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CAMPINAS
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
CAMPINAS
2021
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387
Título em outro idioma: Trances, crises and diagnoses : religion and spirituality in recent
debates of the psy knowledges
Palavras-chave em inglês:
Anthropology of religion
Psychiatry
Psychology
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Mestre em Antropologia Social
Banca examinadora:
Rodrigo Ferreira Toniol [Orientador]
Carly Barboza Machado
Emerson Alessandro Giumbelli
Data de defesa: 25-02-2021
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social
A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema e Fluxo
de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Agradecimentos
Boa parte do período de realização desta pesquisa passei com amigos e amigas que a turma
do mestrado de 2019 me deu. Como me senti acolhido desde o início, começar os agradecimentos
por eles e elas não é um exagero. Pela convivência cheia de companheirismos, devo meu muito
obrigado a Brume Dezembro Iazzetti, Felipe Puga, Gabriela Costa Limão, Gustavo Córdoba, Laís
Marachini, Lidia Torres, Lucas Nascimento, Paola Argentin, Renan Dantas e Tarcisia Emanuela,
pessoas com quem aprendi muito com suas pesquisas, opiniões e com a convivência universitária.
Em especial, Gustavo, Lidia e Tarcisia estenderam seu carinho imensurável para além das salas de
aula, oferecendo uma amizade muitas vezes difícil de retribuir. Agradeço muito a eles pela
convivência presencial e virtual, e por todo o cuidado que sempre tiveram. Também a Felipe devo
um agradecimento especial, já que o interesse genuíno que ele teve em minha pesquisa renovou
meu cambaleante ânimo em diversos momentos. Embora Victor Amante não faça parte dessa
turma, sua amizade ligada à universidade me faz pensar nele como um desses amigos com quem
continuo a aprender, merecendo também um agradecimento especial neste espaço.
O período de formação no mestrado passou também pelas reuniões e encontros realizados
nos grupos de pesquisa. A participação no Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) me
permitiu continuar a aprender muito com colegas próximos e distantes. A ajuda na coordenação por
parte de Brenda Carranza nesses últimos anos foi importante para dar um novo fôlego aos
encontros. Agradeço a ela e aos colegas sempre dispostos ao debate, particularmente a Clayton
Guerreiro e Jeferson Batista da Silva pela amizade que está para além das reuniões.
Além do Laboratório, os encontros do Núcleo de Estudos em Espiritualidade e Saúde
(NUES) também foram fundamentais nesse período. Agradeço aqui à companhia de Aidan
Valentina Fongaro, Ana Beatriz Foster, Greta Garcia, Isabela Mayumi, Luiá Bolonha, Luciana
Cavalcanti, Manuela Carvalho e Maria Luiza Assad nas viagens coletivas de campo que fizemos em
2019. Maria Luiza é uma amiga que o mestrado e a convivência no NUES me deu nesses últimos
anos. A chegada de Florencia Chapini e Lucía Copelotti deu um novo ânimo ao grupo e aos
encontros fora da universidade, que sei que ainda ocorrerão com maior frequência. Além das
pessoas já mencionadas, as contribuições de Anna Paula Pedra, Cecília Bastos, Giorgia Carolina do
Nascimento, Juliana Boldrin, Marina Sena e Thaís Assis foram importantes no direcionamento
desta pesquisa e em minha entrada no campo mais amplo de discussões. Além disso, as sugestões
de Carlos Alberto Steil e Isabel Cristina de Moura Carvalho foram incluídas mais diretamente neste
trabalho. Agradeço a todas e todos pelas discussões e pela companhia nesses últimos anos.
A amizade de Adriano Godoy (também junto ao LAR), Lis Blanco e Luiza Serber foi
importante antes e durante o período de quarentena. Adriano e Lis tiveram sua parte em minha
formação, ao ministrarem uma disciplina durante minha graduação. Ainda assim, é a amizade deles
e de Luiza que mais importa aqui. Sou muito agradecido pelo contínuo apoio acadêmico e pessoal
que eles me proporcionam, seja em sugestões de escrita ou da possibilidade de um ombro amigo.
Espero que os encontros cheios de humor particular e do interesse por questões conspiratórias
possam continuar.
No campo das amizades, vale ainda mencionar aquelas de Campinas. Gabriel Guimarães,
Leandro Lobo e Matheus Rico são amigos de longa data. Sei que manteremos essa mesma dinâmica
ainda por muitos anos, o que é um alívio. Embora esteja distante, Filipe Mattiazzo Pessoa se
manteve próximo quanto à vida por aqui. Ainda que nosso encontro no exterior tenha tido de ser
adiado para uma outra oportunidade, mantenho ele no horizonte.
Agradeço a Taniele Rui, Nashieli Rangel Loera e Isadora Lins França pelas disciplinas
ministradas durante o mestrado. Estendo esse agradecimento a todos os professores e professoras do
Departamento de Antropologia Social, que em diferentes momentos participaram direta ou
indiretamente de minha formação também durante a graduação. Aos funcionários do IFCH,
agradeço pelo trabalho cotidiano tão fundamental.
Everton Maraldi foi um interlocutor importante na realização desta pesquisa, me situando
em algumas questões envolvendo o campo. Agradeço a ele pela ajuda e disposição.
Agradeço a Carly Machado e Emerson Giumbelli pela gentileza em aceitarem o convite para
participar da banca de qualificação e da defesa deste trabalho, e pelos generosos comentários e
sugestões feitos na qualificação. Ronaldo de Almeida merece também um agradecimento por ter
participado da qualificação e contribuído para este trabalho, assim como pela convivência no LAR e
por ter sido meu professor na graduação e no período do mestrado.
Rodrigo Toniol sempre desempenhou o papel de orientador com um cuidado e dedicação
difícil de descrever. Mais do que o vínculo formal, agradeço pela relação de amizade construída
nesses anos.
À minha família, agradeço pelo apoio sempre presente às minhas decisões. Em especial,
agradeço aos meus pais por toda a dedicação em me permitir seguir pelos caminhos que escolhi.
Giovanna Paccillo esteve presente de alguma forma em quase todas as relações mencionadas
aqui. Sempre disposta a me apoiar durante a realização desta pesquisa, é ela também que faz o
cotidiano ser mais agradável. Obrigado pela companhia e pelo companheirismo, e por continuar
presente em nosso fazer de planos.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), agradeço pelo
suporte financeiro concedido no âmbito do projeto temático Espiritualidade Institucionalizada
(Processo nº 2018/05193-5) para a realização desta pesquisa (Processo nº 2018/25198-1).
- (…) Será que o transe dos místicos é assim?
Um estado de suspensão de si mesmo, de todos os reflexos carnais,
provocados pelo encontro com Deus?
- Não é impossível – disse o padre Carrey. –
Talvez seja um mesmo caminho, percorrido pelos místicos
e por todos aqueles que vivem esses estados de transe.
Os poetas, os músicos, os feiticeiros.
Mario Vargas Llosa
Resumo
Esta dissertação tem como objeto debates recentes realizados por psiquiatras e psicólogos em torno
do tema da religião e da espiritualidade. O foco empírico é a criação, em 1994, de duas categorias
diagnósticas no principal guia de diagnósticos psiquiátricos nos Estados Unidos, o Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM): “problema religioso ou espiritual” e
“transtorno de transe dissociativo”. A análise desenvolvida se centra sobre os modos como os
propositores desses dois diagnósticos articulam uma série de categorias psicológicas e
antropológicas para conceitualizar as experiências religiosas e espirituais como fenômenos normais
ou como psicopatologias, situando suas produções na psicologia transpessoal e nos estudos sobre
dissociação psicológica. A partir da leitura de artigos científicos, obras acadêmicas e entrevistas,
busca-se compreender como são produzidos novos e distintos entendimentos psicológicos sobre
fenômenos como o transe religioso, a possessão espiritual e a experiência transcendental.
Introdução.........................................................................................................................................11
A religião, as ciências médicas e os saberes “psi”.........................................................................17
Sobre a estrutura............................................................................................................................26
Capítulo 1 – Religião e cultura no manual de diagnósticos..........................................................28
O manual de diagnósticos..............................................................................................................28
A “cultura” e o DSM-IV................................................................................................................32
O universal e o particular nos transtornos mentais........................................................................40
As categorias diagnósticas sobre religião e espiritualidade...........................................................44
Culturalizando religião e espiritualidade.......................................................................................50
Capítulo 2 – A dissociação e a possessão........................................................................................57
A múltipla personalidade e a questão da religião..........................................................................59
Normalizando a dissociação..........................................................................................................66
A cultura como normalidade e patologia.......................................................................................73
Os usos do diagnóstico..................................................................................................................82
Capítulo 3 – A psicologia transpessoal e a espiritualidade...........................................................92
Da psicologia humanista à Nova Era.............................................................................................94
A crise de Lukoff.........................................................................................................................101
O potencial de uma crise espiritual..............................................................................................107
A questão do xamã.......................................................................................................................114
Considerações finais.......................................................................................................................125
Referências bibliográficas..............................................................................................................130
11
Introdução
semelhante – mas não idêntico – à bifurcação indicada por Good. Mais especificamente, o
objeto deste trabalho é a produção de atores estadunidenses da psicologia transpessoal e dos
estudos psiquiátricos e psicológicos sobre dissociação. Desde os anos 1980 esses atores vêm
colocando em circulação um tipo de abordagem que, de acordo com eles, resguarda
determinadas experiências religiosas e/ou espirituais de um processo de total patologização
por parte dos saberes psi.
Foi a partir da inclusão das categorias “problema religioso e espiritual” e “transtorno
de transe dissociativo” na edição de 1994 do principal manual de categorias diagnósticas
psiquiátricas dos Estados Unidos, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM), que as propostas particulares dos autores foram alçadas ao conhecimento do
mainstream da psiquiatria nos Estados Unidos. Além disso, essa movimentação por dentro
das classificações diagnósticas aponta para como esses debates dizem respeito a fenômenos
normalmente enquadrados como patológicos pela psiquiatria, como as experiências místicas
mencionadas por Benedict em suas obras dos anos 1930.
Embora eu me volte primordialmente para artigos científicos, teses e dissertações
acadêmicas, livros técnicos e materiais variados (como conferências, entrevistas públicas e
materiais de cursos especializados), a participação em eventos sobre a temática geral ao longo
de 2019 me permitiu tanto realizar uma primeira aproximação do campo quanto notar as
associações que uma gama variada de atores brasileiros fazem dos debates estadunidenses ou
dos diagnósticos em particular. Três desses eventos me chamaram a atenção pela sua
variedade de natureza e pelas referências diretas de alguns palestrantes às categorias
diagnósticas aqui analisadas. O primeiro deles foi o 13º Encontro Holístico Brasileiro,
realizado nas dependências da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), em Porto Alegre. O evento tinha como público-alvo os terapeutas holísticos, e os
temas da religião e da espiritualidade emergiam com certa constância. Em uma das
apresentações que tinha como assunto a ligação da glândula pineal com os fenômenos
espirituais, o palestrante mencionara a categoria de “estados de transe e possessão” da
Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10) como uma espécie de
reconhecimento do mainstream psiquiátrico da existência desses fenômenos.
O segundo desses eventos foi o 2º Congresso Internacional em Saúde e
Espiritualidade, realizado em Juiz de Fora e organizado pelo Núcleo de Pesquisa em
Espiritualidade e Saúde (NUPES) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz
14
de Fora (UFJF). Se o NUPES é talvez hoje um dos grupos de maior destaque no país em
pesquisas e produções acadêmicas da área médica sobre a relação entre religião,
espiritualidade e saúde, não foi um membro do grupo que fez menção à categoria de
“problema religioso ou espiritual” em sua palestra, mas sim um pesquisador com
contribuições importantes na área dos estudos sobre dissociação. Em sua fala sobre os
fenômenos de transe e de outros estados alterados de consciência, a inclusão da categoria no
DSM foi descrita como um passo importante para a despatologização dessas experiências.
Por fim, o terceiro e último dos principais eventos que acompanhei foi o Repensando a
Loucura, organizado por um grupo de psicólogos transpessoais com o apoio do Programa de
Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER), ligado ao Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas, vinculado à Universidade de São Paulo (USP), local onde foi realizado
o encontro. Nesse dia, além do contato inicial com os debates sobre a psicologia transpessoal,
foi transmitida uma fala do psicólogo transpessoal David Lukoff, principal proponente da
categoria “problema religioso ou espiritual” – gravada especialmente para o evento –, em que
ele narrava parte da história da proposição da categoria e os desdobramentos em sua própria
trajetória profissional. Naquele espaço, seu trabalho terapêutico era considerado uma
inspiração, e a existência da categoria era tida como uma vitória institucional da psicologia
transpessoal. Seria possível citar ainda a realização do 3º Congresso Internacional em Saúde e
Espiritualidade em 2020, que contava como conferencista principal o psiquiatra transpessoal
Francis Lu, também um dos proponentes dessa categoria. No entanto, devido à eclosão da
pandemia do novo coronavírus e do aumento do número de casos no Brasil e nos Estados
Unidos, a participação de Lu no evento realizado em março daquele ano foi limitada a uma
fala gravada e transmitida, tendo eu mesmo tomado a difícil decisão de não comparecer ao
congresso.
