?
Felipe: uhum
Gabi: mas com a mulher de casa tu usa camisinha?
Felipe: uhum
Gabi: sempre?
Felipe: não, ela toma remédio também.

Jorge Aníbal, cujos pais faleceram por complicações de HIV, relata de que forma
muitas questões até agora faladas se relacionam na hora de falar sobre prevenção de
doenças:

Gabi: você sempre usa camisinha?


Jorge Aníbal: não, não não
Gabi: o que que define você usar ou não?
Jorge Aníbal: sei lá. Se eu posso confiar
Gabi: aí essa primeira que você transou, você achou que não podia confiar?
Jorge: é
Gabi: aí botou camisinha. Essa tua namorada tu já confia?
Jorge: não, eu usei duas semanas, três semanas, e depois não
Gabi: o que mudou?
Jorge: sei lá
Gabi: porque você usou só nas três primeiras semanas e depois parou?
Jorge: ah, porque eu tinha confiança nela, não tinha nenhum tipo de doença
assim
Gabi: como você sabe?
Jorge: porque eu acompanhava ela, aonde ela ia eu levava ela
Gabi: você traia ela?
Jorge: sim
Gabi: e ela te traia também?
Jorge: não
Gabi: ela sabe que você traia ela?
Jorge: ah, sabia
Gabi: e mesmo assim ela continuou com você?
Jorge: sim
Gabi: e quando você traia ela com outras meninas, você usava camisinha?
Jorge: às vezes sim, às vezes não
Gabi: então, mesmo estando juntos há um ano e três meses, você podem estar
se relacionando com outras pessoas, então podem pegar doenças e você
passar pra ela ou ela pra você
350

Jorge: é
Gabi: mas isso nem passa pela cabeça na hora
Jorge: não

Foi interessante pensar que muitas vezes o uso do preservativo estava


relacionado com a prevenção de ISTs e não tanto à prevenção da gravidez, o que
também foi observado por Nascimento, Segundo e Barker (2011). Assim, muitas falas
dos jovens evidenciaram que a prevenção da gravidez é uma preocupação das
mulheres
Por sua parte, Jesus destaca o envolvimento no tráfico e suas limitações, assim
como a importância da fecundidade para a noção da viralidade (BARKER, 2008):

Gabi: e ela ficou grávida de primeira?


Jesús: é
Gabi: e aí, quando ela te contou que tava grávida?
Jesús: mmm, fiquei feliz, né? Mas eu já sabia, né? Porque é forte
Gabi: ah, tu já sabia que era forte?
Jesús: é!
Gabi: como que tu sabia disso? Tu achava, né?
Jesús: não!! Uma vez eu ficando com uma mina, eu tirei na hora, só pingou só,
e ela ficou grávida
Gabi: e ela perdeu?
Jesús: não, ela tirou
Gabi: você pagou pra tirar?
Jesus: não (risos)
Gabi: quem pagou?
Jesus: ela mesmo. Eu não tenho essa não, filha (risos)
Gabi: essa qual?
Jesus: de pagar, se quiser ficar grávida, ela fica, filha, eu vou cuidar do meu
filho
Gabi: você cuida desse filho?
Jesus: cuido
Gabi: você acompanhou a gravidez, foi no hospital?
Jesus: não
Gabi: então como você cuida?
Jesus: ah, eu cuido... não cuido, não cuido assim de... mas quando saia eu vou
cuidar, vou passar mais tempo com ele
Gabi: mas você convivia com ele antes de vir pra cá?
Jesus: não, só às vez só, que eu descia mesmo do morro pra ir, que não
gostava muito de ficar me arriscando não.

Observamos bastante o discurso de que são as mulheres que devem se


prevenir, tornando-as responsáveis pelo planejamento familiar, o que corresponde a
uma
351

estratégia biopolítica de atuação e controle das populações, inserindo a mulher


como responsável por essa atribuição, a princípio de ter filhos e depois de
planejar quando e quantos tê-los, na disciplina da contracepção. Pode-se
observar, desde aí, a distinção e separação entre reprodução biológica e
sexualidade, situações que concretizam as relações e desigualdades de gênero
nas sociedades (SCHRAIBER e FIGUEIREDO, 2011).

Vemos, assim, que muitos jovens, não todos, relatam não estar minimamente
preocupados com a prevenção da gravidez, pois quando ela é evitada, é porque elas
tomam anticoncepcional (BARKER, 2008), o que em alguns eles não sabem por certo,
mas, como apontado por Jorge, é quase generalizado: “a maioria toma remédio hoje
em dia!”, ou a gravidez foi interrompida espontaneamente191, o que tinha gerado tristeza
neles192.
Assim, aparece um controle das mulheres através disso, onde mesmo eles
podendo ser “um cara que deixo o filho para trás e 'meto o pé”, ou “tem um otário lá
para bancar meu filho”, ela “não pode abortar porque é meu filho”, “se tirar, ela vai ser
tirada, vai ter aquela cena”, ou relatando momentos em que as companheiras tinham
decidido abortar contra a vontade deles. Vemos assim o machismo imperando, onde a
decisão por ter filhos pode ser exclusivamente masculina, sem que haja
necessariamente nenhuma relação entre gerar o/a filho/a e se ocupar ou se
responsabilizar por ele/ela.
No entanto, escutamos algumas falas distintas. Em um grupo, a partir da foto da
mulher grávida (foto 5 anexo A), José Luis disse ela parecia arrependida, pelo que
perguntei o que ele achava que ela deveria fazer se estivesse. Miguel disse que podia
usar chá de maconha para abortar, e Saúl interpelou, dizendo ser contra o aborto, que
“mesmo sendo mulher de pista, eu pegaria meu filho dele pra criar”.
Jorge Antonio já apontou que para ele era importante planejar esse momento
embora o método de prevenção fosse novamente responsabilidade da companheira:

191
José Luis relatou que a companheira tinha perdido ao escorregar no ambiente de trabalho, em um
restaurante de comida rápida, por estar fazendo uma tarefa arriscada. Ele disse que ficou com vontade
de ir matar o patrão dela.
192
Emiliano também relatou que o filho, cuja notícia tinha deixado ele “todo bobo”, tinha falecido pouco
depois de nascer por problemas respiratórios, o que provocou que ele chorasse muito.
352

Jimena: você usa camisinha?


Jorge: (assente)
Jimena: sempre?
Jorge: claro! Gosto de fazer com camisinha mesmo, só com minha namorada
agora, como, não usava camisinha, porque eu achei a pessoa ideal, e eu e ela
fomos juntos fazer aquela de DST, doenças sexualmente transmissíveis, minha
mãe também fazia, aí peguei e já fui fazer, não deu nada em mim e não deu
nada nela, aí fomos fazer relação sem camisinha. Mas só com ela mesmo, com
outras pessoas eu uso camisinha
Jimena: e você não ficava com medo dela engravidar?
Jorge: ela tomava uma injeção, eu pagava pra ela, ela tomava uma injeção
Jimena: ela já tomava antes de te conhecer?
Jorge: ela não tomava não. Ela falou pra mim, “pô, até queria ter filho contigo”,
mas eu sou muito novo ainda, “pô, não vai ter como não”, eu falava pra ela, e
ela “po, mas tu não gosta de mim?” e eu falei “eu gosto de tu, mas não é a hora
certa pra nós ter filho, só vou ter filho, como, quando tiver feito faculdade, que
tiver um trabalho bom pra sustentar meu filho, sustentar meu filho e sustentar
nós também, que não vai adiantar fazer um filho e ficar, sabe, aí meu filho
passar necessidade”. É só ter um trabalho certo, uma condição boa pra mim
criar o filho, aí só que vou ter filho.

A partir do abordado neste capítulo, podemos pensar na necessidade de


deslocar e transformar corporalidades sedentárias, marcadas pela violência, no sentido
de explorar os múltiplos devires, potencialidades e intensidades em movimento que
nossos corpos oferecem (BRAIDOTTI, 1996).
353

6 A DOBRA QUE (SE)TENSIONA E (DES)DOBRA

Em uma conversa com os diretores do CAI, depois de dois anos de pesquisa,


comentávamos sobre o caso de Emiliano e Adán, que tinham “formado casal”. Um
deles disse que uma alternativa que estava sendo pensada para legitimar a união entre
os jovens era fazer um casamento homoafetivo o qual, segundo uma profissional, foi
ideia de outro jovem e para o qual eu seria convidada como madrinha. Ele falou, em
tom de brincadeira: “agora sim vai ser CAI Mancada”193, e relatou que alguns jovens de
outras unidades estavam solicitando ir para o CAI, devido à flexibilidade que a unidade
tinha quando comparada com outras, apesar dessa flexibilidade não ser assumida
como positiva pelo corpo inteiro de profissionais.
Um par de meses depois, quando Emiliano já tinha saído da unidade, realizamos
uma visita ao alojamento ocupado por Adán e Abel, jovem vivendo com HIV, que tinha
sido encaminhado a esse alojamento por ter se relacionado sexualmente com vários
outros jovens e, quando foi testado positivo durante sua estadia no CAI, esses outros
jovens o ameaçaram. Abel apontou que estavam nesse alojamento “porque somos
diferentes, não somos suficientes para o convívio”, revelando novamente as
moralidades e suas categorizações na demarcação dos espaços na gestão da
diferença. Adán, por sua vez, se mostrou receoso de estar em um alojamento
considerado de castigo, sendo que ele “não fez nada de errado”. Nesse momento
descobrimos que eles estavam sofrendo preconceito dos jovens do alojamento do lado,
o que fazia com que quisessem trocar de galeria, mesmo estando mais tranquilos
apenas eles dois. Algumas profissionais nos relataram que já tinham disponibilizado o
preservativo para eles dois, apesar deles afirmarem que não estavam tendo relações
sexuais, mas elas insistiram falando que só estariam disponíveis caso quisessem, que
não precisavam pegar. Nos perguntamos se não podia se adotar essa estratégia em
outros alojamentos.

193
Como apontado por Carla Mattos, esse apelido revela uma forma hegemônica masculina de ver o
mundo e de classificar pessoas e espaços a partir disso, por interpelar a necessidade de fixidez de
normas.
354

Os casos desses três jovens, como já anunciei, foram extremamente


mobilizadores no CAI, em palavras de profissionais, “bateram o pé na porta”, trazendo à
tona práticas e discursos relacionados com gênero e sexualidade, tanto no sentido dos
rígidos códigos (inter)institucionais e suas conexões estratégicas, quanto nas suas
linhas de fuga. Afetos passam e perpassam a vivência na instituição-estabelecimento,
ainda que este movimento molecular coexista com uma série de normas molares,
duras, cristalizadas, que giram em torno do preconceito, do machismo e da homofobia.
Assim, possibilitaram tornar mais palpável tudo que vivenciamos ao longo do campo.
Graças a esses três jovens, percebeu-se a urgência da implementação do
preservativo, retirando seu caráter de desnecessário percebido por grande parte das
equipes. Foram casos que, em um território com regras instauradas nos silêncios,
escritos, orientações, lembranças/ameaças de violência, acionaram outro tipo de
regimes de enunciabilidade e visibilidade.

talvez ambos – o visível e o enunciável – possam significar trovões que


subsistem somente a partir de condições específicas de luminosidade e
sonoridade, positivadas tanto pelas relações de força, como por outras formas
de saber que lhes são correlatas (MARCELLO, 2004, p.201)

Novamente, as ISTs se apresentavam como a aproximação mais exitosa da


instituição para tocar no tema da sexualidade. Diante disto, foi considerado necessário
e urgente um curso direcionado a profissionais, que constituiria a “última etapa para a
implementação”, segundo algumas profissionais que estavam há tempos realizando
ações focadas na prevenção de ISTs, incluindo preservativos e panfletos informativos
prontos para serem distribuídos e que estavam sendo solicitados por alguns jovens e
alguns agentes.
Nesse contexto, fomos convocadas a coordenar o Curso, cujo programa foi
realizado conjuntamente com duas dessas profissionais, contribuindo, a partir da noção
de direitos sexuais e reprodutivos, na sistematização do entendimento do gênero e da
sexualidade como organizadores da vida na unidade e como fundamentais ao pensar a
socioeducação, vista como um exercício pedagógico de produção de uma plataforma
de ações e de ressignificação dos diversos lugares sociais.
355

Dessa forma, em um campo rico em jogos de forças, mais uma vez


pretendíamos desestabilizar conceitos, noções e práticas relacionadas com gênero e
sexualidade, entendendo essas noções como profundamente imbricadas com outras
texturas da vida, implicando em dobras que tecem o cenário da produção de
subjetividades. Parecia-nos importante trazer isso ao plano do visível na unidade, de
forma a possibilitar a produção de linhas de fuga, entendidas como vetores de
desterritorialização (ZOURABICHVILI, 2004).
Como apontado por Natalia Padovani (2015, p.78), “só é possível ser aliado
daqueles de quem se tem confiança, com quem se tem expectativas de reciprocidade”,
o que fez pensar que essa demanda de certa forma revelava como tinha sido
construída a nossa relação com o campo. No percurso rizomático da cartografia, neste
caso feminista, caracterizada pela experimentação e a sensibilidade, onde se procura
potencializar e aliar vozes, esta demanda trouxe novas possiblidades de passagens e
de saídas – mesmo que provisórias - do campo (ZAMBENEDETTI E SILVA, 2011), em
uma temporalidade múltipla da pesquisa, com idas, vindas, lembranças e projeções.
É a partir desse processo que vou desenvolver este capítulo, abordando as
potências e tensões perpassadas e produzidas nesta pesquisa-intervenção, acionando
o movimento de análise de implicação. Nesse contexto, buscamos, a partir da produção
colaborativa, trazer os analisadores da nossa pesquisa-intervenção para a cena,
enunciando as malhas/tramas de poder na contenção, controle e organização do
gênero e da sexualidade e de gestão de subjetividades e corpos, buscando pensar
saídas coletivas a conflitos a partir da troca de pontos de vista. Foram processos de
experimentação e suas potências, apesar de nem sempre com os desdobramentos que
esperávamos.

6.1 “Já é da casa”: implicação, intervenção e parcerias no campo

Como mencionado anteriormente, o compromisso político é uma das pistas da


metodologia feminista. Retomando uma palestra de Patricia Castañeda, realizada no XII
Colóquio nacional representações de gênero e de sexualidades, em junho de 2016,
356

as pesquisas feministas geram conhecimentos com adjetivos particulares:


situados, comprometidos e implicados, e essa adjetivação se reflete no papel
central que ocupa o sujeito que conhece, pois o faz desde uma postura clara,
intencionada, política e crítica, de compromisso social com quem interage e de
responsabilidade histórica pelos efeitos dos conhecimentos que se oferecem a
comunidades epistêmicas e aos coletivos sociais possam ter para mobilizar
mudanças substantivas, de preferência radicais (tradução livre, 2016).

Resgatando uma discussão presente em vários momentos deste texto, uma


preocupação da cartografia feminista é a constante reflexão sobre o porquê e a partir
de onde se coloca a/o pesquisador/a no campo. O que e como nos afeta e afeta o
campo deve ser foco de análise a todo momento. Também para a Análise Institucional,
é necessária a análise da “maneira como aquele que intervém se vincula aos
indivíduos, grupos e instituições com os quais trabalha”. A análise de implicação é a

análise dos vínculos (afetivos, profissionais e políticos) com as instituições em


análise naquela intervenção em tal ou qual organização e, de forma ainda mais
generalizada, da análise dos vínculos (afetivos, profissionais e políticos) com
todo o sistema institucional (RODRIGUES; SOUZA, 1991, p.43).

Nesse processo, é importante considerar as nossas referências e práticas


institucionais, com sua história, suas relações, não só no campo, mas no contexto
sociopolítico, colocando em análise as instituições que nos atravessam e que nos
constituem, saindo dos nossos portos seguros a partir da análise de implicação
(COIMBRA; NASCIMENTO, 2008). Maynar Leite, a partir de uma releitura de Passos e
Barros, entende a análise da implicação “como a apreciação vivencial dos lugares e
relações já configurados no campo de ação, bem como dos lugares do pesquisador: os
que ele deseja, os que lhe são designados e os que consegue sustentar” (LEITE, 2014,
p.804).
Diante disso, pensar no caráter coletivo das pesquisas, é primordial, criar
métodos em equipe, recuperando as perspectivas diversas dessas pessoas e
elaborando coletivamente com as/os participantes a produção e a análise dos
conhecimentos a partir dos problemas, multiplicando os sentidos e inaugurando novos
problemas (BARROS; BARROS, 2013). Os Cursos e seus desdobramentos foram
fundamentais para isso, no sentido do engajamento de algumas/s jovens e
357

profissionais, potencializando sua contribuição com a pesquisa e produzindo


discussões e movimentações que lhes eram pertinentes.
Assim, foi importante compreender o que estávamos acionando e agenciando a
partir do nosso lugar que, mesmo De Fora, acabou sendo de casa, como foi
denominado no último dia do segundo Curso, quando estava mostrando a unidade para
Camilla, Luisa, Bárbara e Vanessa. Nesse sentido, não só nós encontramos parcerias,
mas fomos vistas como parceiras em várias empreitadas para potencializar processos

O interesse em uma pesquisa é mútuo, ele concerne tanto a pesquisadores


quanto a pesquisados. Por isso se pode afirmar que a pesquisa é intervenção:
porque ela gera articulação. Ao se articularem em um dispositivo de pesquisa,
os participantes geram um reposicionamento de fronteiras. Tal articulação é,
simultaneamente, a participação na pesquisa e a descrição desse
reposicionamento. Ou seja, articular-se é participar ativamente na produção de
conhecimento: a pesquisa é tanto mais articulada quanto mais participativa
(BARROS e BARROS, 2013, p.381).

