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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

TATIANA DE ANDRADE BARBARINI

A CONDIÇÃO DA CRIANÇA HIPERATIVA E DESATENTA:

UM ESTUDO SOBRE A INTERVENÇÃO PSIQUIÁTRICA NAS

FORMAS CONTEMPORÂNEAS DE INSERÇÃO SOCIAL INFANTIL

CAMPINAS
2016
Agência(s) de fomento e nº(s) de processo(s): FAPESP, 2012/20776-0; CAPES

Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Barbarini, Tatiana de Andrade, 1984-


B232c BarA condição da criança hiperativa e desatenta : um estudo sobre a
intervenção psiquiátrica nas formas contemporâneas de inserção social infantil
/ Tatiana de Andrade Barbarini. – Campinas, SP : [s.n.], 2016.

BarOrientador: Maria Lygia Quartim de Moraes.


BarTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Bar1. Crianças. 2. Socialização. 3. Transtorno do déficit de atenção com


hiperatividade. 4. Medicalização. I. Moraes, Maria Lygia Quartim de,1943-. II.
Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: The condition of hyperactive-inattentive children : a study on


psychiatric intervention in contemporary forms of child social embodiment
Palavras-chave em inglês:
Children
Socialization
Attention deficit disorder with hyperactivity
Medicalization
Área de concentração: Sociologia
Titulação: Doutora em Sociologia
Banca examinadora:
Maria Lygia Quartim de Moraes [Orientador]
Carlos Roberto Soares Freire de Rivorêdo
Eunice Nakamura
Marcos Cezar de Freitas
Gabriela Guarnieri de Campos Tebet
Data de defesa: 10-03-2016
Programa de Pós-Graduação: Sociologia

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em 10 de março de 2016,
considerou a candidata Tatiana de Andrade Barbarini aprovada.

Prof.ª Dr.ª Maria Lygia Quartim de Moraes


Prof. Dr. Carlos Roberto Soares Freire de Rivorêdo
Prof.ª Dr.ª Eunice Nakamura
Prof. Dr. Marcos Cezar de Freitas
Prof.ª Dr.ª Gabriela Guarnieri de Campos Tebet

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no processo de


vida acadêmica da aluna.
A todas as pessoas que possibilitaram a concretização deste trabalho.
AGRADECIMENTOS

A produção de uma tese de doutorado é um trabalho solitário e, ao mesmo tempo,


impossível de ser concretizado sem a colaboração de outras pessoas. Por isso, agradeço:
À minha família, Rafa, Eliane, Newton e Leo, pelo apoio e compreensão. A meus
amigos pelas conversas, sugestões e incentivo nos momentos difíceis. Especialmente a Paola,
Dudu, Lidi e Camila.
Aos professores e às professoras: Maria Lygia Quartim de Moraes, minha
orientadora, por permitir reconhecer meus erros e potencialidades; Carlos Rivorêdo, que
acompanha meu trabalho há alguns anos e que tanto contribuiu para o avanço de minhas
reflexões; Nelson Filice de Barros, pelo contato com a medicina e com as ciências sociais
aplicadas à saúde; Eunice Nakamura, Gabriela Guarnieri de Campos Tebet, Marcos Cezar de
Freitas, Maria Filomena Gregori, que muito colaboraram com sugestões e orientações valiosas
nas bancas examinadoras. Igualmente aos professores suplentes pela disponibilidade e auxílio.
Agradeço especialmente ao professor Alain Ehrenberg e a todos os pesquisadores do Cermes3
(Paris, França) pelo acolhimento durante meu estágio de pesquisa, pelo compartilhamento de
ideias e de questões e pelas sugestões que tanto contribuíram com meu trabalho.
Aos funcionários da secretaria, aos coordenadores e aos docentes do programa de
Pós-graduação em Sociologia e à direção do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas pelas orientações burocráticas, concessões e a
oportunidade de desenvolver mais um projeto vinculado ao instituto.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo1 pelo financiamento
majoritário do projeto de pesquisa, processo FAPESP nº 2012/20776-0, e à Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior pela subvenção durante os dez meses iniciais
no curso de doutorado.
Aos diretores e diretoras, coordenadoras pedagógicas, professores e professoras
dos estabelecimentos de ensino visitados durante a pesquisa de campo. Aos pais e
responsáveis legais que colaboraram com o levantamento de dados. E, acima de tudo, às
crianças que tanto me ensinaram ao longo desse percurso de amadurecimento intelectual,
profissional e pessoal que é a construção da investigação científica e do texto final de tese.

1
As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da
autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
RESUMO

As crianças formam um grupo social particular. Ao mesmo tempo em que elas


dependem dos cuidados adultos, delas espera-se o desenvolvimento de uma autonomia
relativa, um “desabrochar” próprio que lhes permita percorrer seu caminho rumo à
independência e ao exercício da cidadania. A representação social da criança enquanto sujeito
de direito, mobilizada e concretizada na elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente,
funda-se na concepção de infância como uma fase de desenvolvimento físico, mental, moral,
espiritual e social, vulnerável a riscos os mais diversos. Direitos especiais são-lhe assim
concedidos a fim de prezar pela liberdade e dignidade infantil. Ademais, as crianças assumem
outros papéis sociais na contemporaneidade, destacadamente o de membro de uma família e o
de aluna de uma escola. Instituições essas ditas em crise. Uma crise que se conjuga a um mal-
estar que aflige seus membros. Professores julgam-se incapazes de lidar com seu “novo
público”. Pais vivem as mudanças sociais e históricas dos arranjos familiares e disputam com
profissionais escolares suas responsabilidades em relação aos filhos. Crianças são vulneráveis
às mazelas sociais, aos desejos narcísicos dos adultos e, ao mesmo tempo, são incitadas à
autonomia em um contexto de crise de autoridade de seus tutores. Tais situações de mal-estar
adoecem professores e se manifestam como inquietude nos comportamentos e experiências
infantis em sala de aula. Crianças hiperativas, deprimidas e ansiosas surgem então na cena
social. A presente tese de doutorado tem como objetivo principal analisar sociologicamente a
inserção social da criança brasileira e a intervenção médica naquelas identificadas, no espaço
escolar, como hiperativas e desatentas, pois portadoras do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH). Trata-se de uma condição clinicamente definida como um transtorno
do neurodesenvolvimento hipoteticamente oriundo de falhas em neurotransmissores
responsáveis pela atenção, concentração e controle individual das emoções e dos
comportamentos. Para tanto, procedeu-se a uma pesquisa qualitativa composta pelas técnicas
de observação participativa e de entrevistas semiestruturadas. Quatro escolas de ensino
fundamental (de primeiro a nono ano), municipais, estaduais e privada de Campinas e Moji
Mirim (SP), foram visitadas entre 2013 e 2015, bem como um programa de educação não
formal campineiro. Professores, coordenadoras pedagógicas e alunos (entre cinco e treze anos
de idade) desses estabelecimentos de ensino compuseram o grupo observado e entrevistado
em campo de pesquisa. Acompanharam-se mais atentamente quinzes crianças (doze meninos
e três meninas), dentre as quais onze meninos e uma menina foram indicados pelas equipes
escolares como portadores de TDAH. As discussões apoiaram-se em um arcabouço teórico de
influência foucaultiana e de princípios da Sociologia da Infância. O pressuposto que orienta o
desenvolvimento desta proposta é a socialização da criança (com TDAH) como um problema
político de constituição de um sujeito adaptado a um determinado projeto de sociedade.
Assim, a intervenção técnica-científica na criança hiperativa e desatenta e na escola, uma
instituição social básica à sua socialização, visa à execução de tal projeto. O TDAH é seu
instrumento. Trata-se igualmente de uma problemática constituída pela possibilidade de, ante
ao discurso da criança hiperativa e desatenta, colocar em questão as verdades hegemônicas
sobre sua condição.

Palavras-chave: crianças, socialização, crise escolar, TDAH, medicalização.


ABSTRACT

Children are part of a particular social group. They are both dependent on adult
care and expected to develop a relative autonomy, in order to follow a proper path into
independence and citizenship. Social representation of children as subjects of rights is based
on a conception of childhood defined, according to the Brazilian Child and Youth Statute, as a
state of physical, mental, moral, spiritual, and social development, susceptible of different
risks. Due to this vulnerable condition, special rights aim to guarantee child liberty and
dignity. Furthermore, children play other contemporary social roles, such as being a family
member or a student at school. But family and school are institutions “in crisis”, where unease
circumstances afflict their members. Teachers feel unable to deal with a “new public”. Parents
experience social-historical changes in familiar settings and dispute children care
responsibilities with school professionals. Children confront social vulnerability, adult
narcissistic desires, and, at the same time, they are incited to act like autonomous human
beings facing their guardians’ lack of authority. These unease contingencies sicken teachers
and disclose restless child experiences and behaviors in the classroom. Therefore,
hyperactive, depressed, and anxious children appear on the social scene. This Doctoral
Dissertation aims to analyze, through a sociological perspective, Brazilian child social
embodiment and medical intervention on children identified in school settings as hyperactive
and inattentive students, as Attention Deficit Hyperactive Disorder (ADHD) bearers. It is a
clinical condition defined as a neurodevelopmental disorder hypothetically caused by
neurotransmitters dysfunctions, responsible for controlling attention, emotions, and behaviors.
In order to accomplish the thesis’ proposals, we conducted a qualitative research composed by
participant observation and semi-structured-interviews techniques. We visited four municipal,
state, and private elementary schools, located in Campinas and Moji Mirim (SP), from 2013
to 2015, as well as a “non-formal” educational program in Campinas. Teachers, pedagogical
coordinators, and 5-to-13-years-old students formed the group of participants observed and
interviewed in field. We followed closely fifteen children (12 boys and 3 girls), among which
eleven boys and one girl were designated by school professionals as ADHD bearers.
Discussions and analysis are based on Foucauldian theories and Sociology of Childhood’s
perspectives. Child socialization as a political problem of individual adaptation to a societal
project is the assumed investigation postulate. Technical-scientific intervention on
hyperactive-inattentive children and school, a basic social institution responsible for child
socialization, aims to perform that project. ADHD is its tool. The problem is also constituted
by the possibility to, dealing with hyperactive-inattentive children’s discourse, distrust
hegemonic truths about their condition.

Keywords: children, socialization, school crisis, ADHD, medicalization.


LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABDA Associação Brasileira do Déficit de Atenção


ABP Associação Brasileira de Psiquiatria
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
APA Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association)
CID Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde
CMP Centro médico-psicológico (Centre médico-psychologique)
CMPP Centro médico-psico-pedagógico (Centre médico-psycho-pédagogique)
DCM Disfunção Cerebral Mínima
DDA Distúrbio de Déficit de Atenção
DSM Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders)
ECA Estatuto da Criança e do Adolescente
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
JIPE/INCB Junta Internacional de Fiscalização de Narcóticos/International Narcotics Control Board
OMS Organização Mundial da Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
SMS Secretaria municipal de saúde
SNGPC Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados
SUS Sistema Único de Saúde
TDAH/ADHD Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade/Attention-Deficit/Hyperactivity Disorder
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNICEF Children’s Rights & Emergency Relief Organization
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO

Introdução ............................................................................................................................... 12

Capítulo 1. A inserção social da criança brasileira: um panorama das condições sociais


de seu reconhecimento como membro da sociedade ........................................................... 20
1.1. Crianças brasileiras e suas vulnerabilidades...................................................................... 21
1.2. Constituindo a nova família contemporânea e sua criança................................................ 26
Mudanças e arranjos .......................................................................................................... 27
A culpabilização da família desestruturada ....................................................................... 29
Entre a criança autônoma e a “não infância”..................................................................... 36
1.3. A criança-aluno na escola contemporânea brasileira ........................................................ 44
A inserção escolar infantil ................................................................................................. 45
É preciso adaptar-se e encaixar-se ..................................................................................... 54
1.4. Considerações sobre a criança hiperativa e desatenta ....................................................... 61

Capítulo 2. “Qual é a função da escola?”: uma análise da crise escolar e da intervenção


especializada no funcionamento social ................................................................................. 66
2.1. As condições da crise escolar ............................................................................................ 67
2.2. Uma crise de autoridade? Hierarquias e diálogos entre professores e alunos ................... 73
2.3. Conhecimentos pedagógicos e saberes técnico-científicos ............................................... 80
Desenvolvimento, desvio e categorias clínicas ................................................................. 81
O vocabulário do TDAH ................................................................................................... 87
Professores desabilitados e a legitimidade do discurso psiquiátrico ................................. 96
2.4. Demandas escolares por intervenção especializada ........................................................ 101

Capítulo 3. Os casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade ................. 107


3.1. Descrição de casos de TDAH .......................................................................................... 107
“Ele tem a inteligência dele, a gente sabe que ele é capaz, mas ele não controla” ......... 108
“Ele tem laudo e presta atenção nas aulas” ..................................................................... 113
“Ele não tem nada, é a mãe que procura um diagnóstico” .............................................. 116
3.2. Procedimentos de encaminhamento e redes de assistência ............................................. 118
3.3. O uso de medicamentos e as terapias .............................................................................. 125
3.4. Intervenção como direito ................................................................................................. 133
3.5. Uma nova condição: as pequenas resistências infantis ................................................... 139

Capítulo 4. Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: o mecanismo


sociopolítico da categoria clínica e a condição da criança hiperativa e desatenta .......... 144
4.1. O Manual diagnóstico, o TDAH e seus paradigmas ....................................................... 145
Entre transtorno mental e diferença desvantajosa tratável .............................................. 146
O cérebro como motor da vida humana .......................................................................... 155
4.2. A crise psiquiátrica: da clínica aos biomarcadores e a indústria do mal-estar e do risco........... 161
4.3. Medicalização: o modo de funcionamento da sociedade e a socialização infantil.......... 167
Um termo e uma prática atuais ........................................................................................ 168
O mecanismo do TDAH e sua condição sociopolítica .................................................... 172
A retomada do erro e a condição da criança hiperativa e desatenta ................................ 180

Considerações finais: a possibilidade de novas políticas da verdade............................... 185

Referências bibliográficas .................................................................................................... 195

Apêndices:
Apêndice A: Detalhamento metodológico ............................................................................. 212
Apêndice B: Levantamento de dissertações e teses acerca do Transtorno de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (TDAH)......................................................................................... 224

Anexo: Critérios diagnósticos do TDAH no DSM-V......................................................... 227


12

INTRODUÇÃO

O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) resulta de uma


descoberta científica? O TDAH é definido clinicamente como um transtorno do
neurodesenvolvimento infantil oriundo de possíveis falhas em neurotransmissores
responsáveis pela atenção, concentração e controle individual das emoções e dos
comportamentos. O efeito dessas falhas (chamadas, no campo psiquiátrico, de disfunções),
combinado com prejuízos secundários provocados pelo ambiente, é a manifestação dos
sintomas disruptivos ditos internalizantes e externalizantes: a desatenção, no primeiro caso, e
a hiperatividade e a impulsividade, no segundo2.
Tais sintomas são identificados e diferenciados de comportamentos normais a
partir da verificação de que sua manifestação é intensa, persistente e prejudicial ao
funcionamento social, acadêmico e profissional de uma pessoa (APA, 1980; 1987; 2000a;
2000b; 20133). Sendo abordados conforme uma perspectiva centrada no desenvolvimento
cognitivo e neurológico, tratam-se os sintomas do TDAH por meio de terapias diversas de
restabelecimento das conexões neuronais normais e de modificação comportamental, dentre
as quais o tratamento medicamentoso com cloridrato de metilfenidato (mais conhecido por
seus nomes comerciais: Ritalina® e Concerta®) ganha bastante evidência. De acordo com a
quinta e mais recente edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais –
DSM,

O TDAH é um transtorno do neurodesenvolvimento definido por níveis prejudiciais


de desatenção, desorganização e/ou hiperatividade-impulsividade. A desatenção e a
desorganização acarretam a impossibilidade de se concentrar em tarefas, o parecer
não ouvir e a perda de materiais em níveis incompatíveis com a idade ou com o
nível de desenvolvimento. A hiperatividade-impulsividade acarreta agitação,
inquietação, impossibilidade de ficar sentado, intromissão nas atividades alheias e
incapacidade de esperar — sintomas excessivos para a idade ou para o nível de
desenvolvimento. (APA, 2013, p. 32. Grifos nossos. Tradução nossa).
Essa categoria foi descrita pela primeira vez no DSM nos anos 1980, em sua
primeira seção dedicada exclusivamente à infância e à adolescência. Entretanto, até meados
da década de 1990, o TDAH era pouco conhecido no Brasil. As crianças agitadas, as
distraídas e aquelas que não aprendiam os conteúdos transmitidos em sala de aula eram
geralmente reconhecidas como “preguiçosas”, “desinteressadas”, “burras”, “estranhas” ou
“inquietas”. Já nos anos 2000, o TDAH tornou-se uma das categorias diagnósticas mais
evocadas e debatidas em diferentes campos de saber e espaços sociais cotidianos,
2
Para conhecimento dos critérios diagnósticos para o TDAH apresentados no DSM-V, ver o Anexo desta tese.
3
Nas referências bibliográficas apresentadas no corpo do texto, serão informadas as datas das edições
consultadas. As datas originais podem ser verificadas nas referências completas finais.
13

principalmente o escolar, onde se realiza mais comumente a identificação dos sintomas. A


partir de então, difundiram-se pressupostos e critérios científicos4 ditos capazes de distinguir,
com o auxílio da experiência clínica de um especialista, o mau desempenho escolar causado
por disfunções neurológicas daquele originado por causas sociais (carências familiares,
precarização dos sistemas de ensino etc.) ou pelo simples desinteresse individual.
No decorrer dos quarenta anos de vigência do TDAH, sobretudo nos Estados
Unidos, observaram-se mudanças em sua definição e difusão, incluindo o aumento
progressivo de sua prevalência. Segundo o DSM-V (APA, 2013), 5% das crianças de
diferentes culturas são afetadas pelo referido transtorno. No Brasil, a variação é, contudo,
maior: entre 5,8 e 17,1% em escolares, de acordo com estudos brasileiros encontrados por
Pastura, Mattos e Araújo (2007)5. A amplitude das taxas de prevalência do TDAH infantil é
igualmente registrada em outros países por pesquisas internacionais (POLANCZYK et al.,
2007). O prolongamento do tempo de manifestação de seus sintomas (se, no início, o TDAH
era um transtorno mental exclusivamente infantil, hoje ele já é caracterizado como uma
condição para a vida toda, a lifespan condition, isto é, sem cura) e a adoção de seus critérios
diagnósticos por psiquiatras de outros tantos países também são mudanças observadas.
Essa nova configuração — conforme a qual o transtorno pode ser definido como
uma condição “universal”, já que entendida como originária de um substrato neurológico
comum a todos os corpos humanos — permitiu a Conrad e Bergey (2014) identificar o TDAH
como um fenômeno social em expansão global. Ao contrário de Polanczyk e colegas (2007),
que rejeitam a hipótese de que o referido transtorno é uma construção cultural, Conrad e
Bergey enfatizam a necessidade de assumir o que chamam de “globalização do TDAH” como
um objeto de investigação importante à sociologia e aos estudos sobre medicalização no
mundo.
Os fenômenos de adoção da categoria TDAH pela psiquiatria brasileira, em sua
vertente dominante, e de aumento do número de crianças diagnosticadas e tratadas no país
coincidem com um contexto em que as crianças tornam-se sujeitos de direito e indivíduos6 em

4
Utiliza-se o adjetivo “científico” para se referir ao estatuto de ciência pelo qual os saberes e suas práticas são
reconhecidos, mas com a clareza de que não se trata necessariamente de ciências propriamente ditas. A
medicina, segundo Canguilhem (2009), é uma técnica ou uma arte constituída na reunião de ciências diversas.
5
Os autores explicam que a prevalência do TDAH modifica-se de acordo com os critérios diagnósticos
utilizados e o tipo de amostra estudada, o que justificaria a discrepância de prevalência do TDAH no país.
Polanczyk e colegas (2007) corroboram a hipótese de que diferenças metodológicas aplicadas na identificação
dos sintomas e na elaboração do diagnóstico geram variações nas taxas de prevalência do transtorno.
6
Nesta tese, os termos “indivíduo” e “sujeito” aparecerão intercambiavelmente. Há distinções entre eles
(indivíduo pode designar uma forma pronta, modelada e submetida de ser humano, opondo-se e, ao mesmo
tempo, articulando-se à noção de sociedade, enquanto sujeito implica também a submissão a um saber ou a um
14

desenvolvimento a ser protegidos, em vista de sua vulnerabilidade social, psicológica e


biológica. Nesse mesmo contexto, a família e a escola configuram-se como instituições ditas
em crise. Uma crise associada ao mal-estar de professores, que se julgam incapazes de lidar
com essas novas formas de ser aluno, de ser criança e de ser jovem diante das exigências
sociais e familiares de transmissão de conteúdos escolares e preparação dos alunos para a vida
às quais esses profissionais têm de responder. De pais, que disputam com a escola as
responsabilidades em relação à criança e que vivenciam as mudanças sociais e históricas
refletidas na organização da família e de suas funções. E de crianças, que se defrontam com
exigências relativas às diferentes representações sociais de si. Um mal-estar que adoenta os
adultos e que, no caso infantil, parece se expressar na inquietude dos alunos em sala de aula
ou na extrema agitação que marca as interações infantis em espaços mais isentos de
limitações, como aqueles dedicados aos recreios escolares. Ou mesmo em outras formas de
inquietude, como a depressão e a ansiedade.
Em outras palavras, em um contexto de emergência da criança como centro da
cena social, as diferentes representações sociais sustentam práticas que a constituem como um
corpo e como uma subjetividade contemporânea, em alguma medida, vulnerável, desde a
criança em desenvolvimento a ser protegida, passando pela criança-aluno, até a criança
hiperativa e desatenta ou deprimida. Que infância é essa? Ela representaria um sintoma das
mudanças e contradições sociais contemporâneas? Que máquina social é essa em que um
número significativo de crianças é identificado como corpos cujo neurodesenvolvimento é
falho, tornando-as incapazes de executar adequadamente suas atividades sociais, com
destaque às escolares?
A presente tese de doutorado tem como objetivo central, portanto, analisar
sociologicamente a inserção social da criança brasileira e a intervenção médico-psiquiátrica
naquelas que são identificadas, no espaço escolar, como hiperativas e desatentas, possíveis
portadoras de TDAH. O pressuposto que orienta o desenvolvimento dessa proposta é a
socialização da criança (com TDAH) como um problema político de constituição de um
sujeito adaptado a um determinado projeto de sociedade. A escola é uma instituição social
básica a essa constituição. Se historicamente sua articulação com a medicina foi essencial à
construção e execução de um projeto de sociedade (cf. COSTA, 1999; FOUCAULT, 1991b;
2006a; 2006b; MONARCHA, 2006, entre outros), atualmente a intervenção técnico-científica
especializada no espaço escolar, ainda fundamental a tal projeto, é demandada como um

poder, mas diferencia-se por uma noção implícita de ação no processo de formação do ser humano). Entretanto,
elas não serão explicitamente discutidas.
15

auxílio necessário a uma escola (e uma sociedade) “em crise”7. O TDAH é um de seus
instrumentos.
A concepção de crise adotada é dupla. Em seu sentido positivo, a crise implica
uma instabilidade momentânea causada por qualquer tipo de transição. Trata-se de um tempo
de adaptação a novos padrões ou ideais, para os quais são elaboradas estratégias específicas.
Em seu sentido negativo, a noção denota, sobretudo no senso comum, uma perda de
referenciais e modelos, uma desestruturação das relações ou ainda uma valorização nostálgica
de valores morais e sociais antepassados em detrimento dos atuais.
“Criança” é igualmente uma noção empregada de modo particular. Segundo o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o indivíduo é considerado uma criança até doze
anos de idade incompletos, e como um adolescente entre treze e dezoito anos. Já a
Organização das Nações Unidas considera como criança todos os indivíduos com menos de
dezoito anos de idade. Nesta tese, criança (e seus termos correlatos: “menino”, “menina”,
“garoto” e “garota”) será entendida como a pessoa entre cinco e treze anos de idade. Essas
idades condizem com a divisão etária que organiza os anos do ensino fundamental regular8.
Trata-se, portanto, dos alunos e alunas que compuseram o grupo observado em campo de
pesquisa9, cursando do primeiro ao oitavo ano do ensino fundamental em escolas estaduais,
municipais e privadas nas cidades de Campinas (SP) e Moji Mirim (SP) entre 2013 e 2015,
bem como, em alguns casos, fazendo parte de um programa de educação não formal10 situado
em Campinas (o detalhamento metodológico e as informações pormenorizadas sobre os
estabelecimentos de ensino encontram-se no Apêndice A desta tese). Acompanharam-se mais
atentamente quinze dessas crianças (doze meninos e três meninas). Dentre elas, onze meninos
e uma menina haviam sido indicados pelas equipes escolares como portadores de TDAH,
como já tendo passado por avaliação especializada para a confirmação ou exclusão desse
diagnóstico ou como consumidores de Ritalina®. Dois meninos concederam entrevistas. As

7
O emprego de noções de crise nesta tese deve-se a seu uso recorrente pelos docentes participantes da pesquisa.
8
A organização do sistema de educação básica brasileiro obedece às normas estabelecidas pela Lei de Diretrizes
e Bases – LDB (BRASIL, 1996). Entre as etapas desse sistema estão: a educação infantil (creches para bebês de
zero a 3 anos e pré-escolas para crianças de 4 a 5 anos de idade), o ensino fundamental (dividido em dois ciclos:
o primeiro, de cinco anos de ensino, destinado às crianças entre 6 e 10 anos, e o segundo, de quatro anos de
duração, para alunos entre 11 e 14 anos de idade) e o ensino médio (três anos de ensino para adolescentes entre
15 e 17 anos).
9
Campo é “o recorte espacial que corresponde à abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico
correspondente ao objeto de investigação” (MINAYO, 2000, p. 105).
10
Segundo Gohn (2006), a educação não formal caracteriza-se como um dos núcleos básicos da pedagogia
social. Ela articula diferentes dimensões, a saber: a aprendizagem política dos direitos dos cidadãos, o
desenvolvimento de habilidades e potencialidades individuais para o trabalho, as práticas organizadas em torno
de objetivos e problemas comunitários, a educação apresentada na mídia etc. A existência de modalidades não
formais de educação é reconhecida pelo Ministério da Educação brasileiro, mas elas não são reguladas pelas leis
e diretrizes que orientam a educação nacional.
16

três demais (duas meninas e um menino) foram acompanhadas devido ao fato de


manifestarem dificuldades escolares e, sobretudo, por serem enquadradas em classificações
escolares.
Vale notar que as crianças entre dez e treze anos vivenciam um processo de
transição em que se apresenta uma mescla de traços social, psicológica e biologicamente
definidos como característicos da infância e da adolescência. Em termos comportamentais,
enquanto as crianças mais novas, encontradas em campo, manifestavam-se de modo agitado,
os movimentos das mais velhas, por volta dos treze anos de idade, eram mais enrijecidos pelas
normas sociais e escolares de desempenho e conduta. Elas permaneciam mais tempo sentadas
mesmo em espaços livres, como aqueles destinados aos recreios, mas não caladas. Ao agregar
todas essas diferenças sob o termo “criança”, pretendo desenvolver uma análise que, sem
desconsiderar as faixas de idade e o desenvolvimento característico de cada uma delas como
fundamentais às classificações escolares e ao desenvolvimento de políticas públicas,
reconheça a criança em sua posição cotidiana de sujeito político, inserido ativamente em
jogos de forças sociais.
Na perspectiva da nascente Sociologia da Infância, as crianças são, acima de tudo,
atores sociais. Criticando a psicologia do desenvolvimento e do comportamento e a sociologia
da educação, essa nova abordagem sociológica — nascida em países anglo-saxões e na França
no final da década de 1980 e início dos anos 90 — busca recolocar a criança em um espaço
social, cultural e político a partir de diferentes marcos teóricos, metodológicos e analíticos
(TEBET; ABRAMOWICZ, 2014). Um espaço marcado por relações geracionais nas quais
predomina a desigualdade na distribuição de poder e de status (sociologias estruturais da
infância), por relações sociais em que a criança atua tanto como um sujeito formado por
processos de socialização (adaptação, internalização e reprodução de normas e
comportamentos) quanto como sujeito que reinventa, negocia, compartilha e cria
(CORSARO, 1997).
É também um ator que desestabiliza as regras e padrões instituídos como normais
e que, por isso, promove uma inversão hierárquica discursiva em sua relação com os adultos
(ABRAMOWICZ, 2011). Assim, seus pequenos gestos podem ser vistos como resistências —
um questionar as formas de submissão que tomam a criança como objeto, ainda que não se
concretizem movimentos organizados de resistência —, e não como desvios ou patologias.
Proponho, assim, um trânsito constante entre os pontos fixos e as potencialidades que marcam
as representações sociais da criança e as experiências individuais e coletivas de infância.
Tenho como foco a criança hiperativa e desatenta.
17

A experiência implica a questão da subjetividade11. Para Biehl, Good e Kleinman


(2007), a subjetividade articula experiências cotidianas vividas, estratégias individuais de
existência, governo dos sujeitos, coletividades, instituições, tecnologias, aspectos psicológicos
e linguísticos do eu, enfim, uma multiplicidade de instâncias individuais e coletivas que
formam o indivíduo. Embora os modos de subjetivação sejam determinados por hierarquias,
intervenções e traumas não resolvidos, os sujeitos encontram brechas para refletir sobre suas
condições ou para sentir suas contradições constituintes. Os autores ainda afirmam, entre
outras considerações, que em alguns contextos é possível identificar “a desmoralização da
experiência cotidiana por meio de categorias científicas como a depressão e o estresse pós-
traumático, que refazem as pessoas como objetos de manipulação tecnológica sem permitir a
possibilidade do remorso, do pesar, da penitência” (BIEHL; GOOD; KLEINMAN, 2007, p.
14).
Nesse sentido, me apoiarei em noções como “experiência de infância” e
“infância”, ora contrapondo-se às representações socialmente instituídas da criança e as
expectativas sociais que orientam determinadas formas de socialização, ora agregando-se a
elas. A experiência dos professores, professoras e coordenadoras pedagógicas12 dos
estabelecimentos de ensino visitados também é fundamental para a análise da
problematização proposta. Nesse caso, além da observação participativa13, realizaram-se
entrevistas semiestruturadas14 coletivas (com grupos de cerca de vinte educadores/as durante
três reuniões pedagógicas) e individuais, assim como conversas não formais (isto é, que não
foram agendadas e gravadas, uma vez que ocorreram ocasionalmente tanto por iniciativa do
profissional quanto da pesquisadora)15. Como contraposição a esses relatos, buscou-se

11
Subjetividades são as formas de ser humano, que se inserem em relações de modulação do corpo, do discurso e
das práticas por um saber socialmente considerado legítimo para acessar e dizer as verdades sobre o mundo. Mas
esse sujeito também se integra a relações de luta e resistência a esse saber-poder que o subjuga (FOUCAULT,
1977). Assumindo os pressupostos tomados por Deleuze e Guattari (1997), Gallo (2010) considera que, no
campo da educação, subjetivação é o processo de formação de “indivíduos de acordo com padrões definidos
socialmente de antemão”.
12
Os profissionais de educação participantes da pesquisa de campo têm formações acadêmicas variadas
(pedagogia/educação infantil, artes, geografia, história, matemática, informática, enfim, as disciplinas que
compõem as grades curriculares dos dois ciclos do ensino fundamental). Alguns atuavam em uma única escola,
outros em instituições diferentes. Encontram-se em faixas etárias as mais variadas, mas, de modo geral, os
professores e professoras trabalham na educação básica há pelo menos dez anos.
13
A observação participativa é uma técnica segundo a qual o pesquisador insere-se em um novo ambiente cujas
relações modificam seu ponto de vista previamente formado (MINAYO, 2000).
14
A entrevista semiestruturada é uma técnica por meio da qual o pesquisador propõe uma conversa com alguns
participantes selecionados a fim de obter informações primárias e secundárias referentes ao seu objeto de
pesquisa. Ela se orienta por meio de roteiros flexíveis e compostos por perguntas abertas (MINAYO, 2000).
15
Em todas as atividades de campo, os objetivos da pesquisa foram explicitados aos participantes. Compuseram
a pesquisa somente as pessoas que compreenderam e aceitaram as explicações e que se sentiram confortáveis
para fornecer informações e expressar suas reflexões. Quando a equipe diretiva de um estabelecimento não
demandava a autorização formal de órgãos superiores, os diretores escolares consentiam a realização das
18

apreender argumentos e discursos advindos de outros espaços, como o familiar (por meio de
conversas com pais de alunos desses estabelecimentos, ainda que de modo mais restrito) e o
midiático (associações de portadores de TDAH e seus familiares, como a Associação
Brasileira do Déficit de Atenção — ABDA, e movimentos políticos, como o Fórum sobre a
Medicalização da Educação e da Sociedade).
Finalmente, adotarei a noção de medicalização como categoria analítica. O termo
“medicalização” assume diferentes definições e aplicações de acordo com os campos de saber
que dele fazem uso. Entretanto, essas variações designam algo comum: práticas orientadas
por um mesmo modo de pensar e agir sobre o corpo, a mente e os indivíduos. Modo esse que
conserva determinadas relações de poder-saber e o exercício de um biopoder, segundo a
concepção de Michel Foucault (2005; 2006a). Relações de poder referem-se a ações e reações
provocadas por indivíduos ou grupos de indivíduos em interação. E, ao mesmo tempo em que
esses atos aplicam-se sobre outros, eles agem sobre si mesmos. Portanto, os sujeitos devem
ser ativos para integrar as relações de poder (ou as relações sociais). Em outras palavras, eles
devem ser reconhecidos como atores sociais individualizados. Suas condutas podem então ser
conduzidas e governadas, tanto pelos demais quanto pelo próprio sujeito.
Já o conceito de biopoder designa um plano de atualidade que deve incluir,
segundo Rabinow e Rose (2006, p. 29), alguns elementos. Há que se constituir um ou mais
discursos de verdade sobre o caráter vital dos seres humanos, bem como um conjunto de
autoridades consideradas competentes para proferir aquela verdade. Discursos verdadeiros e
autoridades competentes a enunciá-los mobilizam estratégias de intervenção sobre a
existência coletiva em nome da vida e da morte. Finalmente, criam-se modos específicos de
subjetivação, através dos quais os indivíduos são levados a atuar sobre si próprios, sob certas
formas de autoridade, em relação a discursos de verdade, por meio de práticas do self, em
nome da sua própria vida ou saúde, de sua família ou de alguma outra coletividade.
Assim, a medicalização é uma prática técnica e social que, surgida a partir de uma
lógica que rege o pensamento médico, tem objetos, meios e fins específicos. Uma prática que
não nasceu com o nome de “medicalização”, mas que passou a ser definida e nomeada como
tal por outros campos de saber a fim de que sua contradição fosse revelada e para que,
finalmente, se pudessem compreender as relações sociais que ela toca. Logo, o uso dessa
noção constituiria um instrumento de denúncia. Nesse processo, contudo, a palavra

observações em sala e de entrevistas com professores, coordenadores pedagógicos, alunos e/ou pais. Eles
também apontavam os limites que deveriam ser adotados em cada espaço e caso. Dessa forma, esclarece-se que
não houve qualquer conflito de interesses e que todos os participantes, informações e dilemas pessoais e
institucionais foram tratados com respeito e ética, sobretudo no que toca ao anonimato e à privacidade.
19

“medicalização” foi capturada e transformada. Ela se desviou de seu sentido original e fez
surgir outros termos mais simplistas, tais como “patologização”16, mas também novas formas
de constituição da subjetividade.
Com essas delimitações, a presente tese divide-se em quatro capítulos principais.
No primeiro, descreve-se e problematiza-se a inserção social da criança brasileira. As
definições e propostas encontradas no ECA e as vulnerabilidades infantis essenciais às
políticas públicas permitem, em um primeiro momento, traçar um panorama acerca da criança
enquanto sujeito de direito. Já os dados sobre os novos arranjos e as mudanças na
configuração familiar fornecem elementos para a análise da criança enquanto membro de uma
família e das novas expectativas acerca da autonomia infantil, isto é, do provimento de
instrumentos e competências à criança a fim de que ela “encontre seu próprio caminho”, no
presente e no futuro. Essa representação corresponde também ao estatuto da criança-aluna,
que adentra uma instituição constituída por normas e expectativas mais rígidas. Finalmente, a
criança hiperativa e desatenta emerge da confluência dessas três representações.
No segundo capítulo, a análise volta-se à escola em crise, ao sentimento de crise
da autoridade do professor e às demandas de intervenção especializada que de lá se originam,
tendo como objetivo a criança em dificuldade ou mesmo o profissional de educação adoecido.
A ênfase dada à escola justifica-se pelo fato de que a instituição escolar é responsável pela
inserção da criança na esfera pública. Além disso, a entrada do aluno no ensino fundamental é
o momento em que aumenta significativamente o número de encaminhamentos psicológicos e
psiquiátricos, fundados na hipótese de manifestação do TDAH. Já o terceiro capítulo é
dedicado a uma análise aprofundada dos procedimentos de encaminhamento e dos casos de
TDAH encontrados em campo de pesquisa.
Por fim, no último capítulo agrega-se ao estudo uma análise do TDAH enquanto
categoria clínica conceitualizada em um campo epistemológico que define o cérebro como
motor do agir humano no mundo. Sendo o TDAH um instrumento, abordá-lo em suas
especificidades explícitas e implícitas — enfim, em seus mecanismos constituintes —
permitirá evidenciar o caráter sociopolítico da categoria e da intervenção médico-pedagógica
na inserção social infantil, bem como a complexidade da condição da criança hiperativa e
desatenta.

16
Ehrenberg e colegas (2005) criticam a ideia de controle social e o uso contemporâneo das noções de
“medicalização”, “patologização”, “psicologização” e afins quando elas simplificam a realidade social ao
expressar a ideia de que são processos pelos quais a medicina, a psiquiatria, a biologia ou a neurologia
substituem as instituições sociais supostamente dissolvidas.
20

CAPÍTULO 1

A inserção social da criança brasileira: um panorama das condições sociais de seu


reconhecimento como membro da sociedade

A análise da inserção social da criança17 faz emergir, segundo Rabain (1979), as


formas de aprendizagem do código cultural e as regras de conduta que permitem reconhecer o
pertencimento dos indivíduos a grupos sociais. Ao buscar responder “o que é ser uma criança
em uma determinada sociedade?”, a perspectiva adotada pela autora possibilita, portanto, a
interrogação sobre as representações de certo grupo sobre a criança e a infância e,
consequentemente, a compreensão das referências, da linguagem, enfim, de um conjunto de
elementos e relações que colocam o cotidiano de uma sociedade em movimento.
A socialização — concepção que corresponde à inserção social do indivíduo —
define-se por duas etapas fundamentais, de acordo com Berger e Luckmann (1973). A
primeira é a incorporação da criança, proporcionada destacadamente pela família, a uma
sociedade ou a um setor dela. A socialização secundária, por sua vez, é a introdução do
indivíduo a novas regras às quais ele deve corresponder, a novos grupos e, dessa forma, a um
mundo social diferente do espaço formado pelas relações familiares. As principais
responsáveis por essa etapa são a escola e, segundo perspectivas sociológicas mais recentes,
as interações entre pares.
Três representações orientam, atualmente, a inserção da criança brasileira,
trazendo-a à cena social como indivíduo reconhecido por suas particularidades. A criança
sujeito de direito é aquela que, em desenvolvimento e exposta a vulnerabilidades sociais e
psíquicas, deve ter garantidos direitos especiais que protejam sua integridade física e moral. A
criança autônoma, por sua vez, recebe investimentos governamentais, escolares e, sobretudo,
familiares visando ao fornecimento de ferramentas e ao desenvolvimento de competências
que lhe permitam “seguir seu próprio caminho”. Finalmente, a figura da criança corresponde à
do aluno, o indivíduo inserido na esfera pública e sujeito às exigências sociais de

17
“Inserção social” e “socialização” são conceitos oriundos de perspectivas sociológicas tradicionais e denotam,
primordialmente, um movimento de imersão da criança nas normas sociais de um determinado grupo e em certo
tempo histórico. Os atuais Estudos da Infância, incluindo as Sociologias da Infância, entretanto, propõem a
existência de modos diversos de estabelecimento das relações sociais e institucionais das quais as crianças
participam. Nessa perspectiva, os mesmos indivíduos que reproduzem as normas sociais vigentes têm a
potencialidade de modificá-las. Na presente tese de doutorado, adoto a primeira abordagem a fim de evidenciar
as formas pelas quais instituições, como a escola, e práticas, como as psiquiátricas, representam a criança. Já a
segunda perspectiva será assumida visando à desconstrução das concepções de criança e infância fixadas
externamente às relações infantis cotidianas e relativas ao TDAH.
21

comportamento e desempenho. Dessas representações, ou melhor, de seu desvio, emerge a


criança hiperativa e desatenta.

1.1. Crianças brasileiras e suas vulnerabilidades

As crianças têm algo em comum: elas dependem de um conjunto de cuidados que


devem ser providos pelos adultos visando a minimizar a probabilidade de manifestação de
fatores de risco. Crianças formam um grupo vulnerável, ao olhar das políticas públicas,
devido ao fato de se viver uma fase da vida cuja característica principal é o desenvolvimento
físico, mental, moral, espiritual e social. Estando em um processo de formação, são-lhes
concedidos direitos especiais a fim de prezar pela liberdade e dignidade individuais (BRASIL,
1990). Outras vulnerabilidades decorrem de fatores sociais, políticos e econômicos, como a
desigualdade na distribuição de renda, as más condições de moradia e alimentação, o acesso
precário ao sistema de saúde, a mortalidade infantil, as diferentes formas de violência, entre
tantos outros fatores encontrados no Brasil.
Essa concepção orientou a elaboração do primeiro capítulo dedicado
exclusivamente à criança e ao adolescente em uma Constituição Federal brasileira: a de 1988,
que forneceu os fundamentos para a consolidação, em 1990, do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), bem como para a reformulação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira (LDB), em 1996. É preciso lembrar que o país vivia um período de
redemocratização. E nesse contexto a criança e o adolescente foram firmados como
indivíduos a ser socialmente protegidos e como sujeitos de direito (PINHEIRO, 2004). Foi
também nesse contexto que a criança começou a se constituir como filho ou filha de uma
família e como aluno ou aluna de uma escola de um modo diferente de outros tempos.
A população brasileira chegava a 191 milhões de habitantes em 2010, segundo o
último Censo Demográfico18, sendo que 84,4% da população total encontra-se em áreas
urbanas. Desse total, cerca de 29 milhões eram crianças de zero a nove anos de idade e 45
milhões de dez a dezenove. O grupo de zero a quatorze anos de idade representava 18,6% da
população preta, 20,2% da amarela, 22,5% da branca, 26,8% da parda e 36,2% da indígena.
A análise de dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2011)
revela que a sociedade brasileira vive o fenômeno da redução da fecundidade. Em 2010, havia

18
Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/default.shtm>. Acesso em: 06
nov. 2015. Estima-se que, em 2015, a população brasileira já tenha ultrapassado o número de 204 milhões de
habitantes.
22

27,5 crianças menores de cinco anos para cada grupo de 100 mulheres entre 15 e 44 anos de
idade. Nascem mais meninos do que meninas. Entretanto, a taxa de mortalidade masculina ao
longo da vida também é maior do que a feminina, sobretudo entre 15 e 29 anos de idade nos
centros urbanos, devido a causas externas ou violentas (tais como homicídios e acidentes de
carro).
Entre 1990 e 2012, a taxa de mortalidade de crianças menores de um ano foi
reduzida em 68,4%, equivalendo então a 14,9 mortes para cada mil nascidos vivos. Essa é
uma das áreas estratégias para o desenvolvimento humano, cujas metas foram traçadas no
projeto Objetivo do Milênio e assumidas pelo Brasil em 2000 (UNICEF, 2014a). Em relação
à escola, outra área estratégica do programa, o objetivo principal é consolidar um ensino
básico efetivamente universal. Três milhões e oitocentas mil crianças e adolescentes entre
quatro e dezessete anos (ou 966.305 entre seis e quatorze anos, faixa etária referente ao ensino
fundamental) estavam fora da escola em 2010, assim como outros 14,6 milhões apresentavam
risco de exclusão (abandono ou evasão) devido ao atraso escolar. Entre a população com
idade para cursar o ensino fundamental, o perfil predominante das crianças que não
frequentavam a escola, em 2010, era de meninos negros com renda per capita domiciliar de
até meio salário mínimo e habitando centros urbanos da região Sudeste do país e a zona rural
(UNICEF, 2014b).
Os documentos oficiais — como aqueles produzidos a partir dos dados e
indicadores do Censo do IBGE, os censos escolares organizados pelo Instituto Nacional de
Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) ou tantos outros elaborados e
publicados pelo UNICEF — fornecem um importante conjunto de informações e agendas
visando à garantia dos direitos de proteção das crianças e adolescentes brasileiros. Trata-se de
um legado do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), “uma das legislações mais
avançadas do mundo no que diz respeito à proteção da infância e da adolescência” (UNICEF,
2014a).
Os indicadores relativos à distribuição de renda conforme as faixas etárias, às
taxas de mortalidade infantil, às condições de moradia, aos níveis de subnutrição e aos índices
escolares (matrículas, aproveitamento, fracasso, exclusão, estrutura escolar) permeiam esses
documentos e os estudos que neles se sustentam. As conclusões assemelham-se em diferentes
análises: tais indicadores melhoraram no decorrer das duas últimas décadas, mas ainda há
muito que se fazer para reduzir as desigualdades regionais e nacionais (ROSEMBERG, 2008,
p. 296) e suas variantes, tais como o trabalho infantil, a violência sofrida por jovens,
majoritariamente, negros e pobres, a delinquência ou a iniquidade de gênero.
23

Além de propor panoramas e perfis das crianças e dos jovens brasileiros visando à
elaboração de políticas públicas específicas aos grupos etários, esses documentos exaltam
uma determinada representação social. Representação essa em que a vulnerabilidade, causada
por diferentes fatores socioeconômicos, é intrínseca ao processo de reconhecimento da
criança e do adolescente como sujeitos de direito, em substituição à noção repressiva de
“menor”. Verifica-se, assim, a transformação e o desdobramento das representações sociais da
criança. Se no fim do século XIX e, particularmente, no início do XX, após a proclamação da
República, construiu-se a imagem da criança como herdeira do novo regime, a qual deveria
ser educada a fim de concretizar o então nascente projeto de progresso (MONARCHA, 2006),
hoje essa imagem se transforma e se multiplica. Ela representa, em uma ponta, as diferentes
formas de vulnerabilidade humana a ser superadas (como expressão de um direito individual
de integrar-se à sociedade no gozo pleno do bem-estar) e, em outra, a esperança de realização
dos sonhos privados dos adultos (CALLIGARIS, 1994).
Distanciando-se parcialmente das vulnerabilidades sociais tratadas pelas políticas
públicas e pelos dados oficiais, há ainda outras formas de “cuidar” da criança que se articulam
como um direito em um sistema econômico neoliberal. Segundo Rosemberg (2008), as
noções sociais de criança e de infância formadas na contemporaneidade (que não coincidem
necessariamente com as experiências de infância que os indivíduos vivenciam
cotidianamente) permitem produzir recursos econômicos que dinamizam os mercados de
consumo e de trabalho. Neste caso, ainda de acordo com Rosemberg, o reconhecimento da
especificidade da infância contemporânea e das necessidades da criança em desenvolvimento
possibilita a criação de novas profissões responsáveis pelo cuidado e pela organização e
controle das atividades infantis.
A divisão etária vinculada a etapas do desenvolvimento biológico, afetivo e
cognitivo é o ponto-chave, conforme a análise de Mollo-Bouvier (2005), para a segmentação
do processo de socialização infantil e, consequentemente, para a delimitação das funções e
expectativas construídas nas e para as instituições e profissões do cuidado com a criança. A
creche depara-se com o desafio de guardar e, concomitantemente, de preparar as crianças
pequenas para a entrada na pré-escola. Essa, por sua vez, deve promover o desenvolvimento
de habilidades necessárias ao ensino fundamental e assim por diante. Desenvolvimento, idade
e formação então se articulam e “toma(m) a dianteira sobre a espontaneidade do vínculo
social entre as gerações” (MOLLO-BOUVIER, 2005, p. 394).
24

Nesse sentido, cria-se também um sentimento de sobrecarga em professores e


professoras que se veem obrigados a assumir as funções familiares de cuidado e educação.
Para citar um exemplo, recorro a um relato obtido em pesquisa de campo:

Bom, o que eu falo é que, infelizmente, a família está deixando para a escola educar,
passar valores. Porque as crianças ficam, vamos dizer assim, com “famílias
terceirizadas”. Tem um pessoalzinho que fica aqui na creche, depois eles vêm para
nós aqui na escola, só vão ver os pais à noite e é pouco. Aí, no outro dia, umas cinco
horas da manhã eles estão em pé de novo para pegar o ônibus para vir para cá. Então
é isso que acontece: [a família] está deixando para nós muita coisa. Até eu falei para
as professoras assim: “daqui uns tempos, quem vai educar somos nós, vamos
continuar fazendo o papel da família”. (Eva19, professora da rede estadual.
Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
De instituição para instituição, de um adulto a outro, a criança encerra-se na esfera
do cuidado especializado. A “terceirização da família” na escola é, assim, um reflexo do
processo de profissionalização dos modos de guarda da criança e do adolescente. Mollo-
Bouvier cita também, ainda que en passant, os profissionais dos lazeres, como os animadores
de festas infantis responsáveis por manter as crianças em atividade. Mas uma atividade
orientada por adultos. Os “especialistas do cuidado infantil” ascendem, dessa forma, à cena
social. Suas atividades compõem-se com os discursos e práticas “do psicólogo, do médico, do
jurista, do pedagogo, do assistente social, do sociólogo” (FREITAS, 2006, p. 13) que tomam a
criança e a infância como seu objeto. Um objeto reformulado, mas que não é novo (os
higienistas dos séculos XIX e XX já as haviam tomado sob seus cuidados).
Essas formas de terceirização, profissionalização e “cientificização” da criança e
da infância têm a particularidade de agrupar a questão da vulnerabilidade (investimento social
e público como direito individual), da esperança (investimentos materiais e afetivos feitos
pelos adultos, pais ou professores) e da escolarização (aquisição de competências e
habilidades essenciais à formação continuada e que constituem desempenhos ditos normais,
porque esperados). Tratarei dessas duas questões nas seções seguintes. Antes, cabe uma
incursão acerca da deficiência e da disfunção de origem biológico-patológica, um tema
transversal a esse agrupamento.
O direito ao atendimento especializado às crianças e adolescentes portadores de
deficiência20 é garantido pelo ECA (Título II – Dos direitos fundamentais, Capítulo I – Do
direito à vida e à saúde), incluindo a educação especial na rede regular de ensino (Capítulo IV
– Do direito à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer). Por educação especial entende-se, na
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira (LDB), “a modalidade de educação escolar,

19
Os nomes dos participantes da pesquisa são fictícios.
20
Embora alguns documentos oficiais ainda adotem a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, utiliza-se,
atualmente, “pessoas com deficiência” no campo da saúde e dos movimentos sociais.
25

oferecida preferencialmente na rede regular de ensino, para educandos portadores de


necessidades especiais”, isto é, alunos com deficiências, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Entre os recursos oferecidos estão as salas
multifuncionais. Esses estudantes podem também frequentar classes especiais ou instituições
exclusivas às suas necessidades.
Trata-se, nas políticas públicas, de um grupo considerado vulnerável. No Censo
de 2010, 45,6 milhões de pessoas (23,91% da população total naquele ano) declararam-se
deficientes visuais, auditivos, motores, mentais ou intelectuais. Destas, 380.112 crianças
(dentro de um total de 484.332 alunos com necessidades especiais) foram matriculadas em
classes comuns do ensino regular ou da modalidade de educação de jovens e adultos naquele
ano em escolas públicas (municipais ou estaduais)21. No Exame Nacional do Ensino Médio
(ENEM) de 2015, o Ministério da Educação e o INEP ofertaram atendimento especializado a
61.216 candidatos, incluindo os casos de déficit de atenção (7,2 mil inscritos), conforme as
informações divulgadas no portal do MEC em junho do mesmo ano.
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), por ser um
transtorno mental, não é considerado como uma necessidade especial no âmbito da LDB
(embora exista um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, o PL 7798/2014,
cujo objetivo é incluir os transtornos mentais no grupo das necessidades escolares especiais).
Entretanto, ele é um diagnóstico frequentemente associado à agitação extrema, ao declínio do
desempenho escolar de alguns alunos e, em certos casos, à indisciplina. É também um
elemento recorrente em solicitações médicas feitas para e por professores referentes à
elaboração de relatórios comportamentais e de desempenho de um dado aluno ou ao
preenchimento do SNAP-IV22. Veremos em outros capítulos desta tese que um vocabulário
técnico, associado à categoria TDAH, circula pelos espaços escolares. Isso permite que tal
condição seja facilmente reconhecida por professores, o que lhes dá elementos para discuti-la
e, até mesmo, criticá-la.

21
Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/documentos-e-pesquisa/publicacoes/estnottec/areas-da-
conle/tema11/2014_14137.pdf>. Acesso em: 06 nov. 2015.
22
Trata-se do questionário de Swanson, Nolan e Pelham-IV (SNAP-IV), construído a partir das descrições do
TDAH propostas pelo DSM-IV (APA, 2000b). Ele foi traduzido para o português pelo Grupo de Estudos do
Déficit de Atenção da UFRJ - GEDA e pelo Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência da UFRGS
(MIRANDA et al., 2011, p. 2) e validado por Mattos et al. (2006). As 18 questões que compõem o formulário
podem ser respondidas por pais ou professores e visam a definir os comportamentos que melhor descrevem o
aluno por meio dos critérios “nem um pouco”, “só um pouco”, “bastante” e “demais”. O questionário encontra-
se disponível para download em: <http://www.tdah.org.br/images/stories/site/pdf/snap-iv.pdf>. Acesso em: 08
set. 2015.
26

É válido afirmar que o TDAH assemelha-se à deficiência e à incapacidade pelo


fato de todos eles serem problemas crônicos, isto é, sem cura. Transitando entre a patologia e
a diferença, diferentes indivíduos podem receber um diagnóstico e desfrutar de um direito
especial. Nesse sentido, veem-se proliferar os movimentos em defesa dos direitos das pessoas
com deficiências, das crianças com TDAH, dos autistas, entre tantas outras identidades sociais
ligadas a disfunções as mais diversas. No caso do déficit de atenção e da hiperatividade, nota-
se claramente a fusão das representações da criança sujeito de direito e da criança com TDAH
nos movimentos traçados pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA).
Essa discussão ainda será aprofundada. O que cabe reter no momento é que a
questão da vulnerabilidade da criança brasileira permeia diferentes âmbitos de sua vida social.
Ela é o fundamento de ações externas sobre o sujeito infantil de direito objetivando a sua
adequada socialização. Mas ela é também um princípio capturado por interesses diversos, por
meio dos quais a criança pobre e miserável é transformada, segundo Rosemberg (2008), em
peça publicitária do “espetáculo da compaixão” e da benevolência. O mesmo ocorre com o
comportamento delinquente, que passa a corresponder a um desvio moral. Esses são
paradoxos que se colam à representação do sujeito de direito. Entre a vítima das perversidades
sociais e biológicas (no caso das deficiências e das disfunções) e o desviante das normas,
diferentes subjetividades e representações infantis se formam. Duas delas merecem atenção: a
criança-filha, inserida nos novos arranjos familiares, e a criança-aluna, personagem de uma
escola contemporânea em crise.

1.2. Constituindo a nova família contemporânea e sua criança

“A família não é mais a mesma”, dizem. Não é mais a mesma porque está
“desestruturada”, não cumpre sua função de educar os filhos, causando-lhes mais problemas
do que os resolvendo. Esse tipo de enunciado foi reproduzido pela maioria dos professores e
professoras participantes da pesquisa de campo constituinte desta tese. Mas o que significa,
nesses discursos, ser uma família desestruturada e que não cumpre suas funções? Para
responder a essa questão, é preciso compreender as novas configurações da família
contemporânea e analisar a posição ocupada pela criança nessa trama.
27

Mudanças e arranjos

As maneiras de constituir uma família são multifacetadas. Nessa perspectiva,


Corrêa (1982) critica os usos uniformes da noção de família na teoria sociológica brasileira.
Usos esses que pressupõem a existência de um único modelo familiar que evolui do
tradicional ao moderno e deste ao contemporâneo. Usos que também se refletem nas práticas
cotidianas, como se observa no fenômeno de intensificação de manifestações conversadoras
que buscam determinar uma noção de família restrita à união entre homens e mulheres que
gera filhos. Embora possa ser traçado um perfil predominante da família brasileira, ele
contradiz essa proposta conservadora e revela a influência das mudanças históricas, sociais e
econômicas na constituição familiar e, consequentemente, em sua crise.
Um primeiro aspecto a ser notado é a diminuição do tamanho da família e a
multiplicidade de seus arranjos. O relatório do IBGE (2011) aponta o ano de 1970 como o
momento-chave em que, pela primeira vez na história do país, o número de habitantes
urbanos ultrapassou o da população rural. Esses dados retratam os efeitos do processo de
urbanização e de crescimento da população iniciado nas décadas precedentes. Nos anos 1980
e 90, entretanto, a taxa de crescimento demográfico declinou de 2,48% (1970/1980) para
1,93%, fato desencadeado pela queda da taxa de fecundidade e pelo êxodo rural, segundo o
relatório. O documento ainda apresenta a pirâmide etária característica daquele decênio: uma
base estreita e um pico que se prolonga. Essa configuração representa os efeitos da redução da
fecundidade: menos crianças nascem, enquanto a população envelhece gradativamente (e a
expectativa de vida se estende). Em comparação a outros anos, o relatório conclui que,
sobretudo na área urbana, nasce hoje cerca de 1,8 filho por família (em 1960, a taxa de
fecundidade era de cinco filhos).
A década de 80 também foi marcada pela concretização dos direitos das mulheres
e, como se viu anteriormente, das crianças e jovens, o que se refletiu significativamente na
situação jurídica e social da família. A Constituição de 1988 garantiu, de acordo com Moraes
(2014), que o princípio da igualdade entre homens e mulheres orientasse uma união, descrita
como base da sociedade, a ser protegida pelo Estado. Tal princípio aplica-se diretamente aos
filhos que devem ser cuidados por ambos os cônjuges. Naturais, nascidas fora do casamento
(filho ou filha de um dos cônjuges) ou adotadas, todas as crianças sob esses cuidados são
juridicamente iguais entre si. Nota-se que, em última análise, em uma família cujo tamanho se
reduz (em 2010, encontrava-se nas unidades domésticas uma média de 3,3 moradores), a
criança assume uma posição central.
28

É preciso ter claro que, a partir dos anos 60, o estatuto social, econômico e
simbólico das mulheres começou a ser modificado. Ao mesmo tempo em que o uso dos
anticoncepcionais permitiu-lhes controlar sua reprodução (o que, consequentemente, originou
uma distinção entre reprodução e sexualidade), as mulheres foram incorporadas ao sistema
produtivo capitalista. Ao passo que elas saíam de casa para trabalhar, os arranjos domésticos
antes dominantes (a mulher como sinônimo exclusivo de mãe e esposa) entravam em
mutação, incluindo a questão da descentralização do cuidado da criança — embora as
mulheres ainda sejam vistas como “cuidadoras primárias”, segundo o jargão médico — e,
posteriormente, da profissionalização desse cuidado.
Outra contribuição da Constituição de 88 à configuração familiar, apontada por
Moraes (2014), é a facilitação (redução de prazos e exigências) do divórcio, acrescida da
garantia legal de que qualquer um dos pais e seus descendentes possam constituir uma
família. Uma multiplicidade de arranjos torna-se então possível. Da análise do IBGE (2011),
destacam-se alguns deles: a residência em uma mesma unidade doméstica (60 mil domicílios
em 2010) de um(a) responsável e de seu(sua) cônjuge ou companheiro(a) do mesmo sexo; a
coabitação de um casal e de pelo menos um(a) enteado(a); o aumento do número de unidades
cujo responsável é a mulher ou onde a responsabilidade domiciliar é compartilhada; a
incidência de domicílios unipessoais; e a convivência intergeracional (entre avós e netos, por
exemplo). Essas possibilidades coexistem com aspectos mais tradicionais, como a união entre
pessoas de sexos diferentes e a convivência com filhos nascidos do casamento do casal.
O segundo ponto a ser tratado é a posição central ocupada pela criança nos
arranjos familiares contemporâneos e seus desdobramentos. Ainda segundo Moraes (2014, p.
27), a “nova família” é uma instituição que nasce da “disposição de cuidar de outrem”, e não
mais exclusivamente dos laços sanguíneos e de compromissos estabelecidos pelo casamento.
Pois “família é quem cuida”. A solidariedade, a dignidade, a responsabilidade e o afeto
ganham, assim, dimensão jurídica e realidade cotidiana no seio familiar, bem como o que
acontece com a criança.
Presume-se, portanto, que a decisão de gestar e cuidar de uma criança gravita,
salvos alguns casos, em torno de uma decisão compartilhada. Pois, no “casal igualitário”,
além da divisão equitativa das responsabilidades, há o princípio de que cada cônjuge deve
manter sua individualidade e perseguir seus projetos pessoais e profissionais. A família
contemporânea “permite a seus membros conciliar o pertencimento comum e a singularidade
de cada um” (SINGLY, 2012, p. 8). Nesse contexto, ter um filho hoje significa mais a
realização de um desejo do que o simples ato da reprodução. E esse desejo pode relacionar-se
29

tanto à ânsia dos pais de encontrar um sentido para suas vidas vazias quanto à esperança de
que, investindo na criança, ela possa ter melhores condições de vida. É claro que existem
diferentes níveis entre esses dois extremos. O fato é que as crianças constituem-se como
membros centrais da família e que todo um conjunto de investimentos é nelas feito. Essa nova
posição redimensiona uma tensão particular às representações sociais e às experiências de
infância: ainda que seja um ser humano em desenvolvimento, à criança se confere algo como
uma autonomia.
Observa-se que a questão da autoridade parental desloca-se para a do investimento
familiar na criança. Da relação entre a flexibilização da autoridade adulta e a valorização de
uma autonomia infantil, emerge um sentimento de crise da família, que se estende a um
sentimento de crise da escola. O uso da palavra “crise” é significativo: se, por um lado, ele
implica uma instabilidade momentânea causada por qualquer tipo de transição (um tempo de
adaptação a novos padrões ou ideais), por outro, a crise denota, no senso comum — como
observado recorrentemente em trabalhos de campo —, uma negatividade pautada na
concepção dos novos valores morais e sociais que acompanham a mutação familiar como
perdas de referenciais e, em consequência, como desestruturação. Uma concepção que
considera as vulnerabilidades que afetam as crianças como decorrências das incapacidades e
ingerências familiares.

A culpabilização da família desestruturada

Em A família em desordem, Elisabeth Roudinesco (2003) percorre um caminho


histórico das transformações sociais e psicanalíticas da família europeia, da função simbólica
da figura do pai e da irrupção feminina e infantil — testemunhadas e analisadas por Freud —
para compreender as configurações familiares contemporâneas e o desejo de se constituir,
ainda hoje, uma família (desejo esse compartilhado também por casais do mesmo sexo).
Dentre as tantas “desordens” da família, três momentos fundamentais são destacados por
Roudinesco. O primeiro diz respeito ao declínio de uma composição dita tradicional, fundada
na autoridade inquestionável de um Deus-pai, o homem cujo poder soberano correspondia à
imagem da divindade religiosa. Isso conferia à figura do pai um estatuto de onipotência
familiar e sociopolítica. Citando Balzac, a autora afirma que ao cortar a cabeça do rei (o
símbolo máximo dos governos monárquicos) a Revolução francesa derrubou, no final do
século XVIII, a cabeça de todos os pais de família.
30

O segundo momento é o da ascensão de uma família moderna, afetiva e em que os


genitores partilhavam seus poderes sobre os filhos com o Estado. O domínio autoritário
parental passou, no século XIX, a ser moderado pelo código civil francês de 1804. O declínio
dessa composição moderna viria no século XX, quando da emancipação econômica e política
feminina, das possibilidades de dissolução e recomposição de arranjos conjugais e da
centralidade dada à criança no seio familiar. A psicanálise desempenhou um importante papel
social na redefinição do olhar sobre a família, possibilitando, inclusive, a elaboração de novas
formas de normalização dos desvios.
Essa tipologia das transformações da família (francesa) — um modelo que ecoou
nos saberes sociológicos e jurídicos brasileiros — favorece a relativização da negatividade
assumida pela noção de crise ou de desordem familiar nos discursos contemporâneos do senso
comum, embora não dê conta das diversas possibilidades de organização familiar possíveis
em um determinado tempo histórico. Ela auxilia também na apreensão das formas pelas quais
os saberes e as práticas especializados tomam a família como objeto, dissecando-a e criando
sobre ela um discurso verdadeiro, sobretudo quando considerada como incapacitada a cumprir
suas funções social e culturalmente atribuídas.
Um exemplo (datado, há de se convir) analisado por Foucault (2006b) e Donzelot
(1986) é o da crise das famílias pobres e proletárias francesas. A crise assentava-se no fato de
que as uniões e concepções fora do casamento aumentavam os encargos sobre o Estado e de
que as garantias e alianças não eram mais asseguradas pelo casamento (DONZELOT, 1986;
FOUCAULT, 2006b). Essa crise correspondeu, segundo os autores, ao surgimento de
mecanismos disciplinares para assegurar que a família (rica ou pobre) continuasse a atuar
como engrenagem disciplinar. Explico: segundo a perspectiva foucaultiana (importante a
Donzelot), o funcionamento da família soberana — fundada nos laços do casamento, do
compromisso e da dependência e na figura da autoridade paterna — articulava os dispositivos
disciplinares. Assegurava a inserção dos indivíduos nesses dispositivos e possibilitava a
passagem de um dispositivo para o outro — por exemplo, da escola para o trabalho
(FOUCAULT, 2006b; CASTRO, 2009, p. 115). Quando uma família deixava de desempenhar
essa função, ativavam-se mecanismos capazes de substituí-la (tais como os dispositivos de
filantropia direcionados aos jovens delinquentes ou às crianças em perigo) ou mesmo
reabilitá-la. Entre esses mecanismos estava o que Foucault chamou de “função-psi, isto é, a
função psiquiátrica, psicopatológica, psicossociológica, psicocriminológica, psicanalítica,
etc.” (FOUCAULT, 2006b, p. 105). Esses saberes e práticas tornaram-se então responsáveis
pela refamiliarização dos indivíduos, entendidos como sujeitos psicológicos.
31

Apreende-se dessas análises históricas que, no ato de dissecação da família, a


positividade de sua crise (compreendida como transformação ou transição de um modelo a
outro) pode tornar-se a negatividade da desestrutura e da culpabilização do outro (a família),
sobre o qual se intervém a partir de elementos externos. Na literatura especializada brasileira
dos anos 1960-70 voltada à infância pobre, abandonada e delinquente23, a família
“desestruturada”, “desorganizada”, “pobre” e marcada pela ausência paterna era descrita
como responsável pela situação de vulnerabilidade de suas crianças. Elaborada por assistentes
sociais, psicólogos, sociólogos, pedagogos e órgãos oficiais como a Funabem, essa literatura,
de acordo com Alvim e Valladares (1988), enfatizava o caráter patogênico da família
economicamente carente. Seus resultados foram difundidos pela sociedade em um tom de
denúncia. Mas os estudos não se propunham a discutir as mudanças sociais que essas famílias
e suas crianças viviam (e que as conduziam a tal situação de carência) e, muito menos, a
avaliar as implicações dos saberes e do conjunto de instituições sociais nessa situação.
Em outros termos, a questão política das condições de vida familiar e infantil era
suprimida (e transformada em incapacidade individual), fazendo prevalecer o caráter técnico
da intervenção especializada concebida como necessária. A família dita desestruturada
(estritamente a pobre, naquele contexto histórico) era culpabilizada pelo discurso científico
oficial e descaracterizada como capaz de se restabelecer. A solução proposta nesses estudos,
analisados por Alvim e Valladares (1988), preconizava a inserção da população infanto-
juvenil em instituições especializadas a fim de evitar os riscos sociais causados pela
delinquência, destacadamente. Surgiam então as figuras das crianças “institucionalizadas” e
“infratoras” e dos “meninos de rua” — categorizações que aqueles pesquisadores
desenvolveram —, cujos principais atributos eram o baixo grau de escolarização, a forte
tendência à evasão escolar, a pobreza e, como já dito, a inserção em famílias desorganizadas.
A Constituição de 88 e o ECA fomentaram o deslocamento do olhar da
culpabilização para o privilégio de definições, programas públicos e redes de assistência que
atuassem na modificação de uma estrutura socioeconômica, que causassem efeitos positivos
nas famílias vulneráveis e que interviessem nos fatores de risco na infância e na adolescência
(FONSECA et al., 2013).
Em termos comparativos, nos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE) a atual agenda pública de ação sobre a vulnerabilidade

23
Desde o decênio 1920-30 observavam-se no Brasil medidas jurídicas e médicas tendo como objeto a criança
pobre. Sobre o tema, indica-se, além do artigo de Alvim e Valladares (1988), a leitura do texto Crianças
carentes e políticas públicas, de Edson Passetti (In: Del Priore, M. (org.). História das crianças no Brasil
(1999). 2ª ed. São Paulo: Contexto, 2000, p. 347-375).
32

infantil inclui serviços de apoio aos pais (HAMEL; LEMOINE, 2012). Tais serviços
destinam-se ao auxílio no exercício de suas funções parentais (“ajudar os pais a serem pais”),
sobretudo no que diz respeito a assegurar o desabrochar (épanouissement) de seus filhos, a
lhes ajudar a encontrar seus próprios caminhos e, em alguns casos, a desenvolver habilidades
e competências nas crianças para que elas rompam um círculo de pobreza (ESPING-
ANDERSEN, 2002). A ideia subjacente a essas ações é a de que “as carências educativas dos
pais constituem uma explicação determinante das incivilidades dos pequenos” (HAMEL,
LEMOINE, 2012, p. 4. Grifo nosso).
Algo de patogênico resta, portanto, ao ambiente familiar. É o que se confirma nos
relatos dos professores, em pesquisa de campo. Há um consenso de que o problema escolar
(de baixo desempenho ou de comportamento inadequado) da criança advém
determinantemente dos pais. Alguns relatos exemplificam tal consenso:

A criança com problema, ela tem toda uma desestruturação familiar, mas a mãe... É
impressionante como em todos os campos a família empurra realmente. E ainda fala
da figura do professor de uma maneira muito negativa. “Não estão sabendo educar, e
ele é pago para isso”. A gente ouve muito isso em todos os níveis. [...] [Se] há um
problema [foi] a gente [que] cometeu, não foram eles [os pais]. Eu acho que isso é
sério, é grave. (Evandro, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27
mar. 2013).