Esses casos indicam como esses diagnósticos e os debates engendrados por eles são
mobilizados por diversos atores no Brasil para fins diversos. Eles convergem, no entanto, em
um sentido de reivindicação da possibilidade de certas experiências religiosas e/ou espirituais
não serem encaradas necessariamente como patologias por parte da psiquiatria e da
psicologia. Além disso, esses debates instituem de modos particulares de concepção de
experiências ligadas a religião e a espiritualidade como objetos de atenção dos saberes “psi”.1
1 Aproprio-me da noção de saberes “psi” da mesma forma como utilizada por Jane Russo (2004) em sua
formulação sobre o campo psi, designando de modo geral os saberes da psicanálise, psicologia e psiquiatria.
15
2 Para ficar apenas em um dos exemplos mencionados na literatura (Lukoff; Lu; Turner, 1992), um caso é a
abertura de O mal-estar na civilização, em que Freud (2011) qualifica o “sentimento oceânico” ligado às
religiões como uma espécie de regressão narcísica.
3 Para Nina Rodrigues, a possessão praticada nos terreiros das religiões de matriz africana se caracteriza como
um “estado de sonambulismo provocado” por práticas rituais. Tal estado sugestionado seria possível devido
ao atributo naturalmente histérico dos praticantes religiosos, por seu pertencimento à raça negra (Giumbelli,
1997b, pp.43-44).
17
lembrarmos que tal situação já ocorria antes. Mais do que isso, os próprios atores envolvidos
nesses debates reconhecem que os saberes psi tomavam essas experiências sob uma ótica
negativada. Assim, de forma análoga ao que afirma Fassin (2011, p.88, tradução minha) a
respeito do caso das relações da medicina francesa com o consumo de drogas, “não é que a
medicalização tenha ocorrido, mas sim que seu significado mudou”.
O segundo motivo da mobilização de sua proposta remete exatamente a essa
modificação da problematização da religião e da espiritualidade por parte dos saberes psi. Se
os autores argumentam que antes a psiquiatria e a psicologia patologizavam de partida alguns
tipos de experiências religiosas ou espirituais – e a história dessas disciplinas dá razão a essa
afirmação –, trata-se agora de estabelecer critérios que permitiriam reconhecer a normalidade
de certas experiências a partir de uma compreensão psicologizada, distinguindo-as de
fenômenos psicopatológicos. Desse modo, podemos compreender melhor as particularidades
envolvidas em um processo que tanto se mantém sob o olhar dos saberes psi, como se altera
em seu modo de concepção da questão.
Um possível terceiro motivo da adoção do conceito de problematização nesta
dissertação se refere ao fato de meu objeto se estender para além da psiquiatria e,
consequentemente, da área médica. De fato, será no primeiro capítulo que me debruçarei com
maior ênfase nessa disciplina. No entanto, mais do que a respeito dessa especialidade da
medicina, esta dissertação se refere mais amplamente à psiquiatria e à psicologia, abarcadas
sob a categoria guarda-chuva de saberes psi.4 No segundo e no terceiro capítulo será a
psicologia que ocupará especialmente a centralidade de minha investigação, no momento no
qual analisarei com maior ênfase os debates a partir dos quais essas categorias foram
produzidas. Assim, conjuntamente a um possível processo de medicalização, ocorre aqui
também a psicologização da religião e da espiritualidade.
A esse respeito, são os trabalhos de Luiz Fernando Dias Duarte (1986) e de Jane
Russo (1993) que melhor dão conta do fenômeno da psicologização. Embora outros sentidos
possam ser apreendidos do uso do termo, aqueles que mais me interessam aqui dizem respeito
tanto à ideia da psicologização como a produção da noção da interioridade, em um processo
de individualização da noção de pessoa, quanto da difusão dos saberes psi e de suas
concepções em outras disciplinas acadêmicas e outros âmbitos da realidade social. Nesse
sentido, como sugerem os autores junto de Ana Teresa Venancio, vemos como ambas as
4 Embora a psicanálise seja uma das “pernas” desse tripé, não tratarei dela nesta dissertação.
23
Sobre a estrutura
Esta dissertação está estruturada em torno das categorias diagnósticas “problema
religioso ou espiritual” e “transtorno de transe dissociativo”. No primeiro capítulo, abordo a
história do DSM, o guia estadunidense de categorias diagnósticas da psiquiatria no qual essas
categorias foram incluídas. Minha aposta é que a inclusão dessas categorias que possuem a
religião e a espiritualidade como tema de interesse só pode ser melhor compreendida a partir
de um movimento mais amplo na psiquiatria estadunidense, que diz respeito à disputa pela
sua “culturalização” no processo de elaboração do DSM-IV, publicado em 1994. Dessa
forma, apresento a história desses debates, me centrando especialmente nas propostas do
grupo de psiquiatras culturais e antropólogos médicos que se associaram nessa disputa e
analisando os elementos que foram de fato incluídos na versão final da quarta edição do
manual. Por fim, aponto para como os proponentes das categorias diagnósticas sobre religião
e espiritualidade se mobilizam junto a essa reivindicação, ao argumentarem que a inclusão de
seus diagnósticos reforçaria o processo de “sensibilização cultural” da psiquiatria
estadunidense. A partir da comparação com os casos contemporâneos de patrimonialização
cultural das religiões afro-brasileiras e da questão das “medicinas tradicionais” no âmbito da
Organização Mundial da Saúde (OMS), exploro as particularidades de se enunciar a religião e
a espiritualidade como “cultura”.
No segundo capítulo, desenvolvo a análise sobre a categoria diagnóstica de
“transtorno de transe dissociativo”, partindo de seu conteúdo apresentado no DSM e
expandindo o eixo de análise para os trabalhos de seus propositores. Argumento que os
fenômenos de transe e de possessão se tornam universais na medida em que são associados ao
funcionamento ao mecanismo psicológico da dissociação. Esses atores afirmam que tal
mecanismo é comum a todos os humanos, recobrindo desde eventos do cotidiano – como o
“sonhar acordado” – até transtornos mentais mais severos – como o transtorno dissociativo
27
Neste capítulo, me debruçarei sobre a emergência nos anos 1990 de duas categorias
diagnósticas sobre religião e espiritualidade: transtorno de transe dissociativo e problema
religioso ou espiritual. Tratam-se de categorias incluídas originalmente na quarta edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), o principal manual de
diagnósticos psiquiátricos dos Estados Unidos, editado e promovido pela Associação
Americana de Psiquiatria (APA). Apesar de algumas alterações, essas categorias foram
mantidas na quinta edição do DSM, publicada em 2013.
A inclusão desses diagnósticos está entrelaçada com a história do próprio manual.
Dessa forma, apresentarei em um primeiro momento as transformações epistêmicas ocorridas
na terceira edição do DSM, publicada em 1980, quando o manual abandonou uma orientação
de certo viés psicodinâmico em favor de uma orientação biologizante. Essa transformação
marcou os debates do campo disciplinar nas décadas seguintes, tendo sido a partir da crítica à
ênfase biologizante que um grupo de antropólogos médicos se aliou a psiquiatras, durante a
elaboração do DSM-IV, na proposição de mudanças consideráveis no quadro nosológico
apresentado no manual. Eles afirmavam que as dimensões “culturais” dos transtornos mentais
eram constantemente ignoradas. Argumentarei que o que estava em disputa na realização
dessa crítica cultural e nas propostas de modificações era o caráter supostamente universal ou
particular dos transtornos mentais apresentados no guia de diagnósticos. A reivindicação da
“cultura” opera nesse debate como um sinônimo para o “particular” e o “contextual”, sendo
ao mesmo tempo uma espécie de antídoto às pretensões universalistas das categorias
diagnósticas e a própria condição de possibilidade para a realização de um projeto universal
da psiquiatria. Por fim, tratarei do modo como as duas categorias diagnósticas se associaram a
essa espécie de disputa culturalista, na medida em que seus propositores produziram
justificativas que associavam a ignorância ou a aversão aos fenômenos religiosos e/ou
espirituais como uma forma de “insensibilidade cultural”.
O manual de diagnósticos
A história do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é
marcada pela inclusão e exclusão de categorias diagnósticas que ganharam vida em alguns
29
momentos e, em outros, foram deixadas de lado. Se em alguns casos essas decisões parecem
menores e até mesmo irrelevantes, muitas das vezes elas refletem mudanças profundas na
própria concepção sobre qual é o objeto do saber da psiquiatria, alterando assim o alcance do
território de intervenção dessa disciplina. Publicado desde 1952, a trajetória do DSM é
extensa e complexa. Ainda que a extensão dessa história seja ressaltada, boa parte da
literatura dedicada ao tema vem se debruçando primordialmente sobre a transformação
ocorrida em sua terceira edição, publicada em 1980. Isso porque, de acordo com o cientista
político Rick Mayes e com o sociólogo Allan Horwitz (2005), esse foi um momento decisivo
na história da psiquiatria estadunidense, quando o manual passou a ser mais amplamente
utilizado no próprio país e ao redor do mundo.
Sua primeira edição, de 1952, foi criada com o objetivo de instituir uma única
nomenclatura a ser utilizada pelos profissionais da área da saúde mental no país. Para os
organizadores iniciais do empreendimento, isso permitiria que a comunicação entre os pares e
a produção de dados estatísticos se tornasse possível (American Psychiatric Association,
1952, p.v). De acordo com o antropólogo Atwood Gaines (1992), o DSM teria emergido
como uma reação à sexta edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID),
publicada em 1948 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e considerada inócua pelos
psiquiatras estadunidenses. Para o autor, esse descontentamento teria sido motivado pelo fato
de alguns fenômenos de interesse dos clínicos locais não terem sido incluídos na iniciativa da
OMS, como as síndromes cerebrais crônicas e alguns transtornos de personalidade.
Segundo Mayes e Horwitz (2005), a primeira edição do DSM apresentava um sistema
classificatório que refletia a perspectiva teórica dominante na psiquiatria estadunidense das
três décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Influenciado especialmente pela
psicanálise, o paradigma analítico daquele momento era o da psicodinâmica. Nesse caso, os
sintomas do sofrimento mental eram tomados como efeitos de conflitos psíquicos subjacentes,
que deveriam ser explorados pelos psiquiatras mediante a realização da psicoterapia de longa
duração. Partindo da influência dos trabalhos de base conceitual psicossocial de William
Menninger e Adolph Meyer (Gaines, 1992, p.8), os conflitos psíquicos seriam resultados de
uma má adaptação do sujeito sofredor ao seu ambiente social. Nas palavras de Mayes e
Horwitz, o “foco das explicações analíticas e tratamentos era a totalidade da personalidade e
das experiências de vida da pessoa, que providenciavam o contexto para a interpretação dos
sintomas” (Mayes; Horwitz, 2005, p.250, tradução minha). Dessa forma, a atenção dada à
30
pessoa e a sua relação com o ambiente social deslocava uma diferenciação absoluta entre o
sujeito que apresentava sintomas e aquele considerado saudável, na medida em que todos
seriam suscetíveis a essa situação de desajuste social.
Embora em sua segunda edição, publicada em 1968, o DSM tenha abandonado essa
concepção “reativa” frente ao ambiente, a influência psicanalítica teria se aprofundado a partir
da noção do distúrbio mental como uma desorganização psicológica do indivíduo (Russo;
Venancio, 2006, p.464). Dessa forma, o quadro nosológico apresentado pela Associação
Americana de Psiquiatria (APA) continuava a conter uma certa etiologia, isto é, uma certa
concepção de causalidade. Isso se devia ao fato do sintoma ser entendido como uma
afirmação simbólica, algo que deveria ser interpretado pelo clínico para se chegar aos
problemas subjacentes que afetariam o sujeito naquele momento. Ainda assim, de acordo com
Gaines (1992, pp.8-9), o DSM-II seria mais caracterizado pela ausência de um marco teórico
comum, aglutinando ideias remanescentes das obras de várias linhagens teóricas, como a
psicanálise e a psiquiatria de base biológica.
Com o tempo, essa definição dimensional e borrada entre o normal e o patológico –
característica da própria teoria psicanalítica – passaria a ter sua eficácia contestada por atores
da psiquiatria e de outras instituições sociais. O trabalho de Mayes e Horwitz (2005) é
importante a esse respeito por jogar luz a como a abordagem psicodinâmica e sua ênfase em
processos subjacentes não era considerada capaz de responder à necessidade do
estabelecimento de critérios padronizados de reconhecimento de distúrbios mentais. Como os
autores argumentam, essa perspectiva passou a ser criticada por ser muito “subjetiva” na
definição clínica de um diagnóstico, gerando um crescente descontentamento também de
seguradoras, do governo e de psiquiatras que realizavam pesquisas empíricas com
psicofármacos e métodos terapêuticos em geral.