Algumas/ns profissionais na unidade apontavam desde o início do campo ser


“difícil resistir aqui dentro”, “tem muito sofrimento”, e relatavam suas percepções sobre
o vínculo do gênero e da sexualidade com o resto das vivências no estabelecimento,
evidenciando que o debate sobre esses temas já estava presente antes da nossa
equipe chegar, apesar de serem considerados secundários ou etéreos, enquanto
estavam borbulhando nos jovens.
Esses/as profissionais solicitavam leituras194, informação, materiais e métodos de
trabalho com os jovens, assim como uma legitimação da validez dessa preocupação.
Assim, um movimento importante através dos Cursos, também demandados/as por
eles/as, foi providenciar esses elementos de forma sistematizada, visando que essas
pessoas se tornassem multiplicadores/as nessas temáticas, a partir de uma proposta
formativa e reconhecida através de certificados emitidos pela UERJ, outorgando uma
legitimidade acadêmica, em colaboração com a EGSE, contribuindo na progressão de

194
Uma profissional do CAI inclusive participou muito do Ciclo de Debates sobre Violência, Política e
Sociabilidade Urbana, visibilizando seu ávido interesse em ampliar e compartilhar seu conhecimento
sobre a temática.
358

carreira195. Esta foi uma forma de incorporá-los na nossa “comunidade científica” e para
virarem “mediadores/as” (FOLLARI, 2001, p.50) do conhecimento produzido de forma
coletiva.
Desse modo, exercitamos um pesquisar com e não sobre, movimento que
implica habitar um território existencial, para o qual é necessário sair “da posição de
protagonista que descreve categorias psicológicas ou psicologizantes de um
determinado local para provocá-lo a estar engajado como mais um elemento que irá
compor e conjugar forças em um plano comum” (BICALHO; ROSSOTTI;
REISENHOFFER, 2016, p.92) e adotar uma perspectiva ética de abertura a problemas
e demandas. Nós, desse modo, simplesmente participamos da melhor forma possível,
pois, como apontado por elas/es, era difícil garantir um suporte necessário para realizar
ações nessas temáticas.
Nesse processo, foi importante entender a teoria como “o outro lado constitutivo
da própria prática, e não seu oposto exterior em termos da lógica binária” (p. 53).

A pesquisa intervenção problematiza esse lugar de saber ou de saber fazer


previamente constituído, sendo o conhecimento produção entre saberes e
fazeres do coletivo em cena. A análise das implicações nos coloca o desafio de
lutar pela desconstrução de lugares identitários apriorísticos, o de quem pode
descobrir a verdade/o de quem aplica um saber já constituído (ROCHA; UZIEL,
2008, p. 536).

Nos Cursos, investimos em metodologias participativas e dinâmicas que


trouxessem as experiências cotidianas e conhecimentos das pessoas, incluindo os
jovens que participaram, fazendo uma análise colaborativa do campo, levando trechos
de entrevistas e trabalhos dos grupos para discutir com eles/as196, e com uma resposta
prática, como apontado por Fernando. Também procuramos facilitar o planejamento de
ações que movimentassem seus saberes e práticas, incentivando o protagonismo das
pessoas e acompanhando-o

195
A possibilidade de contribuir na progressão de carreira através do valor curricular do curso afetou
negativamente o segundo curso, segundo alguns/as profissionais, pois essa política de progressão foi
congelada pelo governo.
196
Nesse processo, é importante apontar, uma profissional sugeriu não usar os nomes dos jovens ao
trazer os casos para discussão nos cursos, garantindo que as análises não os tornassem alvo de mais
fofocas.
359

Ao tentar descentrar as nossas aproximações, foi importante não observar os


segmentos de profissionais e os grupos de jovens como homogéneos e, nesse sentido,
criar coalizões, comunicações e empatias com pessoas de todos eles. Assim,
gerávamos certas tensões, mas dissipávamos outras. Também foi importante
evidenciar um limite nosso, sempre presente, de expressar que estávamos ali para
contribuir, não para julgar, embora tivéssemos um posicionamento político nítido.
Foi a partir disso que os Cursos se constituíram como intervenções em forma de
encontros de experimentação com profissionais, gestão e jovens que ou estavam
interessados/as em mobilizar certas questões dentro da instituição-estabelecimento, ou
que de alguma forma se relacionavam com pessoas envolvidas no processo – como foi
o caso do grupo de jovens Promotores de Saúde. Igualmente, foi importante o fato de,
como sugerido por várias pessoas, ter oferecido o Curso na unidade, diferente do
costume de ser na Ilha do Governador, onde a maior parte das unidades e outras
instâncias do Degase estão. Este ponto foi destacado pela gestão e por profissionais,
colocando novamente o CAI como referência, onde nós nos inseríamos como
pesquisadoras comprometidas com o aprimoramento do trabalho de socioeducação na
Unidade.
Com os Cursos, pretendíamos uma reverberação da pesquisa em um sentido
concreto, sabendo dos desafios do estabelecimento e como eles tornam as
cristalizações sociais mais dramáticas; produzindo, junto com as pessoas que ali se
encontravam, ferramentas no próprio contexto. Desta forma, se desenhou, no mapa
intensivo das relações da instituição-estabelecimento, uma busca por processos de
singularização que tivessem a possibilidade de frustrar mecanismos de interiorização
dos valores capitalísticos, de afirmar valores em registros particulares e independentes
dos hegemônicos, de devir de forma diferenciada (GUATTARI; ROLNIK, 2011).
A estratégia foi propor encontros, ações e abordagens dos dispositivos de
gênero e sexualidade que tocassem vivências e potencializassem a garantia de direitos,
buscando “uma ética da alegria e dos agenciamentos que cada um deve fazer para
aumentar a potência de agir. A liberdade é pensada como a força de provocar tais
encontros, em um mundo em que não se nasce livre. A liberdade associa-se ao
conhecimento e aos bons encontros (HILLESHEIM; DA CRUZ; SOMAVILLA, 2008,
360

p.57)197. Nesse contexto, o trabalho de produção de outros modos de vida “só se


consegue quando nos encontramos e nos percebemos como forças enredadas
coletivamente. É aí que nos produzimos na criação de redes afetivas e parcerias
amorosas, capazes de ligar o singular ao múltiplo” (COIMBRA, 2008, p.15).
Bons encontros que possibilitaram, dentro do difícil cenário institucional aqui
apresentado, “resistir e efetuar potências heterogêneas e singularizantes” (LEMOS;
CARDOSO; NASCIMENTO, 2012, p.158), criar condições para potencializar outras
possibilidades de relação, que foram além inclusive da inicial negativa de que os jovens
se relacionam sexualmente na unidade. Como já apontei, não só perseguimos fissuras
nesses códigos, mas acompanhamos casos emblemáticos, mostrando de que forma em
áridos panoramas, o amor e a vida pedem/fazem/forçam passagem, em um “devir
revolucionário” (DELEUZE, 2008). Assim,

as práticas punitivas de sanção e de socioeducação se articulam com as


tensões históricas no cotidiano, gerando dispositivos disciplinares de
encarceramento/controle e, ao mesmo tempo, produzem resistências,
fabricando processos de subjetivação dos adolescentes (ABDALLA, 2016,
p.23).

Suely Rolnik (1998) faz uma interessante distinção entre o plano visível e o plano
invisível da relação entre os gêneros. No plano visível, as personagens se reconhecem,
com suas identidades e gêneros, em figuras finitas, classificáveis, em uma ordem de
oposições binárias. Já no plano invisível, os fluxos de produção interminável de corpos
desestabilizam essas figuras e a multiplicidade rege os movimentos. É nesse plano que
podemos nos concentrar para perceber a proliferação das subjetividades, sobretudo no
campo em que estamos, permeado por diversas normativas institucionais que parecem
fixar mais ainda essas figuras. Normativas que vêm dos aparelhamentos que se
instauram nos códigos (inter)institucionais, que implicam um campo de tensões e
conflitos das diferenças e desigualdades.

197
“Como lembra Deleuze, inspirado em Espinosa, se nosso corpo não cansa em ser afetado pelos
encontros sucessivos com outros corpos- pessoas, animais, livros, alimentos, etc.- esses encontros
podem tanto produzir prazer ou dor, quanto alegria ou tristeza. No entanto, todos geram efeitos que
são, também, durações, “passagens, devires, ascensões e quedas, variações contínuas de potência
que vão de um estado a outro” (DELEUZE, 1997, p.157).
361

Desta forma, um importante movimento no nosso percurso foi convidar os jovens


Promotores de Saúde para participar do segundo Curso, no planejamento de
estratégias de implementação do preservativo, ideia de Pati ao escutar o relato de uma
profissional que coordena esse grupo. Novamente, buscávamos potencializar o que
consideramos uma interessantíssima iniciativa para promover autonomia, participação,
liberdade, dignidade, e direitos dos jovens, incluindo direitos sexuais e reprodutivos,
especialmente no contexto já relatado no que tange à dificuldade que o
estabelecimento enfrenta para oferecer alternativas de exercício da cidadania.
No entanto, esse processo também foi difícil em vários sentidos interconectados:
a resistência às nossas propostas ao serem percebidas como alheias à organização do
estabelecimento, a segmentarização e hierarquização das equipes, o aprisionamento e
suas implicações na gestão da diferença, o abuso de dispositivos tutelares, a
naturalização das normas das facções e sua legitimação na unidade, a precariedade e
hiperlotação do Sistema e as implicações éticas das movimentações no campo.

6.2 “É, não vai adiantar mesmo”: resistências e amarras

Como vimos até agora, a constante ameaça de que retaliações contra


transgressões das normas aconteçam configura um hermético discurso de Segurança
que o estabelecimento produz e reproduz, elaborando uma complexa logística que
delimita tempos, espaços e corpos, recorrentemente usada como justificativa para não
avançar no nível micropolítico. Isto definitivamente marcou a nossa pesquisa, tanto nas
atividades com os jovens, como já apontei, e também na hora de articular os Cursos e
seus desdobramentos. Com agendas, demandas, horários e formas de organização e
comunicação distintas das nossas, incluindo precariedades como falta de linha
telefónica e internet na unidade, por vezes nos sentíamos frustradas nas tentativas de
combinar ações, das quais algumas pessoas não recebiam informação ou não
participavam das negociações, fosse por vontade própria ou por serem excluídas delas.
362

Diversas tensões ocorreram no processo dos Cursos. Por exemplo, encontramos


uma grande dificuldade de mobilizar e contar com a plena participação dos agentes –
inclusive, nenhuma agente feminina participou-, especialmente os de plantão, pois eles
eram constantemente convocados a fazer outras tarefas no cotidiano precário da
unidade, onde o Curso não era considerado uma prioridade. Por exemplo, no primeiro
dia do segundo Curso, escutamos um chefe de plantão dizendo “daqui não vai sair
ninguém”. Além das resistências que a temática coloca, da possível falta de disposição
por parte de alguns, para fazer mais do que entendem ser mais do que seu trabalho,
por razões que não nos cabe julgar, o número reduzido de agentes, como mencionado,
bem abaixo do que o previsto pelo Sinase, contribui para falas como esta.
Como já apontado, as resistências às nossas propostas, consideradas como de
alguém De Fora, apareceram bastante, inclusive no segundo Curso, embora fôssemos
reconhecidas por termos contribuído com o estabelecimento durante mais de dois anos.
O desafio era, então, nos posicionarmos como interlocutoras válidas (GARGALLO,
2014) em um lugar constituído em grande parte por hierarquias, fazer ver que o que nós
entendíamos como problema, era problema no campo também, no momento em que a
naturalização incomodava várias pessoas e produzia violências e violações de direitos.
Assim, o que podíamos aportar eram ferramentas para desnaturalizar e deslocar
lugares, inclusive os nossos. Reconhecer os saberes das profissões, dos cotidianos, do
exercício profissional, trazendo a construção teórica, conceitual e política do problema.
Esse não foi um processo harmônico e nem linear, mas cheio de tensões e rizomâtico.

Frente a um “objeto de pesquisa” somos imediatamente convocados a um


posicionamento para a ação. O risco está em localizar (ou reduzir) este objeto
seja em um plano molar – onde ele se delineia como um dentre outros objetos –
seja em sua molecularidade – onde ele se fragmenta em linhas de constituição.
Conjurando as oposições, é a operação de transversalizar que permite outro
modo de investigar. Neste outro modo, o investigar implica a inseparabilidade
dos planos que, de resto, constituem o próprio objeto (BARROS e PASSOS,
2012, p.237)

Como apontado por Benet, Merhy e Pla (2016), o “fazer parte de” também gera
questionamentos e implicações. Assim, ao conseguir fazer parte da produção do
cotidiano do estabelecimento, atingimos um reconhecimento que se bem era em
ocasiões facilitador, em outras obstaculizava, pois já delimitava um lugar do qual não
363

necessariamente todo mundo queria partilhar. Por exemplo, percebemos mais


resistências a participar do segundo Curso do que do primeiro, o que pode ter vários
motivos, incluindo o caráter polémico e concreto do tema, as complicações logísticas e
comunicativas da unidade e a impossibilidade de garantir progressão de carreira, mas
não consegui não imaginar que o fato de que já conhecessem os nossos
posicionamentos influiu de alguma forma. Gestores/as comentaram terem insistido para
que as pessoas resistentes participassem, dizendo que não tínhamos que pensar igual,
mas que era importante escutar. Para nós também foi sempre importante que não
apenas participasse quem concorda plenamente conosco, pois isso continuaria
isolando as parcerias ao invés de movimentar mais pessoas. Assim, alteridade, como
trânsito, teve diversos efeitos.
Nesse segundo Curso, vivenciamos resistências com as quais já estávamos de
certa forma familiarizadas, por terem aparecido ao longo da pesquisa-intervenção. No
entanto, no momento de propor a sistematização de estratégias concretas de
implementação do preservativo, nossas provocações tomavam uma nova dimensão, de
movimentação grande do campo que requeria uma articulação de pessoas e coletivos
que não necessariamente estavam dispostos. Isso foi interessante, porque durante o
nosso percurso, escutamos em várias ocasiões que os cursos costumam ser muito
mais teóricos do que práticos, mas observamos que no momento em que isso se
operacionalizou, as propostas foram mais interpeladas, apresentando argumentos que
eram difíceis de ouvir e que muitas vezes eram os que prevaleciam.
Narro a seguir o processo da inserção dos jovens Promotores de Saúde no
segundo Curso, já que me parece ser um analisador potente para fazer a discussão
sobre as movimentações que ocorreram.
No momento em que fizemos a proposta de que participassem, uma das
profissionais que coordena o grupo conversou com eles. Ainda assim, quisemos realizar
o convite pessoalmente. Nessa primeira conversa, eles imediatamente apontaram que o
preservativo só poderia ser utilizado no seguro, porque eles não eram gays.
Começamos a desconstruir essa primeira impressão, dizendo que o importante era que
o preservativo como direito estivesse disponível para quem quisesse usá-lo, e que sua
disponibilidade não significava que fosse obrigatório. Também apontaram que ia ser
364

uma “bagunça, porque todo mundo vai ficar fazendo bola com as camisinhas”.
Colocamos alguns contrapontos a isso, sugerindo que fazer bola não seria pior do que
deixar as camisinhas que já estavam na unidade guardadas, e que talvez na primeira
semana isso acontecesse, mas que aos poucos deixaria de ser novidade. Quando
escutaram que uma preocupação das equipes era que usariam os preservativos como
armas, não concordaram com ela. Foram dando ideias como: colocar camisinhas
disponíveis em pontos estratégicos na unidade onde os jovens pudessem pegar no
sapatinho, ou na Mesa, para que os agentes controlassem o acesso, ou na enfermaria,
ou com um/a profissional de referência. Ponderaram também horários, quantidade de
preservativos que cada jovem poderia recolher e métodos de descarte, estranhando a
preocupação de profissionais de que nesse processo “entupiriam o vaso”. Frisamos o
papel deles como multiplicadores de saúde e como referência na unidade e na sua
função de contraponto ao discurso institucional de que “não vai dar certo”. Por último,
solicitamos que se preparassem para o encontro com profissionais, sistematizando
estratégias de implementação.
No primeiro encontro de planejamento com profissionais, nos esforçamos em
que os jovens se sentissem mais um grupo legitimado para se expressar e propor, por
exemplo, pedindo para que assinassem seu nome na lista de presença, junto com o
resto dos/as participantes. No início do encontro, eles apresentaram o trabalho do
grupo e o que tinham pensado sobre a questão específica, já mostrando ter se
apropriado do nosso argumento de que os jovens iriam assumir com tranquilidade,
talvez fazendo piadas ou bolas no início, mas agindo com mais naturalidade ao longo
dos dias.
Posteriormente, sugerimos que se formassem grupos para pensar estratégias e
colocá-las em cartolinas (Anexo A), para depois serem apresentadas ao coletivo. Foram
formados três grupos de profissionais e um de jovens. As propostas dos/as profissionais
incluíam orientação contínua da equipe de saúde sobre prevenção, reuniões com a
direção e os diversos segmentos para sensibilizar sobre a questão e com jovens nos
alojamentos e na recepção à unidade, bem como ações para falar sobre preconceito e
homofobia não apenas com os jovens, mas com profissionais, em uma perspectiva de
socioeducação. O grupo de jovens pensou que poderia ser entregue a caderneta do
365

Adolescente, que trabalha esses temas, e propôs orientações que poderiam ser dadas
aos jovens para o bom uso dos preservativos. Também fizeram um mapa dos lugares
onde poderiam ser colocados os dispensadores de preservativos e os dispositivos de
descarte, pensando na logística de espaço, tempo e vigilância, propondo lugares onde
os jovens pudessem pegar sem serem vistos nem revistados.
Tivemos alguns diálogos com as equipes, tentando propor estratégias que não
colocassem os jovens à mercê de um patrulhamento ou exposição que bem
conhecíamos, por exemplo, frente à iniciativa de que agentes fossem os responsáveis
por distribuir o preservativo “para não virar bagunça”. No entanto, na hora de apresentar
as estratégias de cada equipe, foram surgindo diversas travas ao fluxo do diálogo,
mostrando como o tema gera um pânico moral. Os jovens não tinham nem terminado
de apresentar suas propostas, quando alguns profissionais começaram a fazer
perguntas direcionadas a pensar as dificuldades de mudar as normativas propostas
pelos próprios jovens, por exemplo, dizendo incisivamente “mas vocês vão aceitar?”.
Nós e alguns/as profissionais insistíamos na importância de não naturalizar as “regras
de convívio” e em aproveitar as oportunidades para pensar na socioeducação, mas as
resistências eram constantes, fazendo com que a postura inicial de abertura dos jovens
fosse se fechando, impedindo a escuta da heterogeneidade de vozes e obstaculizando
a quem estava disposto a repensar.
Como já apontei anteriormente, ao longo da pesquisa-intervenção alguns
agentes disseram se sentir negligenciados quando comparados à equipe técnica.
Também percebemos que majoritariamente estão distantes de ações socioeducativas,
tanto por estarem inseridos na disputa de masculinidades, quanto, e também por isso,
porque seu exercício profissional se cristaliza em outra direção. Nesse momento do
Curso, nas interlocuções para pensar a implementação do preservativo, percebemos
um “cinismo viril” (VINUTO, ABREO E GONÇALVES, 2017), onde se revelava uma
cumplicidade entre agentes, diretores e jovens, mostrando como em um “mundo de
homens”, onde códigos e moralidades se articulam, nós não teríamos dimensão do que
os preservativos, como reveladores – ou, para alguns, incentivadores – das relações
entre homens, trariam ao coletivo. Assim, percebíamos que era praticamente um
desejo que os jovens reafirmassem suas normas, não só porque isso comprovava
366

certas verdades, mas porque reafirmava a performatividade masculina que, mesmo


distinta daquela dos profissionais, estava no mesmo campo de poder.
Fazendo um parêntese, resgato aqui que anteriormente já tínhamos ouvido que
tinha profissionais de todos os segmentos que “não estavam preparados/as”, que “os
adolescentes devem segurar, como se seguram pra se masturbar”, e que “poderiam ser
pensadas outras soluções, como ter menos tempo ocioso, mais atividades, para não
ficar tanto tempo nos alojamentos pensando em coisas” e que “as famílias não vão
gostar, porque vão achar que os filhos estão transando com outros”, ao que nos
perguntávamos se as famílias prefeririam isso ou que seus filhos fossem contagiados
no estabelecimento, o que inclusive poderia denunciar o Sistema Socioeducativo por
não garantir a saúde dos jovens. O argumento da saúde torna-se então uma estratégia,
ao fazer parte da gestão de vida das nossas sociedades.
Igualmente, tínhamos ouvido resistências por parte dos jovens nas entrevistas
individuais:

Gabi: você ia estranhar se alguém pegasse?


