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CAMPINAS
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2012/20776-0; CAPES
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
1
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da
autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
RESUMO
Children are part of a particular social group. They are both dependent on adult
care and expected to develop a relative autonomy, in order to follow a proper path into
independence and citizenship. Social representation of children as subjects of rights is based
on a conception of childhood defined, according to the Brazilian Child and Youth Statute, as a
state of physical, mental, moral, spiritual, and social development, susceptible of different
risks. Due to this vulnerable condition, special rights aim to guarantee child liberty and
dignity. Furthermore, children play other contemporary social roles, such as being a family
member or a student at school. But family and school are institutions “in crisis”, where unease
circumstances afflict their members. Teachers feel unable to deal with a “new public”. Parents
experience social-historical changes in familiar settings and dispute children care
responsibilities with school professionals. Children confront social vulnerability, adult
narcissistic desires, and, at the same time, they are incited to act like autonomous human
beings facing their guardians’ lack of authority. These unease contingencies sicken teachers
and disclose restless child experiences and behaviors in the classroom. Therefore,
hyperactive, depressed, and anxious children appear on the social scene. This Doctoral
Dissertation aims to analyze, through a sociological perspective, Brazilian child social
embodiment and medical intervention on children identified in school settings as hyperactive
and inattentive students, as Attention Deficit Hyperactive Disorder (ADHD) bearers. It is a
clinical condition defined as a neurodevelopmental disorder hypothetically caused by
neurotransmitters dysfunctions, responsible for controlling attention, emotions, and behaviors.
In order to accomplish the thesis’ proposals, we conducted a qualitative research composed by
participant observation and semi-structured-interviews techniques. We visited four municipal,
state, and private elementary schools, located in Campinas and Moji Mirim (SP), from 2013
to 2015, as well as a “non-formal” educational program in Campinas. Teachers, pedagogical
coordinators, and 5-to-13-years-old students formed the group of participants observed and
interviewed in field. We followed closely fifteen children (12 boys and 3 girls), among which
eleven boys and one girl were designated by school professionals as ADHD bearers.
Discussions and analysis are based on Foucauldian theories and Sociology of Childhood’s
perspectives. Child socialization as a political problem of individual adaptation to a societal
project is the assumed investigation postulate. Technical-scientific intervention on
hyperactive-inattentive children and school, a basic social institution responsible for child
socialization, aims to perform that project. ADHD is its tool. The problem is also constituted
by the possibility to, dealing with hyperactive-inattentive children’s discourse, distrust
hegemonic truths about their condition.
Introdução ............................................................................................................................... 12
Apêndices:
Apêndice A: Detalhamento metodológico ............................................................................. 212
Apêndice B: Levantamento de dissertações e teses acerca do Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH)......................................................................................... 224
INTRODUÇÃO
4
Utiliza-se o adjetivo “científico” para se referir ao estatuto de ciência pelo qual os saberes e suas práticas são
reconhecidos, mas com a clareza de que não se trata necessariamente de ciências propriamente ditas. A
medicina, segundo Canguilhem (2009), é uma técnica ou uma arte constituída na reunião de ciências diversas.
5
Os autores explicam que a prevalência do TDAH modifica-se de acordo com os critérios diagnósticos
utilizados e o tipo de amostra estudada, o que justificaria a discrepância de prevalência do TDAH no país.
Polanczyk e colegas (2007) corroboram a hipótese de que diferenças metodológicas aplicadas na identificação
dos sintomas e na elaboração do diagnóstico geram variações nas taxas de prevalência do transtorno.
6
Nesta tese, os termos “indivíduo” e “sujeito” aparecerão intercambiavelmente. Há distinções entre eles
(indivíduo pode designar uma forma pronta, modelada e submetida de ser humano, opondo-se e, ao mesmo
tempo, articulando-se à noção de sociedade, enquanto sujeito implica também a submissão a um saber ou a um
14
poder, mas diferencia-se por uma noção implícita de ação no processo de formação do ser humano). Entretanto,
elas não serão explicitamente discutidas.
15
auxílio necessário a uma escola (e uma sociedade) “em crise”7. O TDAH é um de seus
instrumentos.
A concepção de crise adotada é dupla. Em seu sentido positivo, a crise implica
uma instabilidade momentânea causada por qualquer tipo de transição. Trata-se de um tempo
de adaptação a novos padrões ou ideais, para os quais são elaboradas estratégias específicas.
Em seu sentido negativo, a noção denota, sobretudo no senso comum, uma perda de
referenciais e modelos, uma desestruturação das relações ou ainda uma valorização nostálgica
de valores morais e sociais antepassados em detrimento dos atuais.
“Criança” é igualmente uma noção empregada de modo particular. Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o indivíduo é considerado uma criança até doze
anos de idade incompletos, e como um adolescente entre treze e dezoito anos. Já a
Organização das Nações Unidas considera como criança todos os indivíduos com menos de
dezoito anos de idade. Nesta tese, criança (e seus termos correlatos: “menino”, “menina”,
“garoto” e “garota”) será entendida como a pessoa entre cinco e treze anos de idade. Essas
idades condizem com a divisão etária que organiza os anos do ensino fundamental regular8.
Trata-se, portanto, dos alunos e alunas que compuseram o grupo observado em campo de
pesquisa9, cursando do primeiro ao oitavo ano do ensino fundamental em escolas estaduais,
municipais e privadas nas cidades de Campinas (SP) e Moji Mirim (SP) entre 2013 e 2015,
bem como, em alguns casos, fazendo parte de um programa de educação não formal10 situado
em Campinas (o detalhamento metodológico e as informações pormenorizadas sobre os
estabelecimentos de ensino encontram-se no Apêndice A desta tese). Acompanharam-se mais
atentamente quinze dessas crianças (doze meninos e três meninas). Dentre elas, onze meninos
e uma menina haviam sido indicados pelas equipes escolares como portadores de TDAH,
como já tendo passado por avaliação especializada para a confirmação ou exclusão desse
diagnóstico ou como consumidores de Ritalina®. Dois meninos concederam entrevistas. As
7
O emprego de noções de crise nesta tese deve-se a seu uso recorrente pelos docentes participantes da pesquisa.
8
A organização do sistema de educação básica brasileiro obedece às normas estabelecidas pela Lei de Diretrizes
e Bases – LDB (BRASIL, 1996). Entre as etapas desse sistema estão: a educação infantil (creches para bebês de
zero a 3 anos e pré-escolas para crianças de 4 a 5 anos de idade), o ensino fundamental (dividido em dois ciclos:
o primeiro, de cinco anos de ensino, destinado às crianças entre 6 e 10 anos, e o segundo, de quatro anos de
duração, para alunos entre 11 e 14 anos de idade) e o ensino médio (três anos de ensino para adolescentes entre
15 e 17 anos).
9
Campo é “o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico
correspondente ao objeto de investigação” (MINAYO, 2000, p. 105).
10
Segundo Gohn (2006), a educação não formal caracteriza-se como um dos núcleos básicos da pedagogia
social. Ela articula diferentes dimensões, a saber: a aprendizagem política dos direitos dos cidadãos, o
desenvolvimento de habilidades e potencialidades individuais para o trabalho, as práticas organizadas em torno
de objetivos e problemas comunitários, a educação apresentada na mídia etc. A existência de modalidades não
formais de educação é reconhecida pelo Ministério da Educação brasileiro, mas elas não são reguladas pelas leis
e diretrizes que orientam a educação nacional.
16
11
Subjetividades são as formas de ser humano, que se inserem em relações de modulação do corpo, do discurso e
das práticas por um saber socialmente considerado legítimo para acessar e dizer as verdades sobre o mundo. Mas
esse sujeito também se integra a relações de luta e resistência a esse saber-poder que o subjuga (FOUCAULT,
1977). Assumindo os pressupostos tomados por Deleuze e Guattari (1997), Gallo (2010) considera que, no
campo da educação, subjetivação é o processo de formação de “indivíduos de acordo com padrões definidos
socialmente de antemão”.
12
Os profissionais de educação participantes da pesquisa de campo têm formações acadêmicas variadas
(pedagogia/educação infantil, artes, geografia, história, matemática, informática, enfim, as disciplinas que
compõem as grades curriculares dos dois ciclos do ensino fundamental). Alguns atuavam em uma única escola,
outros em instituições diferentes. Encontram-se em faixas etárias as mais variadas, mas, de modo geral, os
professores e professoras trabalham na educação básica há pelo menos dez anos.
13
A observação participativa é uma técnica segundo a qual o pesquisador insere-se em um novo ambiente cujas
relações modificam seu ponto de vista previamente formado (MINAYO, 2000).
14
A entrevista semiestruturada é uma técnica por meio da qual o pesquisador propõe uma conversa com alguns
participantes selecionados a fim de obter informações primárias e secundárias referentes ao seu objeto de
pesquisa. Ela se orienta por meio de roteiros flexíveis e compostos por perguntas abertas (MINAYO, 2000).
15
Em todas as atividades de campo, os objetivos da pesquisa foram explicitados aos participantes. Compuseram
a pesquisa somente as pessoas que compreenderam e aceitaram as explicações e que se sentiram confortáveis
para fornecer informações e expressar suas reflexões. Quando a equipe diretiva de um estabelecimento não
demandava a autorização formal de órgãos superiores, os diretores escolares consentiam a realização das
18
apreender argumentos e discursos advindos de outros espaços, como o familiar (por meio de
conversas com pais de alunos desses estabelecimentos, ainda que de modo mais restrito) e o
midiático (associações de portadores de TDAH e seus familiares, como a Associação
Brasileira do Déficit de Atenção — ABDA, e movimentos políticos, como o Fórum sobre a
Medicalização da Educação e da Sociedade).
Finalmente, adotarei a noção de medicalização como categoria analítica. O termo
“medicalização” assume diferentes definições e aplicações de acordo com os campos de saber
que dele fazem uso. Entretanto, essas variações designam algo comum: práticas orientadas
por um mesmo modo de pensar e agir sobre o corpo, a mente e os indivíduos. Modo esse que
conserva determinadas relações de poder-saber e o exercício de um biopoder, segundo a
concepção de Michel Foucault (2005; 2006a). Relações de poder referem-se a ações e reações
provocadas por indivíduos ou grupos de indivíduos em interação. E, ao mesmo tempo em que
esses atos aplicam-se sobre outros, eles agem sobre si mesmos. Portanto, os sujeitos devem
ser ativos para integrar as relações de poder (ou as relações sociais). Em outras palavras, eles
devem ser reconhecidos como atores sociais individualizados. Suas condutas podem então ser
conduzidas e governadas, tanto pelos demais quanto pelo próprio sujeito.
Já o conceito de biopoder designa um plano de atualidade que deve incluir,
segundo Rabinow e Rose (2006, p. 29), alguns elementos. Há que se constituir um ou mais
discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos, bem como um conjunto de
autoridades consideradas competentes para proferir aquela verdade. Discursos verdadeiros e
autoridades competentes a enunciá-los mobilizam estratégias de intervenção sobre a
existência coletiva em nome da vida e da morte. Finalmente, criam-se modos específicos de
subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a atuar sobre si próprios, sob certas
formas de autoridade, em relação a discursos de verdade, por meio de práticas do self, em
nome da sua própria vida ou saúde, de sua família ou de alguma outra coletividade.
Assim, a medicalização é uma prática técnica e social que, surgida a partir de uma
lógica que rege o pensamento médico, tem objetos, meios e fins específicos. Uma prática que
não nasceu com o nome de “medicalização”, mas que passou a ser definida e nomeada como
tal por outros campos de saber a fim de que sua contradição fosse revelada e para que,
finalmente, se pudessem compreender as relações sociais que ela toca. Logo, o uso dessa
noção constituiria um instrumento de denúncia. Nesse processo, contudo, a palavra
observações em sala e de entrevistas com professores, coordenadores pedagógicos, alunos e/ou pais. Eles
também apontavam os limites que deveriam ser adotados em cada espaço e caso. Dessa forma, esclarece-se que
não houve qualquer conflito de interesses e que todos os participantes, informações e dilemas pessoais e
institucionais foram tratados com respeito e ética, sobretudo no que toca ao anonimato e à privacidade.
19
“medicalização” foi capturada e transformada. Ela se desviou de seu sentido original e fez
surgir outros termos mais simplistas, tais como “patologização”16, mas também novas formas
de constituição da subjetividade.
Com essas delimitações, a presente tese divide-se em quatro capítulos principais.
No primeiro, descreve-se e problematiza-se a inserção social da criança brasileira. As
definições e propostas encontradas no ECA e as vulnerabilidades infantis essenciais às
políticas públicas permitem, em um primeiro momento, traçar um panorama acerca da criança
enquanto sujeito de direito. Já os dados sobre os novos arranjos e as mudanças na
configuração familiar fornecem elementos para a análise da criança enquanto membro de uma
família e das novas expectativas acerca da autonomia infantil, isto é, do provimento de
instrumentos e competências à criança a fim de que ela “encontre seu próprio caminho”, no
presente e no futuro. Essa representação corresponde também ao estatuto da criança-aluna,
que adentra uma instituição constituída por normas e expectativas mais rígidas. Finalmente, a
criança hiperativa e desatenta emerge da confluência dessas três representações.
No segundo capítulo, a análise volta-se à escola em crise, ao sentimento de crise
da autoridade do professor e às demandas de intervenção especializada que de lá se originam,
tendo como objetivo a criança em dificuldade ou mesmo o profissional de educação adoecido.
A ênfase dada à escola justifica-se pelo fato de que a instituição escolar é responsável pela
inserção da criança na esfera pública. Além disso, a entrada do aluno no ensino fundamental é
o momento em que aumenta significativamente o número de encaminhamentos psicológicos e
psiquiátricos, fundados na hipótese de manifestação do TDAH. Já o terceiro capítulo é
dedicado a uma análise aprofundada dos procedimentos de encaminhamento e dos casos de
TDAH encontrados em campo de pesquisa.
Por fim, no último capítulo agrega-se ao estudo uma análise do TDAH enquanto
categoria clínica conceitualizada em um campo epistemológico que define o cérebro como
motor do agir humano no mundo. Sendo o TDAH um instrumento, abordá-lo em suas
especificidades explícitas e implícitas — enfim, em seus mecanismos constituintes —
permitirá evidenciar o caráter sociopolítico da categoria e da intervenção médico-pedagógica
na inserção social infantil, bem como a complexidade da condição da criança hiperativa e
desatenta.
16
Ehrenberg e colegas (2005) criticam a ideia de controle social e o uso contemporâneo das noções de
“medicalização”, “patologização”, “psicologização” e afins quando elas simplificam a realidade social ao
expressar a ideia de que são processos pelos quais a medicina, a psiquiatria, a biologia ou a neurologia
substituem as instituições sociais supostamente dissolvidas.
20
CAPÍTULO 1
17
“Inserção social” e “socialização” são conceitos oriundos de perspectivas sociológicas tradicionais e denotam,
primordialmente, um movimento de imersão da criança nas normas sociais de um determinado grupo e em certo
tempo histórico. Os atuais Estudos da Infância, incluindo as Sociologias da Infância, entretanto, propõem a
existência de modos diversos de estabelecimento das relações sociais e institucionais das quais as crianças
participam. Nessa perspectiva, os mesmos indivíduos que reproduzem as normas sociais vigentes têm a
potencialidade de modificá-las. Na presente tese de doutorado, adoto a primeira abordagem a fim de evidenciar
as formas pelas quais instituições, como a escola, e práticas, como as psiquiátricas, representam a criança. Já a
segunda perspectiva será assumida visando à desconstrução das concepções de criança e infância fixadas
externamente às relações infantis cotidianas e relativas ao TDAH.
21
18
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 06
nov. 2015. Estima-se que, em 2015, a população brasileira já tenha ultrapassado o número de 204 milhões de
habitantes.
22
27,5 crianças menores de cinco anos para cada grupo de 100 mulheres entre 15 e 44 anos de
idade. Nascem mais meninos do que meninas. Entretanto, a taxa de mortalidade masculina ao
longo da vida também é maior do que a feminina, sobretudo entre 15 e 29 anos de idade nos
centros urbanos, devido a causas externas ou violentas (tais como homicídios e acidentes de
carro).
Entre 1990 e 2012, a taxa de mortalidade de crianças menores de um ano foi
reduzida em 68,4%, equivalendo então a 14,9 mortes para cada mil nascidos vivos. Essa é
uma das áreas estratégias para o desenvolvimento humano, cujas metas foram traçadas no
projeto Objetivo do Milênio e assumidas pelo Brasil em 2000 (UNICEF, 2014a). Em relação
à escola, outra área estratégica do programa, o objetivo principal é consolidar um ensino
básico efetivamente universal. Três milhões e oitocentas mil crianças e adolescentes entre
quatro e dezessete anos (ou 966.305 entre seis e quatorze anos, faixa etária referente ao ensino
fundamental) estavam fora da escola em 2010, assim como outros 14,6 milhões apresentavam
risco de exclusão (abandono ou evasão) devido ao atraso escolar. Entre a população com
idade para cursar o ensino fundamental, o perfil predominante das crianças que não
frequentavam a escola, em 2010, era de meninos negros com renda per capita domiciliar de
até meio salário mínimo e habitando centros urbanos da região Sudeste do país e a zona rural
(UNICEF, 2014b).
Os documentos oficiais — como aqueles produzidos a partir dos dados e
indicadores do Censo do IBGE, os censos escolares organizados pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) ou tantos outros elaborados e
publicados pelo UNICEF — fornecem um importante conjunto de informações e agendas
visando à garantia dos direitos de proteção das crianças e adolescentes brasileiros. Trata-se de
um legado do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “uma das legislações mais
avançadas do mundo no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência” (UNICEF,
2014a).
Os indicadores relativos à distribuição de renda conforme as faixas etárias, às
taxas de mortalidade infantil, às condições de moradia, aos níveis de subnutrição e aos índices
escolares (matrículas, aproveitamento, fracasso, exclusão, estrutura escolar) permeiam esses
documentos e os estudos que neles se sustentam. As conclusões assemelham-se em diferentes
análises: tais indicadores melhoraram no decorrer das duas últimas décadas, mas ainda há
muito que se fazer para reduzir as desigualdades regionais e nacionais (ROSEMBERG, 2008,
p. 296) e suas variantes, tais como o trabalho infantil, a violência sofrida por jovens,
majoritariamente, negros e pobres, a delinquência ou a iniquidade de gênero.
23
Além de propor panoramas e perfis das crianças e dos jovens brasileiros visando à
elaboração de políticas públicas específicas aos grupos etários, esses documentos exaltam
uma determinada representação social. Representação essa em que a vulnerabilidade, causada
por diferentes fatores socioeconômicos, é intrínseca ao processo de reconhecimento da
criança e do adolescente como sujeitos de direito, em substituição à noção repressiva de
“menor”. Verifica-se, assim, a transformação e o desdobramento das representações sociais da
criança. Se no fim do século XIX e, particularmente, no início do XX, após a proclamação da
República, construiu-se a imagem da criança como herdeira do novo regime, a qual deveria
ser educada a fim de concretizar o então nascente projeto de progresso (MONARCHA, 2006),
hoje essa imagem se transforma e se multiplica. Ela representa, em uma ponta, as diferentes
formas de vulnerabilidade humana a ser superadas (como expressão de um direito individual
de integrar-se à sociedade no gozo pleno do bem-estar) e, em outra, a esperança de realização
dos sonhos privados dos adultos (CALLIGARIS, 1994).
Distanciando-se parcialmente das vulnerabilidades sociais tratadas pelas políticas
públicas e pelos dados oficiais, há ainda outras formas de “cuidar” da criança que se articulam
como um direito em um sistema econômico neoliberal. Segundo Rosemberg (2008), as
noções sociais de criança e de infância formadas na contemporaneidade (que não coincidem
necessariamente com as experiências de infância que os indivíduos vivenciam
cotidianamente) permitem produzir recursos econômicos que dinamizam os mercados de
consumo e de trabalho. Neste caso, ainda de acordo com Rosemberg, o reconhecimento da
especificidade da infância contemporânea e das necessidades da criança em desenvolvimento
possibilita a criação de novas profissões responsáveis pelo cuidado e pela organização e
controle das atividades infantis.
A divisão etária vinculada a etapas do desenvolvimento biológico, afetivo e
cognitivo é o ponto-chave, conforme a análise de Mollo-Bouvier (2005), para a segmentação
do processo de socialização infantil e, consequentemente, para a delimitação das funções e
expectativas construídas nas e para as instituições e profissões do cuidado com a criança. A
creche depara-se com o desafio de guardar e, concomitantemente, de preparar as crianças
pequenas para a entrada na pré-escola. Essa, por sua vez, deve promover o desenvolvimento
de habilidades necessárias ao ensino fundamental e assim por diante. Desenvolvimento, idade
e formação então se articulam e “toma(m) a dianteira sobre a espontaneidade do vínculo
social entre as gerações” (MOLLO-BOUVIER, 2005, p. 394).
24
Bom, o que eu falo é que, infelizmente, a família está deixando para a escola educar,
passar valores. Porque as crianças ficam, vamos dizer assim, com “famílias
terceirizadas”. Tem um pessoalzinho que fica aqui na creche, depois eles vêm para
nós aqui na escola, só vão ver os pais à noite e é pouco. Aí, no outro dia, umas cinco
horas da manhã eles estão em pé de novo para pegar o ônibus para vir para cá. Então
é isso que acontece: [a família] está deixando para nós muita coisa. Até eu falei para
as professoras assim: “daqui uns tempos, quem vai educar somos nós, vamos
continuar fazendo o papel da família”. (Eva19, professora da rede estadual.
Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
De instituição para instituição, de um adulto a outro, a criança encerra-se na esfera
do cuidado especializado. A “terceirização da família” na escola é, assim, um reflexo do
processo de profissionalização dos modos de guarda da criança e do adolescente. Mollo-
Bouvier cita também, ainda que en passant, os profissionais dos lazeres, como os animadores
de festas infantis responsáveis por manter as crianças em atividade. Mas uma atividade
orientada por adultos. Os “especialistas do cuidado infantil” ascendem, dessa forma, à cena
social. Suas atividades compõem-se com os discursos e práticas “do psicólogo, do médico, do
jurista, do pedagogo, do assistente social, do sociólogo” (FREITAS, 2006, p. 13) que tomam a
criança e a infância como seu objeto. Um objeto reformulado, mas que não é novo (os
higienistas dos séculos XIX e XX já as haviam tomado sob seus cuidados).
Essas formas de terceirização, profissionalização e “cientificização” da criança e
da infância têm a particularidade de agrupar a questão da vulnerabilidade (investimento social
e público como direito individual), da esperança (investimentos materiais e afetivos feitos
pelos adultos, pais ou professores) e da escolarização (aquisição de competências e
habilidades essenciais à formação continuada e que constituem desempenhos ditos normais,
porque esperados). Tratarei dessas duas questões nas seções seguintes. Antes, cabe uma
incursão acerca da deficiência e da disfunção de origem biológico-patológica, um tema
transversal a esse agrupamento.
O direito ao atendimento especializado às crianças e adolescentes portadores de
deficiência20 é garantido pelo ECA (Título II – Dos direitos fundamentais, Capítulo I – Do
direito à vida e à saúde), incluindo a educação especial na rede regular de ensino (Capítulo IV
– Do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer). Por educação especial entende-se, na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), “a modalidade de educação escolar,
19
Os nomes dos participantes da pesquisa são fictícios.
20
Embora alguns documentos oficiais ainda adotem a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, utiliza-se,
atualmente, “pessoas com deficiência” no campo da saúde e dos movimentos sociais.
25
21
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-
conle/tema11/2014_14137.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2015.
22
Trata-se do questionário de Swanson, Nolan e Pelham-IV (SNAP-IV), construído a partir das descrições do
TDAH propostas pelo DSM-IV (APA, 2000b). Ele foi traduzido para o português pelo Grupo de Estudos do
Déficit de Atenção da UFRJ - GEDA e pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência da UFRGS
(MIRANDA et al., 2011, p. 2) e validado por Mattos et al. (2006). As 18 questões que compõem o formulário
podem ser respondidas por pais ou professores e visam a definir os comportamentos que melhor descrevem o
aluno por meio dos critérios “nem um pouco”, “só um pouco”, “bastante” e “demais”. O questionário encontra-
se disponível para download em: <http://www.tdah.org.br/images/stories/site/pdf/snap-iv.pdf>. Acesso em: 08
set. 2015.
26
“A família não é mais a mesma”, dizem. Não é mais a mesma porque está
“desestruturada”, não cumpre sua função de educar os filhos, causando-lhes mais problemas
do que os resolvendo. Esse tipo de enunciado foi reproduzido pela maioria dos professores e
professoras participantes da pesquisa de campo constituinte desta tese. Mas o que significa,
nesses discursos, ser uma família desestruturada e que não cumpre suas funções? Para
responder a essa questão, é preciso compreender as novas configurações da família
contemporânea e analisar a posição ocupada pela criança nessa trama.
27
Mudanças e arranjos
É preciso ter claro que, a partir dos anos 60, o estatuto social, econômico e
simbólico das mulheres começou a ser modificado. Ao mesmo tempo em que o uso dos
anticoncepcionais permitiu-lhes controlar sua reprodução (o que, consequentemente, originou
uma distinção entre reprodução e sexualidade), as mulheres foram incorporadas ao sistema
produtivo capitalista. Ao passo que elas saíam de casa para trabalhar, os arranjos domésticos
antes dominantes (a mulher como sinônimo exclusivo de mãe e esposa) entravam em
mutação, incluindo a questão da descentralização do cuidado da criança — embora as
mulheres ainda sejam vistas como “cuidadoras primárias”, segundo o jargão médico — e,
posteriormente, da profissionalização desse cuidado.
Outra contribuição da Constituição de 88 à configuração familiar, apontada por
Moraes (2014), é a facilitação (redução de prazos e exigências) do divórcio, acrescida da
garantia legal de que qualquer um dos pais e seus descendentes possam constituir uma
família. Uma multiplicidade de arranjos torna-se então possível. Da análise do IBGE (2011),
destacam-se alguns deles: a residência em uma mesma unidade doméstica (60 mil domicílios
em 2010) de um(a) responsável e de seu(sua) cônjuge ou companheiro(a) do mesmo sexo; a
coabitação de um casal e de pelo menos um(a) enteado(a); o aumento do número de unidades
cujo responsável é a mulher ou onde a responsabilidade domiciliar é compartilhada; a
incidência de domicílios unipessoais; e a convivência intergeracional (entre avós e netos, por
exemplo). Essas possibilidades coexistem com aspectos mais tradicionais, como a união entre
pessoas de sexos diferentes e a convivência com filhos nascidos do casamento do casal.
O segundo ponto a ser tratado é a posição central ocupada pela criança nos
arranjos familiares contemporâneos e seus desdobramentos. Ainda segundo Moraes (2014, p.
27), a “nova família” é uma instituição que nasce da “disposição de cuidar de outrem”, e não
mais exclusivamente dos laços sanguíneos e de compromissos estabelecidos pelo casamento.
Pois “família é quem cuida”. A solidariedade, a dignidade, a responsabilidade e o afeto
ganham, assim, dimensão jurídica e realidade cotidiana no seio familiar, bem como o que
acontece com a criança.
Presume-se, portanto, que a decisão de gestar e cuidar de uma criança gravita,
salvos alguns casos, em torno de uma decisão compartilhada. Pois, no “casal igualitário”,
além da divisão equitativa das responsabilidades, há o princípio de que cada cônjuge deve
manter sua individualidade e perseguir seus projetos pessoais e profissionais. A família
contemporânea “permite a seus membros conciliar o pertencimento comum e a singularidade
de cada um” (SINGLY, 2012, p. 8). Nesse contexto, ter um filho hoje significa mais a
realização de um desejo do que o simples ato da reprodução. E esse desejo pode relacionar-se
29
tanto à ânsia dos pais de encontrar um sentido para suas vidas vazias quanto à esperança de
que, investindo na criança, ela possa ter melhores condições de vida. É claro que existem
diferentes níveis entre esses dois extremos. O fato é que as crianças constituem-se como
membros centrais da família e que todo um conjunto de investimentos é nelas feito. Essa nova
posição redimensiona uma tensão particular às representações sociais e às experiências de
infância: ainda que seja um ser humano em desenvolvimento, à criança se confere algo como
uma autonomia.
Observa-se que a questão da autoridade parental desloca-se para a do investimento
familiar na criança. Da relação entre a flexibilização da autoridade adulta e a valorização de
uma autonomia infantil, emerge um sentimento de crise da família, que se estende a um
sentimento de crise da escola. O uso da palavra “crise” é significativo: se, por um lado, ele
implica uma instabilidade momentânea causada por qualquer tipo de transição (um tempo de
adaptação a novos padrões ou ideais), por outro, a crise denota, no senso comum — como
observado recorrentemente em trabalhos de campo —, uma negatividade pautada na
concepção dos novos valores morais e sociais que acompanham a mutação familiar como
perdas de referenciais e, em consequência, como desestruturação. Uma concepção que
considera as vulnerabilidades que afetam as crianças como decorrências das incapacidades e
ingerências familiares.
23
Desde o decênio 1920-30 observavam-se no Brasil medidas jurídicas e médicas tendo como objeto a criança
pobre. Sobre o tema, indica-se, além do artigo de Alvim e Valladares (1988), a leitura do texto Crianças
carentes e políticas públicas, de Edson Passetti (In: Del Priore, M. (org.). História das crianças no Brasil
(1999). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 347-375).
32
infantil inclui serviços de apoio aos pais (HAMEL; LEMOINE, 2012). Tais serviços
destinam-se ao auxílio no exercício de suas funções parentais (“ajudar os pais a serem pais”),
sobretudo no que diz respeito a assegurar o desabrochar (épanouissement) de seus filhos, a
lhes ajudar a encontrar seus próprios caminhos e, em alguns casos, a desenvolver habilidades
e competências nas crianças para que elas rompam um círculo de pobreza (ESPING-
ANDERSEN, 2002). A ideia subjacente a essas ações é a de que “as carências educativas dos
pais constituem uma explicação determinante das incivilidades dos pequenos” (HAMEL,
LEMOINE, 2012, p. 4. Grifo nosso).
Algo de patogênico resta, portanto, ao ambiente familiar. É o que se confirma nos
relatos dos professores, em pesquisa de campo. Há um consenso de que o problema escolar
(de baixo desempenho ou de comportamento inadequado) da criança advém
determinantemente dos pais. Alguns relatos exemplificam tal consenso:
A criança com problema, ela tem toda uma desestruturação familiar, mas a mãe... É
impressionante como em todos os campos a família empurra realmente. E ainda fala
da figura do professor de uma maneira muito negativa. “Não estão sabendo educar, e
ele é pago para isso”. A gente ouve muito isso em todos os níveis. [...] [Se] há um
problema [foi] a gente [que] cometeu, não foram eles [os pais]. Eu acho que isso é
sério, é grave. (Evandro, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27
mar. 2013).
Quando a gente vai fazer reunião de pais, a gente vê que os pais são mais
perturbados que as crianças. A criança é muito espelho dos pais. Aí vem a mãe e
pronto, dá para entender porque a criança é desse jeito. (Vera, professora da rede
municipal. Entrevista concedida em 05 ago. 2015).
Então, a gente tem que levar em consideração que nenhuma criança é igual à outra.
Eu costumo dizer que elas são que nem frutas na árvore: cada uma amadurece no seu
tempo. Tem criança que leva mais tempo para aprender? Tem. [...] Eu acredito que
em parte é pelo meio em que ela vive, que ela não tem favorecidas muitas questões,
como leitura, contato com livro, um ambiente, vamos dizer, rico em condições que
propiciem a ela uma bagagem cultural melhor. Uma questão é essa. Outra, que às
vezes não tem estímulo: o pai e a mãe não leem, não escrevem, mal fizeram o
fundamental I, o ciclo I do fundamental I, não chegaram nem no ciclo II. (Maria
Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
culpa pela ingerência das ações e do desenvolvimento de seus filhos. Uma ingerência que, nas
entrelinhas da fala do professor, teria como origem real a desestrutura familiar. Uma perda de
funções familiares cuja compensação seria exigida da escola. Usando o vocabulário popular
empregado por alguns docentes, trata-se de um “jogo de batata quente” das responsabilidades
para com a criança.
No segundo trecho de entrevista, o problema da criança está ligado a uma
perturbação psicológica dos pais (mais uma vez com foco na mãe). A professora Vera não
sabia se os pais de seu aluno realmente enfrentavam algum sofrimento psíquico cujos efeitos
repercutiam na criança, mas o recurso a uma suposta psicopatologia embasa a concentração
do problema na família. Já a professora Maria Luzia encontra na ausência de estímulos e na
carência cultural do meio familiar a fonte do retardo do amadurecimento escolar da criança.
Segundo Singly (2012), o investimento em capital escolar — isto é, em condições apropriadas
para que, na escola, a criança aprimore suas competências sociais e se destaque por isso — é
uma das características da família contemporânea. Quando esse investimento não se
concretiza, recai sobre a família o ônus de uma má gestão das potencialidades infantis (ao
mesmo tempo, no sentido oposto, acusam-se os professores de não gerirem os conflitos e as
dificuldades dos alunos em sala de aula).