A resposta a essas pressões começou a ser dada em 1974, quando o psiquiatra Robert
Spitzer foi escolhido pela APA para realizar a revisão do DSM-II. Spitzer e os psiquiatras
escolhidos por ele para compor a força-tarefa encarregada da elaboração da terceira edição do
manual se reconheciam no trabalho do psiquiatra alemão Emil Kraepelin, ativo ao final do
século XIX e começo do XX. De acordo com o antropólogo Allan Young (1995, pp.95-96), a
classificação psiquiátrica levada a cabo por Kraepelin tinha como fundamento três ideias: 1)
os transtornos mentais são melhor compreendidos a partir da analogia com doenças físicas; 2)
a classificação dos transtornos depende da observação de sintomas visíveis e não a partir de
31
Como salienta o mesmo autor (Young, 1995, p.97), essa nova linguagem entrava em
contradição com a formulação psicodinâmica dos distúrbios mentais, na medida em que
ambas as formas descritivas operavam por conceitualizações distintas dos sintomas e dos
próprios distúrbios ou transtornos mentais. Em vez disso, como argumentam as antropólogas
Jane Russo e Ana Teresa Venancio (2006, p.465), essa nova forma descritiva apresentava
uma nova afinidade a uma noção fisicalista da perturbação mental, isto é, uma concepção do
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transtorno como possuindo bases orgânicas em vez de mentais. Isso pode ser evidenciado
tanto pela contribuição que essa nova forma classificatória deu às pesquisas experimentais de
psicofármacos – ao definirem os transtornos a partir de critérios sintomatológicos, garantindo
uma maior precisão no diagnóstico (Mayes; Horwitz, 2005, p.263; Russo; Venancio, 2006,
p.465) –, quanto pela própria influência neokraepeliana de associação dos transtornos mentais
às doenças físicas, exaltada por Spitzer mas não explicitada no texto final do DSM-III. 5
Devido a todas essas transformações, a publicação do DSM-III vem sendo tomada por muitos
autores (Lewis, 2006; Luhrmann, 2000) como um momento fundamental para a acensão da
psiquiatria de base biológica e a consequente desvalorização da psicanálise e das psicologias
profundas como marco teórico da episteme psiquiátrica estadunidense.
A “cultura” e o DSM-IV
A respeito das reações a essa mudança ocorrida na terceira edital do manual, Mayes e
Horwitz (2005, p.264) argumentam que as críticas dos psiquiatras defensores de uma
perspectiva psicodinâmica foram em grande medida ignoradas, tendo o DSM-IV reafirmado
essa transformação geral. Embora concorde com os autores que a forma de classificação não
tenha se alterado substancialmente na quarta edição do manual, me parece que essa conclusão
tende a ofuscar uma outra dimensão da história das diversas edições do DSM, que diz respeito
à disputa pela inclusão de considerações de ordem “cultural”.
É recorrente nas análises presentes em textos críticos ao DSM a afirmação que, a
despeito de suas pretensões expressamente universalistas, o manual seria um produto cultural,
situado histórica e socialmente em determinações particulares. Esse é o argumento de um
texto publicado mais recentemente pela psicóloga Rafaela Zorzanelli (2014), que em certo
sentido se situa em continuidade ao debate que o texto do psiquiatra e professor de
antropologia Horacio Fabrega (1992) se via às voltas quando buscava explicitamente
contribuir na elaboração do DSM-IV. No entanto, a análise dos modos como a “questão
cultural” foi abordada no próprio manual se reteve apenas aos atores envolvidos na disputa da
questão, nunca tendo sido tomada como objeto de uma investigação mais detalhada que inclua
essas reivindicações como material empírico.
5 Como salientam Mayes e Horwitz (2005, p.260), a proposição que afirmava que “as perturbações mentais
seriam um subconjunto das perturbações físicas” foi recusada em votação pela própria força-tarefa.
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Esse é o caso do próprio Fabrega, que fez parte do grupo de psiquiatras e especialistas
culturais que, a partir da organização de um evento acadêmico e de todo um movimento
institucional, puderam pressionar a força-tarefa do DSM-IV para incluir algumas
considerações envolvendo a importância da “cultura” na formulação, concepção e
operacionalização dos diagnósticos psiquiátricos. Assim, embora os resultados tenham sido
considerados pelos próprios proponentes como insuficientes e mesmo decepcionantes, foi a
partir da mobilização de um conjunto de psiquiatras, psicólogos e pesquisadores de outras
áreas – em especial, antropólogos – que a categoria “cultura” passou a ser acionada e a
estruturar algumas dimensões do manual em sua quarta edição, publicada em 1994.
É possível dizer que a motivação central para a reunião de psiquiatras, psicólogos e
pesquisadores ligados à questão da “cultura” em sua disputa no DSM tenha sido a tensão entre
a localização particular da produção do quadro nosológico de diagnósticos e a pretensão
universalista que o documento assumia. Sobre esse último ponto, como indicam Margaret
Lock e Vinh-Kim Nguyen (2010, pp.173-174), a forma de descrição fenomênica e “ateórica”
possui uma característica universalizante, na medida em que permite que seu quadro
classificatório seja transladado a outras regiões do mundo, aplicando suas categorias sem
maiores empecilhos. Ainda que se possa convincentemente associar tal universalização aos
vínculos que o manual estabelece com uma noção biológica e fisicalista da perturbação
mental, como argumentam Russo e Venancio (2006) e como indicam alguns atores críticos
envolvidos na disputa, me parece que a própria proposta “ateórica” já possui em si mesma
uma certa pulsão universalizadora, ao se deter apenas em critérios observáveis do fenômeno
sob escrutínio.
Engajados com essa questão e sabendo da preparação para a quarta edição do DSM
que ocorria naquele momento, Horacio Fabrega, a psiquiatra Delores Parron e o importante
antropólogo e psiquiatra de Harvard, Arthur Kleinman, decidiram pela realização de uma
conferência nacional sobre o tema “cultura e diagnóstico”, em abril de 1991, na cidade de
Pittsburgh, nos Estados Unidos – mesma cidade onde estava a universidade na qual Fabrega
estava vinculado como professor. Graças ao auxílio concedido pelo Office for Special
Populations, divisão ligada ao Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) que havia sido
dirigida por Parron na década de 1980, os organizadores do evento puderem reunir 45
especialistas na área da psiquiatria cultural e nos estudos gerais sobre cultura (entre eles,
antropólogos, sociólogos e psicólogos) para debater questões referentes ao tema. Além disso,
34
tarefa do DSM resumiam informações sobre as possíveis variações envolvidas nos modos do
paciente relatar seu sofrimento, nos padrões dos sintomas, nas disfunções, no curso da doença
e nas correlações sociodemográficas do transtorno em questão. A justificativa do grupo de
trabalho foi a de que isso permitia a promoção de uma maior sensibilização cultural por parte
dos clínicos, de modo que eles pudessem avaliar o contexto cultural a qual o paciente se
insere e assim determinar se a categoria diagnóstica é realmente aplicável. Foram incluídas
versões simplificadas dos comentários oferecidos quanto aos critérios de diagnósticos, sendo
que 76 categorias passaram a apresentar uma subseção com “considerações culturais, de idade
e de gênero” (Mezzich et al., 1999, s/n).
Um caso que chama a atenção envolvendo essas questões diz respeito à esquizofrenia.
O relato da antropóloga Janis Jenkins (1996) – que participou do grupo de trabalho sobre as
características culturais do diagnóstico de esquizofrenia junto ao psiquiatra Marvin Karno – é
interessante para termos uma noção do modo como algumas proposições foram incluídas no
manual. A antropóloga relata que boa parte de suas considerações foram reduzidas e
deslocadas da seção principal do texto para a subseção sobre cultura, idade e gênero. É esse o
caso do segundo critério diagnóstico, que trata das alucinações. Enquanto no texto proposto os
autores indicaram que a alucinação poderia variar culturalmente em termos da distinção
cultural entre normal e patológico, do conteúdo e da forma da alucinação (apontando para
casos dessas variações), o manual reteve apenas uma passagem curta, que privilegiava o
conteúdo da alucinação como elemento a se reter atenção: “Em algumas culturas, alucinações
visuais ou auditivas com conteúdo religioso podem ser uma parte normal da experiência
religiosa (e.g. ver a Virgem Maria ou ouvir a voz de Deus)” (American Psychiatry
Association, 1994, p.281, tradução minha).
Para Jenkins (1996, pp.371-372, tradução minha), tal privilégio ao conteúdo estaria de
acordo a uma “ênfase consistente com a força-tarefa do DSM-IV em tomar a cultura como
relevante em relação a ‘crenças’ (…), mas não tomá-la como relevante de modo geral em
relação à organização da experiência esquizofrênica”. Assim, embora pareça ainda operar a
partir de um entendimento da existência esquizofrênica como um campo quase “pré-cultural”
- que vem a ser organizado posteriormente –, Jenkins aponta para a universalização que o
DSM realiza quanto aos próprios fenômenos da esquizofrenia, unificando-os em torno de uma
mesma forma de manifestação, variável apenas em seu conteúdo.
38
ocidentais, e em outro ela passa a ser um marcador da diferença, onde o Outro é sempre
culturalizado. Ainda assim, parece haver uma espécie de fundo comum nessas enunciações.
6 Reduzida, mas não eliminada. Isso porque tanto se pode questionar a tentativa da inclusão de transtornos
particulares na seção das “síndromes ligados à cultura” (caso da anorexia nervosa e do transtorno de
personalidade múltipla), quanto podemos ver o próprio Arthur Kleinman (1996, pp.17-18) afirmando existir
evidências para a universalidade da esquizofrenia, do transtorno bipolar, da depressão e de um grupo de
ansiedades.
42
médico, algo que pode ser explicitado por essa relação de dupla pertença entre a antropologia
e a psiquiatria que alguns de seus principais atores apresentam. Ao realizar uma revisão de
parte da literatura preocupada com a questão das “doenças nervosas”, o antropólogo Luiz
Fernando Dias Duarte (1993) reconhece essa mesma dinâmica. Nas palavras do autor:
A preocupação com a contextualização cultural é a tônica, seja do ponto de vista
explícito da determinação das relações entre experiência e sentido da doença, seja do
ponto de vista latente da definição das unidades culturais significativas. A
concepção de cultura prevalecente é a dos “padrões de comportamento”,
obedecendo a um forte componente funcionalista de atenção à integração e
equilíbrio entre “indivíduo” e “sociedade”. Essa perspectiva garante uma grande
aproximação e continuidade com o pragmatismo das ciências médicas e dos outros
saberes de intervenção social a que se associa (apesar das permanentes tentativas
críticas de distanciamento do paradigma biomédico). (Duarte, 1993, p.46)
7 Opto aqui por seguir as traduções normalmente feitas de disease/illness para doença/enfermidade, como em
Langdon (2014) e em Helman (2009). É preciso enfatizar que um terceiro termo é incluído por Young
(1982), o de sickness ou mal-estar, que diria respeito à dimensão sociocultural de manejo do fenômeno,
afastando-se da illness por não se centrar na experiência subjetiva e da produção individual de sentido.
8 O livro de Good (1994) é um exemplo disso, tomando as questões concernentes à antropologia médica de
forma mais sofisticada do que nos debates referentes às propostas do grupo de diagnóstico e cultura.
43
a defesa da “cultura” como fundamental à prática psiquiátrica por parte dos críticos não
parece ser um entrave ou uma contradição ao projeto universalizante da psiquiatria. Essa
posição fica especialmente evidente no texto introdutório escrito por Mezzich, Kleinman,
Fabrega e Parron (1996) ao livro que resultou dos esforços do grupo de trabalho sobre
diagnóstico e cultura. Logo no segundo parágrafo dessa introdução, mencionando o famoso
trabalho da antropóloga Margaret Mead (1928) e a obra do fundador da etnopsiquiatria
francesa, o psicanalista e etnólogo George Devereux (1956), os autores afirmam:
Um desafio antropológico inicial a um conceito universalista e descontextualizado
de diagnóstico psiquiátrico, particularmente em sua versão platônica de “entidade da
doença” [disease entity], foi realizado sob a bandeira do relativismo cultural (…). Os
equívocos dessa posição foram incorporados aos excessos da teoria do
etiquetamento social [labeling theory] e tornaram-se associados aos escritos
antipsiquiátricos (…). O resultado foi uma desvalorização dos insights
proporcionados por aquele desafio antropológico inicial. (Mezzich et al., 1996,
p.xvii, tradução e ênfase minha)
Nessa proposta, vemos uma clara recusa de uma das linhas de investigação
decorrentes dos trabalhos seminais da antropóloga estadunidense Ruth Benedict (1934; 2013),
como delineado por Good (1994). Se no plano teórico os autores reforçam a recusa da
conceitualização da “doença” como uma entidade do plano natural e portanto independente da
cultura, não há a proposição do abandono das categorias diagnósticas psiquiátricas, em um
posicionamento mais alinhado à chamada antipsiquiatria. A posição dos autores pode ser
melhor compreendida a partir do próprio esquema elaborado por Good (1994, p.34), quando
reconhecemos nos principais autores do grupo (em especial, Kleinman e o próprio Good) sua
ligação com uma tradição da antropologia médica dos Estados Unidos interessada em
investigar as variações culturais concernentes às fenomenologias e o curso das enfermidades.
Os efeitos práticos dessa posição parecem ser o não abandono das próprias categorias
diagnósticas, como o caso da “depressão” (Kleinman, 1977), e eles se veem às voltas da
distinção fundante entre a natureza universal das psicopatologias e suas formas particulares de
manifestação. Embora possam não ser entendidas somente como “doenças” alheias à cultura,
as categorias diagnósticas se tornam uma espécie de mínimo comum, os termos
imprescindíveis para a descrição da realidade. Desse modo, não se trata de se abandonar a
existência de “doenças” psiquiátricas em prol das “enfermidades”, ligadas eminentemente à
experiência pessoal e à sua relação com a cultura circundante. Pelo contrário, a atenção à
“cultura” se torna precisamente a condição de possibilidade para uma realização eficaz desse
projeto de atenção às “doenças”, na medida em que permite à disciplina psiquiátrica, com
44
condições que podem ser um foco de atenção clínica” - na qual se lista alguns problemas que
geram angústia psíquica mas que não se caracterizam como transtornos mentais, sendo o caso
de “problemas acadêmicos” e “problemas de aculturação”. Sua breve descrição pode ser
citada na íntegra:12
Esta categoria deve ser usada quando o foco de atenção clínica é um problema
religioso ou espiritual. Exemplos incluem: experiências negativas que implicam
perda ou questionamento da fé, problemas associados com conversão a uma nova fé,
questionamento de valores espirituais que não necessariamente estão relacionados a
uma igreja organizada ou uma religião institucionalizada. (American Psychiatric
Association, 1994, p.685, tradução minha)
12 A categoria se manteve inalterada na quinta edição do DSM, tanto em seu conteúdo quanto em sua
localização dentro do manual.