Quando a gente vai fazer reunião de pais, a gente vê que os pais são mais
perturbados que as crianças. A criança é muito espelho dos pais. Aí vem a mãe e
pronto, dá para entender porque a criança é desse jeito. (Vera, professora da rede
municipal. Entrevista concedida em 05 ago. 2015).

Então, a gente tem que levar em consideração que nenhuma criança é igual à outra.
Eu costumo dizer que elas são que nem frutas na árvore: cada uma amadurece no seu
tempo. Tem criança que leva mais tempo para aprender? Tem. [...] Eu acredito que
em parte é pelo meio em que ela vive, que ela não tem favorecidas muitas questões,
como leitura, contato com livro, um ambiente, vamos dizer, rico em condições que
propiciem a ela uma bagagem cultural melhor. Uma questão é essa. Outra, que às
vezes não tem estímulo: o pai e a mãe não leem, não escrevem, mal fizeram o
fundamental I, o ciclo I do fundamental I, não chegaram nem no ciclo II. (Maria
Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).

Eu penso assim: atualmente, a forma de educar mudou muito. Porque antigamente,


independente se o pai ou a mãe trabalhava, as crianças tinham exigências desde cedo
em casa. Eram apontadas tarefas, tinha uma ordem para serem feitas. Hoje, as
crianças estão em casa muito avulsas. Elas estão sempre mexendo no que querem,
fazendo o que querem. E elas criam uma “responsabilidade individual”, própria. Em
casa, elas já se acham capazes de cuidar de si somente, não precisando de ninguém
para observar, olhar. Chega na escola, muda esse parâmetro. Ela tem que fazer uma
tarefa direcionada. (Catarina, professora da rede municipal. Entrevista concedida em
05 ago. 2015).
A família é o eixo que articula esses diferentes enunciados. Cada um deles
desenvolve, porém, um tipo de argumento que relaciona problema escolar e ambiente
familiar. No primeiro excerto, acusam-se os pais (com destaque à mãe) de atribuir à escola a
33

culpa pela ingerência das ações e do desenvolvimento de seus filhos. Uma ingerência que, nas
entrelinhas da fala do professor, teria como origem real a desestrutura familiar. Uma perda de
funções familiares cuja compensação seria exigida da escola. Usando o vocabulário popular
empregado por alguns docentes, trata-se de um “jogo de batata quente” das responsabilidades
para com a criança.
No segundo trecho de entrevista, o problema da criança está ligado a uma
perturbação psicológica dos pais (mais uma vez com foco na mãe). A professora Vera não
sabia se os pais de seu aluno realmente enfrentavam algum sofrimento psíquico cujos efeitos
repercutiam na criança, mas o recurso a uma suposta psicopatologia embasa a concentração
do problema na família. Já a professora Maria Luzia encontra na ausência de estímulos e na
carência cultural do meio familiar a fonte do retardo do amadurecimento escolar da criança.
Segundo Singly (2012), o investimento em capital escolar — isto é, em condições apropriadas
para que, na escola, a criança aprimore suas competências sociais e se destaque por isso — é
uma das características da família contemporânea. Quando esse investimento não se
concretiza, recai sobre a família o ônus de uma má gestão das potencialidades infantis (ao
mesmo tempo, no sentido oposto, acusam-se os professores de não gerirem os conflitos e as
dificuldades dos alunos em sala de aula).
Finalmente, o último fragmento anuncia a existência de mudanças nos modos
familiares de educar os filhos, porém enfatiza que hoje uma autonomia doméstica colocaria
em conflito as responsabilidades ou os modos de ação das crianças em casa e na escola.
Interpreto que esse conflito apresenta-se aos professores como um problema (à capacidade de
o aluno manter-se concentrado e em produtividade no espaço escolar) devido a um fluxo
contínuo entre casa e escola. Passa-se de uma a outra como se se tratasse de uma extensão
onde os mesmos comportamentos e as mesmas normas deveriam ser verificados. Por esse
motivo, professores denunciam os pais por não fazerem parte, cotidianamente, da vida escolar
infantil e pais exigem dos professores o mesmo tipo de tratamento, privilégio e educação que
seus filhos recebem em casa (situação vivida, sobretudo, por profissionais de
estabelecimentos privados de ensino24).
Uma moral da família permeia o espaço escolar como reflexo de uma dada
configuração social. Bons pais são vistos pelos professores como aqueles envolvidos com

24
Essas novas demandas podem levar a situações constrangedoras e estigmatizantes, especialmente quando se
trata de casos vistos como problemáticos. Cito como exemplo o caso de um aluno de cinco anos relatado por
uma professora de escola privada: “É uma criança extremamente agitada [...]. Ele incomoda muito os alunos,
ele agita tanto, ele levanta, ele faz batuque. Mas assim, está tendo uma mobilização na porta da sala: assim, as
crianças não podiam brincar com ele, né, eu ouvi assim de uma mãe e falei ‘não estou acreditando’. Ela queria
que eu chegasse até o diretor da escola e sugerisse que o diretor expulsasse a criança da escola”.
34

seus filhos, que não delegam suas funções de cuidado e educação, que se esforçam para
resolver seus problemas e superar suas dificuldades sociais, econômicas ou psicológicas,
ainda que componham famílias “desestruturadas”. Maus pais não impõem limites e não
educam suas crianças, causam-lhes traumas e conflitos psicológicos em virtude de problemas
relacionais (envolvimento com drogas, encarceramento, brigas, ausência), negligência (o
abandono ou ainda a recusa de auxílio externo em casos de dificuldades de aprendizagem),
falta de recursos financeiros e culturais ou mesmo arranjos tidos por alguns professores como
problemáticos e que “confundem” as crianças (mães solteiras, pais desconhecidos, casais
homossexuais). Conflitos psicológicos e vulnerabilidades sociais reais agregam-se então a
julgamentos morais em um mesmo tipo de discurso. Um discurso que, predominante nos
estabelecimentos de ensino visitados, toma a culpabilização da família como o argumento
fundante de uma explicação da realidade contemporânea. Da mesma maneira, o discurso
técnico-científico é tido como capaz de solucionar os problemas causados nessa realidade. As
mudanças na configuração dos arranjos familiares e nas representações sociais da infância
adquirem, no consenso escolar, o caráter negativo da perda de referências morais (uma única
professora afirmou acreditar que não se deve julgar uma mãe por suas ações para com seus
filhos, pois as situações sociais, econômicas ou culturais que orientaram o seu agir são
desconhecidas).
O tema contemporâneo subjacente a essa moralidade é o da crise de autoridade
dos adultos. Enfoco aqui a centralidade da figura feminina nesse cenário. Os pontos
recorrentemente evocados por professores em campo foram a saída de casa para trabalhar e a
consequente falta de tempo para dar atenção ao desenvolvimento e às habilidades da criança
como pano de fundo da culpabilização da mulher. Apesar do fato de que a grande maioria dos
profissionais com quem conversei era de mulheres (sendo que muitas delas tinham filhos),
observei uma tendência a identificar na figura feminina e em seu papel social multifuncional
(trabalhadora, mãe, esposa) elementos dos problemas escolares e das vulnerabilidades sociais
e psíquicas das crianças.
A mulher como cuidadora primária é uma figura comum no campo da saúde. Um
médico psiquiatra, atuante em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil, relatou-me
em outra pesquisa que as crianças atendidas naquele serviço eram geralmente acompanhadas
por suas mães. Esse padrão justificava-se, para o médico, pelo fato de que os pais eram os
membros familiares que trabalhavam, restando à mãe a função de dona de casa e de cuidadora
primária, ou seja, a principal responsável pelo cuidado com a criança. Vale esclarecer que a
população lá atendida encontrava-se majoritariamente em grupos sociais economicamente
35

desfavorecidos ou “SUS-dependentes” (sem recursos financeiros para contratar serviços


privados de saúde), conforme o vocabulário articulado pelos profissionais do ambulatório.
Cultura de culpa da mãe (a culture of mother-blame) é a expressão adotada por
Singh (2004) em sua análise acerca das relações entre mães e seus filhos (meninos) com
TDAH. Recorro à constatação de uma mãe, com quem mantive contato naquele ambulatório,
como exemplo sintético: “Eu, como mãe, eu sou [considerada] responsável porque não dei
educação”. A culpabilização ocorre externamente, aponta Singh (2004), por parte dos
maridos (que não acreditam que o comportamento da criança seja problemático ou que
afirmam serem esses comportamentos causados pela indulgência materna excessiva) e pela
comunidade (mediante reprovações e julgamentos da capacidade materna depois de se
testemunhar um comportamento infantil tido como inadequado). A culpabilização externa
também reforça um sentimento já experimentado internamente pelas mães: a autopunição
decorrente da culpa de não serem “boas mães”, compreensivas, protetoras, sábias e capazes de
resolver os problemas de seus filhos. A culpa representa, assim, um sentimento de fracasso na
função (“natural”) de ser mãe.
Morel (2014) e Eideliman (2008; 2010) acrescentam que, na França, os pais de
crianças com TDAH relatam sentir-se culpabilizados pelas abordagens psicológicas e
psicanalíticas, predominantes no país, que buscam a origem do sofrimento da criança nas
relações emocionais e nos vínculos entre pais e filhos. Esse efeito colateral produzido pela
psicanálise já havia sido indicado por Donzelot (1986) na década de 70. Em suas palavras, a
técnica psi (referindo-se à noção de “função-psi” utilizada por Foucault) acaba por incriminar
as relações estabelecidas no interior da família e as representações mentais inconscientes de
seus membros ao designá-las como a base do fracasso escolar da criança. Nesse sentido, ele
afirma que “a criança é o elemento comprovador de um disfuncionamento da família”
(DONZELOT, 1986, p.193).
No caso do TDAH, as explicações psiquiátricas pautadas na busca de causas
biológicas do transtorno e o uso da Ritalina® executam um movimento inverso: não há nada
de moral ou relacional em um transtorno mental como o TDAH; trata-se basicamente de uma
disfunção cerebral. A culpa é do cérebro (SINGH, 2004), e não dos pais ou da criança.
Mesmo na França, onde as perspectivas psicanalíticas predominam e onde a prevalência do
TDAH é ainda baixa, pais têm preferido o caráter eficiente e não culpabilizante da abordagem
biomédica e neurocientífica na explicação das dificuldades de aprendizagem e das formas de
sofrimento psíquico infantil (MOREL, 2014). No Brasil, a repercussão dessas explicações é
intensa, sendo particularmente facilitada por movimentos de defesa dos direitos da criança
36

com TDAH, como a Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Nota-se, entretanto, que a
culpabilização sofre um deslocamento: os pais passam a ser apontados como culpados pela
condição da criança hiperativa e desatenta quando não solicitam o auxílio de especialistas.
Um conjunto de representações e expectativas sociais permeia a cultura do
mother-blame. O bom desempenho materno é socialmente reconhecido quando a mulher
corresponde a uma imagem de pessoa compreensiva, afetiva, apaziguadora de conflitos,
versátil e protetora. O desvio dessa imagem fomenta o julgamento, a culpabilização externa e
o sentimento interno de culpa. Ainda que se recorra ao uso da Ritalina® para a contenção dos
sintomas hiperativos e desatentos e para o consequente aprimoramento do desempenho da
criança (o que seria concebido como sua função, caso não se tratasse de um transtorno
mental), as mulheres estão sendo “boas mães” dentro de uma determinada formulação cultural
de maternidade (SINGH, 2004, p. 1203).
Desse modo, tem-se uma articulação das condições históricas, jurídicas e sociais
da organização dos arranjos familiares, das funções sociais e simbólicas esperadas e ligadas a
questões de gênero, e das representações sociais de mãe, pai e, particularmente, filho. E vale
notar que o discurso técnico-científico penetra nessa nova configuração. Com ou sem TDAH,
a criança adentra esse complexo de relações e situa-se no centro de cada cena social que se
desencadeia. Analisemos, portanto, seu posicionamento.

Entre a criança autônoma e a “não infância”

As relações familiares e a criança reconhecida como indivíduo inserem-se no


processo civilizatório, longamente analisado por Norbert Elias em diferentes obras. O
problema apontado por Elias (2010) no texto A civilização dos pais (« La civilisation des
parents » ou „Die Zivilisierung der Eltern“), de 1980, é o de que se ignora como ajudar as
crianças a adaptarem-se às sociedades contemporâneas complexas e pouco infantis,
sociedades em que se exige um alto nível de antecipação e autocontrole. A questão de fundo
é, para esse sociólogo: a insurgência da infância no plano social e cultural implica uma
necessidade de que as crianças vivam suas próprias vidas em um processo gradativo (isto é,
em um processo de socialização e de civilização) que as torna adultas. Mas as crianças
formam um grupo social particular, pois ao mesmo tempo em que elas dependem dos adultos
em seus primeiros anos de vida, delas exige-se uma autonomia relativa, um desabrochar
próprio, o percorrer de um caminho para sua independência. Nesse sentido, os direitos
37

concedidos a esse grupo social são igualmente particulares e não podem ser aplicados a
qualquer outro ser humano.
A problematização que se coloca condiz com uma norma da autonomia. O atual
conceito de autonomia (EHRENBERG, 2012) designa a liberdade de escolha individual em
nome da autoafirmação e a capacidade de agir por si mesmo na maioria das situações de vida.
É sobre essas duas propriedades da autonomia que, segundo Ehrenberg, apoiam-se a
sociedade e as subjetividades individuais contemporâneas. Trata-se de uma norma e de um
valor desejável em todos os aspectos da vida social (inclusive a manutenção da saúde mental e
a luta contra o sofrimento psíquico).
A autonomia não é um tema novo na sociologia ou na pedagogia. Nos anos de
1902 e 1903, Émile Durkheim ministrou um curso na Sorbonne intitulado L’éducation morale
e publicado como livro em 1934. Nele, Durkheim afirmava a autonomia da vontade como um
dos elementos da moralidade (os outros elementos são o espírito da disciplina e o
pertencimento aos grupos sociais) a ser inculcados nas crianças por meio da boa socialização,
isto é, da educação laica. A autonomia do indivíduo integrado à sociedade contribuiria, nessa
perspectiva, para a harmonia social.
Se há algo que persiste ainda hoje dessa concepção de autonomia individual, a ela
se acrescem (ou dela se modificam) alguns novos pressupostos. Ao emergir como sujeito
social, psíquico e de direito, a criança é representada como um ser cuja autonomia deve ser
garantida, e não simplesmente inculcada pela socialização. Jean Piaget versava sobre uma
pedagogia democrática por meio da qual a autonomia moral da criança somente renderia
frutos de justiça social pelo respeito mútuo e pelo diálogo com o outro. Isso colocava em
questão a perspectiva durkheimiana sobre o alcance da autonomia moral por intermédio da
coerção e da obediência (MORAES, 1994).
Diante de uma nova referência para as relações contemporâneas entre pais e
filhos, a autonomia assume então uma situação social antes regulada pela autoridade. Elias
(2010) afirma que as relações de autoridade inscreviam-se na dominação e na hierarquia entre
os membros familiares que davam ordens e aqueles que obedeciam. A divisão desigual dos
poderes entre adultos e crianças orientava suas relações, nas quais os primeiros tinham o
dever de decidir pela segunda. Essa configuração ainda existe, mas ela concorre com um tipo
de interação mais igualitária que concede à criança alguma margem de decisão.
Para Elias, o deslocamento do olhar sobre a criança — de um ser ingênuo, no
lugar do qual os pais têm de tomar decisões, para um indivíduo social ou, posteriormente, um
sujeito de direito — tem como um de seus motores a descoberta freudiana acerca das
38

necessidades pulsionais e sexuais infantis. Esse é um dos pontos de uma mudança histórica no
“sentimento de infância”, conforme o sentido dado por Ariès (1981) à expressão. Podem-se
acrescentar outras transformações já apresentadas neste capítulo, como a diminuição do
tamanho das famílias, por exemplo. O que importa, perseguindo a perspectiva de Elias, é que
as formas e os objetivos do processo de constituição do autocontrole (as culpas, as vergonhas,
as aprendizagens, as disciplinas) se modificam, produzindo outros tipos de relações sociais e
de indivíduos (ou subjetividades, se adotarmos outro referencial teórico).
Em termos práticos, as mudanças na relação entre pais e filhos apresentam novos
dilemas. O primeiro a ser destacado é a flexibilização das relações entre família e escola (que
culmina em um conflito de responsabilidades e culpabilização entre elas, como se observou
em campo de pesquisa). O afrouxamento do papel regulador dos pais ocasionou, segundo
Ehrenberg (1995), uma maior possibilidade de transmissão das funções e responsabilidades
parentais à escola. Uma vez que a cooperação, o diálogo e a individualização dos membros
familiares (cada um deve ter seus próprios projetos e necessidades e buscar alcançar seu
sucesso) passam a caracterizar alguns de seus novos arranjos, à escola demanda-se a
compensação das funções de autoridade ou de educação que, em tese, não se reservam mais
exclusivamente à família. Isso se conecta ao processo de profissionalização do cuidado com a
criança, mencionado no início deste capítulo.
Para Singly (2012), a família contemporânea constitui-se por algumas tensões
específicas do atual momento histórico e social (sobretudo em um contexto francês onde suas
pesquisas foram desenvolvidas). O processo de individualização dos membros familiares é
uma delas. Trata-se do dever social de se autoconstituir enquanto sujeito, ter um elevado grau
de emancipação ao mesmo tempo em que se esteja inserido em um processo de socialização,
com suas normas e representações. Essa é a norma de autonomia descrita por Ehrenberg
(2012).
A normalização da função parental — uma segunda tensão contemporânea — diz
respeito à intervenção do Estado e dos especialistas na vida privada e individualizada da
família visando a garantir que os pais “aprendam a ser pais”. Isso significa que se cria a
necessidade de educar os pais para conciliar os interesses da criança aos dos adultos
responsáveis por ela. Aqui está o foco das queixas dos professores em minha pesquisa de
campo: os pais não sabem ser pais. Ou melhor, não o sabem dentro daquele quadro moral
formado no âmbito escolar, relativo a uma determinada expectativa quanto às representações
sociais da família.
39

Por fim, ocorre, segundo Singly (2012), a escolarização da família: um processo


pelo qual a preocupação educativa dos pais toma a criança como objeto de afeição e ambição,
ainda que ela deva ser um indivíduo autônomo. Em outras palavras, a família concentra-se na
importância de investir em capital escolar como a possibilidade de que a criança tenha
sucesso (sendo o sucesso visto, por um lado, como uma conquista meritocrática, ou, por outro,
como a possibilidade de mudar as condições precárias de vida).
Essas tensões pressupõem formas de investimento na criança-filha que,
extrapolando o âmbito familiar, dialogam com um mercado especificamente criado para o
mundo infantil, com a afetividade, com a aplicação de recursos financeiros, ainda que
escassos (a fim de criar bons meios extra-escolares, escolher bons estabelecimentos de
ensino), com a competitividade (encorajar os filhos a serem os melhores da sala) e,
finalmente, com as políticas públicas de proteção das crianças contra riscos de vulnerabilidade
ou de compensação de carências as mais diversas.
Calligaris (1994), entretanto, denuncia uma realidade perversa encontrada na base
dessas novas relações entre pais e filhos. Ele explica em seu artigo: o forte investimento feito
pelos pais (e também por alguns professores) nas crianças explica-se pelo fato de que estas
são o objeto do amor narcísico, em termos psicanalíticos, dos adultos. Esse amor emana da
possibilidade de realização, por meio da vida e da figura da criança, de seus sonhos e
devaneios que nunca mais poderão se concretizar. Assim, o investimento adulto tem algo de
egoísta. Nós a vestimos de adulto porque ela espelha nossas aspirações e nossa esperança da
eterna juventude. Nós a reconhecemos como parte de nós ou de nossos desejos. Todavia,
quando a criança deixa de representar tal possibilidade, ela é oferecida às mazelas sociais, ao
sexo, à morte, à violência (e muitas vezes como responsável pela violência social). Seu
reconhecimento enquanto ser humano se esvanece e ela deixa de ser alguém aos olhos do
outro. Schérer (2009, p. 104) foi enfático nesse sentido: “ela [a criança] só existe se
corresponder ao que se deseja que ela seja e à maneira como ela é percebida [pelos adultos]”.
Existem vulnerabilidades sociais e psíquicas reais com as quais as crianças são
obrigadas a lidar diariamente e das quais os adultos devem cuidar. A “desromantização” do
afeto do adulto pela criança, proposta por aqueles autores, evidencia, entretanto, que junto a
uma “crise” da família há uma “crise” da infância. Se por um lado elas passam por mudanças,
por outro essas mudanças colocam a criança em um paradoxo. Com a criança autônoma e
com a criança vulnerável a ser protegida coexiste uma “não criança”. Ou uma “não infância”,
uma experiência marcada pelas relações entre as expectativas frustradas dos adultos e as
40

representações da infância em que se negativa e, até mesmo, anula as subjetividades e os


corpos que não correspondem a um quadro ideal pintado de antemão.
Para fugir da abstração que essa reflexão pode acarretar, cito brevemente a
experiência de uma menina de oito anos, aluna de uma escola estadual, em 2013. Talita
destacava-se entre seus colegas de sala pelos comportamentos que manifestava.
Constantemente inquieta, levantava-se de sua carteira durante explicações e não realizava as
atividades propostas pela professora, expressando descaso em relação à aula. Ainda que
dispersasse sua atenção ao copiar a matéria da lousa, os professores afirmavam que não se
tratava de um caso de hiperatividade ou de desatenção. Tampouco de dificuldade de
aprendizagem. As particularidades de sua condição de vida familiar (o abandono pela mãe e
pela tia e a morte da avó, fatos que lhe ocasionaram um flagrante sentimento de inferioridade
em relação aos colegas e de carência afetiva em suas interações com as mulheres) ou as
vulnerabilidades sociais às quais seu espaço de convivência (um bairro periférico pobre de
uma região metropolitana) a expunha não eram considerados como possíveis causas de sua
inadaptação. Além disso, ela era agressiva com os meninos que a provocavam e muito arredia
com as professoras que, segundo as palavras dessas profissionais, não conseguiam estabelecer
com ela uma relação de compreensão e de respeito mútuo. Talita, assim, frustrava todas as
expectativas adultas: de bom desempenho escolar, de delicadeza (um atributo socialmente
imputado às meninas), de possibilidade de estabelecimento de um diálogo com as professoras
e, até mesmo, da viabilidade de lhe aplicar uma categoria escolar ou clínica (como o TDAH).
“Sem jeito”, a menina era excluída física e simbolicamente (e mantida como tal) no interior
do espaço da sala de aula.
A situação de Talita condiz com o conceito de estigma, proposto por Erving
Goffman (1988). A fim de diferenciar o que é bom e ruim, aceito e repudiado, criam-se nas
relações sociais categorias e atributos considerados comuns e naturais para os membros de
cada grupo. Ademais, objetiva-se prever, já em um primeiro contato com a pessoa
desconhecida, suas ações e a categoria à qual ela pertence. A discordância entre o caráter
imputado ao indivíduo e as categorias e atributos que ele prova realmente possuir resulta na
depreciação da pessoa, conforme a uma imagem diminuída e, por vezes, imprópria para ser
considerada como a de um ser humano.
A “não infância” porta, desse modo, algo de estigmatizante. Ela relaciona-se a um
duplo movimento que ora identifica as crianças dentro de um grupo etário (correspondendo a
uma determinada fase do desenvolvimento biológico, psicológico e moral) para classificá-las
ou excluí-las, ora promove uma indefinição das características do mundo adulto e do mundo
41

infantil. Trata-se, nesta ponta, do que se chama convencionalmente de “adultização” da


criança e “infantilização” do adulto.
Para Postman (1999) — que escreveu no início dos anos 1980 —, o acesso das
crianças à televisão e, consequentemente, às inquietações e obscuridade do mundo adulto,
bem como a incitação ao consumismo, culminou em um processo de adultização da criança.
Isso significa que estando ciente dos segredos da vida adulta, a criança teria sido despida da
inocência que distinguia o mundo infantil. O desconhecimento era sua marca e sem ele não
haveria nada mais a separar a criança do adulto. Hoje os segredos adultos ainda podem ser
conhecidos por meio da televisão, contudo o acesso irrestrito de crianças ao teor da internet
transforma os termos desse processo. Isso tem implicações significativas na escola. Como
qualquer conteúdo escolar pode ser encontrado por meio de um site de busca, o aluno iguala-
se ao professor que se mantém no papel de transmissor desses conteúdos. Além disso, o
recebimento indiferenciado de informações fragmentadas e dispersas, que lhes permitem
mudar de foco rapidamente e sem descanso (SIBILIA, 2012), torna os comportamentos
esperados no mundo empresarial os mesmos que aqueles observados em crianças em espaços
a elas dedicados, como a escola.
Outro viés da adultização da criança é sua rotina de adulto, ou um
“adultocentrismo”. Faço uso dos termos apresentados nos relatos de duas professoras:

Eu estou vendo com uma aluna de cinco anos na minha sala: as crianças têm uma
rotina de adulto. O adulto consegue chegar em casa ao meio dia, tomar banho,
almoçar e sair a meio dia e meia. A criança não. A criança, ela tem inglês de manhã,
ela tem balé, ela tem aula de pintura, ela tem tudo. E ela só tem cinco anos. Então
ela chega e a mãe fala assim “ela não almoçou porque era meio dia e quinze quando
eu cheguei em casa, dei banho e ela ficou enrolando para almoçar”. Mas não é que a
criança enrola, a criança é mais lenta durante o almoço. É o adulto que faz dessa
forma. Então eu percebo que às vezes a criança chega estressada pela pressão dos
pais: “Come logo”, “anda logo”, “toma banho”, “faz isso” e tal. Tudo no grito.
(Lucia, professora da rede privada. Entrevista concedida em 10 set. 2013).

Mas eu acho que o que está mais forte hoje, que eu percebo, é o adultocentrismo. O
adulto está o tempo todo falando o que ela tem que fazer. Ela é acordada por um
adulto, o adulto dá banho nela, o adulto põe ela no carro e traz até aqui, o adulto leva
na escola e já entrega para a professora. (Tania, professora de um programa de
educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
Atribuem-se e requerem-se das crianças muitas responsabilidades (o que inclui, na
visão dos professores, atividades escolares e extracurriculares), fazendo com que alguns
rituais antes valorizados (o tempo de almoçar, de brincar, de compartilhar) sejam
transformados ou apagados pela pressa característica da vida adulta contemporânea. Seguindo
a análise de Vincent, Lahire e Thin (2001), seria possível relacionar essa responsabilização da
criança a uma forma escolar que extrapola os muros da escola. Encontrada em diferentes
42

práticas socializadoras, como a tendência de famílias mais favorecidas “de multiplicar as


atividades extraescolares para os filhos”, a responsabilização da criança reflete uma
preocupação educativa com a ocupação do tempo livre, a aquisição de saberes específicos e,
sobretudo, a “aprendizagem” da disciplina e do “gosto pelo esforço” (VINCENT; LAHIRE;
THIN, 2001, p. 40).
Para Sibilia (2012), a criança de hoje deixou de ser frágil e ingênua ao se tornar
uma conhecedora de fatos diversos, sobretudo informacionais e tecnológicos, e capaz de
escolher, opinar e consumir. Discordo dessa afirmação, pois nunca se enfatizou tão veemente
e publicamente uma fragilidade infantil fundada na ideia de desenvolvimento e de
vulnerabilidade. Mas é preciso considerar que esses pontos de transformação fazem parte do
modo de ser criança atualmente. Um exemplo: diferentes crianças com quem conversei em
campo afirmaram ter pedido celulares, iphones ou tablets como presentes em datas
comemorativas ou ter sido recompensadas com tais aparelhos pelo bom desempenho escolar,
mesmo cursando o primeiro ano do ensino fundamental. Outras já haviam criado jogos de
computador. Um menino de uma sala de sétimo ano declarou em certa ocasião: “Não sei
dançar, não sei cantar, não sei fazer nada. Só jogar videogame. Isso eu faço de olho
fechado”. O trecho de entrevista a seguir propõe uma reflexão nesse sentido:

Nós não temos condições de ter crianças como era vinte anos atrás. Nem há vinte e
cinco, nem há trinta. Tudo evolui e, bom ou não, as crianças também evoluíram.
Hoje em dia, já desde que nascem, elas são expostas a milhares de estímulos que
antes não tinham. Então a criança, antigamente, quando nascia, ficava lá no quarto,
quietinha, sem barulho, numa certa penumbra, começava a sair aos pouquinhos, todo
mundo falava baixinho. Hoje não! Nasce, você vê bebê de dias no shopping, aquele
monte de luz, aquele monte de gente, aquele movimento... quer que a criança seja
igual como? Não dá, não tem... tem crianças ainda mais calmas, tranquilas,
centradas? Tem. Tem sim, mas não é a maioria. Eles nascem plugados, você vê
criancinha de sete anos dar baile na gente na parte de computação, de tablet, de
celular. Então tudo é diferente, como é que vai manter um padrão que era? Não dá.
Faz parte, vamos dizer, da evolução. Bom ou não, a gente tem que se adaptar. Tem
que inventar, reinventar a maneira de aprender e considerar que hoje são diferentes,
e não medicar. (Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em
15 abr. 2013).
A professora entrevistada aponta uma transformação no modo de ser criança e,
indo ao encontro da análise de Sibilia, identifica que as ações dos adultos — especialmente as
dos professores — não levam essa mudança em consideração. Menciona ainda a convocação
das crianças ao consumismo, já que inseridas em uma sociedade “que fala em ter”. Nesse
sentido, a tomada de consciência acerca das mudanças na socialização infantil poderia
envolver, segundo a participante da pesquisa, o estímulo à criatividade na escola e à produção
de seus próprios brinquedos. A proposta de redefinir o que é próprio da infância, pelo menos
no ambiente escolar, revela uma confusão entre os limites entre vida adulta e vida infantil
43

promovida pelo consumo, pelo marketing25 e pela responsabilização crescente da criança por
suas escolhas, indo em direção à produção de um indivíduo autônomo sem idade.
Ao longo de uma conversa com três meninas de dez anos, em 2014, elas
discutiram o relacionamento de Raquel com sua mãe. Uma de suas amigas, presente na sala,
disse-lhe: “Sua mãe acha você criança ainda, mas você é uma pré-adolescente”. A outra,
dirigindo-se a mim, completou: “Ela até menstruou”. Finalmente, Raquel relatou ter ouvido
que se sentir criança é uma síndrome. Diferentes elementos da questão etária emergem dessa
breve conversa. Em primeiro lugar, o caráter psicológico ou neurológico patológico atribuído
ao sentir-se criança em um período caracterizado como pré-adolescência. Segundo, o caráter
relacional da idade: de um lado, o investimento parental na proteção dos filhos (a mãe que
justifica um comportamento superprotetor em relação à filha vista como uma criança
vulnerável e carente) e, de outro, a imposição da necessidade de Raquel tornar-se autônoma
na relação com sua mãe (é como se dissessem: “liberte-se de sua mãe e cresça”). Finalmente,
um marco biológico que, de algum modo, ainda caracteriza uma passagem ritual da menina
para a mulher (ou melhor, a adolescente): a menstruação.
Esses três elementos impulsionam meninas de dez anos de idade — que, apesar de
viverem as expectativas de um mundo adulto, ainda desejam brincar, conforme o que foi
relatado do decorrer da conversa — a assumir a identidade de pré-adolescente por meio da
rejeição da experiência de se sentir criança.
A permeabilidade das relações etárias entre adultos e crianças percorre também
um caminho inverso. Os adultos querem ser (ou, pelo menos, aparentar ser) cada vez mais
jovens, confundindo-se com seus próprios filhos em termos de aparência física e de
comportamentos. Isso é comumente chamado de “infantilização do adulto”. Trata-se de um
movimento paradoxal de prolongamento ao infinito da infância e da juventude e de
encurtamento das experiências de infância, como a possibilidade do ócio, da criatividade, do
brincar descompromissado, do novo e da diferença.
Como se vê, novas famílias e suas crianças emergem de um complexo processo de
transformação histórica e social. Um processo cujo caráter negativo da crise domina os
discursos populares, sobretudo aqueles que circulam em espaços escolares e que se sustentam
sobre a culpabilização materna. No que toca à infância e suas experiências, um jogo entre
diferentes representações produz um conjunto de possibilidades de ser criança na
contemporaneidade, ao mesmo tempo em que retira dela sua particularidade ao se confundir

25
Vale observar, com Sibilia (2012, p. 112), que as idades do marketing não correspondem às da psicologia.
44

com o adulto. Esse jogo estende-se à escola, onde a brincadeira e a educação — atributos
infantis — tornam-se atividades de produtividade escolar. Em outras palavras, a entrada na
escola, ou mais especificamente no ensino fundamental, representa a inserção da criança na
esfera pública das expectativas de produção do bom desempenho.

1.3. A criança-aluno na escola contemporânea brasileira

A relação entre escola e criança é histórica. Seu marco inicial é o estabelecimento


de uma relação pedagógica inédita entre um mestre e um aluno. Inédita, pois diferentes
personagens de uma mesma trama encontram-se reunidas, pela primeira vez, em um mesmo
lugar, conforme os mesmos fins e submetidas às mesmas regras e classificações (FREITAS,
2015). A “forma escolar” (VINCENT, 1980) então se constitui da simultaneidade entre tempo
escolar, período da vida (divisão dos grupos de alunos em salas e séries de acordo com sua
idade), tempo no ano (bimestres, semestres, séries, ciclos) e emprego do tempo cotidiano no
desenvolvimento de tarefas e atividades direcionadas (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001).
Trata-se de uma construção datada — as sociedades europeias dos séculos XVI e XVII — que
produz, todavia, uma forma de socialização escolar persistente em outros contextos. Sua
especificidade é instituir-se mediante a transmissão de saberes objetivados, escriturais e
formalizados, tornados coerentes conforme classificações, divisões, comparações, articulações
e sistematizações. Sua difusão faz da escolarização o princípio das relações sociais, que
passam a ser substancialmente orientadas por uma relação de aprendizagem na qual um
representante das regras gerais ensina e o outro aprende.
A organização racional do tempo e das tarefas a ser multiplicadas pela repetição
dos exercícios é também sua marca (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001). Se a escola surge
como um universo exclusivamente atribuído às crianças e aos jovens — tomados mais como
objetos do saber e da prática pedagógica do que como sujeitos ou atores sociais —, a expansão
de seus modos operatórios ultrapassa os muros escolares. Todas as atividades cotidianas,
desde a organização dos afazeres domésticos até as tarefas do ambiente de trabalho,
sustentam-se sobre essas formas de operar.
Ao mesmo tempo, lógicas externas, como os princípios da flexibilidade e da
adaptação próprias ao mundo empresarial, adentram as escolas. Isso corresponde a uma
“sociedade empresarial” (FOUCAULT, 2008a), cuja lógica demanda um conjunto de
competências e habilidades a ser desenvolvidas e aprimoradas por todas as pessoas. Elas
visam à gestão dos recursos humanos em uma empresa propriamente dita, do tempo de
45

execução das tarefas escolares ou domésticas, da aprendizagem, das emoções, da saúde, dos
riscos e dos conflitos (ROSA, 2009). Nas práticas cotidianas das escolas, onde nada se
termina (DELEUZE, 2010), a passagem de uma instituição a outra (da creche para o ensino
básico e daí para o fundamental, a faculdade, o trabalho...), de um profissional a outro
(MOLLO-BOUVIER, 2005) e de uma atividade que segue a outra26, evidencia a fluidez das
relações às quais a criança deve se ajustar e, a partir delas, produzir.
Na contemporaneidade, portanto, a educação escolar adquire algumas
particularidades, mas sem abandonar seus fundamentos originários, tais como as
classificações, as divisões etárias e a disciplina. Primeiro, ela se torna uma questão de direitos
e de deveres, fazendo com que a escolarização consolide-se decisivamente como uma forma
de socialização essencial à criança e à infância por meio de leis. Segundo, fundamenta-se na
necessidade do desenvolvimento de competências e habilidades (escolares ou não) que
garantam ao indivíduo a autonomia para seguir seu próprio caminho e agir no plano social,
bem como os bons desempenhos e o acesso a conhecimentos indispensáveis à sua inserção no
mercado de trabalho. Trata-se de uma adequação às normas e padrões socioculturais exigidos
para a inserção escolar e social da criança.

A inserção escolar infantil

Discutir a inserção escolar infantil leva-nos a duas questões principais: quem não
está inserido e quem está. A primeira é fundamental para as políticas públicas. A segunda, não
menos importante, desdobra-se em outras quando se parte de uma análise microssocial.
O acesso à educação escolar laica e de qualidade é um direito de todas as crianças
brasileiras. Ainda que cerca de noventa por cento da população infantil e jovem frequente um
estabelecimento escolar de ensino, diferentes agendas e redes de serviços intersetoriais têm se
consolidado a fim de garantir seu acesso universal e de reduzir as carências e vulnerabilidades
sociais causadas pelo analfabetismo, pela evasão escolar e pela repetência. Nesse sentido, a
educação é vista como o princípio fundamental ao exercício de outros direitos e deveres
individuais e coletivos. No texto da Lei de Diretrizes e Bases, a educação básica assenta-se

26
“Os professores vêm na lógica de quanto mais atividades, melhor. Começa, troca, começa, troca. Como que a
gente quer que as crianças fiquem mais calmas, mais tranquilas, se a gente acelera? A gente acelera. A gente
quer dar trinta atividades em uma hora. Qual a necessidade? Se a criança está indo bem, ela conseguiu
entender, por que eu vou trocar de atividade? Precisa dar trinta atividades em uma hora? Posso dar duas? A
gente está tanto na lógica da produtividade que a gente passa isso para as crianças. Hoje ninguém pára. É um
negócio assustador. E acha que o problema é o ócio”. (Tania, professora de um programa de educação não
formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
46

sobre duas finalidades principais: assegurar à criança e ao adolescente a formação


indispensável ao exercício da cidadania e fornecer-lhes subsídios para o progresso no trabalho
e em estudos posteriores. Entende-se, que a inserção social dos cidadãos dá-se pela atuação no
plano social da comunidade e no plano do trabalho produtivo.
De acordo com os dados do UNICEF (2014b), já apresentados no início deste
capítulo, 3,8 milhões e oitocentas mil crianças e adolescentes entre quatro e dezessete anos
(ou 966.305 entre seis e quatorze anos, faixa etária referente ao ensino fundamental) estavam
fora da escola em 2010. Outros 14,6 milhões apresentavam risco de evasão devido ao atraso
escolar. Entre a população com idade para cursar o ensino fundamental, o perfil predominante
das crianças que não frequentavam a escola, ainda naquele ano, era de meninos negros com
renda per capita domiciliar de até meio salário mínimo e habitando centros urbanos da região
Sudeste do país (em números absolutos) ou zonas rurais (em termos percentuais). Crianças e
adolescentes quilombolas, indígenas, com deficiência ou em conflito com a lei também
compõem grupos vulneráveis à exclusão escolar.
A discriminação racial e as desigualdades socioeconômicas são apontadas pelo
referido relatório como alguns dos fatores de influência ao não acesso ou à não permanência
na escola. Sucintamente, o racismo explícito ou implícito configura-se como um fator
prejudicial ao desempenho escolar de alunos e alunas negros(as), levando-os a desistir dos
estudos. A pobreza é outro elemento: devido às dificuldades econômicas das famílias,
crianças a partir dos dez anos de idade ainda abandonam a escola para trabalhar.
Em termos de inclusão das grandes diferenças socioculturais, étnicas e raciais
como temas transversais da grade curricular escolar brasileira, o estudo do UNICEF
identifica, nas escolas existentes, a baixa qualidade dos serviços educacionais ofertados: a
deficiente consideração das particularidades de cada contexto social no diálogo entre alunos e
professores e a inexistência, nesse sentido, de um projeto pedagógico adequado e interessante
aos alunos. Em relação à infraestrutura, a insuficiência do número de estabelecimentos de
ensino para atender à demanda coexiste com a inadequação das condições físicas das escolas
e das condições de trabalho docente.
Essas informações são relevantes para o propósito governamental de efetivar a
universalização da educação escolar no Brasil. Por isso, a exclusão escolar constitui o
parâmetro fundamental de uma avaliação da inserção das crianças e dos jovens na escola e na
sociedade brasileira. Ela é entendida por órgãos públicos e organizações, como as Nações
Unidas, como o não acesso à escola, o atraso (que aumenta o risco de abandono dos estudos) e
a evasão escolar.
47

No âmbito da realidade cotidiana de uma escola ou de uma sala de aula,


entretanto, a exclusão escolar adquire outro sentido. Um sentido ligado àquele investigado e
sobre o qual os grandes programas intervêm, mas que evidencia outras variantes do
fenômeno. De acordo com Dubet (2003), causas sociais e contradições estruturais da escola
confluem na produção de desigualdades sociais e escolares. As questões que então se colocam
são: quem são as crianças inseridas? Como elas são inseridas? Elas estão realmente incluídas?
De que forma crianças que frequentam a escola e que, em alguns casos, cursam a série
correspondente à sua idade são, contudo, excluídas dentro do próprio sistema?
É sobre essas questões que me debruçarei, sobretudo naquela que diz respeito aos
modos de exclusão da criança-aluna dentro da realidade da sala de aula. No que toca às
minhas observações de campo, privilegiei a rede pública de ensino e um serviço, também
gratuito, de educação não formal. Já as escolas privadas apresentam outras particularidades,
das quais tratarei no terceiro capítulo em termos de encaminhamento de casos de TDAH a
especialistas.
A escola municipal de Moji Mirim (com um total de 391 alunos, de sexto a nono
ano, em 2015) atende majoritariamente as crianças moradoras de seus arredores (um bairro de
classe média, cuja construção é marcada pela influência histórica do catolicismo e do êxodo
rural) e da área rural. As disparidades socioeconômicas e raciais entre seus alunos são sutis.
Comparo brevemente três exemplos, escolhidos entre os casos de TDAH indicados pela
equipe escolar.
Luan (treze anos) e sua irmã mais velha eram criados por sua avó paterna. Mesmo
já tendo idade para desfrutar da aposentadoria, dona Tina trabalha como cabeleireira durante
todo o dia para sustentar seus netos. Com a restrição da renda doméstica, o acompanhamento
especializado do menino, diagnosticado com TDAH, era feito em serviços públicos de saúde
locais. Vitor (doze anos), um dos poucos alunos negros da escola, também frequentava
serviços públicos de saúde do município devido à baixa renda familiar. Ele permanecia longos
períodos sem tomar Ritalina®, pois sua mãe não dispunha de condições financeiras de
comprá-la continuamente, segundo o relato de uma de suas professoras27. Já Danilo, colega de
sala de Vitor, deixava transparecer em suas conversas que sua família usufruía de boas
condições socioeconômicas, garantidas pela produtividade de suas propriedades rurais.

27
Os preços mais baixos do medicamento são de aproximadamente R$ 22 para uma caixa com vinte
comprimidos e R$ 65 para uma com sessenta comprimidos. Considerando que, geralmente, tomam-se dois por
dia, o gasto mensal mínimo será de sessenta reais. As formulações mais caras, de longa duração (Concerta® e
Venvanse®), custam em média R$ 300 (FÓRUM, 2015, p. 5).
48

A escola estadual de Campinas28 recebe crianças (386 alunos de primeiro a quinto


ano, em 2015) de diferentes regiões urbanas da cidade, incluindo bairros periféricos pobres29.
Isso se explica por sua localização dentro de uma universidade e, consequentemente, pelo
atendimento majoritário de filhos de funcionários e de alunos universitários que não vivem
nas redondezas da escola. O programa de educação não formal (com 230 crianças de seis a
dez anos de idade e sem divisão por série) compartilha com essa escola a mesma localização e
os alunos que dele participam estudam obrigatoriamente no estabelecimento de ensino
vizinho.
Entre os alunos dessas instituições campineiras, havia um número maior de
crianças negras em comparação ao estabelecimento anteriormente mencionado, ainda que em
proporção menor às brancas. A observação de Talita ilustra esse cenário: “Só tem branco
aqui, nenhum negrinho [...]. Como eu”.
Notavam-se também maiores disparidades socioeconômicas. Observei que os
extremos de tais disparidades refletiam-se na posse de bens materiais. Em uma sala de terceiro
ano do ensino fundamental, por exemplo, os estojos e tênis coloridos das personagens do
momento (em 2013, a Monster High era um importante produto de consumo e de afeto de
crianças de escolas públicas e privadas, indistintamente) e os aparelhos eletrônicos (celulares,
tablets, brinquedos modernos) dividiam a cena com mochilas, dadas pela Secretaria de
Educação do Estado de São Paulo a todos os alunos e alunas da rede, e sapatos surrados. No
decorrer do campo, as observações e as conversas com crianças e professores permitiram-me
confirmar que as vestimentas e os materiais desgastados demonstravam a carência de recursos
financeiros, e não um desleixo de pais e filhos.
As questões de gênero eram mais evidentes em todos os espaços escolares, tanto
nas relações entre as crianças quanto nas práticas cotidianas. A começar pelo fato de que os
profissionais de educação encontrados em campo eram majoritariamente mulheres, desde as
professoras e a equipe diretiva, até as funcionárias de inspeção de alunos, limpeza e
alimentação.
As filas, em alguns estabelecimentos de ensino, eram também distintivas: uma de
meninos e outra de meninas. Esse tipo de organização por gênero predominava nas turmas de
28
Segundo os dados do IBGE, estima-se que a população mojimiriana, em 2015, era de 91.483 habitantes,
enquanto a campineira era de 1.164.098 residentes. Disponível:
<http://cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?codmun=353080>. Acesso em: 17 nov. 2015.
29
O Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM) de Campinas foi, em 2010, de 0,805, de acordo
com os dados do Censo do IBGE daquele ano. Entretanto, a disparidade entre os bairros mais ricos e os mais
pobres é significativa: 0,95 para os primeiros e 0,63 para o segundo. Dados detalhados podem ser consultados no
Atlas de Desenvolvimento Humano da Região Metropolitana de Campinas, elaborado pelo Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).
49

crianças mais novas (de seis a dez anos de idade) da escola campineira. Professores do
programa de educação não formal criticavam, entretanto, esse modo de distinção. Por seguir
uma proposta de ensino que rompe com os modelos fixos da educação convencional, o
programa contava com profissionais para quem a formação de grupos diferenciados por
gênero reflete as influências ainda vívidas de uma pedagogia clássica e arcaica.
Ainda que o programa tivesse essa particularidade, alguns educadores
reproduziam estereótipos inadvertidamente. Um exemplo foi observado em uma atividade em
que as crianças deviam usar pequenos cartões cortados e distribuídos pela professora: rosa
para as meninas e azul para os meninos. Os brinquedos do estabelecimento também eram
organizados obedecendo ao gênero socialmente atribuído a eles. Em uma caixa estavam os
carrinhos, dinossauros e aparelhos eletrônicos (como o walk talk). Na outra se encontravam as
bonecas e os utensílios domésticos (panelas nas cores rosa, roxa e vermelha, entre outros). As
crianças tinham um destino certo nos momentos lúdicos: os meninos dirigiam-se à primeira
caixa, as meninas à segunda. E esse direcionamento acontecia sem qualquer intervenção
imediata dos adultos. Outro exemplo emergiu de conversas de crianças com seus pares.
Afirmações como “o homem é mais forte do que a mulher” e “a flor é forte, ela é homem,
não é mulherzinha” foram ouvidas em sala de aula.
Outros docentes, todavia, apresentavam aos alunos propostas de questionamento
das distinções de gênero. É o caso da professora Isadora, responsável por uma sala de quarto
ano da rede municipal. Após a correção da tarefa de casa — que ocorreu em meio à confusão
de sons emitidos por aqueles que respondiam às perguntas em voz alta e pelos demais que
conversavam sobre outros assuntos —, estabeleceu-se um diálogo entre a educadora e os
alunos em se que falava sobre as desigualdades efetivas dos direitos de homens e mulheres e
da violência que estas sofrem. De modo geral, os alunos interessaram-se pelo debate,
compartilhando suas opiniões e experiências. Um deles então relatou, calmamente: “é por
isso que a minha mãe se separou do meu pai”.
A questão de gênero também se manifesta nos diagnósticos psiquiátricos. Havia
casos de TDAH, autismo, dislexia e transtorno de conduta nas escolas convencionais
mojimirianas e campineiras, conforme as informações fornecidas pelas equipes diretivas. As
crianças afligidas, sobretudo pelo TDAH, eram majoritariamente do sexo masculino.
Na quarta edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais –
DSM (APA, 2000b) — o guia psiquiátrico que descreve clinicamente o TDAH — afirma-se
que os registros da distribuição desse diagnóstico apresentam uma proporcionalidade de
quatro meninos para cada menina identificada como portadora. Já em sua quinta edição (APA,
50

2013), a proporção cai para dois meninos a cada menina diagnosticada. Isso se deve, de
acordo com o discurso psiquiátrico hegemônico, a uma maior atenção que vem sendo dada às
manifestações sintomáticas em meninas. Enquanto os meninos são mais facilmente
identificados pelos professores devido à manifestação de comportamentos externalizantes
(agitação extrema, inquietação, indisciplina), as meninas, mais calmas, quietas e
“sonhadoras”, seriam ignoradas, mesmo demonstrando um baixo rendimento escolar causado
pela desatenção. Apesar da incoerência entre os números de casos indicados por professores e
pelas equipes diretivas das escolas visitadas em pesquisa de campo, essa proporcionalidade se
reflete na realidade cotidiana escolar estudada, onde onze meninos e uma única menina foram
apontados como portadores.
Vale notar que no programa de educação não formal os diagnósticos psicológicos
e psiquiátricos, referentes a dificuldades de aprendizagem e de controle comportamental, têm
um papel secundário na abordagem dos alunos e na elaboração de projetos e estratégias
pedagógicas. A professora Renata explica:

Aqui o trabalho é outro. A gente tem essa percepção [das dificuldades de


aprendizagem] e diante das atividades, da ludicidade, da brincadeira, a gente tenta
favorecer para que a criança encontre caminhos para superar as outras dificuldades.
Porque a gente não tem um currículo formal para cumprir. Mas não que a gente não
perceba algumas coisas e não trabalhe as dificuldades. É diferente. Acho que a gente
trabalha bastante [com as dificuldades], mas não da mesma forma que a escola
[formal]. (Renata, professora de um programa de educação não formal. Entrevista
concedida em 11 set. 2015).
Nesse programa, concebe-se a criança como um sujeito integral e, devido à não
incorporação da escolarização em seu projeto pedagógico, seus professores estão
desobrigados de responder aos currículos e disciplinas estabelecidos pelo MEC ou a almejar a
construção de um “produto final” (termos usados pela professora Renata) de acordo com
metas e modelos estabelecidos externamente. Lá, as atividades e práticas cotidianas são
direcionadas a brincadeiras, rodas de conversa, contação de histórias, contato com a natureza,
exercícios físicos, enfim, ao desenvolvimento da criança em sua pluralidade, à luz dos
princípios do ECA. Privilegiam-se, assim, as relações entre pares e as especificidades das
crianças recebidas pelo programa, trabalhadas com foco no aprimoramento da autonomia e na
resolução de conflitos.
A observação dessa particularidade permite-nos pensar sobre a questão das formas
de inserção das crianças no sistema de ensino fundamental. A entrada nesse segmento da
educação brasileira ocorre aos cinco anos e meio ou seis anos de idade completos e significa
uma grande mudança nas práticas pedagógicas e nas exigências feitas aos alunos. A criança
depara-se com um novo modo de cuidar e educar, diverso daqueles da família e da educação
51

infantil. A professora Cássia reporta-se a essa mudança, focando-se, entretanto, na detecção


de sinais comportamentais ditos problemáticos:

Aos cinco anos e meio, a criança deixa um ambiente e ela tem que adentrar outro,
que é o “quadradinho” [a escola], as carteiras uma atrás da outra. Se um lápis acaba
caindo no chão, colorido, sai rolando, a criança presta atenção [nele] e deixa de
prestar atenção na professora, imediatamente — principalmente em escolas
particulares — a orientadora educacional e a psicóloga chamam a família e falam
que a criança tem uma dificuldade de atenção. Ela fica o tempo todo ali, por quatro
horas, a sociedade cobrando que as pessoas se movimentem, não devem ter muito
ócio, e depois a criança ainda precisa tomar Ritalina®. (Cássia, professora de um
programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
Diferentes professores afirmaram que a passagem da educação infantil (creche e
pré-escola) para o ensino fundamental (de primeiro a nono ano) representa uma grande
ruptura no sistema educacional. Isso se explica pela descontinuidade dos trabalhos e
competências desenvolvidas na transição de um nível da educação básica a outro. Ademais, o
diálogo estabelece-se de modo inconsistente entre suas equipes ou mesmo entre os dois
segmentos em um nível organizacional do sistema brasileiro de ensino. Neves, Gouvêa e
Castanheira (2011) reforçam a validade desse tipo relato ao afirmar que os impasses criados
por tal mudança se evidenciam no momento da entrada da criança no ensino fundamental.
A partir de sua pesquisa realizada em uma escola de educação infantil de Belo
Horizonte (composta por salas de aula, oficinas de artes, pátio e cantina), as pesquisadoras
notaram que as atividades organizavam-se destacadamente em torno das brincadeiras, com ou
sem interferência das professoras, e das rodas de conversa. Já em uma escola de ensino
fundamental, o primeiro impacto vivido pelas crianças era a entrada em um prédio maior, com
inúmeras salas de aula, laboratório, sala de informática, biblioteca, quadra coberta e pátio. Lá,
as atividades centravam-se na escrita: identificar as letras e escrevê-las, copiar conteúdos da
lousa (palavras ou números) e exercitar a coordenação motora. As brincadeiras restringiam-se
ao recreio. Substituíam-se as rodas de conversa, as negociações de conflitos e a contação de
histórias por tarefas individuais, desenvolvidas com material trazido de casa pelo aluno (ao
contrário do uso coletivo do material escolar na educação infantil) e pela organização em filas
dentro das salas de aula. Sucintamente, o ensino fundamental caracteriza-se por um acirrado
controle corporal e pela execução repetitiva das atividades escolares focadas no letramento.
Nas escolas convencionais visitadas por mim, as brincadeiras também se
limitavam formalmente aos recreios e a momentos excepcionais, como as festas
comemorativas. Nesses casos, os adultos dirigiam as atividades lúdicas, conformando-as ao
pressuposto de que, na escola, a brincadeira tem um sentido pedagógico de aprendizagem.
52

Os recreios aconteciam no que denomino “espaços livres”. Trata-se de áreas


escolares, cobertas ou não, destinadas às atividades fora da sala de aula. Nas escolas
convencionais, os pavimentos cimentados reduziam os espaços destinados a áreas verdes. As
crianças transitavam entre o refeitório, o pátio e a quadra, em um deslocamento cuja
intensidade modificava-se segundo a faixa de idade. Os alunos e alunas mais novos,
geralmente, se movimentavam mais do que os mais velhos, que preferiam formar rodas de
amigos para conversar ou jogar cartas. Havia sempre um adulto — o chamado inspetor de
alunos — acompanhando as atividades.
Já nos espaços livres do programa de educação não formal, havia um parquinho,
um grande banco de areia e áreas arborizadas. As atividades e brincadeiras realizadas nesses
espaços também eram acompanhadas por adultos. As áreas verdes tinham uma relevância
particular para professores e alunos. Lá se trabalhava a conscientização das crianças acerca da
preservação do meio ambiente, já que elas estabeleciam contato direto com plantas e com
animais de pequeno e médio porte.
A discrepância entre as formas de inserção das crianças nos espaços físicos desses
estabelecimentos é, portanto, bastante visível. A professora Tania compara-os: “Aqui no
programa a gente tem tucano, lagarto... (as professoras riem). Lá na escola não tem essa
parte de terra”. E a professora Cássia completa: “A estrutura física das escolas públicas,
normalmente elas são focadas para comportar número de alunos”.
As brincadeiras eram diversificadas em todos os estabelecimentos de ensino:
pega-pega, corre-corre, vivo-ou-morto, esconde-esconde, roda (mas uma roda mais dinâmica,
na qual um puxa fortemente o outro), chutar os colegas e seus objetos, dançar, plantar
bananeira, jogar amarelinha, pular corda, cantar, fazer caretas e inventar jogos. Permitiam-se
brinquedos somente em um dia da semana, quando as crianças podiam levar alguns de seus
favoritos. Refiro-me especialmente à escola estadual de Campinas, onde se encontravam as
crianças de seis a dez anos. No espaço de brincadeiras dos pequenos, a corda, a coroa de rei, a
tiara de princesa os piões (um modelo mais moderno e incrementado do que aquele antigo de
madeira), os carrinhos, os dinossauros, as bonecas, os acessórios de cozinha, as peças de
montar, os celulares e os tablets (frequentemente levados escondidos à escola) constituíam o
arsenal lúdico da criançada.
Em sala de aula, principalmente quando a professora se ausentava, ainda que por
alguns minutos, os alunos iniciavam jogos como a “vaca-amarela” para garantir, brincando,
que todos se mantivessem em silêncio e a turma não fosse punida. Aquele que falasse ao fim
das rimas era severamente repreendido pelos colegas.
53

Havia algo comum entre as brincadeiras realizadas nos espaços livres e as de sala
de aula: o gritar e o movimentar-se continuamente. Em meio à agitação de uma turma de
sexto ano, uma aluna me alertou: “Diagnóstico: toda criança gosta de gritar”. Os jogos
suscitavam guerras cujo vencedor era aquele que gritava mais, corria mais, chutava mais,
ganhava mais. Muitos desafetos se desencadeavam, ainda que temporariamente, nessas
relações conflituosas. Os afetos e a cumplicidade entre as crianças eram igualmente
recorrentes. Contudo, destacavam-se os atos de mover-se exageradamente até cair ao chão ou
esbarrar em alguém, falar alto e gritar, ofender os colegas, estigmatizando-os (“O Gustavo é
louco”, “O Gustavo tem seis dedos na mão”, “Quem quer que o Gustavo saia da escola
levanta a mão”, “Pelo menos eu não estou no grupo de uma retardada”, “Vitor, você é
analfabeto funcional”), desrespeitar seus pertences (“Quem chutou a garrafinha do João
como se fosse uma bola de futebol?”; “Eu vou jogar essa cola no lixo, depois o dono não vem
reclamar”), mostra-se agressivo e não gostar de perder.
As crianças movimentavam-se agilmente. Algumas se deslocavam em direção à
professora para lhe mostrar uma atividade ou um desenho, apontar algo na lousa ou pedir uma
explicação murmurando, como se desejassem que os demais alunos não as ouvissem ou
temessem que a professora não as entendesse. Outras se levantavam para conversar com os
colegas ou apontar o lápis (a lixeira era um importante ponto de encontro de alunos
irrequietos). Outras ainda, mais discretas, moviam-se incomodadas, de um lado para o outro,
porém sem retirar seu corpo da cadeira. O mover-se constantemente representava uma
inquietação pouco compreendia, mas facilmente classificada como desinteresse, indisciplina
ou hiperatividade.
Os professores falavam alto na tentativa de sobrepor sua voz ao coro entoado
pelos alunos. Um coro desafinado em que cada um “cantava” em um tom e um ritmo. Os
educadores esbravejavam sem, contudo, fazer avançar o cronograma relativo ao planejamento
escolar. A necessidade da eficiência do trabalho docente e discente atingia seu ponto
culminante. A exigência da competência saltava do papel30 e recaía sobre a realidade da sala
de aula. A “explosão” acontecia ao soar do sinal do recreio, quando as crianças deixavam a
sala em fuga para gritar e correr mais livremente no pátio. A sensação que dominava esses
momentos era a de um mal-estar generalizado entre professores e alunos.

30
As diretrizes básicas para os níveis da educação nacional enfatizam a importância do trabalho escolar no
desenvolvimento de competências (um saber-fazer operacional) dos alunos voltadas à vida social e ao mercado
de trabalho e das competências dos professores, orientadas a habilidades para ensinar, ter autonomia em sala de
aula (sem desrespeitar a base curricular) e gerir conflitos.
54

A inserção e a permanência da criança no ensino fundamental ocasionam tensões


entre a fixidez de um modelo estrutural e operacional da educação escolar e a mobilidade das
brincadeiras e inquietações infantis (e também adultas, no caso dos professores
impossibilitados de fazer prosseguir seu cronograma de aulas). No entanto, as ações voltadas
à adequação do aluno a padrões comportamentais e performáticos — definidos de antemão e
com base em regras de divisão etária, obediência e competências a ser adquiridas —
sobressaem-se às possibilidades de flexibilização das relações escolares. A valorização dos
conteúdos sobrepõe-se à incitação à criatividade e às habilidades artísticas (como defendem
os professores do programa de educação não formal) como recurso didático que enfoca o
aprender com os enganos, e não a correção imediata dos erros. Finalmente, a potencialidade
do mal-estar de crianças e adultos como um indicador da necessidade de outros olhares
ressignifica-se como indisciplina ou incapacidade. O fundamento da inserção — o motivo
principal pelo qual a criança é reconhecida como uma boa aluna — é o sucesso escolar. Para
conquistá-lo, o aluno deve corresponder a um padrão de desempenho e de comportamento.

É preciso adaptar-se e encaixar-se

A linearidade das salas de aula é notória, a começar pelo modo como os alunos
mais novos devem se organizar para chegar até elas: em filas. Lá, sentam-se com a postura
ereta e em fileiras. Na aula de artes, devem pintar com lápis de cor no sentido horizontal ou
vertical. Quem escreve torto, não completa as linhas do caderno ou sai dos contornos do
desenho está errado e deve ser reorientado. Segundo Marta Carvalho (2006, p. 292), a reta já
era, na escola brasileira do final do século XIX até a década de 1920, a regra e a norma que
constituíam o desvio e a deformidade como confirmação da necessidade de aplicação de uma
disciplina ortopédica preventiva e corretiva. Servindo como ferramenta para medir e examinar
as crianças, essa disciplina permitia construir, a partir de seus instrumentos, um conhecimento
científico do indivíduo visando a sua correção e à restituição da normalidade. Mesmo se
tratando de dois momentos históricos e sociais distintos, em ambos os casos, as estratégias
pedagógicas da linha reta fixam a criança em seu papel de aluno: a detecção de seus desvios
pressupõe a existência de padrões e limites aos quais os indivíduos devem se ajustar.
Os exames são instrumentos importantes para esses fins. Atualmente, eles
congregam a verificação e a medição da adaptação individual à disciplina escolar (uma
internalização do exercício contínuo refletido no ato de esforçar-se coerentemente para a
resolução de um problema) e da assimilação de competências sociais e cognitivas, essenciais
55

à produção da excelência escolar (PERRENOUD, 2003). Tais competências estão contidas no


currículo comum à educação nacional, sendo elas: o domínio da leitura, da escrita e de outras
linguagens usuais (de acordo com o contexto de inserção do aluno), a resolução matemática e
lógica de problemas reais, a compreensão do entorno social, a análise e interpretação de fatos
e situações e a leitura crítica de informações midiáticas31.
As avaliações são definidas e realizadas no nível local (o estabelecimento de
ensino) e nacional ou internacional (organismos responsáveis pela elaboração e aplicação de
provas e exames). No primeiro nível, trata-se de análises feitas pelos professores durante ou
ao final do ano letivo a fim de apurar o que foi ou não aprendido do conteúdo pelos
educandos. Já o segundo nível refere-se aos instrumentos padronizados, aplicados a todos os
alunos de diferentes escolas. Sua finalidade é medir suas capacidades cognitivas por meio de
provas escritas e, em última instância, monitorar o sistema de ensino. O produto final de
ambos os tipos de avaliação embasa uma comparação entre o desempenho de um estudante
com aquilo que se define, variadamente em cada um desses níveis, como êxito. Criam-se,
assim, perfis de alunos e alunas em sucesso ou em fracasso escolar. Esses perfis, por sua vez,
podem facilmente tornar-se a identidade da criança, uma vez que marcam sua carreira escolar
e, futuramente, acadêmica e profissional.
Nas microrrelações da sala de aula, além das avaliações que medem a aquisição
de competências e a assimilação de conteúdos trabalhados, as divisões e as classificações
desempenham um importante papel na delimitação dos perfis potenciais de sucesso e fracasso
escolar. Sabe-se que a divisão por séries conforme idades e fases do desenvolvimento físico e
cognitivo é o fundamento da educação formal. Uma análise histórica das disciplinas, como a
elaborada por Warde (2006), evidencia que o surgimento do saber e da prática pedagógica,
nos séculos XIX e XX, teve como base uma articulação entre a psicologia, a criança
(enquanto objeto de estudo e intervenção) e a noção de desenvolvimento. Essa articulação se
prolonga em direção à contemporaneidade — com os devidos ajustes contextuais —,
incluindo o ato de tomar o aluno enquanto uma abstração, isto é, um recorte da realidade
definido por processos psicológicos e cognitivos de aprendizagem e comportamento
(WARDE, 2006).
Isso significa que, a partir de princípios psicológicos de desenvolvimento
cognitivo (por exemplo, os estágios fundamentais à construção do conhecimento infantil,
propostos por Jean Piaget e que embasam estudos e técnicas de ensino aprendizagem ainda

31
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15548-d-c-n-
educacao-basica-nova-pdf&Itemid=30192>. Acesso em: 18 nov. 2015.
56

hoje), delimitam-se passos a ser conquistados por cada e por todos os alunos. Esses passos
correspondem às competências adquiridas ao longo do processo de ensino. O sistema
organiza-se, dessa forma, em nível macro e microssocial sobre o pressuposto de que todas as
crianças em uma sala de aula devem acompanhar um mesmo ritmo e incorporar um mesmo
conteúdo. Os problemas surgem quando um desempenho se desvia do desenvolvimento
esperado.
Nesse sentido, as competências tão valorizadas nos textos oficiais orientados à
educação parecem dizer mais respeito, na prática cotidiana escolar, à transmissão e
assimilação de conteúdos do que ao desenvolvimento de relações autônomas direcionadas à
atuação do aluno em seu espaço sociocultural. A inserção social se resumiria, por
conseguinte, à capacidade de se adaptar e se encaixar em um dado modelo cognitivo e
comportamental. E, segundo esse modelo, o aluno deve ser o melhor a fim de que seja
reconhecido. É o que a professora ensina a uma estudante: “o prêmio é para os melhores
alunos. Você se encaixa?”. Faço alusão ao episódio em que se realizava a premiação das
crianças, de uma sala de terceiro ano, que haviam feito os melhores trabalhos naquela semana.
Uma menina, que não recebera o pequeno presente, dirigiu-se à professora para perguntar-lhe
se ela também não poderia ganhá-lo. A resposta recebida evidencia que o aluno deve
corresponder a um alto padrão de desempenho e concorrer com seus colegas pelas melhores
recompensas e pelo reconhecimento como um indivíduo adaptado às exigências do mundo
escolar e social.
Adaptar-se e encaixar-se envolvem também um conjunto de expectativas relativas
à execução de tarefas de modo concentrado, eficaz, silencioso e sem erros32. Os erros são
apontados, apagados e corrigidos. A cópia de conteúdos escritos na lousa é o principal
exercício executado em sala de aula. Ele exige a resistência física e a agilidade, mas não
requisita a reflexão (“é simplesmente copiar e preencher”, respondeu a professora a uma
aluna que havia dito não conseguir fazer a atividade). O copiar orienta a introjeção repetitiva
de conteúdos e segue a lógica de que todos os alunos devem concentrar-se em sua tarefa e
terminá-la dentro de um tempo estabelecido pelo docente. Atrasos e demoras geravam, em
campo, comentários como “Achei que você copiava mais rápido”, “Você ainda está aí?” e
“Mãozinha trabalhando, a boca tem que fechar, é automático”. O aluno tem de ser eficiente

32
Segundo Faron (2014), os professores franceses relacionam a imagem do aluno, independentemente de suas
condições sociais, culturais e econômicas, a obrigações como trabalhar, estudar, aprender, obedecer, saber
privilegiar o bem-estar coletivo frente ao bem-estar individual, ser atento, calmo, concentrado em sala e
autônomo. Para aqueles que não correspondem a essas expectativas, os professores insistem na necessidade da
intervenção de especialistas competentes.
57

no que faz e no que diz. Ao contar detalhes do incidente ocorrido durante o recreio, um aluno
teve sua fala interrompida pela professora: “Seja objetivo no que você quer dizer!”.
Esse conjunto de padrões seguidos em sala de aula, aos quais os alunos têm de se
adaptar independentemente de suas diferenças e dificuldades, ocasiona então um processo de
exclusão. Isto é, a partir da positividade desse conjunto adaptativo (aquilo que deve ser feito)
consolidam-se mecanismos de exclusão dos que não correspondem ao padrão proposto. Entre
esses mecanismos, destacam-se três comumente mobilizados no espaço escolar: a segregação
física ou simbólica, a classificação negativa (estigma) e o potencial ou real atraso escolar
(repetência).
Na sala de aula, as crianças acomodavam-se em lugares geralmente definidos
pelos professores por meio dos mapas de classe, a representação gráfica desse espaço escolar
onde cada carteira é identificada pelo nome de um aluno. Por vezes, elas decidiam onde se
sentar, mas os educadores intervinham e modificavam a distribuição em caso de perturbações,
como a conversa excessiva. A disposição em sala de aula é significativa, pois delimita os
espaços ocupados por todos os alunos, demarcando as posições relativas à categoria à qual
cada um deles corresponde. Os critérios de distribuição alternavam-se entre o desempenho
escolar (dificuldades, ritmos e eficiências), o comportamento (conversas excessivas,
principalmente), uma orientação médica (por exemplo, para um aluno míope ou desatento que
deve se sentar na primeira carteira33), a relação entre os estudantes (a fim de separar aqueles
que conversavam demasiadamente), entre outros.
Por vezes, encontravam-se alunos considerados como desinteressados sentados
próximos às janelas ou em fileiras distintas daqueles que dispensavam atenção às aulas. Esse
posicionamento era sempre definido pelos professores. Vale notar que no relatório do
UNICEF acerca da exclusão escolar (UNICEF, 2014b), identificou-se entre dirigentes
municipais de todo o Brasil que o fator tido como um dos maiores entraves ao acesso de
crianças e jovens à escola era a falta de interesse pelos estudos. Se as famílias são
culpabilizadas pelos fracassos da criança e da escola, aos alunos e alunas também se atribui a
“culpa” de não se dedicarem àquilo que lhes é oferecido.