Jesus: ah, eu ia
Gabi: mas você ia falar alguma coisa?
Jesus: eu ia
Gabi: ia falar o que?
Jesus: qual foi, tá pegando camisinha pra que?
Gabi: se você soubesse que tem dois meninos se relacionando na hora de
dormir, você sendo o mais velho do alojamento, você falaria alguma coisa?
Jesus: claro!
Gabi: o que?
Jesus: o que?! Ia tacar a televisão encima, filha
Gabi: ué, mas porquê? Você não disse que se dá bem com a galera do seguro?
Jesus: mas no nosso alojamento??

Jimena: e o que você acha de ter camisinha aqui dentro?


Jhosivani: (risos) aqui dentro? Da casa? (total estranhamento)
Jimena: mas você acha que, por exemplo, quem já tá há muito tempo, não fica
com vontade?
Jhosivani: (nega com a cabeça)
Jimena: você acha que não rola de jeito nenhum?
Jhosivani: da minha parte não, não sei dos outros

Já outros opinavam diferente:

Gabi: você acha que aqui dentro teria que distribuir camisinha?
367

Jonas: pra falar a verdade, tinha, tinha que distribuir. Tipo assim, as pessoas
que gostam, por exemplo, os homens que gostam de se relacionar com outro,
tinha que dar. Tinha que dar camisinha pra eles. Por exemplo, um homem se
relacionar com outro, mas não sabe que tem uma doença. Tinha um garoto aqui
que tem Aids, foi embora por conta disso, tá lá fora. E ele transou com outros
na casa.
Gabi: já fez exame?
Jonas: sim! E nós vamos falar o que, né?
Gabi: e como você sabe disso?
Jonas: ahhh, tipo assim, lá no alojamento dele, tinha muitas pessoas,
entendeu? E... fofoca rola por todo lado, eu ouvi falar.
Gabi: por isso tinha que ter camisinha
Jonas: é, tinha que ter. Se não, nego não vai se prevenir e vai pegar uma
doença qualquer
Gabi: você acha que se colocasse num local de fácil acesso, a galera ia lá
pegar?
Jonas: sim.
Gabi: e usar
Jonas: sim

Jimena: aí você falou que no seu alojamento tem meninos gays?


Bernardo: ah, tranquilo, quem não pode fazer isso sou eu, filha, tanto que não
faço mais esse bagulho não, tá maluco? Já fiz esse bagulho com menor, mas
depois eu fui de novo fazer o teste, não tinha nada, não deu nada, graças a
deus, não deu nada
Jimena: se tivesse camisinha aqui dentro, você teria usado?
Bernardo: ah, teria usado no momento que eu fazia, agora não, agora não faço
mais esse bagulho não

Jimena: vocês já têm acesso a camisinha?


Abel: não! Não
Jimena: mas vocês querem?
Abel: (assente e ri). Todo mundo quer, todo mundo quer
Jimena: até lá encima?
Abel: até lá encima.

No Curso, embora alguns jovens expressassem que o preservativo seria utilizado


ou ignorado nos seus alojamentos, a resposta era imediata: “mas de qual alojamento
você está falando?”, silenciando essas singularidades e frisando novamente a
necessidade de separar os jovens. Acionava-se a diferença da flexibilidade dos
alojamentos – atrelada à performatividade masculina, sugerindo que na Coletiva, no
ritmo frenético do CV, entre os que poderiam ser considerados mais sujeito homem, a
iniciativa geraria violência. No entanto, Luis Ángel Francisco (18 anos, negro) de um
alojamento coletivo, apontou que lá alguns jovens se relacionam entre eles, e que um
inclusive chegou a usar um saco plástico de biscoito como proteção. Esse relato, ao
invés de despertar preocupação pelas consequências na saúde e bem-estar dos jovens
368

e visibilizar que os jovens estavam criando táticas para se proteger, provocou risos do
grupo.
Já Julio Cesar Mondragón dizia que no seu alojamento poderia acontecer, mas
aí “iam ter que orientar os outros” – nos lembrando da dimensão enunciativa do sujeito
homem – e então se tomariam medidas, tais como encaminhar esses jovens para outro
alojamento e separar copos e talheres. Uma das profissionais facilitadoras do grupo de
Promotores ficou surpresa com esse posicionamento, pois esses temas já tinham sido
trabalhados no grupo. No entanto, ele também discordou dos profissionais que
resistiam às propostas, dizendo que mesmo que negativa, a resposta dos jovens à
implementação não seria violenta.
Nesse quadro, parecia que a única resposta para a implementação seria
“separar os homoafetivos”, embora nós insistíssemos que em todos os alojamentos
aconteciam relações entre os jovens, o que tínhamos comprovado nas entrevistas
individuais, ao que apontavam que quem esconde o fato de ter relações não usaria a
camisinha. Percebemos assim que provavelmente o que estava sendo sugerido não era
implementar o preservativo na unidade toda, mas apenas no seguro, dando
continuidade às segmentações, ao serem mais controláveis e possíveis de serem
entendidas.
Percebemos que apesar do machismo ser um modus operandi da instituição-
estabelecimento, arraigado em vários/as profissionais, é mais fácil localizá-lo nos jovens
e não se incluir e responsabilizar pela reprodução de discursos e práticas cristalizadas.
Nesse processo, era interessante observar o acionamento de vários argumentos
discutidos na questão da visita íntima, tais como que os jovens “têm muito preconceito,
que vem da criminalidade”, e que antes da implementação da visita ou dos
preservativos deveria ter um trabalho com eles sobre machismo, já que “eles têm que
compreender os deveres de fazer o que eles querem”, afirmando a irresponsabilidade
dO Adolescente e a condição externa dos códigos.
Tentamos trabalhar com esses argumentos, propondo a garantia dos direitos
sexuais e reprodutivos atrelada à construção de uma perspectiva crítica na pauta da
socioeducação, mas a insistência em que as “regras de convívio” impediriam a
implementação do preservativo era muito grande, ao que alguns jovens concordavam,
369

especialmente Julio Cesar Mondragón, dizendo “sim, essa é a realidade”, “a neurose


vem do homem”, “tem que dançar com a música que tem”, “essa é a regra da casa”, o
que nos fez novamente pensar na autoria e instauração dessas regras.
Foi também apontado que o preservativo incentivaria a violência sexual. Julio
Cesar Mondragón, depois de relatar que tinha evitado que um jovem fosse estuprado
no seu alojamento, sugeriu que a lógica que impera é: “se deu para um, tem que dar
para outros”. Dessa forma, mesmo diferenciando as experiências de estupro e sexo
consentido, condenava ambas. No entanto, outras pessoas apontaram que o fato de ter
preservativo não influiria nos casos de violência sexual, pois quem a comete não iria se
proteger.
Outra questão destacada foi o argumento de que já existem problemas na
infraestrutura da unidade, elemento também utilizado ao longo do campo para recusar a
visita íntima, que “é bonita no papel, mas vejo muito difícil”, ou que “isso é discutido
desde 1999, mas não avança”. Para o preservativo, “as condições são inviáveis” e até
“indignas” devido à hiperlotação. Assim, se sugeria que existem direitos “mais básicos”
ainda sendo violados, e que essa discussão é para o “primeiro mundo”. No meio de
tanta precariedade, desamparo e exigências cotidianas crescentes, parece que a
sexualidade está longe das necessidades urgentes, mas, conforme constantemente foi
evidenciado, ela está atrelada a essas condições. Embora tenha se passado muito
tempo desde o primeiro módulo do Curso que ministramos, tivemos a impressão de
voltar aquele momento, utilizados os mesmos argumentos. Nesse momento, foi
acionado novamente o nosso desconhecimento dessas condições, dizendo que nós –
assim como várias técnicas – não sabíamos como eram os alojamentos, frente ao qual,
como já comentei anteriormente, sinalizei que já tínhamos solicitado visitá-los,
finalmente possibilitando que isso acontecesse.
A visita aos alojamentos fez com que compreendêssemos mais profundamente o
argumento. Certamente, concordamos que as condições são precárias, mas, como
Luisa disse na nossa conversa posterior, essa postura desvia a atenção da garantia dos
direitos e o argumento não é suficiente para barrá-la. Uma situação semelhante
acontece com a visita íntima, como comentado por uma profissional de saúde, que
embora entendesse que, por exemplo, a visita demandaria testagem para ISTs que a
370

unidade teria dificuldade para garantir, “a ideia deveria ser garantir o direito, não
dificultar o processo”. No debate do Curso, Vanessa, Anna e alguns/as profissionais
insistiram na dimensão da saúde e na importância de que o estabelecimento a
preservasse, argumentando que a unidade não podia ser conivente com jovens se
contagiando com doenças ali dentro e que essas questões não deviam ser postas de
forma hierárquica. Camilla apontou que as práticas acontecem e vão continuar
acontecendo, a única diferença é que agora teria a possibilidade delas serem seguras,
o que significaria a garantia de um direito. Quem quisesse fazer escondido ou quisesse
seguir as regras de convívio, não seria impedido de fazê-lo.
Associado a isso, foi assinalada a dificuldade de garantir a privacidade dos
jovens que se envolvem nessas práticas, pois eles “fazem fora da hora” ou “fora do
local” considerados apropriados. Novamente, concordamos, como apontado por
Vanessa, que a configuração do espaço não deixa que nenhum tipo de intimidade
aconteça. Por outro lado, escutamos táticas que os jovens criam para preservar essa
intimidade. Igualmente, não podemos deixar de pensar que nesses argumentos estão
atravessadas moralidades por se tratar de dois homens, não apenas restritas à relação
sexual, mas a outro tipo de expressões eróticas e afetivas que, ao fugir da
cisheteronormatividade, são consideradas desrespeitosas.
Foi assinalado, inclusive em vários momentos anteriores ao Curso, que o
descarte seria um problema, pois poderiam entupir o vaso. Nas entrevistas, alguns
jovens apontaram saídas:

Gabi: ia jogar fora como?


Jonas: dentro do alojamento tem lixo! Entendeu? Tem lixo. É só dar um nó e
jogar no lixo. E toda manhã tem o carrinho pegando o lixo
Gabi: vocês mesmos recolhem o lixo?
Jonas: sim, sim
Gabi: ou seja, nem precisava os agentes irem lá dentro ver isso, vocês mesmos
recolhem o lixo do banheiro
Jonas: ahá, lá mesmo recolhe e bota dentro do carrinho que vem.

Uma profissional também relatou que os jovens tinham sugerido colocar caixas,
tal como acontece nos centros de saúde. No Curso, os jovens já tinham uma proposta
para o descarte, mas antes de a enunciarem, já estavam sendo colocados empecilhos,
371

sugerindo que eles iam “jogar pela janela” ou que deixariam rastros que os delatariam,
diante do qual os jovens propuseram embrulhar com pacotes de biscoito.
Ainda nesse primeiro encontro, mesmo tendo sido muito tenso, acredito ter sido
importante que os jovens vissem que existem argumentos que podem se contrapor ao
que as normas mais rígidas estabelecem, inclusive às autoridades. Também foi
importante para visibilizar a existência de mudanças no que tange à abertura a novas
propostas, como apontado pelo próprio Julio Cesar Mondragón ao afirmar “não, mas as
coisas já mudaram”, revelando possibilidades de diálogo e de transformação. No
entanto, as resistências a essas mudanças também se vislumbravam, no momento em
que um jovem falou para Bárbara “posso falar uma coisa? Isso aí não vai dar certo não,
não vai acontecer nada disso. Tá vendo, até o próprio diretor falando? Isso não vai
adiantar de nada”, enquanto outro disse “esses caras só quer dificultar”. Eles repetiram
que não seria tanto problema, que os jovens poderiam pegar para usar e orientar,
conhecer para usar com as companheiras, dentre outras utilidades. Assim, a
participação deles foi importante, tanto para nos deslocarmos e entendermos a
complexidade de lidar com os apegos às normas, quanto para deslocar os jovens a
respeito da homogeneidade dos discursos entre as equipes, quanto para que quem
estava resistente enxergasse alguns caminhos.
No segundo encontro, com jovens e profissionais, mais algumas questões
apareceram. Antes de começar, uma das profissionais que facilita o grupo apontou
estar preocupada, pois os jovens tinham percebido que ocupar o lugar de
multiplicadores nessa ação poderia trazer consequências que não necessariamente
desejavam, pois os vincularia com transformações intensas que eles não queriam
assumir, tanto com os outros jovens, quanto com o estabelecimento. Mesmo
enunciando que a experiência do curso de Promotores tinha sido benéfica, virarem
referências e inclusive xerifes do acesso ao preservativo, vigiando sua adequada
utilização e sendo responsáveis por encaminhamentos e contravenções, poderia trazer
prejuízos ou constrangimentos, o que parecia ser muito ponto para lidar e foi os
desencorajando.
Nesses dias entre um encontro e outro, eles tinham realizado uma consulta nos
seus alojamentos. Jonas, do Seguro, disse que apesar de não ter viado nesse
372

momento no seu alojamento, não existiria problema em ter camisinha, e que “nada se
perde em tentar”. Outros jovens da Coletiva e da Individual apontaram que “fechou
não”, “esse bagulho não é maneiro não”, “não cola não”. Julio Cesar Mondragón, o mais
apegado às normas do tráfico, disse “na coletiva não rola, não”, e depois apontou “eu
não vou falar nada não, aí depois chego na pista, e vão falar que falei isso”, “se ele for
pego na infracção, respondemos pela coletiva”198. Nesse momento, era novamente
posto o aparelhamento do estabelecimento a partir das suas porosidades com as
facções e de que forma elas constituem as performatividades masculinas de forma
articulada nos códigos (inter)institucionais, em suas linhas mais endurecidas. Todavia,
era impactante a forma como o acesso a preservativos mexia tão profundamente com
essas questões. Embora percebêssemos que nessas semanas a postura tinha mudado
bastante e duvidássemos que esta viesse apenas da conversa com outros jovens,
consideramos importante pensar no lugar que Julio tinha dentro do alojamento, onde
seu papel é seguir e transmitir as regras da facção, não o discurso que estávamos
levando199.
Desse modo, a maioria dos jovens expressou que não desejava mais esse lugar,
especialmente considerando que, como expressado por uma profissional, nessa
experiência, “sair é mais importante do que garantir os direitos aqui dentro”, e manter
uma relação tranquila com o resto da Unidade seria mais importante do que enfrentar
questões que para eles não eram tão relevantes. Assim, parece importante retomar a
reflexão sobre as implicações éticas de convidar os jovens a um processo que não
necessariamente sabiam como ia se desdobrar, ninguém sabia. A participação deles
acabou sendo um dispositivo na disputa entre as posturas de quem lá estava.
Assim, os jovens vieram nesse segundo encontro mais à defensiva. Julio Cesar
Mondragón disse “se colocar camisinha, eles vão achar normal e daqui a pouco vai ter
homem rebolando por aí”, “vai incentivar a sem vergonhice”, “vai estuprar mais” e que
só poderia ter preservativo na hora de implementar a visita íntima, pois haveria uma