46
história” da categoria incluída no DSM-IV. É notável que em seu primeiro texto dedicado ao
tema, Lukoff (1985) não tenha mencionado em nenhum momento a “cultura” como uma
determinante para o diagnóstico de “experiências místicas com características psicóticas”,
categoria que ele propunha naquele momento. Em vez disso, como veremos com maior
detalhe no capítulo 3, seu argumento se baseara na possibilidade de distinguir estados mentais
com características psicóticas que não seriam necessariamente indícios de estados
patológicos. Experiências religiosas ou espirituais não seriam em si mesmas necessariamente
patológicas, e uma atenção maior ao fenômeno deveria ser dada por parte do clínico, de modo
que ele pudesse identificar aquelas situações nas quais um diagnóstico de transtorno mental
não seria o correto. Embora aqui parece ocorrer uma reivindicação análoga à apresentada
posteriormente, em termos de uma “sensibilização” a contextos particulares, o que me
interessa é o fato desses “contextos particulares” não serem marcados nos enunciados pelo
signo distintivo da “cultura”.
Essa mudança estratégica no modo pelo qual as reivindicações foram realizadas parece
se associar com o movimento mais amplo de “culturalização” do DSM, mencionado
anteriormente. Assim, os proponentes da categoria teriam se aliado aos questionamentos que
uma parcela da psiquiatria estadunidense vinha fazendo desde os anos 1980 quanto à ausência
de consideração por parte do DSM no que diz respeito aos aspectos culturais das
psicopatologias. Não se pode dimensionar o efeito real dessa associação, mas é possível
indicar que tal fator parece ter ao menos auxiliado a inclusão do diagnóstico, alinhando-se a
uma espécie de “espírito dos tempos” de um período “culturalista” em parte da psiquiatria
estadunidense – alinhamento esse que, vale mencionar, se mantém por parte dos propositores
de “problema religioso e espiritual” no artigo publicado um ano após o DSM-IV, na
manutenção da defesa de uma “sensibilização cultural” na psiquiatria (Turner et al., 1995).
No entanto, o acionamento da categoria “cultura” parece não apenas produzir efeitos
no plano das disputas por categorias diagnósticas no DSM. Escrevendo a respeito de casos
envolvendo “minorias étnicas” e “sociedades não-ocidentais”, os autores afirmam:
[é preciso que o terapeuta entenda] a construção cultural da doença do paciente.
Quando o contexto cultural dos pacientes é considerado, alguns problemas que se
apresentam com conteúdos religiosos e espirituais incomuns são, na verdade, livres
de psicopatologias. (Lukoff; Lu; Turner, 1992, p.676, tradução minha)
13 Um pesquisador da área dos estudos sobre dissociação não soube me informar sobre o desenvolvimento da
categoria diagnóstica presente no CID-10, chamada “estados de transe e de possessão”, assim como eu
mesmo não consegui encontra nenhuma informação relativa à sua inclusão. O que posso indicar é que esta
categoria apresenta uma definição alinhada àquela do DSM-IV, sendo uma versão mais simplificada.
49
grupo social específico de seus praticantes. Ocorre uma justificativa antropológica que associa
inevitavelmente seu espaço físico à religião de um grupo étnico, ligado à população negra e a
sua história ancestral no país. Curiosamente, trata-se de uma dinâmica que ocorria ao menos
desde as produções antropológicas dos psiquiatras Nina Rodrigues e Arthur Ramos ao fim do
século XIX e começo do XX, na qual viam nas religiões afro-brasileiras uma particularidade
que as diferenciava das outras, sendo o caso de Ramos o mais contundente no processo de
“culturalização”.
Por um lado, há aqui a semelhança ao caso do DSM quanto ao processo de
“culturalização” da religião envolver uma certa dinâmica de diferenciação. Se tentei apontar
ao longo deste capítulo como o espaço da diferença no manual de diagnóstico se dá
precisamente pela “cultura” e por sua lógica particularizadora, existe o mesmo processo no
caso das religiões afro-brasileiras em sua relação com o Estado brasileiro. Não à toa, é preciso
que recorram a essa lógica “diferencialista”, na qual a especificidade cultural da religião é o
que conta para o seu reconhecimento no espaço público. No caso da psiquiatria, se trata de se
reconhecer a possibilidade do papel que a religião e a espiritualidade possuem na
conformação de experiências e comportamentos considerados “normais” para grupos sociais
diferentes daquele ligado aos centros urbanos da modernidade ocidental, ainda que a
ambivalência da eterna possibilidade de uma suposta psicopatologia se mantenha. Por outro
lado, é interessante notar como essa associação entre cultura e etnicidade ocorre também no
caso do DSM no reconhecimento da diferença. Isso porque quando se trata de se marcar a
diferença no interior dos Estados Unidos, ela se dá em termos etnicizados, indicando por
exemplo o aumento da comunidade hispânica, afro-americana e asiática na composição
populacional do país. Já quando os autores falam do uso do manual de diagnósticos em países
ao redor do globo, a diferença é reenquadrada em termos culturais.
O outro debate que se assemelha ao da inclusão de categorias sobre religião e
espiritualidade no DSM diz respeito às chamadas “medicinas tradicionais” e sua relação com
as “medicinas alternativas e complementares” no âmbito da Organização Mundial da Saúde
(OMS). Ao fazer uma retomada histórica do modo como essas categorias emergem nos
documentos da Organização, Toniol (2017; 2018) aponta para duas dinâmicas distintas que as
envolve. Embora ambas designem práticas terapêuticas não biomédicas e ao menos desde os
anos 1990 sejam utilizadas nas discussões da OMS em conjunto, como supostas equivalentes,
ao longo de sua utilização vemos como essas categorias são mobilizadas a depender da
54
Dessa forma, a categoria estaria sempre ligada a grupos culturalmente específicos não-
ocidentais, descrevendo práticas terapêuticas utilizadas em contextos particulares. Elas
constituem assim um espaço da alteridade do Ocidente por excelência, naquilo que o autor
indicou como “espiritualidade dos Outros”. No entanto, um outro elemento importante diz
respeito à sua definição se dar em referência à biomedicina. Como indicou Toniol (2017,
p.61), embora a utilização do termo “medicinas tradicionais” tenha de início uma pretensão
simetrizadora à biomedicina, ao postular o estatuto de “medicina” a práticas terapêuticas não-
ocidentais, um efeito hierarquizante retorna à relação ao não se aplicar o mesmo princípio de
localização cultural à biomedicina. O que resulta é que enquanto as “medicinas tradicionais”
se veem culturalizadas, a medicina ocidental permanece fora da cultura e da história.
Para além da mesma operação da “cultura” como um conceito que descreve a
diferença, me interessa aqui a menção a essa dinâmica entre uma intenção simetrizadora e a
manutenção de uma hierarquia. Como aponta o autor, isso ocorre precisamente por uma
relação entre algo que é marcado e localizado (a “medicina tradicional”) e algo que se
mantém desterritorializado e desistoricizado, invariável em qualquer lugar do globo. Tal
situação fica evidente em relação ao DSM principalmente quanto ao resultado final da disputa
envolvendo sua culturalização, no qual a força-tarefa do manual alterou muitas das propostas
originais do grupo de cultura e diagnóstico. 14 A esse respeito, são ilustrativas a introdução das
“síndromes ligadas à cultura” em separado ao quadro nosológico das categorias diagnósticos
principais e a afirmação presente no manual de que os transtornos mentais poderiam
apresentar variações culturais em suas expressões particulares ao redor do mundo. Isso porque
14 No entanto, retomo aqui minha sugestão anterior de que essa mesma dinâmica hierarquizante já se
encontrava presente nas propostas originais do grupo crítico ao DSM. É preciso pensarmos as duas posições,
das propostas originais e daquilo que foi efetivamente incluído, como polos em tensão entre princípios
universalizantes e particularizantes.
55
***
Dediquei-me neste capítulo ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM), retraçando a história de sua emergência e me debruçando com maior detalhe
em parte do processo da organização de sua quarta edição, publicada em 1994. Em especial,
meu interesse se deu por sua “culturalização”, quando uma série de atores ligados à
psiquiatria e à antropologia se reuniram na formulação de críticas e proposições à edição que
se encontrava em concepção. Apesar de algumas das propostas terem sido ignoradas ou então
transformadas em seu processo de incorporação ao texto, houve uma inclusão considerável de
elementos que tentam dar conta da “cultura” no DSM. Minha aposta ao fazer essa retomada
parte do modo como as categorias “transtorno de transe dissociativo” e “problema religioso
56
Ainda que fosse possível nos determos com maior calma nesse trecho – se atentando,
por exemplo, para o caráter de “crença” dado à possessão, de forma semelhante à enunciação
da variação cultural da esquizofrenia no DSM-IV, como indicado no capítulo anterior –,
gostaria antes de ampliar o conjunto da análise. Acredito que a dimensão das “experiências de
possessão”, compreendidas de forma abrangente, se constituiu como um problema para uma
série de autores ligados aos estudos sobre dissociação, tendo parte do debate se deslocado nos
anos 1990 com a criação do diagnóstico de “transtorno de transe dissociativo”.
Para que consigamos compreender a emergência desse diagnóstico como um
deslocamento envolto de ambivalências e não apenas como uma ampliação de uma lógica
patologizante já presente no transtorno de múltipla personalidade – posição que Noll está
propenso a defender –, é necessário primeiro que remontemos a uma figura paradigmática da
literatura sobre a dissociação, que parece ter contribuído decisivamente na consolidação dessa
visão patologizante e psicologizante dos fenômenos de possessão e/ou de transes religiosos. É
na própria “pré-história” da múltipla personalidade que vemos o entrelaçamento entre a
59
16 Sobre as possíveis continuidades e descontinuidades dos fenômenos tratados por Janet na França no final do
século XIX e aqueles que emergiram com maior popularidade nos Estados Unidos nos anos 1980, em que o
número de “personalidades alternativas” era maior, ver Hacking (2000).
60
em seu trabalho contribuiu para o uso que Janet fazia da hipnose como uma técnica
terapêutica que permitia o acesso às memórias traumáticas do sujeito, até então inacessíveis
devido ao esquecimento gerado pela dissociação da memória. A ligação entre a hipnose e a
dissociação era ainda ampliada em sua definição do estado hipnótico como uma forma de
dissociação, estabelecendo assim uma conexão que seria retrabalhada nas recentes produções
sobre o tema.17
Embora eu esteja interessado no recente desenvolvimento dos trabalhos sobre
dissociação e em sua apreensão de experiências religiosas e/ou possessivas ligadas ou não a
uma religião, a figura de Janet é paradigmática pela posição central que o autor ocupa nas
bibliografias e na produção da autoimagem de boa parte da literatura recente. A esse respeito,
por exemplo, é ilustrativa a mobilização que se faz dele como uma espécie de “anti-Freud”,
quanto ao interesse pelos fenômenos dissociativos e à própria questão da ligação desses
fenômenos com as experiências traumáticas, elemento tão central em produções recentes
(Hacking, 2000, p.55; tal mobilização é evidente, por exemplo, em Castillo, 1994a).18
Dentre os casos sob cuidado de Janet que foram descritos por ele está o de Achille,
apresentado em sua obra Névroses et idées fixes, publicada originalmente em 1898. De acordo
com a descrição oferecida por Janet, Achille era um homem de 33 anos no momento de sua
passagem por Salpêtrière, hospital psiquiátrico em que o médico trabalhava. Tratava-se de um
pequeno comerciante vindo de uma família de camponeses do sul do país. Embora ele próprio
não fosse “supersticioso” e nem tivesse muitas “crenças religiosas”, seus companheiros de
vilarejo e sua própria família o eram, tendo seu pai sido acusado de se entregar ao diabo e de
conversar com a figura demoníaca todos os domingos em troca de dinheiro – algo que Janet
enfatiza para afirmar que Achille era “hereditariamente predisposto à insanidade” (Janet,
1898, p.380, tradução minha). Apesar disso, Achille conseguira levar uma vida considerada
normal, se casando e tendo uma filha. Sua vida começou a mudar a partir do retorno à casa
17 Sobre a produção teórica de Janet e a construção e operacionalização de seus conceitos, ver o detalhado
trabalho de Juliana Gonçalves Blaser (2015). A respeito da hipnose, Janet seguia as posições de seu mestre,
Charcot, se opondo à teoria da chamada Escola de Nancy, encabeçada por Bernheim. De acordo com
Bernheim, o estado hipnótico seria um estado sugestionado, sem uma alteração significativa dos
mecanismos psicológicos envolvidos. Enquanto a posição de Janet seria desenvolvida e modificada pela
teoria neodissociativa de Ermest Hilgard nos anos 1970, a de Bernheim daria seus frutos na teoria
sociocognitiva de Nicholas Spanos (Riskin; Frankel, 1994).
18 De acordo com Castillo (1994a, pp.10-11), se a princípio Freud teria considerado que os sintomas histéricos
de seus pacientes se deviam a traumas psicológicos decorrentes de abusos sexuais em sua infância – algo
consistente com a proposição de Janet –, posteriormente o pai da psicanálise abandonara essa chamada
“teoria da sedução”. Em lugar de eventos reais, Freud proporia que as memórias sexuais infantis se deviam a
fantasias presentes na infância, que seriam reprimidas pela culpa envolvida.