Finalmente, o último fragmento anuncia a existência de mudanças nos modos
familiares de educar os filhos, porém enfatiza que hoje uma autonomia doméstica colocaria
em conflito as responsabilidades ou os modos de ação das crianças em casa e na escola.
Interpreto que esse conflito apresenta-se aos professores como um problema (à capacidade de
o aluno manter-se concentrado e em produtividade no espaço escolar) devido a um fluxo
contínuo entre casa e escola. Passa-se de uma a outra como se se tratasse de uma extensão
onde os mesmos comportamentos e as mesmas normas deveriam ser verificados. Por esse
motivo, professores denunciam os pais por não fazerem parte, cotidianamente, da vida escolar
infantil e pais exigem dos professores o mesmo tipo de tratamento, privilégio e educação que
seus filhos recebem em casa (situação vivida, sobretudo, por profissionais de
estabelecimentos privados de ensino24).
Uma moral da família permeia o espaço escolar como reflexo de uma dada
configuração social. Bons pais são vistos pelos professores como aqueles envolvidos com
24
Essas novas demandas podem levar a situações constrangedoras e estigmatizantes, especialmente quando se
trata de casos vistos como problemáticos. Cito como exemplo o caso de um aluno de cinco anos relatado por
uma professora de escola privada: “É uma criança extremamente agitada [...]. Ele incomoda muito os alunos,
ele agita tanto, ele levanta, ele faz batuque. Mas assim, está tendo uma mobilização na porta da sala: assim, as
crianças não podiam brincar com ele, né, eu ouvi assim de uma mãe e falei ‘não estou acreditando’. Ela queria
que eu chegasse até o diretor da escola e sugerisse que o diretor expulsasse a criança da escola”.
34
seus filhos, que não delegam suas funções de cuidado e educação, que se esforçam para
resolver seus problemas e superar suas dificuldades sociais, econômicas ou psicológicas,
ainda que componham famílias “desestruturadas”. Maus pais não impõem limites e não
educam suas crianças, causam-lhes traumas e conflitos psicológicos em virtude de problemas
relacionais (envolvimento com drogas, encarceramento, brigas, ausência), negligência (o
abandono ou ainda a recusa de auxílio externo em casos de dificuldades de aprendizagem),
falta de recursos financeiros e culturais ou mesmo arranjos tidos por alguns professores como
problemáticos e que “confundem” as crianças (mães solteiras, pais desconhecidos, casais
homossexuais). Conflitos psicológicos e vulnerabilidades sociais reais agregam-se então a
julgamentos morais em um mesmo tipo de discurso. Um discurso que, predominante nos
estabelecimentos de ensino visitados, toma a culpabilização da família como o argumento
fundante de uma explicação da realidade contemporânea. Da mesma maneira, o discurso
técnico-científico é tido como capaz de solucionar os problemas causados nessa realidade. As
mudanças na configuração dos arranjos familiares e nas representações sociais da infância
adquirem, no consenso escolar, o caráter negativo da perda de referências morais (uma única
professora afirmou acreditar que não se deve julgar uma mãe por suas ações para com seus
filhos, pois as situações sociais, econômicas ou culturais que orientaram o seu agir são
desconhecidas).
O tema contemporâneo subjacente a essa moralidade é o da crise de autoridade
dos adultos. Enfoco aqui a centralidade da figura feminina nesse cenário. Os pontos
recorrentemente evocados por professores em campo foram a saída de casa para trabalhar e a
consequente falta de tempo para dar atenção ao desenvolvimento e às habilidades da criança
como pano de fundo da culpabilização da mulher. Apesar do fato de que a grande maioria dos
profissionais com quem conversei era de mulheres (sendo que muitas delas tinham filhos),
observei uma tendência a identificar na figura feminina e em seu papel social multifuncional
(trabalhadora, mãe, esposa) elementos dos problemas escolares e das vulnerabilidades sociais
e psíquicas das crianças.
A mulher como cuidadora primária é uma figura comum no campo da saúde. Um
médico psiquiatra, atuante em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil, relatou-me
em outra pesquisa que as crianças atendidas naquele serviço eram geralmente acompanhadas
por suas mães. Esse padrão justificava-se, para o médico, pelo fato de que os pais eram os
membros familiares que trabalhavam, restando à mãe a função de dona de casa e de cuidadora
primária, ou seja, a principal responsável pelo cuidado com a criança. Vale esclarecer que a
população lá atendida encontrava-se majoritariamente em grupos sociais economicamente
35
com TDAH, como a Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Nota-se, entretanto, que a
culpabilização sofre um deslocamento: os pais passam a ser apontados como culpados pela
condição da criança hiperativa e desatenta quando não solicitam o auxílio de especialistas.
Um conjunto de representações e expectativas sociais permeia a cultura do
mother-blame. O bom desempenho materno é socialmente reconhecido quando a mulher
corresponde a uma imagem de pessoa compreensiva, afetiva, apaziguadora de conflitos,
versátil e protetora. O desvio dessa imagem fomenta o julgamento, a culpabilização externa e
o sentimento interno de culpa. Ainda que se recorra ao uso da Ritalina® para a contenção dos
sintomas hiperativos e desatentos e para o consequente aprimoramento do desempenho da
criança (o que seria concebido como sua função, caso não se tratasse de um transtorno
mental), as mulheres estão sendo “boas mães” dentro de uma determinada formulação cultural
de maternidade (SINGH, 2004, p. 1203).
Desse modo, tem-se uma articulação das condições históricas, jurídicas e sociais
da organização dos arranjos familiares, das funções sociais e simbólicas esperadas e ligadas a
questões de gênero, e das representações sociais de mãe, pai e, particularmente, filho. E vale
notar que o discurso técnico-científico penetra nessa nova configuração. Com ou sem TDAH,
a criança adentra esse complexo de relações e situa-se no centro de cada cena social que se
desencadeia. Analisemos, portanto, seu posicionamento.
concedidos a esse grupo social são igualmente particulares e não podem ser aplicados a
qualquer outro ser humano.
A problematização que se coloca condiz com uma norma da autonomia. O atual
conceito de autonomia (EHRENBERG, 2012) designa a liberdade de escolha individual em
nome da autoafirmação e a capacidade de agir por si mesmo na maioria das situações de vida.
É sobre essas duas propriedades da autonomia que, segundo Ehrenberg, apoiam-se a
sociedade e as subjetividades individuais contemporâneas. Trata-se de uma norma e de um
valor desejável em todos os aspectos da vida social (inclusive a manutenção da saúde mental e
a luta contra o sofrimento psíquico).
A autonomia não é um tema novo na sociologia ou na pedagogia. Nos anos de
1902 e 1903, Émile Durkheim ministrou um curso na Sorbonne intitulado L’éducation morale
e publicado como livro em 1934. Nele, Durkheim afirmava a autonomia da vontade como um
dos elementos da moralidade (os outros elementos são o espírito da disciplina e o
pertencimento aos grupos sociais) a ser inculcados nas crianças por meio da boa socialização,
isto é, da educação laica. A autonomia do indivíduo integrado à sociedade contribuiria, nessa
perspectiva, para a harmonia social.
Se há algo que persiste ainda hoje dessa concepção de autonomia individual, a ela
se acrescem (ou dela se modificam) alguns novos pressupostos. Ao emergir como sujeito
social, psíquico e de direito, a criança é representada como um ser cuja autonomia deve ser
garantida, e não simplesmente inculcada pela socialização. Jean Piaget versava sobre uma
pedagogia democrática por meio da qual a autonomia moral da criança somente renderia
frutos de justiça social pelo respeito mútuo e pelo diálogo com o outro. Isso colocava em
questão a perspectiva durkheimiana sobre o alcance da autonomia moral por intermédio da
coerção e da obediência (MORAES, 1994).
Diante de uma nova referência para as relações contemporâneas entre pais e
filhos, a autonomia assume então uma situação social antes regulada pela autoridade. Elias
(2010) afirma que as relações de autoridade inscreviam-se na dominação e na hierarquia entre
os membros familiares que davam ordens e aqueles que obedeciam. A divisão desigual dos
poderes entre adultos e crianças orientava suas relações, nas quais os primeiros tinham o
dever de decidir pela segunda. Essa configuração ainda existe, mas ela concorre com um tipo
de interação mais igualitária que concede à criança alguma margem de decisão.
Para Elias, o deslocamento do olhar sobre a criança — de um ser ingênuo, no
lugar do qual os pais têm de tomar decisões, para um indivíduo social ou, posteriormente, um
sujeito de direito — tem como um de seus motores a descoberta freudiana acerca das
38
necessidades pulsionais e sexuais infantis. Esse é um dos pontos de uma mudança histórica no
“sentimento de infância”, conforme o sentido dado por Ariès (1981) à expressão. Podem-se
acrescentar outras transformações já apresentadas neste capítulo, como a diminuição do
tamanho das famílias, por exemplo. O que importa, perseguindo a perspectiva de Elias, é que
as formas e os objetivos do processo de constituição do autocontrole (as culpas, as vergonhas,
as aprendizagens, as disciplinas) se modificam, produzindo outros tipos de relações sociais e
de indivíduos (ou subjetividades, se adotarmos outro referencial teórico).
Em termos práticos, as mudanças na relação entre pais e filhos apresentam novos
dilemas. O primeiro a ser destacado é a flexibilização das relações entre família e escola (que
culmina em um conflito de responsabilidades e culpabilização entre elas, como se observou
em campo de pesquisa). O afrouxamento do papel regulador dos pais ocasionou, segundo
Ehrenberg (1995), uma maior possibilidade de transmissão das funções e responsabilidades
parentais à escola. Uma vez que a cooperação, o diálogo e a individualização dos membros
familiares (cada um deve ter seus próprios projetos e necessidades e buscar alcançar seu
sucesso) passam a caracterizar alguns de seus novos arranjos, à escola demanda-se a
compensação das funções de autoridade ou de educação que, em tese, não se reservam mais
exclusivamente à família. Isso se conecta ao processo de profissionalização do cuidado com a
criança, mencionado no início deste capítulo.
Para Singly (2012), a família contemporânea constitui-se por algumas tensões
específicas do atual momento histórico e social (sobretudo em um contexto francês onde suas
pesquisas foram desenvolvidas). O processo de individualização dos membros familiares é
uma delas. Trata-se do dever social de se autoconstituir enquanto sujeito, ter um elevado grau
de emancipação ao mesmo tempo em que se esteja inserido em um processo de socialização,
com suas normas e representações. Essa é a norma de autonomia descrita por Ehrenberg
(2012).
A normalização da função parental — uma segunda tensão contemporânea — diz
respeito à intervenção do Estado e dos especialistas na vida privada e individualizada da
família visando a garantir que os pais “aprendam a ser pais”. Isso significa que se cria a
necessidade de educar os pais para conciliar os interesses da criança aos dos adultos
responsáveis por ela. Aqui está o foco das queixas dos professores em minha pesquisa de
campo: os pais não sabem ser pais. Ou melhor, não o sabem dentro daquele quadro moral
formado no âmbito escolar, relativo a uma determinada expectativa quanto às representações
sociais da família.
39
Eu estou vendo com uma aluna de cinco anos na minha sala: as crianças têm uma
rotina de adulto. O adulto consegue chegar em casa ao meio dia, tomar banho,
almoçar e sair a meio dia e meia. A criança não. A criança, ela tem inglês de manhã,
ela tem balé, ela tem aula de pintura, ela tem tudo. E ela só tem cinco anos. Então
ela chega e a mãe fala assim “ela não almoçou porque era meio dia e quinze quando
eu cheguei em casa, dei banho e ela ficou enrolando para almoçar”. Mas não é que a
criança enrola, a criança é mais lenta durante o almoço. É o adulto que faz dessa
forma. Então eu percebo que às vezes a criança chega estressada pela pressão dos
pais: “Come logo”, “anda logo”, “toma banho”, “faz isso” e tal. Tudo no grito.
(Lucia, professora da rede privada. Entrevista concedida em 10 set. 2013).
Mas eu acho que o que está mais forte hoje, que eu percebo, é o adultocentrismo. O
adulto está o tempo todo falando o que ela tem que fazer. Ela é acordada por um
adulto, o adulto dá banho nela, o adulto põe ela no carro e traz até aqui, o adulto leva
na escola e já entrega para a professora. (Tania, professora de um programa de
educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
Atribuem-se e requerem-se das crianças muitas responsabilidades (o que inclui, na
visão dos professores, atividades escolares e extracurriculares), fazendo com que alguns
rituais antes valorizados (o tempo de almoçar, de brincar, de compartilhar) sejam
transformados ou apagados pela pressa característica da vida adulta contemporânea. Seguindo
a análise de Vincent, Lahire e Thin (2001), seria possível relacionar essa responsabilização da
criança a uma forma escolar que extrapola os muros da escola. Encontrada em diferentes
42
Nós não temos condições de ter crianças como era vinte anos atrás. Nem há vinte e
cinco, nem há trinta. Tudo evolui e, bom ou não, as crianças também evoluíram.
Hoje em dia, já desde que nascem, elas são expostas a milhares de estímulos que
antes não tinham. Então a criança, antigamente, quando nascia, ficava lá no quarto,
quietinha, sem barulho, numa certa penumbra, começava a sair aos pouquinhos, todo
mundo falava baixinho. Hoje não! Nasce, você vê bebê de dias no shopping, aquele
monte de luz, aquele monte de gente, aquele movimento... quer que a criança seja
igual como? Não dá, não tem... tem crianças ainda mais calmas, tranquilas,
centradas? Tem. Tem sim, mas não é a maioria. Eles nascem plugados, você vê
criancinha de sete anos dar baile na gente na parte de computação, de tablet, de
celular. Então tudo é diferente, como é que vai manter um padrão que era? Não dá.
Faz parte, vamos dizer, da evolução. Bom ou não, a gente tem que se adaptar. Tem
que inventar, reinventar a maneira de aprender e considerar que hoje são diferentes,
e não medicar. (Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em
15 abr. 2013).
A professora entrevistada aponta uma transformação no modo de ser criança e,
indo ao encontro da análise de Sibilia, identifica que as ações dos adultos — especialmente as
dos professores — não levam essa mudança em consideração. Menciona ainda a convocação
das crianças ao consumismo, já que inseridas em uma sociedade “que fala em ter”. Nesse
sentido, a tomada de consciência acerca das mudanças na socialização infantil poderia
envolver, segundo a participante da pesquisa, o estímulo à criatividade na escola e à produção
de seus próprios brinquedos. A proposta de redefinir o que é próprio da infância, pelo menos
no ambiente escolar, revela uma confusão entre os limites entre vida adulta e vida infantil
43
promovida pelo consumo, pelo marketing25 e pela responsabilização crescente da criança por
suas escolhas, indo em direção à produção de um indivíduo autônomo sem idade.
Ao longo de uma conversa com três meninas de dez anos, em 2014, elas
discutiram o relacionamento de Raquel com sua mãe. Uma de suas amigas, presente na sala,
disse-lhe: “Sua mãe acha você criança ainda, mas você é uma pré-adolescente”. A outra,
dirigindo-se a mim, completou: “Ela até menstruou”. Finalmente, Raquel relatou ter ouvido
que se sentir criança é uma síndrome. Diferentes elementos da questão etária emergem dessa
breve conversa. Em primeiro lugar, o caráter psicológico ou neurológico patológico atribuído
ao sentir-se criança em um período caracterizado como pré-adolescência. Segundo, o caráter
relacional da idade: de um lado, o investimento parental na proteção dos filhos (a mãe que
justifica um comportamento superprotetor em relação à filha vista como uma criança
vulnerável e carente) e, de outro, a imposição da necessidade de Raquel tornar-se autônoma
na relação com sua mãe (é como se dissessem: “liberte-se de sua mãe e cresça”). Finalmente,
um marco biológico que, de algum modo, ainda caracteriza uma passagem ritual da menina
para a mulher (ou melhor, a adolescente): a menstruação.
Esses três elementos impulsionam meninas de dez anos de idade — que, apesar de
viverem as expectativas de um mundo adulto, ainda desejam brincar, conforme o que foi
relatado do decorrer da conversa — a assumir a identidade de pré-adolescente por meio da
rejeição da experiência de se sentir criança.
A permeabilidade das relações etárias entre adultos e crianças percorre também
um caminho inverso. Os adultos querem ser (ou, pelo menos, aparentar ser) cada vez mais
jovens, confundindo-se com seus próprios filhos em termos de aparência física e de
comportamentos. Isso é comumente chamado de “infantilização do adulto”. Trata-se de um
movimento paradoxal de prolongamento ao infinito da infância e da juventude e de
encurtamento das experiências de infância, como a possibilidade do ócio, da criatividade, do
brincar descompromissado, do novo e da diferença.
Como se vê, novas famílias e suas crianças emergem de um complexo processo de
transformação histórica e social. Um processo cujo caráter negativo da crise domina os
discursos populares, sobretudo aqueles que circulam em espaços escolares e que se sustentam
sobre a culpabilização materna. No que toca à infância e suas experiências, um jogo entre
diferentes representações produz um conjunto de possibilidades de ser criança na
contemporaneidade, ao mesmo tempo em que retira dela sua particularidade ao se confundir
25
Vale observar, com Sibilia (2012, p. 112), que as idades do marketing não correspondem às da psicologia.
44
com o adulto. Esse jogo estende-se à escola, onde a brincadeira e a educação — atributos
infantis — tornam-se atividades de produtividade escolar. Em outras palavras, a entrada na
escola, ou mais especificamente no ensino fundamental, representa a inserção da criança na
esfera pública das expectativas de produção do bom desempenho.
execução das tarefas escolares ou domésticas, da aprendizagem, das emoções, da saúde, dos
riscos e dos conflitos (ROSA, 2009). Nas práticas cotidianas das escolas, onde nada se
termina (DELEUZE, 2010), a passagem de uma instituição a outra (da creche para o ensino
básico e daí para o fundamental, a faculdade, o trabalho...), de um profissional a outro
(MOLLO-BOUVIER, 2005) e de uma atividade que segue a outra26, evidencia a fluidez das
relações às quais a criança deve se ajustar e, a partir delas, produzir.
Na contemporaneidade, portanto, a educação escolar adquire algumas
particularidades, mas sem abandonar seus fundamentos originários, tais como as
classificações, as divisões etárias e a disciplina. Primeiro, ela se torna uma questão de direitos
e de deveres, fazendo com que a escolarização consolide-se decisivamente como uma forma
de socialização essencial à criança e à infância por meio de leis. Segundo, fundamenta-se na
necessidade do desenvolvimento de competências e habilidades (escolares ou não) que
garantam ao indivíduo a autonomia para seguir seu próprio caminho e agir no plano social,
bem como os bons desempenhos e o acesso a conhecimentos indispensáveis à sua inserção no
mercado de trabalho. Trata-se de uma adequação às normas e padrões socioculturais exigidos
para a inserção escolar e social da criança.
Discutir a inserção escolar infantil leva-nos a duas questões principais: quem não
está inserido e quem está. A primeira é fundamental para as políticas públicas. A segunda, não
menos importante, desdobra-se em outras quando se parte de uma análise microssocial.
O acesso à educação escolar laica e de qualidade é um direito de todas as crianças
brasileiras. Ainda que cerca de noventa por cento da população infantil e jovem frequente um
estabelecimento escolar de ensino, diferentes agendas e redes de serviços intersetoriais têm se
consolidado a fim de garantir seu acesso universal e de reduzir as carências e vulnerabilidades
sociais causadas pelo analfabetismo, pela evasão escolar e pela repetência. Nesse sentido, a
educação é vista como o princípio fundamental ao exercício de outros direitos e deveres
individuais e coletivos. No texto da Lei de Diretrizes e Bases, a educação básica assenta-se
26
“Os professores vêm na lógica de quanto mais atividades, melhor. Começa, troca, começa, troca. Como que a
gente quer que as crianças fiquem mais calmas, mais tranquilas, se a gente acelera? A gente acelera. A gente
quer dar trinta atividades em uma hora. Qual a necessidade? Se a criança está indo bem, ela conseguiu
entender, por que eu vou trocar de atividade? Precisa dar trinta atividades em uma hora? Posso dar duas? A
gente está tanto na lógica da produtividade que a gente passa isso para as crianças. Hoje ninguém pára. É um
negócio assustador. E acha que o problema é o ócio”. (Tania, professora de um programa de educação não
formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
46
27
Os preços mais baixos do medicamento são de aproximadamente R$ 22 para uma caixa com vinte
comprimidos e R$ 65 para uma com sessenta comprimidos. Considerando que, geralmente, tomam-se dois por
dia, o gasto mensal mínimo será de sessenta reais. As formulações mais caras, de longa duração (Concerta® e
Venvanse®), custam em média R$ 300 (FÓRUM, 2015, p. 5).
48
crianças mais novas (de seis a dez anos de idade) da escola campineira. Professores do
programa de educação não formal criticavam, entretanto, esse modo de distinção. Por seguir
uma proposta de ensino que rompe com os modelos fixos da educação convencional, o
programa contava com profissionais para quem a formação de grupos diferenciados por
gênero reflete as influências ainda vívidas de uma pedagogia clássica e arcaica.
Ainda que o programa tivesse essa particularidade, alguns educadores
reproduziam estereótipos inadvertidamente. Um exemplo foi observado em uma atividade em
que as crianças deviam usar pequenos cartões cortados e distribuídos pela professora: rosa
para as meninas e azul para os meninos. Os brinquedos do estabelecimento também eram
organizados obedecendo ao gênero socialmente atribuído a eles. Em uma caixa estavam os
carrinhos, dinossauros e aparelhos eletrônicos (como o walk talk). Na outra se encontravam as
bonecas e os utensílios domésticos (panelas nas cores rosa, roxa e vermelha, entre outros). As
crianças tinham um destino certo nos momentos lúdicos: os meninos dirigiam-se à primeira
caixa, as meninas à segunda. E esse direcionamento acontecia sem qualquer intervenção
imediata dos adultos. Outro exemplo emergiu de conversas de crianças com seus pares.
Afirmações como “o homem é mais forte do que a mulher” e “a flor é forte, ela é homem,
não é mulherzinha” foram ouvidas em sala de aula.
Outros docentes, todavia, apresentavam aos alunos propostas de questionamento
das distinções de gênero. É o caso da professora Isadora, responsável por uma sala de quarto
ano da rede municipal. Após a correção da tarefa de casa — que ocorreu em meio à confusão
de sons emitidos por aqueles que respondiam às perguntas em voz alta e pelos demais que
conversavam sobre outros assuntos —, estabeleceu-se um diálogo entre a educadora e os
alunos em se que falava sobre as desigualdades efetivas dos direitos de homens e mulheres e
da violência que estas sofrem. De modo geral, os alunos interessaram-se pelo debate,
compartilhando suas opiniões e experiências. Um deles então relatou, calmamente: “é por
isso que a minha mãe se separou do meu pai”.
A questão de gênero também se manifesta nos diagnósticos psiquiátricos. Havia
casos de TDAH, autismo, dislexia e transtorno de conduta nas escolas convencionais
mojimirianas e campineiras, conforme as informações fornecidas pelas equipes diretivas. As
crianças afligidas, sobretudo pelo TDAH, eram majoritariamente do sexo masculino.
Na quarta edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais –
DSM (APA, 2000b) — o guia psiquiátrico que descreve clinicamente o TDAH — afirma-se
que os registros da distribuição desse diagnóstico apresentam uma proporcionalidade de
quatro meninos para cada menina identificada como portadora. Já em sua quinta edição (APA,
50
2013), a proporção cai para dois meninos a cada menina diagnosticada. Isso se deve, de
acordo com o discurso psiquiátrico hegemônico, a uma maior atenção que vem sendo dada às
manifestações sintomáticas em meninas. Enquanto os meninos são mais facilmente
identificados pelos professores devido à manifestação de comportamentos externalizantes
(agitação extrema, inquietação, indisciplina), as meninas, mais calmas, quietas e
“sonhadoras”, seriam ignoradas, mesmo demonstrando um baixo rendimento escolar causado
pela desatenção. Apesar da incoerência entre os números de casos indicados por professores e
pelas equipes diretivas das escolas visitadas em pesquisa de campo, essa proporcionalidade se
reflete na realidade cotidiana escolar estudada, onde onze meninos e uma única menina foram
apontados como portadores.
Vale notar que no programa de educação não formal os diagnósticos psicológicos
e psiquiátricos, referentes a dificuldades de aprendizagem e de controle comportamental, têm
um papel secundário na abordagem dos alunos e na elaboração de projetos e estratégias
pedagógicas. A professora Renata explica:
Aos cinco anos e meio, a criança deixa um ambiente e ela tem que adentrar outro,
que é o “quadradinho” [a escola], as carteiras uma atrás da outra. Se um lápis acaba
caindo no chão, colorido, sai rolando, a criança presta atenção [nele] e deixa de
prestar atenção na professora, imediatamente — principalmente em escolas
particulares — a orientadora educacional e a psicóloga chamam a família e falam
que a criança tem uma dificuldade de atenção. Ela fica o tempo todo ali, por quatro
horas, a sociedade cobrando que as pessoas se movimentem, não devem ter muito
ócio, e depois a criança ainda precisa tomar Ritalina®. (Cássia, professora de um
programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
Diferentes professores afirmaram que a passagem da educação infantil (creche e
pré-escola) para o ensino fundamental (de primeiro a nono ano) representa uma grande
ruptura no sistema educacional. Isso se explica pela descontinuidade dos trabalhos e
competências desenvolvidas na transição de um nível da educação básica a outro. Ademais, o
diálogo estabelece-se de modo inconsistente entre suas equipes ou mesmo entre os dois
segmentos em um nível organizacional do sistema brasileiro de ensino. Neves, Gouvêa e
Castanheira (2011) reforçam a validade desse tipo relato ao afirmar que os impasses criados
por tal mudança se evidenciam no momento da entrada da criança no ensino fundamental.
A partir de sua pesquisa realizada em uma escola de educação infantil de Belo
Horizonte (composta por salas de aula, oficinas de artes, pátio e cantina), as pesquisadoras
notaram que as atividades organizavam-se destacadamente em torno das brincadeiras, com ou
sem interferência das professoras, e das rodas de conversa. Já em uma escola de ensino
fundamental, o primeiro impacto vivido pelas crianças era a entrada em um prédio maior, com
inúmeras salas de aula, laboratório, sala de informática, biblioteca, quadra coberta e pátio. Lá,
as atividades centravam-se na escrita: identificar as letras e escrevê-las, copiar conteúdos da
lousa (palavras ou números) e exercitar a coordenação motora. As brincadeiras restringiam-se
ao recreio. Substituíam-se as rodas de conversa, as negociações de conflitos e a contação de
histórias por tarefas individuais, desenvolvidas com material trazido de casa pelo aluno (ao
contrário do uso coletivo do material escolar na educação infantil) e pela organização em filas
dentro das salas de aula. Sucintamente, o ensino fundamental caracteriza-se por um acirrado
controle corporal e pela execução repetitiva das atividades escolares focadas no letramento.
Nas escolas convencionais visitadas por mim, as brincadeiras também se
limitavam formalmente aos recreios e a momentos excepcionais, como as festas
comemorativas. Nesses casos, os adultos dirigiam as atividades lúdicas, conformando-as ao
pressuposto de que, na escola, a brincadeira tem um sentido pedagógico de aprendizagem.
52
Havia algo comum entre as brincadeiras realizadas nos espaços livres e as de sala
de aula: o gritar e o movimentar-se continuamente. Em meio à agitação de uma turma de
sexto ano, uma aluna me alertou: “Diagnóstico: toda criança gosta de gritar”. Os jogos
suscitavam guerras cujo vencedor era aquele que gritava mais, corria mais, chutava mais,
ganhava mais. Muitos desafetos se desencadeavam, ainda que temporariamente, nessas
relações conflituosas. Os afetos e a cumplicidade entre as crianças eram igualmente
recorrentes. Contudo, destacavam-se os atos de mover-se exageradamente até cair ao chão ou
esbarrar em alguém, falar alto e gritar, ofender os colegas, estigmatizando-os (“O Gustavo é
louco”, “O Gustavo tem seis dedos na mão”, “Quem quer que o Gustavo saia da escola
levanta a mão”, “Pelo menos eu não estou no grupo de uma retardada”, “Vitor, você é
analfabeto funcional”), desrespeitar seus pertences (“Quem chutou a garrafinha do João
como se fosse uma bola de futebol?”; “Eu vou jogar essa cola no lixo, depois o dono não vem
reclamar”), mostra-se agressivo e não gostar de perder.
As crianças movimentavam-se agilmente. Algumas se deslocavam em direção à
professora para lhe mostrar uma atividade ou um desenho, apontar algo na lousa ou pedir uma
explicação murmurando, como se desejassem que os demais alunos não as ouvissem ou
temessem que a professora não as entendesse. Outras se levantavam para conversar com os
colegas ou apontar o lápis (a lixeira era um importante ponto de encontro de alunos
irrequietos). Outras ainda, mais discretas, moviam-se incomodadas, de um lado para o outro,
porém sem retirar seu corpo da cadeira. O mover-se constantemente representava uma
inquietação pouco compreendia, mas facilmente classificada como desinteresse, indisciplina
ou hiperatividade.
Os professores falavam alto na tentativa de sobrepor sua voz ao coro entoado
pelos alunos. Um coro desafinado em que cada um “cantava” em um tom e um ritmo. Os
educadores esbravejavam sem, contudo, fazer avançar o cronograma relativo ao planejamento
escolar. A necessidade da eficiência do trabalho docente e discente atingia seu ponto
culminante. A exigência da competência saltava do papel30 e recaía sobre a realidade da sala
de aula. A “explosão” acontecia ao soar do sinal do recreio, quando as crianças deixavam a
sala em fuga para gritar e correr mais livremente no pátio. A sensação que dominava esses
momentos era a de um mal-estar generalizado entre professores e alunos.
30
As diretrizes básicas para os níveis da educação nacional enfatizam a importância do trabalho escolar no
desenvolvimento de competências (um saber-fazer operacional) dos alunos voltadas à vida social e ao mercado
de trabalho e das competências dos professores, orientadas a habilidades para ensinar, ter autonomia em sala de
aula (sem desrespeitar a base curricular) e gerir conflitos.
54
A linearidade das salas de aula é notória, a começar pelo modo como os alunos
mais novos devem se organizar para chegar até elas: em filas. Lá, sentam-se com a postura
ereta e em fileiras. Na aula de artes, devem pintar com lápis de cor no sentido horizontal ou
vertical. Quem escreve torto, não completa as linhas do caderno ou sai dos contornos do
desenho está errado e deve ser reorientado. Segundo Marta Carvalho (2006, p. 292), a reta já
era, na escola brasileira do final do século XIX até a década de 1920, a regra e a norma que
constituíam o desvio e a deformidade como confirmação da necessidade de aplicação de uma
disciplina ortopédica preventiva e corretiva. Servindo como ferramenta para medir e examinar
as crianças, essa disciplina permitia construir, a partir de seus instrumentos, um conhecimento
científico do indivíduo visando a sua correção e à restituição da normalidade. Mesmo se
tratando de dois momentos históricos e sociais distintos, em ambos os casos, as estratégias
pedagógicas da linha reta fixam a criança em seu papel de aluno: a detecção de seus desvios
pressupõe a existência de padrões e limites aos quais os indivíduos devem se ajustar.
Os exames são instrumentos importantes para esses fins. Atualmente, eles
congregam a verificação e a medição da adaptação individual à disciplina escolar (uma
internalização do exercício contínuo refletido no ato de esforçar-se coerentemente para a
resolução de um problema) e da assimilação de competências sociais e cognitivas, essenciais
55
31
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15548-d-c-n-
educacao-basica-nova-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 18 nov. 2015.
56
hoje), delimitam-se passos a ser conquistados por cada e por todos os alunos. Esses passos
correspondem às competências adquiridas ao longo do processo de ensino. O sistema
organiza-se, dessa forma, em nível macro e microssocial sobre o pressuposto de que todas as
crianças em uma sala de aula devem acompanhar um mesmo ritmo e incorporar um mesmo
conteúdo. Os problemas surgem quando um desempenho se desvia do desenvolvimento
esperado.
Nesse sentido, as competências tão valorizadas nos textos oficiais orientados à
educação parecem dizer mais respeito, na prática cotidiana escolar, à transmissão e
assimilação de conteúdos do que ao desenvolvimento de relações autônomas direcionadas à
atuação do aluno em seu espaço sociocultural. A inserção social se resumiria, por
conseguinte, à capacidade de se adaptar e se encaixar em um dado modelo cognitivo e
comportamental. E, segundo esse modelo, o aluno deve ser o melhor a fim de que seja
reconhecido. É o que a professora ensina a uma estudante: “o prêmio é para os melhores
alunos. Você se encaixa?”. Faço alusão ao episódio em que se realizava a premiação das
crianças, de uma sala de terceiro ano, que haviam feito os melhores trabalhos naquela semana.
Uma menina, que não recebera o pequeno presente, dirigiu-se à professora para perguntar-lhe
se ela também não poderia ganhá-lo. A resposta recebida evidencia que o aluno deve
corresponder a um alto padrão de desempenho e concorrer com seus colegas pelas melhores
recompensas e pelo reconhecimento como um indivíduo adaptado às exigências do mundo
escolar e social.