198
Não conseguimos saber se ele quer dizer que a infracção seria pegar a camisinha, ou ter relações
sexuais
199
Pati apontou às profissionais que facilitam o curso que além da capacidade comunicativa e de
liderança, seria importante considerar essas questões nos critérios para formar os grupos de
Promotores, para os quais é necessária uma postura comprometida com a saúde, o que significa
mudanças.
373

justificativa plausível. Nós tentávamos provocar essa postura, mas as forças eram
tantas no espaço, que o exercício se tornou praticamente impossível, especialmente no
momento em que esses argumentos encontravam eco entre os/as profissionais,
impossibilitando problematizações e diálogos críticos.
Miguel Vale de Almeida aponta que no território de disputa masculina, acontece
uma “avaliação do comportamento [...] feita em função de um modelo, e a disputa dos
atributos e da pertença ou não ao modelo provam que este é uma construção ideal. Só
que, como as avaliações se fazem a partir de actos vistos e narrados, o comportamento
dos homens tende a “mimetizar” as prescrições do modelo” (VALE DE ALMEIDA, 1996,
p.171). Certamente, em muitas das performatividades que eles apresentam para nós,
observamos essa mimetização dos modelos mais violentos de masculinidade, mas
também observamos uma diversidade de brechas nesses lugares tão cristalizados,
invisibilizadas pela narrativa única dos códigos (inter)institucionais. Como Silvia Ramos
disse no Ciclo de Debates sobre Violência, Política e Sociabilidade Urbana, as
instituições de privação de liberdade são dos maiores produtores de homogeneidades
violentas e a hiperlotação parece aumentar as possibilidades de universalização e
saturação das relações.
Assim, mais uma vez, se apontava que a saída possível era ir colocando o
preservativo em pontos críticos e ir sentindo a temperatura da unidade, estendendo
cada vez mais a implementação. No entanto, uma profissional disse “aqui a gente pode
enfraquecer as regras ou fortalecê-las. Trabalhar com a metade vai ser reforçar essas
regras”, embora entendesse a dificuldade de enfraquecer as regras “sem vulnerabilizar
os meninos”. A direção apontava que os jovens eram os que mais fiscalizavam e que os
agentes eram resistentes justamente por conhecerem as regras dos jovens, o que
demonstrava de que forma era necessário antes “quebrar alguns muros” para “preparar
o terreno”. Nesse sentido, foi considerado positivo que os jovens falassem abertamente
sobre as regras, para que nós soubéssemos ao que o estabelecimento se enfrentava.
Pensando sobre isso, entendemos a postura da direção, no sentido da
responsabilidade de manter a ordem/tranquilidade na unidade, mas ainda assim
consideramos que na gestão da diferença adotada, acabam se reforçando as “regras
do convívio”, invisibilizando a forma em que estas podiam ser – e eram – dribladas,
374

trabalhadas, modificadas ou contestadas por várias pessoas na unidade muito para


além de um alojamento Seguro, em práticas e iniciativas criativas.
Nesses dois encontros, apesar dos agentes terem se engajado bastante na
construção de propostas de formação e terem conseguido falar de si, o que pouco
acontece no ritmo da unidade, um deles pontuou que a formação seria o único tipo de
ação que poderia ser realizado nessa temática, pois não se tinha condições para
implementar o preservativo. Outro sinalizou que a camisinha só ia “agravar a situação
no CAI, especialmente pra nós do cadeado”. Dessa forma, se visibilizou novamente
uma disputa entre os segmentos, onde alguns agentes e seus/uas defensores/as
afirmavam o caráter fundamental e inquestionável da Segurança no estabelecimento.
Nesse contexto, nós, psicólogas, De Fora e, sobretudo, mulheres, nunca
entenderíamos as tensões ali apresentadas, o que nos colocava em um lugar
subalterno de saberes do campo. Embora “já” fôssemos “da casa”, a casa é dos
homens, e “perdê-la”, no sentido de ser incapaz de impor certa ordem, significaria uma
afronta às performatividades masculinas em jogo. Isso nos fez nos interrogarmos sobre
o convite que recebemos para facilitar o Curso. Em um momento em que todos nossos
argumentos eram barrados, Anna perguntou “então pra que que a gente está aqui?”, ao
que um profissional disse “é, não vai adiantar mesmo”. Assim, apesar de contar com o
aval da direção, legitimado no momento em que os diretores participaram do Curso, se
revelavam forças que buscavam mostrar a impossibilidade da implementação.
Nesse processo, foi evidenciado que nossas dobras de gênero, profissão, lugar
no estabelecimento e posicionamento político, não só nos amarravam, mas eram alvo
de desdém. Assim, não conseguimos muitas vezes deslocar as certezas, mas pelo
contrário, afirmá-las, recebendo enunciados produtores de verdades e privilegiadores
de sujeitos possuidores exclusivos do conhecimento sobre o campo. O discurso dos
jovens era usado para engrenar e legitimar os mecanismos de disciplina e controle
sobre eles, o que, no campo argumentativo na disputa por legitimidade, marcava que
nós estávamos erradas ao propor mudanças e o que apontávamos não fazia diferença
para eles. Dessa forma, os argumentos dos jovens eram usados contra eles mesmos,
no sentido da rígida regulamentação que não permitia ver nascentes de vida.
375

Como esses, posicionamentos rígidos sobre o funcionamento institucional e


sobre a vida social em geral200 estiveram permanentemente presentes no Curso – e em
outros momentos do campo-, incluindo participações que pareciam estar procurando
desestabilizar as nossas propostas. Confesso que esse tipo de argumentos e a forma
de apresentá-los, sem escuta – apesar de termos realizado acordos por escrito desde o
primeiro dia-, assim como atitudes pouco interessadas de outros/as profissionais que
me pareciam uma conformidade com as fixidezes do estabelecimento, me provocaram
bastante, chegando a me enfurecer, às vezes muito mais do que as posturas machistas
e homofóbicas dos jovens, ao considerar que como funcionários/as públicos/as
comprometidos/as com a socioeducação, os posicionamentos deveriam ser distintos.
Nesses encontros, as intensidades pareciam diminuir a potência para a ação,
onde o corpo “também fez parte desta caixa de ferramentas, como matéria vibrante que
afeta e se deixa afetar” (BENET; MERHY; PLA, 2016, p.234, tradução livre). Assim,
meu corpo era afetado, o que em momentos eu percebia, por exemplo, me sentindo
quente, aumentando o volume da voz ou misturando português e espanhol – o que
acontece quando estou nervosa ou cansada-, mas em ocasiões sendo percebido por
outras pessoas da equipe, como quando Bárbara apontava que tinha momentos em
que eu gesticulava tanto que a minha cabeça se mexia intensamente, destacando o
coque que parecia se descolar do restante do cabelo, indício da minha alteração.
Igualmente, em um momento em que, em uma dinâmica, a equipe de pesquisa apontou
que tenho uma gargalhada característica e recorrente, uma profissional apontou que
nos dois cursos que ela realizou, nunca tinha escutado essa gargalhada, o que me fez
perceber de que forma eu ficava tensa nesses encontros.
Nesses momentos, lembrava da complexidade do trânsito entre militância e
academia, por “se tratar de uma rede de interações, onde os diferentes espaços têm
seus códigos de acesso e participação, que nem sempre podem ser reutilizados ou
reaproveitados em outro e exigem um comportamento ético que dê viabilidade aos

200
Além do já apontado a respeito da responsabilização das mães no que tange à “escolha” dos jovens,
também chegamos a escutar que “tem projetos de lei que querem implementar obrigatoriamente a
ideologia de gênero, obrigando aos professores a dizer que um menino ser mulherzinha é normal.
Minha família não tem porque ouvir isso”, dentre outras posturas fundamentalistas, homofóbicas e
machistas permeadas na sociedade que nos provocaram na busca de argumentos para o diálogo nesse
espaço concreto
376

projetos” (DOS SANTOS, 2006, p. 2). Assim, mesmo me posicionando a partira de uma
perspectiva teórica e metodológica que não nega a postura política das pesquisadoras,
era importante entender quais as táticas que nesse momento iam potencializar os bons
encontros e quais não, especialmente em um clima político polarizado e em um
estabelecimento como esse.
Isso constantemente apresentava o desafio de não alimentar um distanciamento
entre conhecimento acadêmico e militante feminista de gênero e sexualidade do que
acontece no campo, o que não significa que não deva existir uma construção
sistemática que vá além da “consciência imediata”, aportando “armas propriamente
teóricas” (FOLLARI, 2001, p.39) e políticas que de fato possuímos pela nossa
experiência nessas áreas. Sem dúvida estávamos em um lugar conflituoso, pois em um
espaço de disputa, os nossos conhecimentos eram uma forma de entrada. Porém,
apostar em mecanismos de imposição de uma verdade, assumindo uma postura
colonizadora designada às universidades, seria um obstáculo para fazer ver
experiências e violências de gênero e sexualidade que os jovens, as/os profissionais e
nós pesquisadoras/es vivem(os) e perpetuam(os). Era, assim, fundamental que, nós
como “especialistas” de gênero, fôssemos colocadas em xeque, nos questionando,
movimentos extremamente importantes para a análise de implicação (COIMBRA;
NASCIMENTO, 2008).
Isto acionou novamente a análise de implicação, percebendo as

forças que atravessam e constituem o encontro pesquisador-campo de


pesquisa, colocando em discussão as práticas de saber-poder enquanto
produtoras de verdades – consideradas absolutas, universais e eternas – seus
efeitos, o que elas põem em funcionamento, com o que se agenciam”
(COIMBRA; NASCIMENTO, 2012, p.130).

Provavelmente estávamos tentando impor nossas lógicas e referências, o que


restava um cuidado e uma sensibilidade que pretendíamos como cartógrafas (BENET;
MERHY; PLA, 2016).
Chama a atenção a dificuldade de um Sistema Socioeducativo que se pretende
transformador em enfrentar esse tipo de regras que continuam perpetuando práticas e
discursos de reificação de desigualdade e violência, nos fazendo pensar sobre o que
377

torna tão naturalizadas determinadas práticas. Diante do universo de códigos e


mecanismos de execução e comunicação destes, observamos de que forma as noções
mais cristalizadas de gênero e sexualidade continuam estruturando as relações,
espaços e tempos. Apesar das nossas provocações, a interrogação sobre a autoria das
normas trazia discursos confusos que revelavam os esforços para se adequar a elas,
institucionalizando-as cada vez mais através da Segurança. Os códigos não se
compõem em uma articulação necessariamente harmônica, mas certamente ela reforça
muitas práticas e discursos fixados.
No final do segundo encontro, as profissionais que nos convidaram a organizar o
Curso com elas apontaram terem percebido que estavam “muito eufóricas” com a
proposta da implementação e que era necessário “ter cautela”. Como apontado por
Pati, concordamos em que as preocupações são legítimas, mas continuamos pensando
que devemos aproveitar os acasos. Também foi colocado que não era possível pensar
no ideal, mas no real, no possível, como um processo. Consideramos que esse
ideal/real/possível deve ser pensado a partir de uma disposição que não
necessariamente está presente na maioria das pessoas que ali estavam. A proposta do
curso era pensar estratégias de forma coletiva com pessoas chave, não impor verdades
e implementar políticas sem uma compreensão dos jogos de força, mas para isso era
necessária uma abertura e uma sensibilidade cuja construção foi extremamente difícil.

6.3 “Agora vocês me pegaram”: desdobramentos dos Cursos e suas potências

O debate no segundo Curso foi extenuante para nós e surpreendente para


alguns/as profissionais, que expressaram que não imaginavam tanta resistência ao
tema. No entanto,

basta compreender, e sobretudo ver e tocar as montanhas a partir de seus


dobramentos para que percam sua dureza, e para que os milênios voltem a ser
o que são, não permanências, mas tempo em estado puro, e flexibilidades.
Nada é mais perturbador que os movimentos incessantes do que parece imóvel
(DELEUZE, 2008, p.194).
378

Nesse sentido, cabe aqui trazer efeitos potentes dos dois Cursos, já referidos ao
longo do texto, onde profissionais conseguiam articular iniciativas para discutir gênero e
sexualidade com os jovens em diversos espaços. No primeiro Curso, alguns/as
profissionais embarcaram em desdobramentos que abordassem: tensões entre os
limites da segurança e os aspectos de gênero e sexualidade, paternidade e política dos
afetos e moralidades institucionais. Fizeram zine, inspirados/as no nosso Curso, Curta-
debate, mediação de leitura, rodas de conversa sobre saúde e masculinidade no grupo
de saúde mental, esquetes no grupo de teatro e atividades na Semana do Bebê, em
atividades que lhes permitiram misturar jovens de diferentes facções e do Seguro.
Fomos convidadas para alguns desses desdobramentos, momentos em que
novamente articulamos o campo de análise e o campo de intervenção com os jovens,
de forma conjunta com profissionais. Por exemplo, participamos de uma conversa com
o grupo de saúde mental, onde abordamos a questão do estupro coletivo. Após
colocarmos vários contrapontos ao discurso da culpabilização das jovens piranhas,
José Eduardo acabou dizendo “agora vocês me pegaram”. No relatório que as/os
profissionais realizaram dessa ação (Anexo D), foi interessante observar que elas/es se
surpreendiam com algumas conversas, por exemplo, no que tange ao conhecimento
dos jovens de práticas sexuais entre eles, desmentindo a noção fixada que se tinha
sobre isso na unidade.
Também participamos do Curta-debate201 que duas profissionais estavam
almejando fazer há tempos, finalmente operacionalizado, segundo elas, graças à
solicitação do nosso Curso de desenvolver ações. O Curta-debate mensal continua,
depois de dois anos, embora elas expressem não ser suficiente para os objetivos que
elas têm de trabalho com os jovens. O relatório, também no Anexo D, pontua vários
elementos importantes, pelo que extraio alguns trechos pela sua relevância na nossa
discussão sobre parcerias:

É importante destacar que a presença da academia no espaço institucional


sempre promove uma maior e melhor reflexão sobre o fazer profissional, a partir
das dimensões teórico-prática corroborando na construção de saberes

201
Um detalhe interessante dessa atividade era que as profissionais ofereciam pipocas para os jovens,
propiciando um ambiente mais relaxado e atrativo para eles.
379

multidisciplinares que, por vezes, parecem isolados e dissociados da função


social e política da socioeducação.
Quando a Universidade estende para o ambiente de cárcere a temática sobre:
corpo, gênero e sexualidade no cotidiano da socioeducação ela auxilia os
operadores do sistema a desenvolver uma prática planejada e contribui para
que haja um ensaio interlocutivo entre os diversos sabres, ao mesmo tempo em
que ilumina e relativiza as ações que aparentemente se mostram absolutas.
Nesse sentido pode-se dizer que se iniciou, com o curso de extensão, um
processo de descortinamento sobre a organicidade político- ideológico do
conhecimento
Conhecimento sobre o corpo, gênero e sexualidade, tanto para o corpo
institucional, quanto para o usuário adolescente.
A abertura para se falar dessa temática de certa forma contribui para a
democratização e socialização do assunto para além da letra da lei, na medida
em que movimentou e sensibilizou alguns integrantes que representam o
aparelhamento do Estado.
As rodas de conversa com os colegas de trabalho no decorrer do curso
agregaram mais do que conhecimento e aprendizagem, pois constituíram
verdadeiros laboratórios de troca entre os colegas de trabalho do CAI- Belford
Roxo.
Por fim, avalio que a experiência vivenciada foi proveitosa e agradeço a
iniciativa e disponibilidade dos professores que, através do curso de extensão,
muito contribuíram para o surgimento da atividade “curta debate”.

A apresentação de teatro, como já apontado anteriormente, foi um momento


extremamente rico, no momento em que permitiu, através da convocação à encenação
corporal, a experimentação de tensões cotidianas e soluções a elas entre todos os
segmentos, incluindo os jovens202. As esquetes, que trataram o tema das roupas das
técnicas e da separação dos jovens gays, trouxeram debates muito relevantes.
Considerei potente, por exemplo, que os jovens observassem as divergências entre
profissionais, para que percebessem que o estabelecimento não tem uma postura
única. Inclusive, achei potente que eles se enxergassem como objeto dessas
divergências, entre quem reafirmava suas normas e portanto fixava seus lugares, e
quem buscava outros caminhos, trazendo desafios.
Posterior a esse primeiro Curso, uma profissional da coordenação da EGSE nos
mandou um e-mail afirmando: “parceria nota 10”. Também solicitou que fizéssemos o
exercício em outras unidades, o que ainda não foi possível, revelando novamente a
especificidade da abertura do CAI. Também escutamos de alguns/as profissionais que
realizaram ações que os jovens estavam se aproximando para falar sobre questões
202
Uma profissional relatou que grupo de Promotores de Saúde também realizou atividades de teatro
encenando diversas problemáticas, onde os jovens elaboraram os roteiros, incluindo contágio de ISTs,
onde as/os profissionais conseguiram problematizar a culpabilização das mulheres nesse fenômeno.
Destaca-se essa estratégia como pertinente e potente para trabalhar essas temáticas com os jovens.
380

relacionadas a saúde sexual, o que não acontecia antes, “quebrando um tabu”.