61
após uma curta viagem a trabalho, já no ano de sua futura internação. Embora ele dissesse
estar bem, sua esposa o encontrou mudado, agindo de forma sombria e distante em relação a
ela e a sua filha. Seu estado foi piorando com o passar do tempo, indo de um mutismo
completo acompanhado por dias sem sair de sua cama, até uma euforia que ele alegava ser
produzida pelo próprio diabo que possuía seu corpo e o fazia de tempos em tempos gritar
blasfêmias contra Deus e os santos – elementos esses que Janet comparou com os presentes
no diário de Jeanne des Anges, uma das vítimas da epidemia de possessões demoníacas de
Loudun, no século XVII (Andriopoulos, 2014, p.89).
Após seguidas tentativas de suicídio e a visita de alguns médicos, a família decidiu por
levá-lo à Salpêtrière, seguindo o conselho de um dos médicos que, nas palavras de Janet
(1898, p.383, tradução minha), afirmara ser “o local mais propício hoje em dia para o
exorcismo dos possuídos e a expulsão dos demônios”. Nas fracassadas tentativas iniciais por
parte de Janet em hipnotizar Achille, era o diabo quem respondia ao médico, zombando de
sua impotência. Foi apenas quando conseguiu induzir seu paciente à prática da escrita
automática que ele pôde então conversar com o próprio diabo – que o respondia pela escrita –,
convencendo-o a provar seus poderes ao colocar Achille no estado de sonambulismo, ou seja,
de profundo transe. Instado pelo desafio, o demônio assim o fizera. Foi nesse momento que
Janet pôde descobrir o que ele considerou a verdadeira razão do comportamento de seu
paciente, que passara a responder suas perguntas sem maiores resistências: não havia
verdadeira possessão, e tudo se devia ao remorso que Achille sentia por ter sido infiel à sua
esposa em sua viagem a trabalho, evento esse que foi dissociado de sua memória e da sua
consciência em vigília, e retornara na forma de um demônio. Dessa forma, o “exorcismo
moderno” a que Janet se referia no próprio título do texto passava pela cura dos sintomas de
amnésia e da emergência de uma outra personalidade (a do demônio), algo que só pôde se dar
a partir de sugestões hipnóticas variadas, dentre as quais a que sua esposa o havia perdoado,
reintegrando assim a memória traumática de Achille à sua personalidade.
Mesmo que o tema da possessão demoníaca cristã seja um exemplo extremo das
ambiguidades entre o suposto estado psicológico do sujeito afetado e a possibilidade de uma
verdadeira possessão – devido ao sofrimento envolvido –, a opinião de Janet a respeito dos
médiuns de seu tempo não era muito diferente. Ao menos é isso o que ele nos deixa entrever
em sua tese de doutoramento em filosofia, intitulada L’automatisme psychologique e
publicada originalmente em 1889. Em seu trabalho, Janet dedica um capítulo inteiro apenas
62
nos termos de uma “promoção da colonização do sobrenatural” – como Noll o havia acusado
–, mas sim de uma movimentação por parte da psiquiatria em promover uma “perspectiva
intercultural”.
O próprio dossiê de 1993 apontava para esse estado de coisas no campo dos estudos
sobre dissociação. Composto por quatro artigos originais, três comentários (Noll entre os
comentaristas) e as réplicas dos autores, as produções ali reunidas deixam claro como a
questão estava dividida. Isso porque se dois dos artigos originais se colocavam em um sentido
bastante semelhante àquele operado por Janet, os outros dois passavam a articular uma forma
de enunciação mais sutil, com aportes teóricos vindos especialmente da literatura
antropológica.
No caso dos artigos que se mostravam em continuidade com a posição de Janet,
qualquer enunciação pelo tema se dava sob a assertiva de que os supostos estados possessivos
se tratam apenas de algum transtorno dissociativo como a múltipla personalidade, sendo
necessária não a realização de um exorcismo de qualquer tipo, mas sim a psicoterapia voltada
para esse tipo de transtorno. A psiquiatra e professora da Universidade de Indiana, Elizabeth
Bowman (1993) – que viria a se tornar presidente da Sociedade Internacional entre 1995 e
1996 –, e o psiquiatra George Fraser (1993), apresentavam dados e relatos de casos da
realização de exorcismos cristãos em pessoas posteriormente diagnosticadas com o transtorno
de múltipla personalidade por eles próprios ou por seus colegas de profissão. A mobilização
desses casos na construção do argumento deles opera como um modo de evidenciar os perigos
envolvidos nas práticas religiosas de exorcismo, servindo como um alerta para os terapeutas
que viam com bons olhos a adoção dessa prática mesmo em um espaço terapêutico. No
entanto, toda a construção retórica dos textos se dava a partir de um a priori mais ou menos
evidente sobre o fenômeno, algo que foi questionado pelos três debatedores do dossiê (Rosik,
1993; Noll, 1993; Crabtree, 1993). Esse é o caso de Fraser (1993), que embora tenha sido
mais sutil ao longo do artigo, afirmava logo em sua introdução:
Aqueles de nós que são familiares com a atual teoria e apresentação clínica dos
estados de ego dissociados no transtorno de múltipla personalidade são
provavelmente a primeira geração de terapeutas que sabem a verdadeira natureza
dessas supostas entidades possessivas nas versões judaico-cristãs da síndrome
possessiva. Do ponto de vista científico, tais entidades representam estados de ego
dissociados da pessoa ‘possuída’. (…) No passado, a apresentação de estados de
ego dissociados era erroneamente interpretada como sendo de origem sobrenatural,
e como tal, deveria ser tratada em uma base sobrenatural [exorcismo]. (Fraser, 1993,
p.239, tradução e ênfase minhas)
64
Vemos nesse trecho como seu argumento parte da suposição que experiências
possessivas são na verdade “estados de ego dissociados”. Mais do que isso, o autor se permite
até uma leitura em retrospecto, típica daquela operada por Charcot junto de Paul Richet na
análise de obras de arte que representavam possessões demoníacas ao longo da história, em
que afirmavam que as personagens apresentadas não estavam possuídas por algum espírito
maligno, mas eram na realidade afetadas pela histeria (Gonçalves; Ortega, 2013; Grossi,
2020). Com alguma ironia, o precedente histórico do tipo de conclusão trai a suposição do
ineditismo da “descoberta médica” de Fraser. De forma similar, Bowman (1993) não apenas
remete à mesma lógica de releitura diagnóstica atual e da história das possessões demoníacas
cristãs, como também em mais de um momento (Bowman apud Rosik, 2003) afirma ser
necessário “educar a comunidade cristã conservadora sobre a realidade do transtorno de
múltipla personalidade e sobre como ele pode se assemelhar à sua conceitualização [cristã] da
possessão demoníaca” (Bowman, 1993, pp.230-231, tradução minha).
Os outros dois artigos escritos para esse mesmo dossiê são os de autoria do psiquiatra
e professor da Universidade de Indiana, Phillip Coons – uma referência importante no campo
de estudos da múltipla personalidade e antigo presidente da Sociedade Internacional em 1988
e 1989 –, e do psicólogo clínico e ex-professor assistente de psiquiatria na Universidade de
Yale, David Begelman, quem havia concebido e organizado o dossiê. Mais do que a vontade
de abarcar todas as contribuições originais do dossiê, minha intenção ao trazer esses dois
artigos para a análise é a de introduzir um outro posicionamento frente ao tema das possessões
espirituais, em que se articulam formas de enunciação dessas experiências como não sendo
necessariamente psicopatologias como a múltipla personalidade, e que, não por acaso,
mencionam a categoria diagnóstico “transtorno de transe dissociativo”, apresentada no
capítulo anterior. Esses textos diferem dos de Bowman e Fraser não apenas por se
posicionarem do lado oposto do debate, mas também por se concentrarem em discussões no
plano teórico e em análises que não são de casos isolados, algo que talvez possa ser explicado
por se tratarem de contribuições que tentam instituir uma chave de análise diferente daquela
operada majoritariamente nos saberes psi ao menos desde Charcot e Janet.
De fato, Begelman (1993a) e Coons (1993) partem do argumento de que os fenômenos
de possessão espiritual não são redutíveis a uma condição psicopatológica, embora os autores
difiram em relação ao nível da relativização dessa correlação. Em sua resposta oferecida aos
comentários dos debatedores, Begelman (1993b) argumenta que há apenas uma sobreposição
65
Normalizando a dissociação
Embora o tema da dissociação e os casos de múltipla personalidade tenham chamado a
atenção de psicólogos e psiquiatras no final do século XIX e nas duas primeiras décadas do
século XX – especialmente nos Estados Unidos, com William James e Morton Prince –, por
volta de 1920 o interesse já havia esfriado, assim como a aparição desses casos no espaço da
clínica, algo que só viria a retornar com mais força no debate dos saberes psi a partir dos anos
1970. Independente das possíveis causas dessa lacuna na história dos transtornos
dissociativos,19 a questão é que quando o tema voltou a interessar psiquiatras e psicólogos a
partir especialmente dos anos 1980, algo havia mudado em sua concepção. Se em Janet a
dissociação estava inevitavelmente ligada a uma condição mórbida, no final do século XX já
era comum um entendimento desse fenômeno psicológico como algo também normal.
19 Há ao menos duas posições que tentam explicar esse certo vazio entre 1920 e 1970, quando o tema voltará a
ser debatido com algum interesse nas revistas acadêmicas da área. Se para os céticos a queda do número de
casos se dava devido ao fato dos transtornos dissociativos serem condições sugestionadas pelo terapeuta
(e.g. Acocella, 1999), para os que defendiam sua existência isso se devia à prática incorreta do diagnóstico,
efeito da ascensão da psicanálise (e da histeria) e da criação do diagnóstico de esquizofrenia nesse meio
tempo (Ross, 1996, p.6).
67
Será dessa mesma forma que Cardeña (1989, p.14), em um texto anterior a esse
debate, irá se referir à “dissociação” nas práticas possessivas, partindo de sua análise do caso
do vodu haitiano: como uma “capacidade” do indivíduo.
De fato, essa noção de que a dissociação não estaria necessariamente ligada a um
fenômeno psicopatológico já era a perspectiva consolidada na literatura psiquiátrica e
psicológica sobre o tema nessa época. Mais especificamente, ela se dava a partir da concepção
de que a dissociação existe em uma espécie de continuum, que vai de formas mais brandas até
mais intensas. Na metade dos anos 1980 podíamos ler em um dos principais artigos sobre o
tema da múltipla personalidade a seguinte afirmação:
A maioria das autoridades em dissociação a identificam como ocorrendo em formas
menores e maiores ou patológicas. Essas diferentes formas são geralmente
conceitualizadas como situadas ao longo de um continuum, desde as dissociações
menores da vida cotidiana até as principais formas de psicopatologia, como o
transtorno de múltipla personalidade. (Bernstein; Putnam, 1986, p.728, tradução
minha)
68
Tal interpretação da dissociação se tornou tão difundida que muitas vezes sua
enunciação passou a ocorrer sem qualquer referência a estudos ou trabalhos que a
comprovasse, se tornando aquilo que Latour (2011, p.32) chama de uma modalidade positiva,
isto é, um enunciado que vale por si mesmo como um fato, se afastando dos detalhes das
condições de sua produção. Em grande medida, a difusão e consolidação dessa interpretação
“normalizadora” da dissociação se deve a esse mesmo texto de Eve Bernstein e Frank
Putnam, já que foi ele que instituiu a primeira escala de avaliação de experiências
dissociativas – a Escala de Experiências Dissociativas –, que viria a ser amplamente utilizada
como um instrumento de pesquisa após sua publicação. Essa escala se constitui a partir de um
questionário de 28 perguntas em que o sujeito entrevistado deve responder, de 0% a 100%, o
quanto ele vivenciara determinadas experiências. Dentre as questões, há tanto perguntas sobre
fenômenos corriqueiros e normais – como sonhar acordado, falar sozinho, ou se sentir
absorvido ao assistir a um filme –, quanto sobre experiências mais incomuns ou intensas –
sobre a sensação de despossessão corporal, de sentir que coisas e pessoas ao redor não são
reais, ou de não se reconhecer no espelho. Para os autores e seu questionário, todas essas
experiências mais ou menos díspares teriam como semelhança o fato de serem “dissociações”
psicológicas.
Como argumenta Hacking (2000, p.119), a escala construída por esses autores opera
em um movimento argumentativo tautológico, uma vez que Bernstein e Putnam partiram da
existência do continuum como uma hipótese a ser “testada”, sem, no entanto, construírem um
instrumento que permitisse testar de fato essa hipótese. Isso porque a escala constrange os
resultados do questionário a se distribuírem na forma de um continuum que vai da menor
pontuação dissociativa para a maior. Boa parte das questões incluídas se referiam a
fenômenos relativamente normais, como a “absorção”, o que impede que alguém consiga uma
pontuação zerada como resultado. Dessa forma, ao aplicar esse questionário tanto em
populações “normais” quanto em aquelas diagnosticadas com algum tipo de transtorno
mental, todos aqueles que responderam ao questionário se viram contidos em seu resultado.