Adaptar-se e encaixar-se envolvem também um conjunto de expectativas relativas
à execução de tarefas de modo concentrado, eficaz, silencioso e sem erros32. Os erros são
apontados, apagados e corrigidos. A cópia de conteúdos escritos na lousa é o principal
exercício executado em sala de aula. Ele exige a resistência física e a agilidade, mas não
requisita a reflexão (“é simplesmente copiar e preencher”, respondeu a professora a uma
aluna que havia dito não conseguir fazer a atividade). O copiar orienta a introjeção repetitiva
de conteúdos e segue a lógica de que todos os alunos devem concentrar-se em sua tarefa e
terminá-la dentro de um tempo estabelecido pelo docente. Atrasos e demoras geravam, em
campo, comentários como “Achei que você copiava mais rápido”, “Você ainda está aí?” e
“Mãozinha trabalhando, a boca tem que fechar, é automático”. O aluno tem de ser eficiente
32
Segundo Faron (2014), os professores franceses relacionam a imagem do aluno, independentemente de suas
condições sociais, culturais e econômicas, a obrigações como trabalhar, estudar, aprender, obedecer, saber
privilegiar o bem-estar coletivo frente ao bem-estar individual, ser atento, calmo, concentrado em sala e
autônomo. Para aqueles que não correspondem a essas expectativas, os professores insistem na necessidade da
intervenção de especialistas competentes.
57
no que faz e no que diz. Ao contar detalhes do incidente ocorrido durante o recreio, um aluno
teve sua fala interrompida pela professora: “Seja objetivo no que você quer dizer!”.
Esse conjunto de padrões seguidos em sala de aula, aos quais os alunos têm de se
adaptar independentemente de suas diferenças e dificuldades, ocasiona então um processo de
exclusão. Isto é, a partir da positividade desse conjunto adaptativo (aquilo que deve ser feito)
consolidam-se mecanismos de exclusão dos que não correspondem ao padrão proposto. Entre
esses mecanismos, destacam-se três comumente mobilizados no espaço escolar: a segregação
física ou simbólica, a classificação negativa (estigma) e o potencial ou real atraso escolar
(repetência).
Na sala de aula, as crianças acomodavam-se em lugares geralmente definidos
pelos professores por meio dos mapas de classe, a representação gráfica desse espaço escolar
onde cada carteira é identificada pelo nome de um aluno. Por vezes, elas decidiam onde se
sentar, mas os educadores intervinham e modificavam a distribuição em caso de perturbações,
como a conversa excessiva. A disposição em sala de aula é significativa, pois delimita os
espaços ocupados por todos os alunos, demarcando as posições relativas à categoria à qual
cada um deles corresponde. Os critérios de distribuição alternavam-se entre o desempenho
escolar (dificuldades, ritmos e eficiências), o comportamento (conversas excessivas,
principalmente), uma orientação médica (por exemplo, para um aluno míope ou desatento que
deve se sentar na primeira carteira33), a relação entre os estudantes (a fim de separar aqueles
que conversavam demasiadamente), entre outros.
Por vezes, encontravam-se alunos considerados como desinteressados sentados
próximos às janelas ou em fileiras distintas daqueles que dispensavam atenção às aulas. Esse
posicionamento era sempre definido pelos professores. Vale notar que no relatório do
UNICEF acerca da exclusão escolar (UNICEF, 2014b), identificou-se entre dirigentes
municipais de todo o Brasil que o fator tido como um dos maiores entraves ao acesso de
crianças e jovens à escola era a falta de interesse pelos estudos. Se as famílias são
culpabilizadas pelos fracassos da criança e da escola, aos alunos e alunas também se atribui a
“culpa” de não se dedicarem àquilo que lhes é oferecido.
33
“Algumas estratégias pedagógicas para alunos com TDAH. Adaptações ambientais na sala de aula: mudar as
mesas e/ou cadeiras para evitar distrações. Não é indicado que alunos com TDAH sentem junto a portas, janelas
e nas últimas fileiras da sala de aula. É indicado que esses alunos sentem nas primeiras fileiras, de preferência ao
lado do professor para que os elementos distratores do ambiente não prejudiquem a atenção sustentada”.
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/br/dicas-sobre-tdah/dicas-para-educadores/item/399-algumas-
estrat%C3%A9gias-pedag%C3%B3gicas-para-alunos-com-tdah.html#sthash.duYbcIIx.dpuf>. Acesso em: 08
out. 2015.
58
colocar entre duas boas alunas. Eu não posso fazer nada. Elas podem te bater. E as mães
delas podem vir reclamar de você”, disse-lhe a professora34.
Nessa perspectiva, o isolamento de um aluno evidencia a existência de um desvio
a ser apontado e punido. O rompimento provisório das relações de Talita com os colegas e
com a professora servia, por um lado, como exemplo a não ser seguido pelos demais e, por
outro, como um castigo propriamente dito. O estigma (GOFFMAN, 1988) previamente criado
permitia antever, nessa e em outras situações, a potencialidade de uma nova infração. Cito
como exemplo o acontecimento que se seguiu à exclusão da menina.
Alguém bateu à porta da sala. Talita, que se aproximava de mim, disse ser ela quem
estava fazendo o ruído com um lápis sobre a carteira. [...]. Discordei, pois se tratava
de sons distintos. Mas, ouvindo nossa conversa, Gustavo anunciou para toda a
turma: “A Talita tá fazendo barulho com o lápis”. Enfurecida, a professora ordenou
que Talita voltasse ao seu lugar e disse-lhe que eu não estava ali para conversar com
ela. À sua carteira, junto à porta, a menina permaneceu quieta, porém mexeu em um
cartaz preso à parede, sendo novamente repreendida: “Onde você está, você estraga
algum objeto”. [...] Deitando sua cabeça sobre a mesa, não fez nenhuma outra
atividade, até então realizada com esforço. (Anotação de diário de campo, 27 set.
2013, p. 123-124).
A emissão do ruído, a breve conversa e a manipulação do material preso à parede
constituíram uma série de eventos perturbadores de uma ordem espacial e relacional. O
barulho não poderia ser tolerado naquele momento de concentração exigida pela atividade em
desenvolvimento. Quem o emitisse deveria ser apontado — ainda que pelos próprios colegas
—, punido e corrigido. O deslocamento da carteira, isolada das demais, e a conversa com a
pesquisadora intensificavam a perturbação, imputada sem hesitação a Talita. O manuseio do
cartaz representou a comprovação de que a imagem deteriorada de um aluno reflete-se na
interpretação de seus atos: ele “estraga aquilo que toca”.
Por fim, a repetência é o atestado conclusivo da inadequação de uma criança às
expectativas de sucesso escolar. Sobretudo de meninos, reprovados majoritariamente em 2013
e 2014, segundo os relatos docentes nas diferentes escolas visitadas. As causas da reprovação
nunca eram verdadeiramente analisadas pelos professores entrevistados, transitando entre a
culpabilização da família pela carência de estímulos, a culpabilização da criança pelo
desinteresse pelos estudos e a “falta de Ritalina®”35. Marcava-se negativamente o aluno
34
Outros tipos de ameaça foram identificados em falas de professores, tais como “vou ter que filmar seu
comportamento para mostrar para a sua mãe?”. Os bilhetes endereçados aos pais relatando um mau
comportamento também eram instrumentos adotados comumente, assim como a convocação de alunos a “dizer a
verdade” (leia-se: delatar um colega).
35
Faço menção à afirmação de uma diretora escolar, convencida de que um de seus alunos do sexto ano havia
sido reprovado por falta de Ritalina®. Entende-se de sua explicação que o medicamento poderia ter controlado a
indisciplina do aluno em sala de aula, permitindo-o concentrar-se e dedicar-se aos estudos.
60
“repetente” sem que práticas pedagógicas específicas fossem elaboradas a fim de lançar um
novo olhar sobre as falhas decorridas no ano letivo anterior.
A exclusão das crianças em virtude de sua inadaptação — da frustração das
expectativas adultas, conforme os termos usados por Calligaris (1994) e Schérer (2009) — ou
ainda a construção do estatuto da criança com dificuldades de aprendizagem, promovida por
sua separação física em relação aos bons alunos, fazem emergir no interior da sala de aula a
“não infância”. A “não criança” ou a criança “sem jeito” revela aos professores a
impossibilidade de educar diferentes alunos segundo um único modelo de aprendizagem sem
adoecer ou de cumprir um denso cronograma sem se abalar com o sentimento de culpa e de
fracasso na função docente. Trata-se de um fato óbvio, porém sempre evitado, já que
travestido de incapacidade em um contexto de valorização de competências. Evidencia-se
igualmente a fragilidade da educação escolar — ainda que o lema básico das políticas
públicas seja a proteção e promoção dos direitos à criança — e, assim, a dificuldade de o
educador restabelecer a ordem na sala de aula e, ao mesmo tempo, estabelecer o diálogo com
seus alunos. Em última análise, essa situação mostra que, apesar dos esforços despendidos, as
crianças estão sofrendo dentro dessa escola contemporânea.
A exclusão e o sucesso escolar não são as únicas condições que produzem a
criança-aluno. Relações entre pares também constituem formas de socialização coexistentes
com os modos de inserção social propiciados pela família e pela escola. Na
contemporaneidade, até mesmo as redes sociais são meios de socialização. Contudo, no
modelo escolar vigente, ao qual a criança se integra aos seis anos de idade, sucesso e fracasso
(ou o desempenho social, cognitivo e emocional do indivíduo, uma noção fundamental a
categorias clínicas como o TDAH) são o termômetro das ações escolares e, igualmente, seu
objetivo final. O pressuposto é de que o êxito na escola garante o sucesso social da criança e,
assim, sua realização como cidadã.
Entendo, portanto, ser possível presumir que o mal-estar e a crise da escola
surgem da ineficiência da instituição escolar em permitir à criança adaptar-se e corresponder a
esses padrões e, assim, garantir-lhe seu estatuto de sujeito de direito, de indivíduo a ser
cuidado e educado e de criança autônoma. E no ponto de cruzamento dessas figuras que não
se constituem em realidade (ou que, sob outra perspectiva, formam-se de modo diverso,
colocando em questão as expectativas adultas acionadas) está a criança hiperativa e desatenta.
61
A escola chega para o pai e fala “seu filho é hiperativo”, só que muitas vezes o
professor não tem essa formação. Então a escola acaba reproduzindo na forma de
um chavão: uma criança agitada hoje é uma criança hiperativa. (Lívia, professora de
um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
Nesse excerto, a professora problematiza a indistinção entre a criança agitada e a
criança hiperativa, criticando, no conjunto de seu relato, a produção escolar de uma demanda
desmedida de encaminhamentos psicológicos e psiquiátricos, sob a suspeita da existência de
casos de TDAH. Trata-se, para ela, de uma ação ilusória, pois é o médico especialista — e
não o professor, que “não tem essa formação” — quem deve afirmar se uma criança
manifesta ou não sintomas desse transtorno. A problemática que se coloca excede, entretanto,
a ilusão para se instalar no âmbito da difusão real de discursos competentes a dizer a verdade
sobre o TDAH. E tal difusão inicia-se na escola.
Deve-se também reter dessa problemática o fato de que é na escola onde a
agitação e a hiperatividade tornam-se um problema comportamental. Essa constatação
coincide com o consenso consolidado entre os psiquiatras, com anuência do Manual
diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, de que a entrada da criança na escola é o
momento-chave da procura intensiva por profissionais especializados e do estabelecimento de
diagnósticos de TDAH. Embora aumente progressivamente o número de crianças
identificadas como hiperativas aos três anos de idade, a passagem para o ensino fundamental
ainda se destaca como origem desse fenômeno. E, considerando as análises feitas
anteriormente acerca do impacto das grandes mudanças proporcionadas às crianças que
iniciam essa etapa do sistema educacional, da fixidez de suas relações de ensino e
aprendizagem e da importância secundária dos diagnósticos psiquiátricos relativos a
dificuldades de aprendizagem no programa de educação não formal, tem-se que disciplina e
hiperatividade (como desvio) relacionam-se intimamente.
62
Por mim e pra minha vó, hiperatividade é a pessoa não parar quieta. Fazer tudo o
que quiser ao mesmo tempo. Isso não me atrapalha (disse ele, entre um sorriso e um
riso). Mais ou menos na escola, porque eu fico prestando atenção em tudo. Quando
me distraio, fico pensando em videogame, jogo de computador. Por que não saio da
escola logo. (Luan, 13 anos. Entrevista concedida em 01 jul. 2013).
A hiperatividade pouco ou nada atrapalha o desenvolvimento das atividades
cotidianas, como o jogar videogame, evocado pelo menino como a possibilidade de fuga da
pressão escolar. Dentro da instituição, no entanto, o “não parar quieto” e o “fazer tudo o que
quiser (ao mesmo tempo)” indicam os desvios da linearidade escolar e da obediência. Afinal,
não se pode fazer tudo o que quiser sem o consentimento do adulto. Há regras a respeitar. O
descumprimento dessa premissa impossibilita a individualização da criança, o controle
corporal e a moldagem de seus comportamentos e conhecimentos dentro de um dispositivo
disciplinar (ainda que em crise) afinado a uma ordem social. Tal impossibilidade requer uma
intervenção.
A intervenção sobre a criança somente pode acontecer quando ela é reconhecida
como sujeito. Isto é, como um indivíduo inserido em jogos de forças dos quais ele está
habilitado a participar, ainda que a partir de uma posição subjugada e determinada pela
questão do desenvolvimento (e, posteriormente, da vulnerabilidade). A criança passou a ser
reconhecida como tal já no final do século XIX e início do XX. No entanto, é na
63
contemporaneidade que sua participação na cena social torna-se central. Hoje, ela é tida como
capaz de se autoconstituir como sujeito, de seguir seu próprio caminho, de decidir por si
mesma, contanto que suas competências e habilidades sejam adequadamente aprimoradas por
intermédio do investimento familiar, escolar e governamental. A criança hiperativa e
desatenta é, nesse contexto, reconhecida como indivíduo, mas um indivíduo que, por motivos
específicos, não é capaz de se constituir como sujeito individualizado (isto é, adaptado à
disciplina escolar) e tampouco como sujeito autônomo e competente. Parte do problema será
então definida pela psiquiatria dominante como advinda de disfunções cerebrais, parte caberá
às instituições de cuidado da criança, com destaque à escola.
Uma vez que a hiperatividade é delimitada como sintoma patológico de um
transtorno mental (o TDAH), as estratégias pedagógicas tornam-se pouco eficientes em vista
do caráter técnico da intervenção demandada. O relato da professora Lívia reafirma a
necessidade de uma abordagem específica e especializada direcionada às crianças hiperativas:
Em dez anos de educação não formal e dez anos de rede [pública de ensino], eu tive
um hiperativo. Quem tem aluno hiperativo sabe o que é hiperatividade, o resto é
agitado. Essa criança precisa de Ritalina® sim. Esse caso! É um para mil. Porque a
criança se arrastava no chão, ela entrava embaixo de carteira, e aquilo tumultuava a
sala inteira, a escola inteira. Mas era aquele aluno. Medicou, melhorou. (Lívia,
professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14
ago. 2015).
A intervenção, nesse caso, faz-se por intermédio da Ritalina®, o principal
medicamento destinado ao tratamento do TDAH. Para sua aplicação, o professor deve ser
hábil na identificação da criança hiperativa a fim de diferenciá-la daquela agitada, com a qual
os profissionais de educação sabem (ou deveriam saber) lidar. Porém, o médico especialista é
o único habilitado a fornecer as explicações aos professores e pais e os instrumentos para que
a criança hiperativa supere sua incapacidade, individualize-se e seja reconhecida, por meio de
uma boa socialização, como sujeito socialmente adequado. A intervenção sobre seu corpo e
sobre seu cérebro lhe garantirá isso, de acordo com o discurso técnico-científico.
A hiperatividade e, sobretudo, a representação da criança hiperativa e desatenta
extrapolam a questão disciplinar ao se filiar ao direito individual voltado às vulnerabilidades,
necessidades e diferenças. Esse tipo de investida é o objetivo fundamental de grupos como a
Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Caracterizada como uma associação sem fins
lucrativos, fundada em 1999, a ABDA tem como objetivo “disseminar informações corretas,
baseadas em pesquisas científicas” sobre o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade
(TDAH)36. Ademais, ela oferece suporte a portadores desse transtorno e a seus familiares
36
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/br/a-abda/historico.html>. Acesso em: 27 jun. 2015.
64
37
Disponível em: <http://www.russellbarkley.org/factsheets/ADHD_EF_and_SR.pdf>. Acesso em: 02 dez.
2015.
38
Na perspectiva psicanalítica, a hiperatividade é um fenômeno comportamental-emocional. O comportamento
de uma criança define-se a partir de um conjunto de sistemas de interação que regulam tanto o funcionamento
cerebral quanto as condutas comportamentais. Os registros corporais do adoecimento psíquico dialogam, assim,
com a biografia do indivíduo.
65
39
Risco é um conceito probabilístico relativo à produção racional, lógica e reducionista de perfis individuais e
coletivos.
66
CAPÍTULO 2
40
Esse tipo de questionamento aparece também em estudos brasileiros em pedagogia e em psicologia escolar,
como os de Mesquita (2009), Landskron e Sperb (2008), Seabra (2012) e Freitas e Silva (2014).
67
41
Os benzodiazepínicos inibem levemente diferentes funções do sistema nervoso, causando ações
anticonvulsivantes, alguma sedação, relaxamento muscular e efeito tranquilizante (RIVOTRIL®, 2013).
42
Os dados advêm de uma pesquisa realizada pela APEOESP em dezembro de 2010. Dela participaram 936
profissionais de educação, sendo 69% de mulheres e a maioria branca.
68
43
A maioria dos professores participantes da pesquisa da APEOESP atuava apenas na rede estadual de ensino
(69%), enquanto 21% dividiam seu tempo entre escolas estaduais e outras não especificadas e 10% trabalhavam
em escolas estaduais e em outras atividades fora da área de educação. A carga horária média de trabalho efetivo
em sala de aula correspondia a 35 horas semanais. A média de alunos em sala era de 37,8 estudantes.
69
A escola está deixando de ser local de aprendizagem para ser local de... (“Babá”,
alguém completa). [...] A escola virou simplesmente socialização. (Jorge, professor
da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
A inserção social da criança é uma importante função ainda desempenhada pela
escola. Nesse sentido, a distinção entre socialização e aprendizagem que se opera no cotidiano
escolar diz respeito a uma mudança no papel de cuidado atribuído ao professor. O termo
“babá” indica essa mudança e traz à cena os embates travados entre escola e família,
conforme o que foi apresentado no primeiro capítulo. As professoras não são mais “tias”,
antiga denominação usada por crianças pequenas para designar educadoras ou outras
mulheres que não suas mães, em um claro movimento de familiarização das relações. Agora,
professoras e professores são “babás”, profissionais a quem se atribui, mediante pagamento, o
dever de cuidar de alguém de forma substitutiva ou complementar à família.
A partir de outra perspectiva, entretanto, a atribuição de novas funções ao
professor reflete um deslocamento do olhar sobre o aluno. Substitui-se um modelo abstrato e
genérico por outro que entende a criança como um sujeito global, constituído pelas relações
dadas em diferentes âmbitos da vida coletiva e individual.
Hoje o professor não pode ser só pedagogo, não. E já faz um bom tempo que não dá
para ser só pedagogo. Você ensina ética, você ensina moral, você ensina higiene,
você ensina a parte biológica da coisa, você tem que trabalhar os sentimentos, vamos
dizer, o ser e não o ter. [...] Então ele vai ter que lidar com diferentes formações,
com diferentes indivíduos, com diferentes características. E ele vai ter que trabalhar
esse indivíduo como um todo. Ele não vai poder trabalhar só o pedagógico. (Maria
Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
Não ser somente pedagogo implica uma polivalência do profissional de educação.
Polivalência que ora é vista como intrínseca à profissão docente (já que a relação com o ser
humano é seu principal objetivo), ora como um novo caráter a ser combatido, pois resulta,
nessa perspectiva, de um abuso cometido por pais que não assumem suas responsabilidades
ou pelo Estado que abandona os professores. Aqui, a dualidade da crise reaparece. Sua
positividade orienta a visão à mudança, algo fundamental às relações humanas. Em sua
negatividade, a crise é a perda de valores, de referências e de modelos.
Independentemente do ponto de vista que se adote, o desgaste vivido pelos
professores e o não reconhecimento de sua profissão são motivos reais de sofrimento. O
professor Everton fornece um exemplo: “Acho que o problema maior é a carga horária do
professor, o acúmulo de dois cargos, tudo isso que... É muito cansativo”. Aí está um primeiro
ponto a ser observado (já indicado pela pesquisa da APEOESP): os profissionais de educação
acumulam cargos a fim de complementar sua renda.
70
O piso salarial nacional dos professores da rede pública de educação básica, com
jornada de 40 horas semanais, é atualmente de R$ 1.917,7844. Na rede pública de ensino do
estado de São Paulo, o professor de educação básica I – PEB I (habilitado a alfabetizar e
ministrar aulas de ciências básicas a criança de cinco a dez anos de idade) tem o salário inicial
de R$ 2.086,93 por quarenta horas semanais, enquanto o PEB II (licenciado em disciplinas
específicas do sexto ao nono ano e do ensino médio) recebe inicialmente R$ 2.415,89 para a
mesma carga horária45. Para os professores contratados como horistas, o valor da hora/aula é
de R$ 10,43 para o PEB I e R$ 12,08 para o PEB II. Esses valores estão acima da renda média
domiciliar mensal per capita do estado (segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, realizada pelo IBGE em 2014, a renda média por pessoa no estado de São Paulo é
de R$ 1.432,00). Ainda assim são cifras injustas em vista do tipo de trabalho desempenhado
no âmbito da educação escolar (além das aulas em sala, é preciso elaborar cronogramas,
preparar conteúdos e materiais, corrigir provas, participar de reuniões etc.).
O grande número de alunos em sala de aula é outro problema. De modo geral, os
professores entrevistados em campo relataram conseguir manejar suas atividades mesmo com
vinte ou trinta alunos em sala, sendo ele ou ela o único profissional presente naquele espaço.
Contudo, a concentração de crianças em um pequeno ambiente torna-se profundamente
problemática quando os comportamentos infantis saem do controle. A professora Vera afirma:
Você tem uma sala com mais de trinta alunos e aquele que é super agitado. Ele
desestrutura uma sala inteira, você tem que cuidar dele e dos outros trinta para que
eles não caiam, não machuquem, não aconteça alguma coisa. É difícil também. Não
é só saber pedagogicamente como lidar com ele: lidar com ele e com todos os outros
e com a desestruturação que ele causa na sala. (Vera, professora da rede municipal.
Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
As consequências de uma situação caótica causada por um único aluno agitado ou
indisciplinado são diversas, indo desde a solicitação de encaminhamento da criança
perturbadora a especialistas até sua exclusão no interior da sala de aula, como se viu mais
detalhadamente no capítulo precedente. O mal-estar causado nesses momentos leva os
professores a se sentir culpados pela impossibilidade de atender a todos os alunos. Diante da
limitação da estrutura escolar que se impõe nesse sentido, Carlos confidencia:
44
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/piso-salarial-de-professores?id=21042>. Acesso em: 25 nov. 2015.
45
Disponível em: <http://www.apeoesp.org.br/salario-base/>. Acesso em: 25 nov. 2015.
71
Frases como “eu me sinto impotente” e “nós não sabemos o que fazer” foram
recorrentemente enunciadas pelos professores e professoras participantes da pesquisa.
Impotência, desconhecimento, fracasso e culpa são, assim, sentimentos que movem os
educadores e os fazem questionar sua função social. Alia-se a esse mal-estar a constatação de
que os conteúdos e conhecimentos transmitidos aos alunos são monótonos e pouco funcionais.
“É um tipo de conhecimento que para eles, como crianças, não tem função nenhuma. Quando
ele [o aluno] sai da escola, daí ele vai fazer aquilo que ele gosta”, afirma o professor
Everton. Essa realidade é igualmente apontada por relatórios, como o do UNICEF (2014b),
em que a consideração precária das diferenças culturais e cotidianas vividas pelas crianças
dificulta o diálogo entre alunos e professores.
Ademais, os educadores — sobretudo aqueles que lecionam em salas de sexto ano
— acreditam que o mau desempenho dos alunos tende a se generalizar devido à preparação
deficiente, principalmente em matemática e português, resultante dos primeiros anos do
ensino fundamental. Uma das soluções encontradas por alguns desses docentes para amenizar
o desconforto causado pelo desconhecimento (tanto de professores quanto de alunos) é “dar
nota” ou reprovar os educandos que não demonstram um desempenho ideal e com os quais
esses profissionais acreditam não saber lidar. O professor Everton diz: “Que práticas
pedagógicas nós usamos? Nenhuma. Damos nota ou repetimos. É isso que nós fazemos. Nós
não sabemos o que fazer: essa é a realidade”. Essa prática evidencia que há pouco espaço
para a singularidade do professor e do aluno, presos a um modelo predeterminado. O fato se
agrava, no ponto de vista dos professores, pela inexistência de uma relação eficiente entre
serviços de saúde e de educação, dificultando, no caso de alunos portadores de um laudo
médico ou psicológico, o acompanhamento e a elaboração de estratégias pedagógicas
específicas.
O sentimento de impotência se conjuga então ao de abandono. O Estado (em sua
esfera de atuação municipal, estadual ou federal) é considerado incapaz de definir a função
social da escola na atualidade (mas essa é uma responsabilidade exclusiva do Estado?). Em
decorrência dessa situação, ele é acusado de impor papéis ao professor para os quais esse
profissional acredita não ter conhecimento para cumprir. A fala do professor Jorge, transcrita
a seguir, tematiza as estratégias pedagógicas direcionadas a crianças com alguma condição
psiquiátrica ligada à aprendizagem. Porém, ela aponta para uma questão mais profunda: a do
profissional de educação polivalente.
Mas a gente não é preparado para isso [lidar com os transtornos psiquiátricos]. Nós
não estamos, não temos base para isso. Não há nenhuma matéria que você tenha
72
estudado em uma faculdade que lhe dê base para isso. O Estado nos empurra goela
abaixo essa função. O Estado, de forma geral, nos empurra para que a gente faça
aquilo que deveria ser o serviço de um psicólogo que deveria ter dentro da escola, e
não temos, uma assistente social que deveríamos ter dentro da escola. [...] você,
professor de geografia, [teve] quantas aulas de psicopedagogia para trabalhar isso?
(Jorge, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
O acesso ao conhecimento técnico, representado aqui pela psicopedagogia, é uma
reivindicação docente tida como fundamental à relação entre professor e aluno (o “aluno
difícil”, principalmente). Nesse sentido, considera-se o Estado como igualmente incapaz de
disponibilizar aos professores meios de superar seu desconhecimento, seja uma formação
mais adequada à atual realidade das escolas públicas brasileiras, seja a colocação de
especialistas (psicopedagogos, psicólogos, fonoaudiólogos, assistentes sociais) dentro do
espaço escolar.
A infraestrutura escolar constitui, assim, outro aspecto problemático aos olhos dos
professores, que relataram haver bons projetos, mas não recursos para desenvolvê-los. No
caso dos alunos com deficiências, existem em algumas escolas (embora não seja a situação
dos estabelecimentos de ensino visitados durante a pesquisa) salas de recursos
multifuncionais. Seu objetivo é permitir a inclusão das deficiências e diferenças dentro da
escola de ensino normal. Muitas delas, porém, estão fechadas ou carecem de profissionais
especializados para coordenar suas atividades.
Em um plano mais geral, a carência de recursos para projetos explicita-se quando
o assunto é tecnologia. As escolas visitadas dispunham de computadores acessíveis aos
alunos. Contudo, eram máquinas obsoletas e muitas vezes em mau funcionamento. Para
crianças que têm acesso precoce a esse tipo de tecnologia, torna-se desinteressante o uso de
computadores mais antigos do que os seus próprios. Além disso, os projetos geralmente
contam com a parceria de empresas de informática, como a Microsoft no caso da escola
municipal mojimiriana, e trazem para o estabelecimento de ensino programas avançados e,
por isso, incompatíveis como os recursos escolares disponíveis. A professora Maria Luiza
exemplifica a situação ao constatar que em sua escola, localizada no interior de uma
importante universidade pública, repleta de recursos informacionais de ponta, não se dispunha
de acesso remoto à internet. Ela diz: “A gente está no meio de tanta tecnologia e aqui estamos
na precariedade”.
Esse conjunto de novas exigências e premissas da carreira docente coloca aos
professores novos desafios, por vezes manejados com dificuldade e resistência. A crise então
emerge como problemática central da educação escolar. Um descompasso se estabelece entre
a função social exigida externamente (pelas condições criadas por políticas públicas, famílias
73
46
É preciso enfatizar que não se defendem aqui as agressões físicas e verbais perpetradas por alunos contra os
profissionais de educação. E tampouco as agressões praticadas por estes contra aquelas. Mas, assim como todas
as formas de violência, é preciso compreender o problema subjacente.
74
valorização do passado poderia ser identificado na repetição nostálgica, dentro e fora das
escolas, da ideia transmitida em relatos como o do professor Everton:
Tinha problema, a gente era expulso [da escola]. Quantos foram expulsos da escola!
Então o aluno começava a fazer muita coisa, chamava uma vez, duas vezes, três
vezes, expulsão. Aí tinha que ir pra escola particular que era inferior à nossa. Era
outra época. (Everton, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar.
2013).
O antigo também se refere ao conhecimento pedagógico, seja ele apreendido em
seu aspecto de conhecimento geral formalizado em conteúdos a ser transmitidos aos alunos,
seja o conhecimento pedagógico em si, técnico e, por isso, dominado pelo professor. O
primeiro é facilmente acessado pelas crianças mesmo fora dos muros escolares, em razão do
advento da internet e dos usos das tecnologias, os quais as crianças dominam mais facilmente
do que os adultos. A crise da autoridade estabelece-se nesse nível devido a uma indefinição
do que é próprio ao conhecimento do professor e o que é ao do aluno (foram identificadas no
capítulo anterior as implicações desse tipo de indefinição no que toca ao mundo infantil e a
vida adulta). Restam-lhes as interações cotidianas fundadas nas hierarquias e nos diálogos. Já
em relação ao conhecimento técnico pedagógico, alguns professores participantes da pesquisa
insistiam na utilização de métodos e técnicas de ensino aprendidas durante seu curso de
formação superior, há cerca de vinte anos. Outros, diante da ineficiência da instituição escolar
em desenvolver as competências discentes e docentes (especialmente no que se refere, neste
caso, à gestão de conflitos), reforçavam a necessidade de atualização do conhecimento técnico
do profissional de educação.
Prevalece nas relações entre alunos e professores, observadas em trabalho de
campo, a ênfase dada às hierarquias, à contenção do corpo infantil e ao disciplinamento.
Hierarquias são escalas de autoridade. Nos termos foucaultianos, hierarquias são
desigualdades de poder que regulam as relações sociais. Hierarquizar é, nos dispositivos
disciplinares, um procedimento que possibilita — em conjunto com os atos de identificar,
medir e comparar — situar o indivíduo em seu espaço dentro de uma instituição, vigiá-lo e
agir sobre seu corpo, seus comportamentos e seus conhecimentos. A maquinaria que se
constitui determina as diferenças entre as crianças. Anotam-se desempenhos, aptidões e
caráter pessoal a fim de estabelecer classificações rigorosas e relativas à normalidade
(FOUCAULT, 1991b). Nela, o olhar que vigia e examina cria um saber sobre o ser humano a
ser trabalhado. A criança torna-se, portanto, um objeto de conhecimento e de intervenção
pedagógica (e também médica).
75
47
Observei no ambulatório mencionado que, nas interações entre especialistas e leigos, os médicos dispunham
de estratégias para conquistar seus pacientes (por exemplo, não deslegitimar, logo no primeiro encontro, as
experiências ou as opiniões dos pais), bem como as mães mobilizavam concepções de lealdade, proximidade e
confiança para avaliar o desempenho do psiquiatra. Nas escolas, por sua vez, alguns professores contestavam a
intromissão dos especialistas no espaço escolar, chamados por seus colegas a lhes instruir sobre como lidar com
uma criança com dificuldades de aprender.
76
claro disso é o caso de Vitório (onze anos), um menino muito ativo e popular em sua turma de
sexto ano. De acordo com uma de suas professoras, seu problema mais imediato referia-se à
indisciplina, entendida, nesse caso, como enfrentamento e propensão a desorganizar a sala
rapidamente. Na sala dos docentes, comentava-se que Vitório era “preguiçoso e
indisciplinado e enfrentava os professores”. Era, assim, um mau aluno, ao contrário de seu
irmão mais velho que “passou no vestibular”, segundo os educadores. A “falta de
Ritalina®” constituía, na visão da diretora escolar, a causa de sua reprovação naquele ano.