Outros/as profissionais solicitaram que fizéssemos outro curso, e algumas/ns
participaram dos dois.
Já no segundo Curso, outras ações foram implementadas. Como dito, um grupo
propôs trabalhar com os jovens no momento da recepção, por considerar que ele é
extremamente importante, pois é ali que a instituição-estabelecimento transmite pela
primeira vez seus discursos a jovens que, em caso de ser a primeira passagem,
chegam receosos e ansiosos com a inflexão nas suas vidas. Segundo uma profissional,
esse é um bom momento para falar sobre questões relacionadas a gênero e
sexualidade, como complementar ao que é realizado nos módulos, para que os jovens
escutem pela primeira vez a versão da instituição, antes de ouvirem as orientações dos
jovens com as regras de convívio tão difíceis de questionar. Como ela apontou, “tem as
regras deles e as nossas”. Nas duas rodas de conversa que conseguiram realizar
apesar do ritmo imparável da unidade, ela apontou que anunciaram que o preservativo
está disponível para os jovens que o solicitarem à equipe. Também refletiram sobre as
possibilidades de regularidade dos encontros e sobre o uso de técnicas variadas,
ponderando suas potências e obstáculos. Destacaram a importância de que os jovens
percebam que além da equipe técnica de medida e os agentes de plantão, tem outras
pessoas no circuito profissional da unidade. Apesar de ter enfrentado um gelo, ou seja,
um estranhamento dos jovens de trabalharem esse tema no estabelecimento,
comentaram que explicitaram uma abertura para que os jovens se aproximassem
depois para conversar sobre questões pessoas, o que de fato aconteceu.
Nessa ação, como já mencionado anteriormente, alguns agentes também
identificaram benefícios para eles, no sentido de exercitar outro tipo de relações com os
jovens, de mais diálogo. Igualmente, um agente de plantão, que desde o início do
Curso tinha se mostrado ávido para pensar formas de abordagem com os jovens,
expressou ter desenvolvido mais confiança para tocar nos temas de gênero e
sexualidade com os jovens, a partir de estratégias próprias, ganhando o agradecimento
dos jovens que naquele momento precisavam de um apoio que provavelmente outro/a
profissional não teria percebido. Ele também apontou que a sensibilidade é fundamental
para seu exercício profissional.
381

Alguns/as técnicos/as de medida relataram terem usado uma dinâmica que


realizamos nos dois Cursos, que consistia em colocar etiquetas com categorias locais
nas testas das pessoas, sem elas verem o que estava escrito, solicitando que
circulassem pelo espaço e percebessem de que forma as outras pessoas interagiam
com elas a partir dessas etiquetas. Esse exercício, assim como o teatro do oprimido,
utilizado em um dos desdobramentos do primeiro Curso, pareceu movimentar a
empatia, ou pelo menos a compreensão da diversidade de perspectivas frente às
tensões que estávamos identificando.
Com esse tipo de métodos, elas relataram se sentirem mais à vontade para
trabalhar esses temas com os jovens e destacaram ter gostado do trabalho coletivo.
Também sinalizaram a importância de desenvolver outros tipos de ações e relações
que escapassem à burocratização do exercício profissional, no momento em que
estabeleceram um contato com os jovens que não estava relacionado aos relatórios e
encontrando interesse nos jovens para participar. Elas/es também apontaram ter
percebido diferenças entre o primeiro e o segundo encontro com um mesmo grupo de
jovens, evidenciando a importância da continuidade dessas ações, e sinalizaram que os
jovens do alojamento coletivo tinham se mostrado dispostos a repensar a questão do
preservativo, evidenciando a importância dos/as socioeducadoras/as para descontruir
preconceitos, “dá para ver que poderemos avançar”.
Me parece que isso gerou um espaço de interseção em que podíamos
compartilhar o que estávamos vivendo no campo e de provocar aberturas, a partir dos
territórios dessas pessoas (BENET; MERHY; PLA, 2016), incluindo os jovens, e dessa
forma vislumbrar de que forma

Relações de poder predominantemente desnaturalizadas tenderão a propiciar a


lateralidade e a autonomia no compartilhamento e a potencializar modos de
subjetivação bifurcantes, divergentes, multiplicando as possibilidades para a
produção de conhecimento enquanto aspecto da invenção de si. Nessa
perspectiva, o respeito pela alteridade configura-se como o respeito pela
capacidade que o outro tem de produzir saber. Assim, a produção transversal e
assumidamente coletiva de conhecimento seria a postura ética e a economia do
poder/saber que propiciaria a invenção de si como cuidado de si (Foucault,
2005). Dessa forma, não haveria um arcabouço ou uma realidade anterior às
relações que historicamente possam ser tecidas, e sim conexões e nós de
redes produzidas ou reproduzidas em cada prática de conhecimento. Por sua
vez, conhecer seria fluir e fazer fluxos nessas redes (LEITE, 2014 p.808).
382

Nesse processo foi sempre importante desconfiar da homogeneidade, fugir das


representações, o que é possibilitado pela análise de implicação, criando
“possibilidades para a emergência de outros modos de pensamento/ ação, de
pesquisa/criação” (COIMBRA; NASCIMENTO, 2012, p.130). Como extrair a potência
imanente das brechas, a partir da diversificação de performatividades e relações?
Como sair da naturalização, construindo uma familiaridade de acordos que mais do que
moldar, modulando de maneira definitiva, modulem, moldando “de maneira contínua e
perpetuamente variável?” (DELEUZE, 1991, p. 36). Como fazer do ideal, um pouco de
real e vice-versa? Como criar possibilidades de fissuras, entendidas como movimento,
não como rupturas, em um campo violento sobrecodificado de dobras rígidas? Como
construir eticamente essas possibilidades? Como ir para além das contradições,
pensando e repensando composições? Essas são perguntas que foram se
reatualizando ao longo dos nossos percursos.
Na nossa volta ao CAI em dezembro de 2017, dois meses depois do término do
curso, os/as profissionais relataram que devido à morte que tinha acontecido em um
alojamento dois dias depois do nosso último encontro, a Segurança tinha aumentado e
os esforços tinham se focado na promoção da não violência, deixando de lado a
iniciativa da implementação do preservativo ao considerá-la não imbricada nesse
processo203. No entanto, apontaram que o preservativo tinha sido oferecido de forma
natural na enfermaria e nas atividades do grupo de saúde mental, junto com outros
itens de saúde e higiene, tais como sabonetes e pasta de dente, e que alguns jovens
tinham pego204. Um agente também relatou que em uma revista do alojamento, tinha
sido descoberto que um jovem tinha um preservativo. Ao começar o reboliço, o agente
criou estratégias para que isso não fosse considerado um problema, o que ao passar
dos dias foi surtindo efeito, pois os jovens começaram a pedir preservativos e lidar com
essa possibilidade de forma diferente.

203
Soubemos também que o jovem Julio César Mondragón tinha sido assassinado três semanas depois
de sair do CAI, notícia que nos impactou muito e nos fez pensar vários pontos, incluindo o fato de que
embora ele fosse o que mais defendia a naturalização das normas, ele não conseguiu se proteger dos
processos violentos que elas carregam, inclusive contra ele mesmo.
204
Inclusive, vale lembrar, em uma feira de ciências que Gabi organizou com o IFRJ no CAI em 2016,
alguns jovens também pegaram camisinhas, mostrando que era possível gerar uma naturalidade.
383

Muitas coisas não conseguimos no campo, tal como a própria distribuição dos
preservativos em toda a unidade. No último dia do segundo curso s aímos
absolutamente exaustas e mobilizadas, ao que algumas profissionais disseram que
“damos um passo e retrocedemos dois”, apontando que estávamos movimentando algo
em um cenário complicado e elas estavam muito satisfeitas com a nossa atuação no
CAI. Outra profissional, diante da minha postura um pouco derrotista, disse que
tínhamos conseguido muitas coisas, que “agora não tem volta atrás, só falta
institucionalizar, o curso foi um marco”. Destarte, podemos pensar que mesmo que os
resultados concretos não sejam tão animadores, os processos foram extremamente
relevantes.
Assim, é importante destacar aqui que esse processo instigou muito a pensar na
importância de trabalhar o tema neste contexto, deixando claro que gênero não é
apenas relacionado a mulheres, que sexualidade nos perpassa permanentemente e
que esta deve ser considerada um direito, que ambos dispositivos estão atrelados ao
nosso exercício da cidadania e que uma instituição-organização que pretende fomentá-
la deve encarar esses desafios. Como apontado por algumas pessoas, “o fato do curso
ter acontecido já fala alguma coisa, pois isso antes teria sido inconcebível”. O interesse
de uma parcela de profissionais foi visível nos esforços para participar das ações
mesmo que as condições não fossem propícias. Algumas outras, incluindo diretores,
falaram que nossa equipe era necessária para abordar esses temas na unidade,
solicitando que não parássemos de ir ao CAI, onde nosso trabalho “plantou uma
semente” que continuaria a ter efeitos. Assim, a nossa pesquisa-intervenção se
configurou como uma dobra que (se)tensionou e (se)desdobrou no campo.
Parece importante, assim, continuar apostando na construção de autonomia e na
desverticalização do estabelecimento, garantindo que as pessoas engajadas
constituam um ou vários núcleos ou células de trabalho, em redes de coalizão
contínuas e sistemáticas.

A dimensão cuidadora se define como um espaço relacional onde podem ser


gerados processos de acolhimento, vínculo e responsabilização. É uma
dimensão não capturada pelo saber disciplinar e se erige como um território
comum […]. Nesse sentido, a produção de cuidado criaria pontos de fuga ao
normativo e inventaria espaços que esquivassem os mecanismos de biopoder
(Foucault, 1976/2005). Um cuidado entendido, sobretudo, como uma produção
384

de existência na outra pessoa, a partir de um posicionamento político


comprometido que contempla o direito à diferença e que reconhece a
capacidade de autogoverno das personas (BENET; MERHY; PLA, 2016 p.230,
tradução livre).

Assim, foi importante sermos pacientes e cuidadosas, sensíveis aos nossos


limites na nossa atuação e até do nosso corpo nesse espaço, sendo, como mulheres
De Fora propondo mudanças, instrumentos de resistência não só no estabelecimento,
mas a nós mesmas e a nossos pressupostos e técnicas de diálogo, na busca de
potência de expansão. Precisamos assim continuar girando

até encontrar a interface compositora de todo devir, aquela que cria


consistência, isto é, que fabrica a ponte ou continuidade para continuar-se a si
mesma como diferente, como intensidade sempre por vir no horizonte de todo
desejo. E se não encontrá-la, é porque com maior razão ainda, você precisa
criá-la! (FUGANTI, 2012, p.76).
385

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Benjamín: cuidado aí, que enquanto mais a gente falar, mais elas
vão perguntar.

Com essa frase, Benjamín alertava os outros jovens do grupo que estavam
elaborando a história e o desenho do personagem no papelão que a tarefa seria
complexa, pois suas respostas sobre a história gerariam mais perguntas da nossa
parte, demandando a construção de uma narrativa que fizesse sentido para eles e para
nós. Assim, vemos como os jovens percebiam o desafio de estar criando uma
interlocução conosco, no momento em que deviam explicitar normas, trajetórias e
performatividades em um exercício que fazia pensar os significados para além de
respostas pré-estabelecidas com as que pareciam estar mais acostumados no
estabelecimento, fosse na hora de construir um relatório, ou de aprender um conteúdo
curricular, ou ainda de receber ou outorgar orientações nos alojamentos.
Desta forma, a partir da produção de campos de afetação, conseguíamos em
vários momentos movimentar algumas questões com os jovens, especialmente focando
nos códigos (inter)institucionais associados a gênero e sexualidade. Mergulhamos, com
eles, através de pistas de experimentação cartográfica feminista, nas fronteiras, nos
poderes, nas multiplicidades. Nos debruçamos na produção microscópica de
marginalidades, diferenças, comuns, bem como nas suas dobras nos afetos, nos
erotismos, nas temporalidades (ritmos) e nas violências nas paisagens da cidade e do
estabelecimento, onde convivem diversos paradigmas de punição, educação e gestão
de sujeitos, corpos e sexualidades, bem como diferentes projetos de gênero que ora se
aproximam, ora se distanciam.
Nas nossas relações com o Dentro/Fora, fomos esmiuçando as vivências dos
jovens através das práticas institucionais, suas presenças, moralidades, embates,
rachaduras e transgressões. Procurando ir além das encenações rotinizadas e
cristalizadas, fosse de exacerbação da cisheteronormatividade, fosse de um discurso
politicamente correto, fomos vislumbrando um espectro de performatividades
386

masculinas e trajetórias juvenis que, como campos de operacionalização e afetação de


repertórios possíveis, dizem respeito a flexibilidades, naturalizações, negociações,
irrupções, regulações, camuflagens e inovações.
A partir de uma perspectiva de pesquisa-intervenção, foi um desafio engatilhar
um trabalho continuado com os jovens, diante das complicações logísticas da
instituição-estabelecimento e da rotatividade deles na unidade, característica desse
estabelecimento que, embora não seja negativa, apresenta desafios na hora de pensar
em reverberações das ações com eles, que, no nosso caso, muitas vezes se resumiam
a um encontro onde pouco podia ser produzido, embora alguns deles participassem em
mais de uma atividade conosco. Isso nos gerou certa impotência, assim como
interrogações sobre a nossa responsabilidade nesse espaço.
Nesse sentido, a necessidade de sistematizar caminhos de transformação foi
sendo possibilitada com as parcerias nos diversos segmentos de profissionais do CAI,
com as quais conseguimos contribuir oferecendo algumas ferramentas para um
trabalho mais contínuo. Assim, os cursos direcionados a eles/as, muito mais do que
uma devolutiva posterior ao trabalho de campo, se compuseram junto com ele,
propondo pontes entre análise e intervenção, em palavras de uma profissional, criando
“espaços sistemáticos de instrumentalização de conteúdo, casos e desdobramentos
sobre a questão da sexualidade”. Igualmente, foi dito que estávamos chegando “no
momento certo para garantir que a sexualidade seja vista como um direito”.
O processo de alinhamento de propostas não foi simples nem homogêneo,
encontrando resistências e desafios que precisariam de mais tempo e estratégias para
serem trabalhados, embora sempre marcados pela complexidade e a heterogeneidade,
começando por entender aos homens como sujeitos generificados.
Igualmente, no primeiro curso, algumas/ns profissionais sugeriram a necessidade
de pensar as regras que se relacionam com o corpo das pessoas que circulam no CAI –
tais como vestimenta, horários e visitas-, enumerá-las e fazer um esboço do
“Regulamento do CAI”, que contemplasse todas as partes que interagem na instituição-
estabelecimento, de acordo com o estabelecido no Projeto Político Pedagógico.
Também propuseram que se realizasse uma apropriação desse Projeto através de
discussão ampliada com famílias, jovens, direção, equipe técnica e agentes
387

socioeducativos/as. Embora essa proposta ainda não tenha sido levada à prática e,
como percebemos ao longo da pesquisa, o gênero e a sexualidade dificilmente seriam
considerados por todo mundo eixos fundamentais em tal Projeto Político Pedagógico,
grande parte da nossa caminhada esteve direcionada a instrumentalizar essas
pessoas, investindo no seu cotidiano, desnaturalizando os códigos (inter)institucionais e
suas cristalizações, e fomentando o diálogo e as coalizões entre os coletivos de
pessoas que circulam na unidade, bem como com outras instâncias – tais como a
EGSE, a coordenação de saúde do Degase e o Departamento de HIV/Aids da
Secretaria de Saúde-, a partir de um exercício crítico de comunicação.
As nossas interlocuções geraram outras demandas além dos cursos, assim
como a atividade na Semana do Bebê e os textos com os quais contribuímos nas
publicações do Degase, contribuindo com elaborações em uma lógica e para um
público distintos dos académicos, onde também é importante que o conhecimento
circule, com as pessoas que estão na ponta cotidianamente. Ao pensar a produção de
textos, cabe também pensar

sobre as maneiras com que o texto acadêmico faz referência ao grupo que está
estudando e qual política acaba por legitimar; se é uma política que o coloca na
posição de quem supostamente estaria trazendo “verdades sobre” o grupo, ou
se se refere a políticas em que diferentes visões e problematizações são
“produzidas com” o grupo (SILVA, et. al., 2016, p.244).

Diante disso, consideramos que provocando e sendo provocadas no nosso lugar


de “especialistas”, propusemos um espaço com as/os profissionais da unidade, como
um campo fértil de troca de saberes, práticas, visões, elemento que algumas pessoas
reconheceram, e de análise da nossa experiência e nosso lugar nas relações sociais.

Essa transformação requer inicialmente a descentralização da figura do teórico,


do acadêmico, do especialista como único representante de um saber sobre o
outro, para uma postura de ação em uma rede permeável ao outro. E aqui se
situa um compromisso político da psicologia, qual seja, trabalhar na construção
destas redes de diálogos, assumir uma posição de escuta destes saberes não-
legitimados. Ir ao encontro dos discursos tradicionalmente desqualificados, mas
não para colonializá-los ou reinscrevê-los nos códigos da ciência unificada.
Trata-se de reconhecer que há saberes fora da esfera oficial da ciência,
saberes constituídos em práticas políticas cotidianas, no exercício da vida, que
desafiam a ordem de saber oficial, ou seja, desafiam toda uma rede de poderes
388

políticos que se constituem atrelados a estes saberes (HUNING; GUARESCHI,


2008, p. 49).
Contudo, algumas demandas direcionadas a nossa equipe e desejos nossos
ainda ficaram pendentes, incluindo algum tipo de trabalho com as famílias dos jovens e
a elaboração de materiais educativos nas temáticas de gênero e sexualidade para
distribuição no Degase.
Ecoo a pergunta que Maynar Leite se fez em uma pesquisa na prisão: “como
construir coletivamente dentro de uma instituição que produz segregação e controle?”
(LEITE, 2014, p. 804). Como movimentar uma instituição-estabelecimento caracterizada
pela vigilância, pela perpetuação e atualização de normas? Especialmente, normas de
gênero e sexualidade, que a nossa sociedade se empenha em acirrar? Ecoo
novamente a fala de Maynar, em alguns lindos fragmentos em que descreve a sua
pesquisa:

A atenção cartográfica no cárcere é necessária contra as limitações de


circulação no espaço, mas também como resistência à visão estreita, limitada e
focalizada que o aprisionamento tenta impor. Ela permite estar disponível afeto-
cognitivamente aos estranhamentos, surpresas, variações e pequenas ondas
no território que tenta habitar, para encontrar o que não se procura,
questionando o que parece natural. [...] O que eu “camaleoa cartógrafa” sentia
estando imersa no campo não era apenas meu, e sim a minha participação ao
mergulhar nos fluxos e bloqueios de forças ali presentes. Como escrevi no
diário de campo: “Eu não fui para ver o que lá estava, e sim para viver o que
aconteceria estando lá”. [...] Colocar a cartografia como um método de pesquisa
cujas ferramentas o tornam simultaneamente possível e necessário na prisão.
Possível porque, se viver é conhecer e se cartografar é um modo fazê-lo, então
onde houver vida será possível a cartografia, já que as ferramentas
cartográficas permitem circular e inventar apesar das barreiras e hierarquias.
Necessário porque essas ferramentas propiciam o respeito à alteridade e a
invenção de modos de subjetivação mais solidários (LEITE, 2014, p.809-810).

Nessa camaleonicidade, a partir de uma cartografia feminista e as pistas que


esboço no texto, buscamos nos instigar, a nós e outros/as participantes da pesquisa-
intervenção, a não fixar o mapa intensivo da unidade, mas fazer um mapa possível
neste campo, mapas que contribuam “para a conexão dos campos, para o desbloqueio
dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de consistência”
(DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.35). Um mapa que
389

é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível,


suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado,
revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um
indivíduo, um grupo, uma formação social. [...] Um mapa tem múltiplas entradas
contrariamente ao decalque que volta sempre "ao mesmo". Um mapa é uma
questão de performance, enquanto que o decalque remete sempre a uma
presumida "competência” (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.20).