33
“Algumas estratégias pedagógicas para alunos com TDAH. Adaptações ambientais na sala de aula: mudar as
mesas e/ou cadeiras para evitar distrações. Não é indicado que alunos com TDAH sentem junto a portas, janelas
e nas últimas fileiras da sala de aula. É indicado que esses alunos sentem nas primeiras fileiras, de preferência ao
lado do professor para que os elementos distratores do ambiente não prejudiquem a atenção sustentada”.
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/br/dicas-sobre-tdah/dicas-para-educadores/item/399-algumas-
estrat%C3%A9gias-pedag%C3%B3gicas-para-alunos-com-tdah.html#sthash.duYbcIIx.dpuf>. Acesso em: 08
out. 2015.
58

Em certa ocasião, as carteiras de uma sala de terceiro ano achavam-se agrupadas


de modo diverso da costumeira organização em fileiras: dois semicírculos concêntricos
ocupavam todo o espaço, restando apenas uma carteira isolada no canto esquerdo, junto à
porta. No grupo interno encontravam-se seis crianças. Quatro delas eram consideradas pela
educadora como portadoras de dificuldades de aprender (de ler, escrever e fazer operações
matemáticas básicas ou complexas ou de acompanhar o ritmo médio da turma). As demais
sofriam de possíveis problemas que demandariam tratamento, segundo a professora
responsável pela sala. Tratava-se de um caso de “hipoatividade” (mesmo sem saber informar
o nome da condição, a docente explicou que, ao contrário da hiperatividade, o problema da
criança residiria na lentidão patológica de suas ações) e de uma hipótese de “dislexia com
visão espelhada”.
No grupo externo, os vinte “normais”, que “vão bem”, formavam um conjunto
heterogêneo de alunos com ótimo desempenho e com rendimentos razoáveis. Já na carteira
separada estava a aluna Talita, com a cabeça deitada sobre o caderno aberto. Conforme o que
foi relatado anteriormente, ela não recebia qualquer diagnóstico psiquiátrico, não passava por
tratamento especializado e tampouco lhe eram endereçadas explicações psicossociais para sua
inadequação. Ela era uma criança “sem jeito”. Pela ausência de um fundamento elucidativo de
sua situação, ignoravam ou excluíam-se os “sem jeito” física ou simbolicamente (ser colocado
pelo docente na primeira carteira junto à sua mesa, por exemplo, é uma forma negativa de
distinção) no interior de salas de aula nas escolas convencionais visitadas. A prática do
isolamento se confirmou como estratégia escolar, nesse mesmo dia, pela ameaça da
professora a uma aluna que conversava com uma colega. “Você quer que eu te isole também
como eu fiz com a Talita?”. Em seguida, outra aluna foi retirada da roda dos “normais” sob a
justificativa de que a menina era incapaz de trabalhar em grupo e que ela retornaria quando se
adaptasse a ele.
Apesar de ser uma configuração espacial pouco comum, o posicionamento dos
alunos em círculos (o que tornava todos visíveis ao olhar docente) sustentava-se sobre o
intuito de atentar de modo especial às crianças com dificuldades, ao mesmo tempo em que os
demais trabalhavam em pequenos grupos dentro do grande semicírculo externo. Tentava-se
conciliar perfis heterogêneos em termos de rendimento escolar e ritmo de aprendizagem.
Ademais, essa conformação possibilitava outras estratégias de vigilância e punição, como se
observou com Gustavo, um aluno estigmatizado por seu baixo rendimento escolar: “Vou te
59

colocar entre duas boas alunas. Eu não posso fazer nada. Elas podem te bater. E as mães
delas podem vir reclamar de você”, disse-lhe a professora34.
Nessa perspectiva, o isolamento de um aluno evidencia a existência de um desvio
a ser apontado e punido. O rompimento provisório das relações de Talita com os colegas e
com a professora servia, por um lado, como exemplo a não ser seguido pelos demais e, por
outro, como um castigo propriamente dito. O estigma (GOFFMAN, 1988) previamente criado
permitia antever, nessa e em outras situações, a potencialidade de uma nova infração. Cito
como exemplo o acontecimento que se seguiu à exclusão da menina.

Alguém bateu à porta da sala. Talita, que se aproximava de mim, disse ser ela quem
estava fazendo o ruído com um lápis sobre a carteira. [...]. Discordei, pois se tratava
de sons distintos. Mas, ouvindo nossa conversa, Gustavo anunciou para toda a
turma: “A Talita tá fazendo barulho com o lápis”. Enfurecida, a professora ordenou
que Talita voltasse ao seu lugar e disse-lhe que eu não estava ali para conversar com
ela. À sua carteira, junto à porta, a menina permaneceu quieta, porém mexeu em um
cartaz preso à parede, sendo novamente repreendida: “Onde você está, você estraga
algum objeto”. [...] Deitando sua cabeça sobre a mesa, não fez nenhuma outra
atividade, até então realizada com esforço. (Anotação de diário de campo, 27 set.
2013, p. 123-124).
A emissão do ruído, a breve conversa e a manipulação do material preso à parede
constituíram uma série de eventos perturbadores de uma ordem espacial e relacional. O
barulho não poderia ser tolerado naquele momento de concentração exigida pela atividade em
desenvolvimento. Quem o emitisse deveria ser apontado — ainda que pelos próprios colegas
—, punido e corrigido. O deslocamento da carteira, isolada das demais, e a conversa com a
pesquisadora intensificavam a perturbação, imputada sem hesitação a Talita. O manuseio do
cartaz representou a comprovação de que a imagem deteriorada de um aluno reflete-se na
interpretação de seus atos: ele “estraga aquilo que toca”.
Por fim, a repetência é o atestado conclusivo da inadequação de uma criança às
expectativas de sucesso escolar. Sobretudo de meninos, reprovados majoritariamente em 2013
e 2014, segundo os relatos docentes nas diferentes escolas visitadas. As causas da reprovação
nunca eram verdadeiramente analisadas pelos professores entrevistados, transitando entre a
culpabilização da família pela carência de estímulos, a culpabilização da criança pelo
desinteresse pelos estudos e a “falta de Ritalina®”35. Marcava-se negativamente o aluno

34
Outros tipos de ameaça foram identificados em falas de professores, tais como “vou ter que filmar seu
comportamento para mostrar para a sua mãe?”. Os bilhetes endereçados aos pais relatando um mau
comportamento também eram instrumentos adotados comumente, assim como a convocação de alunos a “dizer a
verdade” (leia-se: delatar um colega).
35
Faço menção à afirmação de uma diretora escolar, convencida de que um de seus alunos do sexto ano havia
sido reprovado por falta de Ritalina®. Entende-se de sua explicação que o medicamento poderia ter controlado a
indisciplina do aluno em sala de aula, permitindo-o concentrar-se e dedicar-se aos estudos.
60

“repetente” sem que práticas pedagógicas específicas fossem elaboradas a fim de lançar um
novo olhar sobre as falhas decorridas no ano letivo anterior.
A exclusão das crianças em virtude de sua inadaptação — da frustração das
expectativas adultas, conforme os termos usados por Calligaris (1994) e Schérer (2009) — ou
ainda a construção do estatuto da criança com dificuldades de aprendizagem, promovida por
sua separação física em relação aos bons alunos, fazem emergir no interior da sala de aula a
“não infância”. A “não criança” ou a criança “sem jeito” revela aos professores a
impossibilidade de educar diferentes alunos segundo um único modelo de aprendizagem sem
adoecer ou de cumprir um denso cronograma sem se abalar com o sentimento de culpa e de
fracasso na função docente. Trata-se de um fato óbvio, porém sempre evitado, já que
travestido de incapacidade em um contexto de valorização de competências. Evidencia-se
igualmente a fragilidade da educação escolar — ainda que o lema básico das políticas
públicas seja a proteção e promoção dos direitos à criança — e, assim, a dificuldade de o
educador restabelecer a ordem na sala de aula e, ao mesmo tempo, estabelecer o diálogo com
seus alunos. Em última análise, essa situação mostra que, apesar dos esforços despendidos, as
crianças estão sofrendo dentro dessa escola contemporânea.
A exclusão e o sucesso escolar não são as únicas condições que produzem a
criança-aluno. Relações entre pares também constituem formas de socialização coexistentes
com os modos de inserção social propiciados pela família e pela escola. Na
contemporaneidade, até mesmo as redes sociais são meios de socialização. Contudo, no
modelo escolar vigente, ao qual a criança se integra aos seis anos de idade, sucesso e fracasso
(ou o desempenho social, cognitivo e emocional do indivíduo, uma noção fundamental a
categorias clínicas como o TDAH) são o termômetro das ações escolares e, igualmente, seu
objetivo final. O pressuposto é de que o êxito na escola garante o sucesso social da criança e,
assim, sua realização como cidadã.
Entendo, portanto, ser possível presumir que o mal-estar e a crise da escola
surgem da ineficiência da instituição escolar em permitir à criança adaptar-se e corresponder a
esses padrões e, assim, garantir-lhe seu estatuto de sujeito de direito, de indivíduo a ser
cuidado e educado e de criança autônoma. E no ponto de cruzamento dessas figuras que não
se constituem em realidade (ou que, sob outra perspectiva, formam-se de modo diverso,
colocando em questão as expectativas adultas acionadas) está a criança hiperativa e desatenta.
61

1.4. Considerações sobre a criança hiperativa e desatenta

Concebe-se, a partir dos relatos coletados e dos discursos especializados


mobilizados em campo, a criança hiperativa e desatenta (embora este atributo seja menos
considerado) como aquela que não corresponde às demandas e expectativas sociais voltadas à
socialização e à constituição adequada dos comportamentos infantis. Hiperatividade é um
termo técnico que, popularizado, agrega diferentes elementos, desde a agitação extrema até a
indisciplina. A professora Lívia é assertiva acerca das consequências da confusão entre
manifestações comportamentais diversas:

A escola chega para o pai e fala “seu filho é hiperativo”, só que muitas vezes o
professor não tem essa formação. Então a escola acaba reproduzindo na forma de
um chavão: uma criança agitada hoje é uma criança hiperativa. (Lívia, professora de
um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14 ago. 2015).
Nesse excerto, a professora problematiza a indistinção entre a criança agitada e a
criança hiperativa, criticando, no conjunto de seu relato, a produção escolar de uma demanda
desmedida de encaminhamentos psicológicos e psiquiátricos, sob a suspeita da existência de
casos de TDAH. Trata-se, para ela, de uma ação ilusória, pois é o médico especialista — e
não o professor, que “não tem essa formação” — quem deve afirmar se uma criança
manifesta ou não sintomas desse transtorno. A problemática que se coloca excede, entretanto,
a ilusão para se instalar no âmbito da difusão real de discursos competentes a dizer a verdade
sobre o TDAH. E tal difusão inicia-se na escola.
Deve-se também reter dessa problemática o fato de que é na escola onde a
agitação e a hiperatividade tornam-se um problema comportamental. Essa constatação
coincide com o consenso consolidado entre os psiquiatras, com anuência do Manual
diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, de que a entrada da criança na escola é o
momento-chave da procura intensiva por profissionais especializados e do estabelecimento de
diagnósticos de TDAH. Embora aumente progressivamente o número de crianças
identificadas como hiperativas aos três anos de idade, a passagem para o ensino fundamental
ainda se destaca como origem desse fenômeno. E, considerando as análises feitas
anteriormente acerca do impacto das grandes mudanças proporcionadas às crianças que
iniciam essa etapa do sistema educacional, da fixidez de suas relações de ensino e
aprendizagem e da importância secundária dos diagnósticos psiquiátricos relativos a
dificuldades de aprendizagem no programa de educação não formal, tem-se que disciplina e
hiperatividade (como desvio) relacionam-se intimamente.
62

A disciplina, nos termos foucaultianos, é uma forma de atuação direta sobre o


corpo individual, cuja finalidade é torná-lo politicamente dócil e economicamente útil. A
escola é uma instituição disciplinar. Suas práticas pedagógicas visam à transmissão de um
determinado conjunto de conhecimentos e, acima de tudo, objetivam a contenção do corpo
infantil. A passagem por etapas progressivas, obrigatórias e necessárias e as divisões em
idades e em níveis de ensino orientam o sentido de sua aprendizagem. Guias habilitados
conduzem os alunos em exercícios individuais sobre si mesmos, executados em espaços bem
delimitados. Neles, é possível localizar cada indivíduo, observar suas presenças e ausências,
sancionar seus comportamentos, medi-los, classificá-los e hierarquizá-los. Controlado em seu
lugar dentro da sala de aula, o aluno é exercitado a produzir e, então, recompensado ou punido
conforme a classificação que recebe por sua produção. Individualizado, cada corpo torna-se
parte de uma multiplicidade organizada dentro de uma arquitetura institucional coerente com
uma determinada ordem social (FOUCAULT, 1991b; 2006b).
A importância essencial da instituição escolar na inserção social infantil encontra-
se no relato de Luan acerca de sua condição de criança hiperativa, diagnosticada como
portadora de TDAH:

Por mim e pra minha vó, hiperatividade é a pessoa não parar quieta. Fazer tudo o
que quiser ao mesmo tempo. Isso não me atrapalha (disse ele, entre um sorriso e um
riso). Mais ou menos na escola, porque eu fico prestando atenção em tudo. Quando
me distraio, fico pensando em videogame, jogo de computador. Por que não saio da
escola logo. (Luan, 13 anos. Entrevista concedida em 01 jul. 2013).
A hiperatividade pouco ou nada atrapalha o desenvolvimento das atividades
cotidianas, como o jogar videogame, evocado pelo menino como a possibilidade de fuga da
pressão escolar. Dentro da instituição, no entanto, o “não parar quieto” e o “fazer tudo o que
quiser (ao mesmo tempo)” indicam os desvios da linearidade escolar e da obediência. Afinal,
não se pode fazer tudo o que quiser sem o consentimento do adulto. Há regras a respeitar. O
descumprimento dessa premissa impossibilita a individualização da criança, o controle
corporal e a moldagem de seus comportamentos e conhecimentos dentro de um dispositivo
disciplinar (ainda que em crise) afinado a uma ordem social. Tal impossibilidade requer uma
intervenção.
A intervenção sobre a criança somente pode acontecer quando ela é reconhecida
como sujeito. Isto é, como um indivíduo inserido em jogos de forças dos quais ele está
habilitado a participar, ainda que a partir de uma posição subjugada e determinada pela
questão do desenvolvimento (e, posteriormente, da vulnerabilidade). A criança passou a ser
reconhecida como tal já no final do século XIX e início do XX. No entanto, é na
63

contemporaneidade que sua participação na cena social torna-se central. Hoje, ela é tida como
capaz de se autoconstituir como sujeito, de seguir seu próprio caminho, de decidir por si
mesma, contanto que suas competências e habilidades sejam adequadamente aprimoradas por
intermédio do investimento familiar, escolar e governamental. A criança hiperativa e
desatenta é, nesse contexto, reconhecida como indivíduo, mas um indivíduo que, por motivos
específicos, não é capaz de se constituir como sujeito individualizado (isto é, adaptado à
disciplina escolar) e tampouco como sujeito autônomo e competente. Parte do problema será
então definida pela psiquiatria dominante como advinda de disfunções cerebrais, parte caberá
às instituições de cuidado da criança, com destaque à escola.
Uma vez que a hiperatividade é delimitada como sintoma patológico de um
transtorno mental (o TDAH), as estratégias pedagógicas tornam-se pouco eficientes em vista
do caráter técnico da intervenção demandada. O relato da professora Lívia reafirma a
necessidade de uma abordagem específica e especializada direcionada às crianças hiperativas:

Em dez anos de educação não formal e dez anos de rede [pública de ensino], eu tive
um hiperativo. Quem tem aluno hiperativo sabe o que é hiperatividade, o resto é
agitado. Essa criança precisa de Ritalina® sim. Esse caso! É um para mil. Porque a
criança se arrastava no chão, ela entrava embaixo de carteira, e aquilo tumultuava a
sala inteira, a escola inteira. Mas era aquele aluno. Medicou, melhorou. (Lívia,
professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 14
ago. 2015).
A intervenção, nesse caso, faz-se por intermédio da Ritalina®, o principal
medicamento destinado ao tratamento do TDAH. Para sua aplicação, o professor deve ser
hábil na identificação da criança hiperativa a fim de diferenciá-la daquela agitada, com a qual
os profissionais de educação sabem (ou deveriam saber) lidar. Porém, o médico especialista é
o único habilitado a fornecer as explicações aos professores e pais e os instrumentos para que
a criança hiperativa supere sua incapacidade, individualize-se e seja reconhecida, por meio de
uma boa socialização, como sujeito socialmente adequado. A intervenção sobre seu corpo e
sobre seu cérebro lhe garantirá isso, de acordo com o discurso técnico-científico.
A hiperatividade e, sobretudo, a representação da criança hiperativa e desatenta
extrapolam a questão disciplinar ao se filiar ao direito individual voltado às vulnerabilidades,
necessidades e diferenças. Esse tipo de investida é o objetivo fundamental de grupos como a
Associação Brasileira do Déficit de Atenção. Caracterizada como uma associação sem fins
lucrativos, fundada em 1999, a ABDA tem como objetivo “disseminar informações corretas,
baseadas em pesquisas científicas” sobre o Transtorno do Déficit de Atenção/Hiperatividade
(TDAH)36. Ademais, ela oferece suporte a portadores desse transtorno e a seus familiares

36
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/br/a-abda/historico.html>. Acesso em: 27 jun. 2015.
64

através de grupos de apoio, atendimento telefônico, respostas a e-mails e postagens de


conteúdos em sua página eletrônica e redes sociais. Trata-se de uma referência nacional na
luta pela desestigmatização e inclusão social e escolar de crianças com TDAH, além da ação
de divulgação de informações oficiais (isto é, cientificamente embasadas por estudos em
psiquiatria, neurologia ou neurociências) sobre o transtorno.
Na esfera pública, tem a função de pressionar figuras de autoridade no âmbito
legal pela elaboração e aprovação de leis que assegurem o acesso dos escolares ao diagnóstico
e tratamento do transtorno, o reconhecimento de suas diferenças e a aplicação de práticas
compensatórias e adaptativas nas atividades em sala de aula. Aumenta progressivamente a
quantidade de notícias midiáticas sobre alunos diagnosticados com TDAH que tiveram sua
reprovação escolar revertida após um processo judicial aberto por pais contra escolas,
alegando a carência de auxílio escolar na superação das dificuldades e deficiências do aluno.
O problema que então se constrói em torno da criança hiperativa e desatenta
relaciona disfunção cerebral, vulnerabilidade social e socialização. A autonomia (o agir por si
mesmo) configura-se também como um tema subjacente, uma vez que caracteriza o TDAH
enquanto um distúrbio das funções executivas responsáveis pela autorregulação e autodireção
das ações. Esse tipo de controle é fundamental à gestão efetiva de si no que toca à tomada de
decisões e à resolução de problemas visando a objetivos presentes e futuros37. Essa é a
definição dada ao TDAH pelo especialista estadunidense Russell Barkley, tido como uma
sumidade no assunto.
De acordo com essa perspectiva, predominante no Brasil — ainda que em
concorrência com outras vertentes que também tomam a criança hiperativa como seu objeto
de conhecimento e intervenção, como é o caso da psicanálise38 —, o TDAH advém de uma
descoberta científica recente, datando dos anos 1980 e 90. No entanto, haveria indícios de que
a origem do transtorno é anterior, o que o caracterizaria como uma manifestação independente
de contexto social e do tempo histórico. A categoria muda de nome (“defeito no controle
moral”, denominação definida por George Still em 1902, “encefalite letárgica”, “lesão
cerebral mínima”, “disfunção cerebral mínima” e “hiperatividade”), porém os sintomas
seriam sempre os mesmos, ou pelo menos muito similares.

37
Disponível em: <http://www.russellbarkley.org/factsheets/ADHD_EF_and_SR.pdf>. Acesso em: 02 dez.
2015.
38
Na perspectiva psicanalítica, a hiperatividade é um fenômeno comportamental-emocional. O comportamento
de uma criança define-se a partir de um conjunto de sistemas de interação que regulam tanto o funcionamento
cerebral quanto as condutas comportamentais. Os registros corporais do adoecimento psíquico dialogam, assim,
com a biografia do indivíduo.
65

Consolidando o TDAH como uma descoberta científica, esse discurso dominante


impõe o saber técnico e as causas neurológicas como princípios explicativos sobre o problema
da socialização infantil. Rodrigues (2009, p. 166-167), apoiando-se em Foucault, afirma que a
tecnocracia isenta-se de analisar as correlações entre discurso científico com outras práticas
sociais, incorrendo na busca de inimigos internos ou perigos biológicos. Assim como a
culpabilização da família verificada nos estudos de Alvim e Valladares (1988), a questão
política se oculta mediante a legitimidade da técnica científica voltada ao TDAH, sobretudo
quando se trata de encontrar no cérebro o centro das disfunções sociais, emocionais e
cognitivas do indivíduo. As vulnerabilidades psicossociais, a autonomia, a esperança de um
futuro melhor, a escolarização e a inserção social da criança passam pelo discurso técnico-
científico especializado e transformam-se em elementos de perfis de risco39, em incapacidade
de autorregulação comportamental e emocional, enfim, em fracasso social e escolar a ser
tratados medicamente. A escola, instituição indispensável à inserção da criança na esfera
pública e à individualização da criança apta a participar de sua sociedade, figura então como o
local privilegiado de ação especializada, sobretudo quando ela é vista como uma instituição
em crise.

39
Risco é um conceito probabilístico relativo à produção racional, lógica e reducionista de perfis individuais e
coletivos.
66

CAPÍTULO 2

“Qual é a função da escola?”: uma análise da crise escolar e da intervenção


especializada no funcionamento social

A crise da instituição escolar é um tema contemporâneo de debate público. Paula


Sibilia (2012, p. 13) inicia seu livro Redes ou paredes afirmando: “Entre tantas perguntas em
aberto e cada vez mais difíceis de responder, [...] uma certeza é quase óbvia [...]: a escola está
em crise”. Essa situação, para a autora, constitui-se a partir da incompatibilidade entre o
dispositivo escolar disciplinar, ainda vigente, e as subjetividades infantis contemporâneas
(isto é, os modos atuais de ser criança). Estas são marcadas pelo acesso fácil e rápido às
tecnologias e às informações, o que pressupõe uma habilidade de mudar de um foco a outro
“em um clique”. Associada a um “espírito empresarial” — caracterizado pela espontaneidade
inventiva, capacidade de adaptar-se com rapidez, livre iniciativa e motivação — e ao
consumismo, tal habilidade se contrasta com a comunicação escolar, alicerçada sobre uma
competência individual de se concentrar exclusivamente na palavra do professor.
Sumariamente, a crise escolar residiria na ingerência dos modos de socialização infantil que
incitam a criança, de um lado, a movimentar-se rapidamente e mudar o foco de sua
concentração instantaneamente e, de outro (na escola), a manter-se sentada, quieta e centrada
no professor.
A análise da inserção social da criança, elaborada no primeiro capítulo, permite-
nos considerar válida a constatação de Sibilia. Todavia, a condição de crise da escola
contemporânea institui-se de modo mais complexo. Se há realmente uma estrutura disciplinar
que ainda orienta as práticas escolares, ela compartilha o cenário com mudanças internas e
externas à escola. Diferentes aspectos se articulam: estrutural e arquitetônico (infraestrutura
precária), laboral (más condições de trabalho docente), relacional (diálogos e conflitos em
níveis macro e microssociais, como aqueles que ocorrem na relação entre escola e família) e
de conhecimento técnico. No que toca às experiências dos professores, uma indagação é
consensual40: qual é a função social da escola contemporânea e de seus profissionais? Essa é a
pergunta que (des)orienta os educadores de ensino fundamental participantes da pesquisa de
campo que subsidia esta tese.
A importância de tal pergunta ganha uma amplitude ainda maior quando se trata
de analisar o aumento progressivo do número de diagnósticos e tratamentos do Transtorno de

40
Esse tipo de questionamento aparece também em estudos brasileiros em pedagogia e em psicologia escolar,
como os de Mesquita (2009), Landskron e Sperb (2008), Seabra (2012) e Freitas e Silva (2014).
67

Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Visto que a entrada no ensino fundamental é


um acontecimento relevante à identificação de crianças como portadoras do TDAH — o que
equivale a dizer que nesse momento de inserção infantil na esfera pública a hiperatividade, a
desatenção e a impulsividade tornam-se manifestações comportamentais mais incômodas —, a
pergunta adota uma nova perspectiva: qual é a relação estabelecida entre a crise escolar e o
aumento de encaminhamentos psicológicos e psiquiátricos e do número de diagnósticos de
TDAH em crianças?

2.1. As condições da crise escolar

Em 2012, as vendas nacionais do medicamento clonazepam — mais conhecido


como Rivotril®, produzido pelo laboratório Roche — movimentaram R$113,96 milhões,
posicionando-o como o décimo terceiro produto farmacêutico mais vendido no Brasil naquele
ano. Em 2013, o país tornou-se o maior fabricante do composto, produzindo 3,2 toneladas ao
ano. Trata-se de um benzodiazepínico41, prescrito para transtornos de ansiedade e de humor,
cada vez mais consumido por profissionais da educação (FÓRUM, 2015).
De acordo com o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São
Paulo (APEOESP, 2013), o transtorno de ansiedade ou pânico e a depressão são as principais
causas de afastamento por licença médica em um grupo de profissionais da rede estadual de
ensino42. Tais condições clínicas concorrem com a rinite e alergias, a hipertensão arterial, a
tendinite, a bursite ou dor muscular e a laringite ou rouquidão. Outro estudo, organizado pela
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação e pela Universidade de Brasília no
fim da década de 1990, mostrou que, dentre os 52 mil professores ouvidos em todo o país,
48% sofriam naquele momento de sintomas da síndrome de burnout. Esse quadro clínico tem
como sintoma característico a exaustão física, mental e emocional persistente. A baixa
autoestima, o sentimento de fracasso e a desvinculação do professor em sua relação com
alunos e colegas de trabalho acompanham os sinais de esgotamento. Dada a sua alta
prevalência no mundo laboral contemporâneo, tal síndrome já é catalogada pela décima
edição da Classificação Internacional de Doenças (CID-10) como uma doença profissional
(APEOESP, 2013).

41
Os benzodiazepínicos inibem levemente diferentes funções do sistema nervoso, causando ações
anticonvulsivantes, alguma sedação, relaxamento muscular e efeito tranquilizante (RIVOTRIL®, 2013).
42
Os dados advêm de uma pesquisa realizada pela APEOESP em dezembro de 2010. Dela participaram 936
profissionais de educação, sendo 69% de mulheres e a maioria branca.
68

As causas apontadas nos estudos como fatores desencadeadores do sofrimento que


acomete os professores de educação básica são: as ameaças explícitas ou implícitas feitas por
superiores, a falta de infraestrutura escolar e de instrumentos pedagógicos, a ausência de
formação e de apoio, a jornada de trabalho excessiva43, a superlotação das salas, a
responsabilização do professor pelos problemas da educação e a desvalorização social e
financeira de seu trabalho. O mal-estar também deriva de relações entre professores e alunos,
sobretudo quando ambos enfrentam cotidianamente situações de dificuldades de
aprendizagem, violência ou pobreza extrema — circunstâncias com as quais os profissionais
de educação sentem-se inaptos a lidar — e de agressões verbais e físicas.
O cenário crítico onde se organizam as relações escolares e educativas tem,
portanto, o adoecimento de professores como o sintoma mais visível de uma crise da escola
contemporânea. Crise que deve ser entendida em suas diferentes variantes, seja no sentido das
mudanças enfrentadas, seja na perspectiva da perda de referências, ou da impossibilidade de
se responder a um determinado projeto de inserção e pertencimento social (aquele em que a
criança é um indivíduo em desenvolvimento a ser protegido e, ao mesmo tempo, a ter
garantido seu direito de tornar-se autônomo).
O sociólogo Danilo Martuccelli (2015) elenca as três principais tarefas da escola
nas sociedades contemporâneas: a socialização (o aprendizado de regras essenciais à inserção
social do indivíduo), a distribuição de diplomas (e, consequentemente, a seleção de pessoas) e
uma “função educativa” (a capacidade de cuidar e de transmitir ideais ou modelos morais e
éticos de indivíduo). A crise escolar reside, segundo esse sociólogo, no desaparecimento desta
última tarefa. Ou seja, na inaptidão da escola de fornecer instrumentos e conhecimentos que
permitam aos alunos questionar suas próprias verdades e tradições. A ausência dessa função
evidencia a inexistência de um claro projeto educativo, uma vez que as sociedades
contemporâneas têm cada vez mais dificuldade de formular um. Resta então à escola sua
função de socialização de crianças e adolescentes, de seleção de candidatos e de distribuição
de diplomas (MARTUCCELLI, 2015).
Essa afirmação acerca da função social escolar tem relação com a constatação
feita pelo professor Jorge em campo de pesquisa:

43
A maioria dos professores participantes da pesquisa da APEOESP atuava apenas na rede estadual de ensino
(69%), enquanto 21% dividiam seu tempo entre escolas estaduais e outras não especificadas e 10% trabalhavam
em escolas estaduais e em outras atividades fora da área de educação. A carga horária média de trabalho efetivo
em sala de aula correspondia a 35 horas semanais. A média de alunos em sala era de 37,8 estudantes.
69

A escola está deixando de ser local de aprendizagem para ser local de... (“Babá”,
alguém completa). [...] A escola virou simplesmente socialização. (Jorge, professor
da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
A inserção social da criança é uma importante função ainda desempenhada pela
escola. Nesse sentido, a distinção entre socialização e aprendizagem que se opera no cotidiano
escolar diz respeito a uma mudança no papel de cuidado atribuído ao professor. O termo
“babá” indica essa mudança e traz à cena os embates travados entre escola e família,
conforme o que foi apresentado no primeiro capítulo. As professoras não são mais “tias”,
antiga denominação usada por crianças pequenas para designar educadoras ou outras
mulheres que não suas mães, em um claro movimento de familiarização das relações. Agora,
professoras e professores são “babás”, profissionais a quem se atribui, mediante pagamento, o
dever de cuidar de alguém de forma substitutiva ou complementar à família.
A partir de outra perspectiva, entretanto, a atribuição de novas funções ao
professor reflete um deslocamento do olhar sobre o aluno. Substitui-se um modelo abstrato e
genérico por outro que entende a criança como um sujeito global, constituído pelas relações
dadas em diferentes âmbitos da vida coletiva e individual.

Hoje o professor não pode ser só pedagogo, não. E já faz um bom tempo que não dá
para ser só pedagogo. Você ensina ética, você ensina moral, você ensina higiene,
você ensina a parte biológica da coisa, você tem que trabalhar os sentimentos, vamos
dizer, o ser e não o ter. [...] Então ele vai ter que lidar com diferentes formações,
com diferentes indivíduos, com diferentes características. E ele vai ter que trabalhar
esse indivíduo como um todo. Ele não vai poder trabalhar só o pedagógico. (Maria
Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
Não ser somente pedagogo implica uma polivalência do profissional de educação.
Polivalência que ora é vista como intrínseca à profissão docente (já que a relação com o ser
humano é seu principal objetivo), ora como um novo caráter a ser combatido, pois resulta,
nessa perspectiva, de um abuso cometido por pais que não assumem suas responsabilidades
ou pelo Estado que abandona os professores. Aqui, a dualidade da crise reaparece. Sua
positividade orienta a visão à mudança, algo fundamental às relações humanas. Em sua
negatividade, a crise é a perda de valores, de referências e de modelos.
Independentemente do ponto de vista que se adote, o desgaste vivido pelos
professores e o não reconhecimento de sua profissão são motivos reais de sofrimento. O
professor Everton fornece um exemplo: “Acho que o problema maior é a carga horária do
professor, o acúmulo de dois cargos, tudo isso que... É muito cansativo”. Aí está um primeiro
ponto a ser observado (já indicado pela pesquisa da APEOESP): os profissionais de educação
acumulam cargos a fim de complementar sua renda.
70

O piso salarial nacional dos professores da rede pública de educação básica, com
jornada de 40 horas semanais, é atualmente de R$ 1.917,7844. Na rede pública de ensino do
estado de São Paulo, o professor de educação básica I – PEB I (habilitado a alfabetizar e
ministrar aulas de ciências básicas a criança de cinco a dez anos de idade) tem o salário inicial
de R$ 2.086,93 por quarenta horas semanais, enquanto o PEB II (licenciado em disciplinas
específicas do sexto ao nono ano e do ensino médio) recebe inicialmente R$ 2.415,89 para a
mesma carga horária45. Para os professores contratados como horistas, o valor da hora/aula é
de R$ 10,43 para o PEB I e R$ 12,08 para o PEB II. Esses valores estão acima da renda média
domiciliar mensal per capita do estado (segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, realizada pelo IBGE em 2014, a renda média por pessoa no estado de São Paulo é
de R$ 1.432,00). Ainda assim são cifras injustas em vista do tipo de trabalho desempenhado
no âmbito da educação escolar (além das aulas em sala, é preciso elaborar cronogramas,
preparar conteúdos e materiais, corrigir provas, participar de reuniões etc.).
O grande número de alunos em sala de aula é outro problema. De modo geral, os
professores entrevistados em campo relataram conseguir manejar suas atividades mesmo com
vinte ou trinta alunos em sala, sendo ele ou ela o único profissional presente naquele espaço.
Contudo, a concentração de crianças em um pequeno ambiente torna-se profundamente
problemática quando os comportamentos infantis saem do controle. A professora Vera afirma:

Você tem uma sala com mais de trinta alunos e aquele que é super agitado. Ele
desestrutura uma sala inteira, você tem que cuidar dele e dos outros trinta para que
eles não caiam, não machuquem, não aconteça alguma coisa. É difícil também. Não
é só saber pedagogicamente como lidar com ele: lidar com ele e com todos os outros
e com a desestruturação que ele causa na sala. (Vera, professora da rede municipal.
Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
As consequências de uma situação caótica causada por um único aluno agitado ou
indisciplinado são diversas, indo desde a solicitação de encaminhamento da criança
perturbadora a especialistas até sua exclusão no interior da sala de aula, como se viu mais
detalhadamente no capítulo precedente. O mal-estar causado nesses momentos leva os
professores a se sentir culpados pela impossibilidade de atender a todos os alunos. Diante da
limitação da estrutura escolar que se impõe nesse sentido, Carlos confidencia:

É até mesmo coisa de opção. É! A gente prioriza: ou você vai atender a um só


ouvinte [ou] é melhor atender vinte e deixar um. Claro que não é o correto, o certo é
dar assistência a todos, mas a gente acaba priorizando. (Carlos, professor da rede
municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).

44
Disponível em: <http://portal.mec.gov.br/piso-salarial-de-professores?id=21042>. Acesso em: 25 nov. 2015.
45
Disponível em: <http://www.apeoesp.org.br/salario-base/>. Acesso em: 25 nov. 2015.
71

Frases como “eu me sinto impotente” e “nós não sabemos o que fazer” foram
recorrentemente enunciadas pelos professores e professoras participantes da pesquisa.
Impotência, desconhecimento, fracasso e culpa são, assim, sentimentos que movem os
educadores e os fazem questionar sua função social. Alia-se a esse mal-estar a constatação de
que os conteúdos e conhecimentos transmitidos aos alunos são monótonos e pouco funcionais.
“É um tipo de conhecimento que para eles, como crianças, não tem função nenhuma. Quando
ele [o aluno] sai da escola, daí ele vai fazer aquilo que ele gosta”, afirma o professor
Everton. Essa realidade é igualmente apontada por relatórios, como o do UNICEF (2014b),
em que a consideração precária das diferenças culturais e cotidianas vividas pelas crianças
dificulta o diálogo entre alunos e professores.
Ademais, os educadores — sobretudo aqueles que lecionam em salas de sexto ano
— acreditam que o mau desempenho dos alunos tende a se generalizar devido à preparação
deficiente, principalmente em matemática e português, resultante dos primeiros anos do
ensino fundamental. Uma das soluções encontradas por alguns desses docentes para amenizar
o desconforto causado pelo desconhecimento (tanto de professores quanto de alunos) é “dar
nota” ou reprovar os educandos que não demonstram um desempenho ideal e com os quais
esses profissionais acreditam não saber lidar. O professor Everton diz: “Que práticas
pedagógicas nós usamos? Nenhuma. Damos nota ou repetimos. É isso que nós fazemos. Nós
não sabemos o que fazer: essa é a realidade”. Essa prática evidencia que há pouco espaço
para a singularidade do professor e do aluno, presos a um modelo predeterminado. O fato se
agrava, no ponto de vista dos professores, pela inexistência de uma relação eficiente entre
serviços de saúde e de educação, dificultando, no caso de alunos portadores de um laudo
médico ou psicológico, o acompanhamento e a elaboração de estratégias pedagógicas
específicas.
O sentimento de impotência se conjuga então ao de abandono. O Estado (em sua
esfera de atuação municipal, estadual ou federal) é considerado incapaz de definir a função
social da escola na atualidade (mas essa é uma responsabilidade exclusiva do Estado?). Em
decorrência dessa situação, ele é acusado de impor papéis ao professor para os quais esse
profissional acredita não ter conhecimento para cumprir. A fala do professor Jorge, transcrita
a seguir, tematiza as estratégias pedagógicas direcionadas a crianças com alguma condição
psiquiátrica ligada à aprendizagem. Porém, ela aponta para uma questão mais profunda: a do
profissional de educação polivalente.

Mas a gente não é preparado para isso [lidar com os transtornos psiquiátricos]. Nós
não estamos, não temos base para isso. Não há nenhuma matéria que você tenha
72

estudado em uma faculdade que lhe dê base para isso. O Estado nos empurra goela
abaixo essa função. O Estado, de forma geral, nos empurra para que a gente faça
aquilo que deveria ser o serviço de um psicólogo que deveria ter dentro da escola, e
não temos, uma assistente social que deveríamos ter dentro da escola. [...] você,
professor de geografia, [teve] quantas aulas de psicopedagogia para trabalhar isso?
(Jorge, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
O acesso ao conhecimento técnico, representado aqui pela psicopedagogia, é uma
reivindicação docente tida como fundamental à relação entre professor e aluno (o “aluno
difícil”, principalmente). Nesse sentido, considera-se o Estado como igualmente incapaz de
disponibilizar aos professores meios de superar seu desconhecimento, seja uma formação
mais adequada à atual realidade das escolas públicas brasileiras, seja a colocação de
especialistas (psicopedagogos, psicólogos, fonoaudiólogos, assistentes sociais) dentro do
espaço escolar.
A infraestrutura escolar constitui, assim, outro aspecto problemático aos olhos dos
professores, que relataram haver bons projetos, mas não recursos para desenvolvê-los. No
caso dos alunos com deficiências, existem em algumas escolas (embora não seja a situação
dos estabelecimentos de ensino visitados durante a pesquisa) salas de recursos
multifuncionais. Seu objetivo é permitir a inclusão das deficiências e diferenças dentro da
escola de ensino normal. Muitas delas, porém, estão fechadas ou carecem de profissionais
especializados para coordenar suas atividades.
Em um plano mais geral, a carência de recursos para projetos explicita-se quando
o assunto é tecnologia. As escolas visitadas dispunham de computadores acessíveis aos
alunos. Contudo, eram máquinas obsoletas e muitas vezes em mau funcionamento. Para
crianças que têm acesso precoce a esse tipo de tecnologia, torna-se desinteressante o uso de
computadores mais antigos do que os seus próprios. Além disso, os projetos geralmente
contam com a parceria de empresas de informática, como a Microsoft no caso da escola
municipal mojimiriana, e trazem para o estabelecimento de ensino programas avançados e,
por isso, incompatíveis como os recursos escolares disponíveis. A professora Maria Luiza
exemplifica a situação ao constatar que em sua escola, localizada no interior de uma
importante universidade pública, repleta de recursos informacionais de ponta, não se dispunha
de acesso remoto à internet. Ela diz: “A gente está no meio de tanta tecnologia e aqui estamos
na precariedade”.
Esse conjunto de novas exigências e premissas da carreira docente coloca aos
professores novos desafios, por vezes manejados com dificuldade e resistência. A crise então
emerge como problemática central da educação escolar. Um descompasso se estabelece entre
a função social exigida externamente (pelas condições criadas por políticas públicas, famílias
73

e novas formas de ser criança e de se inserir na sociedade) e a função realmente


desempenhada internamente à escola. De acordo com Soares (1991), a crise escolar é um
fenômeno que já data de algumas décadas. Trata-se de um efeito do processo de
democratização do ensino. Ou melhor, da ausência de uma reformulação interna dos objetivos
e funções da escola diante da inclusão dos alunos de classes desfavorecidas e,
consequentemente, do movimento de crescimento quantitativo e de diversificação do corpo
discente. Parece que ainda hoje a escola é desafiada pela emergência da criança como sujeito
de direito, bem como com por seu novo estatuto enquanto filha e aluna.

2.2. Uma crise de autoridade? Hierarquias e diálogos entre professores e alunos

Duas questões destacam-se dos relatos de professores acerca da crise escolar: a


indisciplina (representada na figura do aluno que, sozinho, é capaz de “desestruturar toda
uma sala”) e o auxílio de especialistas. Elas indicam que é no plano da relação com o aluno e
no plano do conhecimento técnico que se fortalece um sentimento de crise de autoridade.
O professor tem um papel político. De acordo com Arendt (2000), ele é
responsável pela inserção da criança na esfera pública (o que, sob outras perspectivas, se
denomina “socialização”) e pela concretização da função educativa, a saber, mostrar ao aluno
o que a sociedade realmente é. Mas, acima de tudo, cabe ao professor “salvar o mundo da
ruína da permanência”. Ele deve permitir o estabelecimento de um diálogo entre o passado e o
presente, o antigo e o novo, já que a criança porta consigo a possibilidade da renovação das
relações. A crise de autoridade do professor — isto é, de sua função política — consiste então
na dificuldade da educação contemporânea e de seu profissional de garantir o trânsito entre a
permanência e a mudança trazida ao mundo pela criança.
Transpondo a consideração de Arendt ao nosso contexto mais imediato — aquele
em que a infância se constitui de diferentes aspectos inéditos, incluindo uma experiência de
“não infância” (a depreciação das crianças que frustram os desejos adultos e a confusão entre
as especificidades infantis e adultas) —, seria plausível cogitar que o professor se prende ao
“antigo” (a preceitos e estratégias de disciplina que impossibilitam um diálogo a partir do qual
docente e aluno se realizariam como indivíduos autônomos) e refuta a “revolução” infantil ao
tomá-la como indisciplina, falta de limites e desrespeito à autoridade adulta46. Um indício da

46
É preciso enfatizar que não se defendem aqui as agressões físicas e verbais perpetradas por alunos contra os
profissionais de educação. E tampouco as agressões praticadas por estes contra aquelas. Mas, assim como todas
as formas de violência, é preciso compreender o problema subjacente.
74

valorização do passado poderia ser identificado na repetição nostálgica, dentro e fora das
escolas, da ideia transmitida em relatos como o do professor Everton:

Tinha problema, a gente era expulso [da escola]. Quantos foram expulsos da escola!
Então o aluno começava a fazer muita coisa, chamava uma vez, duas vezes, três
vezes, expulsão. Aí tinha que ir pra escola particular que era inferior à nossa. Era
outra época. (Everton, professor da rede municipal. Entrevista concedida em 27 mar.
2013).
O antigo também se refere ao conhecimento pedagógico, seja ele apreendido em
seu aspecto de conhecimento geral formalizado em conteúdos a ser transmitidos aos alunos,
seja o conhecimento pedagógico em si, técnico e, por isso, dominado pelo professor. O
primeiro é facilmente acessado pelas crianças mesmo fora dos muros escolares, em razão do
advento da internet e dos usos das tecnologias, os quais as crianças dominam mais facilmente
do que os adultos. A crise da autoridade estabelece-se nesse nível devido a uma indefinição
do que é próprio ao conhecimento do professor e o que é ao do aluno (foram identificadas no
capítulo anterior as implicações desse tipo de indefinição no que toca ao mundo infantil e a
vida adulta). Restam-lhes as interações cotidianas fundadas nas hierarquias e nos diálogos. Já
em relação ao conhecimento técnico pedagógico, alguns professores participantes da pesquisa
insistiam na utilização de métodos e técnicas de ensino aprendidas durante seu curso de
formação superior, há cerca de vinte anos. Outros, diante da ineficiência da instituição escolar
em desenvolver as competências discentes e docentes (especialmente no que se refere, neste
caso, à gestão de conflitos), reforçavam a necessidade de atualização do conhecimento técnico
do profissional de educação.
Prevalece nas relações entre alunos e professores, observadas em trabalho de
campo, a ênfase dada às hierarquias, à contenção do corpo infantil e ao disciplinamento.
Hierarquias são escalas de autoridade. Nos termos foucaultianos, hierarquias são
desigualdades de poder que regulam as relações sociais. Hierarquizar é, nos dispositivos
disciplinares, um procedimento que possibilita — em conjunto com os atos de identificar,
medir e comparar — situar o indivíduo em seu espaço dentro de uma instituição, vigiá-lo e
agir sobre seu corpo, seus comportamentos e seus conhecimentos. A maquinaria que se
constitui determina as diferenças entre as crianças. Anotam-se desempenhos, aptidões e
caráter pessoal a fim de estabelecer classificações rigorosas e relativas à normalidade
(FOUCAULT, 1991b). Nela, o olhar que vigia e examina cria um saber sobre o ser humano a
ser trabalhado. A criança torna-se, portanto, um objeto de conhecimento e de intervenção
pedagógica (e também médica).
75

E assim elas são tratadas em sala de aula. Em diferentes momentos do campo,


professores dirigiram-se a mim para informar as condições de aprendizagem de um
determinado aluno e fazer comentários sobre seu rendimento escolar. Alguns mais discretos
murmuravam para que ninguém mais os escutasse. Outros, contudo, comunicavam, em alto e
bom som, as deficiências do aluno como se ele não pudesse compreender o que era dito em
sua presença. Os professores pareciam desprezar o fato de que eu me encontrava do outro
lado da sala e de que, estando o espaço repleto de crianças, todas elas ouviam o que era dito
negativamente sobre seu colega.
É interessante notar que esse tipo de relação hierárquica entre o adulto (que fala e
sabe) e a criança-objeto (que ouve, mas não compreende os “assuntos de adultos”)
estabelecia-se também em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil (BARBARINI,
2011; 2015). As diferentes hierarquias constituídas naquele espaço (entre profissionais e
leigos) mantinham a criança em suas posições mais inferiores. Ela era um caso médico e um
objeto de discurso cujas deficiências eram relatadas pelos pais aos demais adultos.
Aparentemente, eles ignoravam que a criança presente ouvia, compreendia e sentia o que se
falava sobre ela.
Mais do que um poder que se possui, a autoridade é uma relação, um jogo de
forças. Em uma ponta há quem conhece (isto é, domina os saberes técnicos ou as experiências
de viver o mundo) e, na outra, quem deve ser ensinado. O jogo nunca está totalmente
equilibrado, pois o sujeito de autoridade existe tão-somente na presença e a partir do
consentimento do outro. Um médico não é uma autoridade social apenas devido ao seu
diploma e ao saber que ele representa (embora esses elementos confiram-lhe legitimidade em
uma relação de poder-saber). Ele o é também por consentimento de seu paciente, de seu
colega de trabalho, da comunidade científica, da sociedade. Diante de um desvio de sua
função ou de uma imagem ideal do bom médico, sua autoridade pode ser contestada47.
A autoridade do professor também é consentida. Em interação com alunos,
famílias, colegas de trabalho e especialistas, os docentes disputam um constante jogo de
forças. E as situações de sala de aula são fontes ricas para a compreensão dessas relações de
autoridade escolar. Lá, a crise de autoridade do professor é popularmente entendida como o
desrespeito alimentado pelo aluno em relação ao profissional de educação. Ela implica a

47
Observei no ambulatório mencionado que, nas interações entre especialistas e leigos, os médicos dispunham
de estratégias para conquistar seus pacientes (por exemplo, não deslegitimar, logo no primeiro encontro, as
experiências ou as opiniões dos pais), bem como as mães mobilizavam concepções de lealdade, proximidade e
confiança para avaliar o desempenho do psiquiatra. Nas escolas, por sua vez, alguns professores contestavam a
intromissão dos especialistas no espaço escolar, chamados por seus colegas a lhes instruir sobre como lidar com
uma criança com dificuldades de aprender.
76

desobediência e o enfrentamento (físico, verbal e simbólico), noções que se conjugam com a


indisciplina.
Os confrontos observados em campo irrompiam, geralmente, de discussões e
embates físicos e verbais: o aluno que tomava a caneta do professor quando ele anotava seu
mau comportamento no livro de ocorrências ou o desentendimento entre um docente e uma
criança, em sala de aula, acerca de um bilhete enviado pelo primeiro à avó da segunda. “Eu
não ligo” e “e daí?!” eram expressões, usadas nas discussões, que pretendiam mostrar certa
indiferença do aluno para com ameaças feitas pelo professor (tais como ficar sem material,
sair da sala, ser excluído do grupo etc.). Outras atitudes que podem ser citadas, no sentido da
indiferença, são o ignorar uma repreensão do professor e continuar a agir como antes ou ainda
manter o caderno fechado — enquanto se tomava suco — durante uma explicação ou a
correção da tarefa.
O enfretamento das hierarquias também ocorria coletivamente e em sentido
simbólico. As crianças uniam-se, principalmente, quando se tratava de desafiar as normas e as
figuras de autoridade da instituição escolar. Cito um acontecimento. O inspetor foi chamado a
uma sala de sexto ano para substituir momentaneamente a professora. Sem emitir qualquer
palavra, os alunos começaram a bater os pés no chão de madeira no ritmo de “We will rock
you”, uma música do final dos anos 70 que simboliza, por meio de seu conjunto harmônico, o
enfrentamento.
As tentativas de restabelecimento da ordem disciplinar, feitas por docentes, se
expressavam em ações como anotar comportamentos e ameaçar alunos. Em diferentes
momentos do trabalho de campo, alguns educadores usaram minha presença, enquanto
observadora externa com um caderno de anotações à mão, como um recurso para ordenar os
alunos e obter atenção e obediência: “ela está observando seu comportamento. Imagina o que
os professores dela vão achar de vocês”. Outros diziam veementemente: “ela não está aqui
para conversar com vocês”. Já as ameaças envolviam punições mais claras ao mau
comportamento: “Vocês voltam piores do recreio. Se continuarem assim, vão só descer para
comer o lanche e voltar”. O restabelecimento da ordem entre professores e alunos implicava,
do mesmo modo, a imposição de formas de tratamento que denotavam o respeito à hierarquia.
Respondendo ao aluno que a chamou pelo primeiro nome, a professora Julia disse-lhe,
enfatizando sua postura de autoridade: “Professora Julia! Eu não sou sua colega de sala”.
As ações de restabelecimento da disciplina em sala (nem sempre exitosas)
coexistiam com obstáculos à instauração da comunicação entre professores e alunos. Embora
a flexibilização das relações entre adultos e crianças seja um fenômeno contemporâneo,
77

favorecido pelos programas governamentais de educação escolar, o diálogo não se realizava


efetivamente.
As crianças me perguntavam: “você conversa com os bagunceiros?” ou “você
anota o que os mais bagunceiros fazem?”. A repetição desse tipo de indagação permitiu-me
identificar, com convicção, que estávamos em um ambiente disciplinar. Ao explicar-lhes que
meu objetivo era registrar acontecimentos e falas significativos à compreensão da realidade
escolar, foi possível desconstruir uma ideia pré-concebida de que, na escola, os adultos
somente anotam e conversam com as crianças a fim de vigiá-las e puni-las. Estabelecia-se
então um diálogo entre adulto e criança fundado na troca (ainda desigual) de experiências.
Minha presença nos espaços livres e nas salas de aula despertava a curiosidade de
alguns alunos. Eles questionavam quem eu era, o que fazia ali, qual classe observaria.
Aproximavam-se para conversar comigo, contar suas histórias, perguntar se eu sabia “plantar
bananeira”, oferecer-me comida, me abraçar. Certo dia, escutei meu nome ressoar pelo pátio.
Era o Gustavo vindo da cantina com um cachorro quente em uma mão e uma caneca de suco
na outra. Com a boca cheia, contava-me sobre seu fim de semana. Talita vinha pelo outro lado
pulando e dançando, como sempre fazia, até mesmo para ir ao lixo da sala de aula e apontar
seu lápis.
Esse tipo de relação, menos hierarquizada, se estabelecia também entre alunos e
professores que, mesmo mantendo sua postura de autoridade, permitiam a aproximação da
criança e ouviam seus relatos. De modo geral, os profissionais de todos os estabelecimentos
de ensino visitados conversavam com os estudantes, indagavam-lhes sobre suas rotinas e
hábitos fora da escola, entre outros assuntos. No entanto, o diálogo que não se efetivava (ou se
fazia com resistência) diz respeito à construção conjunta de regras, conhecimentos, pautas de
ação no espaço escolar e comunitário e às dificuldades de aprender. Ou mesmo à
compreensão mútua dos sentimentos e problemas enfrentados por crianças e professores. Esse
tipo de comunicação concretizava-se mais comumente no programa de educação não formal.
Já nas escolas convencionais, sobretudo em sala de aula, a interlocução estabelecida entre
educadores e educandos visava destacadamente a fazer uma criança relatar aquilo que havia
presenciado acerca de um acontecimento polêmico (como o caso da garrafa de água do Leo,
chutada por alunos durante o recreio sem sua autorização) ou a delatar os colegas envolvidos
nele.
A instituição do diálogo construtivo em sala de aula é uma demanda. Questionado
sobre quais seriam as possíveis medidas adotadas pelos professores em casos de alunos com
dificuldade de aprender, Luan respondeu:
78

O professor podia ir lá e ajudar o aluno (silêncio). Nas maiores dificuldades ainda.


Falar menos do aluno... E se o aluno começasse a ficar meio nervoso com ele de
chamar tanto a atenção, ele começar a abaixar um pouco, né?! Porque se a pessoa
estiver imaginando alguma coisa... depende. Se ela tiver um trauma e não conseguir
resolvê-lo, aí tem que pedir alguma ajuda, né, profissional. Mas se estiver pensando
coisas boas, não tá atrapalhando nem a aula, depois, qualquer coisa, o professor
passa a matéria pra ele. (Luan, 13 anos. Entrevista concedida em 01 jul. 2013).
A comunicação entre educador e educando pode se estabelecer, conforme a
reflexão do menino, pela cooperação. Por um lado, o professor conscientiza-se da dificuldade
do aluno e o auxilia (ainda que a ajuda seja “passar a matéria depois”), em vez de repreendê-
lo. Por outro lado, entende-se que o aluno assumiria seu papel e executaria as atividades
escolares propostas pelo docente. É interessante notar que Luan distingue dois tipos de
profissional habilitado a auxiliar a criança em dificuldade: o professor (responsável por dar
atenção, não provocar reações negativas e transmitir os conteúdos pedagógicos) e o psicólogo
ou outro especialista apto a ajudar uma pessoa em caso de “trauma”. Com essa distinção,
Luan reconhece a existência, nas práticas escolares, de uma função social e política docente (o
diálogo e o cuidado em sua relação com o aluno) e da funcionalidade do saber técnico
especializado.
Danilo (doze anos) também põe em questão as relações entre educadores e
educandos, principalmente no que se referem aos desempenhos escolares e à indisciplina. O
menino era visto por seus professores como um mau aluno antes de ser diagnosticado com
TDAH e iniciar seu tratamento medicamentoso. E, diante dessa experiência, ele denuncia as
práticas distintivas direcionadas a alunos tidos como perturbadores, reforçando a necessidade
do diálogo atentivo: “Quando eu não tomava remédio, os professores ignoravam minhas
perguntas. Com o remédio eles não ignoram mais. [...] Os professores poderiam dar mais
atenção”. Há que se observar, entretanto, que a atenção às particularidades dos alunos em
dificuldade pode ter efeitos outros que a superação das desigualdades de aprender. Alguns
professores elaboravam atividades diversificadas — e mais fáceis, segundo as crianças —
para estudantes com impedimentos no processo de aprendizagem. Por um lado, essa estratégia
reforçava a distinção de desempenhos. Por outro, ela era, por vezes, usada para transgredir as
regras empregadas. Esse era o caso de alunos que, usando a justificativa de terem
dificuldades, solicitavam a folha com exercícios diferenciados como algo justo e de direito.
Os relatos e reflexões de Luan e Danilo, alunos diagnosticados com TDAH,
colocam em um mesmo plano o enfrentamento ou o questionamento da relação hierárquica
escolar (e, consequentemente, da ausência de diálogo) e a validade do saber técnico
pedagógico na abordagem das dificuldades dos alunos em sala de aula. Um exemplo mais
79

claro disso é o caso de Vitório (onze anos), um menino muito ativo e popular em sua turma de
sexto ano. De acordo com uma de suas professoras, seu problema mais imediato referia-se à
indisciplina, entendida, nesse caso, como enfrentamento e propensão a desorganizar a sala
rapidamente. Na sala dos docentes, comentava-se que Vitório era “preguiçoso e
indisciplinado e enfrentava os professores”. Era, assim, um mau aluno, ao contrário de seu
irmão mais velho que “passou no vestibular”, segundo os educadores. A “falta de
Ritalina®” constituía, na visão da diretora escolar, a causa de sua reprovação naquele ano.
Em seu prontuário escolar constava um formulário de solicitação de
encaminhamento preenchido por um professor não identificado. As reclamações que
subsidiavam a demanda concerniam à falta de concentração, indisciplina, dificuldade de
aprendizagem (embora ele tenha resolvido rapidamente um desafio de lógica oferecido por
uma professora durante meus trabalhos de campo) e enfrentamento. Esses são alguns dos
sintomas de dois tipos correlatos de condições psiquiátricas (comorbidades): o TDAH e os
transtornos disruptivos de conduta. Este grupo de condições caracteriza-se pela manifestação
de problemas de autocontrole emocional e comportamental, com maior prevalência em
meninos. Os quadros clínicos que o compõem são o Transtorno Opositor Desafiador, o
Transtorno Explosivo Intermitente e o Transtorno de Conduta. O primeiro tem por sintomas o
humor irritável, a raiva, o comportamento desafiador e argumentativo e o revanchismo,
enquanto o segundo caracteriza-se pela manifestação de impulsos agressivos. O terceiro se
expressa por meio da agressão a pessoas e animais, da destruição e roubo de propriedades
privadas e de sérias violações das leis.
O fato de que esses transtornos — sobretudo os dois primeiros — definem-se
como comorbidades do TDAH significa que se deslocam o enfrentamento (desobediência), a
indisciplina (mau comportamento), a hiperatividade (manifestações de inquietude) e a
aprendizagem (processo de assimilação de conteúdos escolares) do domínio pedagógico (crise
escolar e de autoridade do professor) para alocá-los no campo dos conhecimentos técnico-
científicos classificatórios (transtornos mentais). Assim, a psicopedagogia (“Quantas aulas de
psicopedagogia você teve para trabalhar isso?”) e as neurociências, entre outros saberes
(incluindo aquele do pesquisador chamado pelo professor a opinar sobre sua aula), entram em
cena como conhecimentos técnicos e como práticas capazes de responder externamente aos
novos dilemas da educação, sobretudo à dificuldade do docente de manter a ordem
disciplinar, de estabelecer diálogo com os alunos e, assim, de possibilitar à socialização
adequada das crianças.
80

2.3. Conhecimentos pedagógicos e saberes técnico-científicos

O “momento cartesiano” — termo foucaultiano que designa a implantação do


racionalismo de Descartes48 — foi decisivo para a transformação do modo de acesso à
verdade, que até os gregos da Antiguidade se consumava no sujeito modificado por práticas
de conhecimento e cuidado de si. Nos tempos modernos, ao contrário, o acesso à verdade faz-
se a partir do interior do próprio conhecimento, por intermédio de regras formais (condições
objetivas, método, estrutura do objeto de conhecimento) a ser seguidas. O louco (um ser
desprovido de razão) ou o leigo (alguém que não desfrutou de uma formação inscrita no
consenso científico) é incapaz, nesse sentido, de ter acesso à verdade (FOUCAULT, 2011a).
O homem então se constitui como objeto e sujeito de saber, cindido em homem verdadeiro
(racional) e homem louco (FOUCAULT, 1975; 2002).
A criança, entretanto, veio à cena social no século XIX, mais destacadamente,
com um estatuto diverso. Sendo um ser ainda em desenvolvimento — e, portanto, irracional
—, ela deveria ser educada a fim de fazê-la cumprir seu destino de tornar-se um adulto
integrado à sociedade. O desvio de seu caminho era tampouco de mesmo tipo que o adulto,
cuja loucura lhe era exclusiva. A criança se desviava por meio da anormalidade.
Entre a razão instrumental do saber e a particularidade da criança em
desenvolvimento, a pedagogia então surgiu, enquanto disciplina acadêmica, em diálogo com
outros conhecimentos e práticas. Henri Marion — responsável pelo primeiro curso
complementar de ciência da educação aberto na Sorbonne, em 1883 — via na psicologia a
possibilidade de afirmar a pedagogia como ciência da educação (WARDE, 2006). Já para
Durkheim — que assumiria a cadeira de ciência da pedagogia em 1902 —, a educação
constitui um fato social. É também o meio pelo qual a sociedade renova as condições de sua
própria existência ao inculcar na criança as similitudes essenciais à vida coletiva e, ao mesmo
tempo, a diversidade e a autonomia que contribuem à harmonia social e à especialização de
uma sociedade. Portanto, a pedagogia dependeria da sociologia para se afirmar como
disciplina, e não da psicologia, que serviria apenas à compreensão das leis da consciência
individual e, assim, à possibilidade de modificá-las por meio da educação (DURKHEIM,
1968).

48
A sabedoria, para Descartes, vincula teoria e prática, constituindo um sistema de saber harmonizado e
composto pela mecânica, pela medicina e pela moral. O objetivo final desse sistema, que congrega o domínio
técnico e tecnológico da natureza, a extirpação das doenças (e o prolongamento da vida) e o domínio interno das
paixões, é a realização da felicidade humana. Em outras palavras, a técnica e o conhecimento criam condições
para o aprimoramento da vida (SILVA, 1997).
81

Seria com Claparède que, no início do século XX, a psicologia se tornaria


decisivamente a referência técnico-científica da pedagogia, garantindo-lhe o acesso à verdade
da criança. Entre as particularidades do diálogo dessas disciplinas nos países europeus, Warde
(2006) encontra os embates intelectuais e morais que as orientavam. O autor afirma que
enquanto Durkheim tinha na sociologia uma arma republicana visando à moral laica e à
solidariedade nacional, para Claparède a psicologia era um instrumento de luta contra uma
filosofia especulativa e metafísica e contra o despreparo educacional dos poderes instituídos.
Se, no primeiro caso, a educação pedagógica se construía sobre seu poder sociopolítico, no
segundo ela era entendida como uma técnica.
Essa configuração histórica da pedagogia coloca em questão a problemática
contemporânea da intervenção especializada nos espaços escolares ou, em outras palavras, a
sobreposição dos saberes técnico-científicos da psicologia, da psiquiatria ou das
neurociências, no que se referem à orientação de crianças ditas normais e daquelas com
dificuldades de aprender, aos conhecimentos e experiências pedagógicas dos professores. Se a
pedagogia já nasceu de um empenho de constituí-la como uma prática técnica, fundada na
psicologia como forma de acesso científico à verdade da criança e centrada na adequação
infantil a um modelo de desenvolvimento e na identificação de desvios, como se devem
encarar os efeitos dessa condição na questão contemporânea da crise de autoridade do
professor, responsável pela inserção da criança na esfera pública?