Em seu prontuário escolar constava um formulário de solicitação de
encaminhamento preenchido por um professor não identificado. As reclamações que
subsidiavam a demanda concerniam à falta de concentração, indisciplina, dificuldade de
aprendizagem (embora ele tenha resolvido rapidamente um desafio de lógica oferecido por
uma professora durante meus trabalhos de campo) e enfrentamento. Esses são alguns dos
sintomas de dois tipos correlatos de condições psiquiátricas (comorbidades): o TDAH e os
transtornos disruptivos de conduta. Este grupo de condições caracteriza-se pela manifestação
de problemas de autocontrole emocional e comportamental, com maior prevalência em
meninos. Os quadros clínicos que o compõem são o Transtorno Opositor Desafiador, o
Transtorno Explosivo Intermitente e o Transtorno de Conduta. O primeiro tem por sintomas o
humor irritável, a raiva, o comportamento desafiador e argumentativo e o revanchismo,
enquanto o segundo caracteriza-se pela manifestação de impulsos agressivos. O terceiro se
expressa por meio da agressão a pessoas e animais, da destruição e roubo de propriedades
privadas e de sérias violações das leis.
O fato de que esses transtornos — sobretudo os dois primeiros — definem-se
como comorbidades do TDAH significa que se deslocam o enfrentamento (desobediência), a
indisciplina (mau comportamento), a hiperatividade (manifestações de inquietude) e a
aprendizagem (processo de assimilação de conteúdos escolares) do domínio pedagógico (crise
escolar e de autoridade do professor) para alocá-los no campo dos conhecimentos técnico-
científicos classificatórios (transtornos mentais). Assim, a psicopedagogia (“Quantas aulas de
psicopedagogia você teve para trabalhar isso?”) e as neurociências, entre outros saberes
(incluindo aquele do pesquisador chamado pelo professor a opinar sobre sua aula), entram em
cena como conhecimentos técnicos e como práticas capazes de responder externamente aos
novos dilemas da educação, sobretudo à dificuldade do docente de manter a ordem
disciplinar, de estabelecer diálogo com os alunos e, assim, de possibilitar à socialização
adequada das crianças.
80
48
A sabedoria, para Descartes, vincula teoria e prática, constituindo um sistema de saber harmonizado e
composto pela mecânica, pela medicina e pela moral. O objetivo final desse sistema, que congrega o domínio
técnico e tecnológico da natureza, a extirpação das doenças (e o prolongamento da vida) e o domínio interno das
paixões, é a realização da felicidade humana. Em outras palavras, a técnica e o conhecimento criam condições
para o aprimoramento da vida (SILVA, 1997).
81
49
De acordo com Bautheney (2011), a primeira instituição com essa finalidade foi criada no Brasil em 1929.
Trata-se da Escola Pacheco e Silva, localizada no Complexo Hospitalar do Juquery.
83
criança (conforme o que foi analisado no primeiro capítulo) ou mesmo à intervenção ilimitada
da medicina nas práticas pedagógicas (crítica feita por meio da noção de “medicalização”).
A problemática do fracasso escolar, trazida por Soares (1991), corresponde àquela
crise da escola, mencionada anteriormente, oriunda da carência de reformulação da função da
instituição escolar e de seu projeto pedagógico diante do processo de democratização do
ensino. Não se trata, entretanto, de um fenômeno exclusivamente brasileiro, visto que Morel
(2014) também identificou algo similar na França. Esse sociólogo afirma que a expansão e o
prolongamento da escolaridade obrigatória no país durante os anos 1960-70 trouxeram
consequências importantes à educação. A inclusão de crianças e adolescentes originários de
famílias desprovidas de recursos econômicos constituiu-se como um fator problemático aos
estabelecimentos escolares franceses, devido aos diferentes desempenhos entre as crianças
favorecidas e as desfavorecidas e aos novos desafios colocados pelo fracasso escolar desse
“novo público”. Recebendo então novas exigências (tais como criar uma estrutura adequada
para esses alunos, ou as chamadas classes de aperfeiçoamento e de educação especializada),
os estabelecimentos de ensino e os professores franceses passaram a utilizar explicações
psicológicas e biomédicas sobre as dificuldades cognitivas e relacionais de certos indivíduos.
O efeito mais importante desse processo é a assimilação progressiva e oficial de especialistas
médicos e “paramédicos” ao sistema educacional francês.
A adoção da categoria TDAH em diferentes países (ainda que em momentos
particulares) decorre desse contexto contemporâneo de problematização médica, psicológica e
sociológica do fracasso escolar. Surgido nos Estados Unidos, por meio das ações da
Associação Americana de Psiquiatria (APA), o TDAH foi definido por Barkley (1981) como
um distúrbio das funções executivas responsáveis pela autorregulação e autodireção das ações
individuais. Na terceira edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, o
DSM-III (APA, 1980), tal categoria clínica materializou-se sob outra denominação: o
Distúrbio de Déficit de Atenção (DDA). Conceituou-se o DDA como essencialmente
caracterizado por sinais de desenvolvimento inapropriado da atenção e da impulsividade em
crianças. A hiperatividade era apenas uma variável, mas se tornaria o sintoma fundamental do
TDAH nas edições seguintes do DSM.
Pesquisas sobre a hiperatividade e sobre a implicação entre problemas
comportamentais e dificuldades de aprendizagem já estavam sendo feitas nas décadas de 1960
e 1970 nos Estados Unidos (LIMA, 2005), o que resultou na publicação de trabalhos
científicos na área acadêmica. Entre as obras seminais acerca, por exemplo, da Disfunção
Cerebral Mínima (DCM) — condição comumente associada ao TDAH, porém mais focada na
86
51
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/prodah/>. Acesso em: 24 jun. 2015.
87
tempos, porém modifica aquilo que se define como problema infantil e as formas de
identificá-lo e geri-lo. Um quadro cada vez mais técnico se instaura, suprimindo
progressivamente o caráter moral, social e político das relações cotidianas. Para acessar a
verdade dos indivíduos que as compõem e de seus desvios é necessário, portanto, um
conhecimento técnico-científico que se impõe às experiências de professores, pais e crianças.
A verdade é aquela do médico que, capacitado por um conhecimento técnico-científico, está
habilitado a emitir um laudo acerca da condição de vida de uma criança e, assim, legitimar a
necessidade de auxílio externo aos docentes. “Para ter um auxiliar, um cuidador, precisa ter
assim... Um laudo comprovado. Tem que ter CID52. Se não tiver CID... (silêncio)”. Essa
afirmação, enunciada por professores, reforça a constatação de que a dificuldade — da criança
e do profissional de educação — apenas é reconhecida, de modo efetivo, tecnicamente53.
O vocabulário do TDAH
52
Classificação estatística internacional de doenças e problemas relativos à saúde. Os laudos médicos em geral
levam um CID, um código que indica de qual doença o paciente sofre.
53
A experiência dos leigos também é colocada em questão, ou mesmo ignorada, por outros saberes técnicos.
Refiro-me a um acontecimento vivenciado no programa de educação não formal em que engenheiros, rejeitando
as sugestões e sentimentos de professores e alunos, autorizaram a derrubada de árvores do estabelecimento a fim
de construir uma quadra coberta. “Ninguém veio conversar com a gente. A gente nem sabia. A gente chegou e [a
árvore] estava cortada. As crianças choraram, colocaram a mão na árvore”, disse a professora Tania, ao relatar
o que havia ocorrido no estabelecimento dias antes de nossa conversa.
88
um todo. Somente uma representação cíclica da vida possibilitaria a construção desse tipo de
mito regulatório individual e coletivo.
Já nas sociedades europeias, referências de Rabain, as relações sociais norteiam-se
pelas noções de desenvolvimento e avanço contínuos. Não é por acaso que a principal
representação social da criança define-a como um indivíduo em desenvolvimento, em direção
à vida adulta. Tampouco é aleatório o fato de que as psicopatologias infantis constroem-se,
desde o século XIX, alicerçadas no desvio do desenvolvimento, como pudemos observar na
seção precedente. Além disso, Rabain (1979) identifica que, ao contrário do fundamento
mítico da nosografia wolof (o que coloca sob outra perspectiva a suposta universalidade das
psicopatologias do cotidiano “ocidentalizado”), as patologias mentais europeias (e igualmente
as estadunidenses ou brasileiras) organizam-se a partir de terapêuticas biomédicas e
psicanalíticas e de discursos e saberes científicos.
Um terceiro ponto de divergência apontado pela antropóloga é o ideal de infância.
Enquanto os Wolof caracterizam a identidade e as posições sociais das crianças a partir da
função mítica do indivíduo ligado a seus ancestrais, as sociedades europeias definem a
infância e as identidades infantis com base nos desejos dos pais de realizar seus sonhos e
nostalgias. Essa constatação vai ao encontro, ainda que parcialmente, das formas de
socialização da criança brasileira, discutidas no primeiro capítulo desta tese.
Afirmei em outro estudo que o TDAH corresponde, inicialmente, à imagem
recriada daquilo que a criança apresenta como comportamento inadequado ou incômodo. Isto
é, suas manifestações comportamentais socialmente problemáticas são reinterpretadas como
sintomas de disfunções químicas cerebrais ou defeitos neurobiológicos e genéticos. O ponto
crucial dessa recriação é a transformação de algo parcial — a patologia — na totalidade
identitária infantil. Dela surge a possibilidade de se afirmar que a criança é TDAH, uma nova
identidade fundada na diferença, e de defendê-la como direito individual54. Transpondo tal
premissa para a presente análise, a categoria TDAH retrata a identificação de uma
socialização infantil inadequada, cujo desvio é interpretado como proveniente de disfunções
cerebrais. Assim, a criança hiperativa e desatenta emerge como um indivíduo incapaz de se
tornar autônomo, de ter sucesso na escola e cujas vulnerabilidades, se não tratadas, podem se
converter em problemas mais críticos. Em outras palavras, a delimitação da categoria TDAH
54
Um exemplo do “ser TDAH”, e não simplesmente ter TDAH, encontra-se no livro Mentes inquietas:
entendendo melhor o mundo das pessoas distraídas, impulsivas e hiperativas, um best-seller escrito pela
psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e publicada, pela primeira vez, pela Editora Gente em 2003.
89
resulta de uma nosografia psicopatológica também fundada nos modos de inserção da criança
na sociedade e do reconhecimento de seu pertencimento social.
Mas para que o professor identifique um problema (ou defina um problema),
relacione-o a um possível diagnóstico psiquiátrico e solicite um encaminhamento
especializado, é preciso que um conjunto de linguagens e vocabulários técnicos esteja
disponível e seja incorporado ao conhecimento e às práticas pedagógicas escolares. Contudo,
tal conjunto renega — exatamente por dizer-se técnico-científico — o fundamento social,
cultural, histórico e político que o orienta. Ou, se o tem em consideração, define-o como
origem de um desvio social, e não como elemento de um jogo de forças.
Observei em campo a mobilização recorrente de noções como “vínculo” e
“amadurecimento”, além dos temas já discutidos nesta tese, provindos da psicologia e de
outras ciências humanas (“carência de estímulo”, “carência cultural do meio”, “complexos
familiares”, “relações parentais desestruturadas”). A ideia de amadurecimento,
particularmente, evidencia o fato de que a questão do desenvolvimento faz-se ainda presente
na escola. Retomo como exemplo a fala da professora Maria Luiza: “Então, a gente tem que
levar em consideração que nenhuma criança é igual à outra. Eu costumo dizer que elas são
que nem frutas na árvore: cada uma amadurece no seu tempo”. Nessa afirmação, o
amadurecimento alia-se a uma noção de diferença (as crianças são diferentes, por isso
desenvolvem-se segundo ritmos e modos diversos), porém não abandona o pressuposto de um
aprendizado homogêneo. Embora se defenda o respeito aos diferentes ritmos de aprender,
espera-se que cada aluno, em seu tempo, chegue a um determinado ponto da assimilação do
conhecimento.
Asbahr e Nascimento (2013) provocam os professores com o título de seu artigo
“criança não é manga, não amadurece” e identificam na prática pedagógica contemporânea
influências de teorias psicológicas do desenvolvimento infantil e do conceito de maturação.
Tais fundamentos consolidam-se sobre uma ideia de linearidade determinística do
desenvolvimento humano. Contudo, o princípio do desenvolvimento que aí permanece tem, a
meu ver, uma particularidade: o deslocamento do problema da anormalidade para o da
diferença, possibilitado pelo reconhecimento da existência de diferentes ritmos individuais. A
manutenção da expectativa de alcance de um ponto final ideal permite a identificação e a
intervenção sobre os desvios, agora conforme novas referências. Por isso, a psicopedagogia
— o estudo dos processos de aprendizagem — é evocada como saber e prática habilitada a
diagnosticar e agir sobre as dificuldades, o fracasso e a evasão escolar, bem como sobre os
90
psiquiatria, serviço social, medicina (termo usado de forma generalizada ou como referência a
uma medicina que prescreve medicamentos para os casos de TDAH), neurologia (identificada
na imagem do Doutor S., comumente mencionado tanto por professores quanto por alunos),
fonoaudiologia, neuropsicopedagogia, neurociências e ciências do comportamento. Já os
termos evocados foram: “hiperativo”, “agitado”, “sem limites”, “autista”, “disléxico” e
“psicopata” (termo usado por alguns professores para distinguir o TDAH de um problema
comportamental considerado como um verdadeiro transtorno mental).
A partir de um levantamento de trabalhos acadêmicos cujo tema é o TDAH55,
constatei que os primeiros estudos, desenvolvidos nos anos 1970 e 80, consagraram-se no
campo da medicina, da psicologia e da educação. Os campos de conhecimento, os tipos de
discurso e os temas correlatos desdobram-se progressivamente no decorrer das décadas,
chegando aos anos 2010 com uma grande variedade de problematizações na biomedicina,
neuropsicologia e epidemiologia (cujas palavras-chave são: comorbidades, funções
executivas, genética, exames por neuroimagem, medicamentos); na pedagogia, psicologia
educacional e psicanálise (psicodiagnóstico, aspectos emocionais, patologização,
medicalização); e na sociologia e na área de políticas científicas e tecnológicas (aspectos
sociais do saber científico).
A pesquisa de Cheida (2013) — baseada na produção científica dos campos do
saber “psi” e realizada por meio do levantamento e análise de artigos publicados entre 2007 e
2012 — concluiu que o conhecimento sobre o TDAH no Brasil é predominantemente
produzido por pesquisadores das áreas de psiquiatria e neurociências, conformes a um viés
organicista. Ademais, observou-se que o financiamento desses estudos origina-se
majoritariamente dos laboratórios farmacêuticos produtores de psicofármacos utilizados no
tratamento do TDAH, tais como a Ritalina® e o Concerta®.
Esse tipo de produção de conhecimento, dificilmente acessado de forma direta por
professores, circula em níveis nacionais e internacionais com o auxílio de intervenções, tais
como cursos de aperfeiçoamento, palestras e publicações em redes sociais e em páginas
eletrônicas especializadas. É o que sugere a divulgação de teorias e técnicas neurocientíficas
aplicadas a processos de aprendizagem em apresentações públicas destinadas a profissionais
de educação. Cito como exemplo um colóquio realizado em novembro de 2014 no Collège de
France (Paris, França), denominado “A contribuição das ciências cognitivas à escola”
(« L’apport des sciences cognitives à l’école »). Os palestrantes, em suas diferentes vertentes
55
Os dados coletados nesse levantamento encontram-se, de modo mais detalhado, no Apêndice B.
92
56
Segundo Cheida (2013, p. 106), a UFRJ é um centro de pesquisa tradicionalmente (desde os anos 1920 e 30)
voltado ao estudo das causas orgânicas das doenças mentais. A universidade abrigou o primeiro asilo brasileiro
influenciado pelo alienismo francês e formou os primeiros médicos-psiquiatras do país. O IPUB foi criado em
1938 sob a influência da vertente organicista kraepeliana da doença mental, sendo hoje responsável pelo Jornal
Brasileiro de Psiquiatria que, de acordo com a análise de Cheida, publicou a maior quantidade de artigos (25%
da amostra da pesquisa) sobre o TDAH entre 2007 e 2012.
93
57
Disponível em: <http://abp.org.br/portal/clippingsis/exibClipping/?clipping=16441>. Acesso em: 17 dez.
2015.
58
“É, a gente tem preocupação, porque a gente não sabe como lidar muitas vezes com essa criança. E nós
procuramos pesquisar pela internet como tem que trabalhar com eles, é, a gente está sempre procurando em
livros. Mas é difícil, né?! Como é difícil!” (Eva, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr.
2013).
94
portar um laudo médico para o TDAH e outro supostamente desprovido de uma conotação
relacionada ao diagnóstico, significando simplesmente “ser muito agitado”.
A eficácia da difusão dos discursos técnico-científicos, que permeiam as relações
escolares, e da popularização de seu vocabulário demonstra-se no fato de que, embora
algumas escolas visitadas não tivessem crianças diagnosticadas como portadoras de TDAH,
seus professores dispunham de elementos para discutir tal categoria. Eficácia que causa um
efeito importante: o uso indiscriminado dos termos “hiperativo”, “agitado” e “indisciplinado”
acarreta o aumento de encaminhamentos e possibilita a aplicação dos critérios diagnósticos do
TDAH a qualquer criança que apresente uma agitação incômoda ou uma indisciplina
perturbadora.
Assim, aquilo que se definia popular ou teoricamente como um desvio social,
derivado do meio (sobretudo o familiar), confunde-se, por equívoco ou por ação intencional,
com termos técnicos. Torna-se quase impossível a distinção entre o normal e o patológico
quando referida ao comprometimento da fisiologia cerebral (uma vez que não existem exames
médicos capazes de prover resultados conclusivos sobre as causas do TDAH) e à consequente
manifestação de comportamentos e desempenhos. Nas palavras da professora Amanda, “é
muito difícil compreender até que ponto que você tem um aluno que realmente tenha [TDAH]
ou seja um aluno que, por algum motivo, o médico achou que seria legal dar o remédio”.
Nesse processo, o recurso ao medicamento como solução de problemas
comportamentais e de aprendizagem também passa a figurar no vocabulário e nas práticas
escolares. O professor Jorge informa que esse artifício é comum entre pais e professores:
de forma geral, todo pai que traz até a gente o problema, que a gente já detectou
também que tem algum tipo de problema e o pai vem, ele vem com um tratamento,
ele vem com um remedinho já na ponta da língua, tá?! E quando ele não vem com
um remedinho, nós, já quase doutores, [dizemos] “olha, não está na hora de tomar
um remedinho, procurar um médico?”. E isso nos parece, assim, pelo menos ao meu
ponto de vista, que é a solução. (Jorge, professor da rede municipal. Entrevista
concedida em 27 mar. 2013).
Logo, estão dadas as condições de produção escolar de alunos hiperativos, como
constatou a professora Lívia: “A escola chega para o pai e fala ‘seu filho é hiperativo’, só
que muitas vezes o professor não tem essa formação. Então a escola acaba reproduzindo na
forma de um chavão: uma criança agitada hoje é uma criança hiperativa”. Depreendem-se
duas questões fundamentais de tal afirmação. A primeira, já anunciada, diz respeito ao
reconhecimento do especialista como o único profissional habilitado a identificar e intervir
efetivamente sobre o problema da hiperatividade enquanto sintoma de um transtorno mental.
A segunda implica a desautorização dos professores, que “não têm essa formação”. Ambas
95
Todos os problemas que as crianças apresentam dentro da sala de aula, com relação
à parte pedagógica, normalmente eles colocam como TDAH. [...] Agora, TDAH em
tudo quanto é criança? Não, isso não existe, né?! Então, eu acho que é um certo
exagero. Peca-se um tanto, a meu ver, pelo excesso de medicalização, de tudo é
problema. Nem tudo é problema. É “problema”, vamos dizer entre aspas, a correria
do mundo atual, a necessidade que os dois pais têm de sair de casa e trabalhar, ahn,
vamos dizer, a reestruturação da família é diferente sem que se tenha uma atenção
especial para com as crianças, porque acham que elas não entendem nada, e elas
entendem tudo! (Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em
15 abr. 2013).
Em uma linguagem cotidiana, a medicalização pode assumir diferentes
significados. O “excesso de medicalização” designa o uso descomedido de medicamentos
como tratamento de supostos transtornos mentais. Simultaneamente, refere-se à atuação
médica em questões da contemporaneidade (“a correria do mundo atual”, “a necessidade
que os dois pais têm de sair de casa e trabalhar”, “a reestruturação da família”, “uma
atenção especial para com as crianças”, conforme as expressões usadas pela professora nesse
trecho de entrevista).
O sentido que aí se forma é de denúncia. No entanto, a medicalização torna-se
também um instrumento de luta contra a intervenção médica na realidade cotidiana,
excedendo seu campo de atuação sob a justificativa de promover o bem-estar individual e
coletivo. Uma luta que, em última análise, estabelece-se entre campos diferentes, a saber, a
psiquiatria biomédica e as neurociências, em uma ponta, e uma psicologia crítica, ou mesmo a
96
psicanálise, em outra. O termo expressa, nesse sentido, um embate entre discursos e práticas
que, cada um ao seu modo, mobilizam estratégias e instrumentos voltados à “boa”
socialização infantil. Não por acaso, a mesma professora evoca o conceito de “inteligência
emocional” como proposta inovadora:
Tem que mudar o olhar. Medicar tudo, dizer que tudo é doença, que tudo é
anormal... O que é anormalidade? Quem é 100% normal? Eu acredito que [...] o
normal é aquilo que não destoa muito dentro da sua individualidade, vamos dizer,
nem tanto a mar, nem tanto a terra. Há um equilíbrio. Agora, porque você é um
pouco mais lento para uma determinada coisa não quer dizer que você tenha um
problema. Não é porque você é acelerado na sua maneira de agir ou reagir que de
repente você tem TDAH. Não. [...] Tem pesquisas que dizem assim que às vezes a
pessoa é muito inteligente, mas pelo emocional não ser, vamos dizer, “equilibrado”,
entre aspas, ela não tem um rendimento tão bom quanto um que é, vamos dizer
numa escala lá que é de análise psicológica, menos inteligente. Então o sujeito,
vamos chutar assim, grosso modo, tem 200 de QI, o outro tem 100, mas de repente o
que tem 100 se sobressai muito mais do que o que tem 200. Por quê? Porque ele tem
uma estabilidade emocional, ele tem o coeficiente de inteligência emocional, a
maneira como ele se relaciona com as pessoas, o meio ambiente, é muito melhor do
que aquele que tem 200, que não sabe interagir, que não sabe como se relacionar.
(Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
O questionamento apresentado pela professora desloca a problemática pedagógica
clássica da inteligência cognitiva para a emocional. Esta se refere ao conceito cunhado pelo
psicólogo estadunidense Daniel Goleman, segundo o qual as habilidades individuais de
automotivação, controle dos impulsos e canalização das emoções são responsáveis pelo
sucesso pessoal, acadêmico e profissional do indivíduo. Embora tal conceito seja amplo e não
diga respeito exclusivamente aos desvios comportamentais e de aprendizagem, ele condiz
com a definição do TDAH proposta por Barkley (1981). Uma mesma lógica de intervenção
sobre o corpo se perpetua, deslegitimando os indivíduos que não detêm o poder de dizer a sua
verdade.
59
O conceito de autonomia aqui adotado designa a liberdade de escolha individual em nome da autoafirmação e
a capacidade de agir por si mesmo na maioria das situações de vida. É sobre essas duas propriedades da
autonomia que se apoiam a sociedade e as subjetividades individuais contemporâneas, pois se referem a uma
norma cujo valor torna-se desejável em todos os aspectos da vida social (EHRENBERG, 2012).
97
das funções executivas responsáveis pelo controle e pela gestão efetiva de si. O desrespeito às
regras sociais caracterizaria, assim, as patologias mentais. Diante desse cenário, a psiquiatria
articula conhecimentos e linguagens específicas a fim de desenvolver as competências
relacionais e cognitivas dos indivíduos acometidos. E fazendo isso, ela coloca em
funcionamento uma engrenagem social e, ao mesmo tempo, revela as tensões sociais
contemporâneas.
Interpreto que, dentre essas tensões, encontra-se a inserção social da criança e a
emergência do aluno hiperativo e desatento, mas também — e intimamente relacionada à
primeira — a dificuldade de os professores e pais se tornarem autônomos. O sofrimento que
os acomete, expressado nos sentimentos de impotência, desconhecimento, fracasso e culpa,
divide a cena escolar com estratégias de exclusão de “maus” alunos, priorização dos “bons”
alunos e encaminhamento dos “perturbadores”. A negatividade da crise escolar e de
autoridade tem, assim, respaldo nos conhecimentos e linguagens articulados por saberes
especializados, como a psiquiatria contemporânea. Crianças têm TDAH e professores,
síndrome de burnout, categorias essas que designam, entretanto, um mal-estar real.
Em outro sentido, os saberes especializados e seus instrumentos suportam novas
práticas. Para a professora que elabora estratégias a fim de assistir os alunos que “precisam de
tratamento”, a simples hipótese de existência de um transtorno promove uma espécie de
compensação ao problema da criança (a criança deve receber mais atenção do professor) e de
alívio do sentimento de culpa que o docente carrega devido à incerteza sobre como lidar com
esse aluno ou ao desprovimento de condições materiais e físicas para isso. Ainda assim, a
criança que porta um laudo pode ser excluída ou agrupada a outros estudantes que não
participam das aulas. Mas isso acontece quando o professor nota a ausência de efeitos do
psicofármaco ou quando não são tomadas providências tidas como necessárias, seja por parte
dos pais que desaprovam o encaminhamento ou que descontinuam o tratamento, seja pela
falta de contato com os especialistas para que orientem os educadores. Em alguns desses
casos, o ato de colocar o aluno com dificuldade sentado à frente da mesa do professor pode
ser interpretado também como uma tentativa de remediar um caso ainda em andamento.
Então, vê-se mais claramente a partir dessa perspectiva que também se intervém
na escola e no trabalho dos professores quando eles deixam de cumprir suas funções. Sendo
preparado para interceder e responder no âmbito pedagógico (cumprir cronogramas, transmitir
conteúdos, disciplinar, fazer obedecer), o profissional de educação é fixado a uma posição e a
um papel pré-determinado, cujas atribuições devem ser bem executadas a fim de fazer
funcionar o sistema social. Quando isso não ocorre, o professor é culpabilizado (“ele é
98
inadequado, porque é pago para isso”, “a escola é acusada de não educar mais”), sente-se
impotente (“a gente não sabe o que fazer”, “não somos preparados para isso”) e culpado
(“não é o certo, mas a gente prioriza”, “eu me sinto negligente”), adoece, e sua prática sofre
uma intervenção externa, demandada ou não, de especialistas vistos como mais habilitados a
propor explicações e soluções aos novos problemas que afetam a escola contemporânea.
No campo da pedagogia (talvez seja mais adequado referir-se a um campo da
pedagogia “convencional”, aquele no qual se inserem as escolas de educação formal, públicas
ou privadas), articulam-se hoje saberes, representações e práticas diversas que oferecem
instrumentos para as ações cotidianas dos professores (como a noção de fases de
desenvolvimento biológico, psicológico e cognitivo). Entretanto, o papel dos profissionais de
educação — que não formam um grupo homogêneo no que se refere à defesa do
encaminhamento de alunos hiperativos e desatentos — restringe-se à identificação de
possíveis casos, ao fornecimento de informações importantes à elaboração do laudo médico e,
enfim, de execução de recomendações dadas pelos especialistas. Como bem disse Foucault
(2006b), os professores são os olhos dos médicos. Contudo, eles devem manter-se apenas
como sentinelas e denunciantes. Em conversa com uma professora da rede municipal, ela
relatou que os profissionais de saúde não permitiam que o docente apresentasse no relatório
de encaminhamento informações acerca do histórico familiar da criança, sobretudo quando se
tratava de uma “família complicada”, já que assim ele estaria “fazendo diagnóstico”, de
responsabilidade exclusiva do profissional de saúde.
Essa interdição estabelece os limites dos discursos socialmente investidos do
direito de falar a verdade. Os educadores não dispõem de uma permissão reconhecida para
tudo dizer, pois apenas pessoas habilitadas por um saber técnico-científico podem fazê-lo em
circunstâncias bem definidas. O trecho do relato da professora Maria Luiza ilustra tais limites,
que resultam na deslegitimação do conhecimento e da experiência docente:
[As pessoas falam] “Ah, [você é] psicopedagoga”. Que dizer, você não pode ser só
pedagoga, porque se você não for psicopedagoga, você não vai entender o resto da
coisa. (Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr.
2013).
O desinvestimento da legitimidade docente ocorre também no nível das práticas
de cuidado para com a criança em sala de aula (o que se estende aos pais no âmbito
domiciliar) e das estratégias pedagógicas direcionadas a alunos com dificuldades de aprender.
Recupero aqui o relato de um médico atuante em um ambulatório universitário de psiquiatria
infantil:
99
A gente vai dizer que em algum momento aquilo [os sintomas do TDAH] pode ser
clinicamente significativo quando chega a tal ponto que a escola não consegue dar
conta e elaborar um programa de educação que contemple as necessidades daquela
criança, quando no ambiente domiciliar, ela começa a ter muita dificuldade, começa
a ter comportamentos de risco, porque ela sobe, mexe nas coisas, pode pegar faca
[...]. (Médico psiquiatra de um ambulatório infantil universitário. Entrevista
concedida em 28 out. 2009). (BARBARINI, 2011, p. 110).
Vale notar que a delimitação informada pelo médico vincula a necessidade do
diagnóstico, definida em termos clínicos, como certa incapacidade de pais e professores de
responder às necessidades da criança (mas quem define que necessidades são essas?). E essa
incapacidade, sentida pelos professores, relaciona-se a formas de intervenção e de gestão de
desempenhos. O especialista é, nesse sentido, o catalisador de uma mudança de hábitos e
estratégias cotidianas — ou de uma permanência de um saber instituído — vista como
indispensável.
Foucault (2006b) reconheceu na figura do psicólogo escolar esse catalisador. Para
o pensador, “a escola necessita do psicólogo quando é preciso fazer valer como realidade um
saber que é dado, distribuído na escola e que pára de se apresentar como real efetivamente
àqueles a que é proposto” (FOUCAULT, 2006b, p. 237). Quando o poder da escola torna-se
mítico e frágil, sua realidade deve ser intensificada. A atuação do psicólogo se faz nesse
sentido, pois permite ao indivíduo encontrar a realidade de suas aptidões e a realidade dos
conteúdos de saber que ele é capaz de adquirir. Ao encontrar essas duas realidades, o aluno
aparece como um indivíduo.
Na contemporaneidade, todavia, a presença física do psicólogo escolar está
dispensada, embora seja demandada por profissionais de educação. Os saberes especializados
que circulam pela escola materializam-se de modo a orientar ações e críticas. Ademais, os
professores podem encontrar especialistas em outros espaços de informação, como os cursos e
reuniões da ABDA, por exemplo, ou as palestras ministradas por entusiastas da aplicação das
neurociências à educação escolar (vale lembrar o exemplo mencionado anteriormente acerca
da palestra ministrada no Collège de France) e ao aconselhamento de professores.
Cito como exemplo uma palestra da qual participei na cidade de Moji Mirim, em
agosto de 2014. Denominada “As neurociências na educação”, a conferência foi ministrada
por um neurocientista. O público compunha-se majoritariamente de profissionais de
educação. Nesse evento, o conferencista apresentou dados de um ambulatório universitário
segundo os quais a grande maioria dos problemas apresentados por professores naquele
espaço decorria de baixa autoestima, estresse e depressão. O palestrante recomendou,
pautando seu discurso em explicações neurológicas (“É essa a parte técnica para mostrar que
100
[...] O pai que tinha que ensinar o filho como se portar, educar, ensinar caráter,
moral. Ninguém ensina isso mais. Aí a escola não está dando conta, ah, vai para o
psiquiatra. Dá o remédio e não resolve tudo. [...] Aí o pai não consegue controlar e
dá para outro controlar. Então fica perdido. A meu ver, as crianças estão
completamente perdidas [...]. Então fica essa lacuna, de transferência de
responsabilidade, ninguém está querendo... E vai pagando, enquanto dá para pagar,
paga médico, fono, psico... Eu tenho um aluno que tinha até tutora, tinha
psicopedagogo, tinha a fono, tinha tudo. (Jéssica, professora de rede privada.
Entrevista concedida em 10 set. 2013. Grifos nossos).
“Lacuna de responsabilidade” — ou o que outro professor designou como “jogo
de batata quente” — é uma expressão interessante, pois indica a formação de um vazio de
cuidado, educação e atenção no qual os sujeitos se inserem e que é preenchido, mesmo que
parcialmente, por ações e soluções médicas e psicológicas. Chamarei isso de “vazio de
referências”: o que somos? Para que servimos? Qual é nossa função social enquanto escola,
enquanto família? Essa é uma forma de dar sentido à realidade (e, portanto, não se trata
verdadeiramente de uma ausência de referências sociais) que desencadeia perguntas
existenciais e que excede a questão dos diagnósticos psiquiátricos, sendo, entretanto,
recorrentemente enunciada pela psiquiatria e pela demanda social por intervenção
especializada em espaços cotidianos, como a escola. Desse modo, interpreta-se que, nesse
101
A mãe está levando ele [um aluno de terceiro ano] ao psicólogo, porque ele é
hiperativo. Só que nós não podemos dizer que ele é hiperativo porque ele não tem
laudo. Pedimos para ele, para a mãe, um laudo, só que a doutora mandou uma
receita do que ele está tomando. Não é isso que a gente quer. Nós queremos um
laudo, porque aí precisa ser mandado para a Prodesp digitar que ele é hiperativo.