Essa autorreferencialidade é explícita quando em outro momento Putnam (1989, p.415)
argumenta que os resultados do uso dessa escala são evidências que apoiam o conceito do
continuum dissociativo. Ecoando os trabalhos de Latour, Hacking afirma:
Dessa forma os questionários objetivam e legitimam a múltipla personalidade – o
terapeuta é levado a sentir que está usando um instrumento científico. Um
antropólogo observando as práticas de programar e testar os questionários poderá
sugerir que a sua função básica não é prover um instrumento de trabalho para os
69
A contribuição de Ludwig para esse debate diz respeito ao seu papel central na
consolidação dos estudos sobre estados alterados de consciência. De fato, foi em um artigo
publicado originalmente em 1966 – e republicado em 1969 no importante compêndio
organizado pelo psicólogo e parapsicólogo Charles Tart em torno do tema – que Ludwig
estabeleceu o que é considerada a primeira definição sobre o termo. Para ele, os estados
alterados de consciência (EAC) são:
qualquer estado mental, induzido por quaisquer manobras ou agentes fisiológicos,
psicológicos ou farmacológicos, que pode ser reconhecido subjetivamente pelo
próprio indivíduo (ou por um observador objetivo do indivíduo) como representando
um desvio suficiente na experiência subjetiva ou funcionamento psicológico de
certas normas gerais para aquele indivíduo durante a consciência alerta, desperta.
(Ludwig, 1969, p.11, tradução minha)
Embora suas referências à “dissociação” ao longo de seu texto se deem quase sempre
em um sentido psicopatológico (associado a uma condição histérica, por exemplo), van der
Hart e Dorahy (2009, p.16) argumentam que sua definição dos EAC’s é comparável ao
entendimento contemporâneo sobre o continuum dissociativo. A própria dissociação parece
ser entendida como constituindo um “tipo” de EAC, passando a se associar mais diretamente
a toda uma outra gama de fenômenos, como os estados de “transe”, entendidos em seu sentido
mais abrangente, apresentados na lista oferecida por Ludwig (1969, pp.13-14). Em certo
sentido, os dois termos se tonaram sinônimos em seu uso na literatura. Para Ludwig, esses
70
20 Vale ressaltar que nos anos 1980 Ludwig (1983) defenderia explicitamente que a experiência dissociativa
poderia ou não ser patológica, embora ele não tenha se manifestado a respeito da ideia do continuum.
71
21 Duas de suas três referências para “comprovar” esse enunciado são o texto de Bernstein e Putnam (1986),
em que propunham originalmente a Escala de Experiências Dissociativas, e o artigo de Ludwig (1983) dos
anos 1980, em que o autor não faz referência à ideia do continuum.
72
psicológico, uma capacidade comum (embora desigual) aos humanos, que é utilizada (ou
negada) de formas distintas pela cultura local e por suas instituições: a dissociação. Dessa
forma, outros elementos precisam ser adicionados para que uma experiência dissociativa
possa ser considerada normal pelos atores da psicologia e da psiquiatria, e parte da atenção se
volta para essas práticas em contextos religiosos ou “culturalmente sancionados”, como no
caso do vodu haitiano que Cardeña pesquisara.
Outros critérios precisaram entrar em ação para que se os atores do campo psi
pudessem avaliar a possível existência de uma condição mórbida do fenômeno. Isso fica
evidente no próprio diagnóstico de “transtorno de transe dissociativo”, o qual indica que a
experiência deve causar sofrimento ou incapacitar a pessoa que a vivencia, estando também
fora do controle da pessoa, para que o diagnóstico seja aplicável. No entanto, como salientam
Moreira-Almeida e Cardeña (2011) – e como enfatizou Boddy (1992, p.324) em seu
comentário sobre a proposta da categoria diagnóstica –, esses critérios não poderiam ser
74
aplicados de forma automática, dado que experiências de desconforto e sofrimento podem ser
corriqueiras em estados possessivos considerados normais pela religião, cultura local ou até
por uma psiquiatria ou psicologia sensível a essas questões. Mesmo que os autores
argumentem pelo mesmo problema quando escrevem a respeito do critério cultural (de que o
fenômeno seja aceito pela “cultura” local), me parece que é esse critério que assume uma
posição central nas análises desenvolvidas pelos atores.
Se a dissociação, os estados alterados de consciência ou os transes podem ser
encarados tanto como “normais” quanto como patológicos, a noção de uma variação do
fenômeno a depender do contexto cultural no qual ele ocorre é a parte fundamental da
operação analítica dos psicólogos e psiquiatras interessados nesse tema. Nesse caso, duas
referências da literatura antropológica dos anos 1960 e 1970 sobre possessões espirituais e
transes religiosos são constantemente mobilizadas: a pesquisa de proporções mundiais de
Erika Bourguignon (1973a), para evidenciar a normalidade desses fenômenos ao redor do
globo, e a obra comparativa de Ioan Lewis (1977), para operacionalizar um critério que
permita distinguir casos “culturalmente normais” daqueles considerados patológicos.
As obras escritas por Bourguignon e Lewis, interessadas pelos estados alterados de
consciência e, especificamente, pelas experiências de possessão espiritual e transe religioso,
são produtos de um mesmo momento histórico. Não que a antropologia já há muito não se
interessasse por esses temas. No entanto, a diferença de apenas dois anos da publicação
original dessas obras, no início dos anos 1970, não parece ser mero acaso. De fato, são os
próprios autores que apontam para o momento histórico do qual emergiram, enfatizando como
a investigação de estados místicos e de transe em culturas e sociedades tradicionais estava
inevitavelmente conectada à então nascente busca pelo experienciamento desses estados nos
próprios centros urbanos dos países industrializados do Ocidente moderno, algo que abordarei
no terceiro capítulo. Com a chamada contracultura, o tema ganhava uma relevância nova,
digna de algo maior do que a acusação de ser mera curiosidade antropológica, e os diálogos
passavam a ser feitos também entre psicólogos e psiquiatras que passavam a pesquisar o
assunto, como na obra mencionada pouco acima.
Desse modo, veremos nessa seção como não apenas algumas obras de antropólogos
são mobilizadas por parte dos saberes psi para a produção de conhecimento e de categorias
diagnósticas, mas como também essas mesmas produções antropológicas partem de
pressupostos epistêmicos oriundos da própria psicologia e psiquiatria. Trata-se efetivamente
75
É interessante notar aqui a escolha dos termos usados por Bourguignon. De fato, a
presença de “transe”, “dissociação” e “estados alterados de consciência” segue a mesma
tendência da literatura analisada, na qual esses termos operam praticamente como sinônimos
de descrição de um mesmo nível de análise. Em determinado momento na introdução da obra
(Bourguignon, 1973c, p.5), a autora afirma que usará a categoria de “estados alterados de
consciência” - que é a escolhida para compôr o título do livro – por ser mais abrangente que
as outras e por não precisar se comprometer com nenhuma teoria explicativa dos fenômenos.
No entanto, em um texto posterior, Bourguignon recorrerá à definição dada pela psiquiatra
Margaret Field (1960, p.19 apud Bourguignon, 1978, p.486, tradução minha) para o termo
76
“dissociação”, segundo a qual seria “um mecanismo mental através do qual uma parte
separada da personalidade toma posse temporariamente do campo total da consciência e do
comportamento”, algo que não seria necessariamente patológico para a psiquiatra. A
antropóloga não apenas demonstra conhecimento do debate psiquiátrico em torno do tema –
chegando a apresentar as proposições de Ludwig sobre as características psicofisiológicas dos
estados alterados de consciência –, como se apropria dele e de seus termos em sua própria
construção teórica.
A questão central envolvida na escolha dos termos diz respeito ao interesse da autora
pela dobra entre o que seriam os estados “psicobiológicos” e os usos feitos por parte da
cultura desses estados, limitando o escopo de análise apenas aos fenômenos que são práticas
institucionalizadas – e não marginalizadas – nas diversas sociedades investigadas. Nesse
sentido, Bourguignon argumenta pelo uso desses termos porque eles seriam mais “neutros” do
que aqueles envolvidos nas interpretações culturais locais, que se dividiriam entre os estados
interpretados como ocorrendo por uma possessão espiritual (chamado por ela de transe
possessivo) e aqueles que não envolveriam uma possessão (apenas transe).
É dessa forma que a autora consegue colocar em prática uma investigação quantitativa
de escala global, a partir de dados inicialmente contidos no Ethnographic Atlas, organizado
pelo antropólogo George Murdock. De fato, das 488 sociedades contidas em sua amostra –
sendo em sua maior parte sociedades “tradicionais” –, 437 (90%) delas foram identificadas
como possuindo alguma forma culturalmente padronizada e institucionalizada de estados
alterados de consciência. Essa abrangência do fenômeno permite à Bourguignon (1973c, p.11,
tradução minha) afirmar que “[f]ica claro que estamos lidando com uma capacidade
psicobiológica disponível a todas as sociedades e que, de fato, a vasta maioria das sociedades
a utilizou em seus próprios modos particulares, e o fizeram primariamente em um contexto
sagrado.” Além disso, graças às suas categorias de ordem cultural, ela pode reconhecer outras
variações internas em sua amostra total, entre as quais a existência da crença na possessão
espiritual em ao menos 360 (74%) delas, e em 251 (52%) a existência do fenômeno do transe
de possessão.23
Embora seu trabalho aponte para as conexões existentes entre a religião, os estados
alterados de consciência e os processos de transformações sociais implicados na presença
desses fenômenos, o elemento que fica de sua impressionante investigação para a literatura
23 Bourguignon (1973c, pp.15-17) enfatiza que a crença na possessão não necessariamente é acompanhada
pelo “transe”, isto é, pelo estado alterado de consciência.
77
sobre o tema são os dados quantitativos. Afinal, como ressalta a autora, os fenômenos
incluídos na pesquisa eram aqueles institucionalizados e encorajados pelos grupos em
questão, sendo portanto encarados como “culturalmente normais”. Não é exagero afirmar que
a maior parte dos trabalhos sobre “dissociação” e fenômenos de possessão ou transe religioso
faz referência à alta porcentagem apresentada pela autora da presença desses fenômenos em
culturas ao redor do mundo.24 Como resume o psicólogo Adair de Menezes Júnior (2012,
p.41) ao citar os dados estatísticos oferecidos por Bourguignon em sua tese de doutoramento
sobre experiências mediúnicas e transtornos mentais: “[a] universalidade das experiências de
transe e de transe de possessão deve trazer o cuidado de não ser considerado patológicas
experiências que em outras culturas são consideradas normais.”
O ponto é que sua abordagem parte de considerações provenientes da psiquiatria e da
psicologia de sua época – o que talvez explique o financiamento oriundo de uma instituição
nacional de saúde mental –, compartilhando assim um referencial teórico com as produções
atuais. Parece que o que é tão atrativo de seu conjunto conceitual é a possibilidade de se
pensar a relação entre uma suposta capacidade universal da espécie humana e as formas
culturalmente variáveis e relativas de sua manifestação. Nas palavras da própria antropóloga,
essa dobra entre o estado psicológico e a manifestação cultural existente nas possessões
espirituais e nos transes religiosos é “o testemunho de ambas a unidade e a diversidade da
natureza humana” (Bourguignon, 1978, p.508, tradução minha). Tal forma de conceber a
questão abre espaço para que um exercício comparativo possa ser realizado, em que o que é
comparável é a experiência da dissociação como uma possessão espiritual ou um transe
religioso considerados normais em culturas “tradicionais”, e uma experiência semelhante em
culturas “modernas”. Como afirma Talal Asad (1994, p.78, ênfases do autor), “a estatística
converte a questão de culturas incomensuráveis em uma de arranjos sociais comensuráveis,
sem torná-los homogêneos”: a capacidade psicológica da dissociação se torna um elemento
comparável devido à universalidade psíquica da humanidade, tornada variável nas diferentes
manifestações da utilização dessa capacidade por parte da cultura.
24 Enquanto os trabalhos dos psiquiatras mobilizam principalmente esse aspecto, estando interessados nas
possíveis conexões ou desconexões entre transtornos mentais e a prática possessiva/de transe (e.g. Moreira-
Almeida, 2004; Menezes Júnior, 2012), são os psicólogos sociais (e.g. Maraldi, 2011; 2014; Zangari, 2003)
e antropólogos (e.g. Luhrmann, 2004; 2005) que também retomam mais fundamentalmente as premissas
culturalistas (e antropológicas) de sua análise. Aqui me refiro ao argumento de que o fenômeno do transe ou
do transe de possessão não é redutível ao estado psicológico (ou “psicobiológicos”, nas palavras da autora).
Bourguignon (1973c, p.14, tradução minha) parte do pressuposto de que o transe “é sujeito a uma
quantidade maior ou menos – mas sempre significativa – de aprendizado.”
78
25 O artigo de Bourguignon (1989) ao qual Zangari faz menção se trata de uma comparação entre o caso de
uma paciente estadunidense que manifestara uma personalidade alternativa e fora diagnosticada por seu
psicólogo como possuindo um “desenvolvimento defeituoso do ego”, e o caso de um homem brasileiro
praticante da umbanda, que atuava como cavalo de alguns espíritos. O texto inteiro é costurado por
aproximações e distanciamentos culturais e de estatutos ontológicos entre esses dois fenômenos,
questionando a proposição feita por George Devereux, para quem as fantasias e impulsos das pessoas seriam
universais, exemplos da “unidade psíquica da humanidade”. Em seu lugar, Bourguignon parece estar apta a
reconhecer a universalidade do mecanismo psicológico da dissociação, mas não de seus conteúdos e usos
culturais, afirmando na última frase de seu texto que “[p]ara os dois casos discutidos aqui, há apenas
analogia, não identidade substancial de fenômenos” (Bourguignon, 1989, p.383, tradução minha).