Desenvolvimento, desvio e categorias clínicas

Historicamente, a criança tornou-se o objeto comum do campo psi e da pedagogia


nos séculos XVIII e XIX, quando da “psiquiatrização” do anormal e da articulação de
dispositivos e estratégias disciplinares. Estas distinguiram a criança idiota e imbecil do
indivíduo louco e errante, atuando em seu principal problema: o desenvolvimento. O que
estava em jogo era a modulação da normalidade e da anormalidade conforme o
desenvolvimento médio das crianças em uma mesma idade (o que pressupõe um sistema de
separação etária dos indivíduos e de aptidões próprias a cada fase psicológica e biológica), de
um lado, e o desenvolvimento final e ideal do adulto, de outro (FOUCAULT, 2006b).
Édouard Séguin, médico e educador francês, definiu, por volta de 1840, a idiotia
como uma afecção causada pela interrupção do desenvolvimento fisiológico e psicológico da
criança. Tratava-se de uma condição distinta do retardo mental (ou imbecilidade),
caracterizado pela redução do ritmo do desenvolvimento infantil (BAUTHENEY, 2011;
82

FOUCAULT, 2006b). Ambos — idiotia e retardo — diferenciavam-se da loucura, a ausência


de razão, por seu fundamento encontrado no desenvolvimento infantil anormal. Além disso, a
criança anormal poderia, ao contrário do adulto louco, ser recuperada por meio de pedagogias
específicas. A intervenção sobre a criança fazia-se então necessária pela via da prevenção
contra a manifestação dos desvios e pelo caminho da ação normalizadora (isto é, médico-
pedagógica) sobre a anormalidade já manifestada. Nesse contexto, a escola tornou-se o espaço
privilegiado para detecção, observação e correção do anormal. Ela era o “laboratório de
observação das tendências anti-sociais” (HEUYER apud DONZELOT, 1986, p. 121), o
professor, a figura de autoridade que representava os olhos do médico psiquiatra e a família, a
origem da degenerescência e da anormalidade infantil.
Diferentes psicologias pedagógicas consolidaram-se sobre uma necessidade de
ancorar os fundamentos teóricos e práticos do estudo do desenvolvimento infantil em bases
científicas e experimentais. As diversas perspectivas psicológico-pedagógicas também se
firmaram sobre os então novos problemas apresentados pela universalização do ensino escolar
(implantada na Europa no fim do século XIX e início do século XX; no Brasil, o processo de
democratização da educação iniciou-se por volta dos anos 1930), a saber: a aquisição de
conhecimentos, ou melhor, a aprendizagem, a inteligência e as diferenças individuais
(WARDE, 2006).
A pedagogia positiva, criada por Séguin a partir da articulação entre a medicina e
a educação e da influência do tratamento moral de Pinel e Esquirol, configurava-se como uma
proposta de ensino escolar, fora dos hospitais, direcionado às crianças anormais49. Essa
proposta educacional, higiênica e terapêutica visava ao desenvolvimento de habilidades
motoras (atividade), cognitivas (inteligência), comportamentais e morais (vontade e
obediência). O professor, figura fundamental à execução dessa metodologia positiva, deveria
saber alternar momentos de afeto, serenidade e firmeza (BAUTHENEY, 2011, p. 94).
Além da fusão entre tratamento moral e educação originada por Séguin, teve
importância a criação da ortofrenia. Segundo Bautheney (2011), a ortofrenia surgiu como um
ramo da pedagogia anormal e corretiva que, junto com a pedagogia normal, fazia parte da
denominada “pedagogia científica”. A ortofrenia compunha a pedagogia anormal ao lado da
higiene escolar (cuja institucionalização em São Paulo e no Rio de Janeiro ocorreu entre 1910
e 1920) e da abordagem médico-pedagógica (para alunos turbulentos e com insuficiência ou
desequilíbrio mental, chamados de “anormais patológicos”). Tratava-se de um campo da

49
De acordo com Bautheney (2011), a primeira instituição com essa finalidade foi criada no Brasil em 1929.
Trata-se da Escola Pacheco e Silva, localizada no Complexo Hospitalar do Juquery.
83

anormalidade do caráter e da inteligência para o qual confluíam os saberes e os instrumentos


da psiquiatria, da pedagogia, da psicologia, da pediatria, da antropometria e da higiene
mental.
As práticas sobre a anormalidade, naquele período, se sustentavam em saberes
positivistas e evolutivos orientados pela noção de desenvolvimento da criança — sobretudo
da negra e pobre, segundo Dávila (2006) e Soares (1991) — conforme padrões biológicos e
psicológicos que determinam as aptidões características de certa faixa de idade
(BAUTHENEY, 2011). Havia também um viés político, econômico e sociológico, segundo o
qual o indivíduo anormal era aquele incapaz de atuar ativamente no funcionamento da
engrenagem social e que, por isso, devia ser identificado, corrigido e adaptado. Esses
princípios orientaram a educação escolar brasileira e a reorganização do currículo escolar no
início do século XX, indo ao encontro de uma imagem da criança criada no fim do século
anterior, com o advento da proclamação da República e da insurgência de um projeto
republicano de progresso: a imagem de herdeira do novo regime (MONARCHA, 2006).
Diversas categorias e técnicas de identificação e medição de anormalidades foram
produzidas no fim do século XIX e início do século XX, incluindo as derivações e
transformações das figuras reelaboradas por Séguin. Entre as técnicas e seus instrumentos
estavam os testes psicométricos, como os elaborados por Alfred Binet, destinados a medir a
inteligência individual a partir de seus sinais físicos. Já entre as categorias criadas, os
retardados escolares e os atrasados pedagógicos eram denominações aplicadas a alunos tidos
como atrasados devido a um déficit cognitivo, no primeiro caso, ou a outro problema
pedagógico sem déficit intelectual, no segundo caso. Os retardados mentais, por sua vez,
caracterizavam-se pela estagnação ou desenvolvimento inadequado das funções psíquicas. Em
termos comportamentais, os anormais de conduta e perversos morais (os incorrigíveis)
compartilhavam a cena escolar com os hipostêmicos e os hiperstêmicos — os “desatentos” e
os “hiperativos” da época (BAUTHENEY, 2011).
Nas décadas de 1930 e 40, a “criança-problema” foi alvo de estudos e
intervenções nas escolas brasileiras a partir das investidas de Arthur Ramos no Serviço de
Higiene Mental, instalado como parte da reforma educacional de Anísio Teixeira (pioneiro da
Escola Nova no Brasil). Pautada em uma evidente ligação entre medicina/psiquiatria e
educação, a proposta do serviço era apoiar as escolas primárias e assistir as crianças que
apresentassem problemas de adaptação ao meio escolar. Vivenciava-se a possibilidade de
provocar mudanças na prática democrática e nas desigualdades sociais ao final do governo
oligárquico e coronelista (COSTA, 1999; MACHADO et al., 1978). Mas também de corrigir e
84

prevenir doenças e comportamentos inadequados ainda na infância e de orientar pais e


professores sobre como lidar com as crianças problemáticas de acordo com as práticas e os
discursos higienistas ditos científicos.
Ramos (1939) criticava a noção de anormalidade e a ideia segundo a qual os
problemas enfrentados por escolares advinham exclusivamente de aspectos orgânicos ou
hereditários. Atribuía-se a origem do comportamento infantil inapropriado ao meio social e
cultural. Tal conceituação de “criança-problema” fundamentava-se em teses advindas do
campo da psicologia e da psicanálise europeias e pressupunha a existência de um mau
comportamento prejudicial ao rendimento escolar do aluno. Ramos realizava suas
observações em escolas públicas com a finalidade de descrever o comportamento dessas
crianças e algumas de suas informações (medidas, resultados de exames) e, por conseguinte,
de orientar pais e professores sobre como tratá-las (BAUTHENEY, 2011). Assim
influenciado pelo movimento higienista50, o serviço chefiado por Ramos visava à terapêutica
e, principalmente, à prevenção dos problemas dos escolares, contando com a atuação de
professores, psicólogos, médicos e psiquiatras (GARCIA, 2010).
Já por volta dos anos 1970, retomaram-se os testes de inteligência como base de
dados para políticas compensatórias e para a atualização de categorias classificatórias. Soares
(1991) explica que a teoria da deficiência cultural, nascida nos Estados Unidos nos anos 1960,
impregnou as relações escolares em torno da questão do fracasso escolar a partir daquele
decênio no Brasil. Essa teoria assenta-se na ideia de que as desigualdades sociais são
responsáveis pelos déficits de rendimento dos alunos. E por desigualdades sociais entende-se,
nesse âmbito, a privação econômica e a deficiência ou carência cultural gerada pelo meio
pobre em estímulos sensoriais, perceptivos e sociais, em oportunidades de contato com
objetos culturais e em experiências de interação e comunicação. A consequência para a
criança seria a manifestação de deficiências afetivas, cognitivas e linguísticas.
Cabe observar que, assim como as classificações médico-pedagógicas perpetuam-
se na escola contemporânea, apesar de suas transformações conjunturais e epistemológicas, as
teses culpabilizantes são ainda hoje mobilizadas por professores, mesmo que
inadvertidamente, como ponto de vista crítico às condições sociais e de aprendizagem da
50
A Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) foi criada em 1923, no Rio de Janeiro, pelo médico Gustavo
Riedel. Tratava-se de um movimento de articulação entre a higiene mental individual, a psiquiatria organicista e
o higienismo. Sediada em uma instituição médica, a LBHM tinha como objetivos principais a prevenção e a
educação dos indivíduos a fim de evitar a degeneração psíquica e moral (mental) das populações e de promover
o progresso do país. Medicina e educação atuavam conjuntamente na execução de um projeto de sociedade que
tinha a criança como um indivíduo em formação e que, se bem educado, representaria o futuro da nação. Por
isso, a intervenção precoce nesse indivíduo fazia-se necessária. Era preciso evitar a degenerescência provocada
pela má herança familiar e pelos fatores socioculturais degradantes.
85

criança (conforme o que foi analisado no primeiro capítulo) ou mesmo à intervenção ilimitada
da medicina nas práticas pedagógicas (crítica feita por meio da noção de “medicalização”).
A problemática do fracasso escolar, trazida por Soares (1991), corresponde àquela
crise da escola, mencionada anteriormente, oriunda da carência de reformulação da função da
instituição escolar e de seu projeto pedagógico diante do processo de democratização do
ensino. Não se trata, entretanto, de um fenômeno exclusivamente brasileiro, visto que Morel
(2014) também identificou algo similar na França. Esse sociólogo afirma que a expansão e o
prolongamento da escolaridade obrigatória no país durante os anos 1960-70 trouxeram
consequências importantes à educação. A inclusão de crianças e adolescentes originários de
famílias desprovidas de recursos econômicos constituiu-se como um fator problemático aos
estabelecimentos escolares franceses, devido aos diferentes desempenhos entre as crianças
favorecidas e as desfavorecidas e aos novos desafios colocados pelo fracasso escolar desse
“novo público”. Recebendo então novas exigências (tais como criar uma estrutura adequada
para esses alunos, ou as chamadas classes de aperfeiçoamento e de educação especializada),
os estabelecimentos de ensino e os professores franceses passaram a utilizar explicações
psicológicas e biomédicas sobre as dificuldades cognitivas e relacionais de certos indivíduos.
O efeito mais importante desse processo é a assimilação progressiva e oficial de especialistas
médicos e “paramédicos” ao sistema educacional francês.
A adoção da categoria TDAH em diferentes países (ainda que em momentos
particulares) decorre desse contexto contemporâneo de problematização médica, psicológica e
sociológica do fracasso escolar. Surgido nos Estados Unidos, por meio das ações da
Associação Americana de Psiquiatria (APA), o TDAH foi definido por Barkley (1981) como
um distúrbio das funções executivas responsáveis pela autorregulação e autodireção das ações
individuais. Na terceira edição do Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais, o
DSM-III (APA, 1980), tal categoria clínica materializou-se sob outra denominação: o
Distúrbio de Déficit de Atenção (DDA). Conceituou-se o DDA como essencialmente
caracterizado por sinais de desenvolvimento inapropriado da atenção e da impulsividade em
crianças. A hiperatividade era apenas uma variável, mas se tornaria o sintoma fundamental do
TDAH nas edições seguintes do DSM.
Pesquisas sobre a hiperatividade e sobre a implicação entre problemas
comportamentais e dificuldades de aprendizagem já estavam sendo feitas nas décadas de 1960
e 1970 nos Estados Unidos (LIMA, 2005), o que resultou na publicação de trabalhos
científicos na área acadêmica. Entre as obras seminais acerca, por exemplo, da Disfunção
Cerebral Mínima (DCM) — condição comumente associada ao TDAH, porém mais focada na
86

questão da disfunção neurológica —, encontram-se os livros Minimal brain dysfunction in


children, de Paul Wender (1971, Estados Unidos) e Disfunção cerebral mínima: estudo
multidisciplinar, de Antônio Lefèvre (1975, Brasil). Porém, sublinha-se: foi o DSM que
permitiu a difusão social da categoria que aqui se analisa. No Brasil, cuja psiquiatria orienta-
se hegemonicamente pela vertente biomédica do DSM, o TDAH popularizou-se de modo
mais evidente nos anos 1990 e 2000.
Atualmente, em sua quinta edição, o DSM configura o TDAH como um
transtorno do neurodesenvolvimento, cujos sintomas desatenção, hiperatividade e
impulsividade acometem crianças, adolescentes e adultos. Na página do Projeto de Déficit de
Atenção e Hiperatividade (ProDAH) — uma importante atividade em psiquiatria infantil e
adolescente ligada à Faculdade de Medicina da Universidade do Rio Grande do Sul
(FAMED/UFRGS) e coordenada pelo Prof. Dr. Luís Augusto Rohde — lê-se que:

As crianças e adolescentes com TDAH apresentam prejuízos claros no seu


funcionamento escolar e social. Assim, ao longo do desenvolvimento, o TDAH está
associado com um risco aumentado de mau desempenho escolar, repetências,
expulsões e suspensões escolares, relações difíceis com familiares e colegas,
desenvolvimento de ansiedade, depressão, baixa auto-estima, problemas de conduta
e delinqüência, experimentação e abuso precoces de drogas, acidentes de carro e
multas por excesso de velocidade, assim como dificuldades de relacionamento na
vida adulta, no casamento e no trabalho51.
A incapacidade de manter-se concentrado e atento às atividades escolares, de se
lembrar dos conteúdos ou mesmo do material escolar, de não cometer erros grosseiros em
provas e, sobretudo, de controlar a inquietação em sala de aula são alguns dos problemas que,
conforme o discurso oficial e hegemônico sobre o TDAH, podem levar ao fracasso escolar.
Essas manifestações podem igualmente desencadear outros quadros clínicos — como a
depressão —, o uso de drogas, a ocorrência de acidentes, entre outros fatores que transformam
as vulnerabilidades reais e potenciais da criança hiperativa e desatenta em perfis de risco.
Nota-se que, além do fracasso escolar, a questão comportamental prolonga-se das categorias
médico-pedagógicas precedentes e instala-se na concepção do TDAH. Todavia, a
problemática desloca-se da degeneração moral e física herdada da família para a disfunção
cerebral que afeta a autogestão das ações individuais.
A delimitação dos desvios sociais e escolares, característica de cada tempo
histórico, constrói-se sobre o pressuposto de que é a ciência que pode garantir a socialização
adequada da criança. Para tanto, deve-se intervir nos problemas infantis, bem como nos
agentes dessa socialização (a família e a escola). Esse processo se conserva ao longo dos

51
Disponível em: <http://www.ufrgs.br/prodah/>. Acesso em: 24 jun. 2015.
87

tempos, porém modifica aquilo que se define como problema infantil e as formas de
identificá-lo e geri-lo. Um quadro cada vez mais técnico se instaura, suprimindo
progressivamente o caráter moral, social e político das relações cotidianas. Para acessar a
verdade dos indivíduos que as compõem e de seus desvios é necessário, portanto, um
conhecimento técnico-científico que se impõe às experiências de professores, pais e crianças.
A verdade é aquela do médico que, capacitado por um conhecimento técnico-científico, está
habilitado a emitir um laudo acerca da condição de vida de uma criança e, assim, legitimar a
necessidade de auxílio externo aos docentes. “Para ter um auxiliar, um cuidador, precisa ter
assim... Um laudo comprovado. Tem que ter CID52. Se não tiver CID... (silêncio)”. Essa
afirmação, enunciada por professores, reforça a constatação de que a dificuldade — da criança
e do profissional de educação — apenas é reconhecida, de modo efetivo, tecnicamente53.

O vocabulário do TDAH

Uma nosografia psicopatológica constitui-se a partir de determinadas condições


socioculturais. Seria incoerente falar de TDAH no século XIX ou em uma comunidade
contemporânea específica, como os grupos Wolof — uma etnia majoritária do Senegal e da
Gâmbia —, estudados pela antropóloga francesa Jacqueline Rabain (1979). A etnografia dos
Wolof revela que, subjacente aos modos de nomear e confrontar variáveis desconhecidas da
vida biológica, há uma teoria da pessoa e um mito da vida orientando as relações e
representações em tais grupos.
A criança, nos primeiros anos de vida, é um membro da sociedade wolof que
desempenha um importante papel mítico: estabelecer o contato entre seus contemporâneos e
antepassados. Ela representa, assim, uma concepção da pessoa wolof centrada no “duplo”
humano/não humano, contato com os indivíduos/contato com os espíritos ancestrais. Os
distúrbios comportamentais e de desenvolvimento infantil advêm, consequentemente, de
formas específicas de relação entre a criança e seu duplo, ou melhor, da comunicação ou dos
ataques dos espíritos — concretizados por meio de seu elo com a criança — ao grupo como

52
Classificação estatística internacional de doenças e problemas relativos à saúde. Os laudos médicos em geral
levam um CID, um código que indica de qual doença o paciente sofre.
53
A experiência dos leigos também é colocada em questão, ou mesmo ignorada, por outros saberes técnicos.
Refiro-me a um acontecimento vivenciado no programa de educação não formal em que engenheiros, rejeitando
as sugestões e sentimentos de professores e alunos, autorizaram a derrubada de árvores do estabelecimento a fim
de construir uma quadra coberta. “Ninguém veio conversar com a gente. A gente nem sabia. A gente chegou e [a
árvore] estava cortada. As crianças choraram, colocaram a mão na árvore”, disse a professora Tania, ao relatar
o que havia ocorrido no estabelecimento dias antes de nossa conversa.
88

um todo. Somente uma representação cíclica da vida possibilitaria a construção desse tipo de
mito regulatório individual e coletivo.
Já nas sociedades europeias, referências de Rabain, as relações sociais norteiam-se
pelas noções de desenvolvimento e avanço contínuos. Não é por acaso que a principal
representação social da criança define-a como um indivíduo em desenvolvimento, em direção
à vida adulta. Tampouco é aleatório o fato de que as psicopatologias infantis constroem-se,
desde o século XIX, alicerçadas no desvio do desenvolvimento, como pudemos observar na
seção precedente. Além disso, Rabain (1979) identifica que, ao contrário do fundamento
mítico da nosografia wolof (o que coloca sob outra perspectiva a suposta universalidade das
psicopatologias do cotidiano “ocidentalizado”), as patologias mentais europeias (e igualmente
as estadunidenses ou brasileiras) organizam-se a partir de terapêuticas biomédicas e
psicanalíticas e de discursos e saberes científicos.
Um terceiro ponto de divergência apontado pela antropóloga é o ideal de infância.
Enquanto os Wolof caracterizam a identidade e as posições sociais das crianças a partir da
função mítica do indivíduo ligado a seus ancestrais, as sociedades europeias definem a
infância e as identidades infantis com base nos desejos dos pais de realizar seus sonhos e
nostalgias. Essa constatação vai ao encontro, ainda que parcialmente, das formas de
socialização da criança brasileira, discutidas no primeiro capítulo desta tese.
Afirmei em outro estudo que o TDAH corresponde, inicialmente, à imagem
recriada daquilo que a criança apresenta como comportamento inadequado ou incômodo. Isto
é, suas manifestações comportamentais socialmente problemáticas são reinterpretadas como
sintomas de disfunções químicas cerebrais ou defeitos neurobiológicos e genéticos. O ponto
crucial dessa recriação é a transformação de algo parcial — a patologia — na totalidade
identitária infantil. Dela surge a possibilidade de se afirmar que a criança é TDAH, uma nova
identidade fundada na diferença, e de defendê-la como direito individual54. Transpondo tal
premissa para a presente análise, a categoria TDAH retrata a identificação de uma
socialização infantil inadequada, cujo desvio é interpretado como proveniente de disfunções
cerebrais. Assim, a criança hiperativa e desatenta emerge como um indivíduo incapaz de se
tornar autônomo, de ter sucesso na escola e cujas vulnerabilidades, se não tratadas, podem se
converter em problemas mais críticos. Em outras palavras, a delimitação da categoria TDAH

54
Um exemplo do “ser TDAH”, e não simplesmente ter TDAH, encontra-se no livro Mentes inquietas:
entendendo melhor o mundo das pessoas distraídas, impulsivas e hiperativas, um best-seller escrito pela
psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva e publicada, pela primeira vez, pela Editora Gente em 2003.
89

resulta de uma nosografia psicopatológica também fundada nos modos de inserção da criança
na sociedade e do reconhecimento de seu pertencimento social.
Mas para que o professor identifique um problema (ou defina um problema),
relacione-o a um possível diagnóstico psiquiátrico e solicite um encaminhamento
especializado, é preciso que um conjunto de linguagens e vocabulários técnicos esteja
disponível e seja incorporado ao conhecimento e às práticas pedagógicas escolares. Contudo,
tal conjunto renega — exatamente por dizer-se técnico-científico — o fundamento social,
cultural, histórico e político que o orienta. Ou, se o tem em consideração, define-o como
origem de um desvio social, e não como elemento de um jogo de forças.
Observei em campo a mobilização recorrente de noções como “vínculo” e
“amadurecimento”, além dos temas já discutidos nesta tese, provindos da psicologia e de
outras ciências humanas (“carência de estímulo”, “carência cultural do meio”, “complexos
familiares”, “relações parentais desestruturadas”). A ideia de amadurecimento,
particularmente, evidencia o fato de que a questão do desenvolvimento faz-se ainda presente
na escola. Retomo como exemplo a fala da professora Maria Luiza: “Então, a gente tem que
levar em consideração que nenhuma criança é igual à outra. Eu costumo dizer que elas são
que nem frutas na árvore: cada uma amadurece no seu tempo”. Nessa afirmação, o
amadurecimento alia-se a uma noção de diferença (as crianças são diferentes, por isso
desenvolvem-se segundo ritmos e modos diversos), porém não abandona o pressuposto de um
aprendizado homogêneo. Embora se defenda o respeito aos diferentes ritmos de aprender,
espera-se que cada aluno, em seu tempo, chegue a um determinado ponto da assimilação do
conhecimento.
Asbahr e Nascimento (2013) provocam os professores com o título de seu artigo
“criança não é manga, não amadurece” e identificam na prática pedagógica contemporânea
influências de teorias psicológicas do desenvolvimento infantil e do conceito de maturação.
Tais fundamentos consolidam-se sobre uma ideia de linearidade determinística do
desenvolvimento humano. Contudo, o princípio do desenvolvimento que aí permanece tem, a
meu ver, uma particularidade: o deslocamento do problema da anormalidade para o da
diferença, possibilitado pelo reconhecimento da existência de diferentes ritmos individuais. A
manutenção da expectativa de alcance de um ponto final ideal permite a identificação e a
intervenção sobre os desvios, agora conforme novas referências. Por isso, a psicopedagogia
— o estudo dos processos de aprendizagem — é evocada como saber e prática habilitada a
diagnosticar e agir sobre as dificuldades, o fracasso e a evasão escolar, bem como sobre os
90

transtornos comportamentais e de aprendizagem oriundos de disfunções cerebrais, quando em


diálogo com os saberes neurocientíficos e neuropsicológicos.
Esse deslocamento permite aos professores, por um lado, refletir sobre estratégias
outras que englobem tais diferenças, o que a professora Maria Luiza caracterizou como uma
necessidade contemporânea de inventar e reinventar as maneiras de aprender e ensinar. Desse
modo, Carvalho (1997) alerta para os perigos dos psicologismos na educação. Ele afirma que
a psicologia pode auxiliar o professor em suas tarefas diárias, mas não deve ser tomada como
o único fundamento da prática pedagógica, como vem sendo feito, segundo o autor.
Novamente, a professora Maria Luiza se pronuncia:

O psicólogo dentro da escola, assim como o conhecimento psicológico que subsidia


a prática pedagógica, deve dar apoio aos professores na resolução de conflitos
psicológicos, por exemplo, mas não deve fazer o trabalho pedagógico do professor.
(Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 12 jun. 2015).
Por outro lado, e diante do sentimento de desconhecimento e impotência
vivenciado pelos profissionais de educação, tal deslocamento reforça o papel das
classificações escolares e, sobretudo, das categorias clínicas e seus instrumentos (o laudo
médico e o medicamento, destacadamente), que adentram progressiva e intensamente os
espaços escolares. Um dos meios de difusão desse tipo de instrumental teórico e prático são as
revistas de grande circulação. Segundo Guarido (2008), a revista Nova Escola, bastante
significativa nos meios escolares brasileiros, publicou diversos artigos, entre 1986 e 1995, em
que os conselhos de psicólogos, psicopedagogos e médicos forneciam uma perspectiva
psicológica para o trabalho dos professores em sala de aula. Insistia-se, principalmente, na
relação entre as características psicológicas das crianças e dos jovens e sua aprendizagem.
Entre 1996 e 2006, essa revista manteve os temas de seus artigos, apoiando-se,
contudo, em novas noções médicas e em uma abordagem neurocientífica. Durante esse
período, o aparecimento crescente dos termos “hiperatividade”, “déficit de atenção”,
“memória” e “afetos” sinalizou, para a autora, o fato de que a perspectiva psicológica
continuava a orientar as ações docentes, submetendo-se, porém, aos pressupostos
neurocientíficos da ligação entre aprendizagem e funcionamento neurológico, segundo os
critérios do DSM e as propostas de tratamento medicamentoso.
Para confrontar essas informações disponíveis na pesquisa de Guarido, procurei
em entrevistas e conversas, realizadas durante meus trabalhos de campo, as especialidades e
os termos evocados pelos participantes tendo o TDAH como tema central da discussão.
Dentre as especialidades encontraram-se: pedagogia, pediatria, psicologia (termo generalizado
ou referências específicas à psicologia da educação e à psicologia clínica), psicopedagogia,
91

psiquiatria, serviço social, medicina (termo usado de forma generalizada ou como referência a
uma medicina que prescreve medicamentos para os casos de TDAH), neurologia (identificada
na imagem do Doutor S., comumente mencionado tanto por professores quanto por alunos),
fonoaudiologia, neuropsicopedagogia, neurociências e ciências do comportamento. Já os
termos evocados foram: “hiperativo”, “agitado”, “sem limites”, “autista”, “disléxico” e
“psicopata” (termo usado por alguns professores para distinguir o TDAH de um problema
comportamental considerado como um verdadeiro transtorno mental).
A partir de um levantamento de trabalhos acadêmicos cujo tema é o TDAH55,
constatei que os primeiros estudos, desenvolvidos nos anos 1970 e 80, consagraram-se no
campo da medicina, da psicologia e da educação. Os campos de conhecimento, os tipos de
discurso e os temas correlatos desdobram-se progressivamente no decorrer das décadas,
chegando aos anos 2010 com uma grande variedade de problematizações na biomedicina,
neuropsicologia e epidemiologia (cujas palavras-chave são: comorbidades, funções
executivas, genética, exames por neuroimagem, medicamentos); na pedagogia, psicologia
educacional e psicanálise (psicodiagnóstico, aspectos emocionais, patologização,
medicalização); e na sociologia e na área de políticas científicas e tecnológicas (aspectos
sociais do saber científico).
A pesquisa de Cheida (2013) — baseada na produção científica dos campos do
saber “psi” e realizada por meio do levantamento e análise de artigos publicados entre 2007 e
2012 — concluiu que o conhecimento sobre o TDAH no Brasil é predominantemente
produzido por pesquisadores das áreas de psiquiatria e neurociências, conformes a um viés
organicista. Ademais, observou-se que o financiamento desses estudos origina-se
majoritariamente dos laboratórios farmacêuticos produtores de psicofármacos utilizados no
tratamento do TDAH, tais como a Ritalina® e o Concerta®.
Esse tipo de produção de conhecimento, dificilmente acessado de forma direta por
professores, circula em níveis nacionais e internacionais com o auxílio de intervenções, tais
como cursos de aperfeiçoamento, palestras e publicações em redes sociais e em páginas
eletrônicas especializadas. É o que sugere a divulgação de teorias e técnicas neurocientíficas
aplicadas a processos de aprendizagem em apresentações públicas destinadas a profissionais
de educação. Cito como exemplo um colóquio realizado em novembro de 2014 no Collège de
France (Paris, França), denominado “A contribuição das ciências cognitivas à escola”
(« L’apport des sciences cognitives à l’école »). Os palestrantes, em suas diferentes vertentes

55
Os dados coletados nesse levantamento encontram-se, de modo mais detalhado, no Apêndice B.
92

de estudo, objetivavam disponibilizar conhecimento, técnicas e instrumentos advindos do


campo neurocientífico aos professores para que, em sala de aula, estivessem aptos a detectar e
intervir sobre problemas de aprendizagem. As palavras mais significativas utilizadas pelos
conferencistas foram: treinamento, melhoramento, leitor ótimo, autoaprendizagem, autonomia
da criança, modificação interna, detectar, intervir, cérebro, tarefas, desempenho fraco.
No Brasil, a Associação Brasileira do Déficit de Atenção é um vetor de difusão
dessa sorte de discurso. Ao promover cursos, reuniões de apoio e esclarecimentos sobre o
TDAH e disponibilizar apostilas e dicas para professores, pais e portadores, a ABDA
impulsiona a circulação e o uso dos termos, explicações e referências de um saber
especializado (e verdadeiro), convocado a protagonizar a resolução dos problemas
enfrentados por professores e pais em sua relação com crianças hiperativas e desatentas.
Nesse ponto, são necessárias algumas considerações acerca das verdades
fomentadas pela ABDA. Os saberes que subsidiam suas ações são constitutivos da própria
associação, uma vez que sua equipe técnico-diretiva compõe-se de pesquisadores renomados
no campo do TDAH. O Prof. Dr. Paulo Mattos, atual presidente do conselho científico da
ABDA, é um dos pesquisadores do Grupo de Estudos de Déficit de Atenção (GEDA), do
Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB/UFRJ)56. Voz
ressoante na mídia no que diz respeito às pesquisas psiquiátricas sobre o TDAH, Mattos
aparece majoritariamente nos artigos analisados por Cheida (2013). Ele também realiza
palestras pelo laboratório Janssen-Cilag, produtor do Concerta®. O vice-presidente da
associação é atualmente o Prof. Dr. Luís Augusto Rohde, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS). Figura igualmente importante na área do TDAH, participou da força
tarefa “TDAH e transtornos disruptivos do comportamento” (ADHD and Disruptive Behavior
Disorders) para a elaboração do DSM-V (APA, 2013).
O conhecimento técnico-científico mobilizado pela ABDA advém também da
indústria farmacêutica. Além da inserção de alguns membros do conselho técnico da
associação nas atividades do ramo, os laboratórios farmacêuticos produtores da Ritalina®
(Novartis) e do Venvanse® (Shire), bem como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP),
apoiam as ações da ABDA.

56
Segundo Cheida (2013, p. 106), a UFRJ é um centro de pesquisa tradicionalmente (desde os anos 1920 e 30)
voltado ao estudo das causas orgânicas das doenças mentais. A universidade abrigou o primeiro asilo brasileiro
influenciado pelo alienismo francês e formou os primeiros médicos-psiquiatras do país. O IPUB foi criado em
1938 sob a influência da vertente organicista kraepeliana da doença mental, sendo hoje responsável pelo Jornal
Brasileiro de Psiquiatria que, de acordo com a análise de Cheida, publicou a maior quantidade de artigos (25%
da amostra da pesquisa) sobre o TDAH entre 2007 e 2012.
93

Essa rede de apoio respalda, finalmente, a elaboração de notas e esclarecimentos à


população nos quais se acusam os críticos do TDAH e do uso exacerbado de medicamentos
de popularizar fraudes científicas e interesses ideológicos. Exemplo disso é a Carta de
esclarecimento à sociedade sobre o TDAH, seu diagnóstico e tratamento, elaborada
conjuntamente pela ABDA e pela ABP em 201257. Trata-se de um manifesto assinado por
vinte e nove entidades médicas contra matérias sobre o TDAH veiculadas “pela mídia
jornalística não especializada” (ABDA, 2012). Segundo o manifesto, profissionais não
especializados, que se dizem especialistas em saúde e educação, difundem opiniões pessoais
equivocadas por meio das quais se expressa a mensagem de que o TDAH não existe. O
documento ainda menciona a existência de pesquisas científicas que provam a existência do
transtorno e classifica a crítica como ignorância e crime, afirmando que apenas os
especialistas podem proferir a verdade sobre o TDAH, seu tratamento e o indivíduo que o
porta.
Ainda que a ABDA não tenha sido mencionada nos relatos docentes em campo de
pesquisa, a difusão virtual (e real) de suas ações é significativa, uma vez que os professores
buscam informações na internet e em livros de popularização do TDAH58. Cria-se, assim, um
novo intermediário entre o saber técnico e a realidade cotidiana popular. Segundo Bezerra Jr.
(2009), o processo que produziu todas as formas contemporâneas de “psiquiatrização”
engendrou também movimentos de reivindicação de direitos à diferença como estilo de vida.
Eles, por sua vez, instituem a renovação do próprio conhecimento psicopatológico. Conrad e
Barker (2010) consideram que, em virtude da acessibilidade à internet, os leigos passam a
promover suas próprias reivindicações de recursos e de tratamentos para suas doenças. Isso
significa que esses novos atores sociais têm tido um papel cada vez maior na definição de sua
própria condição e na elaboração de políticas públicas. O produto da intermediação das
associações civis e da elaboração de reivindicações propaga-se então pela sociedade e
populariza-se no interior das escolas.
“Hiperativo” foi o termo mais recorrentemente enunciado em campo, mesmo
pelos professores que apresentavam alguma crítica à validade dos diagnósticos psiquiátricos,
no que se referem aos comportamentos infantis, às dificuldades de aprendizagem e aos
tratamentos medicamentosos. Seu uso variava entre um sentido relacionado ao fato de se

57
Disponível em: <http://abp.org.br/portal/clippingsis/exibClipping/?clipping=16441>. Acesso em: 17 dez.
2015.
58
“É, a gente tem preocupação, porque a gente não sabe como lidar muitas vezes com essa criança. E nós
procuramos pesquisar pela internet como tem que trabalhar com eles, é, a gente está sempre procurando em
livros. Mas é difícil, né?! Como é difícil!” (Eva, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr.
2013).
94

portar um laudo médico para o TDAH e outro supostamente desprovido de uma conotação
relacionada ao diagnóstico, significando simplesmente “ser muito agitado”.
A eficácia da difusão dos discursos técnico-científicos, que permeiam as relações
escolares, e da popularização de seu vocabulário demonstra-se no fato de que, embora
algumas escolas visitadas não tivessem crianças diagnosticadas como portadoras de TDAH,
seus professores dispunham de elementos para discutir tal categoria. Eficácia que causa um
efeito importante: o uso indiscriminado dos termos “hiperativo”, “agitado” e “indisciplinado”
acarreta o aumento de encaminhamentos e possibilita a aplicação dos critérios diagnósticos do
TDAH a qualquer criança que apresente uma agitação incômoda ou uma indisciplina
perturbadora.
Assim, aquilo que se definia popular ou teoricamente como um desvio social,
derivado do meio (sobretudo o familiar), confunde-se, por equívoco ou por ação intencional,
com termos técnicos. Torna-se quase impossível a distinção entre o normal e o patológico
quando referida ao comprometimento da fisiologia cerebral (uma vez que não existem exames
médicos capazes de prover resultados conclusivos sobre as causas do TDAH) e à consequente
manifestação de comportamentos e desempenhos. Nas palavras da professora Amanda, “é
muito difícil compreender até que ponto que você tem um aluno que realmente tenha [TDAH]
ou seja um aluno que, por algum motivo, o médico achou que seria legal dar o remédio”.
Nesse processo, o recurso ao medicamento como solução de problemas
comportamentais e de aprendizagem também passa a figurar no vocabulário e nas práticas
escolares. O professor Jorge informa que esse artifício é comum entre pais e professores:

de forma geral, todo pai que traz até a gente o problema, que a gente já detectou
também que tem algum tipo de problema e o pai vem, ele vem com um tratamento,
ele vem com um remedinho já na ponta da língua, tá?! E quando ele não vem com
um remedinho, nós, já quase doutores, [dizemos] “olha, não está na hora de tomar
um remedinho, procurar um médico?”. E isso nos parece, assim, pelo menos ao meu
ponto de vista, que é a solução. (Jorge, professor da rede municipal. Entrevista
concedida em 27 mar. 2013).
Logo, estão dadas as condições de produção escolar de alunos hiperativos, como
constatou a professora Lívia: “A escola chega para o pai e fala ‘seu filho é hiperativo’, só
que muitas vezes o professor não tem essa formação. Então a escola acaba reproduzindo na
forma de um chavão: uma criança agitada hoje é uma criança hiperativa”. Depreendem-se
duas questões fundamentais de tal afirmação. A primeira, já anunciada, diz respeito ao
reconhecimento do especialista como o único profissional habilitado a identificar e intervir
efetivamente sobre o problema da hiperatividade enquanto sintoma de um transtorno mental.
A segunda implica a desautorização dos professores, que “não têm essa formação”. Ambas
95

demonstram a convicção de que o acesso à verdade da criança (hiperativa e desatenta) a ser


socializada, assim como a consumação adequada da inserção infantil, ocorrem tão-somente
por intermédio do conhecimento técnico-científico.
No entanto, a produção escolar da criança hiperativa não ocorre apenas em nível
lexical. Os saberes ditos científicos fornecem um conjunto de instrumentos de intervenção no
corpo da criança, normal ou não, bem como no corpo do professor e dos pais. Por meio de
estratégias e técnicas específicas intervém-se quimicamente sobre o cérebro disfuncional da
criança hiperativa e do adulto ansioso. Intervém-se igualmente nos estados emocionais, no
controle dos comportamentos e no desempenho físico-cognitivo individual. Para acessar o
corpo e sua verdade, intervém-se nas instituições e relações definidas como disfuncionais, na
negatividade da crise de autoridade do adulto, “incapaz” de tornar a criança disciplinada,
controlada e autônoma, concomitantemente. Intervém-se, assim, nos professores
desabilitados.
A concepção de medicalização, termo que também se congrega ao vocabulário do
TDAH, aparece para reforçar essa intervenção, ao mesmo tempo em que questiona a
transformação dos fenômenos sociais em problemas médicos.

Todos os problemas que as crianças apresentam dentro da sala de aula, com relação
à parte pedagógica, normalmente eles colocam como TDAH. [...] Agora, TDAH em
tudo quanto é criança? Não, isso não existe, né?! Então, eu acho que é um certo
exagero. Peca-se um tanto, a meu ver, pelo excesso de medicalização, de tudo é
problema. Nem tudo é problema. É “problema”, vamos dizer entre aspas, a correria
do mundo atual, a necessidade que os dois pais têm de sair de casa e trabalhar, ahn,
vamos dizer, a reestruturação da família é diferente sem que se tenha uma atenção
especial para com as crianças, porque acham que elas não entendem nada, e elas
entendem tudo! (Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em
15 abr. 2013).
Em uma linguagem cotidiana, a medicalização pode assumir diferentes
significados. O “excesso de medicalização” designa o uso descomedido de medicamentos
como tratamento de supostos transtornos mentais. Simultaneamente, refere-se à atuação
médica em questões da contemporaneidade (“a correria do mundo atual”, “a necessidade
que os dois pais têm de sair de casa e trabalhar”, “a reestruturação da família”, “uma
atenção especial para com as crianças”, conforme as expressões usadas pela professora nesse
trecho de entrevista).
O sentido que aí se forma é de denúncia. No entanto, a medicalização torna-se
também um instrumento de luta contra a intervenção médica na realidade cotidiana,
excedendo seu campo de atuação sob a justificativa de promover o bem-estar individual e
coletivo. Uma luta que, em última análise, estabelece-se entre campos diferentes, a saber, a
psiquiatria biomédica e as neurociências, em uma ponta, e uma psicologia crítica, ou mesmo a
96

psicanálise, em outra. O termo expressa, nesse sentido, um embate entre discursos e práticas
que, cada um ao seu modo, mobilizam estratégias e instrumentos voltados à “boa”
socialização infantil. Não por acaso, a mesma professora evoca o conceito de “inteligência
emocional” como proposta inovadora:

Tem que mudar o olhar. Medicar tudo, dizer que tudo é doença, que tudo é
anormal... O que é anormalidade? Quem é 100% normal? Eu acredito que [...] o
normal é aquilo que não destoa muito dentro da sua individualidade, vamos dizer,
nem tanto a mar, nem tanto a terra. Há um equilíbrio. Agora, porque você é um
pouco mais lento para uma determinada coisa não quer dizer que você tenha um
problema. Não é porque você é acelerado na sua maneira de agir ou reagir que de
repente você tem TDAH. Não. [...] Tem pesquisas que dizem assim que às vezes a
pessoa é muito inteligente, mas pelo emocional não ser, vamos dizer, “equilibrado”,
entre aspas, ela não tem um rendimento tão bom quanto um que é, vamos dizer
numa escala lá que é de análise psicológica, menos inteligente. Então o sujeito,
vamos chutar assim, grosso modo, tem 200 de QI, o outro tem 100, mas de repente o
que tem 100 se sobressai muito mais do que o que tem 200. Por quê? Porque ele tem
uma estabilidade emocional, ele tem o coeficiente de inteligência emocional, a
maneira como ele se relaciona com as pessoas, o meio ambiente, é muito melhor do
que aquele que tem 200, que não sabe interagir, que não sabe como se relacionar.
(Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
O questionamento apresentado pela professora desloca a problemática pedagógica
clássica da inteligência cognitiva para a emocional. Esta se refere ao conceito cunhado pelo
psicólogo estadunidense Daniel Goleman, segundo o qual as habilidades individuais de
automotivação, controle dos impulsos e canalização das emoções são responsáveis pelo
sucesso pessoal, acadêmico e profissional do indivíduo. Embora tal conceito seja amplo e não
diga respeito exclusivamente aos desvios comportamentais e de aprendizagem, ele condiz
com a definição do TDAH proposta por Barkley (1981). Uma mesma lógica de intervenção
sobre o corpo se perpetua, deslegitimando os indivíduos que não detêm o poder de dizer a sua
verdade.

Professores desabilitados e a legitimidade do discurso psiquiátrico

De acordo com Ehrenberg (2014), em um contexto de autonomia59 em que


predominam as explicações técnico-científicas, cristaliza-se o solo de um individualismo
segundo o qual a capacidade de adaptar-se às dificuldades, de tomar decisões, de controlar
suas emoções, enfim, de socializar-se adequadamente ocorre graças às funções neurológicas
do córtex pré-frontral. O TDAH assenta-se sobre esse solo ao ser definido como um distúrbio

59
O conceito de autonomia aqui adotado designa a liberdade de escolha individual em nome da autoafirmação e
a capacidade de agir por si mesmo na maioria das situações de vida. É sobre essas duas propriedades da
autonomia que se apoiam a sociedade e as subjetividades individuais contemporâneas, pois se referem a uma
norma cujo valor torna-se desejável em todos os aspectos da vida social (EHRENBERG, 2012).
97

das funções executivas responsáveis pelo controle e pela gestão efetiva de si. O desrespeito às
regras sociais caracterizaria, assim, as patologias mentais. Diante desse cenário, a psiquiatria
articula conhecimentos e linguagens específicas a fim de desenvolver as competências
relacionais e cognitivas dos indivíduos acometidos. E fazendo isso, ela coloca em
funcionamento uma engrenagem social e, ao mesmo tempo, revela as tensões sociais
contemporâneas.
Interpreto que, dentre essas tensões, encontra-se a inserção social da criança e a
emergência do aluno hiperativo e desatento, mas também — e intimamente relacionada à
primeira — a dificuldade de os professores e pais se tornarem autônomos. O sofrimento que
os acomete, expressado nos sentimentos de impotência, desconhecimento, fracasso e culpa,
divide a cena escolar com estratégias de exclusão de “maus” alunos, priorização dos “bons”
alunos e encaminhamento dos “perturbadores”. A negatividade da crise escolar e de
autoridade tem, assim, respaldo nos conhecimentos e linguagens articulados por saberes
especializados, como a psiquiatria contemporânea. Crianças têm TDAH e professores,
síndrome de burnout, categorias essas que designam, entretanto, um mal-estar real.
Em outro sentido, os saberes especializados e seus instrumentos suportam novas
práticas. Para a professora que elabora estratégias a fim de assistir os alunos que “precisam de
tratamento”, a simples hipótese de existência de um transtorno promove uma espécie de
compensação ao problema da criança (a criança deve receber mais atenção do professor) e de
alívio do sentimento de culpa que o docente carrega devido à incerteza sobre como lidar com
esse aluno ou ao desprovimento de condições materiais e físicas para isso. Ainda assim, a
criança que porta um laudo pode ser excluída ou agrupada a outros estudantes que não
participam das aulas. Mas isso acontece quando o professor nota a ausência de efeitos do
psicofármaco ou quando não são tomadas providências tidas como necessárias, seja por parte
dos pais que desaprovam o encaminhamento ou que descontinuam o tratamento, seja pela
falta de contato com os especialistas para que orientem os educadores. Em alguns desses
casos, o ato de colocar o aluno com dificuldade sentado à frente da mesa do professor pode
ser interpretado também como uma tentativa de remediar um caso ainda em andamento.
Então, vê-se mais claramente a partir dessa perspectiva que também se intervém
na escola e no trabalho dos professores quando eles deixam de cumprir suas funções. Sendo
preparado para interceder e responder no âmbito pedagógico (cumprir cronogramas, transmitir
conteúdos, disciplinar, fazer obedecer), o profissional de educação é fixado a uma posição e a
um papel pré-determinado, cujas atribuições devem ser bem executadas a fim de fazer
funcionar o sistema social. Quando isso não ocorre, o professor é culpabilizado (“ele é
98

inadequado, porque é pago para isso”, “a escola é acusada de não educar mais”), sente-se
impotente (“a gente não sabe o que fazer”, “não somos preparados para isso”) e culpado
(“não é o certo, mas a gente prioriza”, “eu me sinto negligente”), adoece, e sua prática sofre
uma intervenção externa, demandada ou não, de especialistas vistos como mais habilitados a
propor explicações e soluções aos novos problemas que afetam a escola contemporânea.
No campo da pedagogia (talvez seja mais adequado referir-se a um campo da
pedagogia “convencional”, aquele no qual se inserem as escolas de educação formal, públicas
ou privadas), articulam-se hoje saberes, representações e práticas diversas que oferecem
instrumentos para as ações cotidianas dos professores (como a noção de fases de
desenvolvimento biológico, psicológico e cognitivo). Entretanto, o papel dos profissionais de
educação — que não formam um grupo homogêneo no que se refere à defesa do
encaminhamento de alunos hiperativos e desatentos — restringe-se à identificação de
possíveis casos, ao fornecimento de informações importantes à elaboração do laudo médico e,
enfim, de execução de recomendações dadas pelos especialistas. Como bem disse Foucault
(2006b), os professores são os olhos dos médicos. Contudo, eles devem manter-se apenas
como sentinelas e denunciantes. Em conversa com uma professora da rede municipal, ela
relatou que os profissionais de saúde não permitiam que o docente apresentasse no relatório
de encaminhamento informações acerca do histórico familiar da criança, sobretudo quando se
tratava de uma “família complicada”, já que assim ele estaria “fazendo diagnóstico”, de
responsabilidade exclusiva do profissional de saúde.
Essa interdição estabelece os limites dos discursos socialmente investidos do
direito de falar a verdade. Os educadores não dispõem de uma permissão reconhecida para
tudo dizer, pois apenas pessoas habilitadas por um saber técnico-científico podem fazê-lo em
circunstâncias bem definidas. O trecho do relato da professora Maria Luiza ilustra tais limites,
que resultam na deslegitimação do conhecimento e da experiência docente:

[As pessoas falam] “Ah, [você é] psicopedagoga”. Que dizer, você não pode ser só
pedagoga, porque se você não for psicopedagoga, você não vai entender o resto da
coisa. (Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr.
2013).
O desinvestimento da legitimidade docente ocorre também no nível das práticas
de cuidado para com a criança em sala de aula (o que se estende aos pais no âmbito
domiciliar) e das estratégias pedagógicas direcionadas a alunos com dificuldades de aprender.
Recupero aqui o relato de um médico atuante em um ambulatório universitário de psiquiatria
infantil:
99

A gente vai dizer que em algum momento aquilo [os sintomas do TDAH] pode ser
clinicamente significativo quando chega a tal ponto que a escola não consegue dar
conta e elaborar um programa de educação que contemple as necessidades daquela
criança, quando no ambiente domiciliar, ela começa a ter muita dificuldade, começa
a ter comportamentos de risco, porque ela sobe, mexe nas coisas, pode pegar faca
[...]. (Médico psiquiatra de um ambulatório infantil universitário. Entrevista
concedida em 28 out. 2009). (BARBARINI, 2011, p. 110).
Vale notar que a delimitação informada pelo médico vincula a necessidade do
diagnóstico, definida em termos clínicos, como certa incapacidade de pais e professores de
responder às necessidades da criança (mas quem define que necessidades são essas?). E essa
incapacidade, sentida pelos professores, relaciona-se a formas de intervenção e de gestão de
desempenhos. O especialista é, nesse sentido, o catalisador de uma mudança de hábitos e
estratégias cotidianas — ou de uma permanência de um saber instituído — vista como
indispensável.
Foucault (2006b) reconheceu na figura do psicólogo escolar esse catalisador. Para
o pensador, “a escola necessita do psicólogo quando é preciso fazer valer como realidade um
saber que é dado, distribuído na escola e que pára de se apresentar como real efetivamente
àqueles a que é proposto” (FOUCAULT, 2006b, p. 237). Quando o poder da escola torna-se
mítico e frágil, sua realidade deve ser intensificada. A atuação do psicólogo se faz nesse
sentido, pois permite ao indivíduo encontrar a realidade de suas aptidões e a realidade dos
conteúdos de saber que ele é capaz de adquirir. Ao encontrar essas duas realidades, o aluno
aparece como um indivíduo.
Na contemporaneidade, todavia, a presença física do psicólogo escolar está
dispensada, embora seja demandada por profissionais de educação. Os saberes especializados
que circulam pela escola materializam-se de modo a orientar ações e críticas. Ademais, os
professores podem encontrar especialistas em outros espaços de informação, como os cursos e
reuniões da ABDA, por exemplo, ou as palestras ministradas por entusiastas da aplicação das
neurociências à educação escolar (vale lembrar o exemplo mencionado anteriormente acerca
da palestra ministrada no Collège de France) e ao aconselhamento de professores.
Cito como exemplo uma palestra da qual participei na cidade de Moji Mirim, em
agosto de 2014. Denominada “As neurociências na educação”, a conferência foi ministrada
por um neurocientista. O público compunha-se majoritariamente de profissionais de
educação. Nesse evento, o conferencista apresentou dados de um ambulatório universitário
segundo os quais a grande maioria dos problemas apresentados por professores naquele
espaço decorria de baixa autoestima, estresse e depressão. O palestrante recomendou,
pautando seu discurso em explicações neurológicas (“É essa a parte técnica para mostrar que
100

é verdadeiro”, em suas palavras), que os educadores valorizassem seu trabalho demandando


respeito e reconhecimento por parte das famílias. As recomendações também abarcavam a
realização de atividades físicas e de atividades prazerosas durante o dia, a fim de garantir boas
noites de sono, afinal “a felicidade tem componentes neuroquímicos e, portanto, não basta
querer ser feliz”. A empatia também figura na receita neurocientífica, pois quem age com
bom humor recebe dos outros o mesmo comportamento (“o sistema de recompensa gera uma
sensação de bem-estar, pois a dopamina é responsável pelo prazer”). Cabe notar que as
estratégias de treinamento, aprimoramento e modificação do comportamento e dos
mecanismos cerebrais de aprendizagem, cuja aplicação na educação é defendida pelas
neurociências, são investidas, em alguma medida, nos próprios professores.
Essa complexa rede de linguagens, termos, técnicas e estratégias consolida a
legitimidade do discurso psiquiátrico em torno do TDAH, da criança hiperativa e, igualmente,
da crise de autoridade do professor e da escola. Em outras palavras, intervém-se na
inadequação infantil às formas contemporâneas de inserção social e de reconhecimento da
criança como membro de uma sociedade, mas também na negatividade da crise da instituição
escolar, incapaz de restabelecer a ordem disciplinar e, tampouco, de tornar seus alunos
indivíduos autônomos. A professora Jéssica ilustra tal realidade por meio das noções de
transferência de responsabilidade e de lacuna:

[...] O pai que tinha que ensinar o filho como se portar, educar, ensinar caráter,
moral. Ninguém ensina isso mais. Aí a escola não está dando conta, ah, vai para o
psiquiatra. Dá o remédio e não resolve tudo. [...] Aí o pai não consegue controlar e
dá para outro controlar. Então fica perdido. A meu ver, as crianças estão
completamente perdidas [...]. Então fica essa lacuna, de transferência de
responsabilidade, ninguém está querendo... E vai pagando, enquanto dá para pagar,
paga médico, fono, psico... Eu tenho um aluno que tinha até tutora, tinha
psicopedagogo, tinha a fono, tinha tudo. (Jéssica, professora de rede privada.
Entrevista concedida em 10 set. 2013. Grifos nossos).
“Lacuna de responsabilidade” — ou o que outro professor designou como “jogo
de batata quente” — é uma expressão interessante, pois indica a formação de um vazio de
cuidado, educação e atenção no qual os sujeitos se inserem e que é preenchido, mesmo que
parcialmente, por ações e soluções médicas e psicológicas. Chamarei isso de “vazio de
referências”: o que somos? Para que servimos? Qual é nossa função social enquanto escola,
enquanto família? Essa é uma forma de dar sentido à realidade (e, portanto, não se trata
verdadeiramente de uma ausência de referências sociais) que desencadeia perguntas
existenciais e que excede a questão dos diagnósticos psiquiátricos, sendo, entretanto,
recorrentemente enunciada pela psiquiatria e pela demanda social por intervenção
especializada em espaços cotidianos, como a escola. Desse modo, interpreta-se que, nesse
101

contexto, é exatamente a crise escolar e da autoridade do professor que a mantém a escola


funcionando como engrenagem social. Pois, em sua crise, as intervenções especializadas são
desejadas, pois construídas como necessárias. O ciclo interventivo então prospera
indefinidamente.

2.4. Demandas escolares por intervenção especializada

Necessidades e demandas coexistem em diferentes esferas sociais e, por isso,


norteiam as políticas públicas e muitas das discussões em níveis de gestão. No âmbito da
atenção pública brasileira em saúde, Cecilio (2006; 2011) parte do conceito de “necessidade
de saúde” para analisar e propor questões acerca da integralidade e equidade do sistema de
saúde no país. Tal conceito considera que as necessidades individuais nesse aspecto são social
e historicamente construídas (além de captadas em sua dimensão individual) e estabelecem
quatro pressupostos: a busca por boas condições de vida; o acesso e a possibilidade de
consumo das tecnologias de saúde capazes de melhorar e prolongar a vida; a criação de
vínculos (a)efetivos entre o usuário e a equipe e/ou o profissional que o atende; e a construção
de graus crescentes de autonomia no modo individual de “andar a vida”.
Essas necessidades de saúde traduzem-se em demandas, em pedidos explícitos
feitos pelo usuário ao serviço de saúde. Cecilio pondera, entretanto, que a demanda, na
verdade e em boa medida, corresponde às necessidades modeladas pela oferta de serviços de
saúde encontrada no sistema. Nesse sentido, necessidades (reais) de saúde e demandas
individuais por serviços de saúde podem não coincidir. De acordo com Campos (1969), a
demanda é afetada por diferentes fatores, incluindo o desejo de lucro por parte de um
empresário privado, as decisões “nem sempre racionais” dos ofertantes de serviços de saúde,
entre outros.
Trago essa concepção para a presente discussão tendo em vista que o TDAH
aparece como objeto de diversas necessidades e demandas de saúde, principalmente daquelas
elaboradas no espaço escolar a profissionais e serviços de saúde locais. Destacam-se,
entretanto, duas questões fundamentais à análise: a demanda (modelada externamente e nem
sempre condizente com necessidades reais), conjuntamente a seus instrumentos (como o
laudo e o medicamento, meios que possibilitam o consumo de tecnologias de saúde), e a
autonomia (um dos fatores aos quais almejam as necessidades de saúde e que se define como
a possibilidade de cuidado ou gestão de si).
102

A demanda, formulada internamente aos estabelecimentos escolares ou às


residências familiares, é igualmente moldada pela articulação de saberes os mais diversos.
Particularmente quando estes passam a permear a pedagogia (o que não é novo, mas assume
configurações diferentes hoje), pela difusão e captura de categorias clínicas e diagnósticas,
como o TDAH, e, sobretudo, pelas exigências sociais às quais as instituições e os indivíduos
têm de se adaptar para ser normativos (CANGUILHEM, 2009). Fala-se, portanto, de
demandas sociais de intervenção especializada em espaços cotidianos, como a escola. Isto é, a
demanda formalizada a partir de um desejo de intervenção (nas relações e instituições que não
cumprem suas funções) construído como necessidade.
Observou-se que as demandas por intervenção especializada manifestavam-se de
maneiras diversas nos discursos dos professores e professoras acompanhados em campo de
pesquisa. A demanda por disponibilização de um profissional especialista no interior do
estabelecimento escolar e por uma articulação mais eficiente entre sistemas de educação e de
saúde foram apresentadas no início deste capítulo. Esse tipo de solicitação implica a
intervenção especializada como uma resposta ao sentimento de impotência vivido por
diferentes professores. O laudo médico e o medicamento são seus elementos materiais, cuja
simbologia é fundamental às relações escolares. O relato da professora Eva evidencia a
imbricação entre demanda e desejo de intervenção:

A mãe está levando ele [um aluno de terceiro ano] ao psicólogo, porque ele é
hiperativo. Só que nós não podemos dizer que ele é hiperativo porque ele não tem
laudo. Pedimos para ele, para a mãe, um laudo, só que a doutora mandou uma
receita do que ele está tomando. Não é isso que a gente quer. Nós queremos um
laudo, porque aí precisa ser mandado para a Prodesp digitar que ele é hiperativo.
(Eva, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013. Grifos
nossos).
Segundo a explicação que se segue na entrevista original, Prodesp60 é uma
empresa de economia mista, vinculada ao Governo do Estado de São Paulo, que fornece
serviços de tecnologia informacional às diretorias de ensino paulistas. “Mandar o laudo para
a Prodesp digitar” significa que as informações constantes no laudo médico, que legitima o
fato de que o aluno porta um transtorno mental chamado TDAH, serão informatizadas e
estarão disponíveis a quaisquer diretorias de ensino ou escolas pelas quais esse aluno passe.
Assim, segundo a justificativa da entrevistada, a criança poderá ser acompanhada em suas
necessidades pedagógicas até o fim de seus estudos no ensino médio. Sem o laudo médico, a
equipe escolar não pode afirmar que a criança tem TDAH, tampouco pode pedir a ajuda de
outros profissionais, seja em relação à delimitação das deficiências médico-pedagógicas do

60
Disponível em: <http://www.prodesp.sp.gov.br/empresa/estrutura.asp>. Acesso em: 21 set. 2015.
103

aluno, seja referente ao tratamento de suas carências. Afinal, ele “não tem um CID”, como
disse a professora Tania.
Ademais, o fornecimento de informações pessoais de alunos a uma central de
informatização de dados corresponde ao que Castel (2011) analisou como gestão de riscos.
Isto é, forma-se um banco de dados que, embora provenham de indivíduos concretos,
permitem a criação de perfis abstratos de risco a partir de vulnerabilidades específicas, reais
ou potenciais: se a criança tem um laudo médico, a ela se associa um determinado
comportamento, um determinado tratamento e determinadas possibilidades de risco, que vai
do fracasso escolar real à criminalidade potencial, conforme a definição do TDAH dada pelo
ProDAH.
Subjacente ao processo de construção da necessidade de intervenção especializada
está uma concepção particular de bem-estar, fundamental à noção contemporânea de saúde.
Essa noção constituiu-se no pós-Segunda Guerra como um direito. O Plano Beveridge,
elaborado em 1942, consolidou-se como o modelo seguido na Inglaterra e em outros países
para a organização da saúde em um contexto europeu de reconstrução de sociedades
destruídas pela guerra (vale notar que esse modelo serviu de inspiração ao projeto que
culminou na constituição do Sistema Único de Saúde brasileiro nos anos 80). Seu marco,
segundo Foucault (2010b, p. 168), foi fundar “um direito diferente [em relação ao direito à
vida], mais rico e complexo: o direito à saúde”.
A saúde já era o objeto privilegiado da medicina social dos séculos XVIII e XIX
na Europa, voltada, porém, a resguardar a força física nacional destinada ao trabalho, à
produção capitalista, à defesa nacional e ao ataque militar. A partir do Plano, o Estado passou
a garantir ao indivíduo o direito de manter seu corpo em boa saúde, propiciando a instauração
de sistemas de regulação e de cobertura econômica da saúde e da doença. Ademais, instituiu-
se um novo direito, uma nova moral, uma nova economia e uma nova política do corpo, por
intermédio dos quais o corpo individual converteu-se em um objeto primordial de intervenção
estatal e médica visando ao bem-estar do indivíduo e da população.
O princípio do bem-estar encontra-se na definição de saúde adotada pela
Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1948 e que persiste até hoje. Trata-se do
“completo bem-estar físico, mental e social, e não simplesmente a ausência de enfermidade”.
O completo bem-estar — uma aspiração irrealizável — denota o ordenamento de todas as
esferas sociais sob o pretexto de aprimorar a prosperidade individual e populacional, um
mecanismo que subsidia o conceito foucaultiano de biopoder (RABINOW; DREYFUS, 1995,
p. xxii). Denota igualmente a responsabilização contemporânea do indivíduo pela gestão de
104

sua própria saúde, isto é, pelo dever de desejar viver bem, o que transforma a saúde em um
objeto de desejo e de consumo.
A autonomia é então a noção que orienta tal dever individual e que, por isso,
repercute significativamente nos dias atuais, sobretudo em estudos e propostas voltadas à
elaboração de políticas públicas as mais diversas em saúde, saúde mental e educação.
Autonomia, no dicionário, designa a “capacidade de governar a si próprio”. Lutar pela
autonomia individual por meio de percursos intelectuais e de ações sociais distintos não indica
apenas a existência de pontos de vistas diferentes para se lidar com um mesmo fenômeno.
Implica também que a autonomia é, ao mesmo tempo, uma forma de cuidado e governo de si
e uma forma de intervenção especializada na realidade cotidiana dos indivíduos. O indivíduo
autônomo na saúde — ou no que se chama de gestão do cuidado — deve ser responsável por
sua cura (no sentido de que ele deve seguir as recomendações médicas, tomar os
medicamentos e desejar se restabelecer), fazer escolhas e participar do processo de
estabelecimento do diagnóstico e de seu tratamento. Além disso, ele deve ser responsável
pelos cuidados subsequentes, como o seguimento do tratamento escolhido.
Donzelot (1986) mostrou que no século XIX a incitação da autonomia familiar em
relação à intervenção estatal por meio da poupança constituiu uma estratégia de intervenção
especializada (as táticas filantrópicas direcionadas aos pobres) na família a fim de mantê-la
funcionando como um mecanismo de articulação dos dispositivos disciplinares. Tratava-se de
uma articulação entre o judiciário, o psiquiátrico e o pedagógico voltada ao governo da
família e da infância. No século XX, a psicologia e a justiça também se pautaram no uso da
autonomia. Hoje a criança é vista como um sujeito de direito que ocupa a posição ambígua de
dever ser responsável por seu controle emocional e por suas ações e, ao mesmo tempo, de
ainda ser incapaz de cuidar de si mesma, o que possibilita formas interventivas advindas de
uma gama de especialidades da infância. Isto é, mesmo quando se defende que o indivíduo
tem de ser responsável pela gestão do seu cuidado, o que o torna um indivíduo autônomo, a
autonomia pode ser capturada quando ela não é verificada, seja enquanto uma diferença
desvantajosa tratável, seja enquanto a incapacidade de decidir e agir por si mesmo a fim de
garantir sua própria existência bem como a dos demais, como as crianças que devem ser
cuidadas por pais e professores.
É preciso reforçar que as demandas por intervenção especializada não são
modeladas exclusivamente por um interesse biomédico de legitimação de seu saber e sua
prática. Seria ingênuo analisar um fenômeno complexo por essa única via. Todos os
elementos e relações expostos neste capítulo têm papel fundamental na elaboração de tais
105

demandas, que muitas vezes não coincidem com necessidades reais, conforme as
considerações de Cecilio (2006; 2011). Reconhece-se, entretanto, que o desejo de se formular
um diagnóstico (“não é isso que a gente quer. Nós queremos um laudo”), assim como “o
desejo individual de ser criativo e autônomo, lutar pelo melhoramento de si e pelo
desenvolvimento de suas capacidades [...] estimulado e conduzido de forma produtiva”
(CALIMAN, 2006, p. 51), representa uma questão contemporânea mais profunda: a produção,
como uma necessidade, do desejo de autonomia61 ou o desejo de intervenção que garanta a
autonomia, seja do indivíduo responsável por si, seja dos professores que, respaldados por um
saber técnico-científico, podem tomar suas decisões acerca daquela criança. E o TDAH
denota esse desejo, uma vez que, por seu intermédio, intervém-se no corpo individual para
que ele seja útil e dócil — afinal, os corpos hiperativos e desatentos estão inseridos em
instituições disciplinares —, mas também na existência humana para que o indivíduo
aprimore suas competências e habilidades.
As estratégias de intervenção — ou o desejo de sua aplicação — recaem
igualmente sobre as instituições e se reforçam por meio da ideia de crise. A crise da
instituição escolar disciplinar, que fornece conteúdos incoerentes e sem funcionalidade para
os alunos. A crise de autoridade dos professores, tanto em relação ao respeito por parte dos
educandos quanto ao conhecimento e experiência pedagógica submetida à verdade dos
discursos técnico-científicos. Ou a crise da instituição familiar desestruturada, considerada
incapaz de prover seus membros de sentidos e capitais sociais. É para ocupar os vácuos das
crises, ou os vazios de referências, que os especialistas são chamados a atuar. Inclusive o
pesquisador em ciências sociais, pois a ele é demandado, por vezes, um papel de conselheiro
ou de agente externo usado como juiz dos comportamentos dos alunos.
Dito de outra forma, a escola, como instituição responsável pela inserção da
criança na esfera pública e pela difusão social da pedagogia e dos saberes com os quais ela se
articula, tem como função fundamental agir sobre o indivíduo conforme um projeto de
sociedade. A criança, um ser em desenvolvimento, deve então ser guiada a fim de que se
torne, primeiramente, um indivíduo. E um indivíduo bem integrado, reconhecido por seu
grupo como pertencente à sociedade. Finalmente, o sujeito competente e autônomo, porém
disciplinado, é o princípio da sociedade contemporânea e modelo de personalização, ao

61
Ehrenberg (2012) distingue dois tipos de autonomia relativos a formas de individualismo: a autonomia-
condição e a autonomia-aspiração. A primeira, predominante nos Estados Unidos, diz respeito à capacidade
individual de dispor de condições próprias para se autogovernar e agir por si mesmo. O self-made-man é sua
figura expoente. Já a autonomia como aspiração, característica da sociedade francesa, é uma reivindicação de
igualdade a partir da proteção do Estado. O indivíduo autônomo é, nesse sentido, aquele que, inserido em
instituições, pode gozar de boas condições vitais e sociais.
106

mesmo tempo, imediata e futura da criança. Isso gera um mal-estar no plano da experiência
cotidiana. A crise de autoridade, por sua vez, produz um sentimento de perda de referências
que faz com que os indivíduos demandem novos instrumentos, saberes e práticas de apoio. O
discurso científico e seus instrumentos se exercem sobre o corpo da criança, adaptando-a à
fluidez da sociedade e se beneficiando financeiramente disso. Atua também sobre a função
política do professor, mantendo-a inerte e substituindo-a. Nada se modifica, exceto os
neurônios e os comportamentos infantis, por meio da ação da Ritalina®, e a disposição física
e mental do profissional de educação a quem se administra o Rivotril®.
E assim cresce o número de diagnósticos infantis e adultos, pois a escola
disciplinar (ao menos em seu aspecto relacional, no qual o professor não consegue
restabelecer a ordem, ao mesmo tempo em que não é capaz de estabelecer o diálogo com seus
alunos) mobiliza as condições de existência de uma categoria como o TDAH e das práticas
que se voltam a ele. A crise escolar é o alimento desse tipo de prática interventiva.
107

CAPÍTULO 3

Os casos de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade

A demanda por intervenção especializada no cotidiano escolar promove efeitos


relacionados à garantia de funcionamento social. No capítulo precedente, analisei o processo
de constituição de um cenário em que, da ineficiência da instituição escolar em socializar
adequadamente a criança, constrói-se um desejo de intervenção técnico-científica travestido
de necessidade. Há ainda efeitos outros, mais práticos e visíveis, que correspondem à
formalização dos casos de TDAH infantil mediante procedimentos de encaminhamento e por
meio do arranjo de uma rede de serviços, dispositivos e direitos relativos aos diagnósticos e
tratamento desse transtorno. Em relação às crianças concernidas, os efeitos supracitados
condizem igualmente com as pequenas resistências, isto é, os gestos e enunciados discretos,
quase imperceptíveis aos adultos, manifestados por aquelas crianças cuja contribuição ao
novo e à mudança — conforme os termos de Arendt (2000) apresentados no segundo capítulo
— é tomada como indisciplina, hiperatividade ou enfrentamento.
A análise desse conjunto de ações compõe o presente capítulo. A exploração de
alguns dos casos de TDAH encontrados nas escolas visitadas em trabalhos de campo
permitirá evidenciar os pontos de cruzamento de forças e de perturbações entre as “lutas”
infantis, a medicina, a escola, os professores e as famílias, fazendo emergir relações sociais e,
até mesmo, uma nova condição de ser da criança hiperativa e desatenta.

3.1. Descrição de casos de TDAH

O significado dos sintomas e dos distúrbios patológicos, para Arthur Kleinman


(1988), modifica-se de acordo com as relações e experiências que se estabelecem em torno de
uma doença. O autor então distingue três termos de língua inglesa: sickness, disease e illness.
Sickness é a doença em seu sentido abstrato e genérico. Trata-se de “um distúrbio [...] que se
manifesta em uma população e em relação a forças macrossociais (econômicas, políticas,
institucionais)” (KLEINMAN, 1988, p. 6). Disease designa aquilo que o médico é treinado a
ver com o respaldo de um determinado arcabouço teórico e técnico, conforme a sua
especialidade. Kleinman afirma que o cuidador (healer) — que pode ser um neurocirurgião,
um médico familiar, um psicoterapeuta, entre outros especialistas — interpreta o problema de
saúde a partir de uma determinada nosografia que permite criar uma nova entidade
diagnóstica: a doença. Em outros termos, a doença, enquanto disease, configura-se tão-
108

somente como uma alteração da estrutura e do funcionamento biológico. Já illness refere-se à


experiência da doença. O termo contém tanto a experiência coletiva quanto as experiências
pessoais do doente e de sua família. A primeira considera as expectativas convencionais
criadas socialmente em torno de modelos comportamentais enquanto a segunda envolve a dor
e outros sentimentos, as categorizações elaboradas por esses indivíduos para explicar sua
experiência, as dificuldades geradas pelos sintomas etc.
Apesar de suas especificidades, as diferentes perspectivas e experiências da
doença, sobretudo disease e illness, articulam-se em uma relação de mútua transformação por
meio de negociações. As considerações propostas por Kleinman implicam o questionamento
do discurso médico como o único capaz de dizer a verdade sobre a doença, bem como
permitem indagar aquilo que os adultos informaram sobre a condição da criança.
Em certa medida influenciada por essa abordagem da experiência da doença, a
descrição dos casos de TDAH trata da organização dos dados referentes a um conjunto de
percursos que compõem a vivência em torno da “dificuldade de aprendizagem” e dos “maus
comportamentos”. A demanda por atendimento especializado originada na escola envolve a
triagem e o encaminhamento do aluno — identificado por professores como um possível
portador de TDAH — a um profissional de saúde. A especialidade desse profissional e o tipo
de serviço em que ele trabalha diversificam-se conforme o caso analisado. Há, portanto, um
conjunto de procedimentos formalizados na escola para a realização das solicitações de
encaminhamento.
No plano das experiências infantis, os casos descritos a seguir constituem-se
também do contexto social e familiar das crianças e, sobretudo, das formas pelas quais elas
colocam em questão as verdades e os estigmas que as rodeiam. Para que a análise não se torne
excessivamente longa e enfadonha, não serão descritos os casos das quinze crianças
acompanhadas. Foram selecionados casos e acontecimentos de campo significativos,
explorados mais detidamente (por um tempo mais longo, por meio de um contato direto de
qualidade com a criança e devido às informações consistentes coletadas a partir de conversas
com professores e de acesso a materiais, como o prontuário escolar), uma vez que tocam
questões emergentes comuns aos demais casos.