(Eva, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013. Grifos
nossos).
Segundo a explicação que se segue na entrevista original, Prodesp60 é uma
empresa de economia mista, vinculada ao Governo do Estado de São Paulo, que fornece
serviços de tecnologia informacional às diretorias de ensino paulistas. “Mandar o laudo para
a Prodesp digitar” significa que as informações constantes no laudo médico, que legitima o
fato de que o aluno porta um transtorno mental chamado TDAH, serão informatizadas e
estarão disponíveis a quaisquer diretorias de ensino ou escolas pelas quais esse aluno passe.
Assim, segundo a justificativa da entrevistada, a criança poderá ser acompanhada em suas
necessidades pedagógicas até o fim de seus estudos no ensino médio. Sem o laudo médico, a
equipe escolar não pode afirmar que a criança tem TDAH, tampouco pode pedir a ajuda de
outros profissionais, seja em relação à delimitação das deficiências médico-pedagógicas do
60
Disponível em: <http://www.prodesp.sp.gov.br/empresa/estrutura.asp>. Acesso em: 21 set. 2015.
103
aluno, seja referente ao tratamento de suas carências. Afinal, ele “não tem um CID”, como
disse a professora Tania.
Ademais, o fornecimento de informações pessoais de alunos a uma central de
informatização de dados corresponde ao que Castel (2011) analisou como gestão de riscos.
Isto é, forma-se um banco de dados que, embora provenham de indivíduos concretos,
permitem a criação de perfis abstratos de risco a partir de vulnerabilidades específicas, reais
ou potenciais: se a criança tem um laudo médico, a ela se associa um determinado
comportamento, um determinado tratamento e determinadas possibilidades de risco, que vai
do fracasso escolar real à criminalidade potencial, conforme a definição do TDAH dada pelo
ProDAH.
Subjacente ao processo de construção da necessidade de intervenção especializada
está uma concepção particular de bem-estar, fundamental à noção contemporânea de saúde.
Essa noção constituiu-se no pós-Segunda Guerra como um direito. O Plano Beveridge,
elaborado em 1942, consolidou-se como o modelo seguido na Inglaterra e em outros países
para a organização da saúde em um contexto europeu de reconstrução de sociedades
destruídas pela guerra (vale notar que esse modelo serviu de inspiração ao projeto que
culminou na constituição do Sistema Único de Saúde brasileiro nos anos 80). Seu marco,
segundo Foucault (2010b, p. 168), foi fundar “um direito diferente [em relação ao direito à
vida], mais rico e complexo: o direito à saúde”.
A saúde já era o objeto privilegiado da medicina social dos séculos XVIII e XIX
na Europa, voltada, porém, a resguardar a força física nacional destinada ao trabalho, à
produção capitalista, à defesa nacional e ao ataque militar. A partir do Plano, o Estado passou
a garantir ao indivíduo o direito de manter seu corpo em boa saúde, propiciando a instauração
de sistemas de regulação e de cobertura econômica da saúde e da doença. Ademais, instituiu-
se um novo direito, uma nova moral, uma nova economia e uma nova política do corpo, por
intermédio dos quais o corpo individual converteu-se em um objeto primordial de intervenção
estatal e médica visando ao bem-estar do indivíduo e da população.
O princípio do bem-estar encontra-se na definição de saúde adotada pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948 e que persiste até hoje. Trata-se do
“completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade”.
O completo bem-estar — uma aspiração irrealizável — denota o ordenamento de todas as
esferas sociais sob o pretexto de aprimorar a prosperidade individual e populacional, um
mecanismo que subsidia o conceito foucaultiano de biopoder (RABINOW; DREYFUS, 1995,
p. xxii). Denota igualmente a responsabilização contemporânea do indivíduo pela gestão de
104
sua própria saúde, isto é, pelo dever de desejar viver bem, o que transforma a saúde em um
objeto de desejo e de consumo.
A autonomia é então a noção que orienta tal dever individual e que, por isso,
repercute significativamente nos dias atuais, sobretudo em estudos e propostas voltadas à
elaboração de políticas públicas as mais diversas em saúde, saúde mental e educação.
Autonomia, no dicionário, designa a “capacidade de governar a si próprio”. Lutar pela
autonomia individual por meio de percursos intelectuais e de ações sociais distintos não indica
apenas a existência de pontos de vistas diferentes para se lidar com um mesmo fenômeno.
Implica também que a autonomia é, ao mesmo tempo, uma forma de cuidado e governo de si
e uma forma de intervenção especializada na realidade cotidiana dos indivíduos. O indivíduo
autônomo na saúde — ou no que se chama de gestão do cuidado — deve ser responsável por
sua cura (no sentido de que ele deve seguir as recomendações médicas, tomar os
medicamentos e desejar se restabelecer), fazer escolhas e participar do processo de
estabelecimento do diagnóstico e de seu tratamento. Além disso, ele deve ser responsável
pelos cuidados subsequentes, como o seguimento do tratamento escolhido.
Donzelot (1986) mostrou que no século XIX a incitação da autonomia familiar em
relação à intervenção estatal por meio da poupança constituiu uma estratégia de intervenção
especializada (as táticas filantrópicas direcionadas aos pobres) na família a fim de mantê-la
funcionando como um mecanismo de articulação dos dispositivos disciplinares. Tratava-se de
uma articulação entre o judiciário, o psiquiátrico e o pedagógico voltada ao governo da
família e da infância. No século XX, a psicologia e a justiça também se pautaram no uso da
autonomia. Hoje a criança é vista como um sujeito de direito que ocupa a posição ambígua de
dever ser responsável por seu controle emocional e por suas ações e, ao mesmo tempo, de
ainda ser incapaz de cuidar de si mesma, o que possibilita formas interventivas advindas de
uma gama de especialidades da infância. Isto é, mesmo quando se defende que o indivíduo
tem de ser responsável pela gestão do seu cuidado, o que o torna um indivíduo autônomo, a
autonomia pode ser capturada quando ela não é verificada, seja enquanto uma diferença
desvantajosa tratável, seja enquanto a incapacidade de decidir e agir por si mesmo a fim de
garantir sua própria existência bem como a dos demais, como as crianças que devem ser
cuidadas por pais e professores.
É preciso reforçar que as demandas por intervenção especializada não são
modeladas exclusivamente por um interesse biomédico de legitimação de seu saber e sua
prática. Seria ingênuo analisar um fenômeno complexo por essa única via. Todos os
elementos e relações expostos neste capítulo têm papel fundamental na elaboração de tais
105
demandas, que muitas vezes não coincidem com necessidades reais, conforme as
considerações de Cecilio (2006; 2011). Reconhece-se, entretanto, que o desejo de se formular
um diagnóstico (“não é isso que a gente quer. Nós queremos um laudo”), assim como “o
desejo individual de ser criativo e autônomo, lutar pelo melhoramento de si e pelo
desenvolvimento de suas capacidades [...] estimulado e conduzido de forma produtiva”
(CALIMAN, 2006, p. 51), representa uma questão contemporânea mais profunda: a produção,
como uma necessidade, do desejo de autonomia61 ou o desejo de intervenção que garanta a
autonomia, seja do indivíduo responsável por si, seja dos professores que, respaldados por um
saber técnico-científico, podem tomar suas decisões acerca daquela criança. E o TDAH
denota esse desejo, uma vez que, por seu intermédio, intervém-se no corpo individual para
que ele seja útil e dócil — afinal, os corpos hiperativos e desatentos estão inseridos em
instituições disciplinares —, mas também na existência humana para que o indivíduo
aprimore suas competências e habilidades.
As estratégias de intervenção — ou o desejo de sua aplicação — recaem
igualmente sobre as instituições e se reforçam por meio da ideia de crise. A crise da
instituição escolar disciplinar, que fornece conteúdos incoerentes e sem funcionalidade para
os alunos. A crise de autoridade dos professores, tanto em relação ao respeito por parte dos
educandos quanto ao conhecimento e experiência pedagógica submetida à verdade dos
discursos técnico-científicos. Ou a crise da instituição familiar desestruturada, considerada
incapaz de prover seus membros de sentidos e capitais sociais. É para ocupar os vácuos das
crises, ou os vazios de referências, que os especialistas são chamados a atuar. Inclusive o
pesquisador em ciências sociais, pois a ele é demandado, por vezes, um papel de conselheiro
ou de agente externo usado como juiz dos comportamentos dos alunos.
Dito de outra forma, a escola, como instituição responsável pela inserção da
criança na esfera pública e pela difusão social da pedagogia e dos saberes com os quais ela se
articula, tem como função fundamental agir sobre o indivíduo conforme um projeto de
sociedade. A criança, um ser em desenvolvimento, deve então ser guiada a fim de que se
torne, primeiramente, um indivíduo. E um indivíduo bem integrado, reconhecido por seu
grupo como pertencente à sociedade. Finalmente, o sujeito competente e autônomo, porém
disciplinado, é o princípio da sociedade contemporânea e modelo de personalização, ao
61
Ehrenberg (2012) distingue dois tipos de autonomia relativos a formas de individualismo: a autonomia-
condição e a autonomia-aspiração. A primeira, predominante nos Estados Unidos, diz respeito à capacidade
individual de dispor de condições próprias para se autogovernar e agir por si mesmo. O self-made-man é sua
figura expoente. Já a autonomia como aspiração, característica da sociedade francesa, é uma reivindicação de
igualdade a partir da proteção do Estado. O indivíduo autônomo é, nesse sentido, aquele que, inserido em
instituições, pode gozar de boas condições vitais e sociais.
106
mesmo tempo, imediata e futura da criança. Isso gera um mal-estar no plano da experiência
cotidiana. A crise de autoridade, por sua vez, produz um sentimento de perda de referências
que faz com que os indivíduos demandem novos instrumentos, saberes e práticas de apoio. O
discurso científico e seus instrumentos se exercem sobre o corpo da criança, adaptando-a à
fluidez da sociedade e se beneficiando financeiramente disso. Atua também sobre a função
política do professor, mantendo-a inerte e substituindo-a. Nada se modifica, exceto os
neurônios e os comportamentos infantis, por meio da ação da Ritalina®, e a disposição física
e mental do profissional de educação a quem se administra o Rivotril®.
E assim cresce o número de diagnósticos infantis e adultos, pois a escola
disciplinar (ao menos em seu aspecto relacional, no qual o professor não consegue
restabelecer a ordem, ao mesmo tempo em que não é capaz de estabelecer o diálogo com seus
alunos) mobiliza as condições de existência de uma categoria como o TDAH e das práticas
que se voltam a ele. A crise escolar é o alimento desse tipo de prática interventiva.
107
CAPÍTULO 3
“Ele tem a inteligência dele, a gente sabe que ele é capaz, mas ele não controla”
Luan tinha treze anos, em 2013, quando cursava o oitavo ano na escola municipal
de Moji Mirim. Filhos de pais divorciados que constituíram novas famílias, Luan e sua irmã
109
mais velha estavam sob os cuidados da avó paterna, Dona Tina, uma senhora cabeleireira
cortês e preocupada com os netos. Sobretudo com o menino, que foi separado da mãe com
poucos anos de idade. Dona Tina, em entrevista, considerou a separação como abandono e
afirmou que, tempos após o evento, Luan dizia ter medo de que ela também fosse embora. A
seu ver, os acontecimentos referentes à mãe fizeram com que seu neto “não fosse normal”62.
O pai ainda o busca aos finais de semana, pois trabalha em outra cidade, onde mora com sua
nova esposa.
“Eu vou para lá na sexta, à noite. Lá eu posso mexer na internet e ficar no
computador. Primeiro eu tenho que pedir a autorização dele, né? E de vez em quando eu fico
jogando videogame. São essas coisas que eu gosto de fazer”.
A série de fatos familiares mencionados induziu Dona Tina — que se considera
agitada como Luan — a superprotegê-lo. Em âmbito escolar, a combinação de
acontecimentos permitiu a alguns professores identificar na relação entre avó e neto a
ausência de imposição de limites comportamentais, definida como um dos fatores
determinantes do baixo rendimento escolar do aluno. O desempenho escolar desajustado de
Luan causou ainda mais angústia na avó, que reconheceu que “ele tem esse probleminha de
ser desligado”. Em entrevista, ela confidenciou-me que, por “já estar velha”, essa situação é-
lhe penosa. Sente-se impotente por trabalhar durante a maior parte do tempo, o que a impede
de dedicar-se ao neto. Outro fator de descontentamento é a escassa formação escolar, uma vez
que ela estudou até a quarta série, quando foi forçada a abandonar a escola para realizar o
trabalho doméstico, o que a impede de auxiliá-lo nos estudos em casa.
“Eu estudo algumas matérias em casa. Informática eu não estudo, porque é
prova escrita. Só tiro vermelha! É por causa que, de vez em quando, eu fico esquecendo as
coisas. Dá um branco. Eu fico nervoso. Ô! Se fico. Chuto tudo e mais um pouco!”
Luan sempre demonstrou ser polido, espontâneo e objetivo em suas respostas,
exceto quando se tratava de contar histórias de terror. Participativo nas exposições orais das
aulas de História, enfadava-se, porém, com o dever de escrever, sobretudo o de copiar.
Naqueles momentos, distraía-se constantemente com o papel, a caneta minúscula, após ser
quebrada e cortada, o inseto na cortina, a borracha, a meia, o corretor líquido, os alunos fora
da sala, os pensamentos ou o desejo de estar em casa para jogar videogame. Deitava-se sobre
62
As frases e parágrafos destacados em itálico dizem respeito a enunciados e trechos de relatos proferidos por
professores e, principalmente, por crianças acompanhadas em campo. Alguns deles foram sutilmente adaptados
— com anuência dos sujeitos concernidos — para dar fluidez à leitura e, em certos casos, para manter o
anonimato das pessoas envolvidas. Optei por não reportá-los como citações, conforme os padrões de formatação
textual, a fim de que esses sujeitos, principalmente as crianças, interviessem nas descrições.
110
a carteira, virava-se para um lado e para o outro, mostrando estar incomodado. A atividade de
cópia era retomada quando alguém o despertava, fosse pelo professor que lhe perguntasse se
ele havia terminado de copiar, fosse pelo colega que dissesse “nossa”, quando percebia que
ele sequer tinha acabado de copiar o conteúdo do início da lousa.
“Na verdade, copiar pra mim não é nem cansativo, é irritante! Porque a
professora passa um monte de coisa e eu fico copiando. Aí, de repente, eu começo a ficar com
sono, eu fico pensando em outras coisas, eu paro. Aí começa a dar aquelas ilusões lá. Fico
até vendo, às vezes, outras coisas. A matéria da lousa some! Fico olhando pra fora assim, me
imagino de férias já”.
Preso a seu corpo e a seu espaço na sala de aula, Luan parecia libertar-se em suas
“viagens”, no sentido de devaneios, ao mundo dos jogos, da fantasia e da brincadeira, mesmo
estando em sala de aula. Entretanto, a dispersão causada pela relação entre o enfado de copiar
e a imaginação do brincar definia-se como um quadro sintomático do TDAH e também da
inadaptação individual ao sistema educacional ou ao grupo de alunos em sua turma. Em
decorrência desse quadro, Luan era, acima de tudo, alvo de comentários negativos referentes
ao seu comportamento em sala de aula e ao seu desempenho escolar abaixo do esperado por
alguns colegas e professores.
“As pessoas me tratam de um jeito diferente. Os moleques lá da sala ficam me
xingando. Um colega fica falando que eu sou idiota, inútil. Não sei por que falam isso. Acho
que porque eu fico falando muito sozinho. Eu gosto de conversar. Quando eu não tenho com
quem conversar, fico falando comigo mesmo. Sobre um acidente que deu um dia. Antes eu
ficava imaginando coisas ruins. Tipo, eu corria ali, parava um pouco e imaginavam ‘o que
acontece se eu cair?’. Eu falava sobre essas coisas comigo mesmo só, porque se eu começo a
falar com alguém, a pessoa fica irritada e manda eu calar a boca. [...] Eu queria que ele me
tratasse melhor, né? Tipo, antes esse colega me conhecia, quando ele ainda começou a me
conhecer, ele era legal comigo. Mas ele começou a ficar andando com uns moleques na rua.
No recreio eu fico com o pessoal de outras salas e, de vez em quando, de outras séries!
[...]Ainda bem que eu não caí na turma A, senão eu já tinha estragado a sala, que é um
bando de CDF63!”
No primeiro semestre de 2009, quando cursava o quarto ano, aos nove anos de
idade, Luan recebeu um laudo médico (anexado ao seu prontuário escolar e composto também
por outros relatórios de acompanhamento, inclusive o de uma terapeuta ocupacional)
63
“CDF” é um termo popularmente utilizado por estudantes para se referir aos colegas considerados como
alunos com ótimo rendimento escolar.
111
Minha vó falava que eu ficava com tique, sabe? Piscando duro, olhando pra lá, pra cima. Eu
tive que tomar outro remédio pra parar com isso. Eu não gosto de tomar remédio”.
Nem todos os professores sabiam dizer se Luan tomava ou não o medicamento,
revelando um desencontro de informações no espaço escolar. Desencontro verificado na
discordância de opiniões sobre o comportamento do garoto. Uma professora afirmou que ele
não havia piorado, ao contrário dos relatos de colegas de que o comportamento do aluno
estaria cada vez pior, com maior desatenção e baixo rendimento. Outro ainda concluiu que o
maior problema do aluno era sua desatenção, e não a indisciplina, aqui entendida como falta
de controle ou a agitação.
“Me distrair é um problema em quase todas as aulas. Em informática e
educação física eu acho que quase nunca aconteceu”.
Enquanto os professores especulavam sobre o consumo do medicamento, Luan
afirmava que não o consumia mais, informação essa repetida em 2015, em nosso último
encontro. Contudo, a veracidade desse relato foi colocada em questão por um professor
quando me aconselhou a “verificar essa informação com a família. O que ele diz não é
confiável”. Após essa consideração, o professou alegou que, no ano anterior, Luan estava
melhor, porque ainda tomava remédios. Quando o medicamento (ou a ausência dele) deixou
de dar sentido à condição do menino, este se tornou “não confiável” aos olhos do professor, e
seu baixo desempenho assumiu outro referencial, porque Luan estava mais envolvido com os
bagunceiros da sala naquele ano corrente, conforme relatado na conversa.
O desencontro verificava-se também nas diferentes estratégias pedagógicas
adotadas em sala de aula direcionadas a Luan. Um dos professores chamava sua atenção em
voz alta, requisitando sua concentração. Outra professora aproximava-se cuidadosamente de
Luan e, com um gesto discreto, lembrava-o de que estava em sala e que, naquele momento,
ele deveria dedicar a atenção à aula. As aprovações consecutivas pelo conselho de classe
(mesmo acompanhadas por um sentimento prévio de incerteza sobre a aprovação que o
afligia) eram, contudo, a estratégia pedagógica mais impactante tanto para os professores
quanto para esse aluno.
“E minha vó, quando ela ia na reunião... por dois anos seguidos ela falou assim
‘você repetiu’. Aí depois ela falou assim: ‘mentira, você passou’ (disse em tom exaltado, mas
baixo). Esse ano ela pregou uma peça, aí ela falou assim... não, aí eu peguei meu boletim
(silêncio)... ‘você passou’. Lá embaixo estava: ‘aprovado pelo conselho’. Ufa!”
Luan foi reprovado anos depois, por duas vezes consecutivas. Segundo o menino,
na primeira vez em que cursou o oitavo ano, em 2013, não prestava atenção às aulas; na
113
segunda, no ano seguinte, não entendia o que o professor explicava; na terceira, espera
finalmente passar, pois “não vê a hora de ir para o nono ano”. Independentemente do motivo
da reprovação, a distração durante a aula é ainda uma importante questão para Luan. Parece
aproveitar, porém, o novo método de ensino adotado pelo departamento municipal de
educação, focado mais na pesquisa, na busca de informações e de conhecimento, do que na
cópia de conteúdos da lousa, conforme as informações fornecidas pela coordenadora
pedagógica. Ela também relatou, com entusiasmo, que o nome de Luan não constava mais na
lista dos alunos com baixo desempenho escolar.
Danilo tinha doze anos e cursava o sétimo ano da escola municipal de Moji
Mirim, em 2014. Nossa conversa aconteceu em 19 de maio daquele ano, no pátio da escola,
onde estávamos sentados em um banco junto à parede externa da sala de aula de Danilo.
Sempre muito educado com os colegas e os adultos, cumprimentava-me e auxiliava os
professores a carregar seus materiais.
“Eu não sou tímido. Eu faço um monte de amizade nas festas”.
Caçula de uma família que habita a zona rural, Danilo preferia, anos antes de
nossa conversa, brincar no sítio e com seus animais a estudar. A agitação é, segundo ele, algo
comum, pois toda “a família é elétrica”. Na escola, encontrava oportunidades para escapar da
sala de aula e correr pelo pátio.
“Quando não trocava professor, eu sempre dava a desculpa que precisava sair e
ficava andando pela escola. Não via a hora do sinal pro recreio para ir correr”.
Danilo recebeu o diagnóstico de TDAH há alguns anos. Não foi possível precisar
a data ou os motivos da solicitação de emissão do laudo médico, uma vez que os documentos
médicos encontrados em seu prontuário escolar não contêm tais informações. Elas restringem-
se a comunicar a especialidade do profissional responsável pelo laudo — um psiquiatra
infantil — e a prescrição da Ritalina®.
“Eu sou hiperativo também, por isso que eu tomo remédio. Só assim eu consigo
me concentrar na aula. Eu tomo às 8, ao meio dia e às 4, de 4 em 4 horas. Agora eu consigo
ficar sentado, prestar atenção. Troca professor, eu troco o material sentado”.
Sabe-se que o aluno ainda é acompanhado por especialistas em neurologia e
psiquiatria infantil que atendem pacientes conveniados com planos de saúde. Segundo uma
professora, o próprio Danilo sentia a necessidade de tomar o medicamento, pois ele “não
114
similar se passava com Giovani (nove anos, aluno da escola municipal de Campinas, em
2013). Seu problema foi definido pela professora Isadora como sendo comportamental, e a
solução estava no uso do medicamento: “O Giovani é um excelente aluno quando medicado,
pois o que atrapalha é seu comportamento” em atitudes como, por exemplo, o transportar de
cadeiras e gibis pela sala para organizá-los no lado oposto de onde costuma se sentar,
enquanto a professora corrigia a tarefa.
O medicamento também tem um significado para as crianças. Ao contrário de
Luan, que reafirma os efeitos negativos do tratamento psicofarmacológico, Danilo considera-
o adequado.
“Acho que o mais adequado para ajudar os hiperativos na escola é o remédio
mesmo. Ah, em alguns casos, os pais poderiam ter um reiozinho. Já os meus pais nunca
levantaram a mão pra gente, eles só pedem”.
É importante notar que Danilo também vê na intervenção parental uma forma de
adequar, em alguns casos, os comportamentos infantis. Se antes Danilo queria apenas brincar
e correr (afinal, o espaço rural era muito mais atrativo do que o encerramento entre os quatro
muros da escola e as quatro paredes da sala de aula), naquele ano ele havia decidido mudar:
passou a participar das aulas, a estudar e a se dedicar. Não por causa da Ritalina® ou do laudo
médico, e sim motivado por conversas com seus pais.
“Meu pai falou que ele conseguiu tudo o que tem por causa do estudo. Ele tem
três sítios. Ele falou que eu só conseguiria o que eu quero se eu melhorasse. Aí eu comecei a
estudar e agora que eu tomei gosto, melhorei. Quero ser cardiologista. Ou veterinário”.
Sentava-se na primeira carteira da primeira fileira, ao lado da porta, como uma
estratégia para estar atento à aula e participar. Encostado na parede, Danilo posicionava o
livro em seu colo e ajeitava os óculos. Quando era preciso copiar ou fazer um exercício
escrito, escrevia concentradamente em seu caderno, em cima da carteira, a ponto de parar,
demonstrar uma expressão de dor e mexer o braço que usava na tarefa.
Entretanto, em suas lutas entre a invisibilidade e a visibilidade, Danilo resistia.
Apesar de ter adentrado eficientemente no mundo da fixidez escolar, ele ainda fazia suas
pequenas escapadas pela escola (as “visitas” à diretoria). Embora a eficácia do medicamento,
ele ainda se movia: “mas não consigo parar de mexer as mãos e as pernas. Olha!”
116
caso elaborado no interior da escola, já que seu problema (de fundo emocional, na visão dos
educadores) teria origem relacional e familiar. Mas vale observar que a definição oficial do
TDAH assume as condições familiares como um fator — ainda que considerado secundário
— desencadeante do TDAH. Gonon, Guilé e Cohen (2010) afirmam que são seis as principais
hipóteses neurobiológicas acerca da etiologia do TDAH. A hipótese do desenvolvimento
funda-se na tese de que inúmeros fatores ambientais podem perturbar o desenvolvimento
cerebral da criança e gerar transtornos mentais como o TDAH, incluindo a hereditariedade
(esta é a hipótese da herança biológica, que não coincide necessariamente com a hipótese
genética) e um conjunto de fatores familiares-culturais (constituintes de uma terceira
hipótese), tais como o baixo nível econômico dos pais, o nascimento prematuro, o alcoolismo
e tabagismo durante a gravidez, a pouca idade da mãe, a condição de solteira da mãe que
educa um menino, o maltrato infantil e o excesso de televisão, entre um e três anos de idade.
Na hipótese dopaminérgica são articulados argumentos fundados na farmacologia,
na genética, nas tecnologias de imagem cerebral e em modelos animais. Ela é movida pelo
princípio de que a eficiência do tratamento com psicoestimulantes sugere a existência de um
déficit de dopamina — um neurotransmissor encontrado em regiões cerebrais fundamentais
para o controle da cognição e da emoção — na origem do TDAH. Pressuposto semelhante
conduz a hipótese noradrenérgica, pautada na ideia de que a eficácia dos psicoestimulantes
indica que a causa do transtorno residiria em déficits na captação de noradrenalina, também
um neurotransmissor modulador e regulador encontrado em diferentes regiões do cérebro
humano. Ambas as hipóteses relacionam-se, em certa medida, com a hipótese genética,
segundo a qual o TDAH tem origem em mudanças gênicas, que podem ser identificadas por
estudos genômicos e pela busca de biomarcadores de risco.
Desse conjunto de hipóteses e, sobretudo, dos casos de TDAH descritos nessa
seção derivam questões a ser aprofundadas, a começar da elaboração do quadro clínico. Além
da nosografia sobre a qual o médico se apoia e cria a categoria patológica (a doença enquanto
disease), a estruturação da condição de TDAH requer a identificação de um problema e a
elaboração de uma causa possível no âmbito das relações cotidianas escolares ou familiares.
Somente então se solicitará o encaminhamento da criança a um especialista e se formarão
redes de assistência.
118
66
De acordo com os dados coletados pela equipe francesa, a agitação é um problema significativamente evocado
nos discursos de pais, professores e profissionais de saúde. Trata-se, entretanto, de um problema menor em
termos das estatísticas de demandas formais por serviços de saúde. O termo “agitação” retrata o distanciamento
de termos técnicos como “hiperatividade” e “TDAH”, relacionados à psiquiatria biomédica, bem como a
preferência ainda majoritária no país por concepções relacionais — psicológicas e psicanalíticas — da
constituição da psicopatologia infantil.
67
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/images/stories/site/pdf/tdah_uma_conversa_com_educadores.pdf>.
Acesso em: 20 dez. 2015.
120
68
Trata-se de serviços básicos (primários e secundários) de saúde, integrados ao Sistema Único de Saúde.
Existem ainda centros altamente especializados, como o ambulatório universitário de psiquiatria infantil,
recorrentemente mencionado nesta tese. Ele não faz parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de
Campinas, ao contrário dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo.
69
Essas informações foram obtidas em conversas não formais com professores e coordenadoras pedagógicas das
escolas visitadas, em 2014 e 2015.
70
“Mas ainda que no nosso caso, aqui na nossa escola — porque eu já dei aula em outros lugares, em periferias
aí barra pesada —– que nós temos algum suporte: temos a psicóloga que, rindo ou chorando, de quinze em
quinze dias ela vem; temos a sala de recursos que ‘malemá’ funciona, nós temos ainda; a assistente social agora
esse ano parece que vai ficar toda segunda-feira aqui, pelo menos um período”. Beatriz, professora da rede
municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013.
121
primeiros anos de vida, é precoce e contínua até o momento em que o aluno muda de
estabelecimento escolar ou termina seus estudos. Estende-se até mesmo depois, ao longo de
sua adolescência e vida adulta.
Os procedimentos de encaminhamento e de constituição de redes de assistência
envolvem também relações em que professores devem persuadir os pais da necessidade do
acompanhamento especializado ou em que, ao contrário, veem-se no papel de questionar a
real necessidade de um encaminhamento. Reportando-se a casos de rejeição do processo por
parte da família, alguns professores classificaram a atitude parental como incompreensão ou
recusa do problema da criança. Os pais deveriam, assim, ser convencidos acerca da
necessidade da demanda. No sentido oposto, o diálogo entre educador e familiares
estabelecia-se pautado na contestação da viabilidade de um laudo médico ou do uso de
medicamentos.
Por isso que o nosso cuidado é esse: conversar com a família primeiramente, dizer o
comportamento da criança, a gente fala como que a criança está na escola. Esse é o
nosso cuidado para a família não achar que a gente está diagnosticando. Nós não
somos médicos, isso eu já aprendi com os anos, que nós não somos médicos para
diagnosticar. (Eva, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr.
2013).
Mas não sei realmente se é TDAH. Ela toma medicação, mas a impressão que tenho
é que ela antes e depois da medicação é exatamente a mesma menina. Na verdade,
tenho até dó dela tomar um remédio tão forte. Conversei, inclusive, com a mãe que
me disse que notou grande melhora na menina. Eu questionei e disse que para mim
não há motivos para ela tomar o remédio. Mas que, é claro, quem teria que dar esse
diagnóstico seria o psiquiatra, não eu. (Isadora, professora da rede municipal.
Entrevista concedida em 24 out. 2013).
Apesar da posição ocupada pelo professor, no que tange à iniciativa de reportar
um comportamento ou desempenho problemático e de criticar certa situação vivenciada pelo
aluno, esse profissional submete-se à verdade médica. As frases “isso eu já aprendi com os
anos, que nós não somos médicos para diagnosticar” e “é claro, quem teria que dar esse
diagnóstico seria o psiquiatra, não eu” relativizam a opinião e a experiência do professor
diante da legitimidade do médico, aquele que detém um saber científico socialmente
reconhecido como habilitado a explicar e solucionar (isto é, dizer a verdade sobre) os
problemas infantis relacionados aos transtornos mentais caracterizados por dificuldades
comportamentais e de aprendizagem, conforme questão tratada no capítulo anterior.
Finalmente, os procedimentos formalizam-se em números que, por sua vez, não
coincidem obrigatoriamente com as demandas e queixas feitas discursivamente pelos
professores. Para esta pesquisa foi solicitada, verbalmente ou via correio eletrônico, às
equipes diretivas dos estabelecimentos de ensino visitados (com exceção da escola municipal
de Campinas) o levantamento do número de casos de TDAH diagnosticados. A escola
123
municipal de Moji Mirim informou a presença de três casos confirmados pela emissão de
laudos médicos, enquanto na escola privada da mesma cidade — que recebe 803 alunos, entre
a educação infantil (187), o ensino fundamental I (274), o ensino fundamental II (207) e o
ensino médio (135) — havia o registro de apenas um aluno sob tratamento à base de
Ritalina®, dentre 25 casos encaminhados, em 2015, para avaliação em áreas específicas —
neurológica (2 alunos), psicológica (12), fonoaudiológica (8), psicopedagógica (2) e
oftalmológica (1). Os demais estabelecimentos de ensino afirmaram não ter casos ou
desconhecer sua existência.
A partir dos dados fornecidos pelas equipes diretivas dos estabelecimentos de
ensino, em trabalho de campo, surpreende o fato de que o número de alunos identificados
como portadores de TDAH, afligidos pela condição, tendo inclusive um laudo médico para
atestá-la, é baixo se comparado à quantidade de crianças indicadas pelos professores. Na
escola municipal mojimiriana, por exemplo, foram apontadas pelo menos seis crianças, em
2013 e 2014 (dado que nenhuma delas mudou de escola ou concluiu os estudos no ensino
fundamental até 2015), como portadoras de TDAH. Professores da escola estadual de
Campinas especificaram ocorrências em que pais buscavam um acompanhamento
especializado para uma suspeita de TDAH, em que colegas de trabalho foram requisitados a
elaborar relatórios médicos para a condição e, finalmente, em que educadores indecisos
cogitavam a possibilidade de pedir o encaminhamento de um aluno com essa suspeita para um
especialista. Contudo, não havia casos de alunos portando o diagnóstico de TDAH
formalmente registrados no estabelecimento de ensino.