79
Parte de seu argumento se baseia na distinção sociológica feita por ele entre cultos de
possessão central e de possessão periférica. Enquanto os primeiros diriam respeito à atuação
de espíritos que apresentam uma ênfase de manutenção da ordem moral e institucional, se
manifestando especialmente entre homens que ocupam posições de poder na estrutura social
local e sendo encarados de forma positiva pela comunidade, os segundos seriam
eminentemente amorais, possuindo pessoas de posição social desprivilegiada, em especial as
mulheres. Nesse segundo caso, eles seriam entendidas como uma espécie de enfermidade ou
aflição ao sujeito possuído, enquanto que em termos sociológicos esses cultos seriam
“movimentos de protesto tenuemente disfarçados” por parte dos grupos oprimidos, colocando
em risco a ordem social estabelecida (Lewis, 1977, p.31).
Ao associar os cultos periféricos a uma prática de grupos sociais desprivilegiados,
Lewis (1977, pp.242-243) reconhece que “as sessões regulares de cultos de possessão
periféricas são evidentemente psicodrama dançados; ‘laboratórios’ em que algum grau de
compensação psíquica às injúrias e vicissitudes da vida diária é obtido”. No entanto, ele
enfatiza que se tratam antes de uma forma de “alívio” psicológico para problemas mundanos e
sociais típicos de “pessoas comuns ‘normalmente’ neuróticas”, e não de perturbações mentais
graves – alívio terapêutico esse que também seria encontrado nas possessões centrais. Apesar
de seu cuidado no debate com a literatura psiquiátrica, sua associação das possessões
periféricas às enfermidades e como uma forma de expressão de frustrações fez com que
Boddy (1994, p.410) e Thomas Csordas (1987, p.2) argumentassem que sua divisão entre
cultos centrais e periféricos contribuíra para um processo de medicalização do tema da
possessão na antropologia norte-americana.
A despeito de Lewis (2003, p.xiii-xiv) questionar essa leitura em um prefácio a uma
reedição de sua obra – argumentando que a diferenciação entre os cultos centrais e periféricos
não se baseia em seu âmbito terapêutico ou médico, mas sim na relação moral envolvida entre
os espíritos em questão e a ordem pública –, é inegável que sua distinção foi operada
posteriormente em um sentido medicalizante, como no encontrado no texto de Cardeña. A
questão é que essa operação se deu a partir da mediação do trabalho de Ward (1980), em um
artigo que retoma a contribuição do antropólogo e a aplica explicitamente para um debate
psicopatológico, consolidando essa interpretação em parte da literatura psiquiátrica e
psicológica. Ao argumentar que ambas as formas de culto de possessão se tratam de reações
ao estresse social ou psicológico, Ward (1980, pp.159-160) enfatiza que enquanto as
80
comunicar com os espíritos e que possuem sua habilidade reconhecida pelos seus pares no
grupo não deixam de serem diagnosticados pelos psiquiatras como possivelmente
apresentando algum tipo de transtorno mental. Nesse caso, a associação normalmente feita
pelos pesquisadores é a de que médiuns mais experientes possuem um controle maior sobre
sua habilidade dissociativa e, consequentemente, possuem menores taxas de perturbações
mentais. Nesse caso, o argumento é que a religião poderia operar como uma espécie de “fator
protetivo” contra as psicopatologias, ao cultivar em seus praticantes o controle sobre uma
capacidade que emergira de foram abrupta e sem a vontade deles, ao mesmo tempo em que o
sujeito poderia aprender a “dissociar” e entrar no estado mediúnico, ganhando controle com o
tempo sobre sua experiência (Krippner, 1999).
A possibilidade de enunciação da “normalidade” psicológica/psiquiátrica de uma
experiência possessiva e/ou de transe religioso envolve como pressupostos do pensamento
duas operações que se entrecruzam no sujeito da experiência. Por um lado, esses autores
instituem uma relação de identidade entre uma gama variada de fenômenos que incluem tanto
experiências patológicas quanto saudáveis. Por outro, eles estabelecem um critério que possa,
em grande medida, apreender a variabilidade da presença ou não do aspecto mórbido, isto é,
localizar a diferença na igualdade do fenômeno. Na primeira operação, termos como
“dissociação”, “estados alterados de consciência” e “transe” são utilizados de modo a se poder
relacionar fenômenos variados que vão desde o “sonhar acordado” até a experiência de
possessão por alguma entidade espiritual em uma prática ritual. Já na segunda, de modo
análogo ao visto no primeiro capítulo, é especialmente a “cultura” que emerge como a
unidade de análise que permite “contextualizar” os fenômenos analisados e avaliá-los com
base na norma de seus valores, crenças, significações, para se poder reconhecer e identificar a
variabilidade mórbida. Ambas as operações ganham sua concretude em sua decantação no
sujeito da experiência, no modo como o fenômeno em particular é experienciado pela pessoa.
Aqui, um terceiro conjunto de termos emerge para que se auxilie esses atores no processo de
distinção de experiências culturalmente normais das patológicas: trata-se do “controle” e
“vontade” do sujeito sobre o que é considerada como o experienciamento de uma capacidade
humana.
82
Os usos do diagnóstico
A ambivalência no estabelecimento de uma categoria diagnóstica é notável. Se por um
lado a presença de um critério de ordem cultural constitui para esses atores um passo
importante para uma psiquiatria mais sensível às particularidades locais de fenômenos que
eram rapidamente enquadrados como decorrentes da existência de algum transtorno mental,
por outro ela continua a operar como um diagnóstico. Nesse sentido, o que “transtorno de
transe dissociativo” e a literatura a ele associado faz é repartir o território das experiências,
possibilitando um espaço possível da existência de fenômenos muitas vezes ligados a
religiões não-cristãs (embora parte dessas também) e a práticas espirituais entendidas de
forma mais abrangente possível. No entanto, em todo ato de partilha há o estabelecimento de
ao menos duas partes, e a contraparte a uma experiência “culturalmente normal”, sem
sofrimentos ao praticante e mais ou menos sob seu controle e vontade, continua
inevitavelmente a ser a existência de um transtorno mental de tipo dissociativo.
Essa questão é particularmente evidente no artigo de Lewis-Fernández (1992) para o
dossiê sobre a proposta da categoria. Embora o autor destaque a existência do critério cultural
para a formulação do diagnóstico e reconheça que provavelmente a maioria dos estados de
transe e transe possessivo ao redor do mundo sejam fenômenos normais – e que um dos riscos
da criação dessa categoria envolva a patologização dessas experiências –, sua preocupação
central se dá precisamente com as formas mórbidas de transe dissociativo que ocorrem
especialmente em outras partes do mundo. Logo na frase de abertura de seu texto, o psiquiatra
enfatiza a necessidade da criação da categoria devido ao fato de “[c]ulturas ‘não-ocidentais’ –
que compõem 80% do mundo e um terço da população dos Estados Unidos – exibem
síndromes dissociativas culturalmente padronizadas (…) que são fenomenologicamente
distintas dos transtornos dissociativos descrito no DSM-III-R” (Lewis-Fernández, 1992,
p.301, tradução minha). Como indiquei rapidamente no capítulo anterior, seu argumento é
que a insensibilidade cultural do DSM não deriva apenas do processo de patologização de
experiências culturalmente normais, mas também do fato do manual não levar em conta
muitos fenômenos mórbidos que ocorreriam nas “culturas não-ocidentais”, como o próprio
autor enfatiza. Nesses termos, uma psiquiatria culturalmente sensível envolveria não apenas
uma possível “despatologização” de certas experiências não-ocidentais, mas também uma
nova atenção a fenômenos psicopatológicos antes ignorados ou deturpados por uma certa
cegueira cultural.
83
Escrevendo sobre esse mesmo artigo e sobre a situação presenciada por ela também no
Nepal, envolvendo psiquiatras, psicólogos e habitantes de vilarejos acometidos por possessões
espirituais coletivas, a antropóloga Aidan Seale-Feldman (2019, p.311) aponta para o conflito
conceitual existente entre as concepções locais e as operadas pelos agentes de saúde mental.
Parece evidente que exista aqui um certo encobrimento da compreensão das formas
conceituais locais, efeito da projeção de categorias psiquiátricas e mesmo antropológicas.
Trata-se de algo que, embora seja mais evidente na utilização de categorias diagnósticas
originadas no sistema classificatório da psiquiatria – por força da natureza coercitiva do
diagnóstico, enfatizada por Charles Rosenberg (2002) –, também é produzido a partir de certa
análise antropológica, quando o discurso nativo se torna mero reflexo de algum outro nível da
realidade que não apenas é exterior a ele, como também supostamente mais profundo e
esclarecedor (Goldman, 1985, p.28).27
Desse modo, vemos como todo o processo de criação da categoria diagnóstica de
“transtorno de transe dissociativo”, assim como os debates dos quais ela é tanto a
sedimentação como sua nova articuladora, possuem duas facetas. De um lado, a categoria
continua operando propriamente como um diagnóstico, e as produções psiquiátricas e
psicológicas não abandonam seu marco epistêmico medicalizante e patologizante. Por outro
lado, temos uma série de investigações e trabalhos levados a cabo por psiquiatras e psicólogos
no Brasil e fora dele que partem dos pressupostos epistêmicos descritos nas páginas anteriores
para analisarem as experiências de possessão espiritual e de transes religiosos/espirituais sem
partirem de um a priori patologizante, mas tomando-os especialmente como fenômenos
psicologizados.28
No caso dessa “abertura” a uma compreensão não psicopatológica que a literatura em
torno categoria diagnóstica oferece, chama a atenção como alguns autores da antropologia são
mobilizados nesse processo. Mais do que isso, ao analisarmos as obras que atuam como
referenciais, vemos como esses próprios antropólogos partem de concepções da psicologia na
compreensão dos fenômenos de transe religioso e possessão espiritual. Se é verdade que a
própria formação da antropologia estadunidense possui uma história íntima de diálogo e
rearticulação de proposições teóricas e questões vindas do campo da psicologia, como
apontou George Stocking Jr. (1976; 1986) e como a longevidade da subárea da chamada
“antropologia psicológica” atesta (Duarte, 2017), o caso de Erika Bourguignon e de sua
relação estreita de contribuição e “empréstimo” epistêmico segue uma tendência local. Já no
que diz respeito a Ioan Lewis, que vem da tradição antropológica do Reino Unido, seu uso
semelhante de definições psicológicas como ponto de partida para sua análise ressalta a
penetração desse tipo de compreensão em outras áreas do saber.
27 É isso que nos mostra Seale-Feldman (2019, p.308, tradução minha) ao indicar como as análises das
antropólogas Janice Boddy e Aihwa Ong estipulam que as possessões espirituais entre mulheres operam
como “uma forma de resistência ao poder que ‘fala’ através do corpo”. Há aqui uma estranha afinidade entre
o discurso antropológico e o psiquiátrico/psicológico, tanto no deslocamento do discurso nativo, quanto na
conceitualização da possessão como uma forma de resposta a algo de um outro nível da realidade.
28 A esse respeito, o artigo de Moreira-Almeida e Cardeña (2011) apresenta uma ampla literatura sobre o tema,
além de se basearem tanto na ideia da dissociação não-patológica quanto na variabilidade e ampla presença
cultural. Para uma apresentação das pesquisas “psi” históricas e atuais sobre mediunidade, ver o texto de
Zangari e Maraldi (2009).
87
íntima com Deus, através do ouvir de vozes ou da visão de imagens. Interessada em como a
experiência semelhante ao transe é aprendida pelos fiéis, a autora parte de considerações da
ordem de um mecanismo psicológico em seu entrelaçamento com as formas culturais que a
religião cultiva.
Como no caso analisado por Giumbelli (1997a; 1997b) sobre o espiritismo e sua
apreensão pela psiquiatria no início do século XX no Brasil, há aqui uma fenomenização da
experiência possessiva ou de transe, tomando-a como um fenômeno psicológico normal e apto
à compreensão das disciplinas da mente. A possessão e o transe são decompostos em níveis
distintos, entre o psicológico e o cultural. No processo de sua psicologização, os fenômenos
são esvaziados da cosmologia local e das interpretações “religiosas”, se transformando em um
mecanismo psíquico universal, que diz respeito de alguma forma à experiência vivenciada por
artistas, esportistas, e praticantes que utilizam técnicas de produção da dissociação psicológica
como um modo de acesso ao sagrado.
É nesse sentido que podemos dizer que a religião é deslocada nesse debate ao mesmo
tempo em que ganha uma centralidade importante. Isso porque embora ela se torne uma
dentre outras instituições culturais que podem se utilizar de uma capacidade que é universal à
humanidade, ainda assim é nas instituições que o critério fundamental de normalidade será
procurado. Passa-se a se falar de habilidades variáveis a cada indivíduo, mas que podem ser
cultivadas ou reprimidas por instituições locais. No caso de seu cultivo e de sua manifestação
em um setting ritual, “adequado” às expectativas locais e sem o envolvimento de “más
consequências” ao sujeito, haveria o pleno reconhecimento de um fenômeno “normal”. Dessa
forma, como atesta Duarte (2005) a respeito da obra de William James, o enfoque da análise
ocorre precisamente na experiência do sujeito e em sua relação íntima com a cultura ou a
religião a qual pertence. É precisamente em seu entrecruzamento no indivíduo psicologizado
que os saberes psi conseguem articular a análise de ambos os níveis psíquico e cultural, ainda
que haja o privilégio ao nível psíquico do indivíduo.