“Ele tem a inteligência dele, a gente sabe que ele é capaz, mas ele não controla”

Luan tinha treze anos, em 2013, quando cursava o oitavo ano na escola municipal
de Moji Mirim. Filhos de pais divorciados que constituíram novas famílias, Luan e sua irmã
109

mais velha estavam sob os cuidados da avó paterna, Dona Tina, uma senhora cabeleireira
cortês e preocupada com os netos. Sobretudo com o menino, que foi separado da mãe com
poucos anos de idade. Dona Tina, em entrevista, considerou a separação como abandono e
afirmou que, tempos após o evento, Luan dizia ter medo de que ela também fosse embora. A
seu ver, os acontecimentos referentes à mãe fizeram com que seu neto “não fosse normal”62.
O pai ainda o busca aos finais de semana, pois trabalha em outra cidade, onde mora com sua
nova esposa.
“Eu vou para lá na sexta, à noite. Lá eu posso mexer na internet e ficar no
computador. Primeiro eu tenho que pedir a autorização dele, né? E de vez em quando eu fico
jogando videogame. São essas coisas que eu gosto de fazer”.
A série de fatos familiares mencionados induziu Dona Tina — que se considera
agitada como Luan — a superprotegê-lo. Em âmbito escolar, a combinação de
acontecimentos permitiu a alguns professores identificar na relação entre avó e neto a
ausência de imposição de limites comportamentais, definida como um dos fatores
determinantes do baixo rendimento escolar do aluno. O desempenho escolar desajustado de
Luan causou ainda mais angústia na avó, que reconheceu que “ele tem esse probleminha de
ser desligado”. Em entrevista, ela confidenciou-me que, por “já estar velha”, essa situação é-
lhe penosa. Sente-se impotente por trabalhar durante a maior parte do tempo, o que a impede
de dedicar-se ao neto. Outro fator de descontentamento é a escassa formação escolar, uma vez
que ela estudou até a quarta série, quando foi forçada a abandonar a escola para realizar o
trabalho doméstico, o que a impede de auxiliá-lo nos estudos em casa.
“Eu estudo algumas matérias em casa. Informática eu não estudo, porque é
prova escrita. Só tiro vermelha! É por causa que, de vez em quando, eu fico esquecendo as
coisas. Dá um branco. Eu fico nervoso. Ô! Se fico. Chuto tudo e mais um pouco!”
Luan sempre demonstrou ser polido, espontâneo e objetivo em suas respostas,
exceto quando se tratava de contar histórias de terror. Participativo nas exposições orais das
aulas de História, enfadava-se, porém, com o dever de escrever, sobretudo o de copiar.
Naqueles momentos, distraía-se constantemente com o papel, a caneta minúscula, após ser
quebrada e cortada, o inseto na cortina, a borracha, a meia, o corretor líquido, os alunos fora
da sala, os pensamentos ou o desejo de estar em casa para jogar videogame. Deitava-se sobre

62
As frases e parágrafos destacados em itálico dizem respeito a enunciados e trechos de relatos proferidos por
professores e, principalmente, por crianças acompanhadas em campo. Alguns deles foram sutilmente adaptados
— com anuência dos sujeitos concernidos — para dar fluidez à leitura e, em certos casos, para manter o
anonimato das pessoas envolvidas. Optei por não reportá-los como citações, conforme os padrões de formatação
textual, a fim de que esses sujeitos, principalmente as crianças, interviessem nas descrições.
110

a carteira, virava-se para um lado e para o outro, mostrando estar incomodado. A atividade de
cópia era retomada quando alguém o despertava, fosse pelo professor que lhe perguntasse se
ele havia terminado de copiar, fosse pelo colega que dissesse “nossa”, quando percebia que
ele sequer tinha acabado de copiar o conteúdo do início da lousa.
“Na verdade, copiar pra mim não é nem cansativo, é irritante! Porque a
professora passa um monte de coisa e eu fico copiando. Aí, de repente, eu começo a ficar com
sono, eu fico pensando em outras coisas, eu paro. Aí começa a dar aquelas ilusões lá. Fico
até vendo, às vezes, outras coisas. A matéria da lousa some! Fico olhando pra fora assim, me
imagino de férias já”.
Preso a seu corpo e a seu espaço na sala de aula, Luan parecia libertar-se em suas
“viagens”, no sentido de devaneios, ao mundo dos jogos, da fantasia e da brincadeira, mesmo
estando em sala de aula. Entretanto, a dispersão causada pela relação entre o enfado de copiar
e a imaginação do brincar definia-se como um quadro sintomático do TDAH e também da
inadaptação individual ao sistema educacional ou ao grupo de alunos em sua turma. Em
decorrência desse quadro, Luan era, acima de tudo, alvo de comentários negativos referentes
ao seu comportamento em sala de aula e ao seu desempenho escolar abaixo do esperado por
alguns colegas e professores.
“As pessoas me tratam de um jeito diferente. Os moleques lá da sala ficam me
xingando. Um colega fica falando que eu sou idiota, inútil. Não sei por que falam isso. Acho
que porque eu fico falando muito sozinho. Eu gosto de conversar. Quando eu não tenho com
quem conversar, fico falando comigo mesmo. Sobre um acidente que deu um dia. Antes eu
ficava imaginando coisas ruins. Tipo, eu corria ali, parava um pouco e imaginavam ‘o que
acontece se eu cair?’. Eu falava sobre essas coisas comigo mesmo só, porque se eu começo a
falar com alguém, a pessoa fica irritada e manda eu calar a boca. [...] Eu queria que ele me
tratasse melhor, né? Tipo, antes esse colega me conhecia, quando ele ainda começou a me
conhecer, ele era legal comigo. Mas ele começou a ficar andando com uns moleques na rua.
No recreio eu fico com o pessoal de outras salas e, de vez em quando, de outras séries!
[...]Ainda bem que eu não caí na turma A, senão eu já tinha estragado a sala, que é um
bando de CDF63!”
No primeiro semestre de 2009, quando cursava o quarto ano, aos nove anos de
idade, Luan recebeu um laudo médico (anexado ao seu prontuário escolar e composto também
por outros relatórios de acompanhamento, inclusive o de uma terapeuta ocupacional)

63
“CDF” é um termo popularmente utilizado por estudantes para se referir aos colegas considerados como
alunos com ótimo rendimento escolar.
111

atestando o diagnóstico de “déficit de atenção”. O laudo foi emitido por um neurologista


infantil a partir das reclamações de professoras descritas em um formulário de
encaminhamento, dos resultados de exames e dos questionários (SNAP-IV) respondidos por
aquelas profissionais. As queixas registradas no documento são: não faz tarefas, não consegue
se controlar, é ansioso, não se relaciona bem com os colegas. Afinal, “ele era inteligente, mas
não conseguia se controlar”.
O laudo emitido pelo neurologista desencadeou outras formas de
acompanhamento, além das consultas com esse profissional. As sessões de terapia com uma
terapeuta ocupacional e uma psicóloga do centro de especialidades médicas do município e a
prescrição da Ritalina® foram mencionadas por Luan. Esse conjunto de ações permitiu à
escola escrever na frente do nome do menino na lista dos alunos da sala, em vermelho,
“hiperativo”, embora o diagnóstico enfatizasse o déficit de atenção e a “incapacidade de se
controlar” (a impulsividade).
“Eu não gostava de ir no médico, o doutor S. ficava me entupindo de remédio. O
bom de ir no médico é de dia de semana.... eu lembro um dia que eu fui lá no centro médico
de manhã, eu ainda estudava de manhã, cheguei lá, o médico não estava, não tinha nem
consulta marcada. Minha vó falou assim ‘se você ficar quietinho lá em casa eu te deixo faltar
da escola’. [...] Eu tinha consulta com o psicólogo. Ela trabalhava a hiperatividade. Eu
preferia ela [ao doutor S.]. Ela não fazia nada, só deixava a gente brincando só. Assim é
ótimo! Ela não me ajudou (disse sorrindo). Só me animar mais, por causa que eu ficava
nervoso com a escola. Pensar que eu ia repetir, repetir, repetir. Eu ficava preocupado”.
Alguns professores disseram que, sem o remédio, Luan “subia pelas paredes”.
Nesse sentido, o medicamento foi colocado como algo fundamental para seu desempenho,
sobretudo no que se refere a seu comportamento e sua capacidade de se controlar. Já para sua
avó, a Ritalina® não provocou mudanças comportamentais ou de desempenho escolar durante
o tempo em que foi administrada ao neto, mas, em vista de sua intensa preocupação com o
menino, recorrentemente colocava em dúvida, durante nossa conversa, se seria ou não
necessário retomar o uso do medicamento.
“Já tomei remédio. Ritalina®! Eu ficava com sono. Dentro da sala de aula, caiu
um lápis lá no fundo, eu olhava já. Eu ficava atento e sonolento. Você fica com aquele sono,
aí, cai alguma coisa (e vira o rosto rapidamente para trás). Acho que o ruim desse remédio
que eu tomei é que eu comecei a ouvir vozes. Tipo, eu ouço minha vó me chamando, eu vou lá
e falo ‘quê, vó?’, ‘eu não te chamei’.[...] Quando eu tomava Ritalina®, piorou (eu lhe
perguntei se ele havia notado alguma diferença quando parou de tomar o medicamento).
112

Minha vó falava que eu ficava com tique, sabe? Piscando duro, olhando pra lá, pra cima. Eu
tive que tomar outro remédio pra parar com isso. Eu não gosto de tomar remédio”.
Nem todos os professores sabiam dizer se Luan tomava ou não o medicamento,
revelando um desencontro de informações no espaço escolar. Desencontro verificado na
discordância de opiniões sobre o comportamento do garoto. Uma professora afirmou que ele
não havia piorado, ao contrário dos relatos de colegas de que o comportamento do aluno
estaria cada vez pior, com maior desatenção e baixo rendimento. Outro ainda concluiu que o
maior problema do aluno era sua desatenção, e não a indisciplina, aqui entendida como falta
de controle ou a agitação.
“Me distrair é um problema em quase todas as aulas. Em informática e
educação física eu acho que quase nunca aconteceu”.
Enquanto os professores especulavam sobre o consumo do medicamento, Luan
afirmava que não o consumia mais, informação essa repetida em 2015, em nosso último
encontro. Contudo, a veracidade desse relato foi colocada em questão por um professor
quando me aconselhou a “verificar essa informação com a família. O que ele diz não é
confiável”. Após essa consideração, o professou alegou que, no ano anterior, Luan estava
melhor, porque ainda tomava remédios. Quando o medicamento (ou a ausência dele) deixou
de dar sentido à condição do menino, este se tornou “não confiável” aos olhos do professor, e
seu baixo desempenho assumiu outro referencial, porque Luan estava mais envolvido com os
bagunceiros da sala naquele ano corrente, conforme relatado na conversa.
O desencontro verificava-se também nas diferentes estratégias pedagógicas
adotadas em sala de aula direcionadas a Luan. Um dos professores chamava sua atenção em
voz alta, requisitando sua concentração. Outra professora aproximava-se cuidadosamente de
Luan e, com um gesto discreto, lembrava-o de que estava em sala e que, naquele momento,
ele deveria dedicar a atenção à aula. As aprovações consecutivas pelo conselho de classe
(mesmo acompanhadas por um sentimento prévio de incerteza sobre a aprovação que o
afligia) eram, contudo, a estratégia pedagógica mais impactante tanto para os professores
quanto para esse aluno.
“E minha vó, quando ela ia na reunião... por dois anos seguidos ela falou assim
‘você repetiu’. Aí depois ela falou assim: ‘mentira, você passou’ (disse em tom exaltado, mas
baixo). Esse ano ela pregou uma peça, aí ela falou assim... não, aí eu peguei meu boletim
(silêncio)... ‘você passou’. Lá embaixo estava: ‘aprovado pelo conselho’. Ufa!”
Luan foi reprovado anos depois, por duas vezes consecutivas. Segundo o menino,
na primeira vez em que cursou o oitavo ano, em 2013, não prestava atenção às aulas; na
113

segunda, no ano seguinte, não entendia o que o professor explicava; na terceira, espera
finalmente passar, pois “não vê a hora de ir para o nono ano”. Independentemente do motivo
da reprovação, a distração durante a aula é ainda uma importante questão para Luan. Parece
aproveitar, porém, o novo método de ensino adotado pelo departamento municipal de
educação, focado mais na pesquisa, na busca de informações e de conhecimento, do que na
cópia de conteúdos da lousa, conforme as informações fornecidas pela coordenadora
pedagógica. Ela também relatou, com entusiasmo, que o nome de Luan não constava mais na
lista dos alunos com baixo desempenho escolar.

“Ele tem laudo e presta atenção nas aulas”

Danilo tinha doze anos e cursava o sétimo ano da escola municipal de Moji
Mirim, em 2014. Nossa conversa aconteceu em 19 de maio daquele ano, no pátio da escola,
onde estávamos sentados em um banco junto à parede externa da sala de aula de Danilo.
Sempre muito educado com os colegas e os adultos, cumprimentava-me e auxiliava os
professores a carregar seus materiais.
“Eu não sou tímido. Eu faço um monte de amizade nas festas”.
Caçula de uma família que habita a zona rural, Danilo preferia, anos antes de
nossa conversa, brincar no sítio e com seus animais a estudar. A agitação é, segundo ele, algo
comum, pois toda “a família é elétrica”. Na escola, encontrava oportunidades para escapar da
sala de aula e correr pelo pátio.
“Quando não trocava professor, eu sempre dava a desculpa que precisava sair e
ficava andando pela escola. Não via a hora do sinal pro recreio para ir correr”.
Danilo recebeu o diagnóstico de TDAH há alguns anos. Não foi possível precisar
a data ou os motivos da solicitação de emissão do laudo médico, uma vez que os documentos
médicos encontrados em seu prontuário escolar não contêm tais informações. Elas restringem-
se a comunicar a especialidade do profissional responsável pelo laudo — um psiquiatra
infantil — e a prescrição da Ritalina®.
“Eu sou hiperativo também, por isso que eu tomo remédio. Só assim eu consigo
me concentrar na aula. Eu tomo às 8, ao meio dia e às 4, de 4 em 4 horas. Agora eu consigo
ficar sentado, prestar atenção. Troca professor, eu troco o material sentado”.
Sabe-se que o aluno ainda é acompanhado por especialistas em neurologia e
psiquiatria infantil que atendem pacientes conveniados com planos de saúde. Segundo uma
professora, o próprio Danilo sentia a necessidade de tomar o medicamento, pois ele “não
114

aguentava o modo como se comportava”. A administração do medicamento tornou-o capaz


de participar das aulas. Mas alguns professores afirmaram que, anos antes, o garoto causava
problemas, mesmo tomando o remédio. Em uma nova conversa estabelecida em setembro de
2015, a coordenadora pedagógica informou-me que ele estava sendo constantemente
encaminhado à diretoria por mau comportamento em sala, o que se devia, provavelmente, à
interrupção do uso do medicamento. Danilo, entretanto, disse que continuava a fazer uso da
Ritalina® e que a dose havia sido dobrada (de um para dois comprimidos) a pedido de sua
mãe. Ele supôs que seu “corpo devia estar acostumado ao remédio”, uma vez que a
medicação não surtia mais efeito e o garoto não se concentrava nas aulas. Em casa, ele
continuava a consumir um único comprimido para diminuir a agitação. Salvo os
encaminhamentos à diretoria, não foram observadas estratégias pedagógicas específicas
orientadas a Danilo em sala de aula, visto que se tratava de um “bom aluno”.
Os bons alunos são, apesar dos incidentes, referências de uma turma. Comparando
Danilo e Vitor — seu colega identificado como uma criança hiperativa, que “faz as atividades
quando quer” e conversa demasiadamente —, a professora Sabrina afirmou acreditar que o
segundo utilizava o diagnóstico de TDAH para justificar seu comportamento e não se
preocupar com os limites em sala de aula. A comparação se fazia, então, com referência ao
laudo médico. Respondendo à minha pergunta (se ela acreditava que o diagnóstico de TDAH
era usado como respaldo ao mau comportamento, não sendo o transtorno a real causa do
baixo desempenho de Vitor), a professora afirmou: “Sim. Eu acho que sim. O Danilo tem um
laudo e ele presta atenção”.
Ainda que os professores da turma de Danilo e Vitor compartilhassem a
convicção de que o diagnóstico psiquiátrico pudesse ser usado como base de manipulação da
condição do aluno em sala de aula (como é o caso relatado pela professora Sabrina), eles
construíam suas percepções sobre a ação do medicamento. Danilo prestava atenção às aulas
devido à ação efetiva da Ritalina®. Já no caso de Vitor, que estava sem medicação há algum
tempo, em vista da impossibilidade financeira de sua família comprar o medicamento, a
indisciplina e o baixo rendimento escolar eram entendidos como manifestações decorrentes da
interrupção do tratamento. “Descobrimos que ele está sem medicamento”: esse é o momento
em que se confirma a condição patológica da criança, reforçando a necessidade da Ritalina® e
da intervenção especializada.
A afirmação de Danilo, a seguir, torna clara a relação entre ser um “bom aluno”,
aos olhos dos professores, e a ação efetiva do medicamento: “quando eu não tomava remédio,
os professores ignoravam minhas perguntas. Com o remédio eles não ignoram mais”. Algo
115

similar se passava com Giovani (nove anos, aluno da escola municipal de Campinas, em
2013). Seu problema foi definido pela professora Isadora como sendo comportamental, e a
solução estava no uso do medicamento: “O Giovani é um excelente aluno quando medicado,
pois o que atrapalha é seu comportamento” em atitudes como, por exemplo, o transportar de
cadeiras e gibis pela sala para organizá-los no lado oposto de onde costuma se sentar,
enquanto a professora corrigia a tarefa.
O medicamento também tem um significado para as crianças. Ao contrário de
Luan, que reafirma os efeitos negativos do tratamento psicofarmacológico, Danilo considera-
o adequado.
“Acho que o mais adequado para ajudar os hiperativos na escola é o remédio
mesmo. Ah, em alguns casos, os pais poderiam ter um reiozinho. Já os meus pais nunca
levantaram a mão pra gente, eles só pedem”.
É importante notar que Danilo também vê na intervenção parental uma forma de
adequar, em alguns casos, os comportamentos infantis. Se antes Danilo queria apenas brincar
e correr (afinal, o espaço rural era muito mais atrativo do que o encerramento entre os quatro
muros da escola e as quatro paredes da sala de aula), naquele ano ele havia decidido mudar:
passou a participar das aulas, a estudar e a se dedicar. Não por causa da Ritalina® ou do laudo
médico, e sim motivado por conversas com seus pais.
“Meu pai falou que ele conseguiu tudo o que tem por causa do estudo. Ele tem
três sítios. Ele falou que eu só conseguiria o que eu quero se eu melhorasse. Aí eu comecei a
estudar e agora que eu tomei gosto, melhorei. Quero ser cardiologista. Ou veterinário”.
Sentava-se na primeira carteira da primeira fileira, ao lado da porta, como uma
estratégia para estar atento à aula e participar. Encostado na parede, Danilo posicionava o
livro em seu colo e ajeitava os óculos. Quando era preciso copiar ou fazer um exercício
escrito, escrevia concentradamente em seu caderno, em cima da carteira, a ponto de parar,
demonstrar uma expressão de dor e mexer o braço que usava na tarefa.
Entretanto, em suas lutas entre a invisibilidade e a visibilidade, Danilo resistia.
Apesar de ter adentrado eficientemente no mundo da fixidez escolar, ele ainda fazia suas
pequenas escapadas pela escola (as “visitas” à diretoria). Embora a eficácia do medicamento,
ele ainda se movia: “mas não consigo parar de mexer as mãos e as pernas. Olha!”
116

“Ele não tem nada, é a mãe que procura um diagnóstico”

Confrontando os casos em que a criança não consegue se controlar (Luan) ou em


que o medicamento assume um papel fundamental na construção das percepções e ações de
crianças, pais e professores (Danilo e Vitor), os profissionais de educação participantes da
pesquisa de campo questionavam algumas solicitações de intervenção especializada,
sobretudo quando as demandas advinham inesperadamente da família.
Julio (sete anos) vivia com a mãe, uma estudante universitária concluindo sua
formação. O pai do menino morava em outra região do país, na cidade de origem da família.
A permanência provisória do filho em Campinas era condicionada pelos estudos
universitários de sua mãe. Julio então cursava o segundo ano do ensino fundamental, em
2014, na escola estadual de Campinas e no programa de educação não formal. Ele não tinha
qualquer diagnóstico psiquiátrico ligado à aprendizagem ou a comportamentos patológicos,
tampouco qualquer queixa escolar. Entretanto, as professoras desses estabelecimentos —
principalmente do programa —, responsáveis pelas turmas em que Julio se inseria, afirmaram
terem sido informadas por sua mãe do fato de que ela buscava um especialista para cuidar de
seu filho, um possível caso de TDAH.
Os laudos médicos emitidos a respeito do caso de Julio eram sempre negativos
para a condição, o que reforçava o discurso de culpabilização materna. Segundo uma
professora entrevistada, o menino tinha dificuldades de lidar com conflitos e sofrimentos.
Porém, para ela, a mãe insistia na hipótese do TDAH e na busca de um diagnóstico como fuga
de suas responsabilidades. No discurso da docente, os pais de Julio “fechavam os olhos” à
carência afetiva do filho e tentavam compensar sua ausência dando-lhe presentes caros. O
aluno tinha dificuldades escolares, uma vez que ainda não sabia ler (apesar do fato de que eu
o ouvi ler, com lentidão, “pa-li-to-de-chu-rras-co”). Contudo, não se tratava de um caso
psiquiátrico, na perspectiva pedagógica da professora.
O caso de Lauro (oito anos) era evocado pelas professoras dos mesmos
estabelecimentos de ensino como uma situação similar à de Julio. Embora apresentassem
diferentes conflitos familiares, vistos como a origem do problema emocional e escolar dos
meninos, uma mesma temática mobilizava os discursos docentes: a culpabilização materna.
De acordo com algumas professoras, a mãe de Lauro vinha buscando, incessantemente, um
diagnóstico para TDAH que justificasse o comportamento agitado e desafiador do menino.
Apesar das contestações feitas pelos professores e professoras à busca dos pais
por um laudo médico endereçado a seus filhos, a situação do aluno torna-se igualmente um
117

caso elaborado no interior da escola, já que seu problema (de fundo emocional, na visão dos
educadores) teria origem relacional e familiar. Mas vale observar que a definição oficial do
TDAH assume as condições familiares como um fator — ainda que considerado secundário
— desencadeante do TDAH. Gonon, Guilé e Cohen (2010) afirmam que são seis as principais
hipóteses neurobiológicas acerca da etiologia do TDAH. A hipótese do desenvolvimento
funda-se na tese de que inúmeros fatores ambientais podem perturbar o desenvolvimento
cerebral da criança e gerar transtornos mentais como o TDAH, incluindo a hereditariedade
(esta é a hipótese da herança biológica, que não coincide necessariamente com a hipótese
genética) e um conjunto de fatores familiares-culturais (constituintes de uma terceira
hipótese), tais como o baixo nível econômico dos pais, o nascimento prematuro, o alcoolismo
e tabagismo durante a gravidez, a pouca idade da mãe, a condição de solteira da mãe que
educa um menino, o maltrato infantil e o excesso de televisão, entre um e três anos de idade.
Na hipótese dopaminérgica são articulados argumentos fundados na farmacologia,
na genética, nas tecnologias de imagem cerebral e em modelos animais. Ela é movida pelo
princípio de que a eficiência do tratamento com psicoestimulantes sugere a existência de um
déficit de dopamina — um neurotransmissor encontrado em regiões cerebrais fundamentais
para o controle da cognição e da emoção — na origem do TDAH. Pressuposto semelhante
conduz a hipótese noradrenérgica, pautada na ideia de que a eficácia dos psicoestimulantes
indica que a causa do transtorno residiria em déficits na captação de noradrenalina, também
um neurotransmissor modulador e regulador encontrado em diferentes regiões do cérebro
humano. Ambas as hipóteses relacionam-se, em certa medida, com a hipótese genética,
segundo a qual o TDAH tem origem em mudanças gênicas, que podem ser identificadas por
estudos genômicos e pela busca de biomarcadores de risco.
Desse conjunto de hipóteses e, sobretudo, dos casos de TDAH descritos nessa
seção derivam questões a ser aprofundadas, a começar da elaboração do quadro clínico. Além
da nosografia sobre a qual o médico se apoia e cria a categoria patológica (a doença enquanto
disease), a estruturação da condição de TDAH requer a identificação de um problema e a
elaboração de uma causa possível no âmbito das relações cotidianas escolares ou familiares.
Somente então se solicitará o encaminhamento da criança a um especialista e se formarão
redes de assistência.
118

3.2. Procedimentos de encaminhamento e redes de assistência

Os encaminhamentos de supostos casos de TDAH a especialistas originam-se,


geralmente, nas escolas públicas e privadas, como aquelas visitadas em pesquisa de campo.
Ainda que cada estabelecimento siga procedimentos específicos, observaram-se algumas
semelhanças. O primeiro passo é a identificação de comportamentos e rendimentos escolares
desviantes de um padrão esperado64. A correlação entre o desvio de uma expectativa de
comportamento e uma possível patologia faz-se por meio de representações sociais e
linguagens técnico-científicas disponíveis aos professores, conforme o que já foi apresentado
nesta tese. Elabora-se, concomitantemente, uma possível causa do problema, variando entre a
falta de limites impostos pelos pais aos filhos, a carência cultural e de estímulos do meio
familiar, o desinteresse individual pelos conteúdos escolares e a manifestação de disfunções
psicológicas ou cognitivas. Não é por acaso que as histórias de vida das crianças hiperativas e
desatentas eram sempre mencionadas pelos profissionais de educação em entrevistas e
conversas não formais.
O passo seguinte é a produção, pelos professores responsáveis pelo aluno em
observação, de relatórios onde se descrevem e registram as queixas a ser analisadas pelo
profissional de saúde, cuja especialidade depende do serviço procurado pelas famílias. Nas
situações em que os pais solicitavam o atendimento especializado, os professores também
eram chamados a responder a questionários diagnósticos, como o SNAP-IV. Concretizava-se,
assim, o processo de encaminhamento do possível caso a um especialista. Por conseguinte, as
etapas subsequentes dizem respeito à elaboração do diagnóstico — que pode ser positivo ou
negativo para o TDAH —, ao tratamento e ao acompanhamento do caso.
Esse conjunto de condutas parece repetir-se em outros estabelecimentos de ensino.
Na França, os pesquisadores do Centre de recherche médecine, santé, santé mentale, société
(CERMES3), envolvidos com uma investigação multidisciplinar voltada à compreensão das
especificidades do TDAH infantil no país65, observaram que as demandas por consultas com
profissionais de saúde em diferentes regiões francesas, sobretudo na cidade de Paris, provêm
sobremaneira de professores e são endereçadas às famílias da criança identificada como
64
São exemplos de desvio de um padrão de comportamento e rendimento escolar esperado e relevante ao
processo pedagógico de aprendizagem, tanto em escolas públicas quanto em escolas privadas: a não realização
de tarefas ou a sua execução incompleta; o desprovimento da capacidade de autocontrolar e de se relacionar com
colegas; e a atenção reduzida.
65
Trata-se do projeto de pesquisa Les sens de l’agitation chez l’enfant : quêtes diagnostiques, investissements
familiaux et regards professionnels sur l’agitation et l’inattention. Participei das reuniões e discussões do grupo
responsável por esse projeto entre outubro de 2014 e fevereiro de 2015, nas dependências da Université Paris
Descartes, localizada em Paris, França.
119

agitada66, que atuam como intermediárias da solicitação escolar e dos aconselhamentos


médico-psicológicos. Essa observação encontra-se também no estudo de Faron (2014),
realizado em duas escolas situadas em regiões parisienses distintas econômica e
culturalmente.
Constata-se empiricamente a importância dada ao professor na identificação de
possíveis casos de TDAH. Fato esse que se reforça por ações como as da Associação
Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), que disponibiliza em sua página eletrônica uma
cartilha contendo definições e orientações sobre o TDAH direcionadas ao público em geral.
Nela, os professores são tidos como fundamentais à identificação e encaminhamento precoce
de suspeitas. Lê-se no documento que

Os professores têm uma condição privilegiada de observação do comportamento das


crianças sob os seus cuidados, pois as observam em uma grande variedade de
situações, tais como em atividades individuais dirigidas, em atividades de trabalho
grupal, em atividades de lazer, durante a interação com outros adultos e com
crianças de diversas idades. O fato dos professores terem experiência com um
grande número de crianças possibilita a distinção entre os comportamentos
esperados para a faixa etária e os comportamentos atípicos. Como os professores
passam bastante tempo com as crianças, às vezes até mais que os pais
(principalmente na pré-escola e nas séries iniciais do ensino fundamental), têm o
potencial de perceber o problema antes deles, ao menos que existe algo errado com a
criança. Essa possibilidade de identificar precocemente os sintomas e encaminhar a
criança o mais rápido possível para a avaliação médica transforma não apenas os
professores, mas toda a equipe técnica da escola em peças fundamentais no processo
diagnóstico e de tratamento do TDAH. (ABDA, s/d, p. 18-1967).
A equipe técnica mencionada no documento constitui-se dos profissionais de
educação (educadores, coordenadores pedagógicos, diretores e outros funcionários
administrativos e de serviços gerais) e de profissionais de saúde. A escola municipal de Moji
Mirim, por exemplo, dispunha de um psicólogo que a visitava quinzenalmente para
acompanhar e orientar os casos de seus alunos. Mas quando os sintomas de um possível
transtorno mental ou de uma dificuldade ligada a questões psicológicas eram identificados
pelos professores, o processo de encaminhamento de alunos seguia um procedimento padrão,
semelhante àquele descrito anteriormente.
O processo revela particularidades. Os pais retiram na escola o formulário de
encaminhamento. A demanda de assistência especializada é então entregue a um serviço de

66
De acordo com os dados coletados pela equipe francesa, a agitação é um problema significativamente evocado
nos discursos de pais, professores e profissionais de saúde. Trata-se, entretanto, de um problema menor em
termos das estatísticas de demandas formais por serviços de saúde. O termo “agitação” retrata o distanciamento
de termos técnicos como “hiperatividade” e “TDAH”, relacionados à psiquiatria biomédica, bem como a
preferência ainda majoritária no país por concepções relacionais — psicológicas e psicanalíticas — da
constituição da psicopatologia infantil.
67
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/images/stories/site/pdf/tdah_uma_conversa_com_educadores.pdf>.
Acesso em: 20 dez. 2015.
120

saúde do território, isto é, uma unidade básica ou um centro de especialidades68 onde


agendam uma consulta psicológica, psiquiátrica ou neurológica. A equipe de saúde avalia o
caso e, de acordo com a gravidade da situação, o paciente é colocado na fila de espera por
atendimento. Os pais retornam à escola para informar os detalhes sobre o contato com a
unidade de saúde69.
Esse procedimento mostra que o contato entre profissionais de educação e de
saúde é, pois, indireto e fragmentado, mesmo no caso do psicólogo presente quinzenalmente
na escola municipal mojimiriana. No caso dos serviços públicos de saúde, o contato entre
aqueles profissionais era ainda mais incomum devido ao intermédio da família. Ademais, a
descontinuidade da rede de assistência caracterizava-se pela mudança constante do
especialista responsável pelo atendimento de uma mesma criança. A inexistência de uma
relação mais próxima entre serviços de saúde e de educação, seja municipal, seja
regionalmente, dificulta o acompanhamento dos alunos por parte da escola. Daí a queixa por
parte dos professores acerca do sentimento de abandono pelo Estado e de carência de apoio
externo70. Vale ressaltar que a inexistência de relações contínuas entre profissionais de
educação e saúde não se configura como um fenômeno exclusivo dos serviços públicos. A
carência de informações sobre os aconselhamentos médico-psicológicos e os
encaminhamentos dos casos de TDAH realizava-se igualmente em situações em que os pais
buscavam os serviços especializados de clínicas privadas e vinculadas a planos de saúde.
A escola privada de Moji Mirim contava com uma psicopedagoga como parte da
equipe profissional escolar. Foi ela quem me detalhou os procedimentos de encaminhamento
e acompanhamento de uma criança com suspeita de TDAH. A especialista explica que:

A professora da sala, percebendo alterações de comportamento e da aprendizagem,


informa à coordenadora, que solicita o preenchimento de duas fichas específicas [o
SNAP-IV e um formulário de encaminhamento para avaliação neurológica,
psicológica, fonoaudiológica, psicopedagógica e/ou foniátrica], onde são observadas
as características relacionadas ao TDAH e quanto à: atenção, motivação,
comportamento e desempenho. Essas fichas são entregues à psicopedagoga que,
diante das informações, direciona as possíveis ações. (Psicopedagoga da rede
privada de ensino. Informação fornecida via correio eletrônico em 16 nov. 2015).

68
Trata-se de serviços básicos (primários e secundários) de saúde, integrados ao Sistema Único de Saúde.
Existem ainda centros altamente especializados, como o ambulatório universitário de psiquiatria infantil,
recorrentemente mencionado nesta tese. Ele não faz parte da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) de
Campinas, ao contrário dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), por exemplo.
69
Essas informações foram obtidas em conversas não formais com professores e coordenadoras pedagógicas das
escolas visitadas, em 2014 e 2015.
70
“Mas ainda que no nosso caso, aqui na nossa escola — porque eu já dei aula em outros lugares, em periferias
aí barra pesada —– que nós temos algum suporte: temos a psicóloga que, rindo ou chorando, de quinze em
quinze dias ela vem; temos a sala de recursos que ‘malemá’ funciona, nós temos ainda; a assistente social agora
esse ano parece que vai ficar toda segunda-feira aqui, pelo menos um período”. Beatriz, professora da rede
municipal. Entrevista concedida em 27 mar. 2013.
121

As ações mencionadas pela profissional abrangem um conjunto de relações. A


primeira diz respeito à abordagem do aluno encaminhado a fim de atender suas necessidades e
coletar informações mais detalhadas sobre suas dificuldades. Em seguida, o professor é
orientado a assumir uma postura específica em sala de aula, visando à observação e
intervenção sobre o comprometimento dos modos de estudar e da responsabilidade e sobre a
valorização da participação da criança em atividades oferecidas pelo estabelecimento de
ensino, voltadas ao conteúdo curricular. O professor também é aconselhado pelo
psicopedagogo quanto às possíveis estratégias e dinâmicas que podem direcionar a
participação do aluno e valorizar seus esforços e conquistas.
Os pais são igualmente evocados a participar dessa rede de relações.
Principalmente no que se referem à análise da dinâmica familiar (gestão de conflitos,
aplicação de limites, atividades sociais e lúdicas), dos hábitos diários (rotina alimentar e de
sono), dos quadros clínicos concomitantes (acuidade visual, adenóide, diabetes etc.) e do
apoio pedagógico oferecido à criança em casa. Finalmente, elabora-se, quando necessário,
uma solicitação de avaliação especializada a um neurologista, neuropediatra ou outro
especialista, conforme o caso, de modo a confirmar ou refutar a hipótese do TDAH.
Ainda de acordo com as informações fornecidas pela psicopedagoga, nos casos
em que a escola recebe o laudo médico atestando a existência do TDAH, a equipe escolar
segue as orientações específicas do especialista. Entre as ações praticadas estão a ampliação
do tempo de execução de provas e a leitura do material para o aluno. Além disso,
disponibiliza-se o suporte pedagógico por meio de plantões de dúvidas, provas adaptadas,
planejamento psicopedagógico específico (voltados para dificuldades pedagógicas e
problemas psicossociais) e orientação familiar quanto à dinâmica e às formas de estimular
positivamente o estudo em casa.
Quando se trata de famílias social e economicamente favorecidas, o recurso aos
profissionais liberais de saúde e de educação (tais como neurologistas, neuropediatras,
psicólogos, fonoaudiólogos, psicopedagogos, professores particulares etc.) é mais comum.
Retomo parte do relato da professora Jéssica, apresentado no capítulo precedente: “E vai
pagando, enquanto dá para pagar, paga médico, fono, psico... Eu tenho um aluno que tinha
até tutora, tinha psicopedagogo, tinha a fono, tinha tudo”.
As redes de cuidado criadas nessas condições agregam diferentes especialistas,
que fornecem ferramentas para que as crianças, os pais e os professores possam gerir seus
desempenhos. Essas redes são relativamente estáveis, já que a trajetória de assistência e de
acompanhamento de algumas dessas crianças, que entram em escolas privadas já nos
122

primeiros anos de vida, é precoce e contínua até o momento em que o aluno muda de
estabelecimento escolar ou termina seus estudos. Estende-se até mesmo depois, ao longo de
sua adolescência e vida adulta.
Os procedimentos de encaminhamento e de constituição de redes de assistência
envolvem também relações em que professores devem persuadir os pais da necessidade do
acompanhamento especializado ou em que, ao contrário, veem-se no papel de questionar a
real necessidade de um encaminhamento. Reportando-se a casos de rejeição do processo por
parte da família, alguns professores classificaram a atitude parental como incompreensão ou
recusa do problema da criança. Os pais deveriam, assim, ser convencidos acerca da
necessidade da demanda. No sentido oposto, o diálogo entre educador e familiares
estabelecia-se pautado na contestação da viabilidade de um laudo médico ou do uso de
medicamentos.
Por isso que o nosso cuidado é esse: conversar com a família primeiramente, dizer o
comportamento da criança, a gente fala como que a criança está na escola. Esse é o
nosso cuidado para a família não achar que a gente está diagnosticando. Nós não
somos médicos, isso eu já aprendi com os anos, que nós não somos médicos para
diagnosticar. (Eva, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr.
2013).

Mas não sei realmente se é TDAH. Ela toma medicação, mas a impressão que tenho
é que ela antes e depois da medicação é exatamente a mesma menina. Na verdade,
tenho até dó dela tomar um remédio tão forte. Conversei, inclusive, com a mãe que
me disse que notou grande melhora na menina. Eu questionei e disse que para mim
não há motivos para ela tomar o remédio. Mas que, é claro, quem teria que dar esse
diagnóstico seria o psiquiatra, não eu. (Isadora, professora da rede municipal.
Entrevista concedida em 24 out. 2013).
Apesar da posição ocupada pelo professor, no que tange à iniciativa de reportar
um comportamento ou desempenho problemático e de criticar certa situação vivenciada pelo
aluno, esse profissional submete-se à verdade médica. As frases “isso eu já aprendi com os
anos, que nós não somos médicos para diagnosticar” e “é claro, quem teria que dar esse
diagnóstico seria o psiquiatra, não eu” relativizam a opinião e a experiência do professor
diante da legitimidade do médico, aquele que detém um saber científico socialmente
reconhecido como habilitado a explicar e solucionar (isto é, dizer a verdade sobre) os
problemas infantis relacionados aos transtornos mentais caracterizados por dificuldades
comportamentais e de aprendizagem, conforme questão tratada no capítulo anterior.
Finalmente, os procedimentos formalizam-se em números que, por sua vez, não
coincidem obrigatoriamente com as demandas e queixas feitas discursivamente pelos
professores. Para esta pesquisa foi solicitada, verbalmente ou via correio eletrônico, às
equipes diretivas dos estabelecimentos de ensino visitados (com exceção da escola municipal
de Campinas) o levantamento do número de casos de TDAH diagnosticados. A escola
123

municipal de Moji Mirim informou a presença de três casos confirmados pela emissão de
laudos médicos, enquanto na escola privada da mesma cidade — que recebe 803 alunos, entre
a educação infantil (187), o ensino fundamental I (274), o ensino fundamental II (207) e o
ensino médio (135) — havia o registro de apenas um aluno sob tratamento à base de
Ritalina®, dentre 25 casos encaminhados, em 2015, para avaliação em áreas específicas —
neurológica (2 alunos), psicológica (12), fonoaudiológica (8), psicopedagógica (2) e
oftalmológica (1). Os demais estabelecimentos de ensino afirmaram não ter casos ou
desconhecer sua existência.
A partir dos dados fornecidos pelas equipes diretivas dos estabelecimentos de
ensino, em trabalho de campo, surpreende o fato de que o número de alunos identificados
como portadores de TDAH, afligidos pela condição, tendo inclusive um laudo médico para
atestá-la, é baixo se comparado à quantidade de crianças indicadas pelos professores. Na
escola municipal mojimiriana, por exemplo, foram apontadas pelo menos seis crianças, em
2013 e 2014 (dado que nenhuma delas mudou de escola ou concluiu os estudos no ensino
fundamental até 2015), como portadoras de TDAH. Professores da escola estadual de
Campinas especificaram ocorrências em que pais buscavam um acompanhamento
especializado para uma suspeita de TDAH, em que colegas de trabalho foram requisitados a
elaborar relatórios médicos para a condição e, finalmente, em que educadores indecisos
cogitavam a possibilidade de pedir o encaminhamento de um aluno com essa suspeita para um
especialista. Contudo, não havia casos de alunos portando o diagnóstico de TDAH
formalmente registrados no estabelecimento de ensino.
É possível pensar que a incompatibilidade entre os relatos e os números
fornecidos pelas equipes diretivas advenha do fato de que as escolas visitadas não registram
sistematicamente as ocorrências de casos de TDAH. A contabilidade dos alunos portadores do
transtorno, quando solicitada por mim, foi fundamentada em informações orais, ou a partir da
identificação das crianças nos mapas de sala. Mas também é preciso considerar que o
encaminhamento de um aluno a um especialista não é um acontecimento que adota um único
padrão, sendo, entretanto, um processo formado por diferentes jogos de forças. Isto é, o
fenômeno do TDAH é delimitado, nos contextos observados em campo, mais pelas inter-
relações individuais e pelas relações sociais do que por números e estatísticas, embora estes
elementos componham o quadro, do mesmo modo.
Os números e as estatísticas são sistematizados por órgãos superiores, como as
secretarias de educação e de saúde, de quem se reclamam dados para a elaboração de políticas
públicas. A já mencionada Prodesp apresenta aí um papel importante, pois ela efetiva a
124

sistematização e informatização dos dados referentes a alunos portadores de laudos médicos e


permite que eles sejam beneficiados por programas de educação especial e inclusão, ou seja,
por estratégias especiais de ensino formal.
No âmbito do acesso aos órgãos públicos superiores, foi possível contatar e obter
informações da Diretoria de Ensino Campinas Oeste71, apesar de nenhum estabelecimento
estadual de ensino tutelado por essa diretoria ter sido visitado. Por meio de contato telefônico,
realizado em dezembro de 2013, informou-se que, em 2012, havia 95 escolas sob sua tutela e
40 delas notificaram ter alunos com laudo médico para o diagnóstico de TDAH. Conforme o
relato da diretoria, as escolas forneceram os nomes de 76 alunos com esse diagnóstico. Duas
escolas informaram ter sete alunos — o maior número informado por escola —, enquanto a
maioria notificou a existência de um número pequeno, de um aluno, no mínimo. A partir da
limitação dos dados, é possível apenas identificar que 42,10% das escolas da referida diretoria
de ensino tinham alunos com laudo médico para o diagnóstico e o tratamento do TDAH.
Segundo os dados do Ministério da Saúde divulgados em 2015, 301.448
atendimentos públicos ambulatoriais de casos de transtornos hipercinéticos72 e de transtornos
de conduta (uma condição associada à primeira) em crianças de cinco a treze anos de idade
foram registrados em 2014. Até setembro de 2015, já se registravam 210.929 atendimentos
para as mesmas condições.
Ainda assim, os dados quantitativos sobre o TDAH são dispersos e dificilmente
encontrados. Entende-se que isso deriva do fato de que, no âmbito da educação formal, tal
transtorno ainda não configura como uma condição oficialmente englobada por políticas de
educação especial e de inclusão, como o investimento em salas de recursos multifuncionais,
destinadas a alunos com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas
habilidades/superdotação. E mesmo no âmbito da saúde há poucas informações sistematizadas
sobre os casos de TDAH no Brasil, inclusive no que toca aos estudos científicos sobre o tema,
dispersos pelos centros de pesquisa do país.
Já no que diz respeito às relações micro e macrossociais, o fenômeno do TDAH
pode ser melhor delimitado. A circulação de linguagens psicológicas e neurocientíficas nos

71
Estabeleci contato com a Secretaria de Saúde de Moji Mirim e de Campinas, esta última afirmou não ter
acesso a esse tipo de informação e que, possivelmente, ela possa ser encontrada nas unidades básicas de saúde
que recebem as demandas de atendimento, a Diretoria de Ensino Leste de Campinas e a Diretoria de Ensino de
Moji Mirim, que não me respondeu, o Ministério da Educação e o IBGE, que alegou não ter informações sobre o
TDAH.
72
Transtorno hipercinético (F90) é a condição correlata do TDAH na décima edição da Classificação
internacional de doenças e problemas relacionados à saúde (CID-10). Seus subtipos são: F90.0. Distúrbios da
atividade e da atenção; F90.1. Transtorno hipercinético da conduta; F90.8. Outros transtornos hipercinéticos; e
F90.9. Transtorno hipercinético não especificado.
125

meios escolares é um ponto, explorado no capítulo precedente. Para se falar ou identificar


comportamentos hiperativos, não é preciso conhecer o Manual diagnóstico e estatístico dos
transtornos mentais - DSM ou a Classificação internacional de doenças - CID (pouquíssimos
professores com quem conversei em campo sabiam o que era o DSM), pois os termos que
circulam nos espaços públicos ganham certa autonomia de seu surgimento e de sua
materialidade. Quer dizer, a “hiperatividade”, enquanto termo ou conceito, descola-se do
DSM para se materializar como comportamento, como sintoma visível.
Do mesmo modo, no momento em que a hiperatividade conecta-se ao
comportamento individual (à capacidade cognitiva de autocontrole e de desempenho), a
criança torna-se apenas um corpo e a experiência da infância, bem como a imagem “ideal” da
criança que fundamenta um projeto de sociedade, se apaga. Nesse sentido — por mais
contraditório que pareça —, dizer que uma criança, identificada por alguns professores ou
pelos pais como hiperativa, “não tem nada” opera, sobre outras formas, no apagamento dessa
experiência e dessa imagem. Assim, mesmo em um espaço mais isento de limitações como o
programa de educação não formal, onde o olhar se volta à criança, o tema do sujeito integral é
capturado, em alguns casos, por discursos especializados travestidos de visões diferenciadas e
críticas. Centrada na visão psicológica dos afetos, a questão familiar aponta uma acusação de
que a mãe busca um diagnóstico psiquiátrico para justificar o comportamento do filho e
desresponsabilizar-se pelas suas próprias ações.
Mas é preciso observar que, nessa perspectiva, a família emerge como ator
principal de um teatro social e a criança, como seu figurante. Dito de outro modo, a criança
aparece nesses discursos apenas como um dos membros familiares, quase sem infância, em
termos de experiências que ultrapassam sua identidade escolar, suas vulnerabilidades sociais
ou cognitivas (e seus direitos), como mostram as figuras que orientam as formas de inserção
social infantil. Ela ainda aparece nos discursos oficiais sobre o TDAH em uma posição de
objeto de análise e de intervenção, o que parece bastar à elaboração de demandas de atenção
especializada em saúde ou em educação, de estratégias de intervenção e de políticas especiais
de inclusão em escolas de educação formal.

3.3. O uso de medicamentos e as terapias

A segunda questão emergente da descrição dos casos de TDAH é o uso de


medicamentos e a indicação de terapias como formas de tratamento do transtorno. O TDAH é
uma condição presente em toda a vida do indivíduo, já que não tem cura. Seu tratamento
126

pauta-se, assim, no controle dos sintomas hiperatividade, desatenção e impulsividade, o que


fornece ao laudo médico (que afirma a existência do TDAH por meio de um processo
diagnóstico específico) e às terapias, sobretudo a medicamentosa, um estatuto especial.
O diagnóstico representa a possibilidade de se explicar e compreender o
comportamento infantil definido como problemático, bem como desculpabilizar os indivíduos
envolvidos. A imagem da sala de aula dividida em semicírculos, em uma configuração onde
os alunos com prováveis disfunções cognitivas encontravam-se próximos à professora, porém
segregados dos demais colegas, é ilustrativa. Conquanto não houvesse sido emitido um laudo
médico que atestasse a disfunção, a hipótese de sua existência, por si só, permitia distinguir
alunos “normais”, “diferentes” e “sem jeito”. Tal distinção autorizava a professora a elaborar
estratégias pedagógicas específicas para cada grupo e, assim, amenizar seu sentimento de
culpa por não ser capaz de dar atenção aos alunos mais necessitados. Cabe notar que o
diagnóstico deixa de ser meramente um procedimento clínico para se transformar em
fundamento de condutas cotidianas, seja como parte de uma conversa comum, como fator de
gestão dos comportamentos ou ainda como condição de inclusão na cidadania (DUNKER,
2015).
O medicamento, nesse sentido, simboliza a esperança de uma solução ao
problema cognitivo-comportamental. A diversidade de hipóteses que orientam os estudos
considerados oficiais sobre o TDAH privilegia diferentes técnicas terapêuticas e de tratamento
vinculadas ao transtorno. Porém, no Brasil, as mais comuns são o uso de medicamentos
psicoestimulantes, a terapia cognitivo-comportamental e a orientação psicopedagógica.
Também se encontram aqui terapias alternativas e experimentais que envolvem vertentes da
psicanálise, prática de esportes, dietas alimentares, mindfulness, entre outras73.
Essas diferentes hipóteses articulam-se umas com as outras em diferentes graus.
Entretanto, é possível observar em cada uma delas traços das linguagens e discursos adotados
por professores para falar sobre o TDAH e para identificar possíveis casos de alunos
acometidos pelo transtorno. Ainda que esses profissionais não versem sobre
neurotransmissores ou biomarcadores de risco — termos técnicos ainda pouco dominados, ao
contrário de “genética” ou “fatores ambientais e de desenvolvimento” —, o privilégio do uso
de medicamentos implica a ação das práticas (neuro)científicas na produção do metilfenidato

73
Algumas informações sobre essas terapias ditas alternativas foram encontradas em páginas virtuais, tais como:
<http://www.tdah.org.br/sobre-tdah/tratamento.html>; <http://www.dda-deficitdeatencao.com.br/instituto/index.html;
http://www.foxnews.com/health/2014/09/09/researchers-hope-physical-activity-can-stem-growing-use-adhd-
medications/>;<http://well.blogs.nytimes.com/2014/05/12/exercising-the-mind-to-treat-attention-
deficits/?_php=true&_type=blogs&_php=true&_type=blogs&emc=edit_tnt_20140512&nlid=64595674&tntemail0=y
&_r=1&>. Acesso em: 13 jul. 2015.
127

como uma solução simbólica e, ao mesmo tempo, eficiente. O professor Jorge anuncia o
poder do remédio: “E quando o pai não vem com um remedinho, nós, já quase doutores,
[dizemos] ‘olha, não está na hora de tomar um remedinho, procurar um médico?’ E isso nos
parece que é a solução”.
O medicamento compõe-se de três elementos essenciais, de acordo com Fernando
Lefèvre (1991). Trata-se de um agente quimioterápico manejado pela biologia, farmacologia e
medicina. É um produto materializado em comprimidos ou xaropes que cura, controla
sintomas e previne o desenvolvimento de condições patológicas. Circulando pela sociedade,
torna-se, enfim, uma mercadoria e um símbolo. O consumo do medicamento excede a
intenção inicial da cura e realiza uma promessa de concretização de um estado de saúde e o
desejo individual de ser saudável. Nesse sentido, “saúde” e “saudável” são entendidos como
uma necessidade. Em última análise, a eficiência do medicamento substancializa o êxito
simbólico da ciência, na visão de Lefèvre. No capítulo anterior desta tese, discuti a construção
do desejo de intervenção especializada como uma necessidade, o que vai, de algum modo, ao
encontro da proposta do autor. O principal ponto comum dessas perspectivas é exatamente a
questão da necessidade, seja da intervenção, seja da saúde como tal. E uma necessidade que
se constitui de interditos contemporâneos: o sofrimento, a dor e o erro.
Danilo era visto como um bom aluno graças ao laudo e ao medicamento. Na
verdade, essa imagem do bom-aluno-bom-medicamento foi enfraquecida duas vezes.
Primeiro, quando alguns professores afirmaram que o menino causava problemas na escola
mesmo tomando o remédio. Segundo, quando Danilo esclareceu que a Ritalina® é apenas um
instrumento por meio do qual ele pode melhorar seu rendimento, sendo que não foi o início de
seu uso que motivou sua decisão de se esforçar nas atividades escolares. Ao mesmo tempo, o
medicamento liga as duas imagens de si: o aluno que se dedica aos estudos para conseguir o
que quer — o que é possível por meio do uso da Ritalina® — e o hiperativo (“Eu sou
hiperativo também, por isso que eu tomo remédio”) — evocado quando a conversa chegou
aos termos “dificuldades de aprendizagem”.
Se o medicamento é um instrumento (desejado), o desempenho é a engrenagem
dessa teia de imagens positivas e negativas, de relações e de acontecimentos. Foi este último
que motivou a mudança de comportamento de Danilo — e não a Ritalina® —, uma mudança
pautada na busca de referências que dessem sentido à função da escola e aos benefícios do
bom desempenho escolar. Também foi o desempenho que levou os professores a reconhecer o
menino como um bom aluno. Entretanto, o instrumento é mais visível do que a engrenagem,
por isso o medicamento (e o laudo) aparece sempre como um divisor de águas: “Quando eu
128

não tomava remédio, os professores ignoravam minhas perguntas. Com o remédio eles não
ignoram mais”. O que Danilo denuncia a partir desse enunciado é a exclusão dos “sem jeito”.
Ele delata, do mesmo modo, a falta de atenção dos professores (e dos pais) ao propor soluções
alternativas ao medicamento: “Em alguns casos, os pais poderiam ter um reiozinho. [E] Os
professores poderiam dar mais atenção”.
Em outras palavras, o que resguarda o aluno da invisibilidade completa (mesmo
no caso de Luan) são a visibilidade e a eficiência do laudo e do medicamento. Um objeto
concorre com pessoas na solução e na explicação de um problema, sendo até mesmo capaz de
intervir na dimensão das funções e dos papéis, das responsabilidades, das decisões e dos
desejos individuais e coletivos, personificar-se e “coisificar” os sujeitos (SEDRONAR, 2008).
Danilo só se tornou visível (um bom aluno, ou mesmo um aluno hiperativo ou desatento)
quando passou a fazer uso da Ritalina®, embora ela seja apenas um instrumento.
A negatividade do “sem jeito” (invisível enquanto sujeito dentro de um grupo e,
ao mesmo tempo, visível como exemplo a não ser seguido) e a positividade do “bom aluno”
(afligido, porém, por uma patologia) articulam-se, então, em um jogo de expectativas sociais e
objetos em que os últimos predominam por sua potencialidade interventiva. Trata-se de um
jogo que visa, em última instância, ao restabelecimento da funcionalidade dos indivíduos
(professores e alunos) em uma engrenagem escolar e social. O remédio é adequado e deve ter
sua dose aumentada quando sua eficiência é comprometida, conforme o relato de Danilo,
porque ele auxilia o indivíduo a chegar a um ponto ideal: o bem-estar e o sucesso escolar.
Mesmo para Luan, que denuncia o médico que o “entupia de remédio”, o bem-estar pôde ser
alcançado por meio de uma terapia: as sessões com a psicóloga, que o ajudava a não se
preocupar excessivamente com a possibilidade da repetência e, consequentemente, do
fracasso escolar.
O medicamento também carrega o sentido do controle comportamental. A
descoberta de que Vitor havia interrompido o uso da Ritalina® permitiu aos professores
especular o motivo pelo qual o comportamento e o rendimento do aluno haviam se
modificado. Afinal, conforme o que já foi dito, os professores constroem suas percepções (e
ânsias) pautadas na ação do medicamento. A professora Ana confidencia: “Não que não seja
bom para nós, professores, o aluno que vem com Ritalina® na cabeça. Mas...”. A reticência
de seu relato, uma revelação de um desejo docente de controlar rápida e facilmente os
distúrbios de sua aula, é acompanhada de uma reflexão:

Eu dou aula pra criança e às vezes você tem que diferenciar também o que é energia
em excesso que eles precisam canalizar, brincar, pular corda, pular amarelinha,
129

coisas que não existem mais, e tomar remédio. (Ana, professora da rede municipal.
Entrevista concedida em 27 mar. 2013).
O laudo também representa novas exigências para a família e para a escola.
Primeiro, o especialista sugerirá uma reorganização das relações e dos espaços para a
adaptação da criança. Ademais, todos esses indivíduos estarão sujeitos aos horários de
administração do medicamento (quando for o caso), das consultas com o especialista ou com
as sessões de terapia. Segundo, a escola e a família terão de acompanhar o desenvolvimento
da criança, o que pode resultar em um conflito entre as instituições. Uma professora citou um
exemplo:

Mas com o laudo em mãos, os pais exigem uma outra postura. Ele está sendo
medicado, tem o laudo, então agora a escola vai ter que fazer tudo. Sabe? E não é
cobrada a responsabilidade do aluno de organizar uma mochila no quinto ano!
Então, até onde o remédio vai fazer tudo? (Bruna, professora da rede privada.
Entrevista concedida em 10 set. 2013).
Nessas estratégias, o medicamento pode assumir um papel importante na relação
entre pais, professores e crianças e, por vezes, atuar como “âncora de salvação”: se o
problema é neuroquímico, individual, pais e professores não teriam culpa e nada poderiam
fazer senão procurar um especialista e seguir suas recomendações. Talvez esta seja a
estratégia mais eficiente de uma naturalização do TDAH e do uso de psicofármacos, pois
permite aos adultos retirar-se de um sentimento de culpa constante pelo “fracasso” de seu
filho ou de seu aluno, ao mesmo tempo em que fornece às crianças novas formas de se
constituir enquanto indivíduo: um indivíduo cujas ações e reações resultam de seu “problema”
ou da não administração do medicamento.

A primeira fase é a da negação: a família não aceitava que tinha algum tipo de
transtorno, algum tipo de... diferença. [...] A mãe foi aceitando aos poucos que ele
tinha esse problema, foi indicado também Ritalina®, que ele tomava, só que aí
começaram outros problemas. [...] A família começou a usar o remédio como a
âncora de salvação. Aí o que acontece: ele trazia um problema, chamavam a mãe lá,
poderia ter muitos testemunhos “olha, realmente foi ele que fez”. Aí a mãe falava
assim: “ai, coitadinho, de certo está precisando aumentar a dose do remédio”, [...]
“eu acho que ele não tomou o remédio direito de manhã”. Então, o que acontece: ela
deixou de cobrar limites e regras dele e colocou a responsabilidade toda no
medicamento. [...] E o pai, desde que ele começou a tomar Ritalina®, se afastou da
vida [escolar] do moleque. [...] (Amanda, professora da rede municipal. Entrevista
concedida em 27 mar. 2013).
Mais uma vez surge a questão da culpabilização da família pelo descaso ou
descuido de suas funções para com a criança, agora relacionada a um posicionamento do
medicamento como uma figura que ocupa, no ponto de vista da professora entrevistada, o
lugar dos pais. Algo similar foi indicado no relato de que, com a emissão do laudo médico e o
início do tratamento medicamentoso, os pais começam a exigir da escola a vigilância da
criança, o que inclui a organização de seu material escolar. Em outros termos, a introdução do
130

medicamento na relação entre professores, pais e crianças modifica as expectativas colocadas


uns sobre os outros, alterando também os princípios que regem o discurso da culpabilização
materna: da carência cultural à carência de afeto; da responsabilização do professor pelos
fracassos da criança à responsabilização do professor por um novo cuidado com a criança.
Vimos no primeiro capítulo que o trânsito entre esses fatores independe da materialização do
medicamento, pois se trata de elementos da socialização contemporânea da criança.
Entretanto, o medicamento é um novo catalisador de uma socialização infantil adequada.
Finalmente, Luan narra as ações particulares sobre seu corpo, consequentes do uso
da Ritalina®. “Ouvir vozes” e “ter tiques” são, para ele, efeitos colaterais do metilfenidato.
Efeitos esses controlados por meio do uso de outros medicamentos (cujos nomes não foram
citados em entrevista). A combinação de medicamentos é uma estratégia comumente adotada
por psiquiatras e neurologistas e visam, por um lado, à eficiência do controle dos sintomas
patológicos e, por outro, à administração das reações adversas que um psicofármaco pode
desencadear em um corpo. No caso do TDAH, a ação dos psicoestimulantes no córtex-frontal
e, consequentemente, nos sintomas do transtorno, orienta as principais hipóteses de sua causa,
aquelas descritas por Gonon, Guilé e Cohen (2010) como dopaminérgica e noradrenérgica. A
combinação de compostos aponta também um uso quase ilimitado de produtos da indústria
farmacêutica, um dos empreendimentos mais lucrativos na contemporaneidade.
Desenvolverei a discussão no capítulo subsequente por meio da indústria do mal-estar e do
risco. Aqui, contudo, cumpre apresentar alguns dados sobre o consumo de metilfenidato no
Brasil.
O metilfenidato, composto químico da Ritalina® e do Concerta®, começou a ser
comercializado no Brasil em 1998, com a aprovação da Ritalina® (produzida pela Novartis
Biociências, antiga Ciba, que patenteou o metilfenidato sob esse nome em 1954). O
Concerta®, medicamento psicotrópico controlado74, também utilizado no tratamento do
TDAH (produzido pela Janssen-Cilag Farmacêutica) foi aprovado no país em 2002. Isso
explica, até certo ponto, a profusão de diagnósticos de TDAH no país nos anos 2000.

74
Por serem classificados como psicoestimulantes do sistema nervoso central, a Ritalina®, a Ritalina LA® e o
Concerta® somente podem ser prescritos por profissionais habilitados a assinar a notificação de receita amarela,
lista A3, conforme a Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1988 (ANVISA, 2012, p. 2). Em 2013, o
medicamento psicoestimulante Venvanse® (dimesilato de lisdexanfetamina), produzido pela Shire, foi aprovado
no Brasil para tratamento do TDAH. O Strattera® (atomoxetina), produzido pelo laboratório Eli Lilly, também
está autorizado no Brasil para o mesmo fim, porém seu consumo no país não consta nos bancos de dados da
ANVISA, já que o medicamento é vendido sem talonário especial (FÓRUM, 2015, p. 6). Não há genéricos para
qualquer um desses medicamentos, encontrados nas farmácias conforme uma grande variação de preços
(FÓRUM, 2015, p. 4).
131

A produção e o consumo mundial do composto cresceram significativamente nos


anos 1990 (ITABORAHY, 2009). Segundo Domitrovic (2014), a Ritalina® foi aprovada pela
Food and Drug Administration (FDA) em 1955 e introduzida no mercado estadunidense em
1956 para outros fins que não o tratamento do TDAH. O estabelecimento da relação entre
essa categoria diagnóstica e aquele medicamento foi concretizado com a publicação do DSM-
III.
De acordo com Ortega et al. (2010, p. 500), “em 2006, o Brasil fabricava 226 kg
de metilfenidato e importava outros 91 kg”. Segundo os dados analisados em nota técnica
pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, “o Brasil, apesar de não figurar
entre os dez maiores consumidores mundiais per capita75, apresenta crescente importação do
metilfenidato, que passou de 578 kg importados em 2012 para 1820 kg importados em 2013,
um aumento de mais de 300%” (FÓRUM, 2015, p. 4). Na nota se afirma que, conforme um
relatório de 2015 da Junta Internacional de Fiscalização de Entorpecentes – JIPE
(International Narcotics Control Board – INCB), da Organização das Nações Unidas, o
aumento da fabricação do metilfenidato é um fenômeno global. Essa informação tem
correspondência com a observação de Conrad e Bergey (2014) de que ocorre há algumas
décadas um processo de globalização do TDAH.
Os dados analisados na nota técnica mostram ainda um aumento significativo de
vendas de caixas de Ritalina® (cloridrato de metilfenidato), Concerta® (cloridrato de
metilfenidato) e Venvanse® (dimesilato de lisdexanfetamina), particularmente do primeiro,
nos estados e capitais brasileiros, de acordo com informações fornecidas pelo Sistema
Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), da ANVISA. Ao passo que
58.719 caixas de Ritalina® foram vendidas em outubro de 2009, a venda do mesmo
medicamento subiu para 108.609 caixas ao longo de quatro anos. Não há dados suficientes
sobre a prevalência do TDAH no país ou sobre as faixas de idade que consomem o
metilfenidato a ser cruzados, mas é possível estabelecer uma hipótese bastante plausível: os
maiores consumidores são crianças e adolescentes em fase escolar, uma vez que as oscilações
mais marcantes das vendas ocorrem em janeiro e em julho, quando uma baixa é notada nestes
meses correspondentes às férias escolares, e no segundo semestre, que tem um aumento de
vendas relativo ao período em que já é possível conhecer os alunos em risco de fracasso
escolar.

75
Segue em ordem decrescente de consumo per capita, referente a 2013: Islândia, Bélgica, Suécia, Canadá,
Estados Unidos, Holanda, Dinamarca, Nova Zelândia, Chile e Alemanha (ONU, 2015a, p. 33).
132

Os preços dos psicoestimulantes usados no tratamento do TDAH são, no Brasil,


os mais variados. Segundo as informações disponibilizadas pela nota técnica (FÓRUM, 2015,
p. 5), a Ritalina®, o medicamento mais popular, custa entre R$ 21,90 (a caixa com 20
comprimidos de 10mg) e R$ 248,66 (30 comprimidos de liberação prolongada, contendo
40mg cada). Os valores pagos pelo Concerta® oscilam entre R$ 322,19 (30 comprimidos de
18mg) e R$ 437,87 (30 comprimidos de 54mg).
Esses dados, ainda que parciais, corroboram a afirmação de que o mercado
farmacêutico tem grande importância na economia brasileira, estando o país entre os oito
maiores mercados internacionais de fármacos e medicamentos (DOMITROVIC, 2014, p. 22).
E vale frisar que as pesquisas do SNGPC agrupam apenas os dados de consumo de
metilfenidato vindos de farmácias e drogarias particulares credenciadas ao sistema (estimadas
em cerca de 47.000 em 2011, entre as 78.015 cadastradas na ANVISA76), cujo monitoramento
é feito a partir das informações de receitas médicas e notas fiscais emitidas. Isso aponta para a
possibilidade de que o consumo desse composto seja ainda maior no Brasil, já que o
dispêndio do medicamento também pode ser público, em níveis estaduais e municipais (o
Ministério da Saúde não financia a distribuição do metilfenidato pelo SUS) por via
administrativa (listas de medicamentos especiais dispensados pelo SUS) e por meio da
abertura de processos judiciais pelos usuários para a solicitação de medicamentos não
padronizados (CALIMAN; DOMITROVIC, 2013), sem contar as compras feitas no mercado
paralelo.
Nas cidades de São Paulo e de Campinas, por exemplo, o metilfenidato é
distribuído pelas redes municipais do SUS por meio das farmácias de referência da região, no
primeiro caso, e das unidades básicas de saúde, no segundo caso. Entretanto, a prescrição do
medicamento segue regras restritas de diagnóstico, acompanhamento e dispensa que devem
condizer com as definições e recomendações dos protocolos de uso do metilfenidato de cada
secretaria municipal de saúde (CAMPINAS, 2013; SÃO PAULO, 2014). Esses protocolos
baseiam-se nas definições do TDAH propostas pelo DSM-IV-TR, pelo DSM-V e/ou pela
CID-10, porém priorizam práticas terapêuticas psicossociais (e não cognitivo-
comportamentais) e a participação ativa de equipes multiprofissionais, pais e professores.
Esse tipo de regulação, exemplificada pela publicação da Portaria nº 986/2014, da secretaria
municipal de saúde de São Paulo, desencadeou uma polêmica social, midiática e político-
partidária em torno do acesso ao medicamento — e, simbolicamente, a todas as relações e

76
Disponível em: <www.saude.ms.gov.br/controle/ShowFile.php?id=133492>. Acesso em: 27 jun. 2015.
133

promessas que ele pressupõe — como uma questão de direito ao diagnóstico e seu tratamento
e, em última análise, à inclusão social e escolar da criança com TDAH.