Assim, engajadas na afirmação política da procura de alianças rizomáticas,


procuramos enxergar suas fissuras fluxos como potências, criando e registrando
resistências, possibilidades, amor, vida, com provocações feitas por nós, conosco e
além. Assim, pensamos

O potencial de resistência das “sempre em construção” práticas psi permite que


se insira nesse cenário organizado e disciplinado a possibilidade do novo, da
invenção, na medida em que nos permitirmos alguma “indisciplina” nos modos
como produzimos nosso cotidiano psi. A ênfase que queremos colocar aqui ao
falar de indisciplina é na possibilidade de descentramentos, rupturas e
abandono dos enquadramentos e padronizações dadas pelas fronteiras e
inquietações e movimentos na medida em que se faz da psicologia um campo
permeável a outros saberes e à produção do novo, da pesquisa e da
intervenção como algo que conduza ao imprevisível (HUNING; GUARESCHI,
2008, p.52)

Buscamos explorar performatividades masculinas, trajetórias juvenis, dobras, e


propor formas de trabalhar com elas a partir do desejo, pois

se não se montar uma máquina revolucionária capaz de se fazer cargo do


desejo e dos fenómenos do desejo, o desejo continuará sendo manipulado
pelas formas de opressão e repressão, ameaçando, mesmo por dentro, as
máquinas revolucionárias” (DELEUZE, 1992, p.29).

Dessa forma, a proposta é “fazer fugir, fazer passar os fluxos” (p.35). No final da
pesquisa, ainda me pergunto questões semelhantes às do início: que sociedade
estamos produzindo? Que ordem estamos tentando preservar? De que forma
precisamos de tantas algemas e não de corpos livres? Como deixar de construir
espaços de confinamento e priorizar aqueles de construção de democracia? Como
deixar de priorizar processos de docilização e avançar naqueles que propõem
caminhos libertários? De que forma suscitar que as instituições-organizações vejam no
gênero e sexualidade um campo importante onde buscar brechas na emancipação dos
390

sujeitos e no caminho da paz? Será que esta pesquisa conseguiu gerar efeitos nesse
sentido?

Estou exausta, mas ao mesmo tempo muito feliz com o nosso grupo, porque
acho que todas estamos no compromisso de avançar nesse grande desafio. É
muito engraçado, porque já nos conhecemos tanto entre todas, que têm
momentos em que cada uma sabe o que as outras estão pensando, tanto que
nem nos olhamos, pra não rir, sabendo que depois, no caminho de volta,
falaremos sobre isso (Diário de campo, setembro de 2017).

Nesse fragmento do diário de campo relato de que forma foi produzida uma
cumplicidade na equipe de pesquisa durante o segundo Curso, onde, cada uma desde
suas preferências e habilidades argumentativas, íamos tentando abordagens para
desenhar os nossos objetivos. Nesse contexto,

a ética requer que nos arrisquemos precisamente nos momentos de


desconhecimento, quando aquilo que nos forma diverge do que está diante de
nós, quando nossa disposição para nos desfazer em relação aos outros
constitui nossa chance de nos tornarmos humanos. Sermos desfeitos pelo outro
é uma necessidade primária, uma angústia, sem dúvida, mas também uma
oportunidade de sermos interpelados, reivindicados, vinculados ao que não
somos, mas também de sermos movidos, impelidos a agir, interpelarmos a nós
mesmos em outro lugar e, assim, abandonarmos o “eu” autossuficiente como
um tipo de posse (BUTLER, 2015, p.171)

Essa noção de ética, embora extremamente desafiadora, foi fundamental no


processo desta cartografia feminista. Como relatado até aqui, as interpelações e
angústias que jovens, profissionais e logísticas nos trouxeram foram inúmeras, nos
provocando a necessidade de revermos nossos pressupostos e táticas. No entanto, as
instigações também nos fizeram reivindicar a importância das pautas de análise e
intervenção coletivas no CAI, no Degase e na sociedade em geral. Nos mobilizaram a
agir na procura de uma gestão da diferença que não perpetue a marginalização e a
segmentarização, cuidadosamente martelando a produção histórica das subjetividades
capitalísticas.
Em um compromisso com o cuidado e a igualdade, o que nos importava ver no
campo era a forma com que os mecanismos de poder e violência se atualizam,
interpelam, na constituição desses jovens, na singularidade das suas experiências de
gênero, raça, classe, geração e localidade, incluindo onde estão agora. Entender os
391

contextos de desigualdade, onde são importantes análises, nos termos de Deleuze e


Guattari (CASSIANO; FURLAN, 2013), das linhas duras estratificadoras e os impasses
que elas trazem, mas também das linhas maleáveis, que possibilitam variações, e das
linhas de fuga, que rompem com os limites, pois elas também falam das brechas, e as
brechas também fazer parte desses contextos e desses mecanismos.
Temos que nos esforçar mais para não só pôr em análise os modelos, mas para
propor, coletivamente e com alianças que se expandam, performatividades alternativas
que façam sentido para as pessoas envolvidas, desafio gigantesco, não só porque
existem modelos, mas porque as performatividades estão em disputa sempre, o que
nos convoca a sair da lógica binária de subordinação/dominação, não porque essas
forças não existam, mas porque elas se constituem como processos, como vetores, não
como essências ou como estruturas estáticas. Em cada relação, em cada momento,
esses vetores se dobram de forma distinta.
Assim, pensar O Adolescente dobrado significa cutucar os mecanismos de
pulverização do poder que dobra e marca os corpos, ao tempo em que possibilita
pensar práticas de liberdade, permite perceber nossa capacidade de ser nômades, no
momento em que o sedentarismo implica a acomodação a normas que nos fazem mal.
Ao nos dobrarmos para respirar e não para nos sufocar, podemos ser “sujeitos
nômades de trajetórias coletivamente negociadas” (BRAIDOTTI, 1996, p.324), podemos
ser “devires revolucionários” como verbos em sua singularidade (GUATTARI; ROLNIK,
1996). Podemos ser insurgentes e criativos/as nas tessituras das caminhadas
investigativas.

Gostaria que pudéssemos avançar na cumplicidade, no acompanhamento entre


nossas distintas experiências, para pôr mãosà obra em novos projetos
coletivos, onde descobríssemos a enorme capacidade de criação de teoria e
prática que há em nossas experiências, e encontrássemos as maneiras de
multiplicá-las até conseguir transtrocar o senso comum conservador e se
tornasse insuportável conviver cotidianamente com tantas injustiças. Para
podermos gritar a partir de cada ferida, fazer memória a partir de cada cicatriz.
Para habitarmos a política e a paixão como territórios recuperados e
despejarmos o horizonte de esterilizantes debates de seita. Para que nossos
corpos sejam os territórios complexos dos quais partimos para o amor e para a
rebeldia e nos que a revolução não fique inscrita como um sonho eterno, mas
como uma vivência permanente e cotidiana (KOROL, 2010, p.191, tradução
livre)
392

Com esta proposta pedagógica feminista, Claudia Korol, educadora popular


argentina, me inspira a pensar que ao invés de selecionar as indignações, façamos
acionar, tal como proposto pela filósofa feminista italiana-australiana Rosi Braidotti ao
fazer um diálogo entre a perspectiva deleuziana e o feminismo, nossas criatividades em
constantes devires para além da vida acadêmica, em um projeto de transformação.
Assim, a cartografia feminista é uma forma de pesquisar, mas também é um modo estar
no mundo, com o qual apostamos na desterritorialização do que está acontecendo e
saturando no plano molar, a exemplo do genocídio da população negra, do feminicídio
e das violências sexistas e LGBTfóbicas, da penalização do aborto, da militarização, do
encarceramento em massa, da redução da idade penal, da proibição dos temas de
gênero e sexualidade nos âmbitos educativos, através de alternativas práticas e sempre
políticas no plano molecular.
393

REFERÊNCIAS

ABDALLA, Janaína. Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitos. In:


ABDALLA, Janaína; PEREIRA, Maria; GONÇALVES, Tania. Ações socioeducativas:
estudos e pesquisas. Rio de Janeiro: Degase. 2016. p. 23-41

ABDALLA, Janaína. Socioeducação e educação social. In: ABDALLA, Janaina;


VELOSO, Bianca; VARGENS, Paula (Orgs.) Dicionário do Sistema Socioeducativo do
Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Novo DEGASE. 2016. p. 348-351

ABDALLA, Janaína. Poder, Estado e adolescentes envolvidos em atos ilícitos. Ações


socioeducativas: estudos e pesquisas. Rio de Janeiro: Degase. 2016. p.23-41

ALVES, André. Humanização. In: ABDALLA, Janaina; VELOSO, Bianca; VARGENS,


Paula (Orgs.) Dicionário do Sistema Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Novo DEGASE. 2016. p. 208-210.

ALVAREZ, Johny; PASSOS, Eduardo. Cartografar é habitar um território existencial. In:


KASTRUP, Virginia; PASSOS, Eduardo; ESCÓSSIA, Liliana (Orgs.). Pistas do método
da cartografia: pesquisa- intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre:
Editorial Sulina. 2009. p. 131-149.

ALVES, José. Casos da região. In: Fórum Grita Baixada. Um Brasil dentro do Brasil
grita socorro. 2017. Disponível em: http://www.cddh.org.br/assets/docs/Um%20Brasil%
20dentro%20do%20Brasil%20pede%20socorro.pdf. Acesso em: 01 dez 2017

ARAÚJO, Inês. Vigiar e Punir ou Educar?. Educação (São Paulo), v. 3, p. 26-35, 2012.

ARÉVALO, Amaral. Maras, represión y treguas: políticas públicas para gestionar la


violencia homicida en El Salvador. Anais do VI Seminário Internacional Direitos
Humanos, Violência e Pobreza. Rio de Janeiro: Editora Rede Sirius. 2016. v.1

BAKMAN, Gizele. Entre o roteiro e a viagem: crianças e famílias pelo caminho. 2013.
94f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social) - Instituto de Psicologia, Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

BAPTISTA, Luis Antonio. A atriz, o padre e a psicanalista: os amoladores de faca. In:


______. A cidade dos sábios. São Paulo: Summus, 1999. p. 45-49

BARBOSA, Antonio. O baile e a prisão: onde se juntam as pontas dos segmentos locais
que respondem pela dinâmica do tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Especiaria:
Cadernos de Ciências Humanas, v. 9, n.15, p. 119-135, 2006.
394

BAREMBLITT, Gregorio. Compêndio de análise institucional e outras correntes: teoria e


prática. 5 ed. Belo Horizonte: Instituto Félix Guattari, 2002.

BARKER, Gary. Homens na linha de fogo: juventude, masculinidade e exclusão social.


Rio de Janeiro: 7 letras, 2008, 249f.

BARROS, Regina; PASSOS, Eduardo. Transversalizar. In: FONSECA, Tania;


NASCIMENTO, Maria; MARASCHIN, Cleci. (Org.). Pesquisar na diferença: um
abecedário. Porto Alegre: Sulina. 2012. p. 237-240

BARROS, Letícia; BARROS, Maria. O problema da análise em pesquisa


cartográfica. Fractal, Rev. Psicol.[online]. v.25, n.2, p.373-390. 2013.

BENET, Marta; MERHY, Emerson; PLA, Margarida. Devenir cartógrafa. Athenea Digital.
v. 16, n.3, p.229-243, 2016.

BICALHO, Pedro; ROSSOTTI, Bruno; REISHOFFER, Jefferson. A pesquisa em


instituições de preservação da ordem. Rev. Polis e Psique. v.6, n.1, p.85–97. 2016.

BIRMAN, Patrícia; FERNANDES, Adriana; PIEROBON, Camila. Um emaranhado de


casos: tráfico de drogas, estado e precariedade em moradias populares. MANA, v.20,
n.3, p.431-460. 2014.

BRAH, Avtar. Diferença, diversidade, diferenciação. Cadernos Pagu, n.26, p.329-376.


2006.

BRAIDOTTI, Rosi. Nomadism with a difference: Deleuze's legacy in a feminist


perspective. Man and World, n. 29, p. 305-314, 1996.

BRASIL. Presidência da República. Secretaria Especial dos Direitos Humanos.


Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente. Sistema Nacional De
Atendimento Socioeducativo -SINASE/ Secretaria Especial dos Direitos Humanos –
Brasília-DF: CONANDA, 2006. 100f.

BRASIL. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional dos Direitos da Criança
e do Adolescente. Levantamento anual SINASE 2014. Brasília: Secretaria Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos, 2017.

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 236f.

______. Quadros de guerra. Quando a vida é passível de luto? Civilização brasileira:


Rio de janeiro. 2015, 287f.

______. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni.


Belo Horizonte: Autêntica editora. 198f.
395

CAETANO, Marcio; DA SILVA, Paulo; GOULART, Treyce. Masculinidades


hegemônicas e dissidências: tensões curriculares em cotidianos de escolas da
periferia. Revista Reflexão e Ação, v. 24, n. 1, p. 214 - 232, Jan./Abr. 2016.

CALAZANS, Márcia, et. al. A espacialização da morte e padrões mórbidos de


governança espacial: homicídios de jovens em Salvador 2010-2015. Cadernos do
CEAS, Salvador, n. 238, p. 568-594, 2016.

CARVALHO, Salo. O Papel dos Atores do Sistema Penal na Era do Punitivismo: O


Exemplo Privilegiado da Aplicação da Pena. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010,
290f.

CASSIANO, Marcella; FURLAN, Reinaldo. O processo de subjetivação segundo a


esquizoanálise. Psicologia & Sociedade, v.25, n.2, p.373-378, 2013.

CASTAÑEDA, Patricia. Investigación feminista: caracterización y prospectiva. In:


MONTIEL, Edgar (ed.). Pensar un mundo durable para todos edgar. Lima: UNESCO,
2014, p. 151-164.

CASTRO, Lucia. Conhecer, transformar(-se), aprender: pesquisando com crianças e


jovens. In: CASTRO, Lucia; BESSET, Vera. Pesquisa-intervenção na infância e
juventude. Rio de Janeiro: Trarepa, 2008, p.21-42.

CECCHETTO, Fátima, et. al. Violências percebidas por homens adolescentes na


interação afetivo-sexual em dez cidades brasileiras. Interface, v.20, n.59, p.853-64,
2016.

CHARTIER, Roger. À beira da fábrica: a história entre incertezas e inquietude. Porto


Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002.

COIMBRA, Cecília. Práticas da psicologia social como(o) movimentos de resistência e


criação In: BONAMIGO, Irme; TONDIN, Celso; BRUXEL, Karin (Org.). As práticas da
psicologia social como movimentos e resistência e criação. Porto Alegre: Abrapso Sul,
2008, p.11-18

COIMBRA, Cecília; NASCIMENTO, Maria. Implicar. In: FONSECA Tania;


NASCIMENTO Maria; MARASCHIN, Cleci (Orgs.) Pesquisar na diferença: um
abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012, p. 129-131

COIMBRA, Cecília; BOCCO, Fernanda; DO NACSCIMENTO, Maria. Subvertendo o


conceito de adolescência. Arquivos Brasileiros de Psicologia, v. 57, n. 1, p. 2-11, 2005.

COIMBRA, Cecília; NASCIMENTO, Maria. Análise de implicações: desafiando nossas


práticas de saber/poder. In: GEISLER, Adriana; Abrahão, Ana; COIMBRA, Cecilia
(Orgs.). Subjetividades, violência e direitos humanos: produzindo novos dispositivos em
saúde. Niterói, RJ: EdUFF, 2008, p. 143-153.
396

CORDEIRO, Fabíola. Pra não levar essa fama... Negociação sexual e violência em
narrativas de jovens brasileiros. In: Anais do Fazendo Gênero 8, 2008. Disponível em
http://www.fazendogenero.ufsc.br/8/sts/ST20/Fabiola_Cordeiro_20.pdf. Acesso em 29 de
setembro de 2017.

COSTA, Luis; ANGELI, Andréa; FONSECA, Tania. Cartografar. In: FONSECA Tania;
NASCIMENTO Maria; MARASCHIN, Cleci (Orgs.). Pesquisar na diferença: um
abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012, p. 43-46

COSTA, Leila; FIGUEREIDO, Talita; RIBAS, Rivani. Religiosidade. In: ABDALLA,


Janaina; VELOSO, Bianca; VARGENS, Paula (Orgs.) Dicionário do Sistema
Socioeducativo do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Novo DEGASE. 2016. p.
45-51

COUTINHO, Eduardo. O Cinema documentário e a escuta sensível da alteridade.


Projeto História. v. 15, p. 165-191, 1997.

CUNHA, Mônica; SALES, Rute; CANARIM, Claudia. O Movimento MOLEQUE,


Movimento de Mães pelos Direitos dos Adolescentes no Sistema Socioeducativo. In:
Comissão de Direitos Humanos do CRP–RJ [org.] Direitos humanos? o que temos a ver
com isso? Rio de Janeiro: Conselho Regional de Psicologia, 2007, p. 25-48.

D’ANGELO, Luisa. Entre “sujeita-mulher” e “mulher de bandido”: produções de


feminilidades em contexto de privação de liberdade. 2107. 154f. Dissertação (Mestrado
em Psicologia Social). Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

D'ANGELO, Luisa; DE GARAY HERNÁNDEZ, Jimena. Sexualidade, um direito


(secundário)? Atravessamentos entre sexualidade, socioeducação e punição. Revista
Plural v. 24, n. 1, p. 78-104, 2017.

DA SILVA, Juraci; SERENO, Graziela; GONÇALVES, Hebe. A visita íntima de


adolescentes no sistema socioeducativo como dispositivo de enunciação de questões
relativas às sexualidades. In: JULIÃO, Elionaldo; ABDALLA, Janaína; VERGÍLIO,
Soraya (orgs). Delinquência juvenil, políticas públicas e direitos humanos. Rio de
Janeiro: Novo Degase, 2014, p. 131-151.