É possível pensar que a incompatibilidade entre os relatos e os números
fornecidos pelas equipes diretivas advenha do fato de que as escolas visitadas não registram
sistematicamente as ocorrências de casos de TDAH. A contabilidade dos alunos portadores do
transtorno, quando solicitada por mim, foi fundamentada em informações orais, ou a partir da
identificação das crianças nos mapas de sala. Mas também é preciso considerar que o
encaminhamento de um aluno a um especialista não é um acontecimento que adota um único
padrão, sendo, entretanto, um processo formado por diferentes jogos de forças. Isto é, o
fenômeno do TDAH é delimitado, nos contextos observados em campo, mais pelas inter-
relações individuais e pelas relações sociais do que por números e estatísticas, embora estes
elementos componham o quadro, do mesmo modo.
Os números e as estatísticas são sistematizados por órgãos superiores, como as
secretarias de educação e de saúde, de quem se reclamam dados para a elaboração de políticas
públicas. A já mencionada Prodesp apresenta aí um papel importante, pois ela efetiva a
124
71
Estabeleci contato com a Secretaria de Saúde de Moji Mirim e de Campinas, esta última afirmou não ter
acesso a esse tipo de informação e que, possivelmente, ela possa ser encontrada nas unidades básicas de saúde
que recebem as demandas de atendimento, a Diretoria de Ensino Leste de Campinas e a Diretoria de Ensino de
Moji Mirim, que não me respondeu, o Ministério da Educação e o IBGE, que alegou não ter informações sobre o
TDAH.
72
Transtorno hipercinético (F90) é a condição correlata do TDAH na décima edição da Classificação
internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10). Seus subtipos são: F90.0. Distúrbios da
atividade e da atenção; F90.1. Transtorno hipercinético da conduta; F90.8. Outros transtornos hipercinéticos; e
F90.9. Transtorno hipercinético não especificado.
125
73
Algumas informações sobre essas terapias ditas alternativas foram encontradas em páginas virtuais, tais como:
<http://www.tdah.org.br/sobre-tdah/tratamento.html>; <http://www.dda-deficitdeatencao.com.br/instituto/index.html;
http://www.foxnews.com/health/2014/09/09/researchers-hope-physical-activity-can-stem-growing-use-adhd-
medications/>;<http://well.blogs.nytimes.com/2014/05/12/exercising-the-mind-to-treat-attention-
deficits/?_php=true&_type=blogs&_php=true&_type=blogs&emc=edit_tnt_20140512&nlid=64595674&tntemail0=y
&_r=1&>. Acesso em: 13 jul. 2015.
127
como uma solução simbólica e, ao mesmo tempo, eficiente. O professor Jorge anuncia o
poder do remédio: “E quando o pai não vem com um remedinho, nós, já quase doutores,
[dizemos] ‘olha, não está na hora de tomar um remedinho, procurar um médico?’ E isso nos
parece que é a solução”.
O medicamento compõe-se de três elementos essenciais, de acordo com Fernando
Lefèvre (1991). Trata-se de um agente quimioterápico manejado pela biologia, farmacologia e
medicina. É um produto materializado em comprimidos ou xaropes que cura, controla
sintomas e previne o desenvolvimento de condições patológicas. Circulando pela sociedade,
torna-se, enfim, uma mercadoria e um símbolo. O consumo do medicamento excede a
intenção inicial da cura e realiza uma promessa de concretização de um estado de saúde e o
desejo individual de ser saudável. Nesse sentido, “saúde” e “saudável” são entendidos como
uma necessidade. Em última análise, a eficiência do medicamento substancializa o êxito
simbólico da ciência, na visão de Lefèvre. No capítulo anterior desta tese, discuti a construção
do desejo de intervenção especializada como uma necessidade, o que vai, de algum modo, ao
encontro da proposta do autor. O principal ponto comum dessas perspectivas é exatamente a
questão da necessidade, seja da intervenção, seja da saúde como tal. E uma necessidade que
se constitui de interditos contemporâneos: o sofrimento, a dor e o erro.
Danilo era visto como um bom aluno graças ao laudo e ao medicamento. Na
verdade, essa imagem do bom-aluno-bom-medicamento foi enfraquecida duas vezes.
Primeiro, quando alguns professores afirmaram que o menino causava problemas na escola
mesmo tomando o remédio. Segundo, quando Danilo esclareceu que a Ritalina® é apenas um
instrumento por meio do qual ele pode melhorar seu rendimento, sendo que não foi o início de
seu uso que motivou sua decisão de se esforçar nas atividades escolares. Ao mesmo tempo, o
medicamento liga as duas imagens de si: o aluno que se dedica aos estudos para conseguir o
que quer — o que é possível por meio do uso da Ritalina® — e o hiperativo (“Eu sou
hiperativo também, por isso que eu tomo remédio”) — evocado quando a conversa chegou
aos termos “dificuldades de aprendizagem”.
Se o medicamento é um instrumento (desejado), o desempenho é a engrenagem
dessa teia de imagens positivas e negativas, de relações e de acontecimentos. Foi este último
que motivou a mudança de comportamento de Danilo — e não a Ritalina® —, uma mudança
pautada na busca de referências que dessem sentido à função da escola e aos benefícios do
bom desempenho escolar. Também foi o desempenho que levou os professores a reconhecer o
menino como um bom aluno. Entretanto, o instrumento é mais visível do que a engrenagem,
por isso o medicamento (e o laudo) aparece sempre como um divisor de águas: “Quando eu
128
não tomava remédio, os professores ignoravam minhas perguntas. Com o remédio eles não
ignoram mais”. O que Danilo denuncia a partir desse enunciado é a exclusão dos “sem jeito”.
Ele delata, do mesmo modo, a falta de atenção dos professores (e dos pais) ao propor soluções
alternativas ao medicamento: “Em alguns casos, os pais poderiam ter um reiozinho. [E] Os
professores poderiam dar mais atenção”.
Em outras palavras, o que resguarda o aluno da invisibilidade completa (mesmo
no caso de Luan) são a visibilidade e a eficiência do laudo e do medicamento. Um objeto
concorre com pessoas na solução e na explicação de um problema, sendo até mesmo capaz de
intervir na dimensão das funções e dos papéis, das responsabilidades, das decisões e dos
desejos individuais e coletivos, personificar-se e “coisificar” os sujeitos (SEDRONAR, 2008).
Danilo só se tornou visível (um bom aluno, ou mesmo um aluno hiperativo ou desatento)
quando passou a fazer uso da Ritalina®, embora ela seja apenas um instrumento.
A negatividade do “sem jeito” (invisível enquanto sujeito dentro de um grupo e,
ao mesmo tempo, visível como exemplo a não ser seguido) e a positividade do “bom aluno”
(afligido, porém, por uma patologia) articulam-se, então, em um jogo de expectativas sociais e
objetos em que os últimos predominam por sua potencialidade interventiva. Trata-se de um
jogo que visa, em última instância, ao restabelecimento da funcionalidade dos indivíduos
(professores e alunos) em uma engrenagem escolar e social. O remédio é adequado e deve ter
sua dose aumentada quando sua eficiência é comprometida, conforme o relato de Danilo,
porque ele auxilia o indivíduo a chegar a um ponto ideal: o bem-estar e o sucesso escolar.
Mesmo para Luan, que denuncia o médico que o “entupia de remédio”, o bem-estar pôde ser
alcançado por meio de uma terapia: as sessões com a psicóloga, que o ajudava a não se
preocupar excessivamente com a possibilidade da repetência e, consequentemente, do
fracasso escolar.
O medicamento também carrega o sentido do controle comportamental. A
descoberta de que Vitor havia interrompido o uso da Ritalina® permitiu aos professores
especular o motivo pelo qual o comportamento e o rendimento do aluno haviam se
modificado. Afinal, conforme o que já foi dito, os professores constroem suas percepções (e
ânsias) pautadas na ação do medicamento. A professora Ana confidencia: “Não que não seja
bom para nós, professores, o aluno que vem com Ritalina® na cabeça. Mas...”. A reticência
de seu relato, uma revelação de um desejo docente de controlar rápida e facilmente os
distúrbios de sua aula, é acompanhada de uma reflexão:
Eu dou aula pra criança e às vezes você tem que diferenciar também o que é energia
em excesso que eles precisam canalizar, brincar, pular corda, pular amarelinha,
129
coisas que não existem mais, e tomar remédio. (Ana, professora da rede municipal.
Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
O laudo também representa novas exigências para a família e para a escola.
Primeiro, o especialista sugerirá uma reorganização das relações e dos espaços para a
adaptação da criança. Ademais, todos esses indivíduos estarão sujeitos aos horários de
administração do medicamento (quando for o caso), das consultas com o especialista ou com
as sessões de terapia. Segundo, a escola e a família terão de acompanhar o desenvolvimento
da criança, o que pode resultar em um conflito entre as instituições. Uma professora citou um
exemplo:
Mas com o laudo em mãos, os pais exigem uma outra postura. Ele está sendo
medicado, tem o laudo, então agora a escola vai ter que fazer tudo. Sabe? E não é
cobrada a responsabilidade do aluno de organizar uma mochila no quinto ano!
Então, até onde o remédio vai fazer tudo? (Bruna, professora da rede privada.
Entrevista concedida em 10 set. 2013).
Nessas estratégias, o medicamento pode assumir um papel importante na relação
entre pais, professores e crianças e, por vezes, atuar como “âncora de salvação”: se o
problema é neuroquímico, individual, pais e professores não teriam culpa e nada poderiam
fazer senão procurar um especialista e seguir suas recomendações. Talvez esta seja a
estratégia mais eficiente de uma naturalização do TDAH e do uso de psicofármacos, pois
permite aos adultos retirar-se de um sentimento de culpa constante pelo “fracasso” de seu
filho ou de seu aluno, ao mesmo tempo em que fornece às crianças novas formas de se
constituir enquanto indivíduo: um indivíduo cujas ações e reações resultam de seu “problema”
ou da não administração do medicamento.
A primeira fase é a da negação: a família não aceitava que tinha algum tipo de
transtorno, algum tipo de... diferença. [...] A mãe foi aceitando aos poucos que ele
tinha esse problema, foi indicado também Ritalina®, que ele tomava, só que aí
começaram outros problemas. [...] A família começou a usar o remédio como a
âncora de salvação. Aí o que acontece: ele trazia um problema, chamavam a mãe lá,
poderia ter muitos testemunhos “olha, realmente foi ele que fez”. Aí a mãe falava
assim: “ai, coitadinho, de certo está precisando aumentar a dose do remédio”, [...]
“eu acho que ele não tomou o remédio direito de manhã”. Então, o que acontece: ela
deixou de cobrar limites e regras dele e colocou a responsabilidade toda no
medicamento. [...] E o pai, desde que ele começou a tomar Ritalina®, se afastou da
vida [escolar] do moleque. [...] (Amanda, professora da rede municipal. Entrevista
concedida em 27 mar. 2013).
Mais uma vez surge a questão da culpabilização da família pelo descaso ou
descuido de suas funções para com a criança, agora relacionada a um posicionamento do
medicamento como uma figura que ocupa, no ponto de vista da professora entrevistada, o
lugar dos pais. Algo similar foi indicado no relato de que, com a emissão do laudo médico e o
início do tratamento medicamentoso, os pais começam a exigir da escola a vigilância da
criança, o que inclui a organização de seu material escolar. Em outros termos, a introdução do
130
74
Por serem classificados como psicoestimulantes do sistema nervoso central, a Ritalina®, a Ritalina LA® e o
Concerta® somente podem ser prescritos por profissionais habilitados a assinar a notificação de receita amarela,
lista A3, conforme a Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1988 (ANVISA, 2012, p. 2). Em 2013, o
medicamento psicoestimulante Venvanse® (dimesilato de lisdexanfetamina), produzido pela Shire, foi aprovado
no Brasil para tratamento do TDAH. O Strattera® (atomoxetina), produzido pelo laboratório Eli Lilly, também
está autorizado no Brasil para o mesmo fim, porém seu consumo no país não consta nos bancos de dados da
ANVISA, já que o medicamento é vendido sem talonário especial (FÓRUM, 2015, p. 6). Não há genéricos para
qualquer um desses medicamentos, encontrados nas farmácias conforme uma grande variação de preços
(FÓRUM, 2015, p. 4).
131
75
Segue em ordem decrescente de consumo per capita, referente a 2013: Islândia, Bélgica, Suécia, Canadá,
Estados Unidos, Holanda, Dinamarca, Nova Zelândia, Chile e Alemanha (ONU, 2015a, p. 33).
132
76
Disponível em: <www.saude.ms.gov.br/controle/ShowFile.php?id=133492>. Acesso em: 27 jun. 2015.
133
promessas que ele pressupõe — como uma questão de direito ao diagnóstico e seu tratamento
e, em última análise, à inclusão social e escolar da criança com TDAH.
acompanhamento para alunos do ensino fundamental da rede pública estadual, com transtorno
do Déficit de Atenção com Hiperatividade e com Transtorno no Déficit de Atenção sem
Hiperatividade) e, posteriormente, ao PL nº 142/2013, que autoriza o Poder Executivo a
estabelecer diretrizes para o diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos alunos do ensino
fundamental e médio da rede pública, no âmbito do estado de São Paulo, portadores de
TDAH.
Outras propostas mais recentes também se baseiam no discurso psiquiátrico
oficial para implementar a inclusão das crianças com TDAH, contando, assim, com o suporte
da ABDA77. O Projeto de Lei nº 7081, de 2010, ainda em deliberação pelas Comissões da
Câmara dos Deputados federais, dispõe sobre a efetivação do diagnóstico e do tratamento da
dislexia e do TDAH na educação básica por meio de equipe multidisciplinar que inclua, entre
outros, educadores, psicólogos, psicopedagogos, médicos e fonoaudiólogos (BRASIL, 2010,
art. 2º). Já o Projeto de Lei nº 7798, de 2014, também em tramitação na Câmara dos
Deputados federais, altera a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996,
objetivando a substituição do termo “educando portador de necessidades especiais” por
“educando com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, transtornos mentais e
altas habilidades ou superdotação”. Essa alteração abriria brechas para a inclusão do TDAH
como categoria englobada pela educação especial e respaldaria legalmente outras medidas
(algumas já em aplicação) de compensação das dificuldades da criança diagnosticada, como o
atendimento diferenciado em caso de demanda do aluno participante de provas nacionais,
como o ENEM.
Envolvendo-se diretamente na defesa da intervenção médica, por intermédio do
TDAH, na realidade contemporânea de crianças e adultos, a ABDA atua também na crítica
dos discursos e práticas contrários ao processo chamado popularmente de “medicalização da
vida”. Trata-se de uma concepção adotada por movimentos como o Fórum sobre
Medicalização da Educação e da Sociedade, realizado em 2010. No manifesto que estabeleceu
o caráter de atuação política permanente e os fundamentos do Fórum — apoiado por
estudiosos, profissionais (com destaque aos psicólogos) e entidades como o Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo —, a medicalização é definida como
77
Leis municipais, vigentes em outras cidades brasileiras e voltadas ao TDAH, podem ser encontradas em
<http://www.abda.org.br/br/sobre-tdah/legislacao/item/1054-leis-municipais-e-estaduais-sobre-tdah.html>.
135
78
Disponível em: <http://medicalizacao.org.br/manifesto-do-forum-sobre-medicalizacao-da-educacao-e-da-
sociedade/>. Acesso em: 14 jul. 2015.
136
complexo conectado a contextos sociais múltiplos. Isso condiz, entende-se, com as propostas
em curso de humanização das relações médico-paciente no âmbito do SUS. Mas também com
um projeto de produção de bem-estar individual e coletivo, implicando — do mesmo modo
que propostas contrárias — uma questão de controle (dos procedimentos diagnósticos e
medicamentosos, bem como da orientação das ações dos atores sociais) fundada no direito.
Tal regulamentação foi recebida com satisfação pelos críticos da expansão da
jurisprudência médica à vida cotidiana (medicalização da vida), porém com indignação por
aqueles que defendem incondicionalmente as neurociências e os estudos recentes que
legitimam a ideia de que o TDAH é um problema significativamente ligado ao
desenvolvimento neurológico, bem como o uso da Ritalina® enquanto recurso terapêutico
seguro. Neste caso, defende-se o acesso ao diagnóstico de TDAH e a seu tratamento como um
direito civil de crianças e adolescentes e, assim, ataca-se a nova legislação ao se afirmar que
ela dificulta tal acesso e, consequentemente, viola os direitos dos indivíduos. Lê-se no
manifesto da Associação Brasileira de Psiquiatria:
sintomática advém de falhas em neurotransmissores) e, por isso, devem ser assistidos pelas
mesmas práticas. E verificando-se que, ainda assim, nem todos têm acesso aos benefícios da
ciência (devido à restrição dos direitos imputada a determinados grupos, segundo a
justificativa apresentada no excerto), cabe à expansão ilimitada do conhecimento e das
práticas especializadas a garantia dos direitos de inclusão, acesso e solução dos problemas
sociais originados por disfunções neurobiológicas.
Atualmente, a imbricação entre legitimidade do discurso científico e as ações
judiciais visando à garantia de direitos de inclusão à criança ganha também outras grandes
proporções. Não se trata apenas de um embate político entre ABDA e Fórum — duas
entidades civis representantes da psiquiatria, de um lado, e da psicologia, de outro. As
decisões judiciais vêm atuando na intervenção sobre a escola ou a família que, por um motivo
ou outro, se recusa a obedecer à ordem médica. Como exemplo, cito a nota publicada no
jornal O Globo (22/12/2015, p. 14), e reproduzida pela ABDA nas redes sociais:
(Des)inclusão — Pais de um aluno de 15 anos com déficit de atenção que, por oito
anos, estudou no Mopi, na Tijuca, entraram com ação por danos morais e materiais.
É que a 1ª Vara da Infância do Rio de Janeiro havia condenado a escola a adaptar
suas aulas para o aluno. O colégio descumpriu a decisão. Se negou até a dar ao
garoto a medicação pedida pelo psiquiatra.
Nesse ponto, o saber médico, materializado na ordem de medicar o adolescente
com TDAH, sobrepõe-se judicialmente aos conhecimentos, experiências e práticas
pedagógicas de professores que, por uma determinada razão (não especificada na nota
jornalística), discordam do diagnóstico e do uso de psicoestimulantes. Há também ações no
sentido contrário, da escola para a família. Conforme o que já foi citado neste capítulo, alguns
professores, pautados no discurso da culpabilização da família, entendem a recusa dos pais em
procurar um especialista, no caso de suspeita de TDAH, como preconceito ou alienação do
problema. O professor Cesar afirma: “olha, uma coisa que tem aí é o preconceito da própria
família. Algumas famílias não têm preconceito? A família não aceita, esse é o principal
problema. Se a família aceitasse e participasse, mas a família não aceita. Esse que é o
problema”.
A universalização do TDAH implica igualmente o deslocamento da problemática
da patologia para o da diferença, refletindo aquilo que foi apresentado no capítulo anterior
como o deslocamento, no âmbito escolar, da problemática da anormalidade79 para o da
diferença. Tal deslocamento não significa que uma condição substitui a outra. Elas coexistem,
79
A figura do anormal constituiu-se, segundo Foucault (2010d), pela articulação entre o saber médico e as
práticas penais do século XIX. Hoje ainda se observam efeitos dessa articulação. Entretanto, eles não incidem
mais sobre a anormalidade e a exclusão, mas sim sobre a diferença e a inclusão.
138
mas mobilizam ações distintas. A patologia — que se expressa tanto na disfunção neurológica
individual quanto na patogenia familiar — pode ser identificada em uma escola disciplinar,
orientada por padrões de comportamento. Nesse sentido, manifestações desviantes constituem
riscos reais e potenciais controlados e prevenidos por práticas, saberes e instrumentos
especializados. Já a diferença implica a questão do direito e da defesa de outras formas
escolares (como as medidas de compensação, tais como dar mais tempo para a execução de
uma prova, ler os enunciados para o aluno, colocá-lo próximo à professora, entre outras)
visando à inclusão da criança com TDAH. O direito desdobra-se, entretanto, em outras
questões. O direito ao diagnóstico e ao tratamento é aquele que move as ações contra a
regulamentação do metilfenidato, por exemplo. Mas o direito também se refere ao respeito à
diferença. Diferença de ser TDAH (o que se torna uma identidade pessoal) e também o direito
da criança de não aprender como os outros, de ter um ritmo diferente, o que coloca a
pedagogia clássica em questão.
O TDAH tem, assim, a potencialidade de funcionar como uma categoria que
engloba diferentes níveis da vida social sob o pressuposto biológico. Caliman (2006, p. 78-79)
afirma que
Em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, um
grupo de pesquisadores coordenados por Foucault (1991a) tratou, a partir do caso de
parricídio do jovem que dá nome à obra, de discursos heterogêneos que falavam de um
mesmo acontecimento e que constituíam, assim, “uma batalha de discursos e através de
discursos”: os médicos, os magistrados e os aldeões de Aunay tinham, cada qual, a sua
batalha; no centro estava Pierre Rivière, com suas “incontáveis máquinas de guerra”. Todas
essas batalhas, guerreadas por meio de discursos, articulavam-se em um jogo com
instrumentos de ataque e defesa, de poder e saber. Mas no centro desse dispositivo
encontrava-se um poder de perturbação desse jogo, assim como um conjunto de táticas que
tentavam “recobri-lo, inseri-lo e classificá-lo como discurso de um louco ou de um
criminoso” (FOUCAULT, 1991a, p. xiii).
As crianças acompanhadas em pesquisa de campo não cometeram qualquer crime
jurídico, como o fez Pierre Rivière. Contudo, no discurso dos adultos, elas parecem ter
cometido “crimes” morais, sociais e cognitivos, cuja “punição” é o seu encerramento em uma
categoria diagnóstica ou em um rótulo moral ou pedagógico que define sua condição e sua
posição nas relações sociais. Ou ainda: assim como o louco dos asilos, a criança — sobretudo
a “problemática” — é facilmente identificada por traços que a distinguem dos demais
indivíduos (dos adultos, embora ela também se iguale a eles em termos de direito de consumo,
por exemplo, e das demais crianças ditas normais) e sobre ela são lançados olhares sem que
ela própria participe da produção do saber sobre si. É como se a condição da criança pairasse
acima da tensão entre família e escola, dos direitos que lhe são concedidos e das
classificações que lhe são impostas, o que a coloca em um jogo de visibilidade e
invisibilidade. Todavia, ela está no ponto central onde as batalhas discursivas se cruzam,
perturbando-as.
Ressurgindo como sujeito, Luan rearticula todas as demais lutas. A luta da avó
superprotetora que, ao mesmo tempo acusada pelos professores de não impor limites ao neto e
suscetível aos discursos dos “mais sabidos”, busca respostas e soluções para o “probleminha
de ser desligado”. A luta dos professores que, embora se desencontrem na troca de
140
informações e de pontos de vista, procuram enfrentar o fato de que Luan “não consegue se
controlar”. E, finalmente, a luta dos especialistas, sobretudo do famigerado doutor S., por
meio da qual o discurso do TDAH, seu vocabulário e seus instrumentos se difundem.
Um jogo de incômodos e desejos move as lutas de Luan. O incômodo que
provoca com sua voz, o ato de falar sozinho, as histórias que conta, as angústias que
externaliza, o mau desempenho que revela. Os incômodos com que sofre e o consequente
desejo de não estar ali, e sim em um outro “mundo”, de se libertar da sala de aula, do corpo
que ali o prende, da irritação causada pela obrigação de copiar, dos rótulos que os outros lhe
impõem e do médico que o “entope de remédios”. E esse jogo constitui-se em um
emaranhado de acontecimentos e relações.
O primeiro acontecimento foi a partida de sua mãe e, posteriormente, a
recomposição familiar que seus pais efetivaram. Luan nada falou sobre esses acontecimentos,
mas sua avó os colocou em primeiro plano, mostrando que o abandono — ou o que ela
definiu como o abandono de seus netos pela mãe (embora Luan somente fique com o pai aos
fins de semana) — é aquilo que move suas ações e preocupações, incluindo o questionamento
sobre medicar ou não o menino. Os professores tampouco falavam sobre o assunto, mas viam
no comportamento superprotetor da avó um elemento para a “falta de limites” do aluno. E a
falta de limites se conjuga à potencial inexatidão daquilo que Luan afirma e à hiperatividade
atestada em seu laudo e marcada em vermelho em seu nome. Mas por que a hiperatividade, se
o laudo atestava a existência do déficit de atenção e as observações em sala mostravam um
menino que se distraía constantemente — o que ele próprio afirmava ser o maior problema
naquele espaço? “Hiperatividade” e “hiperativo” se expandem, partindo da agitação, passando
pelo “não se controlar” (impulsividade) ao “não prestar atenção” (desatenção), acrescidos
ainda da ansiedade e da dificuldade em se relacionar com os colegas. Luan, contudo,
ressignifica a hiperatividade ao conjugar o ato de atentar a tudo e o de distrair-se com cada
pequeno objeto ou pensamento.
Tendo alguns poucos amigos com quem se identificava ou com quem podia
brincar, Luan conversava consigo mesmo, contava histórias para si mesmo. Retraía-se e era
chamado de idiota e inútil. Talvez seja o contrário: era chamado de idiota e inútil e se retraía.
E nesse movimento, reconhecia-se como inferior (“senão eu já teria estragado a sala, que é
um bando de CDF!”), ao mesmo tempo em que demandava um tratamento melhor e o
reconhecimento de seus supostos amigos (“eu queria que ele me tratasse melhor”). Ele era
tratado como diferente. Mas não como o diferente merecedor de benefícios de políticas de
inclusão, e sim o diferente que é excluído das interações pessoais, das relações sociais e do
141
sistema escolar formal, que dá formas e exige bons resultados. Ao mesmo tempo em que era
um excluído, ele estava preso à fixidez da forma escolar, onde foi detectado e encaminhado a
especialistas, recebendo um diagnóstico psiquiátrico — essa é a captura dos “sem jeito”. Ele
ficava então nervoso com as provas, elas lhe “davam um branco” e ele temia ser reprovado. E
o foi, duas vezes. Agora ele quer novamente se libertar das amarras do oitavo ano e seguir em
frente.
Ser aprovado pelo conselho (de classe) significa que o caso de um determinado
aluno, cujo desempenho escolar encontra-se no limite entre o aceitável e o inaceitável, é
discutido em uma reunião entre professores e coordenadores pedagógicos em que se decidem
os rumos de sua vida escolar. No caso de Luan, definido como “inteligente, mas não sabe se
controlar” (uma condição fundamental à definição do TDAH), a sequência de aprovações
“pelo conselho” causava relações conflituosas. Luan, por um lado, sentia-se aliviado, mas
somente depois de ter passado por momentos de apreensão e “nervosismo” com a ajuda da
psicóloga, que o ajudou a “se animar mais” frente ao pensamento recorrente do “repetir,
repetir, repetir”. Os professores, por outro lado, discordavam quanto ao caminho determinado
para tal aluno. “O Luan já está aprovado... se depender dos professores... É o melhor aluno
que a gente tem (em tom irônico)”.
Em seus incômodos e desejos, na luta entre a fixidez e o escapar por meio dos
devaneios e “daquelas ilusões lá”, sempre recapturado pelos xingamentos, rótulos e gestos
dos outros, Luan propôs algo simples, mas quase inimaginável na forma escolar: a
transgressão de um modo fixo de relação. “Se a pessoa estiver imaginando alguma coisa...
depende. Se ela tiver um trauma e não conseguir resolvê-lo, aí tem que pedir alguma ajuda,
né, profissional. Mas se estiver pensando coisas boas, não tá atrapalhando nem a aula,
depois qualquer coisa, o professor passa pra ele a matéria”. Veem-se marcas do campo psi
(certas estratégias de captura de sujeitos “com problemas”) no enunciado “se uma pessoa tiver
um trauma e não conseguir resolvê-lo, deve procurar um profissional”. Mas há também uma
proposta de subversão da lógica escolar de ensinar um conteúdo a todos os alunos do mesmo
modo e no mesmo momento e, consequentemente, dos efeitos dessa lógica (como as
classificações pautadas no desempenho e no comportamento): se a pessoa estiver pensando
em coisas boas, que a deixe pensar e, depois, em seu tempo, o professor “passa a matéria”.
Além disso, ele questiona o papel do professor: “O professor podia ir lá e ajudar o aluno
(silêncio). Nas maiores dificuldades ainda. Falar menos do aluno... E se o aluno começasse a
ficar meio nervoso com ele de chamar tanto a atenção, ele começar a abaixar um pouco,
né?!”.
142
Luan não tem mais o termo “hiperativo” grafado em vermelho na frente de seu
nome, nem figura entre os alunos com baixos desempenhos escolares, o que mostra a
flexibilidade e fluidez da categoria clínica e social a ele associada. Porém, Luan ainda busca
se desvencilhar do oitavo ano e dos problemas que a distração lhe causa em sala de aula. Não
a distração em si, mas sim a distração capturada como déficit escolar. Em suas batalhas contra
a escola (o copiar, a reprovação, a sala de aula, os “CDF”), contra os outros que o tratam de
modo diferente, contra os rótulos, contra o professor que “provoca” e não ajuda, e contra ele
mesmo (com quem conversa e discute em voz alta), Luan torna-se “idiota”, “louco”, “incapaz
de se controlar”, “mentiroso”. Em sua loucura, descontrole e mentira, ele se reconstitui como
sujeito.
Já as lutas de Danilo trazem à cena um outro efeito da categoria TDAH muitas
vezes desconsiderado. Trata-se da questão da identidade, que pode ser parcial ou plena.
Quando o menino diz que também é hiperativo, ele pode estar se referindo ao seu
pertencimento a um grupo de crianças hiperativas como também à hiperatividade — ou o ser
hiperativo — enquanto uma parte de sua subjetividade. Em ambos os sentidos, assume-se a
adesão a uma formulação externa do indivíduo: hiperativa é a criança que, muito agitada, não
corresponde às demandas e expectativas sociais voltadas à socialização e à constituição
adequada dos comportamentos infantis. Apesar de desviante, esse é o fundamento que orienta
a constituição da razão de ser da criança.
Marcelo, aos doze anos, foi acompanhado em um ambulatório universitário de
psiquiatria infantil e adolescente, em 2010. Nos primeiros anos escolares, ele havia sido
diagnosticado como portador de TDAH, depois de inúmeras passagens por especialistas e
serviços de saúde os mais diversos. Ser hiperativo justificava seus comportamentos. “Como
eu vou prestar atenção se eu sou hiperativo?”, ele dizia a seus familiares.
Anos após nosso encontro, sua mãe contou-me que o diagnóstico do filho havia
sido reformulado — uma prática comum e defendida em psiquiatria. Ele era então bipolar.
Perguntei-lhe qual havia sido a reação de Marcelo ao receber o novo diagnóstico: “ele fica
perguntando se nunca foi hiperativo”. No ano seguinte, em 2014, com novos médicos, um
novo diagnóstico foi fechado: esquizofrenia. Essa fluidez das classificações diagnósticas
psiquiátricas mostra que, se por um lado a mudança pode compor e recompor a subjetividade
ou a identidade infantil, por outro elas não são eficientes na captura da criança. Pequenas
resistências escapam até mesmo do efeito do medicamento, como é o caso de Danilo que
ainda é encaminhado à diretoria e cujas mãos não param de se mexer. As pequenas e quase
143
invisíveis resistências suplantam, ainda que brevemente, os grandes efeitos das categorias
diagnósticas e dos psicofármacos.
A nova condição que essas pequenas resistências revelam é a da retomada do erro.
O delírio da imaginação. O ser errante, inútil, idiota e inadaptado, que fala consigo mesmo. A
criança “sem jeito” que desvela a vulnerabilidade e o sofrimento do ser humano ao escapar às
formas de intervenção na existência humana. Ela é tirada de jogo, colocada em uma carteira
separada, por um lado, porque não se adapta (a separação é um castigo direcionado à criança
que a torna momentaneamente visível para servir de exemplo do que não deve ser feito) e, por
outro, porque nos amedronta e coloca em risco nossa responsabilidade (o educar outros 20
alunos que “querem aprender”, por exemplo), nosso cronograma e nossa própria saúde, assim
como nos lembra que erramos, sofremos e sentimos dor. Enfim, ela escancara o que tememos
e contra o que lutamos todos os dias: a impotência do professor frente aos saberes técnico-
científicos; o erro como humanidade (e não a perfeição como sobre-humanidade); a
fragilidade da educação escolar, sendo que esta se tornou o lema básico de qualquer política
pública de proteção e promoção de direitos à criança; o poder de perturbação das “massas”,
das crianças unidas que fazem barulho ao bater os pés no chão de madeira e ao dizer “nós
vamos fazê-los tremer”. Assim, quando um menino pergunta à sua professora — esperando
uma resposta afirmativa que legitime sua feliz descoberta — “não é verdade que a gente pode
errar?”, ele coloca em questão todo um modo contemporâneo de aprender, de se relacionar,
enfim, de viver.