3.4. Intervenção como direito

O acesso à educação formal de crianças com dificuldades e deficiências pressupõe


a aplicação de medidas interventivas (diagnóstico, tratamento e estratégias pedagógicas
específicas) como direito, o que não é um fenômeno exclusivamente contemporâneo. Édouard
Séguin já defendia, no final do século XIX, que as crianças idiotas deveriam ter acesso à
educação como qualquer outra criança normal. Contudo, tratava-se de uma educação especial,
articulada com instrução, noções de higiene e moral, e voltada às particularidades do
desenvolvimento dessas crianças, conforme o que foi apresentado no capítulo anterior.
Atualmente, as ações em torno da inclusão de crianças com TDAH e de
compensação de suas dificuldades (agora mais orientadas pelo discurso neurocientífico, que
desculpabiliza pais e crianças por seus prejuízos escolares e sociais) têm se apoiado em
legislações e projetos de leis como uma eficiente ferramenta de intervenção médica na
realidade cotidiana. O acesso ao atendimento especializado é, inclusive, reivindicado como
direito por famílias de crianças com TDAH. É o que Cecília, mãe de um menino de doze anos
com TDAH acompanhado em um ambulatório universitário de psiquiatria, pleiteava: “eu
queria um especialista, ele tinha direito”.
O recorte da presente pesquisa permitiu detectar uma forte atuação de grupos de
apoio a portadores de transtornos mentais — como a Associação Brasileira do Déficit de
Atenção (ABDA) — na reivindicação, discussão e fornecimento de material de base para
projetos sobre o TDAH e, consequentemente, sobre a intervenção do transtorno nas relações e
hábitos cotidianos das crianças concernidas, de seus familiares e professores. A título de
exemplo, o Projeto de Lei nº 292, de 2008, que cria o “Programa de Diagnóstico de TDAH”
na rede de escolas públicas do estado de São Paulo, menciona a ABDA como fonte da
definição do TDAH, uma vez que tal organização disponibiliza em sua página eletrônica uma
descrição do transtorno conforme o discurso psiquiátrico dito oficial. Por meio desse projeto
de lei, a Secretaria Estadual de Educação se responsabilizaria pelo treinamento de diretores e
professores da rede pública, visando à identificação precoce de possíveis casos de TDAH. Já a
Secretaria Estadual de Saúde colaboraria fornecendo profissionais especializados na área
clínica, tais como psicólogos, fonoaudiólogos, psiquiatras, entre outros (SÃO PAULO, 2008,
art. 2º). O referido projeto foi anexado ao PL nº 172/2005 (que cria o Programa de
134

acompanhamento para alunos do ensino fundamental da rede pública estadual, com transtorno
do Déficit de Atenção com Hiperatividade e com Transtorno no Déficit de Atenção sem
Hiperatividade) e, posteriormente, ao PL nº 142/2013, que autoriza o Poder Executivo a
estabelecer diretrizes para o diagnóstico, tratamento e acompanhamento dos alunos do ensino
fundamental e médio da rede pública, no âmbito do estado de São Paulo, portadores de
TDAH.
Outras propostas mais recentes também se baseiam no discurso psiquiátrico
oficial para implementar a inclusão das crianças com TDAH, contando, assim, com o suporte
da ABDA77. O Projeto de Lei nº 7081, de 2010, ainda em deliberação pelas Comissões da
Câmara dos Deputados federais, dispõe sobre a efetivação do diagnóstico e do tratamento da
dislexia e do TDAH na educação básica por meio de equipe multidisciplinar que inclua, entre
outros, educadores, psicólogos, psicopedagogos, médicos e fonoaudiólogos (BRASIL, 2010,
art. 2º). Já o Projeto de Lei nº 7798, de 2014, também em tramitação na Câmara dos
Deputados federais, altera a lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996,
objetivando a substituição do termo “educando portador de necessidades especiais” por
“educando com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, transtornos mentais e
altas habilidades ou superdotação”. Essa alteração abriria brechas para a inclusão do TDAH
como categoria englobada pela educação especial e respaldaria legalmente outras medidas
(algumas já em aplicação) de compensação das dificuldades da criança diagnosticada, como o
atendimento diferenciado em caso de demanda do aluno participante de provas nacionais,
como o ENEM.
Envolvendo-se diretamente na defesa da intervenção médica, por intermédio do
TDAH, na realidade contemporânea de crianças e adultos, a ABDA atua também na crítica
dos discursos e práticas contrários ao processo chamado popularmente de “medicalização da
vida”. Trata-se de uma concepção adotada por movimentos como o Fórum sobre
Medicalização da Educação e da Sociedade, realizado em 2010. No manifesto que estabeleceu
o caráter de atuação política permanente e os fundamentos do Fórum — apoiado por
estudiosos, profissionais (com destaque aos psicólogos) e entidades como o Conselho
Regional de Psicologia de São Paulo —, a medicalização é definida como

O processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas


médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”,
“transtornos”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais,
culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas. Questões coletivas são tomadas

77
Leis municipais, vigentes em outras cidades brasileiras e voltadas ao TDAH, podem ser encontradas em
<http://www.abda.org.br/br/sobre-tdah/legislacao/item/1054-leis-municipais-e-estaduais-sobre-tdah.html>.
135

como individuais; problemas sociais e políticos são tornados biológicos. Nesse


processo, que gera sofrimento psíquico, a pessoa e sua família são responsabilizadas
pelos problemas, enquanto governos, autoridades e profissionais são eximidos de
suas responsabilidades78.
Assim como o termo que circula nas escolas visitadas em trabalho de campo, a
medicalização assume o caráter de uma ferramenta de denúncia da intervenção médica na
vida cotidiana, distanciando-se de sua concepção original e da potencialidade analítica que a
noção possui ao permitir descrever o modo de funcionamento de uma sociedade. Em outras
palavras, com a adoção do termo “medicalização” como instrumento de luta política, ele se
transforma, perdendo sua essência analítica e, ao mesmo tempo, ganhando uma conotação de
embate entre saberes. É nesse plano de luta que se busca combater, por um lado, a
“transformação artificial de fenômenos sociais em problemas médicos” e, por outro, a “a
afirmação não científica de que o TDAH não existe e de que os medicamentos aprovados pela
ANVISA para o tratamento desse transtorno são ‘perigosos’ e tornam as crianças
‘obedientes’” (menção que consta na “Carta de esclarecimento à sociedade sobre o TDAH,
seu diagnóstico e tratamento”, publicada pela Associação Brasileira de Psiquiatria).
Um exemplo recente de embate nesse âmbito é a polêmica decorrida em torno da
Portaria nº 986/2014, da Secretaria Municipal de Saúde da cidade de São Paulo. O documento
revoga a Portaria 1940/2007 SMS.G e institui o Protocolo de Uso do Metilfenidato, inspirado
no Protocolo implementado pela Secretaria Municipal de Saúde de Campinas. Instituem-se
diretrizes rigorosas que orientam a formação de uma equipe multidisciplinar para o
acompanhamento das crianças e das famílias concernidas pelo TDAH e para a administração
ponderada do metilfenidato. Assim, a portaria restringe o uso de metilfenidato e privilegia a
atuação multiprofissional no estabelecimento de diagnósticos de TDAH, em seu tratamento
(assistência psicossocial em vez da prioridade comumente dada ao tratamento farmacológico)
e, em caso de adoção do metilfenidato como tratamento, a avaliação rigorosa dos benefícios
do psicotrópico, seis meses após o início do tratamento, e das condições físicas e cognitivas
do paciente. A medida é voltada para crianças e adolescentes que vivem na cidade de São
Paulo e que são registrados no SUS. Favorece-se também a atuação conjunta de famílias, de
profissionais de educação relacionados ao paciente e de especialistas a fim de prover às
crianças e adolescentes ferramentas adequadas para reduzir os efeitos dos sintomas do TDAH.
De acordo com Lisboa (2014), essa nova regulamentação tem o objetivo de evitar o
estabelecimento de diagnósticos equivocados e de compreender a pessoa enquanto um ser

78
Disponível em: <http://medicalizacao.org.br/manifesto-do-forum-sobre-medicalizacao-da-educacao-e-da-
sociedade/>. Acesso em: 14 jul. 2015.
136

complexo conectado a contextos sociais múltiplos. Isso condiz, entende-se, com as propostas
em curso de humanização das relações médico-paciente no âmbito do SUS. Mas também com
um projeto de produção de bem-estar individual e coletivo, implicando — do mesmo modo
que propostas contrárias — uma questão de controle (dos procedimentos diagnósticos e
medicamentosos, bem como da orientação das ações dos atores sociais) fundada no direito.
Tal regulamentação foi recebida com satisfação pelos críticos da expansão da
jurisprudência médica à vida cotidiana (medicalização da vida), porém com indignação por
aqueles que defendem incondicionalmente as neurociências e os estudos recentes que
legitimam a ideia de que o TDAH é um problema significativamente ligado ao
desenvolvimento neurológico, bem como o uso da Ritalina® enquanto recurso terapêutico
seguro. Neste caso, defende-se o acesso ao diagnóstico de TDAH e a seu tratamento como um
direito civil de crianças e adolescentes e, assim, ataca-se a nova legislação ao se afirmar que
ela dificulta tal acesso e, consequentemente, viola os direitos dos indivíduos. Lê-se no
manifesto da Associação Brasileira de Psiquiatria:

[...] Por trás de um discurso apoiado em uma visão assistencial equivocada e


manipuladora, não enraizada na ciência e nos conhecimentos da neurobiologia, tal
resolução se revela, na verdade, uma obstrução abusiva ao acesso ao tratamento
farmacológico pela população de baixa renda, e impõe restrição ao pleno exercício e
autonomia da medicina e da ciência brasileira. [...]. (ABP, 2014).
O excerto se inicia pela rejeição da resolução posta pela secretaria de saúde da
cidade de São Paulo atribuindo-lhe como fundamento um discurso ilegítimo, pois não
enraizado nos saberes técnico-científicos da neurobiologia e de conhecimentos afins. Tal
ilegitimidade pauta-se em um suposto interesse partidário ideológico (conclusão esta possível
quando se observa que, no conjunto das críticas feitas à portaria em questão, ataca-se o
governo municipal em si, e não os efeitos de suas ações) travestido de assistencialismo que,
na prática, dificultaria o acesso daqueles que não podem pagar pelo cuidado em saúde a
serviços e tecnologias gratuitamente disponíveis. Essa justificativa, forjada com respaldo de
um conhecimento técnico-científico, revela um embate histórico acerca da regulação da
medicina pelo Estado, ao alegar que “impõe restrição ao pleno exercício e autonomia da
medicina e da ciência brasileira”.
Revela, acima de tudo, uma “universalização” do TDAH amparada pelo princípio
legal do direito à intervenção e à autonomia. Ao apelar às populações de baixa renda, o
discurso da Associação Brasileira de Psiquiatria atesta que o TDAH está para além das
desigualdades e vulnerabilidades. Isto é, todos os indivíduos, independentemente das formas
de sua inserção social, podem ser acometidos por esse transtorno (cuja manifestação
137

sintomática advém de falhas em neurotransmissores) e, por isso, devem ser assistidos pelas
mesmas práticas. E verificando-se que, ainda assim, nem todos têm acesso aos benefícios da
ciência (devido à restrição dos direitos imputada a determinados grupos, segundo a
justificativa apresentada no excerto), cabe à expansão ilimitada do conhecimento e das
práticas especializadas a garantia dos direitos de inclusão, acesso e solução dos problemas
sociais originados por disfunções neurobiológicas.
Atualmente, a imbricação entre legitimidade do discurso científico e as ações
judiciais visando à garantia de direitos de inclusão à criança ganha também outras grandes
proporções. Não se trata apenas de um embate político entre ABDA e Fórum — duas
entidades civis representantes da psiquiatria, de um lado, e da psicologia, de outro. As
decisões judiciais vêm atuando na intervenção sobre a escola ou a família que, por um motivo
ou outro, se recusa a obedecer à ordem médica. Como exemplo, cito a nota publicada no
jornal O Globo (22/12/2015, p. 14), e reproduzida pela ABDA nas redes sociais:

(Des)inclusão — Pais de um aluno de 15 anos com déficit de atenção que, por oito
anos, estudou no Mopi, na Tijuca, entraram com ação por danos morais e materiais.
É que a 1ª Vara da Infância do Rio de Janeiro havia condenado a escola a adaptar
suas aulas para o aluno. O colégio descumpriu a decisão. Se negou até a dar ao
garoto a medicação pedida pelo psiquiatra.
Nesse ponto, o saber médico, materializado na ordem de medicar o adolescente
com TDAH, sobrepõe-se judicialmente aos conhecimentos, experiências e práticas
pedagógicas de professores que, por uma determinada razão (não especificada na nota
jornalística), discordam do diagnóstico e do uso de psicoestimulantes. Há também ações no
sentido contrário, da escola para a família. Conforme o que já foi citado neste capítulo, alguns
professores, pautados no discurso da culpabilização da família, entendem a recusa dos pais em
procurar um especialista, no caso de suspeita de TDAH, como preconceito ou alienação do
problema. O professor Cesar afirma: “olha, uma coisa que tem aí é o preconceito da própria
família. Algumas famílias não têm preconceito? A família não aceita, esse é o principal
problema. Se a família aceitasse e participasse, mas a família não aceita. Esse que é o
problema”.
A universalização do TDAH implica igualmente o deslocamento da problemática
da patologia para o da diferença, refletindo aquilo que foi apresentado no capítulo anterior
como o deslocamento, no âmbito escolar, da problemática da anormalidade79 para o da
diferença. Tal deslocamento não significa que uma condição substitui a outra. Elas coexistem,

79
A figura do anormal constituiu-se, segundo Foucault (2010d), pela articulação entre o saber médico e as
práticas penais do século XIX. Hoje ainda se observam efeitos dessa articulação. Entretanto, eles não incidem
mais sobre a anormalidade e a exclusão, mas sim sobre a diferença e a inclusão.
138

mas mobilizam ações distintas. A patologia — que se expressa tanto na disfunção neurológica
individual quanto na patogenia familiar — pode ser identificada em uma escola disciplinar,
orientada por padrões de comportamento. Nesse sentido, manifestações desviantes constituem
riscos reais e potenciais controlados e prevenidos por práticas, saberes e instrumentos
especializados. Já a diferença implica a questão do direito e da defesa de outras formas
escolares (como as medidas de compensação, tais como dar mais tempo para a execução de
uma prova, ler os enunciados para o aluno, colocá-lo próximo à professora, entre outras)
visando à inclusão da criança com TDAH. O direito desdobra-se, entretanto, em outras
questões. O direito ao diagnóstico e ao tratamento é aquele que move as ações contra a
regulamentação do metilfenidato, por exemplo. Mas o direito também se refere ao respeito à
diferença. Diferença de ser TDAH (o que se torna uma identidade pessoal) e também o direito
da criança de não aprender como os outros, de ter um ritmo diferente, o que coloca a
pedagogia clássica em questão.
O TDAH tem, assim, a potencialidade de funcionar como uma categoria que
engloba diferentes níveis da vida social sob o pressuposto biológico. Caliman (2006, p. 78-79)
afirma que

No momento em que nossa cultura transformou o planejamento do futuro, a gestão


da atenção e o controle de si em imperativos sociais e econômicos, sua deficiência
passou a ser vista como um risco social e um signo patológico. Um dos resultados da
configuração fronteiriça que define o TDAH é que um traço comum, biológico,
cerebral e epidemiológico, mas também moral, social e existencial é criado entre a
criança com TDAH, o desviante, o viciado em drogas estimulantes, o alcoólatra, o
deprimido, o motorista imprudente, o indivíduo patologicamente instável, o
criminoso e, por outro lado, o empresário bem sucedido tenaz em suas decisões, o
acadêmico produtivo e o indivíduo que se orienta pelas regras da vida saudável.
Essa descrição, pelo viés da crítica, aproxima-se daquela feita pelo ProDAH,
apresentada no capítulo precedente e que não enfoca uma infância pobre ou vulnerável a
riscos sociais ligados a formas de carência econômica e cultural. Trata-se de qualquer
infância, ou melhor, de qualquer criança, rica ou pobre, que manifeste os sintomas do TDAH
e o potencial de risco a eles vinculado, mas cujos “perfis” se cruzam em (ou se desviam de)
um mesmo ponto: uma imagem ideal de indivíduo formada em um dado momento histórico e
social. Esse tipo de discurso fundamenta ações sociais como as da ABDA, por exemplo. É
claro que existem desigualdades sociais e econômicas que se expressam por meio de
categorias como o TDAH, sendo que estas podem até mesmo reforçar tais desigualdades.
Porém, diferentemente dos discursos sobre o menor ou das ações sobre a “nova clientela” da
escola universalizada do início do século XX, os discursos sobre o TDAH não enfocam, em
sua superfície, classe social, etnia ou cultura, pois a categoria se pretende universal. Ela
139

silencia, em sua universalidade, as resistências. E, tomando a criança como sujeito de direito


de intervenção, omite sua potencialidade de colocar o próprio TDAH e as práticas que o
regem em outros termos.

3.5. Uma nova condição: as pequenas resistências infantis

Em Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão, um
grupo de pesquisadores coordenados por Foucault (1991a) tratou, a partir do caso de
parricídio do jovem que dá nome à obra, de discursos heterogêneos que falavam de um
mesmo acontecimento e que constituíam, assim, “uma batalha de discursos e através de
discursos”: os médicos, os magistrados e os aldeões de Aunay tinham, cada qual, a sua
batalha; no centro estava Pierre Rivière, com suas “incontáveis máquinas de guerra”. Todas
essas batalhas, guerreadas por meio de discursos, articulavam-se em um jogo com
instrumentos de ataque e defesa, de poder e saber. Mas no centro desse dispositivo
encontrava-se um poder de perturbação desse jogo, assim como um conjunto de táticas que
tentavam “recobri-lo, inseri-lo e classificá-lo como discurso de um louco ou de um
criminoso” (FOUCAULT, 1991a, p. xiii).
As crianças acompanhadas em pesquisa de campo não cometeram qualquer crime
jurídico, como o fez Pierre Rivière. Contudo, no discurso dos adultos, elas parecem ter
cometido “crimes” morais, sociais e cognitivos, cuja “punição” é o seu encerramento em uma
categoria diagnóstica ou em um rótulo moral ou pedagógico que define sua condição e sua
posição nas relações sociais. Ou ainda: assim como o louco dos asilos, a criança — sobretudo
a “problemática” — é facilmente identificada por traços que a distinguem dos demais
indivíduos (dos adultos, embora ela também se iguale a eles em termos de direito de consumo,
por exemplo, e das demais crianças ditas normais) e sobre ela são lançados olhares sem que
ela própria participe da produção do saber sobre si. É como se a condição da criança pairasse
acima da tensão entre família e escola, dos direitos que lhe são concedidos e das
classificações que lhe são impostas, o que a coloca em um jogo de visibilidade e
invisibilidade. Todavia, ela está no ponto central onde as batalhas discursivas se cruzam,
perturbando-as.
Ressurgindo como sujeito, Luan rearticula todas as demais lutas. A luta da avó
superprotetora que, ao mesmo tempo acusada pelos professores de não impor limites ao neto e
suscetível aos discursos dos “mais sabidos”, busca respostas e soluções para o “probleminha
de ser desligado”. A luta dos professores que, embora se desencontrem na troca de
140

informações e de pontos de vista, procuram enfrentar o fato de que Luan “não consegue se
controlar”. E, finalmente, a luta dos especialistas, sobretudo do famigerado doutor S., por
meio da qual o discurso do TDAH, seu vocabulário e seus instrumentos se difundem.
Um jogo de incômodos e desejos move as lutas de Luan. O incômodo que
provoca com sua voz, o ato de falar sozinho, as histórias que conta, as angústias que
externaliza, o mau desempenho que revela. Os incômodos com que sofre e o consequente
desejo de não estar ali, e sim em um outro “mundo”, de se libertar da sala de aula, do corpo
que ali o prende, da irritação causada pela obrigação de copiar, dos rótulos que os outros lhe
impõem e do médico que o “entope de remédios”. E esse jogo constitui-se em um
emaranhado de acontecimentos e relações.
O primeiro acontecimento foi a partida de sua mãe e, posteriormente, a
recomposição familiar que seus pais efetivaram. Luan nada falou sobre esses acontecimentos,
mas sua avó os colocou em primeiro plano, mostrando que o abandono — ou o que ela
definiu como o abandono de seus netos pela mãe (embora Luan somente fique com o pai aos
fins de semana) — é aquilo que move suas ações e preocupações, incluindo o questionamento
sobre medicar ou não o menino. Os professores tampouco falavam sobre o assunto, mas viam
no comportamento superprotetor da avó um elemento para a “falta de limites” do aluno. E a
falta de limites se conjuga à potencial inexatidão daquilo que Luan afirma e à hiperatividade
atestada em seu laudo e marcada em vermelho em seu nome. Mas por que a hiperatividade, se
o laudo atestava a existência do déficit de atenção e as observações em sala mostravam um
menino que se distraía constantemente — o que ele próprio afirmava ser o maior problema
naquele espaço? “Hiperatividade” e “hiperativo” se expandem, partindo da agitação, passando
pelo “não se controlar” (impulsividade) ao “não prestar atenção” (desatenção), acrescidos
ainda da ansiedade e da dificuldade em se relacionar com os colegas. Luan, contudo,
ressignifica a hiperatividade ao conjugar o ato de atentar a tudo e o de distrair-se com cada
pequeno objeto ou pensamento.
Tendo alguns poucos amigos com quem se identificava ou com quem podia
brincar, Luan conversava consigo mesmo, contava histórias para si mesmo. Retraía-se e era
chamado de idiota e inútil. Talvez seja o contrário: era chamado de idiota e inútil e se retraía.
E nesse movimento, reconhecia-se como inferior (“senão eu já teria estragado a sala, que é
um bando de CDF!”), ao mesmo tempo em que demandava um tratamento melhor e o
reconhecimento de seus supostos amigos (“eu queria que ele me tratasse melhor”). Ele era
tratado como diferente. Mas não como o diferente merecedor de benefícios de políticas de
inclusão, e sim o diferente que é excluído das interações pessoais, das relações sociais e do
141

sistema escolar formal, que dá formas e exige bons resultados. Ao mesmo tempo em que era
um excluído, ele estava preso à fixidez da forma escolar, onde foi detectado e encaminhado a
especialistas, recebendo um diagnóstico psiquiátrico — essa é a captura dos “sem jeito”. Ele
ficava então nervoso com as provas, elas lhe “davam um branco” e ele temia ser reprovado. E
o foi, duas vezes. Agora ele quer novamente se libertar das amarras do oitavo ano e seguir em
frente.
Ser aprovado pelo conselho (de classe) significa que o caso de um determinado
aluno, cujo desempenho escolar encontra-se no limite entre o aceitável e o inaceitável, é
discutido em uma reunião entre professores e coordenadores pedagógicos em que se decidem
os rumos de sua vida escolar. No caso de Luan, definido como “inteligente, mas não sabe se
controlar” (uma condição fundamental à definição do TDAH), a sequência de aprovações
“pelo conselho” causava relações conflituosas. Luan, por um lado, sentia-se aliviado, mas
somente depois de ter passado por momentos de apreensão e “nervosismo” com a ajuda da
psicóloga, que o ajudou a “se animar mais” frente ao pensamento recorrente do “repetir,
repetir, repetir”. Os professores, por outro lado, discordavam quanto ao caminho determinado
para tal aluno. “O Luan já está aprovado... se depender dos professores... É o melhor aluno
que a gente tem (em tom irônico)”.
Em seus incômodos e desejos, na luta entre a fixidez e o escapar por meio dos
devaneios e “daquelas ilusões lá”, sempre recapturado pelos xingamentos, rótulos e gestos
dos outros, Luan propôs algo simples, mas quase inimaginável na forma escolar: a
transgressão de um modo fixo de relação. “Se a pessoa estiver imaginando alguma coisa...
depende. Se ela tiver um trauma e não conseguir resolvê-lo, aí tem que pedir alguma ajuda,
né, profissional. Mas se estiver pensando coisas boas, não tá atrapalhando nem a aula,
depois qualquer coisa, o professor passa pra ele a matéria”. Veem-se marcas do campo psi
(certas estratégias de captura de sujeitos “com problemas”) no enunciado “se uma pessoa tiver
um trauma e não conseguir resolvê-lo, deve procurar um profissional”. Mas há também uma
proposta de subversão da lógica escolar de ensinar um conteúdo a todos os alunos do mesmo
modo e no mesmo momento e, consequentemente, dos efeitos dessa lógica (como as
classificações pautadas no desempenho e no comportamento): se a pessoa estiver pensando
em coisas boas, que a deixe pensar e, depois, em seu tempo, o professor “passa a matéria”.
Além disso, ele questiona o papel do professor: “O professor podia ir lá e ajudar o aluno
(silêncio). Nas maiores dificuldades ainda. Falar menos do aluno... E se o aluno começasse a
ficar meio nervoso com ele de chamar tanto a atenção, ele começar a abaixar um pouco,
né?!”.
142

Luan não tem mais o termo “hiperativo” grafado em vermelho na frente de seu
nome, nem figura entre os alunos com baixos desempenhos escolares, o que mostra a
flexibilidade e fluidez da categoria clínica e social a ele associada. Porém, Luan ainda busca
se desvencilhar do oitavo ano e dos problemas que a distração lhe causa em sala de aula. Não
a distração em si, mas sim a distração capturada como déficit escolar. Em suas batalhas contra
a escola (o copiar, a reprovação, a sala de aula, os “CDF”), contra os outros que o tratam de
modo diferente, contra os rótulos, contra o professor que “provoca” e não ajuda, e contra ele
mesmo (com quem conversa e discute em voz alta), Luan torna-se “idiota”, “louco”, “incapaz
de se controlar”, “mentiroso”. Em sua loucura, descontrole e mentira, ele se reconstitui como
sujeito.
Já as lutas de Danilo trazem à cena um outro efeito da categoria TDAH muitas
vezes desconsiderado. Trata-se da questão da identidade, que pode ser parcial ou plena.
Quando o menino diz que também é hiperativo, ele pode estar se referindo ao seu
pertencimento a um grupo de crianças hiperativas como também à hiperatividade — ou o ser
hiperativo — enquanto uma parte de sua subjetividade. Em ambos os sentidos, assume-se a
adesão a uma formulação externa do indivíduo: hiperativa é a criança que, muito agitada, não
corresponde às demandas e expectativas sociais voltadas à socialização e à constituição
adequada dos comportamentos infantis. Apesar de desviante, esse é o fundamento que orienta
a constituição da razão de ser da criança.
Marcelo, aos doze anos, foi acompanhado em um ambulatório universitário de
psiquiatria infantil e adolescente, em 2010. Nos primeiros anos escolares, ele havia sido
diagnosticado como portador de TDAH, depois de inúmeras passagens por especialistas e
serviços de saúde os mais diversos. Ser hiperativo justificava seus comportamentos. “Como
eu vou prestar atenção se eu sou hiperativo?”, ele dizia a seus familiares.
Anos após nosso encontro, sua mãe contou-me que o diagnóstico do filho havia
sido reformulado — uma prática comum e defendida em psiquiatria. Ele era então bipolar.
Perguntei-lhe qual havia sido a reação de Marcelo ao receber o novo diagnóstico: “ele fica
perguntando se nunca foi hiperativo”. No ano seguinte, em 2014, com novos médicos, um
novo diagnóstico foi fechado: esquizofrenia. Essa fluidez das classificações diagnósticas
psiquiátricas mostra que, se por um lado a mudança pode compor e recompor a subjetividade
ou a identidade infantil, por outro elas não são eficientes na captura da criança. Pequenas
resistências escapam até mesmo do efeito do medicamento, como é o caso de Danilo que
ainda é encaminhado à diretoria e cujas mãos não param de se mexer. As pequenas e quase
143

invisíveis resistências suplantam, ainda que brevemente, os grandes efeitos das categorias
diagnósticas e dos psicofármacos.
A nova condição que essas pequenas resistências revelam é a da retomada do erro.
O delírio da imaginação. O ser errante, inútil, idiota e inadaptado, que fala consigo mesmo. A
criança “sem jeito” que desvela a vulnerabilidade e o sofrimento do ser humano ao escapar às
formas de intervenção na existência humana. Ela é tirada de jogo, colocada em uma carteira
separada, por um lado, porque não se adapta (a separação é um castigo direcionado à criança
que a torna momentaneamente visível para servir de exemplo do que não deve ser feito) e, por
outro, porque nos amedronta e coloca em risco nossa responsabilidade (o educar outros 20
alunos que “querem aprender”, por exemplo), nosso cronograma e nossa própria saúde, assim
como nos lembra que erramos, sofremos e sentimos dor. Enfim, ela escancara o que tememos
e contra o que lutamos todos os dias: a impotência do professor frente aos saberes técnico-
científicos; o erro como humanidade (e não a perfeição como sobre-humanidade); a
fragilidade da educação escolar, sendo que esta se tornou o lema básico de qualquer política
pública de proteção e promoção de direitos à criança; o poder de perturbação das “massas”,
das crianças unidas que fazem barulho ao bater os pés no chão de madeira e ao dizer “nós
vamos fazê-los tremer”. Assim, quando um menino pergunta à sua professora — esperando
uma resposta afirmativa que legitime sua feliz descoberta — “não é verdade que a gente pode
errar?”, ele coloca em questão todo um modo contemporâneo de aprender, de se relacionar,
enfim, de viver.
144

CAPÍTULO 4

Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade: o mecanismo sociopolítico da


categoria clínica e a condição da criança hiperativa e desatenta

Freud dizia, no início do século XX, que a busca pela felicidade é o objetivo
humano, porém sua plenitude é impossível. O desejo representa uma ausência, aquilo que
falta, pois o sujeito está sempre a desejar algo mais. No imaginário popular, o século XXI
projetava um desenvolvimento tecnológico tido como capaz de “salvar” a espécie humana. No
entanto, chegados os anos 2000, sofremos cada vez mais. Nossa particularidade — e nosso
perigo — é que as técnicas de supressão do sofrimento e do erro correspondem ao nosso
desejo mais imediato e à esperança mais convicta de felicidade e bem-estar. Um único
comprimido de Rivotril® ou de Ritalina® pode fazer calar, minutos após sua ingestão, tudo
aquilo que nos inquieta interna e externamente. A intervenção técnica médico-farmacológica
ancora-se em um “homem verdadeiro”, representação abstrata do indivíduo em plena saúde,
ótimo em seu desempenho cognitivo, social e emocional. Tratando-se, assim, de um ideal de
perfeição que nunca será alcançado, as práticas interventivas que sobre ele se aplicam tornam-
se incessantes e expandem-se por diferentes redes de relações.
Tendo em consideração tal peculiaridade dos tempos contemporâneos e a análise,
feita nesta tese, de seus efeitos sociais, é preciso ponderar o TDAH, pois não se trata
meramente de uma descoberta científica. Esta é uma categoria clínica concebida e
materializada em um contexto social e histórico específico. Identificou-se nos capítulos
anteriores que a intervenção médico-psiquiátrica — da qual o TDAH é um instrumento — é o
procedimento por intermédio do qual se visa a garantir a boa socialização infantil (ou seja, a
inserção social da criança conforme expectativas e normas sociais específicas). Para tanto,
atua-se prática e discursivamente sobre a criança cujos comportamentos e rendimentos são
apontados como discrepantes de um processo de desenvolvimento cognitivo, psicológico e
social, pautado nos padrões da aprendizagem escolar. Age-se igualmente sobre os
responsáveis pelo sucesso dessa socialização, sobretudo a escola e o professor (as
experiências e práticas docentes, rotinas em sala de aula, entre outras relações). Cabe,
finalmente, analisar o mecanismo do TDAH.
145

4.1. O Manual diagnóstico, o TDAH e seus paradigmas

A psicopatologia do século XIX, o princípio da psiquiatria, almejava fazer uso dos


métodos da medicina orgânica (a saber: a distribuição dos sintomas em grupos patológicos a
fim de definir as grandes entidades mórbidas) para descrever as doenças mentais. De acordo
com Foucault (1975; 2010c), essas patologias somente poderiam ser compreendidas a partir
de um conjunto de análises envolvendo a evolução da enfermidade, a história individual, a
experiência do paciente e a constituição histórica da doença. Esse conjunto analítico,
sobretudo seu último elemento (caminho esse percorrido por Foucault na fase arqueológica de
seus estudos e na transição para sua investigação genealógica), permite procurar a raiz da
patologia mental em uma relação histórica entre o homem, o homem louco e o homem
verdadeiro, e não em uma metapatologia.
O homem (de razão) torna-se uma verdade concreta e objetiva a partir de sua
negatividade: o homem louco. Essa transformação processa-se através de uma psicologia
“positiva”, responsável pela construção de um modelo normativo das condutas humanas
pautado na definição e na busca do desvio. Seu objetivo é denunciar a transgressão e firmar o
modelo como fonte de verdade sobre o homem. Em última instância, faz-se possível distinguir
e dividir os indivíduos de uma população entre sãos e loucos, bons e criminosos.
O TDAH (bem como outras categorias psiquiátricas) realiza essa distinção, de
modo particular, na contemporaneidade. O Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos
mentais – DSM (o livro fundamental da psiquiatria biomédica, onde se encontram descritos os
transtornos mentais em vigência em cada período histórico que marca uma edição e as
práticas que a orientam) descreve os critérios de avaliação do comportamento humano e de
detecção de possíveis desvios mórbidos. Nesse processo de avaliação e detecção, o DSM
avaliza a diferenciação de comportamentos — e, assim, de indivíduos — normais e
patológicos. No entanto, sua ação vai além. Visando à promoção da saúde e bem-estar do
paciente e daqueles que o cercam, o manual propõe formas de intervenção no comportamento
patológico, por meio da ação sobre os sintomas de um transtorno, para que sua manifestação
seja interrompida. As categorias (como o TDAH) que o compõem formam-se, portanto, nessa
conjuntura e executam os propósitos do compêndio.
Vimos nos capítulos anteriores que a intervenção médico-psiquiátrica, no entanto,
excede o âmbito do sintoma (o corpo) e age (por meio do corpo) sobre instituições,
representações, discursos e relações sociais. Ao mesmo tempo em que se beneficia de uma
estrutura disciplinar de classificação, divisão e segregação, funda os modos de compreender
146

esse conjunto na fisiologia e funcionamento cerebral comum a todos os corpos humanos.


Neste sentido, uma disfunção pode acometer qualquer indivíduo, independentemente de suas
relações sociais. Pois, como dita a perspectiva psiquiátrica hegemônica, são as disfunções que
determinam tais relações.
O TDAH pode então ser definido como uma categoria universal e a-histórica, isto
é, objetiva e efetiva independentemente da percepção humana. Discorrendo sobre o
empreendimento do discurso neurobiológico de estabelecer as origens do TDAH como uma
metapatologia, Caliman (2006) considera a “história oficial do TDAH” como o encadeamento
histórico linear e evolutivo de categorias médicas relacionadas aos comportamentos e
desempenhos infantis tidos como inadequados. Trata-se de um discurso dominante — e por
isso oficial — que busca a legitimidade biológica da condição em um fundamento atemporal e
neutro da constituição das categorias clínicas, desconsiderando, dessa forma, as contingências
sociais, morais e políticas de uma época (CALIMAN, 2006, p. 71). Para uma apreensão mais
profunda do TDAH é preciso, portanto, compreender que a delimitação, transformação e
funcionamento do DSM, da categoria diagnóstica e de sua difusão social somente são
possíveis devido a certas condições de existência, desde a crise escolar até a formulação de
um solo epistemológico próprio.

Entre transtorno mental e diferença desvantajosa tratável

O Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais - DSM, elaborado e


publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association –
APA), caracteriza-se como uma classificação categorial dos transtornos mentais com critérios
associados. A finalidade do compêndio é oferecer elementos para a realização de diagnósticos
e para a comunicação, por meio de uma linguagem comum, entre clínicos, pesquisadores e
profissionais de diferentes orientações. Estando em sua quinta edição, o DSM tornou-se, ao
longo de sucessivas revisões e edições, um modelo de referência para a prática clínica
psiquiátrica. Em poucas palavras,

O DSM pretende servir como um guia prático, funcional e flexível para a


organização de informações que podem ajudar na elaboração de diagnósticos e
tratamentos cuidadosos para os transtornos mentais. (APA, 2013, p. xi. Tradução
nossa80).

80
“DSM is intended to serve as a practical, functional, and flexible guide for organizing information that can aid
in the accurate diagnosis and treatment of mental disorders”.
147

O primeiro DSM, publicado em 1952, buscou congregar em um único modelo as


diferentes classificações até então usadas nos hospitais dos Estados Unidos, sendo ele
considerado mais confiável, pois fundamentado no saber científico e clínico em voga no país:
a psicobiologia81. Esse propósito estendeu-se à revisão de 1968 (o DSM-II), apresentada,
porém, como ainda mais objetiva do que a versão anterior. Sem abandonar o viés
psicodinâmico característico do DSM-I, a segunda edição assimilou as perspectivas biológicas
e os conceitos do sistema de Kraepelin82 a fim de esclarecer o limite entre a condição psíquica
normal e a patológica (DUNKER; KYRILLOS NETO, 2011, p. 614).
Introduziu-se no DSM-II a categoria Reação Hipercinética da Infância, alocada no
grupo dos distúrbios comportamentais da infância e da adolescência. Tal condição definia-se
pela manifestação de agitação, desassossego, distração e curto período de atenção
especialmente em crianças pequenas, sintomas esses que diminuíam na adolescência. A
circunscrição dessa categoria clínica à infância possibilitou, de acordo com Bautheney (2011),
o surgimento de especialidades tais como a psicopedagogia e a psicomotricidade, que
articularam psiquiatria, psicologia e pedagogia visando à produção de conhecimento e
técnicas de intervenção no corpo infantil.
Foi na década de 1980, com o lançamento do DSM-III, que se criou a primeira
seção do manual dedicada exclusivamente às patologias infantis e adolescentes. Nela se
incluiu a categoria mais próxima do chamado TDAH: o Distúrbio de Déficit de Atenção
(DDA), caracterizado essencialmente pelo desenvolvimento inapropriado da atenção e da
impulsividade. A hiperatividade era ainda um subproduto do transtorno. Cabe mencionar que
se estudava correlativamente a Disfunção Cerebral Mínima (DCM), uma disfunção
neurológica evidenciada por sinais de incoordenação motora, hiperatividade, movimentos
involuntários, distúrbios de fala, dificuldades perceptivas e problemas comportamentais,
manifestados por escolares com inteligência normal (LEFÈVRE et al., 1983).

81
A psicobiologia tinha Adolf Meyer como principal inspiração. Ele propunha um ponto de vista dinâmico para
a análise das perturbações psíquicas da personalidade individual, sendo esta proveniente da integração entre
forças biológicas, psicológicas, sociais e ambientais. Assim, a abordagem biográfica permitiria obter
informações sobre o desenvolvimento da personalidade, propor um diagnóstico e um tratamento e possibilitar ao
paciente a própria compreensão sobre si e o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento. Tudo isso a partir
da linguagem do paciente e sem a utilização desmedida de jargões médicos (DUNKER; KYRILOS NETO,
2011).
82
O psiquiatra alemão Emil Kraepelin elaborou no final do século XIX uma classificação das doenças mentais
fundamental ao desenvolvimento da psiquiatria moderna. Segundo o pressuposto por ele defendido, a nosologia
psicopatológica se ocuparia de entidades mórbidas que apresentavam histórias naturais e desfechos clínicos
semelhantes. Nesse sentido, a experiência e a observação objetiva baseavam seu método, excluindo as
interpretações dos pacientes. Tal sistema introduziu o conceito de demência precoce (PEREIRA, 2001).
148

O DSM-III (APA, 1980) representou uma ruptura paradigmática em relação à


vertente psicanalítica marcante nas versões anteriores do manual. A influência dos princípios
psicanalíticos na psiquiatria estadunidense abalou-se na década de 1960, quando do
questionamento da prática da APA por outros representantes do campo médico no país83
devido ao distanciamento da psiquiatria em relação à medicina tradicional. Perdendo sua
credibilidade no meio, os procedimentos psicanalíticos sofreram com o corte gradual do
repasse de verbas públicas para pesquisas e de coberturas por parte das seguradoras de saúde
(DERBLI, 2011).
No cenário que se constituía, os embates no campo do saber psiquiátrico
coexistiam com as ações de movimentos sociais, de um lado, e empresas, de outro, ambos
empenhados em defrontar as propostas controversas que mobilizavam a construção do DSM
de viés psicodinâmico. Exemplos bastante mencionados por estudiosos são os protestos
públicos organizados por ativistas da causa homossexual. Eles reivindicavam a exclusão de
categorias estigmatizantes até então vigentes no manual, como o “homossexualismo” definido
enquanto um distúrbio mental. No caso das empresas, a indústria farmacêutica defendia uma
rigorosa definição dos transtornos mentais a fim de que tratamentos medicamentosos mais
eficazes fossem aprovados pelo governo estadunidense e reembolsados pelas seguradoras de
saúde do país (KUTCHINS; KIRK, 1997). Tal demanda ia ao encontro do fenômeno de
desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos e do fechamento gradual de manicômios —
frutos da Reforma Psiquiátrica que, iniciada na Itália por Franco Basaglia nos anos 1970,
alcançou diferentes países, como os Estados Unidos, a França e o Brasil. Um novo público se
formava, na visão dos laboratórios. Diante do desuso gradativo de práticas invasivas, os
medicamentos apresentavam-se como uma aposta para a rápida recuperação dos pacientes
acometidos por transtornos mentais, garantindo sua reinserção social.
O DSM-III resultou desse conjunto de pressões sobre a associação e de interesses
políticos e econômicos, bem como de uma nova proposta explicativa, advinda de saberes e
tecnologias que impactaram na pesquisa e na clínica psiquiátrica na segunda metade do século
XX, sobretudo nos Estados Unidos. Ela se inscrevia em um modelo biológico utilizado na
definição e no tratamento das doenças mentais conforme o sistema nosográfico kraepeliniano.

83
Segundo Singh (2007), o psiquiatra estadunidense Leo Kanner somou-se ao grupo de profissionais que
questionaram a validade da psicanálise no campo da psiquiatria. Ele foi mentor de Leon Eisenberg, psiquiatra
estadunidense responsável, na década de 1960, pelos primeiros testes acerca da eficácia da Ritalina® no controle
da agitação extrema das crianças com disfunção cerebral mínima.
149

Vinculava-se igualmente ao desenvolvimento da psicofarmacologia84, do campo


neurocientífico e de suas tecnologias de imagem cerebral, ao crescimento da pesquisa
epidemiológica baseada nos estudos populacionais de riscos individuais, ao aprimoramento de
tecnologias genéticas, biofísicas e bioquímicas e à influência da biologia molecular
(CALIMAN, 2006, p. 80). Em decorrência dessa conformação, no DSM-III as disfunções
apresentavam-se por meio de critérios descritivos que enfatizavam os sintomas observáveis e
controlados por medicamentos (DERBLI, 2011). Tratava-se, portanto, de um modelo
biomédico alinhado ao funcionalismo e ao pragmatismo.
A concentração de intelectuais e profissionais ligados a uma nova vertente
psiquiátrica (incluindo os estudiosos da disfunção cerebral mínima, como o médico Paul
Wender) em forças tarefas de construção de categorias diagnósticas teve, nesse sentido,
importância significativa na publicação da terceira edição do manual e em sua adoção pela
psiquiatria estadunidense (e depois pela psiquiatria de outros países, como o Brasil). Esses
especialistas expoentes consentiram em suprimir do DSM-III os termos “reação” e “neurose”
e, para fundamentar a especificidade do manual, em substituir a noção de “doença mental”
pela de “transtorno mental”. Um grande número de classificações de desordem foi então
criado e incorporado ao compêndio de forma descritiva e sem suposições etiológicas
(DUNKER; KYRILLOS NETO, 2011). Essas classificações derivavam de um consenso
técnico e político cujo propósito era construir categorias confiáveis, válidas e padronizadas
(isto é, compatíveis com diferentes tipos de procedimento clínico), capazes de acessar a
verdade sobre as patologias mentais.
Concebeu-se, por conseguinte, um novo paradigma fundado nas representações do
corpo como um bem supremo e da saúde como um ideal supremo (BIRMAN, 2012),
submetidas aos discursos instrumentalizados e focados nos registros do mal-estar no corpo e
na ação individual. Impossibilitava-se qualquer tipo de simbolização por parte do indivíduo
ou de resolução de problemas e conflitos por intermédio da imaginação ou do pensamento.
Como consequência, a psicanálise e a psiquiatria se distinguiram efetivamente. À medida que
a primeira dedicava-se ao sofrimento pautado no conflito psíquico originado pelas pulsões e
interdições, a segunda filiou-se às neurociências e assumiu aquelas representações
correspondentes às novas formas de apreender as intensidades e prejuízos das manifestações

84
Descobriu-se, na década de 1950, que os efeitos calmantes da droga clorpromazina assemelhavam-se à ação da
lobotomia, um procedimento cirúrgico até então utilizado no cérebro de pacientes severamente acometidos por
doenças mentais como a esquizofrenia. Tal descoberta significou uma revolução na psiquiatria, pois a
intervenção psicofarmacológica viria a substituir os procedimentos invasivos (como a lobotomia) e os
instrumentos restritivos (tal como a camisa de força) no tratamento psiquiátrico.
150

corporais sintomáticas que, desconectadas de sua essência, passaram a delimitar a noção de


transtorno mental.
Sobre o transtorno mental, lê-se no DSM-III:

Embora este manual forneça uma classificação de transtornos mentais, não há uma
definição satisfatória que especifica limites precisos para o conceito de “transtorno
mental” (o que também é verdadeiro para conceitos como transtorno físico e saúde
mental e física). Entretanto, é útil apresentar conceitos que influenciaram a decisão
de incluir certas condições no DSM-III enquanto transtornos mentais e excluir
outras. No DSM-III, cada um dos transtornos mentais é conceitualizado como uma
síndrome ou como um padrão comportamental ou psicológico clinicamente
significante que se manifesta em um indivíduo e que é tipicamente associado tanto a
um sintoma doloroso (sofrimento) quanto a um prejuízo em uma ou mais áreas
importantes do funcionamento (incapacidade/deficiência). Além disso, há uma
inferência de que existe uma disfunção comportamental, psicológica ou biológica e
de que o distúrbio não se remete unicamente a uma relação entre indivíduo e
sociedade — quando o distúrbio é limitado a um conflito entre um indivíduo e a
sociedade, deve-se representar tal relação como um desvio social, que pode ou não
ser representativo, mas que não é por si só um transtorno mental. (APA, 1980, p. 6.
Grifos nossos. Tradução nossa85).
Um médico psiquiatra atuante em um ambulatório infantil universitário,
localizado na cidade de Campinas e visitado durante outra pesquisa, contextualizou a adoção
dessa noção:

Até a década de 80, na denominação se usava doença mental. Aí, os comitês de


psiquiatras, a Comissão Mundial de Psiquiatria, a Organização Mundial da Saúde, a
Associação Americana de Psiquiatria, eles falaram assim: a ideia, a noção de doença
para as condições psiquiátricas, mentais, ela é uma noção extremamente médica, e
doença, ela inclui, ela implica quase que uma alteração do corpo, uma alteração
anatômica, patológica e tal. No caso das condições psiquiátricas, você não tem... é...
identificado, não tem claro, essa alteração... numa parte do corpo, no tecido cerebral.
Então, o conceito de doença, ele é muito biomédico, porque a ideia de transtorno,
quer dizer, é algo... é uma noção um pouco mais frouxa, no sentido de que é algo
que não está funcionando bem, algo que não está indo bem, há um sofrimento, há
um sofrimento por parte da criança, por parte do adulto, né, aí, é... há esse
sofrimento independente de você ter uma base anatômica, fisiológica clara, por isso
que surgiu a ideia de transtorno no lugar de doença mental [...]. (Médico psiquiatra
de um ambulatório infantil universitário. Entrevista concedida em 08 abr. 2010.
Grifos nossos). (BARBARINI, 2011, p. 67).
Como se observa no trecho de entrevista, a noção de transtorno mental emergiu
com a finalidade de diferenciar uma condição de sofrimento psíquico e social de outra
biomédica, fundamentada em uma (clara) base orgânica, fisiológica, anatômica. No entanto,
85
“Although this manual provides a classification of mental disorders, there is no satisfactory definition that
specifies precise boundaries for the concept "mental disorder" (also true for such concepts as physical disorder
and mental and physical health). Nevertheless, it is useful to present concepts that have influenced the decision
to include certain conditions in DSM-III as mental disorders and to exclude others. In DSM-III each of the
mental disorders is conceptualized as a clinically significant behavioral or psychological syndrome or pattern
that occurs in an individual and that is typically associated with either a painful symptom (distress) or
impairment in one or more important areas of functioning (disability). In addition, there is an inference that there
is a behavioral, psychological, or biological dysfunction, and that the disturbance is not only in the relationship
between the individual and society. (When the disturbance is limited to a conflict between an individual and
society, this may represent social deviance, which may or may not be commendable, but is not by itself a mental
disorder)”.
151

não se trata do mesmo sofrimento abordado pelas vertentes psicanalíticas (o conflito psíquico
gerado por pulsões e interdições, como indicou Birman), mas sim de um sofrimento causado
por reações sociais a determinados comportamentos disformes em relação a normas
socialmente instituídas. Assim, por ser uma noção “mais frouxa”, sem “uma definição
satisfatória que especifica limites precisos para o conceito”, o transtorno mental permite uma
maior abrangência das estratégias de intervenção psiquiátrica. Prejuízo é sua pedra de toque.
O Distúrbio de Déficit de Atenção apresentou-se como um transtorno explicitado
pela inadequação comportamental (desatenção e impulsividade) a um padrão de
desenvolvimento (o que alude às discussões feitas nos capítulos anteriores e evidencia a
relevância primordial dos modelos pedagógicos e das representações sociais acerca do
desenvolvimento infantil) e, por conseguinte, pelos prejuízos sociais causados por tal
inadequação. Lê-se no item “prejuízo” da descrição do DDA: “dificuldades acadêmicas são
comuns; e embora o prejuízo possa estar limitado ao funcionamento acadêmico, o
funcionamento social também pode ser afetado” (APA, 1980, p. 42).
Já no DSM-III-R (APA, 1987), a hiperatividade entrou no grupo sintomático
principal, promovendo a mudança do nome da categoria de DDA (Distúrbio do Déficit de
Atenção, com ou sem Hiperatividade) para TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção e
Hiperatividade). A incorporação da hiperatividade — definida nessa edição do manual como
um sintoma externalizante disruptivo em espaços sociais — à sintomatologia da categoria
clínica em questão evidenciou seu caráter social. Nesse sentido, a complicação preponderante
que o transtorno poderia gerar, segundo o manual, era o fracasso escolar. Isso reafirma as
relações e exigências sociais e os modelos psicopedagógicos mobilizados pela escola —
incluindo as teses das deficiências culturais — como a peça-chave do TDAH e de seus
correlatos.
Portanto, “algo não está funcionando bem” (nas palavras do médico psiquiatra
entrevistado) e não o está no plano social. A ausência de uma base orgânica e fisiológica
permite intervir em um domínio muito mais amplo do que o corpo humano, embora a
intervenção se faça por meio dele. A permeabilidade do complexo mecanismo que se forma
com o DSM torna-se ainda mais viável a partir das mudanças desencadeadas pelo processo de
transformação do compêndio — e sua concepção de transtorno mental — e do TDAH,
associadas à dicotomia normal versus patológico. Na mais recente edição do manual (o DSM-
V), a noção de transtorno mental é definida como

uma síndrome caracterizada por uma perturbação clinicamente significante da


cognição, da regulação emocional e do comportamento de um indivíduo que reflete
152

uma disfunção nos processos psicológico, biológico ou de desenvolvimento


subjacentes ao funcionamento mental. Transtornos mentais estão comumente
associados ao sofrimento ou à incapacidade referentes a atividades sociais ou
profissionais, entre outras igualmente importantes. Uma resposta esperada ou
culturalmente aprovada a um fator estressante comum ou a uma perda, como a morte
de um ente querido, não é um transtorno mental. Comportamentos socialmente
desviantes (por exemplo, político, religioso ou sexual) e conflitos entre indivíduo e
sociedade não são transtornos mentais, a menos que o desvio ou o conflito resulte de
uma disfunção individual. (APA, 2013, p. 20. Grifos nossos. Tradução nossa86).
Comparadas as concepções de transtorno mental propostas pelo DSM-III (1980) e
pelo DSM-V (2013), nota-se que a descrição do conceito se refina. Retira-se a menção à
deficiência para inserir o prejuízo às atividades sociais e profissionais como fator causado
pela manifestação de um transtorno. Redefine-se a “síndrome ou [...] padrão comportamental
ou psicológico clinicamente significante” como “uma síndrome caracterizada por uma
perturbação clinicamente significante da cognição, da regulação emocional e do
comportamento de um indivíduo” e acrescenta-se à “disfunção comportamental, psicológica
ou biológica” o “desenvolvimento subjacente(s) ao funcionamento mental”. Intensifica-se,
finalmente, a ideia de que a disfunção correspondente aos transtornos mentais refere-se mais à
presença de um mal-estar, um sofrimento ou uma vulnerabilidade do que a uma patologia
propriamente dita. Isso condiz com a definição da saúde, promulgada pela Organização
Mundial da Saúde, como o pleno bem-estar físico, mental e social (e não como a mera
ausência de doença).

Ele [o TDAH] é patológico no sentido pathos, de sofrer, de trazer um não sentir-se


bem. Agora, não é necessariamente nosológico, porque não necessariamente você
vai encontrar um substrato orgânico, estrutural que determine aquilo [...]. (Médico
psiquiatra de um ambulatório infantil universitário. Entrevista concedida em 28 out.
2009). (BARBARINI, 2011, p. 106).
Essa definição imprecisa articula o patológico (delineado enquanto sofrimento) e
o prejuízo (algo que afeta as capacidades máximas do indivíduo em termos de desempenhos
sociais, acadêmicos e cognitivos e de bem-estar), colocando em questão, contudo, a base
cerebral enfatizada, posteriormente, pelo DSM-V (“não há necessariamente um substrato
orgânico e estrutural”). A inexatidão da etiologia do TDAH é um assunto polêmico na
psiquiatria. E por assim ser, mobiliza, por um lado, investidas acerca da compreensão do
funcionamento cerebral e da busca pelos mecanismos específicos de tal transtorno (como se

86
“A mental disorder is a syndrome characterized by clinically significant disturbance in an individual’s
cognition, emotion regulation, or behavior that reflects a dysfunction in the psychological, biological, or
developmental processes underlying mental functioning. Mental disorders are usually associated with significant
distress or disability in social, occupational, or other important activities. An expectable or culturally approved
response to a common stressor or loss, such as the death of a loved one, is not a mental disorder. Socially deviant
behavior (e.g., political, religious, or sexual) and conflicts that are primarily between the individual and society
are not mental disorders unless the deviance or conflict results from a dysfunction in the individual, as described
above”.
153

discutirá ainda neste capítulo). Por outro lado, tal incerteza permite privilegiar os efeitos das
manifestações sintomáticas. E é nesse plano mais imediato em que se articulam transtorno,
deficiência e diferença, fundados no princípio do sofrimento patológico causado por um
déficit, cerebral e/ou social. Também é nesse âmbito que a fluidez dessas concepções se
intensifica e, paradoxalmente, consolida a validade das categorias clínicas. Tal fluidez
corresponde a uma flexibilização dos limites distintivos do normal e do patológico, bem como
à redefinição da categoria como sendo universal.
Exemplo dessa realidade é a confusão entre “hiperatividade” e “agitação”,
analisada no segundo capítulo. A inexistência de limites bem definidos para a apreensão do
transtorno e de seus sintomas viabiliza a identificação de um grande número de pessoas como
portadoras, tais como as crianças de três anos de idades, crianças em fase escolar,
adolescentes e até mesmo adultos. Ademais, como se desconhecem critérios externos para o
diagnóstico da disfunção (tais como os resultados conclusivos de exames de neuroimagem ou
os biomarcadores), a avaliação clínica decorre exclusivamente dos preceitos contidos na
própria definição do TDAH contida no DSM.
O handicap, conceito importante à atual psiquiatria francesa, evidencia de modo
relevante a relação entre transtorno e diferença. Correntemente associada a condições de
deficiência ou incapacidade, a noção de handicap consolidou-se em decorrência da
desinstitucionalização de pacientes mentais e da reformulação da questão da criança
inadaptada, assistida em classes escolares de aperfeiçoamento87. Devendo ser reintegrados à
sociedade (às famílias, aos serviços de saúde e ao trabalho no caso dos doentes mentais, e às
classes normais, no caso das crianças), esses indivíduos tiveram modificado o estatuto de sua
condição: da doença que portam vista como um obstáculo a todas as formas de participação
social para uma condição particular sujeita a direitos e compensações especiais (VILLE,
2014).
Diferentes leis firmaram-se em torno da nova problemática, sem, no entanto,
definir consistentemente o conceito no qual se ancoravam. Predominava o ideal de superar um
estado físico ou mental prejudicial a fim de se alcançar um estado de bem-estar completo, o

87
O processo de desinstitucionalização ocorrido na França a partir dos anos 1950 resultou na setorização
sanitária e psiquiátrica (HENCKES, 2009a; 2009b; 2013), um sistema de recorte geo-demográfico em setores de
distribuição de profissionais, serviços e instituições de assistência. A criação de dispositivos de assistência
médica, psicológica e, em alguns casos, pedagógica, também derivou desse processo, associada à emergência do
conceito ainda indefinido de handicap e das leis consagradas às pessoas com deficiências (HENCKES, 2013;
VILLE, 2014). Exemplos desses dispositivos são os centros médico-psicológicos (centres médico-
psychologiques – CMP), geridos por hospitais públicos, e os centros médico-psico-pegadógicos (centres médico-
psycho-pédagogiques – CMPP), construídos a partir da vigência de políticas públicas voltadas à infância
inadaptada e administrados por associações privadas sem fins lucrativos.
154

que inclui uma adequada socialização. A lei francesa de 11 de fevereiro de 2005 — a mais
recente no campo da deficiência no país — ampliou a circunscrição do conceito de handicap
ao relacioná-lo à compensação de necessidades particulares. Podendo tratar-se de um déficit
cerebral, psicológico ou corporalmente determinado, o handicap (e sua relação entre
disfunção e diferença) abrange um grande número de condições88, inclusive o TDAH,
definido pela associação HyperSupers (similar à Associação Brasileira do Déficit de Atenção)
como um déficit cognitivo (handicap cognitif)89.
Déficit cognitivo e transtorno mental edificam, assim, a busca pelo fundamento
cerebral das condições psiquiátricas. Uma busca pautada na premissa de que, não havendo
uma cura, é necessário trabalhar sobre a prevenção, o diagnóstico e o tratamento precoces. No
caso do TDAH, isso significa que, apesar de se lidar com uma condição crônica (a lifespan
condition), ela deve ser tratada. E quanto antes ela o for, melhor. Mas o tratamento não
incidirá sobre uma patologia ou uma doença, e sim em uma diferença desvantajosa (RAMOS,
2014). Vale lembrar que também no âmbito escolar a questão da anormalidade/patologia
transforma-se em diferença (diferentes ritmos e necessidades de aprendizagem), conforme as
análises feitas nos capítulos precedentes.

A criança que a gente chama de hiperativa, não é que ela é doente e que ela é
anormal por conta disso, mas acontece que por características pessoais dela, por um
motivo ou outro, ela tem uma tendência a não, tão rápido quanto às outras crianças,
parar e prestar atenção (Médico psiquiatra de um ambulatório infantil universitário.
Entrevista concedida em 28 out. 2009. Grifos nossos). (BARBARINI, 2011, p. 109).
A incapacidade de “parar e prestar atenção tão rápido quanto às outras
crianças” é um comportamento desvantajoso dentro da escola, onde crianças de uma mesma
faixa etária são expostas a exigências sociais e escolares similares. E essa incapacidade advém
de “características pessoais”, ou seja, de uma diferença neurológica e neuroquímica, se
adotarmos o vocabulário das neurociências, ou mesmo de uma diferença entendida como
desvio de um padrão sem que se desloque da circunscrição da normalidade (por exemplo, a
criança hiperativa e desatenta apresenta inteligência normal). Trata-se, assim, de uma
diferença desvantajosa que designa um indivíduo portador de TDAH, a quem se destinarão
estratégias médico-psicológicas e psicopedagógicas específicas. Esse indivíduo é afligido por
uma condição patológica porque esta o faz sofrer de modo global, isto é, com repercussão em
todos os âmbitos de sua vida (corporal/cerebral, psicológico, social, familiar).

88
O handicap, por sua indefinição, dificulta a qualificação e avaliação das condições de sofrimento pelas
políticas públicas, mas também permite a existência de um grande complexo de dispositivos institucionais
(HENCKES, 2013, p. 18).
89
Disponível em: <http://www.tdah-france.fr/?lang=fr>. Acesso em: 16 jan. 2016.
155

Em outras palavras, a correlação entre TDAH, prejuízo, sofrimento e diferença


propicia o vínculo entre saberes e modos interventivos no âmbito da existência humana,
incluindo desde abordagens médicas e pedagógicas até aparatos jurídicos. Ponderando sobre a
terapia comportamental (bastante usual nos dias de hoje, inclusive no tratamento do TDAH),
Castel (2011, p. 112) afirma que sua prática não se pauta na procura da etiologia dos
transtornos ou deficiências, tampouco se restringe à esfera do patológico. Seu objeto é a
diferença em relação às normas de condutas. Essa diferença deve ser tratada, pois é vista
como incômoda, intolerável ou intolerada, inaceitável ou não aceita pela sociedade ou pelo
próprio indivíduo. Nesse sentido, aquela correlação enseja algo mais: o transtorno-diferença
receberá um tratamento específico, bem como medidas compensatórias particulares. Daí a
questão da intervenção como direito, em suas diferentes manifestações.
Essas sutis modificações representam também um importante intercâmbio: da
transição entre psicanálise e psiquiatria biomédica para a passagem desta às neurociências,
fundadas em um modelo cognitivo caracterizado pela articulação cérebro-mente-sociedade
(EHRENBERG, 2004a; 2014). Ao mesmo tempo em que se circunscreve a disfunção aos
mecanismos cerebrais, expandem-se seus efeitos (os prejuízos) para as relações sociais
(desempenho social, escolar e profissional do indivíduo inserido em uma sociedade). Dito de
outra forma, o mal-estar, a perturbação das competências, habilidades e comportamentos
individuais e as vulnerabilidades advêm, segundo essa perspectiva, de uma disfunção
cerebral.