DAVIS, Angela; DENT, Gina. A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero,
globalização e punição. Estudos Feministas, v.11, n.2, p. 523-531, 2003.

DE GARAY HERNÁNDEZ, Jimena. Engajamento político e fazeres acadêmicos: pistas


para embarcar em pesquisas feministas. In: ROSA, Katemari; CAETANO, Marcio;
CASTRO, Paula (Org.) Gênero e sexualidade: intersecções necessárias à produção de
conhecimentos. Campina Grande: Realize Editora, 2017, p. 55-78

DE GARAY HERNÁNDEZ, Jimena. Filhas de famílias homoparentais: processos,


confrontos e pluralidades. 2013. 195f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Social).
397

Instituto de Psicologia, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro,.


2013.

DELEUZE, Gilles. Qu’est-ce qu’um dispositif? In______. Association pour le Centre


Michel Foucault Michel Foucault philosophe. Paris: Seuil, 1989. p.185.

______. Dobra. Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus Editora. 1991, 232f.

______. Conversações. Tradução de Peter Pal Pelbart. São Paulo: Editora 34. 2008,
234f.

DEPARTAMENTO GERAL DE AÇÕES SOCIOEDUCATIVAS. Socioeducação:


Legislações, Normativas e Diretrizes Nacionais e Internacionais Volume 2. Novo
Degase: Rio de Janeiro. 2013

DOS SANTOS, Helen; NARDI, Henrique. Masculinidades: entre matar e morrer: o que a
saúde tem a ver com isso? Physis Revista de Saúde Coletiva, v. 24, n. 3, p. 931-949,
2014.

DOS SANTOS, Victória. A Intervenção Profissional, a Militância e a Realização de


Pesquisas Acadêmicas: Discutindo a Inserção em Campo. Anais do VII Seminário
Fazendo Gênero, 2006. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/V/
Victoria_Regina_dos_Santos_52.pdf Acessado em 30 de junho de 2017.

FACINA, Adriana. “Não me bate doutor”. Funk e criminalização da pobreza. V


ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, Faculdade de
Comunicação/UFBA, 2009. Disponível em http://www.cult.ufba.br/enecult2009/19190.pdf.
Acessado em 15 de novembro de 2017.

FACINA, Adriana. “Vou te dar um papo reto”: linguagem e questões metodológicas para
uma etnografia do funk carioca. Candelária Revista do Instituto de Humanidades, v. 11,
p. 99-108, 2009.

FARGE, Anette. Frente à história. In: ESCOBAR. Carlos (Org.). Michel Foucault:
dossier. Rio de Janeiro: Taurus, 1984, p.113-118.

FERREIRA, Poliana; CAPPI, Riccardo. Contando as mortes de jovens negros:


narrativas de um real insustentável. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 543-467,
2016.

FIGUEROA-PEREA, Juan. Algunas reflexiones sobre el estudio de los hombres desde


el feminismo y desde los derechos humanos. Estudos Feministas, v. 21. n.1, p. 371-
393, 2013.

FOLLARI, Roberto. Para quem investigamos e escrevemos? In: MOREIRA, Antônio,


SOARES, Magda, FOLLARI, Roberto, GARCIA, Regina (Orgs.). Para quem
398

pesquisamos, para quem escrevemos. O impasse dos intelectuais. São Paulo: Cortez,
2001. p. 37-64.

FONSECA, Tania; COSTA, Luis. Subjetivar. In: FONSECA Tania; NASCIMENTO Maria;
MARASCHIN, Cleci (Orgs.) Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre:
Sulina, 2012, p. 217-219

FONSECA, Claudia. Família, fofoca e honra: etnografia de relações de gênero e


violência em grupos populares. 2.ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004

FOUCAULT, Michel. Bruxaria e loucura (1976) In: ______.Ditos e Escritos I. Rio de


Janeiro: Forense Universitária, 1999. p.320-323

______. [1975]. Vigiar e punir. Petrópolis: Editora Vozes. 2009, 291f.

______. (1979) Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio


de Janeiro: Edições Graal, 2011. 29ª reimpressão.

FREIRE, Silene. O Significado Sócio-histórico dos Direitos Humanos: Questão Social e


Democracia no Brasil. CRESS Minas Gerais. 2013. Disponível em http://www.cress-
mg.org.br/arquivos/DE%204.pdf. Acessado em 15 de dezembro de 2017.

FUGANTI, Luiz. Devir. In: FONSECA Tania; NASCIMENTO Maria; MARASCHIN, Cleci
(Orgs.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p.73-77

GALLO, Sílvio. VEIGA-NETO, Alfredo. Ensaio para uma filosofia da educação.


Educação. Foucault pensa a educação. 2011. p.16-45

GARCIA, Regina. Reflexões sobre a responsabilidade social do pesquisador. Em


MOREIRA, Antônio, et. al. (Orgs.). Para quem pesquisamos, para quem escrevemos. O
impasse dos intelectuais. São Paulo: Cortez, 2001. p. 11-36.

GARGALLO, Francesca. Feminismos desde Abya Yala. Ideas y proposiciones de las


mujeres de 607 pueblos en nuestra América. Ciudad de México: Editorial Corte y
Confección, 2014, 271f.

______. Ideas feministas latinoamericanas. Ciudad de México: Universidad Autónoma


de la Ciudad de México. 2006, 187p.

GOMES, Rosely. Mediando oposições: sobre as críticas aos estudos de


masculinidades. In: ALMEIDA, Heloisa. et. al. (eds.). Gênero em matizes. Bragança
Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2002, p. 213-241.

GRILLO, Carolina. 2008. “O ‘morro’ e a ‘pista’: Um estudo comparado de dinâmicas do


comércio ilegal de drogas. Dilemas, v.1, n. p. 127-148.
399

GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis:


Vozes, 1996. 327f.

GUATTARI, Felix; DELEUZE, Gilles. Mil platôs. Vol. 1. Trad. de Aurélio Guerra Neto e
Célia Pinto Costa. São Paulo: Editora 34, 20001. 28f.

HARAWAY, Donna. (1995). Ciencia, cyborgs y mujeres. La invención de la naturaleza.


Cátedra. Disponível em: https://lascirujanas666.files.wordpress.com/2014/04/haraway-
conocimientossituados.pdf. Acesso em 12 janeiro 2016.

HEILBORN, Maria, et. al. Aproximações socioantropológicas sobre a gravidez na


adolescência. Horizontes Antropológicos, v. 8, n. 17, p. 13-45, 2002.

HESS, Remi; WEIGAND, Gabriele. A escrita implicada. Cadernos de educação, n.11, p.


14-25, 2006.

HILLESHEIM, Betina; DA CRUZ, Lilian; Somavilla, VERA. Encontro, intervenção,


acontecimento: pesquisa e produção do novo. In: BONAMIGO, Irme; TONDIN, Celso;
Bruxel, Karin. As práticas da Psicologia Social com(o) movimentos de resistência e
criação. Porto Alegre: ABRAPSO SUL, 2008, p.55-63.

HOOKS, bell. (1984). Feminist theory: from margin to center. Cambridge: South End
Press, 2000. 179f.

HUNING, Simone; GUARESCHI, Neuza. A indisciplina como estratégia de invenção nas


pesquisas e intervenções psi. In: BONAMIGO, Irme; TONDIN, Celso; BRUXEL, Karin
(Org.). As práticas da psicologia social como movimentos e resistência e criação. Porto
Alegre: Abrapso Sul, 2008, p.47-54

JUNQUEIRA, Rogério. Homofobia: limites e possibilidades de um conceito em meio a


disputas. Revista Bagoas, v. 1, n. 1, p.1-11, 2007.

KASTRUP, Virginia. O funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In:


PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Laura (Org.). Pistas do método da
cartografia: pesquisa- intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina,
2009. p. 32-51.

KAUFMAN, Michael. The Construction of masculinity and the triad of men’s violence. In
KIMMEL, Michael; MESSNER, Michael. Men’s lives. 4. ed. Estados Unidos: Allyn and
Bacon. 1997. p.4-17

KIMMEL, Michael; MESSNER, Michael. Introduction. In:______. Men’s lives. 4. ed.


Estados Unidos: Allyn and Bacon. 1997. p. xiii-xxii

KOROL, Claudia. Hacia una pedagogía feminista. Pasión y política en la vida cotidiana.
In: ESPINOSA, Yuderkys (coord.). Aproximaciones críticas a las prácticas teórico-
políticas del feminismo latinoamericano. Buenos Aires: En la Frontera, 2010. p.183-192
400

LAZZAROTTO; Gislei. CARVALHO Julia. Afetar. In: FONSECA, Tania; NASCIMENTO,


Maria; MARASCHIN, Cleci. (Orgs.). Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto
Alegre: Sulina, 2012. p.23-25

LEITE, Maynar. Cartografar (n)a prisão. Estudos e Pesquisas em Psicologia, v. 14, n. 3,


p. 795-813. 2014.

LEMOS, Flávia, CARDOSO, Hélio; NASCIMENTO, Roberto. Nomadizar. In: FONSECA,


Tania; NASCIMENTO, Maria; MARASCHIN, Cleci. (Orgs). Pesquisar na diferença: um
abecedário. Porto Alegre: Sulina, 2012. p.157-160

LOPES Graziela; DIEHL, Rafael. Intervir. Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto


Alegre: Sulina. 2012. p. 135-137

LOURAU, René. René Lourau na UERJ. Análise Institucional e Práticas de Pesquisa.


Rio de Janeiro: Editora da UERJ. 1993.114f.

MACHADO, Lia. Masculinidades e violências. Gênero e mal-estar na sociedade


contemporânea. Masculinidades. SCHPUN, Mônica (Org.). São Paulo: Boitempo
Editorial, 2004, p.35-78

MACHADO, Roberto. (1979). Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M.


Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal. 2011, p. VII-XXIII.

MALVASI, Paulo. Entre a Frieza, o Cálculo e a “Vida Loka”: violência e sofrimento no


trajeto de um adolescente em cumprimento de medida socioeducativa. Saúde Soc.,
v.20, n.1, p.156-170, 2011.

MARCELLO, Fabiana. O conceito de dispositivo em Foucault: mídia e produção


agonística de sujeitos-maternos. Educação e realidade, v.29, n.1, p.199-213, 2004.

MATTOS, Carla. Viver nas margens: gênero, crime e regulação de conflitos. Tese de
doutorado. 2014. 182 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2014

MATTOS, Carla. Uma etnografia da expansão do mundo do crime no rio de janeiro.


Revista brasileira de ciências sociais, v. 31, n. 91, p.1-15, 2016.

Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro. Dossiê Megaeventos e


Violações dos Direitos Humanos no Rio de Janeiro 2014. 2015. Disponível em
https://issuu.com/mantelli/docs/dossiecomiterio2015_issuu_01. Acessado em 23 de setembro
de 2017.

MIAGUSKO, Edson. Esperando a UPP: Circulação, violência e mercado político na


Baixada Fluminense. RBCS, v. 31, n. 91, p.1-15, 2016.
401

MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição


analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, v.79, p. 15-38, 2010.

______ “Autos de resistência”: uma análise dos homicídios cometidos por policiais na
cidade do Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de Janeiro: UFRJ, 2011. Relatório de
pesquisa.

NASCIMENTO, Pedro 2007. Antropologia, feminismo e masculinidades ou o que os


“papudinhos” de Camaragibe têm a ver com o debate sobre os “homens no feminismo”.
In: BONETTI Alinne; FLEISCHER, Soraya. Entre pesquisar e militar: Contribuições e
limites dos trânsitos entre pesquisa e militância feministas, p. 35-48. Disponível em
http://www.academia.edu/34824147/Antropologia_feminismo_e_masculinidades_ou_O_que_os
_papudinhos_de_Camaragibe_t%C3%AAm_a_ver_com_o_debate_sobre_os_homens_no_femi
nismo. Acessado em 03 de outubro de 2017.

NASCIMENTO, Marcos; SEGUNDO, Marcio; BARKER, Gary. Reflexões sobre a saúde


dos homens jovens: uma articulação entre juventude, masculinidade e exclusão social.
In: GOMES, Romeu, org. Saúde do homem em debate [online]. Rio de Janeiro: Editora
FIOCRUZ, 2011, p. 111-128.

ORLANDI, Renata; TONELLI, Maria. Sobre o processo de constituição do sujeito face à


paternidade na adolescência. Psicologia em Revista, v. 11, n. 18, p. 257-267, dez.
2005.

PADOVANI, Natália. Sobre casos e casamentos: Afetos e “amores” através de


penitenciárias femininas em São Paulo e Barcelona. 2015. Tese (Doutorado em
Antropologia Social) Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual
de Campinas, Campinas. 2015. 368f.

PASSOS, Eduardo; DO EIRADO, André. Cartografia como dissolução do ponto de vista


do observador. In: KASTRUP, Virgínia; PASSOS, Eduardo; ESCÓSSIA, Laura. (org.).
Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade.
Porto Alegre: Editorial Sulina. 2009. p. 109-130.

PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia. Sobre a validação da pesquisa


cartográfica: acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal, Rev.
Psicol. 2013, v.25, n.2, p.391-413.

PEDRINHA, Roberta. Uma leitura criminológica do genocídio e de sua tipificação.


Discursos Sediciosos, v. 23/24, p. 30, 2016.

POZZANA, Laura; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In:


PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virginia; ESCÓSSIA, Laura (Org.). Pistas do método da
cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina,
2009. p. 17-31.
402

PRADO, Kleber. Desnaturalizar. In: FONSECA Tania; NASCIMENTO Maria;


MARASCHIN, Cleci (Orgs.) Pesquisar na diferença: um abecedário. Porto Alegre:
Sulina, 2012, p.71.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder y Clasificacion Social. Journal of world-


systems research, v.6, n. 2, p. 342-386, 2000.

RAMOS, Silvia. Trajetórias no tráfico: jovens e violência armada em favelas


cariocas. Trivium Estudos Interdisciplinares – Direitos Humanos, ano 3, n. 2, 2º
semestre de 2011, pp. 41-57.

RIBEIRO, Antônio. As drogas, os inimigos e a necropolítica. Cadernos do CEAS,


Salvador, n. 238, p. 595-610, 2016.

RIOS, Roger. Notas para o desenvolvimento de um direito democrático da sexualidade.


In: Rios, Roger. (org). Em defesa dos Direitos sexuais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2007.

ROCHA, Décio; DEUSDARÁ, Bruno. Contribuições da Análise institucional para uma


abordagem das práticas linguageiras: a noção de implicação na pesquisa de campo.
Cadernos de Letras da UFF, n. 40, p. 47-73, 2010.

ROCHA, Marisa; UZIEL, Anna. Pesquisa-intervenção e novas análises no encontro da


Psicologia com as instituições de formação. In: CASTRO, Lucia; BESSET, Vera (org).
Pesquisa-intervenção na infância e juventude. Rio de Janeiro: Trarepa, 2008. p.532-556

RODRIGUES, Alexandre. Direitos humanos, segurança pública e cultura de paz: o que


a escola tem a ver com isso? In: MEIRELLES, Mauro, et. al., Cidadania e direitos
humanos. Porto Alegre: Cirkula. 2015. p.97-110

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo.


São Paulo: Estação Liberdade, 1989. 248f.

_______. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política no trabalho


acadêmico. Cadernos de subjetividade, v.1, n.2, p.241-251, 1993.

RODRIGUES, Heliana; LEITÃO. Maria; BARROS, Regina. Grupos e instituições em


análise. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992. 251f.

RODRIGUES, HELIANA; SOUZA, Vera. A análise institucional e a profissionalização do


psicólogo. In: SAIDÓN, Osvaldo; KAMKHAGI, Vida. Análise institucional no Brasil. 2. ed.
Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1991. p. 27-45.

RODRIGUES, HELIANA. “Sejamos realistas, tentemos o impossível!”:


desencaminhando a Psicologia através da Análise Institucional. In: JACÓ-VILELA, Ana;
FERREIRA, Arthur; PORTUGAL, Francisco (Org.). História da Psicologia: rumos e
percursos, v. 1. Rio de Janeiro: Nau, 2005, p. 525-594.
403

ROMAGNOLI, Roberta. O conceito de implicação e a pesquisa-intervenção


institucionalista. Psicologia e Sociedade, v. 26, n.1, p.44-52. 2014

SCHRAIBER, Lilia; FIGUEIREDO, Wagner. Integralidade em saúde e os homens na


perspectiva relacional de gênero. In: GOMES, Romeu (org.). Saúde do homem em
debate [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 2011, p. 19-38.

SALIH, Sara. Judith Butler e a Teoria Queer. Tradução de Guacira Lopes Louro. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 235f.

SANTOS, Maristela. Cultura da periferia e o olhar do poder judiciário: a questão da


apologia ao crime. Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238, p. 627-640, 2016

SANTOS, Welson. Adolescência heteronormativa masculina. Entre a construção


obrigatória e a desconstrução necessária. São Paulo: Intermeios, 2015. 176f.

SCHUCH, Patrice. Práticas de justiça. Antropologia dos modos de governo da infância e


juventude no contexto pós-ECA. Porto Alegre: UFRGS Editora, 2009. 296f.

SCISLESKI, Andrea, et. al. Medida Socioeducativa de Internação: dos Corpos Dóceis
às Vidas Nuas. Psicologia: ciência e profissão, v.34, n.3, p. 660-675, 2014.

SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade,
v. 20, n.2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

SEFFNER, Fernando; PASSOS, Amilton. Uma galeria para travestis, gays e seus
maridos: Forças discursivas na geração de um acontecimento prisional. Sexualidad,
Salud y Sociedad, n. 23, p.140-161, 2016.

SILVA, Andressa, et. al. “Eles não sabem o que se passa aqui dentro”: problematizando
o campo e o fazer da pesquisa com adolescentes em conflito com a lei. In: ABDALLA,
Janaína; PEREIRA, Maria; GONÇALVES, Tania. Ações socioeducativas: estudos e
pesquisas. Rio de Janeiro: Degase. 2016. p.23-41

SILVA, Maria; ZAMORA, Maria. Visita íntima no sistema socioeducativo do Rio de


Janeiro: uma construção interdisciplinar. Rev. Bras. Adolescência e Conflitualidade, v.
11, p. 1-13, 2014.