144
CAPÍTULO 4
Freud dizia, no início do século XX, que a busca pela felicidade é o objetivo
humano, porém sua plenitude é impossível. O desejo representa uma ausência, aquilo que
falta, pois o sujeito está sempre a desejar algo mais. No imaginário popular, o século XXI
projetava um desenvolvimento tecnológico tido como capaz de “salvar” a espécie humana. No
entanto, chegados os anos 2000, sofremos cada vez mais. Nossa particularidade — e nosso
perigo — é que as técnicas de supressão do sofrimento e do erro correspondem ao nosso
desejo mais imediato e à esperança mais convicta de felicidade e bem-estar. Um único
comprimido de Rivotril® ou de Ritalina® pode fazer calar, minutos após sua ingestão, tudo
aquilo que nos inquieta interna e externamente. A intervenção técnica médico-farmacológica
ancora-se em um “homem verdadeiro”, representação abstrata do indivíduo em plena saúde,
ótimo em seu desempenho cognitivo, social e emocional. Tratando-se, assim, de um ideal de
perfeição que nunca será alcançado, as práticas interventivas que sobre ele se aplicam tornam-
se incessantes e expandem-se por diferentes redes de relações.
Tendo em consideração tal peculiaridade dos tempos contemporâneos e a análise,
feita nesta tese, de seus efeitos sociais, é preciso ponderar o TDAH, pois não se trata
meramente de uma descoberta científica. Esta é uma categoria clínica concebida e
materializada em um contexto social e histórico específico. Identificou-se nos capítulos
anteriores que a intervenção médico-psiquiátrica — da qual o TDAH é um instrumento — é o
procedimento por intermédio do qual se visa a garantir a boa socialização infantil (ou seja, a
inserção social da criança conforme expectativas e normas sociais específicas). Para tanto,
atua-se prática e discursivamente sobre a criança cujos comportamentos e rendimentos são
apontados como discrepantes de um processo de desenvolvimento cognitivo, psicológico e
social, pautado nos padrões da aprendizagem escolar. Age-se igualmente sobre os
responsáveis pelo sucesso dessa socialização, sobretudo a escola e o professor (as
experiências e práticas docentes, rotinas em sala de aula, entre outras relações). Cabe,
finalmente, analisar o mecanismo do TDAH.
145
80
“DSM is intended to serve as a practical, functional, and flexible guide for organizing information that can aid
in the accurate diagnosis and treatment of mental disorders”.
147
81
A psicobiologia tinha Adolf Meyer como principal inspiração. Ele propunha um ponto de vista dinâmico para
a análise das perturbações psíquicas da personalidade individual, sendo esta proveniente da integração entre
forças biológicas, psicológicas, sociais e ambientais. Assim, a abordagem biográfica permitiria obter
informações sobre o desenvolvimento da personalidade, propor um diagnóstico e um tratamento e possibilitar ao
paciente a própria compreensão sobre si e o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento. Tudo isso a partir
da linguagem do paciente e sem a utilização desmedida de jargões médicos (DUNKER; KYRILOS NETO,
2011).
82
O psiquiatra alemão Emil Kraepelin elaborou no final do século XIX uma classificação das doenças mentais
fundamental ao desenvolvimento da psiquiatria moderna. Segundo o pressuposto por ele defendido, a nosologia
psicopatológica se ocuparia de entidades mórbidas que apresentavam histórias naturais e desfechos clínicos
semelhantes. Nesse sentido, a experiência e a observação objetiva baseavam seu método, excluindo as
interpretações dos pacientes. Tal sistema introduziu o conceito de demência precoce (PEREIRA, 2001).
148
83
Segundo Singh (2007), o psiquiatra estadunidense Leo Kanner somou-se ao grupo de profissionais que
questionaram a validade da psicanálise no campo da psiquiatria. Ele foi mentor de Leon Eisenberg, psiquiatra
estadunidense responsável, na década de 1960, pelos primeiros testes acerca da eficácia da Ritalina® no controle
da agitação extrema das crianças com disfunção cerebral mínima.
149
84
Descobriu-se, na década de 1950, que os efeitos calmantes da droga clorpromazina assemelhavam-se à ação da
lobotomia, um procedimento cirúrgico até então utilizado no cérebro de pacientes severamente acometidos por
doenças mentais como a esquizofrenia. Tal descoberta significou uma revolução na psiquiatria, pois a
intervenção psicofarmacológica viria a substituir os procedimentos invasivos (como a lobotomia) e os
instrumentos restritivos (tal como a camisa de força) no tratamento psiquiátrico.
150
Embora este manual forneça uma classificação de transtornos mentais, não há uma
definição satisfatória que especifica limites precisos para o conceito de “transtorno
mental” (o que também é verdadeiro para conceitos como transtorno físico e saúde
mental e física). Entretanto, é útil apresentar conceitos que influenciaram a decisão
de incluir certas condições no DSM-III enquanto transtornos mentais e excluir
outras. No DSM-III, cada um dos transtornos mentais é conceitualizado como uma
síndrome ou como um padrão comportamental ou psicológico clinicamente
significante que se manifesta em um indivíduo e que é tipicamente associado tanto a
um sintoma doloroso (sofrimento) quanto a um prejuízo em uma ou mais áreas
importantes do funcionamento (incapacidade/deficiência). Além disso, há uma
inferência de que existe uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica e
de que o distúrbio não se remete unicamente a uma relação entre indivíduo e
sociedade — quando o distúrbio é limitado a um conflito entre um indivíduo e a
sociedade, deve-se representar tal relação como um desvio social, que pode ou não
ser representativo, mas que não é por si só um transtorno mental. (APA, 1980, p. 6.
Grifos nossos. Tradução nossa85).
Um médico psiquiatra atuante em um ambulatório infantil universitário,
localizado na cidade de Campinas e visitado durante outra pesquisa, contextualizou a adoção
dessa noção:
não se trata do mesmo sofrimento abordado pelas vertentes psicanalíticas (o conflito psíquico
gerado por pulsões e interdições, como indicou Birman), mas sim de um sofrimento causado
por reações sociais a determinados comportamentos disformes em relação a normas
socialmente instituídas. Assim, por ser uma noção “mais frouxa”, sem “uma definição
satisfatória que especifica limites precisos para o conceito”, o transtorno mental permite uma
maior abrangência das estratégias de intervenção psiquiátrica. Prejuízo é sua pedra de toque.
O Distúrbio de Déficit de Atenção apresentou-se como um transtorno explicitado
pela inadequação comportamental (desatenção e impulsividade) a um padrão de
desenvolvimento (o que alude às discussões feitas nos capítulos anteriores e evidencia a
relevância primordial dos modelos pedagógicos e das representações sociais acerca do
desenvolvimento infantil) e, por conseguinte, pelos prejuízos sociais causados por tal
inadequação. Lê-se no item “prejuízo” da descrição do DDA: “dificuldades acadêmicas são
comuns; e embora o prejuízo possa estar limitado ao funcionamento acadêmico, o
funcionamento social também pode ser afetado” (APA, 1980, p. 42).
Já no DSM-III-R (APA, 1987), a hiperatividade entrou no grupo sintomático
principal, promovendo a mudança do nome da categoria de DDA (Distúrbio do Déficit de
Atenção, com ou sem Hiperatividade) para TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade). A incorporação da hiperatividade — definida nessa edição do manual como
um sintoma externalizante disruptivo em espaços sociais — à sintomatologia da categoria
clínica em questão evidenciou seu caráter social. Nesse sentido, a complicação preponderante
que o transtorno poderia gerar, segundo o manual, era o fracasso escolar. Isso reafirma as
relações e exigências sociais e os modelos psicopedagógicos mobilizados pela escola —
incluindo as teses das deficiências culturais — como a peça-chave do TDAH e de seus
correlatos.
Portanto, “algo não está funcionando bem” (nas palavras do médico psiquiatra
entrevistado) e não o está no plano social. A ausência de uma base orgânica e fisiológica
permite intervir em um domínio muito mais amplo do que o corpo humano, embora a
intervenção se faça por meio dele. A permeabilidade do complexo mecanismo que se forma
com o DSM torna-se ainda mais viável a partir das mudanças desencadeadas pelo processo de
transformação do compêndio — e sua concepção de transtorno mental — e do TDAH,
associadas à dicotomia normal versus patológico. Na mais recente edição do manual (o DSM-
V), a noção de transtorno mental é definida como
86
“A mental disorder is a syndrome characterized by clinically significant disturbance in an individual’s
cognition, emotion regulation, or behavior that reflects a dysfunction in the psychological, biological, or
developmental processes underlying mental functioning. Mental disorders are usually associated with significant
distress or disability in social, occupational, or other important activities. An expectable or culturally approved
response to a common stressor or loss, such as the death of a loved one, is not a mental disorder. Socially deviant
behavior (e.g., political, religious, or sexual) and conflicts that are primarily between the individual and society
are not mental disorders unless the deviance or conflict results from a dysfunction in the individual, as described
above”.
153
discutirá ainda neste capítulo). Por outro lado, tal incerteza permite privilegiar os efeitos das
manifestações sintomáticas. E é nesse plano mais imediato em que se articulam transtorno,
deficiência e diferença, fundados no princípio do sofrimento patológico causado por um
déficit, cerebral e/ou social. Também é nesse âmbito que a fluidez dessas concepções se
intensifica e, paradoxalmente, consolida a validade das categorias clínicas. Tal fluidez
corresponde a uma flexibilização dos limites distintivos do normal e do patológico, bem como
à redefinição da categoria como sendo universal.
Exemplo dessa realidade é a confusão entre “hiperatividade” e “agitação”,
analisada no segundo capítulo. A inexistência de limites bem definidos para a apreensão do
transtorno e de seus sintomas viabiliza a identificação de um grande número de pessoas como
portadoras, tais como as crianças de três anos de idades, crianças em fase escolar,
adolescentes e até mesmo adultos. Ademais, como se desconhecem critérios externos para o
diagnóstico da disfunção (tais como os resultados conclusivos de exames de neuroimagem ou
os biomarcadores), a avaliação clínica decorre exclusivamente dos preceitos contidos na
própria definição do TDAH contida no DSM.
O handicap, conceito importante à atual psiquiatria francesa, evidencia de modo
relevante a relação entre transtorno e diferença. Correntemente associada a condições de
deficiência ou incapacidade, a noção de handicap consolidou-se em decorrência da
desinstitucionalização de pacientes mentais e da reformulação da questão da criança
inadaptada, assistida em classes escolares de aperfeiçoamento87. Devendo ser reintegrados à
sociedade (às famílias, aos serviços de saúde e ao trabalho no caso dos doentes mentais, e às
classes normais, no caso das crianças), esses indivíduos tiveram modificado o estatuto de sua
condição: da doença que portam vista como um obstáculo a todas as formas de participação
social para uma condição particular sujeita a direitos e compensações especiais (VILLE,
2014).
Diferentes leis firmaram-se em torno da nova problemática, sem, no entanto,
definir consistentemente o conceito no qual se ancoravam. Predominava o ideal de superar um
estado físico ou mental prejudicial a fim de se alcançar um estado de bem-estar completo, o
87
O processo de desinstitucionalização ocorrido na França a partir dos anos 1950 resultou na setorização
sanitária e psiquiátrica (HENCKES, 2009a; 2009b; 2013), um sistema de recorte geo-demográfico em setores de
distribuição de profissionais, serviços e instituições de assistência. A criação de dispositivos de assistência
médica, psicológica e, em alguns casos, pedagógica, também derivou desse processo, associada à emergência do
conceito ainda indefinido de handicap e das leis consagradas às pessoas com deficiências (HENCKES, 2013;
VILLE, 2014). Exemplos desses dispositivos são os centros médico-psicológicos (centres médico-
psychologiques – CMP), geridos por hospitais públicos, e os centros médico-psico-pegadógicos (centres médico-
psycho-pédagogiques – CMPP), construídos a partir da vigência de políticas públicas voltadas à infância
inadaptada e administrados por associações privadas sem fins lucrativos.
154
que inclui uma adequada socialização. A lei francesa de 11 de fevereiro de 2005 — a mais
recente no campo da deficiência no país — ampliou a circunscrição do conceito de handicap
ao relacioná-lo à compensação de necessidades particulares. Podendo tratar-se de um déficit
cerebral, psicológico ou corporalmente determinado, o handicap (e sua relação entre
disfunção e diferença) abrange um grande número de condições88, inclusive o TDAH,
definido pela associação HyperSupers (similar à Associação Brasileira do Déficit de Atenção)
como um déficit cognitivo (handicap cognitif)89.
Déficit cognitivo e transtorno mental edificam, assim, a busca pelo fundamento
cerebral das condições psiquiátricas. Uma busca pautada na premissa de que, não havendo
uma cura, é necessário trabalhar sobre a prevenção, o diagnóstico e o tratamento precoces. No
caso do TDAH, isso significa que, apesar de se lidar com uma condição crônica (a lifespan
condition), ela deve ser tratada. E quanto antes ela o for, melhor. Mas o tratamento não
incidirá sobre uma patologia ou uma doença, e sim em uma diferença desvantajosa (RAMOS,
2014). Vale lembrar que também no âmbito escolar a questão da anormalidade/patologia
transforma-se em diferença (diferentes ritmos e necessidades de aprendizagem), conforme as
análises feitas nos capítulos precedentes.
A criança que a gente chama de hiperativa, não é que ela é doente e que ela é
anormal por conta disso, mas acontece que por características pessoais dela, por um
motivo ou outro, ela tem uma tendência a não, tão rápido quanto às outras crianças,
parar e prestar atenção (Médico psiquiatra de um ambulatório infantil universitário.
Entrevista concedida em 28 out. 2009. Grifos nossos). (BARBARINI, 2011, p. 109).
A incapacidade de “parar e prestar atenção tão rápido quanto às outras
crianças” é um comportamento desvantajoso dentro da escola, onde crianças de uma mesma
faixa etária são expostas a exigências sociais e escolares similares. E essa incapacidade advém
de “características pessoais”, ou seja, de uma diferença neurológica e neuroquímica, se
adotarmos o vocabulário das neurociências, ou mesmo de uma diferença entendida como
desvio de um padrão sem que se desloque da circunscrição da normalidade (por exemplo, a
criança hiperativa e desatenta apresenta inteligência normal). Trata-se, assim, de uma
diferença desvantajosa que designa um indivíduo portador de TDAH, a quem se destinarão
estratégias médico-psicológicas e psicopedagógicas específicas. Esse indivíduo é afligido por
uma condição patológica porque esta o faz sofrer de modo global, isto é, com repercussão em
todos os âmbitos de sua vida (corporal/cerebral, psicológico, social, familiar).
88
O handicap, por sua indefinição, dificulta a qualificação e avaliação das condições de sofrimento pelas
políticas públicas, mas também permite a existência de um grande complexo de dispositivos institucionais
(HENCKES, 2013, p. 18).
89
Disponível em: <http://www.tdah-france.fr/?lang=fr>. Acesso em: 16 jan. 2016.
155
Em 1848, o operário Phineas Gage foi ferido por uma barra de ferro que, em
decorrência de uma explosão, perfurou e se alojou em seu crânio, atingindo o lobo frontal
esquerdo do cérebro (ANDREASEN, 2005; DAMASIO, 2010). Gage sobreviveu ao acidente,
porém passou a manifestar comportamentos incomuns. De uma pessoa emocionalmente
controlada, começou dar provas de instabilidade em sua conduta social, tais como a rejeição
das convenções sociais, a imoralidade de suas ações, a tomada de decisões irracionais e a
despreocupação com seu futuro, ou uma incapacidade de prever os efeitos de seus
comportamentos. Ele faleceu em 1861, entretanto, seu cérebro foi conservado por técnicas
especiais que permitiram estudar, na década de 1990, as lesões cerebrais causadas pelo
acidente.
156
90
Sobre o cérebro enquanto ator social, sugiro a leitura dos trabalhos de Fernando Vidal acerca do tema do
sujeito cerebral. Em relação à produção de identidades fundamentadas no funcionamento cerebral, Francisco
Ortega aprofunda o tema do movimento da neurodiversidade.
159
91
“Uma abordagem que combata a privação na infância deve, portanto, seguir uma estratégia combinada que: a)
assegure uma renda familiar adequada, b) ajude a enfraquecer o impacto direto dos pais no desenvolvimento
cognitivo das crianças e c) melhore o ambiente de trabalho das mães empregadas”. (ESPING-ANDERSEN,
2002, p. 56).
160
enquanto um mercado, orientado pelos resultados das escolhas dos atores sociais. Estes
decidem e escolhem de acordo com suas percepções, interesses e recursos, o que, transposto
para o quadro geral do modelo cerebral-cognitivo ou para o recorte do TDAH de Barkley e do
DSM, corresponde à capacidade cognitiva e social de dispor de meios de autorregulação,
prever os efeitos das ações individuais, adaptar-se, desempenhar bons comportamentos,
enfim, integrar-se adequada e autonomamente a um grupo ou a uma sociedade.
Assim, concebe-se o cérebro como a entidade central do corpo e da vida humana,
pois seu bom funcionamento permite ao indivíduo agir no mundo. Aqui, o TDAH se efetiva
como uma categoria universal e a-histórica, uma vez que as características socioculturais das
relações das quais o indivíduo participa agregam-se e submetem-se à performance das
conexões neuronais. Nesse ponto, outros saberes — incluindo a sociologia — são chamados a
fazer parte e aprimorar tal modelo a fim de que ele forneça ferramentas para a boa ação
individual. Conciliam-se igualmente o mercado e uma indústria92 do bem-estar com o
propósito de ensejar, por intermédio de seus instrumentos (destacadamente os psicofármacos),
o desenvolvimento de competências cognitivas, sociais e relacionais.
92
Entendo “indústria” por seu sentido amplo de engenho e criação. O mal-estar, destacadamente, representa um
sentimento real de sofrimento individual e coletivo. Portanto, falar de indústria do bem-estar, do mal-estar ou do
risco corresponde ao ato de incorporar à realidade do sofrimento e do desejo princípios de necessidade e
instrumentos para satisfazê-la.
162
93
As neurociências — que tomam para si a tarefa de desvendar os mistérios da entidade cerebral — constituem-
se de um conjunto de disciplinas dedicadas ao estudo do sistema nervoso, sua estrutura e suas funções, tanto em
funcionamento normal quanto em estado de patologia. Tal conjunto compõe-se de práticas e saberes biológicos,
químicos, psicológicos, anatômicos, entre outros (ANDREASEN, 2005), a cuja denominação se acresce,
geralmente, o prefixo “neuro”.
163
94
Refiro-me à observação, feita em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil, do uso da administração
do medicamento como ameaça ao comportamento perturbador. Ao correr pelo saguão do ambulatório com outras
crianças, um menino portador de TDAH foi advertido por sua mãe: “se você não parar, vou te dar o remédio”
(BARBARINI, 2011, p. 112).
167
Será que isso [o uso de medicamentos para crianças diagnosticadas como hiperativas
e desatentas] não é mais ou menos como um atleta que acaba tomando alguns
medicamentos para fortalecer alguns desenvolvimentos, um salto maior, como se
você estivesse ajudando seu organismo em certos mecanismos, mas que na verdade
não são adequados? Eu acho que isso é uma questão de adequação mesmo, não
necessidade. “Ah, eu me concentro mais”, mas será que é adequado? Para outras
situações você tem essa necessidade? Será que é preciso tomar coisa para isso?
(Jussara, professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida
em 14 ago. 2015).
Embora a professora se refira especificamente ao medicamento, sua reflexão
evidencia aquilo que rege a rede relacional dos perfis de risco, do aprimoramento e, inclusive,
da noção difusa de transtorno mental: a formulação e intervenção sobre uma “incapacidade”
individual de se constituir adequadamente — conforme um projeto de sociedade — enquanto
sujeito. Individual, pois subordinada a uma representação de si como possuidor de um cérebro
doente, formulada conforme referências científicas específicas (EHRENBERG, 2004a), ou
como corpo/mente passível de aperfeiçoamento. E social, sobretudo, uma vez que o desajuste
comportamental implica, nessa ótica, prejuízos às relações e desempenhos sociais, pessoais,
escolares e profissionais.
Sumariamente, instaura-se a regularidade de uma diversidade de discursos,
saberes e práticas, aparentemente contraditórios ou alternativos entre si. Ela é possível e
coerente nessa nova rede, dado que seus elementos regem-se por um mesmo modo de
conhecer e intervir na realidade social através do corpo, da mente e do sujeito e de uma
verdade constituída sobre eles a partir de práticas sociais específicas. Essa regularidade recebe
o nome de “medicalização”.
95
Os primeiros críticos a chamar atenção à medicalização e ao controle médico foram, segundo Conrad, Thomas
Szasz, que ainda na década de 1960 iniciou sua crítica à psiquiatria enquanto criadora de doenças mentais; John
Pitts, que trabalhou a definição de controle social em 1968; Eliot Freidson que, escrevendo em 1970 sobre a
profissão médica, foi também importante para o desenvolvimento de uma sociologia médica nos Estados Unidos;
e Irving Zola (1972).
169
(uma estratégia biopolítica de ação sobre os corpos a fim de torná-los dóceis, porém úteis) e
pela extensão indefinida e ilimitada da intervenção do saber médico na tessitura social.
Tratava-se, assim, de uma investida médica cuja finalidade era legitimar sua prática e
responder a um projeto de sociedade fundado na criação de populações moral, sanitária e
mentalmente adequadas ao progresso de uma nação.
Viveu-se esse processo tardiamente no Brasil, com reflexos no século XX,
passando pela reformulação da função do hospital (condizente com uma mudança de olhar
sobre a doença e a saúde) e pela legitimação do saber e da prática médica e o
esquadrinhamento do território com fins de controle populacional por meio da prevenção de
doenças (MACHADO et al., 1978). A aliança entre Estado republicano e ciência
(representada pela medicina), consoante aos ideais positivistas em voga no fim do século XIX
e início do XX, caracterizou um investimento político-sanitário destinado à construção de um
país moderno e em progresso. Empenhava-se em uma luta contra “os males do atraso da
nação”, a ignorância do povo brasileiro, as doenças, a degeneração física e mental,
culminando no surgimento do alienismo brasileiro e em práticas higienistas interventivas
(RIBEIRO, 2010). Práticas essas que, atuando no interior dos lares familiares e das escolas,
visavam à prevenção das degenerações morais, físicas e mentais e ao cuidado com o
desenvolvimento das crianças.
Há que se atentar ao fato de que as ciências sociais ocuparam uma posição
importante nesse cenário. Se por um lado elas se apropriaram da linguagem médica pautada
na distinção entre normal e patológico para descrever a realidade social, por outro
disponibilizaram instrumentos de leitura da realidade brasileira, tal como a noção de raça
(RIBEIRO, 2010). No caso da intervenção nas escolas, as ideias eugênicas derivadas do
neolamarkianismo, que marcaram o higienismo brasileiro, e os sistemas de testes, medidas e
diagnósticos fornecidos pela medicina e pelas ciências sociais foram fundamentais à
elaboração de políticas públicas voltadas à universalização da educação pública (DÁVILA,
2006).
Configurava-se, dessa maneira, um momento histórico em que a medicina, a
psiquiatria, as ciências sociais e a pedagogia desempenharam conjuntamente um importante
papel de articulação entre controle social (estatal), intervenção na saúde dos indivíduos e das
populações e corpo: elas viabilizaram novos modos de compreender e agir na constituição dos
sujeitos em sociedades capitalistas, marcadas pela disciplina e pela normalização pautada na
distinção entre o normal e o patológico. Essas novas formas coincidiam com o processo de
produção das categorias clínicas direcionadas às crianças anormais. É isso que, em termos
170
96
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/quadro-clinico.html#sthash.WVP2loYZ.dpuf>. Acesso
em: 08 out. 2015.
174
repetitivas ou desinteressantes” são tipicamente escolares, como se pôde verificar a partir dos
relatos de professores e crianças, bem como das observações feitas em sala de aula, acerca da
pouca funcionalidade dos conteúdos escolares e do exercício fatigante de copiar. Ademais, a
imprecisão da habilidade atentiva faz com que o aluno incorra em erros de escrita (“sinais,
vírgulas, acentos”), de fala ou de memória, cujas operações são essenciais ao sucesso escolar.
Observou-se em trabalho de campo uma constante recorrência da afirmação “eu estudo, mas
me dá branco na prova”, relatada tanto por crianças diagnosticadas quanto por alunos sem
TDAH, ainda que o texto da ABDA marque esse tipo de descuido como algo característico do
transtorno. O esquecimento de materiais ou recados é uma falha prejudicial ao
prosseguimento da aula, bem como ao rendimento escolar, pois, incitando o erro em provas,
constitui o prenúncio do fracasso naquela atividade ou, em um âmbito mais geral, no ano
letivo (o que resulta em repetência).
O sintoma dispersivo da condição é, portanto, significativo. Em diferentes análises
sociais, a dispersão encontra os modos contemporâneos de utilização da tecnologia e da ampla
disponibilidade informativa. O relato de uma professora ilustra esse encontro:
Antes você tinha dois na sala, três que eram muito dispersivos, que por qualquer
motivo dispersava. Hoje você tem muitos que são dispersivos. Hoje você tem muitos
que, para focar, é complicado. E eu acredito que é por conta de tanta tecnologia.
(Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
A diversidade dos usos da tecnologia e das informações fragmentadas disponíveis,
sobretudo, nos espaços virtuais da internet, de fácil acesso às crianças, marca a
contemporaneidade. A dispersão da atenção individual, assim como dos deslocamentos
corporais direcionados a diferentes sentidos, seria então o efeito de uma tal configuração
social e histórica. Um efeito problemático na sala de aula (devido à dificuldade de a criança se
concentrar e, portanto, corresponder às exigências escolares), porém possivelmente vantajoso
em um sistema empresarial onde o indivíduo deve ser hábil em mudar de foco. O TDAH
congrega essas duas possibilidades.
Para Lima (2005), as ambiguidades vividas pelas crianças diagnosticadas como
portadoras de TDAH são as mesmas que as experimentadas por qualquer outro indivíduo nos
dias de hoje. O autor se refere à existência fragmentada, ao viver de impulso a impulso (de
consumir objetos ou sensações) e de estímulo a estímulo, à possibilidade e o desejo de gozar
os frutos de seu desapego impulsivo às rotinas (o que impulsiona a criatividade e o espírito
aventureiro). Mas também ao sofrimento causado pela exposição constante aos riscos e pelas
exigências de eficácia e sucesso na vida escolar e/ou profissional. Tratar-se-ia, nessa
175
O estímulo vem por conta do avanço tecnológico que cada vez é mais rápido. Vamos
dizer assim, antigamente era de dez em dez anos, hoje é de um dia pro outro. Não
tem mais aquele tempo. Tecnologicamente falando, o tempo é mínimo, né? Então,
cada vez mais, [...] quando você pergunta [a uma criança] “Gostou?”. “Gostei”. “Por
quê?”. “Ah, achei legal”. “Mas o que é legal?”. “Ah, é bom”. Sabe? Acabou. Eu
sinto como a era do monossílabo, não tem muito mais do que isso. Então isso de
conversar, de trocar ideia, de questionar e fazer suposições, eles não têm, porque é
tudo muito rápido. [...] Eles não estão tendo tempo de ser criança. (Maria Luiza,
professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
Além de influenciar a dispersão, os usos da tecnologia impactariam na
comunicação infantil, reduzindo-a a expressões simplificadas, monossilábicas. As crianças
então não mais conversam, imaginam ou interagem entre si? Identificaram-se nos capítulos
anteriores formas particulares de interação infantil e, até mesmo, de enfrentamento, sendo
que, neste caso, tal manifestação comportamental é ressignificada como sintoma disruptivo de
um transtorno mental, TDAH ou um distúrbio de conduta. A novidade trazida pela criança ao
mundo, como preconizava Arendt, dissipa-se na transgressão e na patologia.
Assim, mesmo com os novos modos de utilização da tecnologia, não estariam os
adultos fazendo as perguntas erradas às crianças? Um caso bastante significativo, nesse
sentido, é o da menina indicada por sua professora como “hipoativa”. Em sala de aula, ela não
executava as atividades solicitadas e não aprendia conforme o ritmo dos demais. Segundo a
professora Julia, a aluna não sabia escrever, mesmo cursando o terceiro ano, devido
principalmente a sua apatia patológica. A menina debruçava-se sobre seu caderno, pedia
constantemente permissão para ir ao banheiro ou beber água e permanecia fora da sala por um
176
longo período. Ela não respondia aos professores, não se comunicava. Na sala. Pois, em um
dia em que as crianças brincavam no pátio, ela “tagarelou” uma de suas histórias (muito bem
contada, há que se mencionar), dando indícios de que os professores não compreendiam que,
em sua forma particular de se comunicar, ela reagia à exigência de fazer algo que ela não
dominava: ler e escrever.
A hiperatividade e a impulsividade também são mencionadas no texto da ABDA.
Não esperar a vez, não ler a pergunta até o fim e já responder, interromper os outros, agir
antes de pensar, ter dificuldade de organizar e planejar, bem como não permanecer sentado
em situações em que isso é esperado, falar excessivamente e ser incapaz de brincar ou se
divertir quieto — descrições essas encontradas no manual diagnóstico — são algumas das
indicações sintomáticas do TDAH (que nos fazem questionar, sobretudo em relação ao último
item, se realmente se trata de um perfil infantil). Um médico considerará tais sinais
importantes quando, dentre os nove itens listados no DSM-V para esses sintomas, seis ou
mais forem frequentemente manifestados em ao menos dois contextos (escola e casa, por
exemplo) durante seis meses, minimamente. Ressalto dois pontos.
O primeiro concerne à proposição de Barkley — e do modelo cerebral-cognitivo
ao qual ele se filia — acerca da competência de planejar, prever resultados de ações e, enfim,
do autocontrole emocional e corporal. Tendo prejudicada sua capacidade de agir no mundo,
em decorrência de disfunções cerebrais, a criança incorreria em erros. A alusão do texto da
ABDA a tal modelo faz-se também manifesta na afirmação, aparentemente óbvia, de que
“quando as crianças se dedicam a fazer algo estimulante ou do seu interesse, conseguem
permanecer mais tranquilas”. A obviedade popularmente instituída (afinal quem gosta de
fazer algo desestimulante ou desinteressante?) reduz-se, todavia, a uma questão
neuropsicológica de reforço: “Isto ocorre porque os centros de prazer no cérebro são
ativados e conseguem dar um ‘reforço’ no centro da atenção que é ligado a ele, passando a
funcionar em níveis normais”. Prazer promove atenção, pois envia um “reforço positivo” ao
cérebro, que passa a funcionar bem, mesmo que temporariamente. As atividades
desinteressantes e desestimulantes (as atividades escolares convencionais, no consenso dos
professores) lhe enviariam um “reforço negativo”. Recordemo-nos também do neurocientista
que, palestrando para um grupo de professores, asseverou não bastar o desejo de ser feliz,
visto que são as conexões neuronais que garantem a experiência dessa sensação.
O segundo ponto diz respeito à generalidade das manifestações comportamentais
redefinidas como sintomas do TDAH. A descrição dos modos de inserção da criança no
espaço escolar, sobretudo no que se referem às exigências de adaptação, indica a produção de
177
um mal-estar generalizado entre professores (que esbravejam para serem ouvidos em sala de
aula, porém sem conseguir, apesar dos esforços, gerir os conflitos e prosseguir com o
cronograma de atividades) e alunos (que, inquietos, movimentam-se de modo incessante pela
sala, repetem sempre as mesmas perguntas ou anseiam impacientemente pela atenção da
professora). Ademais, a observação de que, durante os recreios escolares, as crianças corriam
e gritavam descontroladamente reporta à fluidez dos conceitos e das definições que
consolidam categorias como o TDAH. É como se todas as crianças, na escola ou no lar
(durante a fase pré-escolar citada na publicação da ABDA), fossem hiperativas e impulsivas,
apresentando apenas intensidades e prejuízos sociais distintos.
Essa configuração empírica permite-nos, em seu conjunto, elucidar o mecanismo
de funcionamento do TDAH. Tal categoria materializa-se no DSM, porém sua gênese ocorre
obrigatoriamente na escola contemporânea, marcada por contradições (disciplinar versus pós-
disciplinar) e crises. Há que se lembrar da constatação de que a entrada na educação
fundamental é, destacadamente, um momento de rupturas com os modelos familiares e com as
propostas da educação infantil. Nessa situação, a criança é apresentada a normas enrijecidas
de comportamento e de aprendizagem, classificações e padrões de desenvolvimento. É
também o momento primordial de elevação do número de encaminhamentos de alunos a
especialistas devido a problemas de conduta e de aprendizagem. Embora o texto da ABDA
afirme que “o TDAH não se associa necessariamente a dificuldades na vida escolar”, ele
reconhece que essa é “uma queixa freqüente de pais e professores”.
O surgimento do TDAH na escola justifica-se pela atribuição, socialmente feita a
essa instituição, da função de inserir a criança na esfera social e de possibilitar, pela
constituição da criança como indivíduo, a realização de um dado projeto de sociedade. E isso
não é novo. O TDAH emerge, no entanto, de um contexto escolar cuja particularidade reside
na questão da diferença e da autonomia. Em outras palavras, é tão-somente quando a criança
ascende ao centro da cena social enquanto sujeito autônomo (conforme o sentido dado ao
termo ao longo das análises empreendidas nesta tese) e, acima de tudo, enquanto sujeito de
direito que uma categoria como o TDAH pode se consolidar e efetivamente se exercer. Não
por acaso, a primeira seção dedicada exclusivamente à infância foi criada, em um mesmo
contexto, tanto na Constituição Federal brasileira quanto no Manual diagnóstico e estatístico
dos transtornos mentais, publicado na década de 1980 e logo adotado pela psiquiatria
brasileira. Nesse sentido, a escola — que desde o século XIX operava como “laboratório dos
desvios” — se revigora como meio de detectar os desvios e as diferenças e, simultaneamente,
como instituição fundamental à concretização da criança enquanto sujeito.