O cérebro como motor da vida humana

Em 1848, o operário Phineas Gage foi ferido por uma barra de ferro que, em
decorrência de uma explosão, perfurou e se alojou em seu crânio, atingindo o lobo frontal
esquerdo do cérebro (ANDREASEN, 2005; DAMASIO, 2010). Gage sobreviveu ao acidente,
porém passou a manifestar comportamentos incomuns. De uma pessoa emocionalmente
controlada, começou dar provas de instabilidade em sua conduta social, tais como a rejeição
das convenções sociais, a imoralidade de suas ações, a tomada de decisões irracionais e a
despreocupação com seu futuro, ou uma incapacidade de prever os efeitos de seus
comportamentos. Ele faleceu em 1861, entretanto, seu cérebro foi conservado por técnicas
especiais que permitiram estudar, na década de 1990, as lesões cerebrais causadas pelo
acidente.
156

Baseando-se em estudos neurológicos de pacientes cuja conduta social havia sido


alterada por uma lesão cerebral no lobo frontal, incluindo o caso de Phineas Gage, Damasio
(2010) encontrou uma relação entre a capacidade individual de exprimir e de sentir emoções e
a manifestação de comportamentos racionais. Identificou que certas lesões cerebrais
originavam distúrbios nessas habilidades fundamentais à escolha do “bom caminho”, o
indicador dos princípios corretos da lógica que levam a uma adequada tomada de decisões.
Estabelecia-se a hipótese de que uma determinada região do cérebro humano fosse
responsável pela realização das condutas sociais normais (DAMASIO, 2010, p. 34) ou, em
outras palavras, que o sentir e agir individual no mundo orienta-se por mecanismos cerebrais.
O autor demonstra, portanto, que o problema subjacente ao caso Gage extrapola o
do entendimento das funções executivas cerebrais. Ele é importante ao mapeamento dos
elementos e mecanismos de funcionamento do cérebro, porém, o estudo do aspecto
neurológico da emoção e de suas implicações no comportamento social e nas faculdades
racionais de tomada de decisões possibilita uma compreensão geral do espírito humano,
materializado na ligação — apontada por Ehrenberg (2004a; 2014) — entre cérebro
(mecanismos cerebrais e cognitivos), mente (alma, espírito, emoções) e sociedade (fenômenos
socioculturais) ou, nas palavras de Damasio (2010, p. vi), “os fios que religam a
neurobiologia à cultura”.
O erro de Descartes — expressão que dá nome ao livro de Damasio — seria
aquele de separar categoricamente o corpo (feito de matéria e dotado de dimensões e
mecanismos) e o espírito (imaterial e privado de estrutura), bem como o de sugerir a
existência da razão e do julgamento moral independentemente do corpo. Formula-se, assim,
um novo modelo cerebral-cognitivo arquitetado sobre a concepção de um “indivíduo global”
a partir da desconstrução de dicotomias. Seguindo essa acepção, Andreasen (2005) considera
que a compreensão das doenças mentais pressupõe o entendimento do mundo de forma
complexa e sem limites divisórios arbitrários, tais como corpo versus cérebro, mente versus
cérebro, fármacos versus psicoterapia e genes versus ambiente. O que a autora propõe é a
efetivação de uma nova visão de mundo cientificamente embasada. Se Foucault encontrou, no
século XIX, uma classificação da realidade em termos dicotômicos, fundamentada no normal
e no patológico, hoje se preconiza um paradigma que elimina esse tipo de classificação e
emprega outra mais complexa, segundo a qual todos os elementos da realidade aglutinam-se e
colocam-se sob a mirada técnica, tecnológica e científica.
Esse novo paradigma provoca reflexos em diferentes direções. No campo das
emoções, estudos brasileiros em psicologia e em neurociências têm se dedicado à redefinição
157

da emoção como objeto científico e de mercado centrado na noção de bem-estar individual e


coletivo. É o caso de um projeto recentemente aprovado visando à criação de um centro de
pesquisa na Universidade de São Paulo, que contará com investimentos de uma agência
pública de fomento à pesquisa e de uma empresa privada. Objetiva-se “criar uma base de
conhecimento capaz de avaliar e promover bem-estar, integrando campos de conhecimento
como a neurociência, a etologia, a psicologia social e a psicologia positiva, que estuda
emoções como a felicidade e o prazer, além das ciências da saúde, humanas e sociais
aplicadas” (MARQUES, 2015, p. 40).
São quatro os eixos de trabalho propostos pelo projeto. Primeiramente, trata-se da
avaliação de bem-estar na população brasileira por meio de estudos epidemiológicos e de
coorte e do desenvolvimento de novos indicadores avaliativos (“criar critérios para avaliar as
sensações subjetivas associadas ao bem-estar com indicadores objetivos”). O estudo da
expressão emocional e do reconhecimento das emoções por meio de protocolos de observação
de comportamentos e de respostas a odores constitui o segundo passo. O terceiro engloba
estudos clínicos e experimentais sobre a autorregulação emocional (as medidas
neurofisiológicas de afeto). Finalmente, propõe-se como grande objetivo do projeto a
realização de intervenções direcionadas à estimulação da autorregulação emocional e à
promoção do bem-estar subjetivo, das habilidades sociais de crianças e adultos e da
resiliência.
Cria-se, assim, uma possibilidade fazer confluir diversos campos de conhecimento
(a neurociência, a etologia, a psicologia social e a psicologia positiva, as ciências da saúde,
humanas e sociais aplicadas) a um ponto comum: a produção de bem-estar e formas de
governo de si orientada a finalidades específicas. Esse é um projeto (de sociedade) fundado no
desejo de construção de um modelo objetivo responsável pela “educação” do indivíduo,
habilitado à gestão emocional visando ao bem-estar, noção indefinida e que, por isso, permite
intervenções variadas, talvez até mesmo ilimitadas, e que incluem a exploração
mercadológica.
Rabinow (2002) afirmou, no início da década de 1990, que em uma racionalidade
pós-disciplinar, corpo e população são rearticulados por novos discursos e novas práticas de
biopoder. Sua análise enfatiza o DNA e a possibilidade de se criar seres sem forma
aperfeiçoada e transparente, bem como articular forças capazes de remodelar os modos de
viver. Nota-se que a gestão emocional e comportamental também se insere nessa realidade,
pois vincula novos discursos de verdade, práticas interventivas e modos de gestão e produção
identitária. Deleuze (2011) já havia proposto, anos antes, que vivemos em uma configuração
158

social e de saberes em que a finitude da forma-homem (o termo da vida delimitada pela


morte, do trabalho pela fadiga, da linguagem pela afasia) reconfigura-se como uma “situação
de força em que um número finito de componentes produz uma diversidade praticamente
ilimitada de combinações” (DELEUZE, 2011, p. 141), uma forma de “super-homem”, “nem
Deus, nem homem”. Nesse sentido, elementos limitados, embora incontáveis, como os
neurônios, podem gerar combinações indeterminadas (modos de comportamento, de emoções,
de identidades90) em nome da saúde e do bem-estar, noções essas também finitas, porque
indefinidas.
Se uma analogia é possível, o TDAH — na “finitude” de suas delimitações e
definições propostas pelo DSM, por exemplo, e, ao mesmo tempo, na indefinição e
abrangência dos limites e transformações da categoria — organiza novas forças que visam a
produzir um “super-homem” possuidor de saúde e bem-estar plenos, controlado
emocionalmente, empreendedor, capaz de agir e tomar decisões por si mesmo. Uma imagem
ideal à qual todos os indivíduos devem se adaptar desde seus primeiros anos de vida. Para que
a adaptação seja viável, desenvolvem-se técnicas e instrumentos de intervenção e de
educação. Quando ela não é possível, propõem-se terapias de modificação comportamental,
medicamentos psicotrópicos e categorias diagnósticas, que enquadram o indivíduo, definem-
no e possibilitam uma ação precisa e centrada em uma espécie de governo de si, orientado por
“técnicas de si por meio das quais os seres humanos devem julgar e atuar sobre eles mesmos
para tornarem-se melhores do que já são” (ROSE, 2007, p. 27). Identifica-se, portanto, certa
lógica do pensamento médico-psicológico que, atualmente, estrutura formas científicas de
intervir e modos sociais de agir.
Assim, outra direção na qual o novo modelo cognitivo-cerebral se reflete abarca
novas relações entre o capital humano infantil e as oportunidades de trabalho futuras. Esping-
Andersen (2002) afirma que as famílias contemporâneas — com destaque àquelas vivendo em
países desenvolvidos e beneficiados por um Estado de bem-estar social — polarizam-se entre
as que possuem, em suas palavras, bons recursos econômicos e culturais e as que dispõem de
recursos precários e que, consequentemente, não podem realizar investimentos parentais e
sociais importantes na infância. Em decorrência disso, um número cada vez maior de crianças
e jovens apresenta baixas qualificações formais e habilidades cognitivas e sociais, essenciais
às sociedades ancoradas na aquisição de conhecimento como motor econômico. Dito de outro

90
Sobre o cérebro enquanto ator social, sugiro a leitura dos trabalhos de Fernando Vidal acerca do tema do
sujeito cerebral. Em relação à produção de identidades fundamentadas no funcionamento cerebral, Francisco
Ortega aprofunda o tema do movimento da neurodiversidade.
159

modo, em razão da falta de investimento parental e estatal em algumas parcelas da população,


as crianças desfavorecidas herdam habilidades cognitivas e sociais precárias, o que as coloca
em um contexto de desigualdade cognitiva e de impossibilidade de romper o círculo vicioso
da pobreza econômica, social e cultural e da exclusão permanente.
O autor conclui que essa situação pode ser modificada pela educação formal,
responsável pelo desenvolvimento de competências e habilidades apropriadas, mas,
sobretudo, por meio do investimento em habilidades cognitivas que garantam o sucesso
escolar. Aliados aos componentes genéticos dessas habilidades, os bons fatores ambientais
seriam capazes, nessa ótica, de promover tal transformação. Entre as competências e
habilidades a ser desenvolvidas, elencam-se a comunicação, a iniciativa, a memória, a
resolução de problemas, a motricidade e a capacidade analítica. Para tanto, seria igualmente
necessário intervir precocemente na família por meio de investimentos na saúde, na pobreza,
na educação infantil e nas possibilidades de trabalho para as mães91.
As considerações de Esping-Andersen permitem retomar aqui a construção da
necessidade de intervenção nos corpos infantis, bem como nas instituições e grupos
responsáveis por sua adequada socialização, principalmente a escola e a família, a partir da
problemática das competências cognitivas. De um lado, há os fatores evocados pelo autor: a
ação em pontos nevrálgicos da assistência e do cuidado com as crianças, com transtornos ou
não, visa a garantir os bons desempenhos e a autonomia infantis e evitar os riscos sociais
potenciais. De outro lado, essa intervenção — que objetiva garantir também os bons
desempenhos de pais e professores — assume diferentes formas e instrumentos, tais como os
conselhos profissionais, as políticas públicas, as abordagens psicológicas comportamentais e
suas técnicas de reforço dos comportamentos ajustados, os medicamentos ou ainda as
perspectivas neurocientíficas. Intervenção especializada associa-se, assim, ao investimento
parental, escolar e governamental, fundamentais à promoção de recursos para que a criança
constitua-se como sujeito.
A definição do TDAH orienta-se por essas múltiplas variáveis. Gonon, Guilé e
Cohen (2010), já citados nesta tese, mobilizam hipóteses etiológicas pautadas tanto nos
efeitos psicofarmacológicos no funcionamento de neurotransmissores quanto em fatores
genéticos ou familiares/ambientais. Nessa acepção, resgatam-se os riscos sociais como fatores
igualmente importantes. Além dos rendimentos escolares (incluindo a repetência e as

91
“Uma abordagem que combata a privação na infância deve, portanto, seguir uma estratégia combinada que: a)
assegure uma renda familiar adequada, b) ajude a enfraquecer o impacto direto dos pais no desenvolvimento
cognitivo das crianças e c) melhore o ambiente de trabalho das mães empregadas”. (ESPING-ANDERSEN,
2002, p. 56).
160

advertências ou expulsões) e das dificuldades em se relacionar — condições que aludem às


defasagens reportadas tanto por Esping-Andersen quanto por Damasio —, o TDAH pode
desencadear quadros de depressão ou condutas delinquentes. Esse cenário, já desenhado pela
definição encontrada na página eletrônica do projeto ProDAH, firma-se no DSM enquanto
consequência funcional do TDAH, bem como em Russell Barkley (ROHDE; HALPERN,
2004) — médico estadunidense cujos estudos acerca desse transtorno, iniciados na década de
1990, articulam-no à psicopatologia infantil, à psicologia do desenvolvimento, às teorias
biológicas sobre a evolução humana e animal, ao papel da linguagem no processo de
autocontrole do comportamento e ao conceito neuropsicológico de funções executivas
(CALIMAN, 2006). Em última análise, Barkley construiu uma categoria clínica (o TDAH) no
ponto de convergência entre o cérebro, a mente e a sociedade, aos moldes do projeto
delimitado por Damasio.
As normas de conduta são imprescindíveis à definição do TDAH, haja vista sua
tríade sintomática (desatenção, hiperatividade e impulsividade) estar diretamente ligada à
capacidade individual de se concentrar, manter o foco em um determinado objeto e, logo em
seguida, mudar para outro, relacionar-se bem com colegas e adultos, respeitar as regras de um
jogo lúdico ou social. Pautado nas teses do autocontrole atencional e comportamental,
histórica e socialmente datadas (CALIMAN, 2006), o TDAH mobiliza um conjunto de
referências sociais acerca do desenvolvimento individual do autocontrole e da consciência de
si. Designando, conforme a concepção proposta por Barkley (1981), a incapacidade de usar
ações passadas (o famoso bordão “aprender com o passado”) para prever e planejar ações (e
suas consequências) futuras, o TDAH difunde o pressuposto da origem cerebral de uma
disfunção impactante no funcionamento social e acadêmico/profissional do indivíduo. A
legitimação, popularização, universalização e polêmica dessa definição concretizaram-se no
DSM-IV, publicado pela Associação Americana de Psiquiatria em 1994. A década de 90,
assim como os anos 2000, foi também marcada pela profusão publicitária de livros destinados
ao público leigo. Essas obras agregam experiências pessoais em torno do TDAH a um
discurso neurológico simplificado sobre o transtorno e a estratégias de gestão do espaço e do
tempo do indivíduo portador (CALIMAN, 2006).
Cabe notar algumas semelhanças entre os fundamentos mobilizados por Barkley e
os pressupostos do que Dubet e Martuccelli (1997) denominam “sociologia cognitiva”. Trata-
se de uma perspectiva sociológica calcada na construção da racionalidade individual dentro de
uma dada situação social. Caracterizada como uma interpretação da desigualdade de
oportunidades, tal perspectiva preconiza o funcionamento do sistema social e educacional
161

enquanto um mercado, orientado pelos resultados das escolhas dos atores sociais. Estes
decidem e escolhem de acordo com suas percepções, interesses e recursos, o que, transposto
para o quadro geral do modelo cerebral-cognitivo ou para o recorte do TDAH de Barkley e do
DSM, corresponde à capacidade cognitiva e social de dispor de meios de autorregulação,
prever os efeitos das ações individuais, adaptar-se, desempenhar bons comportamentos,
enfim, integrar-se adequada e autonomamente a um grupo ou a uma sociedade.
Assim, concebe-se o cérebro como a entidade central do corpo e da vida humana,
pois seu bom funcionamento permite ao indivíduo agir no mundo. Aqui, o TDAH se efetiva
como uma categoria universal e a-histórica, uma vez que as características socioculturais das
relações das quais o indivíduo participa agregam-se e submetem-se à performance das
conexões neuronais. Nesse ponto, outros saberes — incluindo a sociologia — são chamados a
fazer parte e aprimorar tal modelo a fim de que ele forneça ferramentas para a boa ação
individual. Conciliam-se igualmente o mercado e uma indústria92 do bem-estar com o
propósito de ensejar, por intermédio de seus instrumentos (destacadamente os psicofármacos),
o desenvolvimento de competências cognitivas, sociais e relacionais.

4.2. A crise psiquiátrica: da clínica aos biomarcadores e a indústria do mal estar e do


risco

A experiência clínica engendrou-se a partir do olhar empírico médico direcionado


ao paciente, aos elementos externos constituintes de seu corpo, bem como a seus órgãos
internos, em decorrência da reorganização dos hospitais e do advento das técnicas de autópsia.
E desse olhar surgiu a possibilidade de criar um saber e uma linguagem racional — um
discurso científico — sobre o indivíduo. Unificando o domínio hospitalar e o pedagógico (o
ensino da medicina dentro dos hospitais a partir do século XIX), a clínica tomou o paciente
em uma relação de diálogo (interrogação) e de contato (exame) com o médico. Assumiu
igualmente a singularidade de um conjunto de acontecimentos patológicos comparáveis entre
si de modo sistemático e descritivo e o corpo individual como a fonte primeira da
configuração do saber anatomopatológico por meio do olhar clínico ativado durante as visitas
hospitalares e as dissecações anatômicas (FOUCAULT, 2008b).

92
Entendo “indústria” por seu sentido amplo de engenho e criação. O mal-estar, destacadamente, representa um
sentimento real de sofrimento individual e coletivo. Portanto, falar de indústria do bem-estar, do mal-estar ou do
risco corresponde ao ato de incorporar à realidade do sofrimento e do desejo princípios de necessidade e
instrumentos para satisfazê-la.
162

A clínica então passou por uma série de transformações históricas, econômicas,


epistemológicas e institucionais até chegar ao modelo operacional, pragmático e que busca a
eficácia técnico-científica, marca essencial da contemporaneidade. Nele, a clínica médico-
psiquiátrica — ancorada no diagnóstico de sintomas vivenciados e relatados pelo paciente, na
observação clínica de comportamentos e também nas operações interventivas cognitivo-
comportamentais e psicofarmacológicas — coexiste com uma proposta de fundamentação da
psiquiatria na medicina precisa, modelo segundo o qual os comportamentos são observados e
medidos objetivamente, não sendo influenciados pela subjetividade do paciente que relata sua
experiência da doença. Nessa perspectiva, o cérebro e seus mecanismos formam a base do
conhecimento neurocientífico93 aplicado a uma “nova” clínica e à elucidação dos transtornos
mentais (ZORZANELLI; DALGALARRONDO; BANZATO, 2014).
Em outras palavras, essa nova proposta investe em uma desagregação do fator
humano-social do processo clínico e diagnóstico (isto é, da possibilidade de incorporar aos
procedimentos médicos as experiências subjetivas, a illness de Kleinman ou a capacidade
normativa do paciente que define um estado patológico a partir de suas condições de vida
biológica e social, conforme o argumento de Canguilhem) em benefício desse mesmo fator.
Por meio da construção de categorias e diagnósticos médico-psiquiátricos objetivos, busca
elaborar um tratamento eficiente, individualizado e promotor de bem-estar, senão da cura, ao
paciente. Tal desagregação é possível uma vez que concebe o cérebro como uma entidade, ou
melhor, como uma parte do corpo responsável pelo todo corporal, mental e social. Ela implica
igualmente a depreciação da legitimidade de práticas apoiadas na experiência subjetiva (de
clínicos e de pacientes), como ocorre com a psiquiatria do DSM.
Um conflito logo se instaura entre essas abordagens frente aos esforços de inserir
o manual no campo neurocientífico — ao redefinir a hiperatividade e a desatenção como
sintomas de um transtorno do neurodesenvolvimento, por exemplo — e de buscar
comprovações concretas acerca da existência de um transtorno mental, apesar das limitações
explicitamente declaradas por seus colaboradores (tais como a etiologia ainda hipotética de
condições como o TDAH e o reconhecimento de que os sintomas descritos para uma
categoria extrapolam, na realidade, as próprias delimitações classificatórias). Lê-se no
prefácio do DSM-V (APA, 2013, p. xii) que essa nova edição distingue-se das demais devido,

93
As neurociências — que tomam para si a tarefa de desvendar os mistérios da entidade cerebral — constituem-
se de um conjunto de disciplinas dedicadas ao estudo do sistema nervoso, sua estrutura e suas funções, tanto em
funcionamento normal quanto em estado de patologia. Tal conjunto compõe-se de práticas e saberes biológicos,
químicos, psicológicos, anatômicos, entre outros (ANDREASEN, 2005), a cuja denominação se acresce,
geralmente, o prefixo “neuro”.
163

entre outros fatores, à integração de descobertas científicas em genética e neuroimagem


capazes de orientar a determinação de fatores de risco, de indicadores prognósticos e de
possíveis marcadores diagnósticos para as categorias descritas.
O ponto alto da crítica ao manual foi atingido pela afirmação pública e imperativa,
feita por Thomas Insel, diretor do National Institute of Mental Health (NIMH) dos Estados
Unidos, de que as categorias diagnósticas do DSM-V carecem de validade científica (isto é,
de uma inscrição biológica bem definida) por serem baseadas em sintomas clínicos, e não em
medidas laboratoriais objetivas. Isso fomenta a “criação” de doenças. Ademais, a psiquiatria
do DSM impede, em vista de sua invalidade, o sucesso investigativo acerca dos
biomarcadores determinantes dos transtornos mentais.
O NIMH então lançou a proposta do Research Domain Criteria (RDoC), “um
projeto para transformar o diagnóstico, por meio da incorporação da genética, neuroimagem,
ciência cognitiva, e outros níveis de informação com o fim de estabelecer as bases para um
novo sistema classificatório” (INSEL apud ZORZANELLI; DALGALARRONDO;
BANZATO, 2014, p. 330), orientado pelos padrões da medicina de precisão e pela pesquisa e
elaboração de diagnósticos observáveis (clínicos), objetivos (pautados em informações
moleculares) e seguros (capazes de fornecer subsídios para tratamentos individualizados
eficientes).
Esse embate declarado evidencia, de acordo com Pereira (2014), a atual “fratura
epistemológica” do saber psiquiátrico. A crítica de Insel à abordagem nosológica do DSM
coloca em questão a legitimidade da pretensão da psiquiatria de ser reconhecida como uma
especialidade médica, o que move seus programas desde os anos 1980, com a publicação do
DSM-III, bem como os sentidos dados por seu projeto a certas condições individuais e
coletivas. Daí a aplicação de uma noção de crise psiquiátrica interna revelada pela expansão
de tal projeto através da tessitura social, configurando um processo de medicalização. Isso
significa que o próprio processo de generalização da psiquiatria em direção a diferentes
âmbitos da sociedade expõe as fragilidades e rupturas de seus mecanismos. Dele emergem
igualmente as possibilidades críticas, sejam aquelas advindas das neurociências, sejam as
proclamadas por movimentos sociais e acadêmicos.
Relações conflituosas edificam-se também entre a psicanálise e o positivismo
médico, análogo às abordagens neurocientíficas atuais, como se observa na França a partir da
década de 1980 (CASTEL, 2011). Vivia-se naquele período uma era pós-psiquiatria e pós-
psicanálise, um contexto em que esses saberes e práticas tiveram sua força explicativa
diminuída em vista da ascensão de formas recompostas dos dispositivos médico-psicológicos
164

franceses. Sucintamente, tratava-se da banalização das instituições e técnicas psiquiátricas no


interior da medicina geral, resultando na substituição de uma prática particular de cuidado por
outra generalizada e especializada. Em um momento histórico em que as fronteiras entre o
normal e o patológico se atenuam, a totalidade da existência humana torna-se o objeto das
práticas terapêuticas. Estas, por sua vez, passam a desenvolver estratégias e orientações
fundamentadas na gestão das diferenças e vulnerabilidades por meio dos perfis abstratos de
risco e em uma nova cultura psicológica que visa ao aprimoramento de estados normais, e não
à patologia.
O que se depreende dessas diferentes formas de crise psiquiátrica é a formação de
um conjunto de relações em torno do cérebro como motor da vida humana, assim como da
gestão do mal-estar e do risco. A gestão dos riscos incorpora a busca de biomarcadores e a
articulação entre uma categoria diagnóstica e possíveis riscos aos quais o seu portador pode
estar predisposto. Nessa ótica, os marcadores biológicos, identificados por técnicas de
mapeamento genético e de imagem cerebral, podem auxiliar na previsão do curso de uma
doença ou de um transtorno mental. A mesma promessa se faz na direção da previsão do
desenvolvimento de certos comportamentos, traços de personalidade e capacidades mentais e
emocionais, principalmente em crianças e adolescentes: “os biomarcadores prometem ser a
ferramenta psiquiátrica mais poderosa desde a descoberta das drogas antipsicóticas” (SINGH;
ROSE, 2009, p. 202).
O desenvolvimento técnico relativo aos biomarcadores extrapola a clínica e
alcança espaços como a sala de aula e o tribunal. No caso da educação, há entusiastas de
programas educacionais baseados nas neurociências que defendem a aplicação das
descobertas neurocientíficas no início da infância a fim de informar como as crianças são
ensinadas, como as salas de aula devem ser estruturadas e, sobretudo, assinalar os desafios do
desenvolvimento, como a impulsividade e as dificuldades de aprendizagem, que podem
ocasionar um transtorno mental futuro. No caso da criminalidade juvenil, os estudos cerebrais
prometem identificar biomarcadores ligados à delinquência e a riscos de
neurodesenvolvimento, predizendo, assim, os comportamentos antissociais (SINGH; ROSE,
2009, p. 203).
Logo, a psiquiatria contemporânea redefine-se metodologicamente. As novas
metas enfocam a probabilidade de desencadeamento de certas condições. Essa probabilidade
embasaria o trabalho com perfis de risco, visando a detectar precocemente as ameaças e
fornecer aos indivíduos recursos especiais como parte de um programa específico (SINGH;
ROSE, 2009, p. 203). Para Castel (2011), a elaboração de perfis de risco populacionais é uma
165

estratégia governamental de gestão das vulnerabilidades sociais, operada pela associação de


determinados perfis a hierarquias particulares. Adotando o ponto de vista de Castel (2011), é
possível compreender a interface entre biomarcadores e (perfis de) risco como uma forma de
tratamento de correlações estatísticas, e não de atuação direta no indivíduo, tarefa essa
delegada às intervenções terapêuticas. É o caso do perfil traçado pelo discurso do DSM (ainda
que nele se afirme a inexistência de provas determinantes, no nível de biomarcadores, da
causa do TDAH), de Russell Barkley e de pesquisadores brasileiros para as crianças com
TDAH com alto potencial ao fracasso escolar, a acidentes de trânsito ou ao aparecimento de
comorbidades. O mesmo ocorre com os alunos que, portando um laudo médico para
hiperatividade e desatenção, têm suas informações inseridas em um banco de dados estadual a
fim de que sejam acompanhados durante toda a sua trajetória escolar. Ou ainda aqueles que
têm garantidos, judicialmente, benefícios compensatórios no âmbito educacional.
A nova cultura psicológica, por sua vez, é caracterizada por Castel (2011) como
resultante da dinâmica social contemporânea orientada por uma forma de compreensão do
mundo segundo a qual tudo pode ser psicologicamente interpretado e transformado. A cultura
psicológica atual é, nesse sentido, “uma postura cultural que tende a instalar no âmbito
psicológico a realização da vocação do sujeito social”, extrapolando qualquer referência à
patologia (CASTEL, 2011, p. 151). Tal postura se constitui em um contexto sociopolítico
geral que incentiva (ou melhor, induz por meio da produção da necessidade e do desejo, da
mobilização voluntária, conforme a análise feita nos capítulos anteriores) o superinvestimento
em práticas relacionais, isto é, na construção de novos espaços de sociabilidade e no cultivo
de um eu mais performático.
A produção do mal-estar tem aí seu sentido fundamental. Da criança que não
aprende ou o professor incapaz de manter a ordem disciplinar e, ao mesmo tempo, de
estabelecer um diálogo com seus alunos, até uma forma generalizada do ser humano (um
homem abstrato e sem história), o mal-estar ganha sua materialidade e seus modos distintos
de definição. O sofrimento, seu sintoma primordial, passa a ser medido conforme as
intensidades de uma suposta patologia (ou incapacidade) que o causa (em grau leve,
moderado ou grave) e conforme os prejuízos causados pelas manifestações sintomáticas. Essa
configuração do sofrimento já foi abordada aqui em relação à categoria TDAH. E nela o
sofrimento é visto como indesejável e insuportável, o símbolo maior da infelicidade e,
consequentemente, do fracasso (DUNKER, 2015).
Trata-se ainda de um novo mercado de consumo, sustentado principalmente pela
indústria farmacêutica. O fenômeno de aumento da dispensa de Rivotril® a professores
166

ansiosos, apresentado no segundo capítulo, é um exemplo significativo, assim como a


produção e administração da Ritalina® para crianças hiperativas e desatentas. Neste caso, o
metilfenidato incorpora tanto um valor eficaz quanto um sentido simbólico. A eficácia do
medicamento manifesta-se no controle dos sintomas, sobretudo das manifestações ditas
externalizantes — a hiperatividade e a impulsividade. Sua simbologia (também agregada a
uma eficácia) encontra-se no fato de que, estando controladas as manifestações sintomáticas,
as perturbações se amenizam. O único aluno capaz de desestruturar toda uma sala “acalma-
se” e permite ao professor prosseguir com seu cronograma.
Os medicamentos psicotrópicos são benéficos em alguns casos e sobre sua ação se
criam significados diversos. A aversão de Luan à Ritalina® é simultânea ao reconhecimento
do fármaco, por Danilo, como o meio mais adequado de se alcançar um bom rendimento
escolar. Em outras situações, o remédio representa a ameaça de uma punição94 ou mesmo a
possibilidade da normalidade (isto é, de comportar-se como as demais crianças). Não se trata,
portanto, de pleitear seu banimento ou o das práticas que tomam o medicamento como medida
terapêutica básica. Ainda que o fosse, sua difusão social como um instrumento significativo
da indústria do mal-estar faz com que ele seja requisitado e reconhecido como legítimo e de
direito.
O outro instrumento dessa indústria diz respeito às estratégias interventivas
articuladas pela rotulação e pela culpa. É o caso dos professores que recusam o
encaminhamento de alunos a especialistas ou a administração do medicamento, ainda que sob
orientação médica. Mesmo resistindo, eles classificam seus alunos e culpabilizam sua família.
Trata-se de outro discurso medicalizante que, negando a prática biomédica por meio da
denúncia da medicalização, adota uma perspectiva psicológica que também implica, a partir
de outros pressupostos, uma intervenção no corpo e nas inter-relações cotidianas. A culpa
também funciona inversamente, quando professores sentem-se culpados pela impossibilidade
de estar atentos a todos os alunos e, assim, demandam alguma forma de auxílio externo, tal
como a atuação de especialistas no interior do estabelecimento escolar.
Desse modo, da oscilação entre a susceptibilidade do risco e a cultura psicológica
do aprimoramento (CASTEL, 2011; ROSE, 2007), emerge o caráter social, econômico e
político das disputas entre saberes e das categorias clínicas definidas por esses saberes com
base no ideal de adequação e otimização do corpo individual e da vida social.

94
Refiro-me à observação, feita em um ambulatório universitário de psiquiatria infantil, do uso da administração
do medicamento como ameaça ao comportamento perturbador. Ao correr pelo saguão do ambulatório com outras
crianças, um menino portador de TDAH foi advertido por sua mãe: “se você não parar, vou te dar o remédio”
(BARBARINI, 2011, p. 112).
167

Será que isso [o uso de medicamentos para crianças diagnosticadas como hiperativas
e desatentas] não é mais ou menos como um atleta que acaba tomando alguns
medicamentos para fortalecer alguns desenvolvimentos, um salto maior, como se
você estivesse ajudando seu organismo em certos mecanismos, mas que na verdade
não são adequados? Eu acho que isso é uma questão de adequação mesmo, não
necessidade. “Ah, eu me concentro mais”, mas será que é adequado? Para outras
situações você tem essa necessidade? Será que é preciso tomar coisa para isso?
(Jussara, professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida
em 14 ago. 2015).
Embora a professora se refira especificamente ao medicamento, sua reflexão
evidencia aquilo que rege a rede relacional dos perfis de risco, do aprimoramento e, inclusive,
da noção difusa de transtorno mental: a formulação e intervenção sobre uma “incapacidade”
individual de se constituir adequadamente — conforme um projeto de sociedade — enquanto
sujeito. Individual, pois subordinada a uma representação de si como possuidor de um cérebro
doente, formulada conforme referências científicas específicas (EHRENBERG, 2004a), ou
como corpo/mente passível de aperfeiçoamento. E social, sobretudo, uma vez que o desajuste
comportamental implica, nessa ótica, prejuízos às relações e desempenhos sociais, pessoais,
escolares e profissionais.
Sumariamente, instaura-se a regularidade de uma diversidade de discursos,
saberes e práticas, aparentemente contraditórios ou alternativos entre si. Ela é possível e
coerente nessa nova rede, dado que seus elementos regem-se por um mesmo modo de
conhecer e intervir na realidade social através do corpo, da mente e do sujeito e de uma
verdade constituída sobre eles a partir de práticas sociais específicas. Essa regularidade recebe
o nome de “medicalização”.

4.3. Medicalização: o modo de funcionamento da sociedade e a socialização infantil

O declínio da sociedade disciplinar (ou das instituições de confinamento) suscita


novos modos de se constituir e novas formas de governo do sujeito. Um novo homem
verdadeiro institui-se em uma sociedade que preza pela satisfação individual e pela reputação
do indivíduo empreendedor, capaz de se adaptar, ser inovador, flexível e sensível, mas
igualmente integrado a sistemas classificatórios e comparativos. A adaptação significa bem-
estar. Os discursos e práticas, produzidos e mobilizados por autoridades competentes, tratam,
nesse sentido, do caráter vital dos seres humanos e intervêm na existência coletiva em nome
da vida e da morte. Em decorrência desse quadro, os indivíduos são levados a atuar sobre si
próprios em prol de sua vida e da saúde de sua família ou de alguma outra coletividade.
Atualiza-se, assim, uma forma de biopoder e, singularmente, de medicalização.
168

Um termo e uma prática atuais

O termo medicalização apareceu em estudos desenvolvidos nos Estados Unidos


pelo campo da sociologia médica na década de 1970 e, ainda no início da década anterior, nas
obras de Michel Foucault, na França. Segundo Peter Conrad (1992), representante daquele
campo estadunidense, a noção de medicalização era usada, inicialmente, de modo difuso por
intelectuais95 de diversas áreas do conhecimento, inclusive a medicina e a psiquiatria.
Para tal sociólogo, incorporaram-se ao termo — que significa literalmente “tornar
médico” — conotações mais amplas e sutis em contextos de crítica à expansão da
jurisprudência médica a âmbitos sociais e ao uso exacerbado de medicamentos, abandonando
seu caráter descritivo (CONRAD, 1992, p. 210). Apesar de buscar a neutralidade do conceito
de medicalização, Conrad (1975; 1976) tratou-o, em seus primeiros trabalhos sobre o tema,
como uma forma de controle social, implicando a definição do comportamento como um
problema médico ou como uma doença. Isso permitiria à profissão médica fornecer algum
tipo de tratamento aos diferentes desvios e processos da vida. Já em um artigo de 1992,
evidenciou o caráter de processo sociocultural da medicalização. Dadas essas divergências
dos modos pelos quais tal processo é compreendido, Conrad apontou os três níveis em que a
medicalização ocorre: o conceitual (no qual o vocabulário e o modelo médico são utilizados
para definir o problema apresentado), o institucional (correspondente à adoção, pelas
instituições, da abordagem médica para tratar problemas específicos) e o interacional (a
relação estabelecida entre médico e paciente em que o primeiro define o problema por meio
do diagnóstico e prescreve um determinado tratamento médico para uma questão de cunho
social).
Michel Foucault, por sua vez, fez uso do termo medicalização para analisar a
estratégia biopolítica da medicina social europeia nos séculos XVIII e XIX. Por se tratar de
uma noção difusa em suas obras, Castro (2009, p. 299) propôs-lhe um delineamento em que o
termo medicalização faz referência a um processo de integração das condutas, dos
comportamentos e do corpo humano. Definir-se-ia igualmente como um sistema de
funcionamento da medicina cada vez mais vasto e transcendente à questão das enfermidades.
Tal processo se caracterizava, naquele período histórico, por uma função política da medicina

95
Os primeiros críticos a chamar atenção à medicalização e ao controle médico foram, segundo Conrad, Thomas
Szasz, que ainda na década de 1960 iniciou sua crítica à psiquiatria enquanto criadora de doenças mentais; John
Pitts, que trabalhou a definição de controle social em 1968; Eliot Freidson que, escrevendo em 1970 sobre a
profissão médica, foi também importante para o desenvolvimento de uma sociologia médica nos Estados Unidos;
e Irving Zola (1972).
169

(uma estratégia biopolítica de ação sobre os corpos a fim de torná-los dóceis, porém úteis) e
pela extensão indefinida e ilimitada da intervenção do saber médico na tessitura social.
Tratava-se, assim, de uma investida médica cuja finalidade era legitimar sua prática e
responder a um projeto de sociedade fundado na criação de populações moral, sanitária e
mentalmente adequadas ao progresso de uma nação.
Viveu-se esse processo tardiamente no Brasil, com reflexos no século XX,
passando pela reformulação da função do hospital (condizente com uma mudança de olhar
sobre a doença e a saúde) e pela legitimação do saber e da prática médica e o
esquadrinhamento do território com fins de controle populacional por meio da prevenção de
doenças (MACHADO et al., 1978). A aliança entre Estado republicano e ciência
(representada pela medicina), consoante aos ideais positivistas em voga no fim do século XIX
e início do XX, caracterizou um investimento político-sanitário destinado à construção de um
país moderno e em progresso. Empenhava-se em uma luta contra “os males do atraso da
nação”, a ignorância do povo brasileiro, as doenças, a degeneração física e mental,
culminando no surgimento do alienismo brasileiro e em práticas higienistas interventivas
(RIBEIRO, 2010). Práticas essas que, atuando no interior dos lares familiares e das escolas,
visavam à prevenção das degenerações morais, físicas e mentais e ao cuidado com o
desenvolvimento das crianças.
Há que se atentar ao fato de que as ciências sociais ocuparam uma posição
importante nesse cenário. Se por um lado elas se apropriaram da linguagem médica pautada
na distinção entre normal e patológico para descrever a realidade social, por outro
disponibilizaram instrumentos de leitura da realidade brasileira, tal como a noção de raça
(RIBEIRO, 2010). No caso da intervenção nas escolas, as ideias eugênicas derivadas do
neolamarkianismo, que marcaram o higienismo brasileiro, e os sistemas de testes, medidas e
diagnósticos fornecidos pela medicina e pelas ciências sociais foram fundamentais à
elaboração de políticas públicas voltadas à universalização da educação pública (DÁVILA,
2006).
Configurava-se, dessa maneira, um momento histórico em que a medicina, a
psiquiatria, as ciências sociais e a pedagogia desempenharam conjuntamente um importante
papel de articulação entre controle social (estatal), intervenção na saúde dos indivíduos e das
populações e corpo: elas viabilizaram novos modos de compreender e agir na constituição dos
sujeitos em sociedades capitalistas, marcadas pela disciplina e pela normalização pautada na
distinção entre o normal e o patológico. Essas novas formas coincidiam com o processo de
produção das categorias clínicas direcionadas às crianças anormais. É isso que, em termos
170

foucaultianos, se chama de medicalização. Mas, se vivemos a coexistência das sociedades


disciplinar e pós-disciplinar (CASTEL, 2011; RABINOW, 2002), tal noção ainda é válida?
No que toca às implicações do termo “medicalização” na análise sociológica, faz-
se necessário ter em consideração que a questão de fundo dos modelos predominantemente
seguidos pela psiquiatria é o tipo de norma social que os orienta (e, a cada norma, relaciona-se
uma imagem ideal de indivíduo, cuja inserção social corresponde a um projeto de sociedade).
No período entre o século XVIII e o início do XX, o pressuposto do desenvolvimento moral,
físico e social dos indivíduos e das sociedades alicerçava a distinção entre normal e
patológico, bem como as práticas médicas interventivas. Hoje, a regulação normativa das
condutas orienta-se pelo princípio do desempenho social e cognitivo autônomo e alinhado a
um bem-estar que, superando a dicotomia normal/patológico, se institui no aprimoramento
das habilidades e competências individuais, assim como na prevenção de riscos e na atenção a
vulnerabilidades e inadequações causadas por novos transtornos mentais. A questão dos
direitos à diferença e à inclusão agrega-se à do cérebro como motor do agir no mundo, ambos
operando como ponto de intervenção técnico-científica e de articulação de novas forças
sociais e novos atores, tais como a indústria farmacêutica e biotecnológica e as associações e
grupos de apoiadores de determinadas categorias médicas (CONRAD, 2005).
Essas mudanças conjunturais correspondem a propostas de reformulação da noção
de medicalização e até mesmo da substituição de sua denominação. A “biomedicalização”,
por exemplo, designa a intensificação do processo de medicalização em novos contextos
marcados pela tecnociência (CLARKE et al., 2003). Em sentido oposto, a “desmedicalização”
corresponde ao processo proveniente de uma série de atos contestatórios às práticas ditas
medicalizantes, aquelas que tornam médicas condições essencialmente sociais, incluindo as
identidades individuais e coletivas (CONRAD, 2007). A “farmaceuticalização”, por sua vez, é
o processo de redefinição das questões de saúde como tendo uma solução farmacológica
(GABE, 2013). E, finalmente, a “ethopolítica” caracteriza uma forma contemporânea de
biopolítica pautada na tentativa de modelar as condutas humanas atuando no âmbito dos
sentimentos, crenças, valores, enfim, da ética (ROSE, 2007).
Ainda no nível terminológico, expressões como “patologização” e
“psicologização” são introduzidas e popularizadas por campos de conhecimento e por
movimentos sociais a fim de dispor de ferramentas para, a partir do próprio processo de
medicalização (geralmente entendido como a transformação de um fenômeno social em
condição médica), expor suas contradições. Entretanto, tal investida fraciona a essência das
práticas técnicas de medicalização, atendo-se apenas a elementos constituintes (como a
171

doença) ou mesmo propondo outros discursos igualmente medicalizantes como sendo


alternativos e verdadeiramente explicativos, conforme as análises feitas nos capítulos
anteriores.
O panorama da noção de medicalização e de seus desdobramentos salienta um
processo histórico e social de definição e compreensão da vida moral, social e individual por
meio da medicina e de seu olhar voltado ao (neuro)biológico. Marca, da mesma forma, a
relação daquele campo com as ciências sociais. Uma relação que aparentemente se dissocia ao
longo do tempo, haja vista o prevalecimento contemporâneo das neurociências na explicação
do mundo, na criação de valores explicativos e simbólicos relativos ao certo e ao errado com
base em um saber dito objetivo e científico. Contudo, o prolongamento e a extensão da
aplicação da noção de medicalização levam-nos a refletir em outro plano: o destaque dado ao
papel social das neurociências nos dias de hoje deve-se às consequências da medicalização
(enquanto processo que articula práticas sociais e técnicas), isto é, da intervenção médico-
social e, posteriormente, das descobertas tecnocientíficas e farmacológicas, ou a
medicalização e seus desdobramentos (enquanto termos, noções e instrumentos analíticos)
permitem compreender as mudanças sociais que possibilitam à psiquiatria, à psicologia e às
neurociências oferecer sentidos às ações, às crenças e aos desejos individuais e sociais?
Enquanto articuladora de práticas técnicas e sociais, com objetos (o corpo ou o
cérebro e as condutas humanas), meios plurais (instrumentos como o TDAH ou instituições
como a escola, dentro de uma infinidade de possibilidades) e fins específicos (regulação,
normalização, adequação), a medicalização é um processo que surge a partir de uma lógica
que rege o pensamento médico, um modo comum de pensar e agir sobre o corpo, a mente e os
sujeitos que conserva determinadas relações de poder-saber e o exercício de um biopoder
variável conforme o momento histórico e social. O TDAH, por exemplo, é capaz de tornar
visível um projeto de sociedade fundado na regulação e avaliação cerebrais dos desempenhos
individuais e um ideal de indivíduo condizente com a execução ótima desses desempenhos e a
ser socializado como tal. Nesse sentido, seus desdobramentos são inerentes ao próprio
processo em mutação.
Contudo, se trata de práticas que não nascem com o nome de “medicalização”,
mas que passam a ser assim definidas e nomeadas por outros campos de saber a fim de que
sua contradição seja revelada e para que, finalmente, se possam compreender as relações
sociais que ela toca ao longo de seu processo de mutação e atualização. Assim como as
práticas, o termo (sobretudo seus desdobramentos) se expande por toda a tessitura social,
sendo até mesmo, neste último caso, capturado e transformado em elemento de disputa entre
172

saberes por legitimação de seus discursos e formas de intervenção. Captura e transformação


ocorrem também, conforme a mesma lógica que produz estratégias de intervenção, com as
noções de “hiperativo” e de “autonomia”.
Colocando em termos mais claros para a realidade contemporânea: enquanto
prática, a medicalização promove um modelo cerebral-cognitivo para elucidar e orientar as
ações, crenças, valores e formas de constituição do sujeito; enquanto noção, termo ou
conceito (instrumento analítico), a medicalização serve à crítica desse modelo. Ao mesmo
tempo, enquanto prática, a medicalização dobra-se sobre si mesma e revela suas contradições
internas (incorrendo na crise psiquiátrica) e, enquanto termo, dobra-se sobre si mesma e expõe
suas contradições externas (a crise social e os embates políticos).
A medicalização não é apenas negativa (CONRAD, 2007), ao contrário de seu
retrato como sinônimo de imperialismo médico. Ela representa um modo próprio de
funcionamento de uma sociedade (singular em cada momento histórico), na qual cada ser
humano deve se tornar um indivíduo reconhecimento como seu membro e porta-voz de um
modo de ser — que não corresponde obrigatoriamente à verdadeira essência dessa pessoa —
por meio de um processo de socialização. Portanto, a medicalização se apresenta em
diferentes planos. Enquanto noção ou conceito, varia entre pressupostos analíticos e
descritivos gerais ou fragmentados. Como termo, desdobra-se em outros e populariza-se,
constituindo parte de um vocabulário cotidiano de contestação de práticas especializadas.
Nesse sentido, a medicalização (termo e prática) regula os embates entre saberes. Porém, seu
conjunto permite, acima de tudo, compreender nitidamente os meios pelos quais o TDAH
engloba as diferentes representações da criança visando a sua adequada socialização.

O mecanismo do TDAH e sua condição sociopolítica

O quadro clínico sintomatológico do TDAH em crianças e adolescentes, pautado


nas indicações sintomáticas propostas pelo Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos
mentais, é divulgado pela Associação Brasileira do Déficit de Atenção conforme o texto que
se segue.
173

Sintomas do TDAH em crianças e adolescentes:


As crianças com TDAH, em especial os meninos, são agitadas ou inquietas. Freqüentemente
têm apelido de "bicho carpinteiro" ou coisa parecida. Na idade pré-escolar, estas crianças
mostram-se agitadas, movendo-se sem parar pelo ambiente, mexendo em vários objetos
como se estivessem “ligadas” por um motor. Mexem pés e mãos, não param quietas na
cadeira, falam muito e constantemente pedem para sair de sala ou da mesa de jantar.
Elas têm dificuldades para manter atenção em atividades muito longas, repetitivas ou que
não lhes sejam interessantes. Elas são facilmente distraídas por estímulos do ambiente
externo, mas também se distraem com pensamentos "internos", isto é, vivem "voando". Nas
provas, são visíveis os erros por distração (erram sinais, vírgulas, acentos, etc.). Como a
atenção é imprescindível para o bom funcionamento da memória, elas em geral são tidas
como "esquecidas": esquecem recados ou material escolar, aquilo que estudaram na véspera
da prova, etc. (o "esquecimento" é uma das principais queixas dos pais). Quando elas se
dedicam a fazer algo estimulante ou do seu interesse, conseguem permanecer mais
tranqüilas. Isto ocorre porque os centros de prazer no cérebro são ativados e conseguem dar
um "reforço" no centro da atenção que é ligado a ele, passando a funcionar em níveis
normais. O fato de uma criança conseguir ficar concentrada em alguma atividade não exclui
o diagnóstico de TDAH. É claro que não fazemos coisas interessantes ou estimulantes desde
a hora que acordamos até a hora em que vamos dormir: os portadores de TDAH vão ter
muitas dificuldades em manter a atenção em um monte de coisas.
Elas também tendem a ser impulsivas (não esperam a vez, não lêem a pergunta até o final e
já respondem, interrompem os outros, agem antes de pensar). Freqüentemente também
apresentam dificuldades em se organizar e planejar aquilo que querem ou precisam fazer.
Seu desempenho sempre parece inferior ao esperado para a sua capacidade intelectual. O
TDAH não se associa necessariamente a dificuldades na vida escolar, embora esta seja uma
queixa freqüente de pais e professores. É mais comum que os problemas na escola sejam de
comportamento que de rendimento (notas)96.

Analisemos algumas questões dessa publicação. É preciso ter em consideração


que ela fomenta a articulação de um conjunto de saberes e discursos técnico-científicos, mas
também uma disputa entre diferentes movimentos, sendo que aqueles que lutam politicamente
contra o que se chama de medicalização encontrarão nessa peça informativa sinais claros de
um processo medicalizante (por exemplo, a indicação da idade pré-escolar, antes dos cinco
anos de idade, como uma fase da vida na qual a criança já pode ser identificada como
hiperativa) e assumirão um tom de denúncia em seus discursos. As implicações imediatas
dessa definição no plano cotidiano são, contudo, indicativas do caráter sociopolítico da
categoria TDAH.
A descrição sintomática veiculada reforça a importância da dimensão escolar para
o reconhecimento dos possíveis casos de TDAH, seja como espaço que viabiliza a
identificação da criança hiperativa e desatenta (aspecto esse pouco evidenciado no texto em
questão), seja como meio normativo de orientação de condutas. “Atividades longas,

96
Disponível em: <http://www.tdah.org.br/br/sobre-tdah/quadro-clinico.html#sthash.WVP2loYZ.dpuf>. Acesso
em: 08 out. 2015.
174

repetitivas ou desinteressantes” são tipicamente escolares, como se pôde verificar a partir dos
relatos de professores e crianças, bem como das observações feitas em sala de aula, acerca da
pouca funcionalidade dos conteúdos escolares e do exercício fatigante de copiar. Ademais, a
imprecisão da habilidade atentiva faz com que o aluno incorra em erros de escrita (“sinais,
vírgulas, acentos”), de fala ou de memória, cujas operações são essenciais ao sucesso escolar.
Observou-se em trabalho de campo uma constante recorrência da afirmação “eu estudo, mas
me dá branco na prova”, relatada tanto por crianças diagnosticadas quanto por alunos sem
TDAH, ainda que o texto da ABDA marque esse tipo de descuido como algo característico do
transtorno. O esquecimento de materiais ou recados é uma falha prejudicial ao
prosseguimento da aula, bem como ao rendimento escolar, pois, incitando o erro em provas,
constitui o prenúncio do fracasso naquela atividade ou, em um âmbito mais geral, no ano
letivo (o que resulta em repetência).
O sintoma dispersivo da condição é, portanto, significativo. Em diferentes análises
sociais, a dispersão encontra os modos contemporâneos de utilização da tecnologia e da ampla
disponibilidade informativa. O relato de uma professora ilustra esse encontro:

Antes você tinha dois na sala, três que eram muito dispersivos, que por qualquer
motivo dispersava. Hoje você tem muitos que são dispersivos. Hoje você tem muitos
que, para focar, é complicado. E eu acredito que é por conta de tanta tecnologia.
(Maria Luiza, professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
A diversidade dos usos da tecnologia e das informações fragmentadas disponíveis,
sobretudo, nos espaços virtuais da internet, de fácil acesso às crianças, marca a
contemporaneidade. A dispersão da atenção individual, assim como dos deslocamentos
corporais direcionados a diferentes sentidos, seria então o efeito de uma tal configuração
social e histórica. Um efeito problemático na sala de aula (devido à dificuldade de a criança se
concentrar e, portanto, corresponder às exigências escolares), porém possivelmente vantajoso
em um sistema empresarial onde o indivíduo deve ser hábil em mudar de foco. O TDAH
congrega essas duas possibilidades.
Para Lima (2005), as ambiguidades vividas pelas crianças diagnosticadas como
portadoras de TDAH são as mesmas que as experimentadas por qualquer outro indivíduo nos
dias de hoje. O autor se refere à existência fragmentada, ao viver de impulso a impulso (de
consumir objetos ou sensações) e de estímulo a estímulo, à possibilidade e o desejo de gozar
os frutos de seu desapego impulsivo às rotinas (o que impulsiona a criatividade e o espírito
aventureiro). Mas também ao sofrimento causado pela exposição constante aos riscos e pelas
exigências de eficácia e sucesso na vida escolar e/ou profissional. Tratar-se-ia, nessa
175

perspectiva, da confluência entre dispersão (fragmentação, impulso, estímulo), autonomia (de


acordo com o ponto de vista de Ehrenberg) e desempenho.
Entretanto, a potencialidade da categoria TDAH de agregar esses diferentes
fatores funda-se na questão do autocontrole, como ilustra a situação de Luan (“ele é
inteligente, mas não consegue se controlar”). É tolerável que a criança seja dispersiva (afinal,
os usos da tecnologia a levariam a essa forma comportamental), no entanto ela deve saber se
controlar quando necessário. O mesmo ocorre na empresa, onde se demanda a mudança
constante do foco de atenção, contanto que ela seja bem direcionada. Nesse sentido, a
conclusão de Sibilia (2012) — segundo a qual a incompatibilidade entre os desempenhos
exigidos pela escola disciplinar e as características das subjetividades contemporâneas de
crianças e de jovens constitui a questão central das relações sociais atuais — desconsidera o
que está realmente em jogo: a mobilização de um referencial de autocontrole, passível de
intervenção especializada, da qual a própria escola (disciplinar) faz parte.
A professora Maria Luiza ainda pondera:

O estímulo vem por conta do avanço tecnológico que cada vez é mais rápido. Vamos
dizer assim, antigamente era de dez em dez anos, hoje é de um dia pro outro. Não
tem mais aquele tempo. Tecnologicamente falando, o tempo é mínimo, né? Então,
cada vez mais, [...] quando você pergunta [a uma criança] “Gostou?”. “Gostei”. “Por
quê?”. “Ah, achei legal”. “Mas o que é legal?”. “Ah, é bom”. Sabe? Acabou. Eu
sinto como a era do monossílabo, não tem muito mais do que isso. Então isso de
conversar, de trocar ideia, de questionar e fazer suposições, eles não têm, porque é
tudo muito rápido. [...] Eles não estão tendo tempo de ser criança. (Maria Luiza,
professora da rede estadual. Entrevista concedida em 15 abr. 2013).
Além de influenciar a dispersão, os usos da tecnologia impactariam na
comunicação infantil, reduzindo-a a expressões simplificadas, monossilábicas. As crianças
então não mais conversam, imaginam ou interagem entre si? Identificaram-se nos capítulos
anteriores formas particulares de interação infantil e, até mesmo, de enfrentamento, sendo
que, neste caso, tal manifestação comportamental é ressignificada como sintoma disruptivo de
um transtorno mental, TDAH ou um distúrbio de conduta. A novidade trazida pela criança ao
mundo, como preconizava Arendt, dissipa-se na transgressão e na patologia.
Assim, mesmo com os novos modos de utilização da tecnologia, não estariam os
adultos fazendo as perguntas erradas às crianças? Um caso bastante significativo, nesse
sentido, é o da menina indicada por sua professora como “hipoativa”. Em sala de aula, ela não
executava as atividades solicitadas e não aprendia conforme o ritmo dos demais. Segundo a
professora Julia, a aluna não sabia escrever, mesmo cursando o terceiro ano, devido
principalmente a sua apatia patológica. A menina debruçava-se sobre seu caderno, pedia
constantemente permissão para ir ao banheiro ou beber água e permanecia fora da sala por um
176

longo período. Ela não respondia aos professores, não se comunicava. Na sala. Pois, em um
dia em que as crianças brincavam no pátio, ela “tagarelou” uma de suas histórias (muito bem
contada, há que se mencionar), dando indícios de que os professores não compreendiam que,
em sua forma particular de se comunicar, ela reagia à exigência de fazer algo que ela não
dominava: ler e escrever.
A hiperatividade e a impulsividade também são mencionadas no texto da ABDA.
Não esperar a vez, não ler a pergunta até o fim e já responder, interromper os outros, agir
antes de pensar, ter dificuldade de organizar e planejar, bem como não permanecer sentado
em situações em que isso é esperado, falar excessivamente e ser incapaz de brincar ou se
divertir quieto — descrições essas encontradas no manual diagnóstico — são algumas das
indicações sintomáticas do TDAH (que nos fazem questionar, sobretudo em relação ao último
item, se realmente se trata de um perfil infantil). Um médico considerará tais sinais
importantes quando, dentre os nove itens listados no DSM-V para esses sintomas, seis ou
mais forem frequentemente manifestados em ao menos dois contextos (escola e casa, por
exemplo) durante seis meses, minimamente. Ressalto dois pontos.
O primeiro concerne à proposição de Barkley — e do modelo cerebral-cognitivo
ao qual ele se filia — acerca da competência de planejar, prever resultados de ações e, enfim,
do autocontrole emocional e corporal. Tendo prejudicada sua capacidade de agir no mundo,
em decorrência de disfunções cerebrais, a criança incorreria em erros. A alusão do texto da
ABDA a tal modelo faz-se também manifesta na afirmação, aparentemente óbvia, de que
“quando as crianças se dedicam a fazer algo estimulante ou do seu interesse, conseguem
permanecer mais tranquilas”. A obviedade popularmente instituída (afinal quem gosta de
fazer algo desestimulante ou desinteressante?) reduz-se, todavia, a uma questão
neuropsicológica de reforço: “Isto ocorre porque os centros de prazer no cérebro são
ativados e conseguem dar um ‘reforço’ no centro da atenção que é ligado a ele, passando a
funcionar em níveis normais”. Prazer promove atenção, pois envia um “reforço positivo” ao
cérebro, que passa a funcionar bem, mesmo que temporariamente. As atividades
desinteressantes e desestimulantes (as atividades escolares convencionais, no consenso dos
professores) lhe enviariam um “reforço negativo”. Recordemo-nos também do neurocientista
que, palestrando para um grupo de professores, asseverou não bastar o desejo de ser feliz,
visto que são as conexões neuronais que garantem a experiência dessa sensação.
O segundo ponto diz respeito à generalidade das manifestações comportamentais
redefinidas como sintomas do TDAH. A descrição dos modos de inserção da criança no
espaço escolar, sobretudo no que se referem às exigências de adaptação, indica a produção de
177

um mal-estar generalizado entre professores (que esbravejam para serem ouvidos em sala de
aula, porém sem conseguir, apesar dos esforços, gerir os conflitos e prosseguir com o
cronograma de atividades) e alunos (que, inquietos, movimentam-se de modo incessante pela
sala, repetem sempre as mesmas perguntas ou anseiam impacientemente pela atenção da
professora). Ademais, a observação de que, durante os recreios escolares, as crianças corriam
e gritavam descontroladamente reporta à fluidez dos conceitos e das definições que
consolidam categorias como o TDAH. É como se todas as crianças, na escola ou no lar
(durante a fase pré-escolar citada na publicação da ABDA), fossem hiperativas e impulsivas,
apresentando apenas intensidades e prejuízos sociais distintos.
Essa configuração empírica permite-nos, em seu conjunto, elucidar o mecanismo
de funcionamento do TDAH. Tal categoria materializa-se no DSM, porém sua gênese ocorre
obrigatoriamente na escola contemporânea, marcada por contradições (disciplinar versus pós-
disciplinar) e crises. Há que se lembrar da constatação de que a entrada na educação
fundamental é, destacadamente, um momento de rupturas com os modelos familiares e com as
propostas da educação infantil. Nessa situação, a criança é apresentada a normas enrijecidas
de comportamento e de aprendizagem, classificações e padrões de desenvolvimento. É
também o momento primordial de elevação do número de encaminhamentos de alunos a
especialistas devido a problemas de conduta e de aprendizagem. Embora o texto da ABDA
afirme que “o TDAH não se associa necessariamente a dificuldades na vida escolar”, ele
reconhece que essa é “uma queixa freqüente de pais e professores”.
O surgimento do TDAH na escola justifica-se pela atribuição, socialmente feita a
essa instituição, da função de inserir a criança na esfera social e de possibilitar, pela
constituição da criança como indivíduo, a realização de um dado projeto de sociedade. E isso
não é novo. O TDAH emerge, no entanto, de um contexto escolar cuja particularidade reside
na questão da diferença e da autonomia. Em outras palavras, é tão-somente quando a criança
ascende ao centro da cena social enquanto sujeito autônomo (conforme o sentido dado ao
termo ao longo das análises empreendidas nesta tese) e, acima de tudo, enquanto sujeito de
direito que uma categoria como o TDAH pode se consolidar e efetivamente se exercer. Não
por acaso, a primeira seção dedicada exclusivamente à infância foi criada, em um mesmo
contexto, tanto na Constituição Federal brasileira quanto no Manual diagnóstico e estatístico
dos transtornos mentais, publicado na década de 1980 e logo adotado pela psiquiatria
brasileira. Nesse sentido, a escola — que desde o século XIX operava como “laboratório dos
desvios” — se revigora como meio de detectar os desvios e as diferenças e, simultaneamente,
como instituição fundamental à concretização da criança enquanto sujeito.
178

Até meados do século XX, a anormalidade era uma condição específica da


criança, entendida como um ser distinto do adulto. Ela não poderia então ser louca, pois,
estando em desenvolvimento, ainda não atingiu a razão. Com o advento dos transtornos
mentais e da diferença (ou ainda da diferença desvantajosa tratável, que agrega e, ao mesmo
tempo, ultrapassa essas duas condições), o estatuto da criança “anormal” se modifica.
Acometida por um transtorno mental, neurológico, cerebral e geral de suas capacidades de
agir por si mesma, controlar suas emoções, enfim, ser autônoma no presente e, sobretudo, no
futuro, a criança padece de uma condição que pode afligir qualquer indivíduo. No entanto,
sendo portadora de um transtorno mental, a criança apresenta particularidades que devem ser
respeitadas como diferenças. Sua condição infantil agrava a necessidade de tomá-la como
sujeito de direito devido às vulnerabilidades condizentes com aspectos sociais (tais como as
desigualdades econômicas e de gênero) ou com riscos potenciais causados pelo próprio
TDAH, tais como a delinquência.
Em ambos os casos, a criança deve ser reconhecida como sujeito pertencente à
escola, como membro de uma sociedade e como capaz de agir no mundo. Isso reforça a
constatação de que a criança hiperativa e desatenta somente surge de um contexto em que o
direito contra a vulnerabilidade e o discurso/prática científica (cerebral) se entrecruzam. A
psiquiatria biomédica e as neurociências buscarão no cérebro a origem da expressão das
vulnerabilidades infantis, sejam elas ligadas à delinquência, pobreza ou baixo desempenho
escolar. Por isso, o TDAH pode agregar uma gama de perfis de risco dentro de uma única
categoria. Os agentes habilitados a dizer a verdade sobre essa condição assumem, assim, uma
posição de produtores de realidade social pautada no funcionamento cerebral. Isso se
consolida pela efetivação de legislações e dispositivos jurídicos que autuam pais e professores
que desrespeitam as orientações médicas relativas ao TDAH, como aqueles mencionados no
capítulo anterior. Sobre a determinação da ciência como meio de acesso aos direitos
individuais, Andreasen (2005, p. 252) afirma que é preciso identificar as pessoas predispostas
a uma determinada condição psiquiátrica a fim de que se intervenha precocemente em seu
desenvolvimento. Tal necessidade confere aos psiquiatras e neurocientistas o poder de
promover programas de saúde pública destinados aos portadores.
Desse modo, a categoria TDAH é dual, pois carrega em si o disciplinar e o pós-
disciplinar. Enquanto instrumento disciplinar, individualiza, classifica, detecta os elementos
desviantes, modifica-os e homogeneíza-os como crianças-aluno. Enquanto instrumento pós-
disciplinar, multiplica-se por se pretender universal e a-histórico. Essa característica particular
do TDAH enseja, ao mesmo tempo, a funcionalidade da escolarização e a independência da
179

categoria em relação à sua origem escolar, o que lhe permite difundir-se por toda a tessitura
social. Sua dualidade corresponde à singularidade da contemporaneidade.
A sociedade atual, escolarizada, favorece a aquisição de competências e
habilidades, essenciais à formação continuada, como fundamento da constituição e avaliação
dos desempenhos ditos normais, porque esperados. A escolarização, um processo que se
expande por todos os âmbitos sociais, caracteriza-se pela mobilização de modos operatórios
fundados na divisão, classificação e comparação, articulação e sistematização. Impulsiona
igualmente modos racionais de organização do tempo e das atividades visando a uma
produtividade conquistada por meio da repetição. Esse conjunto operatório coexiste com um
movimento de difusão de padrões de flexibilidade, adaptação, criatividade e autonomia,
próprio de um modelo empresarial, que adentra também as escolas. Produtividade e
tecnologia são seus instrumentos e modos operatórios. Não por acaso os professores tendem a
qualificar a dispersão crescente de seus alunos tendo a realidade tecnológica contemporânea
como base de justificação.
A generalização do TDAH concretiza-se, por conseguinte, a partir de seu caráter
de categoria universal (que ultrapassa desigualdades e diferenças sociais e individuais) e, ao
mesmo tempo, de categoria particular de grupos vulneráveis a riscos sociais, psicológicos e
cerebrais. Todavia, ainda que se busque incorporar todas as formas de distinção social no bojo
da categoria, algumas questões lhe escapam. É o caso da reprodução de padrões de gênero que
delimitam os comportamentos masculinos e femininos. Essa característica é mais manifesta
em outras categorias, tais como os transtornos de conduta (majoritariamente masculinos) e o
transtorno disfórico pré-menstrual, uma condição descrita pelo DSM-IV-TR e pelo DSM-V e
designada como uma forma mais grave de tensão pré-menstrual cujos sintomas físicos (dores
corporais acentuadas), psíquicos (ansiedade e depressão) e emocionais (irritabilidade intensa)
prejudicam o funcionamento social e profissional da mulher. No caso do TDAH, o
reconhecimento de que meninos são geralmente identificados como hiperativos e impulsivos e
meninas como desatentas corresponde ao assentimento social de que meninas são mais calmas
e introvertidas, enquanto meninos comportam-se de modo mais expressivo.
Logo, o TDAH consolida-se como uma categoria que opera um movimento social
profundo: agrupa elementos diferentes sob uma mesma classificação que permite
desculpabilizar os indivíduos, já que o problema é definido como proveniente de disfunções
cerebrais — e aí está um aspecto atrativo à adesão de diferentes forças sociais. Ao mesmo
tempo, ele viabiliza a culpabilização de indivíduos ou instituições específicos quando
predominam teorias e hipóteses voltadas às influências do meio na constituição neuronal da
180

criança ou em seu desenvolvimento, como os supostos efeitos da carência cultural dos pais.
Ou ainda quando os responsáveis pela criança não aceitam sua condição particular e não
seguem as recomendações médicas. A crise é o elemento que permeia esses diferentes
aspectos e, assim, é nela que as práticas técnico-científicas intervêm por intermédio do
TDAH, construindo o desejo de intervenção como uma necessidade. De outro lado, a crítica a
essa categoria desarticula os elementos que a constituíram historicamente, mas culpabiliza, no
âmbito social, professores e famílias.
De modo geral, os elementos que compõem a categoria TDAH dizem respeito: a)
à generalização de uma condição vista como universal, para além das barreiras de classe, etnia
e cultura; b) à aproximação entre as diferentes representações sociais da criança (a perigosa, a
empreendedora, a agitada, a indisciplinada, a hiperativa, a desatenta), de suas vulnerabilidades
transformadas em perfis de risco e de diferentes saberes e valores (o neurobiológico, o
genético, o ambiental, o social e o moral) que se centram na adequação infantil às formas de
inserção social; e c) à permeabilidade de dicotomias antes fundamentais à manutenção de uma
sociedade disciplinar, tais como o normal/patológico, a escola/família (refletida na
transferência mútua de uma a outra ou no processo de profissionalização do cuidado com a
criança) e a criança/adulto (observada na adultização da criança e na infantilização do adulto,
bem como na questão da autonomia). Em última análise, o TDAH engloba todas as formas de
inserção social infantil características da contemporaneidade. Sua validade e difusão
efetivam-se por se acoplar a um tipo de pensamento médico, comum a práticas distintas sobre
o corpo, que se funda, sob o jugo do bem-estar, sobre o objetivo de realização de um projeto
de sociedade a ser garantida pela adequada socialização de seus indivíduos. Desse modo, o
mecanismo do TDAH não é meramente biomédica ou neurocientificamente orientado. Ele é
social e político.

A retomada do erro e a condição da criança hiperativa e desatenta

O mecanismo do TDAH constitui-se, finalmente, nos atos de contestação e no


apontamento do erro. O erro tem um caráter político. Os embates históricos entre as diferentes
vertentes da psiquiatria revelam que a construção de uma obra essencial à prática clínica — o
Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais — se faz por meio de consensos,
negociações, concessões e, até mesmo, interesses privados, geralmente de cunho financeiro.
No nível dos saberes especializados, o erro emerge como contestação da validade de um saber
e de seus instrumentos. Ela ocorre por intermédio da concepção de crise (especialmente em
181

sua perspectiva negativa de perda de referências) e dos dispositivos de medicalização aqui


evocados, tais como a proposição de discursos explicativos alternativos que, porém, se
formam em um mesmo sistema de pensamento que os conhecimentos e práticas criticados.
As discussões elaboradas nesta tese abordaram a autonomia — ou o desejo de
autonomia — enquanto elemento de uma relação fundada no bem-estar (isto é, na adequação
individual a pressupostos de aprimoramento do potencial humano voltado à vitalidade
corporal e mental, bem como do vigor do empreendedor, capaz de se adaptar, inovador,
flexível e sensível), definindo-se como uma forma de cuidado e governo de si e, ao mesmo
tempo, uma forma de intervenção especializada na realidade cotidiana dos indivíduos. Por
isso, a autonomia aparece atualmente no discurso de movimentos sociais e em propostas de
políticas públicas como um direito individual a ser garantido. Quando o ECA assevera, em
seu artigo terceiro, que “a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais
inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de que trata esta Lei,
assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as oportunidades e facilidades, a fim
de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de
liberdade e de dignidade” (BRASIL, 1990), empenha-se em resguardar esses sujeitos (seres
em desenvolvimento) das mazelas sociais, reconhecendo-os como indivíduos e conferindo-
lhes o direito à autonomia. E assim deve ser, em vista das conquistas sociais no que
concernem à criança e ao adolescente.
Todavia, falta-lhes ainda o reconhecimento de sua potencialidade de instaurar a
novidade. O mesmo ocorre quando a criança é tomada como objeto e colocada nas posições
inferiores de uma hierarquia. Para tanto, ela deve ser reconhecida como indivíduo que fala e
age em um jogo de forças. Mas o faz sob a orientação do adulto, respondendo (mantendo-se
em silêncio ou expressando-se de modo não verbal) à pergunta do pai, do professor ou do
médico, que interpreta tal resposta conforme os objetivos de sua indagação inicial. Nesse
sentido, a contestação do TDAH, bem como das práticas interventivas que o
instrumentalizam, representa a possibilidade de uma contestação mais profunda: aquela
direcionada à captura da diferença como patologia ou como modo de ser, garantido por
direito, dentro de um sistema escolar enrijecido. Ser reconhecido ali como diferente nada mais
é do que ser reconhecido como diferente. Nada se transforma, pois continua dormente a
potencialidade do novo: quando os atos infantis sinalizam uma perturbação da ordem
hierárquica instituída, logo ela é considerada como enfrentamento, falta de limites,
incapacidade ou sintomas de uma condição psiquiátrica. Por isso, a contestação da criança
realiza-se em um nível menor, político e quase invisível: nas formas infantis de brincar, de se
182

expressar e de colocar em questão as ações adultas, independentemente da condição do


sujeito. O erro é sua marca.
Errar significa, no sistema escolar disciplinar, desviar-se, perder tempo, não
aprender o correto. E a obrigação de não errar é ensinada às crianças precocemente. Isso
evidencia uma atualização do cenário social contemporâneo em que se interdita o erro, o
sofrimento e a dor (o que, segundo alguns psicanalistas e sociólogos, resulta em um fenômeno
de intolerância às frustrações e de aumento exponencial do consumo de medicamentos).
Discutiu-se anteriormente que a escolarização é o princípio fundamental do surgimento e da
difusão da categoria TDAH. O erro, portanto, é um elemento constituinte de sua engrenagem.
Isso se confirma por sua negativa, isto é, a partir da consideração de que em um programa de
educação não formal — o qual não se submete às normas institucionalizadas da escolarização
— os diagnósticos psiquiátricos relativos a dificuldades de aprendizagem e comportamentos
disruptivos não encontram um solo de fixação, inversamente ao que ocorre nas escolas
convencionais. Sobre a particularidade do programa e a possibilidade do erro, a professora
Vera diz:

Nas nossas oficinas de trabalhos manuais, para nós pouco importa o produto final.
Não que a gente não coloque desafios para que ele [o aluno] chegue a um produto
final. É muito legal quando eles fazem, refazem e vão se percebendo capazes e vão
fazendo de novo e vão se desafiando a fazer. E tem crianças que falam “não é
verdade, professora, que a gente pode errar?”. Eles podem errar o quanto eles
quiserem! [...] O mais importante é ele perceber que é capaz. [...] A gente não tem
nenhuma meta de modelos, de um produto, mas tem desafios pra chegar lá. (Vera,
professora de um programa de educação não formal. Entrevista concedida em 11 set.
2015).
Mantêm-se nesse discurso questões como a capacidade. Porém, trata-se de uma
capacidade destituída do pressuposto de desenvolvimento que visa a um ponto final ou a uma
média, ao contrário do que ocorre na fundamentação da pedagogia por princípios
psicológicos. Seu tom privilegia a positividade de uma condição de aprendizagem e percepção
do mundo. Errar torna-se uma verdade possível, contrariando a tendência contemporânea de
se apagar as falhas com uma borracha, no caso do aluno que comete erros, por distração ou
desconhecimento, em seu exercício escolar, ou com um medicamento que, usado
continuamente, silencia os dilemas individuais.
Aponto, portanto, a hipótese de que novas formas de educação e de relações
sociais que reconheçam essa possibilidade, aliadas a novas percepções referentes à inserção
social da criança, sejam capazes de modificar a essência de verdade (quase incontestável) de
práticas dominantes e suas categorias, como o TDAH. O papel secundário desse tipo de
classificação em propostas como a do programa de educação não formal visitado permite
183

esboçar uma tal hipótese. Isso não significa eliminar as classificações psiquiátricas e as
práticas terapêuticas, ou ainda rejeitar a existência de dificuldades de aprender. Defendo,
contudo, a ideia de que a relativização de sua verdade viabiliza o diálogo entre professores e
alunos, bem como desconstrói a necessidade e o desejo de intervenção contínua e minuciosa
de práticas médico-psicológicas.
O erro também se expressa na inquietude de crianças que correm e gritam nos
espaços livres e nos períodos de recreação, momentos esses em que todas elas são hiperativas,
impulsivas e desatentas. As crianças reconhecem seu entorno (como nos mostra Talita ao
perceber que “aqui só tem branco, nenhum negrinho como eu”), criam seus ritos (como o
jogo de “vaca-amarela” para, juntas, evitar uma punição), interagem ludicamente, inventando
um mundo próprio e, do mesmo modo, condizente com os aspectos de sua realidade social
(tais como as expectativas de gênero). A título de exemplo do trânsito entre o social e o
ludicamente produzido, vale mencionar um acontecimento vivenciado no programa de
educação não formal. A professora de uma turma de crianças entre cinco e nove anos de idade
lia uma estória peculiar, que oferecia ao leitor a possibilidade de escolher um entre dois finais
propostos pelo autor: um mais tradicional (a donzela é salva pelo príncipe e eles vivem
“felizes para sempre”) e outro inusitado (a protagonista prefere um desfecho sem príncipe). A
professora então propôs que as crianças criassem um terceiro final. Poucas elaboraram um
novo desenlace convencional, sendo que a maioria das criações envolvia temas cotidianos,
tais como: sequestro, roubo, aposta de dinheiro em cassino, pobreza (tornar-se mendigo
depois de perder dinheiro), porte de armas, violência (alguém que empurrou a princesa janela
abaixo), polícia federal e fuga.
O sofrimento e o enfrentamento infantis são sintomas das formas contemporâneas
de inserção social postas às crianças. São igualmente indicativos da condição política infantil,
referida anteriormente. Logo, a criança hiperativa e desatenta — assim como a indisciplinada,
enfrentadora, com dificuldades e, sobretudo, a “sem jeito” — pode contestar expressivamente
as normas que determinam sua condição. O repúdio ao médico que a “entope de remédio”. O
questionamento direcionado ao professor que somente provoca o aluno e não o ajuda. A
proposição de uma forma alternativa de relação. A declaração de que copiar é irritante. O
delírio da imaginação. O ser inútil, inadaptado e louco, que fala consigo mesmo. Os
movimentos das mãos e dos pés mesmo sob o efeito “calmante” da Ritalina®. O dançar
dentro do espaço rígido da sala de aula. Há uma infinidade de possibilidades de contestar.
Como já anunciado no terceiro capítulo, as pequenas resistências infantis
anunciam o erro como uma nova condição. Segundo Mongin (1994), a infância oscila entre
184

sonho e pesadelo — da vulnerabilidade e do sofrimento, para os quais o mundo


contemporâneo não mais dispõe de ferramentas para lidar —, entre demônios e mágicos,
fascinando a todos. A condição da criança hiperativa e desatenta representa essa experiência
vacilante. Sua “monstruosidade” (o que nos remete às figuras da anormalidade estudadas por
Foucault nos Anormais: o monstro, que corrompe as regras sociais; o indivíduo a ser
corrigido, que não se adapta à sociedade; e o pequeno masturbador) intensifica-se, minimiza-
se ou anula-se conforme a intensidade de seus sintomas e a eficácia do diagnóstico e do
tratamento, que portam a esperança de fazê-la uma boa aluna, comportada e autônoma.
A manifestação infantil, portanto, tem a potencialidade de abalar verdades e
hierarquias. É quando sua brincadeira não se ressignifica como estratégia pedagógica de
aprendizagem — ou como indicação sintomática de um transtorno mental ligado ao aprender
e ao comportamento — que a criança expressa sua inventividade, segundo Abramowicz
(2011). A retomada do erro é, assim, uma metáfora do ponto limite entre o aceitável e o
inaceitável, entre a fixidez e a possibilidade. Mongin (1994) afirmou que “seria melhor
enxergar na criança e no tempo da infância que ela se concede aquilo que tanto faz falta às
sociedades contemporâneas: um tempo que respeita o sonho, a indecisão e o arbitrário,
próprio da ficção”. Deleuze e Guattari (1997), uma década antes, viram na criança a potência
do devir, da construção do presente a partir daquilo que o sujeito é, como um movimento que
tensiona as formas, que multiplica e que cria o diferente e a possibilidade. Ao contrário dos
adultos, das teorias e das instituições, que produzem identidades enrijecidas, diminuindo,
assim, a potência criativa e imaginativa (mas não aquela que o mercado e a lógica empresarial
sustentam como proatividade individual) de experimentação e de jogo. Isso não significa,
contudo, construir e se apoiar em uma imagem idealizada da criança e da infância, cujas
causas e efeitos foram denunciados por Calligaris (1994).
A condição da criança hiperativa e desatenta é complexa. Sendo fundamental para
revelar todo o mecanismo de sua sujeição, ela interroga as verdades hegemônicas,
especializadas ou populares, que a definem. Seus erros e suas experiências de infância
portam, assim, a possibilidade de novas políticas de verdade.
185

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A possibilidade de novas políticas da verdade

O problema político essencial para o intelectual não é criticar


os conteúdos ideológicos que estariam ligados à ciência ou
fazer com que sua prática científica seja acompanhada por uma
ideologia justa; mas saber se é possível constituir uma nova
política da verdade. O problema não é mudar a “consciência”
das pessoas, ou o que elas têm na cabeça, mas o regime
político, econômico, institucional de produção da verdade.
(FOUCAULT, 2006a, p. 14).