SILVA, Rosane. A dobra deleuziana: políticas de subjetivação. Rev. Dep. Psicol., UFF.
v.16, n.1, p.55-75, 2004.

SOARES, Magda. Para quem pesquisamos? Para quem escrevemos? In: MOREIRA,
Antônio, et.al. (org). Para quem pesquisamos, para quem escrevemos. O impasse dos
intelectuais. São Paulo: Cortez, 2001. p.65-90.

VALE DE ALMEIDA, Miguel. Género, Masculinidade e Poder. Revendo um caso do Sul


de Portugal. Anuário Antropológico (Brasil), v.95, p.161-190, 1996.
404

VIANNA, Hermano. Introdução. In VIANNA, Hermano. Galeras Cariocas. Rio de


Janeiro: Editora UFRJ, 1997. Disponível em http://www.overmundo.com.br/banco/
introducao-para-o-livro-galeras-cariocas. Acessado em 16 de agosto de 2017.

VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de
violência institucional. Cadernos Pagu, v.37, p.79-116, 2011.

VINUTO, Juliana; ABREO, Leandro; GONÇALVES, Hebe. No fio da navalha: efeitos da


masculinidade e virilidade no trabalho de agentes socioeducativos. Revista PLURAL,
v.24, n.1, p.54-77, 2017.

VITAL, Christina. Oração de traficante. Rio de Janeiro: Garamond, 2015. 432 p.

VIVEROS, Mara. De quebradores y cumplidores: Sobre hombres, masculinidades y


relaciones de género en Colombia. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia. 2002.
118f.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. Consolidated guidelines on HIV prevention,


diagnosis, treatment and care for key populations. Genebra: WHO. 2014. 180f.

ZACCONE, Orlando. Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Revan. 2011. 137f.

ZALUAR, Alba. Juventude Violenta: Processos, Retrocessos e Novos Percursos.


Revista Dados, v. 55, n. 2, p.327-365, 2012.

ZAMBENETETTI, Gustavo; DA SILVA, Rosane. Cartografia e genealogia:


aproximações possíveis para a pesquisa em psicologia social. Psicologia & Sociedade,
v. 23, n.3, p.454-463, 2011.

ZAVALETA, Fernando, et. al. A proposta educativa nas comunidades zapatistas:


autonomia e rebeldia. Desidades. n.13, ano 4. p.9-19, dez 2016.

ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Tradução André Telles. Rio de


Janeiro: IFCH, 2004. 66f.
405

ANEXO A - Fotografias disparadoras para a primeira atividade em grupo com os


jovens

Foto 1

Foto 2
406

Foto 3

Foto 4
407

Foto 5

Foto 6
408

Foto 7

Foto 8
409

Foto 9

Foto 10
410

Foto 11

Foto 12
411

Foto 13

Foto 14
412

Foto 15

Foto 16
413

Foto 17

Foto 18
414

ANEXO B - Fotografias da segunda atividade


415
416
417
418
419

ANEXO C - Ementa do primeiro curso

Minicurso
Corpo, gênero e sexualidade no cotidiano da socioeducação

Fernando Pocahy
Gabriela Salomão
Jimena de Garay

Introdução
Esta ação e parte do projeto de pesquisa-extensão desenvolvido desde março de 2015
na unidade. A proposta é promover ações de formação e intervenção continuadas
sobre gênero e sexualidade no cotidiano das ações da unidade, fomentando o
protagonismo dos/as praticantes dos cotidianos (neste momento, voltadas a
funcionários/as do CAI Baixada).

Justificativa
Baseado no trabalho de seis meses em campo na instituição, a partir dos desafios
apresentados nas diferentes interlocuções na pesquisa (jovens/adolescentes,
funcionários/as e gestão), compreendemos que uma forma eficaz e produtiva para a
devolutiva desses resultados da pesquisa poderia ter lugar em ações de formação e
intervenção continuadas, através de um curso extensionista, fundamentado em
metodologias participativas, metodologias estas que privilegiam o protagonismo dos
distintos praticantes do cotidiano institucional.

Duração: 40 horas

Local: CAI Baixada

Público: profissionais da equipe técnica, professoras/es, agentes socioeducativas/os


que estejam interessadas/os em ser multiplicadoras/es de conteúdos e práticas
referentes às relações de gênero, direitos sexuais e reprodutivos na unidade.

Vagas: de 08 a 20

Metodologia
Aulas expositivas baseadas em metodologias e técnicas participativas. O curso e
dirigido a profissionais do sistema socioeducativo e prevê a promoção do protagonismo
do corpo discente em atuações pro igualdade de gênero, direitos sexuais e reprodutivos
no interior da unidade onde o curso acontece (CAI-Baixada - Belford Roxo)
420

Programa

Módulo Temática
Módulo I Apresentação do campo e
Corpo, Gênero e contrato
Sexualidade nos Gênero, Saúde Sexual e
Cotidianos Reprodutiva
Corpo, gênero e sexualidade:
interlocuções com os jovens na
pesquisa
Corpo, gênero e sexualidade:
interlocuções institucionais
Módulo II - Perspectivas e abordagens
Construindo Elaborando ações de
metodologias intervenção no cotidiano da
participativas em instituição
gênero, saúde
sexual e
reprodutiva
Modulo III Desenvolvimento e avaliação
Intervenções e das ações de intervenção
avaliação Avaliação e encerramento do
minicurso
421

ANEXO D - Relatórios de profissionais sobre o primeiro curso


422
423
424
425
426
427
428

ANEXO E - Jornal da unidade, falando sobre nossa atividade na Semana do Bebê


429
430

ANEXO F - Documento de prorrogação da pesquisa


431

ANEXO G - Cartazes espalhados na unidade por um grupo de técnicas


432

ANEXO H - Ementa do segundo curso

Curso de extensão
Direitos sexuais e reprodutivos no Sistema Socioeducativo

Introdução
Este curso faz parte do projeto de pesquisa-extensão desenvolvido desde março
de 2015 no Degase e especificamente na unidade CAI Baixada chamada ‘Sexualidade
e juventude’, desenvolvida por uma equipe interinstitucional composta por
pesquisadoras/es da UERJ, FIOCRUZ, IFRJ e UFRJ. O objetivo é pensar práticas
profissionais que possibilitem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos dos jovens
cumprindo medida socioeducativa de internação, considerando as necessidades e
desafios apresentados pela situação de privação de liberdade e pela atual configuração
de superlotação, com relevantes implicações na segurança das pessoas que circulam
na instituição.

Justificativa
Como mais um desdobramento do processo de pesquisa-intervenção
desenvolvido por mais de dois anos na unidade CAI- Belford Roxo, que já fez surgir um
curso de extensão para profissionais da unidade, voltado a metodologias de trabalho,
surgiu a ideia e a necessidade de se discutir direitos sexuais e reprodutivos dos jovens
cumprindo medida de internação. Além das resistências de diferentes ordens de pautar
sexualidade, juventude e restrição de liberdade, neste momento o Degase enfrenta uma
superlotação que gera tanto tensões no cotidiano, quanto aumento de violência. Neste
sentido, para além dos desafios comunicados e verificados no que tange à segurança
na instituição, observamos a importância de os enfrentar de forma coletiva e dialogada.
Temas como o contágio de ISTs, violência sexual, discriminação e inclusive a
naturalização de normas que não condizem com uma visão de socioeducação sob a
perspectiva dos Direitos Humanos atravessam o cotidiano institucional e pontuam a
necessidade de construção conjunta de estratégias frente a estes desafios.
Frequentemente temos constatado que gênero e sexualidade são grandes
organizadores da vida cotidiana na unidade, muitas vezes através da violência concreta
ou latente, e consideramos urgente implementar medidas que evidenciem sua inclusão
no cotidiano da socioeducação. O direito à visita íntima ainda não foi garantido, mas
processos importantes já foram desenvolvidos, como cursos para profissionais sobre o
tema e a conformação de um Grupo de Trabalho que discutiu amplamente as
implicações.
Observamos diversas práticas sexuais entre eles, às vezes vinculadas a uma
identidade sexual, às vezes a relacionamentos amorosos, às vezes por questões
circunstanciais, de exploração dos desejos ou de trocas de favores.
433

Neste sentido, além de casos de violência que não são coletivamente e


abertamente discutidos no marco dos direitos sexuais, tem-se identificado casos de
contágio de HIV e outras ISTs na unidade.
No CAI Belford Roxo, foram realizadas ações educativas com foco na prevenção de
doenças sexualmente transmissíveis, através de discussões em grupo com jovens,
exibição de filmes e oficinas de manipulação de preservativos; bem como palestras
para as famílias em dias de visitação aos jovens. Como parte desta iniciativa, foi
disponibilizada a partir de agosto de 2016, a realização de teste rápido para HIV, sífilis
e hepatite C, tanto para jovens como para familiares. Do total de 198 testes realizados
na unidade até o momento (162 jovens e 38 familiares), 03 tiveram resultados positivos
para HIV (02 jovens e um familiar), e 15 para sífilis (08 jovens e 07 familiares).
Parte dos/as funcionários/as sente-se constrangido com a situação, sem saber como
lidar com a questão num contexto atravessado pelo machismo e por diversas
moralidades. Algumas pessoas verbalizaram preocupação com a saúde dos jovens
envolvidos, enquanto outras demonstram dificuldade de aceitação das condutas
sexuais, acreditando que sua função enquanto profissionais da instituição seria a de
coibir tais práticas. Não há até o momento um espaço para a discussão desta temática
entre os diversos atores do sistema socioeducativo.
Entendendo a responsabilidade protetiva do Estado, recuperamos alguns pontos
do Sinase no que diz a respeito da saúde dos jovens. No Art. 8o, é apontado que “os
Planos de Atendimento Socioeducativo deverão, obrigatoriamente, prever ações
articuladas nas áreas de educação, saúde, assistência social, cultura, capacitação para
o trabalho e esporte, para os adolescentes atendidos”. O Art. 35 destaca que a
execução das medidas socioeducativas reger-se-á por, entre outros princípios, a “não
discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade,
classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a
qualquer minoria ou status”. No art. 49 são assinalados os direitos individuais dos
jovens cumprindo medida socioeducativa, incluindo: “ser respeitado em sua
personalidade, intimidade, liberdade de pensamento e religião e em todos os direitos
não expressamente limitados na sentença” e “receber assistência integral à sua saúde”.
No art. 60 são apontadas as diretrizes da atenção integral à saúde, dentre elas: a
“previsão, nos planos de atendimento socioeducativo, em todas as esferas, da
implantação de ações de promoção da saúde, com o objetivo de integrar as ações
socioeducativas, estimulando a autonomia, a melhoria das relações interpessoais e o
fortalecimento de redes de apoio aos adolescentes e suas famílias”, a “inclusão de
ações e serviços para a promoção, proteção, prevenção de agravos e doenças e
recuperação da saúde” e a “disponibilização de ações de atenção à saúde sexual e
reprodutiva e à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis”.
Acreditamos, assim, que a proposta de um curso voltado para esta temática
pode ser relevante não somente para a construção de estratégias de ação frente aos
desafios que se apresentam no que tange à temática de gênero e sexualidade e seus
atravessamentos com a situação de privação ou restrição de liberdade mas, também,
434

para o aperfeiçoamento e fortalecimento do sistema socioeducativo dentro do contexto


do Sistema de Garantia de Direitos.
Objetivo geral
Promover a reflexão de profissionais do CAI Belford Roxo sobre a temática da
sexualidade, especialmente na juventude, contribuindo para a introdução da distribuição
de preservativos na unidade a partir de uma estratégia coletiva envolvendo todos os
atores do cenário socioeducativo.
Objetivos específicos
· Propiciar reflexões sobre a diversidade e multiplicidade das expressões da
sexualidade entre os jovens, promovendo respeito às mesmas.
· Transmitir conteúdos informativos acerca de direitos sexuais e direitos reprodutivos.
· Identificar representações sobre sexualidade e gênero capazes de
interferir/comprometer a apreensão sobre práticas sexuais de jovens privados de
liberdade.
· Construir coletivamente um fluxo de distribuição e recolhimento de preservativos entre
os adolescentes.
. Criar um espaço de trocas de experiências, dificuldades e aprendizagens entre
profissionais da unidade.

Facilitadoras
Jimena de Garay- doutoranda em Psicologia Social na UERJ
Gabriela Salomão – professora do Instituto Federal do Rio de Janeiro
Anna Paula Uziel – professora do Instituto de Psicologia da UERJ
Luisa Bertrami - doutoranda em Psicologia Social na UERJ
Patricia Castro – pós-doutoranda em Psicologia Social na UERJ
Bárbara Rocha - mestranda em Psicologia Social na UERJ
Vanessa Lima - mestranda em Psicologia Social na UERJ

Duração: 40 horas

Datas: 06 encontros de quatro horas cada (24 horas), mais 16 horas de trabalho fora de
encontro presencial.

Local: CAI Baixada

Público: duas turmas, uma de manhã e outra à tarde. Uma turma de agentes
socioeducativas/os, garantindo a participação de agentes de todos os plantões, e outra
com equipe técnica, docentes da escola e pessoal administrativo.

Metodologia
Aulas baseadas em metodologias e técnicas participativas, buscando propiciar o
diálogo sobre os temas contemplados no programa entre documentos oficiais que
435

versam sobre direitos sexuais e reprodutivos, textos acadêmicos e de movimentos


sociais, e sistematização de experiências no cotidiano da instituição.

Programa

Módulo Temática Encontr Data


o

Módulo I Apresentação do grupo, do curso e 1 23/06


Conceitos básicos: contratos. O que são relações de poder,
gênero, sexualidade, juventudes.
juventudes,
socioeducação Apresentação e discussão dos conceitos 2 07/07
gênero e sexualidade através de dinâmicas
e, discussões em grupo, aprofundando-os
e discutindo sua aplicabilidade no
cotidiano.

Módulo II – Direitos sexuais e reprodutivos 3 14/07


Direitos sexuais e
reprodutivos Paternidade e direitos reprodutivos 4 21/07

Saúde – DST Aids, prevenção. 5 28/07


Com participação da Secretaria de Saúde

Violência sexual, articulando gênero, 6 04/08


sexualidade, preconceito e exclusão.

Modulo III Planejamento com jovens de estratégias 7 11/08


Exercício da de implementação do preservativo
sexualidade e
Desafios de
segurança Trabalho em grupos para pensar desafios 8 e 9 18/08
e propor soluções coletivas, focando na 25/08
implementação do preservativo. Incluir a
noção de participação juvenil, objetivando
contribuir para o reconhecimento da
necessidade de ampliar práticas de
envolvimento dos jovens no cotidiano da
instituição e especialmente, nas ações a
serem planejadas.
436

Elaborar estratégias conjuntas para cada


tema, especialmente camisinha, plano de
ação conjunto

Avaliação e encerramento do minicurso 01/09


COM JOVENS
437

ANEXO I - Estratégias dos grupos para implementação de preservativo:

Mapa da unidade produzido pelos jovens multiplicadores de saúde:

Locais estratégicos propostos pelos jovens para implementação do preservativo:


438
439

Estratégias sugeridas por grupos de profissionais:


440

ANEXO J - Relatório de uma profissional sobre o segundo curso


441
442

ANEXO K - Relação de nomes dos jovens

1. Abel García Hernández- 15 anos, negro.


2. Abelardo Vázquez Peniten- 16 anos, negro.
3. Adán Abrajan de la Cruz- 16 anos, negro
4. Antonio Santana Maestro- 18 anos, negro
5, Alexander Mora Venancio- 19 anos, negro
6. Benjamín Ascencio Bautista- 17 anos, branco
7. Bernardo Flores Alcaraz- 18 anos, negro
8. Carlos Iván Ramírez Villarreal- 17 anos, negro
9. Carlos Lorenzo Hernández Muñoz- 17 anos, branco
10. César Manuel González Hernández- 17 anos, negro
11. Christian Alfonso Rodríguez Telumbre- 16 anos, negro
12. Christian Tomas Colón Garnica- 17 anos, negro
13. Cutberto Ortiz Ramos- 16 anos, negro
14. Dorian González Parral- 16 anos, negro
15. Emiliano Alen Gaspar de la Cruz- 19 anos, negro
16. Everardo Rodríguez Bello- 16 anos, negro
17. Felipe Arnulfo Rosas- 18 anos, negro
18. Giovanni Galindes Guerrero- 16 anos, negro
19. Israel Caballero Sánchez- Mateus
20. Israel Jacinto Lugardo- 18 anos, negro
21. Jesús Jovany Rodríguez Tlatempa- 17 anos, negro
22. Jhosivani Guerrero de la Cruz- 16 anos, negro
23. Jonas Trujillo González- 17 anos, negro
24. Jorge Álvarez Nava- 17 anos, negro
25. Jorge Aníbal Cruz Mendoza- 17 anos, negro
26. Jorge Antonio Tizapa Legideño- 16 anos, negro
27. Jorge Luis González Parral- 17 anos, negro
28. José Ángel Campos Cantor- 17 anos, branco
29. José Ángel Navarrete González- 16 anos, negro
30.José Eduardo Bartolo Tlatempa- 15 anos, negro
31.José Luís Luna Torres- 17 anos, negro
32. Julio César López Patolzin- 16 anos, negro
33. Leonel Castro Abarca- 18 anos, negro
34. Luis Ángel Abarca Carrillo- 17 anos, negro
35. Luis Ángel Francisco Arzola – 18 anos, negro
36. Magdaleno Rubén Lauro Villegas- 17 anos, negro
37. Marcial Pablo Baranda- 16 anos, branco
38. Marco Antonio Gómez Molina- 16 anos, branco
39. Martín Getsemany Sánchez García- 17 anos, negro
40. Mauricio Ortega Valerio- 17 anos, negro
41. Miguel Ángel Hernández Martínez- 17 anos, negro
42. Miguel Ángel Mendoza Zacarías- debe estar mandada
43.Saúl Bruno García- 17 anos, branco
1. Julio César Mondragón Fontes – 17 anos, branco

Você também pode gostar