178
categoria em relação à sua origem escolar, o que lhe permite difundir-se por toda a tessitura
social. Sua dualidade corresponde à singularidade da contemporaneidade.
A sociedade atual, escolarizada, favorece a aquisição de competências e
habilidades, essenciais à formação continuada, como fundamento da constituição e avaliação
dos desempenhos ditos normais, porque esperados. A escolarização, um processo que se
expande por todos os âmbitos sociais, caracteriza-se pela mobilização de modos operatórios
fundados na divisão, classificação e comparação, articulação e sistematização. Impulsiona
igualmente modos racionais de organização do tempo e das atividades visando a uma
produtividade conquistada por meio da repetição. Esse conjunto operatório coexiste com um
movimento de difusão de padrões de flexibilidade, adaptação, criatividade e autonomia,
próprio de um modelo empresarial, que adentra também as escolas. Produtividade e
tecnologia são seus instrumentos e modos operatórios. Não por acaso os professores tendem a
qualificar a dispersão crescente de seus alunos tendo a realidade tecnológica contemporânea
como base de justificação.
A generalização do TDAH concretiza-se, por conseguinte, a partir de seu caráter
de categoria universal (que ultrapassa desigualdades e diferenças sociais e individuais) e, ao
mesmo tempo, de categoria particular de grupos vulneráveis a riscos sociais, psicológicos e
cerebrais. Todavia, ainda que se busque incorporar todas as formas de distinção social no bojo
da categoria, algumas questões lhe escapam. É o caso da reprodução de padrões de gênero que
delimitam os comportamentos masculinos e femininos. Essa característica é mais manifesta
em outras categorias, tais como os transtornos de conduta (majoritariamente masculinos) e o
transtorno disfórico pré-menstrual, uma condição descrita pelo DSM-IV-TR e pelo DSM-V e
designada como uma forma mais grave de tensão pré-menstrual cujos sintomas físicos (dores
corporais acentuadas), psíquicos (ansiedade e depressão) e emocionais (irritabilidade intensa)
prejudicam o funcionamento social e profissional da mulher. No caso do TDAH, o
reconhecimento de que meninos são geralmente identificados como hiperativos e impulsivos e
meninas como desatentas corresponde ao assentimento social de que meninas são mais calmas
e introvertidas, enquanto meninos comportam-se de modo mais expressivo.
Logo, o TDAH consolida-se como uma categoria que opera um movimento social
profundo: agrupa elementos diferentes sob uma mesma classificação que permite
desculpabilizar os indivíduos, já que o problema é definido como proveniente de disfunções
cerebrais — e aí está um aspecto atrativo à adesão de diferentes forças sociais. Ao mesmo
tempo, ele viabiliza a culpabilização de indivíduos ou instituições específicos quando
predominam teorias e hipóteses voltadas às influências do meio na constituição neuronal da
180
criança ou em seu desenvolvimento, como os supostos efeitos da carência cultural dos pais.
Ou ainda quando os responsáveis pela criança não aceitam sua condição particular e não
seguem as recomendações médicas. A crise é o elemento que permeia esses diferentes
aspectos e, assim, é nela que as práticas técnico-científicas intervêm por intermédio do
TDAH, construindo o desejo de intervenção como uma necessidade. De outro lado, a crítica a
essa categoria desarticula os elementos que a constituíram historicamente, mas culpabiliza, no
âmbito social, professores e famílias.
De modo geral, os elementos que compõem a categoria TDAH dizem respeito: a)
à generalização de uma condição vista como universal, para além das barreiras de classe, etnia
e cultura; b) à aproximação entre as diferentes representações sociais da criança (a perigosa, a
empreendedora, a agitada, a indisciplinada, a hiperativa, a desatenta), de suas vulnerabilidades
transformadas em perfis de risco e de diferentes saberes e valores (o neurobiológico, o
genético, o ambiental, o social e o moral) que se centram na adequação infantil às formas de
inserção social; e c) à permeabilidade de dicotomias antes fundamentais à manutenção de uma
sociedade disciplinar, tais como o normal/patológico, a escola/família (refletida na
transferência mútua de uma a outra ou no processo de profissionalização do cuidado com a
criança) e a criança/adulto (observada na adultização da criança e na infantilização do adulto,
bem como na questão da autonomia). Em última análise, o TDAH engloba todas as formas de
inserção social infantil características da contemporaneidade. Sua validade e difusão
efetivam-se por se acoplar a um tipo de pensamento médico, comum a práticas distintas sobre
o corpo, que se funda, sob o jugo do bem-estar, sobre o objetivo de realização de um projeto
de sociedade a ser garantida pela adequada socialização de seus indivíduos. Desse modo, o
mecanismo do TDAH não é meramente biomédica ou neurocientificamente orientado. Ele é
social e político.
Nas nossas oficinas de trabalhos manuais, para nós pouco importa o produto final.
Não que a gente não coloque desafios para que ele [o aluno] chegue a um produto
final. É muito legal quando eles fazem, refazem e vão se percebendo capazes e vão
fazendo de novo e vão se desafiando a fazer. E tem crianças que falam “não é
verdade, professora, que a gente pode errar?”. Eles podem errar o quanto eles
quiserem! [...] O mais importante é ele perceber que é capaz. [...] A gente não tem
nenhuma meta de modelos, de um produto, mas tem desafios pra chegar lá. (Vera,
professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 11 set.
2015).
Mantêm-se nesse discurso questões como a capacidade. Porém, trata-se de uma
capacidade destituída do pressuposto de desenvolvimento que visa a um ponto final ou a uma
média, ao contrário do que ocorre na fundamentação da pedagogia por princípios
psicológicos. Seu tom privilegia a positividade de uma condição de aprendizagem e percepção
do mundo. Errar torna-se uma verdade possível, contrariando a tendência contemporânea de
se apagar as falhas com uma borracha, no caso do aluno que comete erros, por distração ou
desconhecimento, em seu exercício escolar, ou com um medicamento que, usado
continuamente, silencia os dilemas individuais.
Aponto, portanto, a hipótese de que novas formas de educação e de relações
sociais que reconheçam essa possibilidade, aliadas a novas percepções referentes à inserção
social da criança, sejam capazes de modificar a essência de verdade (quase incontestável) de
práticas dominantes e suas categorias, como o TDAH. O papel secundário desse tipo de
classificação em propostas como a do programa de educação não formal visitado permite
183
esboçar uma tal hipótese. Isso não significa eliminar as classificações psiquiátricas e as
práticas terapêuticas, ou ainda rejeitar a existência de dificuldades de aprender. Defendo,
contudo, a ideia de que a relativização de sua verdade viabiliza o diálogo entre professores e
alunos, bem como desconstrói a necessidade e o desejo de intervenção contínua e minuciosa
de práticas médico-psicológicas.
O erro também se expressa na inquietude de crianças que correm e gritam nos
espaços livres e nos períodos de recreação, momentos esses em que todas elas são hiperativas,
impulsivas e desatentas. As crianças reconhecem seu entorno (como nos mostra Talita ao
perceber que “aqui só tem branco, nenhum negrinho como eu”), criam seus ritos (como o
jogo de “vaca-amarela” para, juntas, evitar uma punição), interagem ludicamente, inventando
um mundo próprio e, do mesmo modo, condizente com os aspectos de sua realidade social
(tais como as expectativas de gênero). A título de exemplo do trânsito entre o social e o
ludicamente produzido, vale mencionar um acontecimento vivenciado no programa de
educação não formal. A professora de uma turma de crianças entre cinco e nove anos de idade
lia uma estória peculiar, que oferecia ao leitor a possibilidade de escolher um entre dois finais
propostos pelo autor: um mais tradicional (a donzela é salva pelo príncipe e eles vivem
“felizes para sempre”) e outro inusitado (a protagonista prefere um desfecho sem príncipe). A
professora então propôs que as crianças criassem um terceiro final. Poucas elaboraram um
novo desenlace convencional, sendo que a maioria das criações envolvia temas cotidianos,
tais como: sequestro, roubo, aposta de dinheiro em cassino, pobreza (tornar-se mendigo
depois de perder dinheiro), porte de armas, violência (alguém que empurrou a princesa janela
abaixo), polícia federal e fuga.
O sofrimento e o enfrentamento infantis são sintomas das formas contemporâneas
de inserção social postas às crianças. São igualmente indicativos da condição política infantil,
referida anteriormente. Logo, a criança hiperativa e desatenta — assim como a indisciplinada,
enfrentadora, com dificuldades e, sobretudo, a “sem jeito” — pode contestar expressivamente
as normas que determinam sua condição. O repúdio ao médico que a “entope de remédio”. O
questionamento direcionado ao professor que somente provoca o aluno e não o ajuda. A
proposição de uma forma alternativa de relação. A declaração de que copiar é irritante. O
delírio da imaginação. O ser inútil, inadaptado e louco, que fala consigo mesmo. Os
movimentos das mãos e dos pés mesmo sob o efeito “calmante” da Ritalina®. O dançar
dentro do espaço rígido da sala de aula. Há uma infinidade de possibilidades de contestar.
Como já anunciado no terceiro capítulo, as pequenas resistências infantis
anunciam o erro como uma nova condição. Segundo Mongin (1994), a infância oscila entre
184
CONSIDERAÇÕES FINAIS
funcionamento de um projeto de sociedade. Projeto esse que combina uma ordem ainda
disciplinar e um modelo empresarial.
Esse é, portanto, o ponto de onde emerge a questão da medicalização. O processo
histórico de captura do corpo como instrumento biopolítico — sendo o corpo individual
reestruturado em suas mínimas partes pela disciplina e o corpo-espécie (a população) tomado
para se construir sobre ele um conhecimento que visa ao seu governo — por relações de
poder-saber que têm a medicina como campo principal (mas articulado a outras técnicas e
saberes, como a estatística, a demografia, a sociologia, a antropologia, uma conjugação que
possibilita o surgimento da medicina social) faz surgir um discurso medicalizante. Isto é, um
discurso segundo o qual o corpo, a mente e os sujeitos são pensados como elementos
biológicos (e, posteriormente, neurológicos), sobre os quais é possível intervir a partir de um
saber e uma prática médica que visa ao bem-estar da população, à prevenção e eliminação de
males que ameaçam a sociedade e seu progresso. Estamos, aqui, no século XIX e início do
XX. Entretanto, a lógica do bem-estar prolonga-se até nossos tempos sofrendo modificações.
O poder atrativo da lógica médica de bem-estar instiga outros campos de saber e
até mesmo, em uma sociedade pós-disciplinar, discursos e dispositivos midiáticos (a difusão
das indicações diagnósticas do TDAH por meio de notícias ou comunicações via rede sociais,
por exemplo) e mercadológicos (como o caso dos estudos sobre as emoções) que alimentam a
imagem de um indivíduo ideal, empreendedor, flexível e adaptado, mas também controlado e
disciplinado em seus comportamentos e emoções, bem como os movimentos sociais que
lutam pelos direitos à diferença e à autonomia individual. O corpo objeto dessa lógica não é
mais aquele que funcionava em prol do progresso da nação (o que se reproduzia na imagem
da criança-aluno no Brasil do início do século XX), mas sim o sujeito responsável por si que,
na sua auto-reprodução, legitima os saberes e as técnicas que supostamente o levam a “ser
melhor do que ele já é” (ROSE, 2007) e que passam a abranger toda a existência humana
(CASTEL, 2011).
A medicalização, em sua articulação com o TDAH, havia sido tema de outro
estudo (BARBARINI, 2011; 2015), elaborado a partir de dados empíricos coletados em um
ambulatório universitário de psiquiatria infantil. Nas relações microssociais estabelecidas
nesse espaço, o bem-estar era comumente evocado, nas falas de psiquiatras e de pais, como
sinônimo da melhora proporcionada pelo tratamento (medicamentoso). Tratava-se de uma
conquista da adequação infantil, alcançada de modo gratificante. A verificação da melhora da
criança (isto é, o silenciamento dos sintomas e/ou o aprimoramento do desempenho escolar)
era o ponto final de um processo de negociações: ela legitimava a autoridade médica.
189
hegemônicas (constituídas por teorias científicas, práticas sociais ou práticas de si), dentro das
quais ela funciona em um determinado momento.
É importante notar, portanto, que, do encontro entre os modos contemporâneos de
inserção social e de constituição (subjetivação) da criança e as práticas psiquiátricas de
intervenção sobre aquelas identificadas como hiperativas e desatentas, emerge a possibilidade
de submissão da criança a um ideal de indivíduo e, ao mesmo tempo, de novas contingências,
colocando sob outras perspectivas as verdades que movem uma sociedade.
Nesse sentido, o intelectual e o pesquisador também desempenham um importante
papel ao se preocupar com o caráter sociopolítico das categorias médico-psicológicas. Aludo
à questão da ética na pesquisa em ciências sociais e humanas. Trata-se de um tema em voga
nas discussões atuais promovidas por órgãos de pesquisa e por pesquisadores, sobretudo no
que concernem aos instrumentos e pressupostos biomédicos utilizados por conselhos
superiores (como os Comitês de Ética em Pesquisa e o Conselho Nacional de Pesquisa) para
avaliar projetos desenvolvidos na área de humanas. Viégas, Harayama e Souza (2015) tratam
do tema centrando-se na questão dos riscos de pesquisa, que devem ser apontados como uma
parte do protocolo exigido por aqueles conselhos. Um grupo representativo de pesquisadores
da área — particularmente no campo da psicologia — vem afirmando que esses trabalhos não
apresentam riscos ou que apresentam riscos mínimos aos participantes. Entretanto, o caráter
inofensivo desse tipo de abordagem deve ser revisto, segundo os autores. Isso porque, nos
últimos anos, cresce significativamente o número de pesquisas em psicologia escolar e
educacional, desenvolvidas dentro de escolas públicas, que adotam um viés organicista.
Devido ao seu recorte, essa perspectiva situa a questão do fracasso escolar no
corpo do aluno (como decorrência de uma disfunção neurológica ou psicológica) e culpabiliza
crianças, pais e professores pela má escolarização. Essa visão acaba por se legitimar, porque
científica, fundamentando a elaboração de políticas públicas e discursos popularizados e
perpetuando desigualdades, estigmas e preconceitos social e historicamente originados.
Ademais, fazendo uso desse status de “risco zero” das ciências sociais e humanas que se
forma no discurso acadêmico, pesquisadores de psicologia, por exemplo, adentram as escolas
a fim de aplicar testes, como o SNAP-IV para o TDAH, construídos no campo biomédico.
Sua finalidade é elaborar prevalências que instituem a necessidade de se intervir médica,
terapêutica e/ou medicamentosamente nas condições de fracasso escolar. Como efeito dessa
necessidade, a culpabilização da família, da escola e do indivíduo ratifica a realização de
pesquisas intervencionistas no meio escolar. Apreende-se do alerta feito pelos autores — e
que deve se estender a todas as ciências do homem, no sentido foucaultiano — a
192
capaz de oferecer soluções aos problemas locais. É interessante notar que, ao anunciar meu
objetivo de compreender as relações estabelecidas no meio escolar, sobretudo quando
relativas ao TDAH, grande parte dos professores pressupunha que eu era uma psicóloga ou
estagiária em pedagogia. Porém, mesmo aqueles que, diferenciando o propósito investigativo
de uma intervenção pedagógica ou psicológica, por vezes demandavam meu auxílio para
analisar uma situação pontual, incluindo seu próprio desempenho em sala de aula. Outros
viam a possibilidade de compartilhar reflexões e propor novos temas de pesquisa.
Em vista dessas condições, como a sociologia pode contribuir para os estudos, em
diversos campos, dos transtornos mentais infantis ligados à aprendizagem e, em última
instância, às formas de inserção social da criança, ou mesmo da saúde mental em geral? Esse
tipo de proposta tem se multiplicado nos últimos anos, sobretudo no que concerne ao tema do
TDAH, desenvolvido de maneira crítica em áreas destacadas como a psicologia e a pedagogia
(avaliação, políticas educacionais, entre outras), adotando um olhar “social”, mas nem sempre
sociológico. Polêmicas também se edificam. É o caso das discussões que questionam a ética e
o emprego de padrões científicos rigorosos em pesquisas financiadas por laboratórios
farmacêuticos, cujos resultados pretendem validar o TDAH e suas formas de tratamento —
principalmente a medicamentosa — e estabelecer prevalências.
Um conjunto de estudos interdisciplinares e de relatos de experiência cotidiana
tem buscado compreender as particularidades e a extensão do fenômeno do TDAH na
sociedade brasileira e no mundo. Porém, muitos caminhos são possíveis. Cito algumas
possibilidades.
Faz-se necessária uma comparação entre regiões brasileiras a fim de verificar a
importância do contexto social e das formas de socialização infantil no encaminhamento de
crianças a especialistas e, sobretudo, na construção do significado o diagnóstico, do laudo e
do tratamento médico. O intuito de tal percurso investigativo seria analisar se a
permeabilidade dos saberes técnico-científicos, com destaque à psiquiatria e às neurociências,
ocorre em todo tipo de conjuntura social e, em caso positivo, se o faz de modo homogêneo.
A análise da conjuntura social associada à difusão do TDAH no Brasil refere-se
também a uma pesquisa aprofundada das leis e dos projetos de lei que enfocam o TDAH ou
outros transtornos de aprendizagem. Visto que o campo jurídico tem desempenhado um papel
cada vez mais importante nas ações civis em torno do TDAH e da inserção social infantil,
esse tipo de investigação torna-se relevante. No âmbito das políticas públicas escolares,
articulam-se novos projetos (sobretudo aqueles voltados à inclusão, diversos no decorrer da
história: educação obrigatória, inclusão de portadores de necessidades especiais, entre outros)
194
e novas exigências por adaptação estrutural do estabelecimento escolar e das funções de seus
funcionários.
Interessaria, finalmente, uma análise dos pontos de cruzamento dos sistemas
brasileiros de saúde mental infantil e de educação, bem como um estudo acerca da articulação
entre seus profissionais e os demais sujeitos envolvidos, sobretudo a criança. Em um projeto
subsequente, almejo abarcar esta perspectiva. Trata-se de uma proposta que visa a conhecer e
analisar uma rede municipal de demandas e cuidados formada em torno da ideia de
“agitação”, relacionada aos transtornos infantis de aprendizagem e de conduta. Buscarei
integrar-me a serviços de saúde mental, originados pelo movimento de Reforma
Psiquiátrica97, em que predominam abordagens alternativas aos pressupostos psiquiátricos
biomédicos definidores do TDAH. O projeto também intenciona compreender, do ponto de
vista social e empírico, as trajetórias sociais, escolares e médicas de crianças e famílias em
relação à “agitação”. Do ponto de vista administrativo e político, pretenderá apreender as
políticas públicas que articulam saúde mental infantil e educação e suas implicações nos
contextos estudados em uma região metropolitana do estado de São Paulo.
97
O movimento de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos iniciou-se no Brasil em 1967, propondo a
integração entre saúde mental e saúde pública e a criação de serviços de modalidade comunitária (modelo
preventivo-comunitário). Consolidou-se, porém, apenas no fim da década de 70, quando da efetivação da
Reforma Psiquiátrica no país. Segundo Amarante (1995, p. 494), o projeto propunha não somente extinguir os
hospitais psiquiátricos e as técnicas arcaicas de confinamento e de tratamento da doença como uma entidade
abstrata (o que causou uma tensão na relação do movimento com a psiquiatria tradicional e com setores privados
ligados a hospícios), mas principalmente tratar o paciente como sujeito de direito “em sua existência e em
relação com suas condições concretas de vida”.
195
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APÊNDICE A
Detalhamento metodológico
O material de base desta tese foi coletado por meio de metodologia qualitativa,
envolvendo pesquisa bibliográfica98 e pesquisa de campo. A propósito da problematização
sociológica delimitada para a presente tese de doutorado, esse tipo de metodologia é mais
adequado, pois permite o contato direto com a realidade vivida cotidianamente por sujeitos
envolvidos com o objeto de estudo, os discursos que o perpassam e as instituições que os
sustentam. Em poucas palavras, a pesquisa qualitativa permite que, por meio da interação
entre pesquisador e participantes da pesquisa, identifiquem-se, descrevam-se e analisem-se as
relações, as expectativas e as representações referentes a um determinado acontecimento ou
fenômeno social, no caso, a inserção social da criança, a intervenção médica e o TDAH.
Campo é “na pesquisa qualitativa, o recorte espacial que corresponde à
abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto de
investigação” (MINAYO, 2000, p. 105). Em outra pesquisa (BARBARINI, 2011; 2015), um
ambulatório de psiquiatria infantil constituiu o campo privilegiado para a investigação
sociológica do TDAH infantil. Lá, ouviram-se crianças diagnosticadas, seus pais ou
responsáveis legais e profissionais de saúde, sendo que os professores e as escolas foram
mencionadas apenas indiretamente. Além disso, a instituição escolar foi constantemente
indicada como espaço principal de encaminhamento de crianças com “dificuldades de
aprendizagem” a especialistas. Em vista de uma lacuna sentida em meus estudos sobre o
TDAH, a pesquisa de campo em nível de doutorado foi desenvolvida em estabelecimentos
escolares localizados nas cidades de Campinas (sede da pesquisa) e de Moji Mirim (local de
residência da pesquisadora), no interior do estado de São Paulo. As visitas ocorreram em dois
momentos: entre março de 2013 e julho de 2014 e entre junho e dezembro de 2015. No
primeiro momento, as observações eram feitas uma vez por semana. Já no segundo, foram
marcados encontros com professores e/ou crianças a fim de apresentar dados e discuti-los com
os participantes da pesquisa.
Os estabelecimentos escolares foram selecionados conforme critérios de
conveniência (a facilidade de deslocamento urbano e a existência de contato prévio com
membros de alguns estabelecimentos), de receptividade (abertura dos diretores,
98
Privilegiou-se o levantamento de obras, teses, dissertações, artigos e palestras de diferentes campos do
conhecimento, tais como ciências sociais, filosofia, história, saúde pública e coletiva, pedagogia, psicologia e
medicina. Fez-se uso de indicações contidas em textos lidos e de ferramentas virtuais (páginas de busca, páginas
de bibliotecas, redes sociais) para a procura de referências que pudessem ser úteis à fundamentação do arcabouço
conceitual e teórico da pesquisa de campo e da tese.
213
99
Em todas as atividades de campo, os objetivos da pesquisa foram explicitados, sendo que somente
participaram as pessoas que compreenderam e aceitaram as explicações e que se sentiram confortáveis para
fornecer informações e expressar suas reflexões. Contou-se com o respaldo institucional para a execução de cada
proposta. Os diretores escolares autorizaram a realização de observações em sala e de entrevistas com
professores, coordenadores pedagógicos, alunos e/ou pais e apontaram os limites e as “liberdades” que
deveriam/poderiam ser adotados em cada espaço. Dessa forma, esclarece-se que não houve qualquer conflito de
interesses e que todos os participantes, informações e dilemas pessoais e institucionais foram tratados com
respeito e ética, sobretudo no que diz respeito ao anonimato e à privacidade.
214
pontos: a descrição da sala de aula e o mapeamento das posições e deslocamentos dos alunos,
com foco nos alunos que receberam o diagnóstico de TDAH ou a hipótese diagnóstica; a
apreensão das relações estabelecidas entre as crianças e entre as crianças e os professores e
dos acontecimentos marcantes ou interessantes que envolvem a(s) criança(s) em quem se
centra a observação; a apreensão das particularidades dessa(s) criança(s) e utilizá-las para
direcionar as conversas não formais com ela ou possíveis entrevistas (quando possível,
conversar com o(a) professor(a) sobre a turma e sobre o(s) aluno(s) que se observa(m), a fim
de compreender seus contextos sociais.
Já a entrevista semiestruturada é uma técnica por meio da qual o pesquisador
propõe uma conversa com alguns participantes selecionados a fim de obter informações
primárias e secundárias referentes ao seu objeto de pesquisa. Por se tratar de uma estratégia
que combina perguntas fechadas e abertas, é fundamental a elaboração de roteiros de
entrevista. O roteiro é, segundo Minayo (2000, p. 99), um “instrumento para orientar uma
‘conversa com finalidade’ que é a entrevista, [por isso] ele deve ser o facilitador de abertura,
de ampliação e de aprofundamento da comunicação”. É um guia que, portanto, “não pode
prever todas as situações e condições de trabalho de campo” (MINAYO, 2000, p. 100). A
elaboração de um roteiro para entrevistas semiestruturadas tem o objetivo, conforme a
afirmação de Alves e Silva (1992, p. 63), de “definir núcleos de interesse do pesquisador, que
têm vinculação direta aos pressupostos teóricos e contatos prévios com a realidade sob
estudo”, por meio de “uma formulação flexível das questões, cuja seqüência e minuciosidade
ficarão por conta do discurso dos sujeitos e da dinâmica que flui naturalmente no momento
em que entrevistador e entrevistado se defrontam [...]” (ALVES; SILVA, 1992, p. 64).
Os roteiros utilizados na pesquisa de campo distinguem-se entre roteiros de
entrevista coletiva e roteiros de entrevista com crianças. O primeiro agregava orientações e
questões como: quais são os diferentes pontos de vista sobre as popularmente chamadas
“dificuldades de aprendizagem”, em especial o déficit de atenção e hiperatividade e das
experiências que extrapolam a definição psiquiátrica do TDAH?; o que significa
“desatenção”, “déficit de atenção”, “agitação”, “hiperatividade”, “dificuldade de
aprendizagem”?; se houver alunos desatentos e agitados em sala, como se comportam, como
se relacionam com os professores e com os colegas?; o que essas características significam
para os professores?; o que é feito em sala de aula ou pela coordenação pedagógica?; quais
são os procedimentos quando um professor precisa de ajuda?
No roteiro dedicado às crianças, privilegiaram-se três grupos de questões: 1) a
explicação a pesquisa conforme uma linguagem simples e a justificação da escolha da criança;
216
100
Os pais e os responsáveis legais não foram privilegiados como sujeitos de pesquisa, uma vez que sua presença
nos estabelecimentos escolares é restrita. Aqueles que puderam ser contatados o foram por intermédio da escola.
101
A realização da pesquisa em tal escola foi autorizada pelo então diretor do Departamento de Educação da
Prefeitura Municipal de Moji Mirim, em 28 de dezembro de 2012, sob o Protocolo nº 15654/2012.
217
direto com as crianças da escola. A escolha dessa abordagem não ocorreu previamente, uma
vez que foi a diretora escolar quem propôs a apresentação da pesquisa e a conversa com as
professoras e professores durante uma reunião pedagógica.
Segundo Minayo (2000, p. 129), a técnica qualitativa de grupo de discussão
caracteriza-se pelo estabelecimento de uma conversa em reuniões com um pequeno grupo de
informantes (entre seis e doze pessoas), pela presença de um animador que intervém na
comunicação buscando focalizar e aprofundar a discussão e pela ênfase dada às opiniões,
relevâncias e valores dos entrevistados. Diferencia-se, assim, da observação ou da entrevista
que focaliza a apreensão de relações e de comportamentos. Por isso, ela complementa a
observação participativa e as entrevistas individuais. Nas experiências de campo aqui
relatadas, contudo, as “discussões em grupo” não tiveram esse caráter definido por Minayo.
Em primeiro lugar, foi a diretora da escola que propôs a discussão com o grupo de professores
em reunião pedagógica. Em segundo lugar, buscou-se realizar uma conversa orientada por um
roteiro de entrevista semiestruturada e por um texto produzido pela pesquisadora (contendo
diferentes pontos de vista acerca do TDAH). Sua finalidade era permitir aos entrevistados
construírem suas próprias reflexões e compartilharem suas experiências sobre o tema.
Entende-se, portanto, que a atividade descrita acima se caracteriza mais como uma entrevista
semiestruturada coletiva do que como um grupo de discussão ou um grupo focal. A conversa
foi gravada e, posteriormente, transcrita. Também foram feitas anotações em diário de campo.
A execução desse tipo de atividade repetiu-se no colégio privado de Moji
Mirim102 e no programa de educação não formal de Campinas103, sendo fundamental para o
início das observações participativas, das entrevistas semiestruturadas individuais e das
conversas não formais. Na escola estadual de ensino fundamental ciclo I de Campinas, estas
atividades começaram após uma conversa com a diretora e com uma de suas professoras104,
com quem se manteve contato ao longo de todo o campo. Já na escola municipal de ensino
102
Conforme autorização verbal cedida por seu diretor escolar. A atividade foi realizada em 10 de setembro de
2013 também em uma reunião pedagógica que contava com cerca de 20 professoras e uma coordenadora
pedagógica. Essa foi a única atividade executada no referido colégio, devido à opção de se limitar o
aprofundamento das observações a estabelecimentos públicos de ensino.
103
Após o contato inicial com a então coordenadora pedagógica do programa via e-mail, foi solicitado o envio
de alguns documentos para a formalização do pedido de realização de pesquisa de campo nas instalações do
programa. Concedeu-se a autorização em 01 de abril de 2013, conforme a Deliberação CONSPED nº 028/2013.
A pesquisa foi apresentada às professoras do período vespertino e logo começaram as observações e conversas.
Em 2014, renovou-se a autorização para execução da pesquisa e as atividades de campo nesse programa
iniciaram-se com uma entrevista semiestruturada coletiva com os profissionais do período da manhã. Cerca de
10 professores e professoras estavam presentes. A partir de então, principiou-se a execução das observações em
algumas salas do período, que acolhiam um número maior de crianças se comparado ao turno da tarde.
104
Autorização verbal de sua diretora para a execução da pesquisa no estabelecimento e indicação feita pela
mesma diretora da possibilidade de entrevistar e acompanhar as aulas de uma professora do terceiro ano do
ensino fundamental.
218
105
O contato foi estabelecido diretamente com uma de suas professoras, por intermédio de outra docente. Por e-
mail, aquela professora sinalizou a existência de três alunos (dois meninos e uma menina) com diagnóstico ou
hipótese diagnóstica de TDAH e convidou-nos a observá-los em sala de aula.
219
106
“From a sociological perspective, socialization is not only a matter of adaptation and internalization but also a
process of appropriation, reinvention, and reproduction”.
221
107
A análise arqueológica não se limita ao discurso, embora este seja seu objetivo, e busca estabelecer relações
com acontecimentos técnicos, econômicos, sociais ou políticos (MACHADO, 1974). No trajeto intelectual de
222
Foucault, a arqueologia é complementada pela genealogia, análise que permite “um entendimento das práticas
sociais portador de uma inteligibilidade radicalmente diferente daquela disponível aos atores” (RABINOW;
DREYFUS, 1995, p. xxiii).
223
APÊNDICE B
Levantamento de dissertações e teses acerca do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH)108
Acervo da USP
Nº de Nº de
Áreas de conhecimento Referências
dissertações teses
[1978 e 1979]
1970-1979
comportamento; Neurologia;
hiperatividade; indisciplina;
Neuropsicologia; Psicologia; 12 6
metilfenidato; processos
Psicologia do desenvolvi-
cognitivos; psicodiagnóstico;
mento; Psicologia educacional;
psicogênese; queixa escolar;
Psiquiatria; Saúde mental
TDAH; testes neuropsicológicos;
transtorno de aprendizagem;
transtorno de falta de atenção
com hiperatividade
108
A busca foi feita em outubro de 2012 e em junho de 2015. Ela incluiu as pesquisas feitas na página da
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e nas bases de dados de algumas universidades
brasileiras, entre elas a SIBiUSP (Universidade de São Paulo), Base Acervus e Biblioteca Digital (sendo estas
últimas da Universidade Estadual de Campinas). As palavras-chave inseridas foram: “distúrbio da falta de
atenção”, “hipercinético”, “hiperatividade”, “transtorno de déficit de atenção com hiperatividade”, “TDAH”,
“impulsividade”, “disfunção cerebral mínima” e “metilfenidato”. Somente com a entrada “TDAH” foram
encontradas 193 referências na BDTD, entre 2002 e 2015, em 25 universidades em todas as regiões do país
(principalmente no Sul e no Sudeste), destacando-se com os maiores números de produções, em ordem
descrente, a UFRGS, a USP e a UNICAMP. Estas duas foram privilegiadas devido ao pioneirismo dos trabalhos
lá desenvolvidos.
225
Acervo da UNICAMP
Nº de Nº de
Áreas de conhecimento Referências
dissertações teses
1970-1979
-- -- 0 0
[1984-1985]
1980-1989
Distúrbio de aprendizagem;
Educação; Medicina;
genética do comportamento; 1 1
Psicologia educacional
síndrome hipercinética
109
Até maio de 2015. O mesmo para a segunda tabela.
226
Aprendizagem/dificuldade de
aprendizagem; aspectos
emocionais; aspectos sociais;
Ciências médicas; biologização; comorbidade;
2010-2015
ANEXO
Critérios diagnósticos do TDAH no DSM-V
228
229