Nos últimos anos, os meios de comunicação têm evidenciado o Transtorno de


Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Uma tendência se realça nas notícias
veiculadas: a articulação dessa condição psiquiátrica com os direitos de inclusão da criança
portadora. No início de janeiro de 2016, com a divulgação dos resultados do Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM), inúmeras notificações circularam pelas redes sociais tendo em
foco os alunos com TDAH e com dislexia eliminados do processo seletivo. Ainda que o
Ministério da Educação e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, órgãos
federais responsáveis pelo exame, não tenham se pronunciado quanto ao motivo da
eliminação, as notícias e comentários qualificavam a ação como preconceito contra os
candidatos portadores de diferenças e necessidades especiais, embora esses alunos houvessem
desfrutado dos recursos compensatórios oferecidos durante a realização da prova, tais como
uma hora excedente para sua execução e um leitor externo.
A problemática que se expressa por meio desse acontecimento articula o discurso
da psiquiatria, que embasa o pressuposto neurobiológico e patológico do TDAH (e da
dislexia), o aparato jurídico que garante um conjunto de leis de inclusão e de recursos
compensatórios de deficiências e dificuldades, e a crise do sistema de educação escolar,
representada por um suposto preconceito manifestado pela ação do MEC e do INEP. As
discussões complementares, consolidadas nesse mesmo plano contestatório, revelam que o
problema da criança-aluno com TDAH entrecruza o da criança sujeito de direito. Ressalto três
pontos fundamentais. O primeiro diz respeito a uma disputa entre saberes e práticas pela
legitimidade de dizer a verdade sobre a condição da criança hiperativa e desatenta. Dessa
disputa, a ciência emerge — e aí está o segundo ponto — como a principal fonte de acesso a
direitos individuais. No caso do ENEM, direitos especiais são concedidos a candidatos que
comprovem, por meio de laudo médico, ser portadores de um transtorno mental. O terceiro
ponto, finalmente, corresponde à condição política da criança hiperativa e desatenta,
186

obscurecida nesses embates: trata-se de sua potencialidade de colocar em questão as verdades


que constroem externamente a sua condição de portadora de um transtorno mental.
Verdade e política — sendo esta entendida como jogos de forças ou relações de
poder-saber — são indissociáveis. Em cada jogo de força estabelecido histórica e socialmente,
produzem-se posições delimitadas a partir das quais indivíduos e grupos dispõem da
legitimidade de enunciar certos tipos de discurso. Políticas da verdade caracterizam, portanto,
tipos de discurso aceitos por uma sociedade que, por isso, funcionam como verdadeiros. Na
contemporaneidade, elas concentram-se no âmbito científico e submetem-se a contínuos
incentivos políticos e econômicos. Trata-se, assim, de um objeto de difusão e de consumo
produzido e distribuído por aparatos político-econômicos ao debate público das lutas sociais
(FOUCAULT apud CASTRO, 2009, p. 423).
As formas de inserção social infantil, os modos técnico-científicos interventivos,
representados preponderantemente pela psiquiatria, e seus instrumentos (como o TDAH)
constituem, hoje, elementos dessas práticas. O problema que se constitui gravita em torno da
captura de condições reais de vulnerabilidade e sofrimento, socialmente dadas e significadas,
por uma categoria construída em um contexto histórico particular. Em outras palavras, o
questionamento das condições pelas quais determinados comportamentos são ressignificados
como disfuncionais e problemáticos aponta para configurações sociais, históricas, culturais,
políticas e econômicas específicas. A categoria que aí se cria assume, por força da
legitimidade dos discursos médico-psiquiátricos, o estatuto de verdade sobre os indivíduos.
Entretanto, ela também contém a contestação e o erro enquanto possibilidade de mudança.
Esta tese buscou colocar em outros termos as verdades instituídas sobre a
condição da criança hiperativa e desatenta, situada em um processo específico de inserção
social. Observou-se que as práticas interventivas mobilizadas, tendo o TDAH como seu
instrumento, aplicam-se sobre os corpos infantis (uma vez que os sintomas de tal transtorno
são manifestações comportamentais tidas como provenientes, primordialmente, de disfunções
em neurotransmissores localizados no córtex pré-frontal e responsáveis pelo controle das
emoções, dos comportamentos e da atenção), mas também sobre as instituições responsáveis
pela socialização infantil adequada, com destaque à escola em crise. Não se trata, porém, de
um movimento unilateral advindo da medicina e direcionado à educação escolar. O processo é
difuso e tem como problema político subjacente a socialização infantil, isto é, a adequação do
indivíduo a um projeto de sociedade que se apoia sobre a realização da autonomia, das
escolhas racionais e da superação das fragilidades e deficiências humanas.
187

A criança é colocada em uma posição paradoxal, relativa a esse projeto. Ela é


reconhecida como um indivíduo vulnerável, pois situada em um processo de desenvolvimento
cuja realização plena deve ser garantida pelo Estado, pela família e pela sociedade, incluindo
a escola. Ademais, em um contexto de flexibilização das relações sociais fundadas na
autoridade de pais e professores, a criança assume papéis cada vez mais importantes na
sociedade. Incitam-se, assim, medidas que lhe permitam desenvolver suas próprias
habilidades e desfrutar de condições de seguir seu próprio caminho. No espaço escolar,
entretanto, as normas comportamentais e de desempenho são ainda rígidas e disciplinares. Ou
seja, operam por meio de classificações, divisões, comparações e modos sistemáticos de
organização do tempo e das atividades. A criança-aluno deve então adaptar-se e encaixar-se
em suas normas (ainda que socialmente declaradas como preceitos de uma instituição em
crise) para ser reconhecida como indivíduo. Caso contrário, ela caracteriza-se como um
“desviante”, representado na figura da criança vivendo uma “não infância”, uma experiência
de depreciação ou anulação de seu corpo e sua subjetividade, ou na imagem da criança
hiperativa e desatenta, cujos comportamentos disruptivos explicam-se como sintomas de um
transtorno mental: o TDAH.
Diversamente da loucura, uma condição ou uma experiência em si definida de
diferentes modos em campos os mais variados, o TDAH é uma categoria, um instrumento que
abrange múltiplas condições e experiências, pois acoplado a um modo de pensar e intervir
sobre o corpo que orienta práticas distintas. Daí sua capacidade de se difundir e se generalizar
pela sociedade, incorporando as diversas formas de inserção social infantil e as representações
da criança reconhecida como membro de uma sociedade.
Definido clinicamente como um transtorno do neurodesenvolvimento cujos
sintomas são a desatenção, hiperatividade e impulsividade, o TDAH é um instrumento técnico
dual. Em seu viés disciplinar, ele permite individualizar, classificar, identificar os elementos
desviantes, modificá-los e homogeneizá-los todos como crianças-aluno. Em seu viés pós-
disciplinar (CASTEL, 2011; RABINOW, 2002), ele se multiplica por se pretender universal e
a-histórico, beneficiando-se da fluidez das noções que o regem, tal como a de “transtorno
mental”, ou mesmo das novas reivindicações por direitos às diferenças individuais.
Seu mote é o bem-estar, isto é, um processo que leva o sujeito a se formar como
desejante de seu aprimoramento corporal, cognitivo e afetivo, enquanto indivíduo responsável
por si mesmo, performático e respeitado por sua diferença, bem como a ter suas ações e
reações respaldadas por saberes técnico-científicos. Em última instância, esse processo visa a
garantir que os indivíduos e as instituições continuem a atuar como engrenagem de
188

funcionamento de um projeto de sociedade. Projeto esse que combina uma ordem ainda
disciplinar e um modelo empresarial.
Esse é, portanto, o ponto de onde emerge a questão da medicalização. O processo
histórico de captura do corpo como instrumento biopolítico — sendo o corpo individual
reestruturado em suas mínimas partes pela disciplina e o corpo-espécie (a população) tomado
para se construir sobre ele um conhecimento que visa ao seu governo — por relações de
poder-saber que têm a medicina como campo principal (mas articulado a outras técnicas e
saberes, como a estatística, a demografia, a sociologia, a antropologia, uma conjugação que
possibilita o surgimento da medicina social) faz surgir um discurso medicalizante. Isto é, um
discurso segundo o qual o corpo, a mente e os sujeitos são pensados como elementos
biológicos (e, posteriormente, neurológicos), sobre os quais é possível intervir a partir de um
saber e uma prática médica que visa ao bem-estar da população, à prevenção e eliminação de
males que ameaçam a sociedade e seu progresso. Estamos, aqui, no século XIX e início do
XX. Entretanto, a lógica do bem-estar prolonga-se até nossos tempos sofrendo modificações.
O poder atrativo da lógica médica de bem-estar instiga outros campos de saber e
até mesmo, em uma sociedade pós-disciplinar, discursos e dispositivos midiáticos (a difusão
das indicações diagnósticas do TDAH por meio de notícias ou comunicações via rede sociais,
por exemplo) e mercadológicos (como o caso dos estudos sobre as emoções) que alimentam a
imagem de um indivíduo ideal, empreendedor, flexível e adaptado, mas também controlado e
disciplinado em seus comportamentos e emoções, bem como os movimentos sociais que
lutam pelos direitos à diferença e à autonomia individual. O corpo objeto dessa lógica não é
mais aquele que funcionava em prol do progresso da nação (o que se reproduzia na imagem
da criança-aluno no Brasil do início do século XX), mas sim o sujeito responsável por si que,
na sua auto-reprodução, legitima os saberes e as técnicas que supostamente o levam a “ser
melhor do que ele já é” (ROSE, 2007) e que passam a abranger toda a existência humana
(CASTEL, 2011).
A medicalização, em sua articulação com o TDAH, havia sido tema de outro
estudo (BARBARINI, 2011; 2015), elaborado a partir de dados empíricos coletados em um
ambulatório universitário de psiquiatria infantil. Nas relações microssociais estabelecidas
nesse espaço, o bem-estar era comumente evocado, nas falas de psiquiatras e de pais, como
sinônimo da melhora proporcionada pelo tratamento (medicamentoso). Tratava-se de uma
conquista da adequação infantil, alcançada de modo gratificante. A verificação da melhora da
criança (isto é, o silenciamento dos sintomas e/ou o aprimoramento do desempenho escolar)
era o ponto final de um processo de negociações: ela legitimava a autoridade médica.
189

Fazia parte dessas negociações e, consequentemente, do estabelecimento do


diagnóstico da criança, um contato indireto, por meio de cartas e relatórios, entre psiquiatras e
professores. Tal contato permitia aos primeiros aproximarem-se da realidade escolar da
criança, mas afastar-se dela ao afirmar que a condição de sua paciente extrapolava o campo da
educação por ser patológica. Para tanto, o professor relatava os comportamentos, as condições
do aluno-paciente na escola, suas dificuldades, melhoras e pioras, para que o psiquiatra
tomasse conhecimento do que acontecia fora de seu âmbito de atuação. Além disso, esse
contato indireto era estabelecido visando ao fornecimento de sugestões e recomendações a
fim de tentar proporcionar ao aluno, diagnosticado como portador de TDAH, um ambiente
mais ajustado a sua aprendizagem. Assim, os psiquiatras assumiam o papel de reorganizar
seus modos de viver e agir, bem como os de seus pais e professores, tendo como foco e
justificativa o TDAH. E isso se legitimava pelo fato de que a escola era comumente vista,
nesses casos, como incapaz de elaborar projetos e estratégias específicas para a criança com
problemas.
Os resultados de minha atual pesquisa de campo, realizada em estabelecimentos
de ensino, corroboram aquelas constatações. Nos espaços escolares, a troca de informações
entre professores e especialistas dava-se, geralmente, em um momento inicial em que os
primeiros encaminhavam ao segundo um relatório. Nele, descreviam-se os comportamentos
incômodos manifestados pelo aluno e solicitava-se uma consulta sob a suspeita de TDAH.
Isso é possível devido à circulação, na escola, de uma linguagem sobre essa condição
psiquiátrica. Enquanto no ambulatório tal categoria já se encontrava consolidada — isto é, os
pais dispunham de informações mais específicas, uma vez que estavam inseridos no meio
médico há algum tempo (já os recém-chegados ainda hesitavam em definir o TDAH) —, nos
estabelecimentos de ensino a fluidez dos termos era mais evidente. Essa situação promove
uma importante popularização da linguagem técnica direcionada ao diagnóstico de crianças
hiperativas e desatentas e ao privilégio do medicamento como tratamento terapêutico.
O controle das emoções e da corporalidade constitui uma peça fundamental ao
TDAH. Uma de suas indicações sintomáticas, propostas pelo Manual diagnóstico e estatístico
dos transtornos mentais nesse sentido, é a “dificuldade em brincar ou ficar em silêncio
durante o lazer”. Evidencia-se que o controle da corporalidade, das emoções e de qualquer
tipo de manifestação expressiva é desejado mesmo nas brincadeiras, momentos em que a
criança teria espaço para se expressar e se descontrair. Ao controle se articulam as questões da
diferença, dos direitos e dos deveres da criança. Deve-se dar-lhe todo o tratamento necessário
ao seu pleno desenvolvimento (educação, saúde, alimentação etc.) para que, no futuro, ela
190

exerça seus deveres de cidadã. Esse é um indício da já mencionada especificidade da


categoria TDAH: a de englobar todas as formas de inserção social infantil características da
contemporaneidade, o que revela o caráter sociopolítico de seu mecanismo de funcionamento.
Esse caráter sociopolítico da categoria se expressa em diferentes aspectos. O
primeiro se define pelos processos de construção de consenso, pelas disputas entre vertentes
psiquiátricas e movimentos sociais ou mesmo pela ação da indústria farmacêutica e das
seguradoras de saúde, como mostra a história do DSM. Uma forte polêmica estabeleceu-se em
torno de sua quinta edição em razão da vinculação de uma parcela majoritária de seus
colaboradores a laboratórios farmacêuticos. O estudo de Cheida (2013) mostra que, no Brasil,
os grandes nomes das pesquisas sobre o TDAH beneficiam-se desse tipo de vínculo. Político,
nesse sentido, diz respeito a jogos de diferentes forças que, movimentando-se em direções
diversas, organizam a tessitura de surgimento, difusão e generalização do TDAH e de tantas
outras categorias clínicas e psiquiátricas.
Mas o caráter sociopolítico do TDAH evidencia-se igualmente pela emergência de
novos atores sociais, como os grupos de apoio aos portadores do transtorno ou, na outra
ponta, os movimentos políticos de contestação das formas psiquiátricas interventivas na vida
cotidiana. Em um nível microssocial, os professores e as famílias configuram relações
renovadas, tais como os jogos de culpabilização mútua pela responsabilidade de cuidado com
a criança, mobilizando discursos médico-psicológicos, assim como explicações sociológicas e
ambientais — produzidas em contextos bem delimitados — acerca da condição
contemporânea da criança e da infância.
Esse jogo de forças inclui também as crianças e sua condição de ser hiperativa e
desatenta. Apesar das posições sociais paradoxais ocupadas por esses sujeitos infantis, algo
lhes é comum, porém pouco reconhecido: eles pertencem a um grupo minoritário, no sentido
proposto por Deleuze e Guattari (1997). Minoria não é um grupo formado quantitativamente.
É, ao contrário, o poder local e menor das crianças enquanto um devir minoritário, um devir-
criança, um depositário da possibilidade de transformação. Suas trajetórias são fluxos, e não
modelos enrijecidos, como aqueles impostos pelas instituições. Não é por acaso que, em um
recreio escolar, as crianças correm e gritam como se fossem, todas elas, “hiperativas” e
“desatentas” — rótulos esses criados para fixá-las. Elas redescobrem o erro como uma
possibilidade e invertem a ordem hierárquica no ato do enfrentamento, logo ressignificado
como um sintoma da conduta patológica. O reconhecimento desse poder, constituinte da
condição da criança hiperativa e desatenta, é a possibilidade de novas políticas da verdade.
Isso significa, parafraseando Foucault (2006a), desvincular o poder da verdade das formas
191

hegemônicas (constituídas por teorias científicas, práticas sociais ou práticas de si), dentro das
quais ela funciona em um determinado momento.
É importante notar, portanto, que, do encontro entre os modos contemporâneos de
inserção social e de constituição (subjetivação) da criança e as práticas psiquiátricas de
intervenção sobre aquelas identificadas como hiperativas e desatentas, emerge a possibilidade
de submissão da criança a um ideal de indivíduo e, ao mesmo tempo, de novas contingências,
colocando sob outras perspectivas as verdades que movem uma sociedade.
Nesse sentido, o intelectual e o pesquisador também desempenham um importante
papel ao se preocupar com o caráter sociopolítico das categorias médico-psicológicas. Aludo
à questão da ética na pesquisa em ciências sociais e humanas. Trata-se de um tema em voga
nas discussões atuais promovidas por órgãos de pesquisa e por pesquisadores, sobretudo no
que concernem aos instrumentos e pressupostos biomédicos utilizados por conselhos
superiores (como os Comitês de Ética em Pesquisa e o Conselho Nacional de Pesquisa) para
avaliar projetos desenvolvidos na área de humanas. Viégas, Harayama e Souza (2015) tratam
do tema centrando-se na questão dos riscos de pesquisa, que devem ser apontados como uma
parte do protocolo exigido por aqueles conselhos. Um grupo representativo de pesquisadores
da área — particularmente no campo da psicologia — vem afirmando que esses trabalhos não
apresentam riscos ou que apresentam riscos mínimos aos participantes. Entretanto, o caráter
inofensivo desse tipo de abordagem deve ser revisto, segundo os autores. Isso porque, nos
últimos anos, cresce significativamente o número de pesquisas em psicologia escolar e
educacional, desenvolvidas dentro de escolas públicas, que adotam um viés organicista.
Devido ao seu recorte, essa perspectiva situa a questão do fracasso escolar no
corpo do aluno (como decorrência de uma disfunção neurológica ou psicológica) e culpabiliza
crianças, pais e professores pela má escolarização. Essa visão acaba por se legitimar, porque
científica, fundamentando a elaboração de políticas públicas e discursos popularizados e
perpetuando desigualdades, estigmas e preconceitos social e historicamente originados.
Ademais, fazendo uso desse status de “risco zero” das ciências sociais e humanas que se
forma no discurso acadêmico, pesquisadores de psicologia, por exemplo, adentram as escolas
a fim de aplicar testes, como o SNAP-IV para o TDAH, construídos no campo biomédico.
Sua finalidade é elaborar prevalências que instituem a necessidade de se intervir médica,
terapêutica e/ou medicamentosamente nas condições de fracasso escolar. Como efeito dessa
necessidade, a culpabilização da família, da escola e do indivíduo ratifica a realização de
pesquisas intervencionistas no meio escolar. Apreende-se do alerta feito pelos autores — e
que deve se estender a todas as ciências do homem, no sentido foucaultiano — a
192

imprescindibilidade de uma análise acerca da postura do pesquisador e de uma


problematização de sua presença em campo, seu papel demandado pelos sujeitos, as relações
estabelecidas, as perturbações provocadas, visto que nenhuma ciência ou saber é neutro.
Mas como estudar os seres humanos? Essa pergunta guia a obra de Dreyfus e
Rabinow (1995), que percorrem o trabalho intelectual de Michel Foucault buscando
elementos para respondê-la. A escolha desse arcabouço teórico justifica-se pelo fato de que,
para os autores (DREYFUS; RABINOW, 1995, p. xiii), Foucault oferece elementos para o
diagnóstico da situação atual da sociedade a partir de um coerente recurso de compreensão
alternativo à fenomenologia (que liga o sentido à ação de um sujeito autônomo e
transcendental de significar), ao estruturalismo (que elimina a noção de sentido) e à
hermenêutica (que lê o sentido implícito das práticas sociais e desvela um significado
diferente e mais profundo pouco conhecido pelos atores sociais). Tal percurso os levará a
ponderar as ciências sociais e humanas, que tomam o homem enquanto objeto e sujeito de
conhecimento (FOUCAULT, 2002), uma vez que se trata de saberes objetivantes (isto é,
produzidos originalmente em correlação a práticas disciplinares de controle do corpo) e
subjetivantes (ciências interpretativas, que buscam o significado profundo dos discursos,
desencadeadas com a expansão da tecnologia confessional aplicada sobre o “sujeito que
fala”).
Esse status do ser humano na sociedade, criado a partir dos séculos XVIII e XIX,
possibilitou o surgimento de mecanismos de organização racionalizada e de normalização do
domínio da atividade humana. Eles transformaram o ser humano, portador de um corpo, em
sujeito com sentido e em objeto dócil por meio de saberes e técnicas hermenêuticas,
psicanalíticas (subjetivantes) e estruturalistas (objetivantes). Assim, o próprio pesquisador,
que também tem um corpo, é produzido por uma tecnologia específica, igualmente ativa sobre
os objetos que ele estuda. Portanto, não há nada de neutro em uma investigação, assim como
não há nada neutro na aplicação de um teste de inteligência ou de um teste para o TDAH,
tampouco nas práticas pedagógicas, fundadas em um saber técnico e social.
A presença do pesquisador no espaço escolar reflete essa realidade. Por um lado,
sua condição externa às hierarquias escolares (embora seja um adulto, o pesquisador não é o
professor e não objetiva identificar comportamentos a ser punidos, por exemplo) permite-lhe
estabelecer um contato menos verticalizado com as crianças e, por isso, apreender elementos
constituintes da realidade em que ele também se insere, ainda que provisoriamente. Cuidados
são necessários, pois sua presença altera a dinâmica do campo de sua pesquisa. Por outro
lado, o pesquisador representa uma figura de autoridade, portador de um saber científico
193

capaz de oferecer soluções aos problemas locais. É interessante notar que, ao anunciar meu
objetivo de compreender as relações estabelecidas no meio escolar, sobretudo quando
relativas ao TDAH, grande parte dos professores pressupunha que eu era uma psicóloga ou
estagiária em pedagogia. Porém, mesmo aqueles que, diferenciando o propósito investigativo
de uma intervenção pedagógica ou psicológica, por vezes demandavam meu auxílio para
analisar uma situação pontual, incluindo seu próprio desempenho em sala de aula. Outros
viam a possibilidade de compartilhar reflexões e propor novos temas de pesquisa.
Em vista dessas condições, como a sociologia pode contribuir para os estudos, em
diversos campos, dos transtornos mentais infantis ligados à aprendizagem e, em última
instância, às formas de inserção social da criança, ou mesmo da saúde mental em geral? Esse
tipo de proposta tem se multiplicado nos últimos anos, sobretudo no que concerne ao tema do
TDAH, desenvolvido de maneira crítica em áreas destacadas como a psicologia e a pedagogia
(avaliação, políticas educacionais, entre outras), adotando um olhar “social”, mas nem sempre
sociológico. Polêmicas também se edificam. É o caso das discussões que questionam a ética e
o emprego de padrões científicos rigorosos em pesquisas financiadas por laboratórios
farmacêuticos, cujos resultados pretendem validar o TDAH e suas formas de tratamento —
principalmente a medicamentosa — e estabelecer prevalências.
Um conjunto de estudos interdisciplinares e de relatos de experiência cotidiana
tem buscado compreender as particularidades e a extensão do fenômeno do TDAH na
sociedade brasileira e no mundo. Porém, muitos caminhos são possíveis. Cito algumas
possibilidades.
Faz-se necessária uma comparação entre regiões brasileiras a fim de verificar a
importância do contexto social e das formas de socialização infantil no encaminhamento de
crianças a especialistas e, sobretudo, na construção do significado o diagnóstico, do laudo e
do tratamento médico. O intuito de tal percurso investigativo seria analisar se a
permeabilidade dos saberes técnico-científicos, com destaque à psiquiatria e às neurociências,
ocorre em todo tipo de conjuntura social e, em caso positivo, se o faz de modo homogêneo.
A análise da conjuntura social associada à difusão do TDAH no Brasil refere-se
também a uma pesquisa aprofundada das leis e dos projetos de lei que enfocam o TDAH ou
outros transtornos de aprendizagem. Visto que o campo jurídico tem desempenhado um papel
cada vez mais importante nas ações civis em torno do TDAH e da inserção social infantil,
esse tipo de investigação torna-se relevante. No âmbito das políticas públicas escolares,
articulam-se novos projetos (sobretudo aqueles voltados à inclusão, diversos no decorrer da
história: educação obrigatória, inclusão de portadores de necessidades especiais, entre outros)
194

e novas exigências por adaptação estrutural do estabelecimento escolar e das funções de seus
funcionários.
Interessaria, finalmente, uma análise dos pontos de cruzamento dos sistemas
brasileiros de saúde mental infantil e de educação, bem como um estudo acerca da articulação
entre seus profissionais e os demais sujeitos envolvidos, sobretudo a criança. Em um projeto
subsequente, almejo abarcar esta perspectiva. Trata-se de uma proposta que visa a conhecer e
analisar uma rede municipal de demandas e cuidados formada em torno da ideia de
“agitação”, relacionada aos transtornos infantis de aprendizagem e de conduta. Buscarei
integrar-me a serviços de saúde mental, originados pelo movimento de Reforma
Psiquiátrica97, em que predominam abordagens alternativas aos pressupostos psiquiátricos
biomédicos definidores do TDAH. O projeto também intenciona compreender, do ponto de
vista social e empírico, as trajetórias sociais, escolares e médicas de crianças e famílias em
relação à “agitação”. Do ponto de vista administrativo e político, pretenderá apreender as
políticas públicas que articulam saúde mental infantil e educação e suas implicações nos
contextos estudados em uma região metropolitana do estado de São Paulo.

97
O movimento de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos iniciou-se no Brasil em 1967, propondo a
integração entre saúde mental e saúde pública e a criação de serviços de modalidade comunitária (modelo
preventivo-comunitário). Consolidou-se, porém, apenas no fim da década de 70, quando da efetivação da
Reforma Psiquiátrica no país. Segundo Amarante (1995, p. 494), o projeto propunha não somente extinguir os
hospitais psiquiátricos e as técnicas arcaicas de confinamento e de tratamento da doença como uma entidade
abstrata (o que causou uma tensão na relação do movimento com a psiquiatria tradicional e com setores privados
ligados a hospícios), mas principalmente tratar o paciente como sujeito de direito “em sua existência e em
relação com suas condições concretas de vida”.
195

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212

APÊNDICE A
Detalhamento metodológico

O material de base desta tese foi coletado por meio de metodologia qualitativa,
envolvendo pesquisa bibliográfica98 e pesquisa de campo. A propósito da problematização
sociológica delimitada para a presente tese de doutorado, esse tipo de metodologia é mais
adequado, pois permite o contato direto com a realidade vivida cotidianamente por sujeitos
envolvidos com o objeto de estudo, os discursos que o perpassam e as instituições que os
sustentam. Em poucas palavras, a pesquisa qualitativa permite que, por meio da interação
entre pesquisador e participantes da pesquisa, identifiquem-se, descrevam-se e analisem-se as
relações, as expectativas e as representações referentes a um determinado acontecimento ou
fenômeno social, no caso, a inserção social da criança, a intervenção médica e o TDAH.
Campo é “na pesquisa qualitativa, o recorte espacial que corresponde à
abrangência, em termos empíricos, do recorte teórico correspondente ao objeto de
investigação” (MINAYO, 2000, p. 105). Em outra pesquisa (BARBARINI, 2011; 2015), um
ambulatório de psiquiatria infantil constituiu o campo privilegiado para a investigação
sociológica do TDAH infantil. Lá, ouviram-se crianças diagnosticadas, seus pais ou
responsáveis legais e profissionais de saúde, sendo que os professores e as escolas foram
mencionadas apenas indiretamente. Além disso, a instituição escolar foi constantemente
indicada como espaço principal de encaminhamento de crianças com “dificuldades de
aprendizagem” a especialistas. Em vista de uma lacuna sentida em meus estudos sobre o
TDAH, a pesquisa de campo em nível de doutorado foi desenvolvida em estabelecimentos
escolares localizados nas cidades de Campinas (sede da pesquisa) e de Moji Mirim (local de
residência da pesquisadora), no interior do estado de São Paulo. As visitas ocorreram em dois
momentos: entre março de 2013 e julho de 2014 e entre junho e dezembro de 2015. No
primeiro momento, as observações eram feitas uma vez por semana. Já no segundo, foram
marcados encontros com professores e/ou crianças a fim de apresentar dados e discuti-los com
os participantes da pesquisa.
Os estabelecimentos escolares foram selecionados conforme critérios de
conveniência (a facilidade de deslocamento urbano e a existência de contato prévio com
membros de alguns estabelecimentos), de receptividade (abertura dos diretores,

98
Privilegiou-se o levantamento de obras, teses, dissertações, artigos e palestras de diferentes campos do
conhecimento, tais como ciências sociais, filosofia, história, saúde pública e coletiva, pedagogia, psicologia e
medicina. Fez-se uso de indicações contidas em textos lidos e de ferramentas virtuais (páginas de busca, páginas
de bibliotecas, redes sociais) para a procura de referências que pudessem ser úteis à fundamentação do arcabouço
conceitual e teórico da pesquisa de campo e da tese.
213

coordenadores pedagógicos e professores à execução da pesquisa; foram excluídas as escolas


que impuseram limites que invalidavam a realização do campo, como a impossibilidade de
acesso aos professores e/ou às crianças), de caráter administrativo (escolas públicas,
municipais e estaduais, e privadas) e de recomendação (um profissional recomendava o
contato um colega que atuava em outra escola). Dos nove estabelecimentos de ensino
contatados nas duas cidades mencionadas (quatro escolas particulares, duas municipais, uma
estadual e dois programas de educação não formal), apenas cinco permitiram a execução da
pesquisa (uma escola particular e uma municipal em Moji Mirim e uma estadual, uma
municipal e um programa em Campinas)99. No quadro abaixo constam as principais
características de cada estabelecimento de ensino visitado. Seus nomes foram omitidos a fim
de prezar pelo anonimato dos participantes da pesquisa.

Características dos estabelecimentos de ensino visitados


Escola municipal de ensino fundamental ciclo II de Moji Mirim (1960): localiza-se em um bairro
caracterizado pela chegada de imigrantes italianos no fim do século XIX e marcado pela influência do
catolicismo e do êxodo rural. Em 2008, a escola passou pelo processo de municipalização (Programa de
parceria educacional Estado-Município), sendo administrada pelo Departamento de Educação da
Prefeitura Municipal de Moji Mirim. Em 2015, 391 crianças e adolescentes (sendo que a maioria mora no
bairro) frenquentavam a escola, que oferece ensino de 6º a 9º ano. Sobre seu princípio pedagógico: cada
professor elegia o material didático (livro) que julgava mais adequado e a Prefeitura o providenciava.
Entretanto, nem sempre o pedido era feito corretamente. Assim, faltavam livros ou chegavam outros não
solicitados (Informação obtida em conversa não formal com coordenadora pedagógica em 06/05/2013).
Recentemente, a Prefeitura municipal adotou uma metodologia apostilada específica que privilegia o
trabalho com pesquisa, e não com cópia de conteúdos da lousa (Informação obtida em conversa não
formal com coordenadora pedagógica em 10/09/2015). Há poucos lugares destinados a atividades ao ar
livre. A escola conta com uma quadra e um espaço no pátio onde são feitas as aulas de educação física.
As salas de aula dispõem-se em dois corredores. Dentro de cada uma, as carteiras são distribuídas em
fileiras, há uma lousa verde e a mesa do professor à frente e ao lado de uma grande janela. Em algumas
salas, há uma cruz no alto, ao lado do ventilador e do relógio.
Escola privada de Moji Mirim: trata-se da filial de uma franquia escolar. O estabelecimento localiza-se
em um bairro de classe média-alta e oferece serviços de educação infantil, fundamental e média. Sua
infraestrutura física destinada a atividades ao ar livre é constituída por uma piscina, parquinhos, pátios e
uma pequena área verde. Na secretaria da escola, encontram-se quadros que retratam alunos (crianças e
adolescentes) vestidos como médicos, engenheiros e outras profissões de prestígio. A sala onde foi
realizada a entrevista coletiva era nova, com carteiras dispostas em fileiras em frente à lousa e à mesa do
professor. Havia um microfone e uma caixa de som que, a meu ver, eram usados por professores em aula.
Escola municipal de ensino fundamental ciclo I de Campinas (1982): localizado na região noroeste da
cidade, o estabelecimento oferece serviços educacionais do 1º ao 5º ano. Em 2010, a escola passou para a
administração da Secretaria Municipal de Educação e, em 2014, tornou-se uma escola de tempo integral.
A escola ocupa um grande terreno. A sala de aula visitada segue o padrão daquelas dos demais
estabelecimentos de ensino: carteiras organizadas em fileiras e em frente à lousa verde e à mesa da

99
Em todas as atividades de campo, os objetivos da pesquisa foram explicitados, sendo que somente
participaram as pessoas que compreenderam e aceitaram as explicações e que se sentiram confortáveis para
fornecer informações e expressar suas reflexões. Contou-se com o respaldo institucional para a execução de cada
proposta. Os diretores escolares autorizaram a realização de observações em sala e de entrevistas com
professores, coordenadores pedagógicos, alunos e/ou pais e apontaram os limites e as “liberdades” que
deveriam/poderiam ser adotados em cada espaço. Dessa forma, esclarece-se que não houve qualquer conflito de
interesses e que todos os participantes, informações e dilemas pessoais e institucionais foram tratados com
respeito e ética, sobretudo no que diz respeito ao anonimato e à privacidade.
214

professora, uma grande janela no lado oposto à porta e um armário ao fundo.


Escola estadual de ensino fundamental ciclo I de Campinas (1990): localiza-se dentro de uma
universidade, mas é regida pelas normas da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo (SEESP) e
está sob a responsabilidade da Diretoria de Ensino Campinas Leste (Dados de entrevista com
coordenadora pedagógica em 15/04/2013). Oferecia estudos de 1º a 5º ano para 386 crianças (177 no
período da manhã e 209 à tarde) em 2015. Sua criação resultou da reivindicação de funcionários da
universidade à reitoria, uma vez que tinham dificuldades de levar seus filhos a escolas afastadas do local
de trabalho. Por isso, ainda hoje a maior parte do corpo discente dessa escola é composta por filhos de
funcionários da universidade (Dados de entrevista com coordenadora pedagógica em 15/04/2013). O
estabelecimento tem duas áreas principais de recreação e atividades lúdicas e físicas: a quadra coberta e o
pátio. As salas de aula localizam-se no andar superior, estão dispostas em um único corredor e se
organizam classicamente: carteiras em fileiras, a lousa verde e a mesa do professor à frente, uma grande
janela no lado oposto à porta e armários ao fundo.
Programa de educação não formal de Campinas (1987): é administrado pela divisão de educação
infantil e complementar da universidade onde o estabelecimento se localiza. Muitos alunos da escola
estadual de Campinas participam das atividades desse programa no contraturno da primeira. O programa
articula projetos que visam ao desenvolvimento dos aspectos afetivo, social, físico e cognitivo das 230
crianças (155 de manhã e 75 à tarde), entre 6 e 10 anos de idade (em correspondência ao ensino
fundamental I), que frequentavam o programa em 2015. Seus projetos baseiam-se em abordagens teóricas
que valorizam o papel do professor enquanto mediador, vertentes psicológicas centradas no caráter
histórico e desejante do sujeito, teorias da saúde preocupadas com uma visão integral da criança (cuidar e
educar), teorias da assistência social baseadas na questão das mudanças contemporâneas da estrutura
familiar e teorias sobre a nutrição de qualidade. O estabelecimento compõe-se de diferentes espaços
abertos e arborizados, alguns com chão cimentado e outros com terra e areia, de uma quadra e de um
parquinho. As salas dispõem-se em dois corredores paralelos e que se conectam por meio do refeitório e
de um espaço aberto. As salas são coloridas e lá se encontram caixas de brinquedos. As carteiras são
organizadas em grupos, e não em fileiras, mas muitas vezes as crianças e professores sentam-se no chão e
em roda.

As técnicas escolhidas para a coleta de dados empíricos foram a observação


participativa e a entrevista semiestruturada, contando com o auxílio dos recursos de diário de
campo, de roteiros, de gravação de áudio e de transcrição. A observação participativa é uma
técnica segundo a qual o pesquisador insere-se em um “novo mundo” (a sala de aula de uma
escola pública nos dias de hoje, por exemplo), cujas relações modificam seu ponto de vista
previamente formado. Ainda que mantenha sua posição de “estrangeiro”, o pesquisador
provoca, com sua presença, perturbações nas relações estabelecidas naquele espaço antes de
sua chegada. Isto significa que ao mesmo tempo em que o pesquisador apreende as regras e as
relações estabelecidas no campo escolhido e busca interpretá-las a partir do ponto de vista do
outro — as pessoas encontradas nesse novo ambiente —, sua presença esporádica muda,
mesmo que minimamente, a dinâmica das relações (MINAYO, 2000) — o tom de voz do
professor, a curiosidade das crianças, que levantam da carteira durante uma explicação para
fazer perguntas ao pesquisador, a expectativa de sua chegada no dia e no horário marcado etc.
As observações aconteceram uma vez por semana em cada um dos
estabelecimentos, em horários e dias autorizados pelos professores, pelos alunos e pela
direção escolar, e seguiram um roteiro aberto e maleável aos acontecimentos nesses espaços.
Elas foram anotadas em diário de campo. O roteiro de observação compôs-se dos seguintes
215

pontos: a descrição da sala de aula e o mapeamento das posições e deslocamentos dos alunos,
com foco nos alunos que receberam o diagnóstico de TDAH ou a hipótese diagnóstica; a
apreensão das relações estabelecidas entre as crianças e entre as crianças e os professores e
dos acontecimentos marcantes ou interessantes que envolvem a(s) criança(s) em quem se
centra a observação; a apreensão das particularidades dessa(s) criança(s) e utilizá-las para
direcionar as conversas não formais com ela ou possíveis entrevistas (quando possível,
conversar com o(a) professor(a) sobre a turma e sobre o(s) aluno(s) que se observa(m), a fim
de compreender seus contextos sociais.
Já a entrevista semiestruturada é uma técnica por meio da qual o pesquisador
propõe uma conversa com alguns participantes selecionados a fim de obter informações
primárias e secundárias referentes ao seu objeto de pesquisa. Por se tratar de uma estratégia
que combina perguntas fechadas e abertas, é fundamental a elaboração de roteiros de
entrevista. O roteiro é, segundo Minayo (2000, p. 99), um “instrumento para orientar uma
‘conversa com finalidade’ que é a entrevista, [por isso] ele deve ser o facilitador de abertura,
de ampliação e de aprofundamento da comunicação”. É um guia que, portanto, “não pode
prever todas as situações e condições de trabalho de campo” (MINAYO, 2000, p. 100). A
elaboração de um roteiro para entrevistas semiestruturadas tem o objetivo, conforme a
afirmação de Alves e Silva (1992, p. 63), de “definir núcleos de interesse do pesquisador, que
têm vinculação direta aos pressupostos teóricos e contatos prévios com a realidade sob
estudo”, por meio de “uma formulação flexível das questões, cuja seqüência e minuciosidade
ficarão por conta do discurso dos sujeitos e da dinâmica que flui naturalmente no momento
em que entrevistador e entrevistado se defrontam [...]” (ALVES; SILVA, 1992, p. 64).
Os roteiros utilizados na pesquisa de campo distinguem-se entre roteiros de
entrevista coletiva e roteiros de entrevista com crianças. O primeiro agregava orientações e
questões como: quais são os diferentes pontos de vista sobre as popularmente chamadas
“dificuldades de aprendizagem”, em especial o déficit de atenção e hiperatividade e das
experiências que extrapolam a definição psiquiátrica do TDAH?; o que significa
“desatenção”, “déficit de atenção”, “agitação”, “hiperatividade”, “dificuldade de
aprendizagem”?; se houver alunos desatentos e agitados em sala, como se comportam, como
se relacionam com os professores e com os colegas?; o que essas características significam
para os professores?; o que é feito em sala de aula ou pela coordenação pedagógica?; quais
são os procedimentos quando um professor precisa de ajuda?
No roteiro dedicado às crianças, privilegiaram-se três grupos de questões: 1) a
explicação a pesquisa conforme uma linguagem simples e a justificação da escolha da criança;
216

2) a apreensão da experiência com o TDAH (algumas perguntas propostas foram: você já


visitou algum psicólogo ou médico por causa da escola? (Se sim) O que aconteceu? Como
você se sentiu?; Você sabe dizer o que significa ser hiperativo? Como você explicaria?
Alguém te deu essa explicação? Como você se sente sobre isso?; Alguma coisa mudou para
você depois de começar a tomar remédio?); e 3) a relação entre TDAH, escola e família
(Como as pessoas te tratavam antes do diagnóstico? Os colegas? Os professores? Sua família?
Como você se sentia? E agora?; Na escola, que matéria é mais interessante? Ou, pelo menos,
menos chata? Por quê?; Você acha que ser agitado e se distrair com outras coisas dentro da
sala, durante a explicação dos professores, pode te trazer algum problema? Isso incomoda as
outras pessoas? Por quê? O que seria possível fazer de diferente para ajudar quem tem mais
dificuldade na escola, algo que não seja ir ao médico ou tomar remédio?).
O delineamento efetivo das estratégias de aplicação dessas técnicas foi
determinado pelas situações que se davam progressivamente em campo. Seguiu-se uma rotina
para a entrada no campo. O primeiro passo era o estabelecimento do contato com o
responsável pela instituição, no qual se apresentava a pesquisa e seus objetivos. Em seguida,
agendava-se uma reunião de apresentação com um professor ou com um grupo de
professores, dependendo do caso. Quando demandada pela direção escolar, apresentava-se
uma solicitação de autorização formal a órgãos superiores, como as secretarias de educação.
O primeiro contato com os professores constituiu o momento fundamental para a
elaboração de estratégias de execução da pesquisa de campo. As técnicas previamente
escolhidas então se desdobravam em: entrevistas semiestruturadas individuais e coletivas com
professores, professoras e coordenadoras pedagógicas; entrevistas semiestruturadas
individuais e conversas não formais com crianças entre cinco e treze anos de idade, com ou
sem diagnóstico de TDAH (a maioria delas foi indicada pelos profissionais de educação);
observações participativas em sala de aula, em salas de professores, em atividades externas à
classe (como os espaços de lazer e de recreação); entrevistas semiestruturadas individuais e
conversas não formais com pais e/ou responsáveis legais de algumas daquelas crianças100.
A primeira atividade de campo realizada caracterizou-se como uma “discussão em
grupo” com cerca de vinte professores e professoras e a então coordenadora pedagógica da
escola municipal de ensino fundamental ciclo II de Moji Mirim101, ocorrida em 27 de março
de 2013. Essa foi a “porta de entrada” da pesquisa de campo nas salas de aula e do contato

100
Os pais e os responsáveis legais não foram privilegiados como sujeitos de pesquisa, uma vez que sua presença
nos estabelecimentos escolares é restrita. Aqueles que puderam ser contatados o foram por intermédio da escola.
101
A realização da pesquisa em tal escola foi autorizada pelo então diretor do Departamento de Educação da
Prefeitura Municipal de Moji Mirim, em 28 de dezembro de 2012, sob o Protocolo nº 15654/2012.
217

direto com as crianças da escola. A escolha dessa abordagem não ocorreu previamente, uma
vez que foi a diretora escolar quem propôs a apresentação da pesquisa e a conversa com as
professoras e professores durante uma reunião pedagógica.
Segundo Minayo (2000, p. 129), a técnica qualitativa de grupo de discussão
caracteriza-se pelo estabelecimento de uma conversa em reuniões com um pequeno grupo de
informantes (entre seis e doze pessoas), pela presença de um animador que intervém na
comunicação buscando focalizar e aprofundar a discussão e pela ênfase dada às opiniões,
relevâncias e valores dos entrevistados. Diferencia-se, assim, da observação ou da entrevista
que focaliza a apreensão de relações e de comportamentos. Por isso, ela complementa a
observação participativa e as entrevistas individuais. Nas experiências de campo aqui
relatadas, contudo, as “discussões em grupo” não tiveram esse caráter definido por Minayo.
Em primeiro lugar, foi a diretora da escola que propôs a discussão com o grupo de professores
em reunião pedagógica. Em segundo lugar, buscou-se realizar uma conversa orientada por um
roteiro de entrevista semiestruturada e por um texto produzido pela pesquisadora (contendo
diferentes pontos de vista acerca do TDAH). Sua finalidade era permitir aos entrevistados
construírem suas próprias reflexões e compartilharem suas experiências sobre o tema.
Entende-se, portanto, que a atividade descrita acima se caracteriza mais como uma entrevista
semiestruturada coletiva do que como um grupo de discussão ou um grupo focal. A conversa
foi gravada e, posteriormente, transcrita. Também foram feitas anotações em diário de campo.
A execução desse tipo de atividade repetiu-se no colégio privado de Moji
Mirim102 e no programa de educação não formal de Campinas103, sendo fundamental para o
início das observações participativas, das entrevistas semiestruturadas individuais e das
conversas não formais. Na escola estadual de ensino fundamental ciclo I de Campinas, estas
atividades começaram após uma conversa com a diretora e com uma de suas professoras104,
com quem se manteve contato ao longo de todo o campo. Já na escola municipal de ensino

102
Conforme autorização verbal cedida por seu diretor escolar. A atividade foi realizada em 10 de setembro de
2013 também em uma reunião pedagógica que contava com cerca de 20 professoras e uma coordenadora
pedagógica. Essa foi a única atividade executada no referido colégio, devido à opção de se limitar o
aprofundamento das observações a estabelecimentos públicos de ensino.
103
Após o contato inicial com a então coordenadora pedagógica do programa via e-mail, foi solicitado o envio
de alguns documentos para a formalização do pedido de realização de pesquisa de campo nas instalações do
programa. Concedeu-se a autorização em 01 de abril de 2013, conforme a Deliberação CONSPED nº 028/2013.
A pesquisa foi apresentada às professoras do período vespertino e logo começaram as observações e conversas.
Em 2014, renovou-se a autorização para execução da pesquisa e as atividades de campo nesse programa
iniciaram-se com uma entrevista semiestruturada coletiva com os profissionais do período da manhã. Cerca de
10 professores e professoras estavam presentes. A partir de então, principiou-se a execução das observações em
algumas salas do período, que acolhiam um número maior de crianças se comparado ao turno da tarde.
104
Autorização verbal de sua diretora para a execução da pesquisa no estabelecimento e indicação feita pela
mesma diretora da possibilidade de entrevistar e acompanhar as aulas de uma professora do terceiro ano do
ensino fundamental.
218

fundamental ciclo I de Campinas105, a visita aconteceu apenas uma vez, em 29 de outubro de


2013, em virtude da desvinculação da profissional em questão daquela escola no ano seguinte.
Observaram-se as crianças em sala de aula.
As observações participativas foram executadas conforme a definição apresentada
anteriormente. Consideraram-se as relações entre crianças, entre crianças e adultos e entre
profissionais em sala de aula, em sala de professores e em espaços de recreação e lazer, como
recreios, intervalos entre aulas e atividades físicas ao ar livre. Acompanharam-se as seguintes
aulas e salas de ensino fundamental: terceiro ano (disciplinas integradas, às sextas-feiras de
manhã em 2013 e em 2014, na escola estadual de Campinas; não havia crianças com
diagnósticos confirmados, mas algumas delas apresentavam comportamentos semelhantes aos
descritos no DSM para o diagnóstico de TDAH); quarto ano (disciplinas integradas, em
29/10/2013 na escola municipal de Campinas; dois meninos e uma menina com diagnóstico
de TDAH); sexto ano (disciplina de Informática, às quintas-feiras de manhã em 2014, na
escola municipal de Moji Mirim; lá havia um menino com laudo médico afirmando o
diagnóstico de TDAH); sétimo ano (disciplinas de História e Português, às segundas-feiras à
tarde em 2014, na escola municipal de Moji Mirim; quatro meninos tinham o diagnóstico de
TDAH); oitavo ano (disciplina de História, às segundas-feiras à tarde em 2013, na escola
municipal de Moji Mirim; nessa turma havia um aluno diagnosticado como portador de
TDAH). No programa de educação não formal, crianças de diferentes idades dispunham-se
em salas onde cada professora desenvolvia atividades condizentes aos seus projetos e oficinas.
Todas as observações — sempre feitas a partir do fundo da sala, onde a pesquisadora se
sentava — seguiram um roteiro aberto e foram anotadas em diário de campo.
As entrevistas semiestruturadas individuais constituíram conversas intencionais
autorizadas pelos sujeitos e realizadas em horários e locais pré-determinados. Entrevistaram-
se: uma professora responsável pelo terceiro ano da escola estadual de Campinas, a então
coordenadora pedagógica dessa mesma escola, um aluno do sétimo ano e outro do oitavo ano
da escola municipal de Moji Mirim e a responsável legal (avó) deste último. Roteiros foram
utilizados. As entrevistas foram gravadas e transcritas.
Vale ressaltar que a produção dos roteiros para as entrevistas com crianças
orientou-se pelas percepções desenvolvidas a partir das observações em sala, não havendo,
portanto, um único roteiro para esses sujeitos. Entretanto, as conversas com as crianças eram

105
O contato foi estabelecido diretamente com uma de suas professoras, por intermédio de outra docente. Por e-
mail, aquela professora sinalizou a existência de três alunos (dois meninos e uma menina) com diagnóstico ou
hipótese diagnóstica de TDAH e convidou-nos a observá-los em sala de aula.
219

majoritariamente não formais, tornando a técnica de entrevista semiestruturada para esses


sujeitos de pesquisa algo pontual. Isso significa que as conversas ocorreram sem data marcada
ou gravação e, nesses casos, a direção das escolas onde elas foram realizadas já havia
afirmado sua autorização para tal tipo de abordagem. Estabeleceram-se também conversas
não formais com professores, professoras, coordenadoras pedagógicas e alguns poucos pais.
As conversas não formais estenderam-se por todo o período de realização do
campo e extrapolaram as questões dos roteiros, particularmente na fase final da pesquisa.
Nessa fase, as conversas visaram à obtenção de informações complementares, à atualização
dos dados acumulados e à verificação da pertinência das análises de pesquisa.
De modo geral, em todas essas atividades buscaram-se informações que
permitissem analisar sociologicamente o TDAH (como os sujeitos compreendem e lidam com
esse diagnóstico e seu tratamento e com outras classificações escolares e sociais e se há
modos de resistência às suas determinações), o processo de medicalização, a infância e os
modos contemporâneos de ser criança, as relações entre escola, família, especialistas e
crianças e os contextos sociais onde essas relações se desenvolviam.
Foram acompanhadas quinze crianças (doze meninos e três meninas) entre cinco
e treze anos de idade, sendo que doze delas (onze meninos e uma menina) têm o diagnóstico
de TDAH ou já passaram por avaliação especializada para a confirmação ou exclusão de tal
diagnóstico, tomam ou já tomaram Ritalina®. Os três demais (duas meninas e um menino)
manifestavam dificuldades escolares e estavam enquadrados em classificações escolares.
Trabalhar com crianças é uma tarefa que exige cuidados específicos. Primeiro
para que não se caia na armadilha da dicotomia adulto/criança. Segundo, porque a criança
enquanto sujeito de pesquisa ainda emerge no campo da sociologia. A criança é objeto de
análise desde os primórdios da disciplina — veja-se, por exemplo, a obra Éducation et
sociologie de Émile Durkheim, publicada em 1922 —, ou mesmo antes de sua
institucionalização — o Emílio de Rousseau (1762), por exemplo. Entretanto, há cerca de
duas décadas o olhar sociológico sobre a criança vem se modificando, passando a encará-la
como um ator social, e não mais como um ser exclusivamente passivo, uma cera mole a ser
moldada pela educação (moral). Embora a socialização continue sendo um tema fundamental
ao estudo da infância e da criança em sociedade, as novas aplicações da noção buscam
incorporar o aspecto da ação do sujeito infantil. “A partir de uma perspectiva sociológica, a
socialização não é apenas uma questão de adaptação e internalização, mas também um
220

processo de apropriação, reinvenção e reprodução” (CORSARO, 1997, p. 18. Tradução


nossa106).
Segundo Rabain (1979), a análise da inserção social da criança — ou, em outros
termos, a socialização do indivíduo em uma sociedade — faz emergir as formas de
aprendizagem do código cultural e as regras de conduta que permitem o reconhecimento dos
indivíduos enquanto membros de tal sociedade. Agrega-se a esse pressuposto, a partir da
chamada sociologia da infância, a consideração de que a criança é um sujeito social que
contribui ativamente para a produção e modificação da sociedade. Sua atuação dá-se por meio
de aspectos inovadores e criativos de sua participação social e de processos de negociação
com seus pares e com os adultos (CORSARO, 1997). Ela não é meramente um ser
biologicamente incompleto e psicologicamente em desenvolvimento.
Nesse sentido, a pesquisa qualitativa com crianças deve ter em consideração, de
acordo com Demartini (2002), as seguintes questões: quem é essa criança? O que se está
chamando de criança e de infância? Como essa experiência é vivenciada? As informações
coletadas referem-se a relatos sobre as crianças e sobre a infância ou a relatos de crianças?
Além disso, Corsaro (2005) afirma que o pesquisador não deve agir como um “adulto típico”
(ser controlador na relação com a criança, usar as mesmas estratégias e o mesmo vocabulário
como em uma conversa entre adultos, não ter paciência para respostas mínimas ou para
longos silêncios etc.). Só assim ele poderá ser aceito pelos grupos infantis.
Particularmente no caso de uma análise das crianças enquanto atores sociais — e,
sobretudo, das crianças identificadas como portadoras de TDAH — a ideia de subjetividade,
ou de subjetivação, tem grande importância. Michel Foucault trabalhou, ao longo de sua
trajetória intelectual, com as diferentes formas pelas quais o ser humano se torna objeto e
sujeito, fazendo uso da expressão “modos de subjetivação” para lidar com as práticas voltadas
à sua constituição. Essas práticas conformam-se a três diferentes modos de análise. Primeiro,
como modos pelos quais o sujeito torna-se objeto de uma forma de saber e que se inscreve em
jogos de verdades, “as regras segundo as quais o que um sujeito pode dizer inscreve-se no
campo do verdadeiro e do falso” (CASTRO, 2009, p. 408). Segundo, como modos de
objetivação em que “o sujeito é dividido em si mesmo ou dividido a respeito dos outros”
(CASTRO, 2009, p. 408), ou seja, as práticas divisórias. Finalmente, como maneiras pelas
quais a pessoa se torna sujeito, práticas por meio das quais ele pode transformar seu próprio
ser.

106
“From a sociological perspective, socialization is not only a matter of adaptation and internalization but also a
process of appropriation, reinvention, and reproduction”.
221

Vale esclarecer que na perspectiva arqueológica-genealógica foucaultiana, o saber


(em vez de ciência ou conhecimento) é entendido como: 1) aquilo do que se pode falar em
uma prática discursiva (o domínio dos objetos); 2) o espaço em que o sujeito pode situar-se
para falar dos objetos (posições subjetivas); 3) o campo de coordenação e de subordinação
dos enunciados, em que os conceitos aparecem, são definidos, aplicam-se e se transformam;
4) as possibilidades de utilização e de apropriação dos discursos (FOUCAULT apud
CASTRO, 2009, p. 394).
As análises do material de campo consubstanciaram-se a partir dos discursos
articulados a saberes, relações sociais, instituições e formas de constituição do sujeito, enfim
às experiências enquanto relações com os outros e práticas sobre si mesmo. Tendo isso em
vista, os dados coletados em campo (formalizados como discursos) foram trabalhados
conforme o modelo de organização, análise e interpretação de dados qualitativos proposto por
Rivorêdo (2005). Trata-se de um modelo pautado na técnica de análise de conteúdo com
variante temática. Segundo Bardin (1977, p. 42), a análise de conteúdo é

Um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por


procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens,
indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de conhecimentos
relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens
(BARDIN, 1977, p. 42).
Minayo (2000, p. 203) ainda complementa tal definição afirmando que a análise
do conteúdo busca atingir um nível mais profundo do discurso (tais como as variáveis
psicossociais, o contexto cultural ou o processo contextualizado de produção da mensagem),
ultrapassando os significados manifestos. A variante temática, por sua vez, caracteriza-se
como uma técnica da análise de conteúdo fundamentada na noção de tema, de uma afirmação
(palavra, frase ou resumo) a respeito de determinado assunto.
Assim, a proposta de Rivorêdo (2005) caracteriza-se como

uma maneira de organizar, recortar, distribuir, ordenar, repartir em níveis,


estabelecer séries hierárquicas e distinguir a pertinência e a relevância de elementos
identificáveis, de discursos e ocorrências, definindo unidades e permitindo a
inferência, a partir de três categorias para hieraquirzação e escolha (opção,
deliberação): repetição, relevância e regularidade (RIVORÊDO, 2005, p. 211).
Por repetição o autor entende a reincidência e a comunhão de elementos.
Relevância refere-se à opção por valores “inseridos na mente do pesquisador” e à
hierarquização daquilo que é considerado mais importante conforme os fins da pesquisa. Já a
regularidade, advinda do método arqueológico proposto por Foucault (2012)107, é “uma ordem

107
A análise arqueológica não se limita ao discurso, embora este seja seu objetivo, e busca estabelecer relações
com acontecimentos técnicos, econômicos, sociais ou políticos (MACHADO, 1974). No trajeto intelectual de
222

em seu aparecimento sucessivo [do enunciado], correlações em sua simultaneidade, posições


assinaláveis em um espaço comum, funcionamento recíproco, transformações ligadas e
hierarquizadas” (FOUCAULT apud RIVORÊDO, 2005, p. 212).
Portanto, os objetivos do modelo são o “desencantamento” (ou a desnaturalização)
do objeto de pesquisa e o avanço do conhecimento. Apoiada na arqueologia foucaultiana, a
técnica constrói-se a partir dos seguintes passos: 1) descrição dos acontecimentos discursivos,
realizada por meio da leitura flutuante e exaustiva do material empírico coletado, cuja
finalidade é buscar “unidades que revelem os traços pertinentes do enunciado” (RIVORÊDO,
2005, p. 211); dela resulta a construção de “unidades de registro”, isto é, categorias e
subcategorias empíricas (falas, observações feitas em diários de campo sobre os enunciados
etc.) anotadas e hierarquizadas conforme os critérios de repetição, relevância e regularidade;
2) análise do pensamento, a reconstrução do enunciado por meio da fixação dos enunciados
aos seus limites, às suas relações com outros enunciados e ao contexto de sua emissão;
elaboram-se as “unidades de contexto”, categorias e subcategorias analíticas fundadas nas
condições de emissão e de observação do discurso; 3) análise do campo discursivo, etapa em
que o contexto de emissão do discurso dialoga com outros enunciados, incluídos ou excluídos
intencionalmente pelo pesquisador conforme a repetição, a relevância e a regularidade desses
enunciados; criam-se “unidades temáticas”, que organizam e hierarquizam as categorias
anteriores por meio da construção de temas e subtemas; 4) síntese geral de cada observação,
que culmina em uma síntese final, ou seja, na emergência do pano de fundo para as
considerações sobre os resultados da pesquisa.
Tal modelo traz importantes contribuições à análise da pesquisa. Pretende-se
realizar na tese uma análise em que importam mais as relações sociais, os saberes, as
instituições e as posições do sujeito, enfim, as práticas sociais envolvidas na emissão dos
discursos do que as intenções dos participantes em atos de fala ou a busca de um sentido ou
um significado implícito e mais profundo do que aquele disponível aos atores sociais (o que
se faria segundo uma interpretação fenomenológica, hermenêutica ou psicanalítica, por
exemplo).
A partir da técnica de Rivorêdo (2005), foram analisadas as transcrições das oito
entrevistas semiestruturadas coletivas e individuais realizadas, das anotações de diário de
campo que extrapolam essas entrevistas (considerando tais anotações como discursos escritos)

Foucault, a arqueologia é complementada pela genealogia, análise que permite “um entendimento das práticas
sociais portador de uma inteligibilidade radicalmente diferente daquela disponível aos atores” (RABINOW;
DREYFUS, 1995, p. xxiii).
223

e das observações acerca de enunciados emitidos e comportamentos observados com aquelas


quinze crianças acompanhadas. No silêncio de seus gestos, elas também emitem discursos. Os
temas comuns aos discursos analisados são três. O primeiro é a infância que se confunde com
a vida adulta, ou melhor, a constituição contemporânea da criança enquanto um indivíduo
socializado como um adulto. O segundo são os conflitos entre escola e família, cujas
responsabilidades específicas se deturpam. Finalmente, o discurso psiquiátrico e seus
instrumentos de intervenção (laudo médico, medicamento e categoria TDAH) constituem o
terceiro e grande tema. O pressuposto que os atravessa é a intervenção especializada nas
crianças que não correspondem a um determinado tipo de comportamento e de desempenho
visa a garantir uma “boa” inserção social infantil e, assim, a execução de certo projeto de
sociedade. Para tanto, a intervenção técnica-científica faz-se igualmente nas práticas sociais e
institucionais que deveriam assegurar a adaptação social da criança, com destaque às relações
escolares e familiares.
224

APÊNDICE B
Levantamento de dissertações e teses acerca do Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH)108

Acervo da USP
Nº de Nº de
Áreas de conhecimento Referências
dissertações teses
[1978 e 1979]
1970-1979

Medicina; Psicologia DCM; Hiperatividade 1 1


[1981-1985]
1980-1989

Medicina; Psicologia DCM; Hiperatividade 2 0

Falta de atenção com


1990-1999

Medicina; Psicologia; hiperatividade; hiperatividade;


2 3
Psiquiatria transtornos diagnosticados na
infância

Atenção; aprendizagem escolar;


comorbidades; comportamento;
desenvolvimento infantil;
dopamina; formação de
Educação; Fonoaudiologia;
professores; fracasso escolar;
Medicina; Neurociências e
funções executivas; genética;
2000-2009

comportamento; Neurologia;
hiperatividade; indisciplina;
Neuropsicologia; Psicologia; 12 6
metilfenidato; processos
Psicologia do desenvolvi-
cognitivos; psicodiagnóstico;
mento; Psicologia educacional;
psicogênese; queixa escolar;
Psiquiatria; Saúde mental
TDAH; testes neuropsicológicos;
transtorno de aprendizagem;
transtorno de falta de atenção
com hiperatividade

108
A busca foi feita em outubro de 2012 e em junho de 2015. Ela incluiu as pesquisas feitas na página da
Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e nas bases de dados de algumas universidades
brasileiras, entre elas a SIBiUSP (Universidade de São Paulo), Base Acervus e Biblioteca Digital (sendo estas
últimas da Universidade Estadual de Campinas). As palavras-chave inseridas foram: “distúrbio da falta de
atenção”, “hipercinético”, “hiperatividade”, “transtorno de déficit de atenção com hiperatividade”, “TDAH”,
“impulsividade”, “disfunção cerebral mínima” e “metilfenidato”. Somente com a entrada “TDAH” foram
encontradas 193 referências na BDTD, entre 2002 e 2015, em 25 universidades em todas as regiões do país
(principalmente no Sul e no Sudeste), destacando-se com os maiores números de produções, em ordem
descrente, a UFRGS, a USP e a UNICAMP. Estas duas foram privilegiadas devido ao pioneirismo dos trabalhos
lá desenvolvidos.
225

Idem ao decênio anterior +


adolescente; adulto; cognição;
desempenho acadêmico;
2010-2015109

Idem ao decênio anterior +


emoções; família; fenótipos;
Enfermagem psiquiátrica;
medicalização; psicoterapia; 14 11
Odontologia; Psicologia
qualidade de vida; questionários;
clínica; Psicanálise
Research Domain Criteria;
subjetividade; sujeito; terapia
cognitiva; violência

Acervo da UNICAMP
Nº de Nº de
Áreas de conhecimento Referências
dissertações teses
1970-1979

-- -- 0 0
[1984-1985]
1980-1989

Distúrbio de aprendizagem;
Educação; Medicina;
genética do comportamento; 1 1
Psicologia educacional
síndrome hipercinética

Comorbidade; criança hiperativa;


Biomedicina; Educação física; dificuldade de aprendizagem;
1990-1999

Epidemiologia; Neurociências; eletroencefalografia; funções


Neuropsicologia; Psicologia executivas; psicodiagnós- 2 3
infantil; Psiquiatria infantil; tico;TDAH/DDA; testes
Saúde mental neuropsicológicos; transtorno
hipercinético
Aprendizagem/distúrbio de
aprendizagem; atenção;
avaliação; avaliação
Biomedicina; Neurologia;
neuropsicológica; cognição;
Neuropsicologia;
2000-2009

fracasso escolar; hiperatividade;


Neuropsicologia aplicada à
memória; metilfenidato; 5 5
neurologia infantil; Pedagogia;
patologização; subtipos do
Pediatria; Química; Saúde da
TDAH; TDAH; telerradiografia;
criança e do adolescente
transtornos cognitivos;
transtorno do comportamento
infantil

109
Até maio de 2015. O mesmo para a segunda tabela.
226

Aprendizagem/dificuldade de
aprendizagem; aspectos
emocionais; aspectos sociais;
Ciências médicas; biologização; comorbidade;
2010-2015

Epidemiologia; Pedagogia; educação de criança; estigma;


Política, ciência e tecnologia; funções cognitivas; 6 2
Saúde da criança e do hiperatividade; impacto
adolescente; Sociologia psicossocial; medicalização (da
aprendizagem); memória;
transtorno do déficit de atenção
com hiperatividade
227

ANEXO
Critérios diagnósticos do TDAH no DSM-V
228
229

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