***
Neste capítulo, busquei retraçar os modos operativos do estilo de pensamento dos
saberes psi em torno da “dissociação” e de sua relação com práticas e fenômenos religiosos
e/ou espirituais. Partindo da categoria diagnóstica “transtorno de transe dissociativo”, incluída
na quarta edição do principal manual de diagnósticos psiquiátricos dos Estados Unidos,
89
argumentei que essa categoria e o debate do qual ela resulta instituem uma abertura conceitual
à possibilidade de uma compreensão não-patológica por parte da psicologia e da psiquiatria
dos fenômenos da possessão espiritual e do transe religioso. Se desde a emergência do uso do
termo “dissociação”, com Pierre Janet no final do século XIX, ele já era aplicado na descrição
e explicação de possíveis fenômenos de possessão por alguma entidade, ao longo do século
XX a dissociação psicológica deixou de indicar um processo eminentemente patológico na
literatura psi, como era no caso de Janet, e passou a se referir a processos mentais
considerados “normais”. Tal transformação se deu tanto por um movimento interno ao debate
psi – referente aos deslocamentos na concepção de dissociação –, quanto a um movimento
mais amplo, relacionado à emergência do interesse “leigo” e profissional nos chamados
estados alterados de consciência nos anos 1960.
Junto desse novo interesse pelo tema dos estados alterados de consciência, a
antropologia ocupou uma posição central nessa mudança. As obras mobilizadas pelos autores
e atores dos saberes psi engajados nessa compreensão não necessariamente patológica sobre
as possessões e os estados de transe não são apenas um produto desse mesmo momento
histórico, como também tomam a compreensão psicologizada do fenômeno como um dado de
partida. Nesse ponto, me parece que a antropologia contribuiu junto dos estudos sobre os
estados alterados de consciência na transformação da compreensão sobre a dissociação em um
tipo de habilidade que poderia ser treinada por indivíduos a partir da orientação das
instituições cultuais locais, algo que ao menos desde os anos 1930 já era consenso na
disciplina a partir das populares obras de Ruth Benedict que abordam as experiências de
“transe”.
Influenciados pela afirmação antropológica da normalidade dos casos de possessão e
transe na maior parte das sociedades ao redor do mundo, os psicólogos e psiquiatras
dedicados ao tema afirmam ser necessário operar um rudimentar ofício etnográfico. Nesse
caso, se trataria de recorrer à antropologia e aos “experts culturais” locais para se apurar se o
fenômeno em questão se encontra em concordância com as práticas e crenças autorizadas pela
cultura local e pelo contexto ritual. No entanto, apesar de central, o critério cultural não é
suficiente por si mesmo para os psicólogos e psiquiatras. Para que a hipótese da existência de
um transtorno mental seja rechaçada – embora mantendo-se como uma eterna possibilidade
para esses atores –, é preciso ainda que o sujeito e sua relação particular com a experiência
seja incluído na análise. É a partir dessa necessidade que Cardeña e outros autores mobilizam
90
experiência em prol do indivíduo autonomizado, aqui elas ainda ocupam uma posição
fundamental. O sujeito não pode estabelecer formas de experienciamento que não sejam
reconhecidas por seus pares, ao menos não sem serem qualificadas a partir da anormalidade.
Para que ela possa ser considerada saudável por esses atores, essa “invasão” ou “perda da
consciência” precisa se dar por formas ritualmente homologadas, que permitam ao sujeito
retomar a si mesmo quando assim queira. Surpreendentemente, trata-se de uma concepção
quase idêntica àquela proposta por Roger Bastide em sua divisão entre o transe cultivado e o
espontâneo como uma forma de resposta ao argumento patologizante desses fenômenos.
Como coloca Duarte (2005, p.180) a respeito dessa divisão, o transe ritualmente organizado
estaria intimamente relacionado no esquema de Bastide aos transes dos místicos cristãos, “em
que a inconsciência convive com a responsabilidade – e por oposição ao transe do que então
considerava como os ‘primitivos’ (ou o ‘primitivo’)”, verdadeiro território do patológico.
Diferentemente dessa ambivalência que se situa entre a patologização e a possibilidade
de uma normalidade desses fenômenos, veremos no próximo capítulo uma outra forma de
concepção da questão de experiências ligadas à religião ou à espiritualidade. A partir da
categoria “problema religioso ou espiritual”, me debruçarei sobre o debate da psicologia
transpessoal, um ramo da disciplina que possui afinidades históricas e epistêmicas com o
chamado movimento Nova Era. Veremos em operação uma forma de psicologização da
religião e da espiritualidade distinta da apresentada neste capítulo, embora com conexões
quanto à ênfase de atores dos anos 1960 nas técnicas de produção de estados alterados de
consciência como um modo de acesso ao sagrado.
92
humana, nomeada como “hierarquia das necessidades”. Essa ideia da hierarquia se materializa
na figura de uma pirâmide segmentada em níveis de necessidade que vão do mais elementar e
primordial, localizada na base, até formas mais complexas, em seu topo. Parte-se das
necessidades fisiológicas como a fome, a qual é absolutamente necessária de ser satisfeita
para que a pessoa possa sobreviver, para os níveis da segurança, do afeto e amor, da estima, e,
no cume da pirâmide, da autoatualização, na qual a pessoa teria atingido todo o seu potencial
inscrito em sua natureza, alcançando um estado de saúde e bem-estar psicológico e podendo
experienciar aquilo que ele chamou de experiência culminante (peak-experience): um estado
de êxtase e de felicidade absoluta, igual à experiência mística.
Em lugar das perspectivas da primeira (behaviorismo) e da segunda força (psicanálise)
que encaravam a pessoa como um doente em potencial e que esvaziavam e/ou colocavam sob
suspeita as motivações e os desejos humanos, a psicologia humanista (Maslow, s/d, pp.27-30)
se centraria no ser humano em todas as suas potencialidades de desenvolvimento e
transformação, partindo do pressuposto de que a natureza humana não seria má, mas sim boa
ou ao menos neutra. Um dos objetivos dessa “psicologia da saúde”, centrada na totalidade do
humano, seria encontrar possibilidades de aperfeiçoamento de nossas vidas a partir da
descoberta do núcleo interno único a cada indivíduo, auxiliando-o a ser bom, feliz, e a
aprimorar/aperfeiçoar seu ser. Como Maslow (s/d, p.17) enfatiza, não se trata da recusa das
duas primeiras forças, mas sim de sua integração em uma “verdade total”, que abarcaria tanto
a ênfase científica empírica dos behavioristas, quanto a dimensão do inconsciente presente da
psicologia dinâmica dos freudianos, em uma proposição holista.
Se na primeira metade dos anos 1960 a psicologia humanista liderada por Maslow
ganhava ares institucionais a partir da criação do Journal of Humanistic Psychology em 1961
e da Associação Americana de Psicologia Humanista em 1963, foi também nesse momento de
aproximação da subárea ao mainstream acadêmico que as proposições do psicólogo e de seus
colegas passaram a se difundir de modo mais abrangente para além dos círculos
universitários, acompanhando as transformações as quais a sociedade estadunidense
começava a vivenciar. O chamado Movimento do Potencial Humano – do qual a obra de
Maslow sobre a autoatualização das potencialidades individuais formava parte considerável
de sua sustentação (Stone, 1976) – ganhava cada vez mais adeptos e novos centros de
crescimento pessoal emergiam com vigor especialmente no oeste estadunidense. Como
remontam Kay Alexander (1992) e Leila Amaral (2000), um ambiente se formava no estado
96
da Califórnia ainda nesse período, impulsionado por condições históricas díspares que iam
desde a presença de líderes espirituais de tradições “orientais” até a reunião em San Francisco
de pessoas ligadas à geração beat, que aderiam a uma visão alternativa sobre a sociedade. Foi
nesse estado de coisas que, com a ajuda de intelectuais de renome como Aldous Huxley e
Gregory Bateson, dois ex-alunos de psicologia da Universidade de Stanford, Michael Murphy
e Richard “Dick” Price, fundaram o Esalen Institute na região do Big Sur, na Califórnia, em
1962 – instituição que viria a se tornar o mais famoso centro ligado ao Movimento do
Potencial Humano.
Maslow não conhecia Murphy ou Price e sequer sabia da existência do instituto
quando, por acaso, o visitou pela primeira vez, “em um daqueles eventos que tornaram mais
fácil acreditar que algum poder superior tinha um interesse pessoal” no empreendimento
(Anderson, 1983, p.67, tradução minha). De acordo com Walter Truett Anderson (1983) em
um relato que se tornou canônico na história do instituto, Maslow estava de férias, viajando
com sua esposa pelas estradas da Califórnia no verão de 1962, quando decidiu parar o carro
justo em Esalen, em busca de um local para passarem a noite. Price logo se apresentou ao
psicólogo e contou dos planos que ele e Murphy tinham a respeito do local. Maslow se
interessou pelo que tinha ouvido, mantendo contato por correspondências com os dois
fundadores e posteriormente ministrando uma aula em 1966 sobre o tema das pessoas
autoatualizadas.
O local passara a atrair uma série de pessoas que estavam engajadas com novas formas
de conceber não apenas o humano e sua consciência, mas também sua relação com o mundo.
Além disso, ecoando o chamado de Maslow para uma dimensão de transformação prática, o
que era antes um espaço limitado apenas a residentes tornara-se rapidamente uma instituição
que oferecia workshops e cursos abertos ao público em geral. Ali se ofertavam ativamente não
apenas sessões das mais diversas práticas terapêuticas que davam ao corpo uma conexão
privilegiada com a mente – como a então recém-criada terapia Gestalt, com Fritz Perls e sua
visão holista e centrada no aqui e agora (Carozzi, 1999a, p.22) –, mas também cursos com
temas de interesse que entrecruzavam as práticas e tradições filosóficas e espirituais asiáticas
com a prática emergente do consumo de psicodélicos. Enquanto esse clima de “abertura ao
Oriente” é, por exemplo, expresso pelo primeiro seminário realizado em Esalen em janeiro de
1962 – ministrado por Alan Watts, teólogo inglês e importante figura na popularização do
zen-budismo nos Estados Unidos –, era de fato Huxley quem parecia representar fielmente a
97
ego” (Hartelius; Caplan; Rardin, 2007, p.14, tradução minha). De fato, uma das questões
controversas na aceitação da disciplina dizem respeito a essa abertura, que se dá tanto em
termos da quantidade de fenômenos quanto à qualidade “espiritual” deles.
Embora ao longo dos anos 1970 a subárea tenha conseguido estabelecer uma
associação nacional e internacional, assim como um instituto de ensino próprio (o Institute of
Transpersonal Psychology, que na década seguinte passou a oferecer cursos de mestrado e
doutorado na área), ela enfrentou sérias resistências em suas tentativas de se integrar ao
mainstream da psicologia estadunidense.35 Essa situação fica explícita quando retraçamos as
fracassadas tentativas de um grupo de psicólogos transpessoais em criarem uma divisão
transpessoal independente na Associação Americana de Psicologia durante os anos 1980,
buscando se distinguir assim da Divisão 32, representante da psicologia humanista, a qual a
maioria dos “transpessoais” estavam associados. Mesmo tendo recebido o apoio do conselho
executivo da Divisão 32 por uma votação apertada em 1984 e 1985, a proposta não conseguiu
os votos necessários no conselho de representantes da Associação. No ano seguinte, na
terceira e última tentativa possível, houve um empate no conselho executivo da Divisão 32, e
seu presidente à época optou por retirar a proposta. Em lugar do reconhecimento como uma
divisão específica, a psicologia transpessoal foi realocada como um Grupo de Interesse
Especial no interior da psicologia humanista36 (Aanstoos; Serlin; Greening, 2000).
As críticas abertas feitas por Rollo May, figura conhecida nos círculos da psicologia
humanista da época, são apontadas como tendo se não contribuído, ao menos explicitado
publicamente a opinião de muitos membros da Associação. Em um pequeno texto publicado
no periódico The Humanistic Psychologist, no mesmo ano da última tentativa da psicologia
transpessoal se constituir como uma divisão independente, May (1986) retoma parte da longa
35 Não apenas segue enfrentando resistências nos Estados Unidos, como também no próprio Brasil. Um
exemplo recente em nosso país chegou a envolver as instâncias jurídicas do estado de Santa Catarina. Isso
porque uma psicóloga foi alvo em 2009 da instauração de um processo de ética por parte do Conselho
Regional de Psicologia de Santa Catarina, por ofertar cursos de técnicas ligadas à psicologia transpessoal,
consideradas pelo Conselho como “alheias à psicologia enquanto ciência e profissão”. Ao recorrer na justiça
a censura púbica que sofrera, o juiz do caso concedeu ganho de causa para a psicóloga, afirmando que o
Conselho não podia “usurpar a competência do legislador ao tentar limitar a liberdade profissional”. Em sua
decisão, havia ainda a menção à aprovação do oferecimento de uma disciplina sobre psicologia transpessoal
no curso de psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ver: <
https://www.conjur.com.br/2012-jul-23/conselhos-profissionais-nao-podem-legislar-pesquisa-educacao >
(Consultado em 28/01/2021).
36 O fato de ser um “grupo de interesse” parece qualificar a psicologia transpessoal mais por uma qualidade de
“temática” do que propriamente como um campo relativamente autônomo da prática e conhecimento
psicológico, como no caso das divisões. Atualmente, os Grupos de Interesse Especial da Divisão 32 são a
Psicologia Construtivista, Ciência Humana, Psicologia Positiva, Psicoterapia e Arte, Psicoterapia, Teoria e
Filosofia, Psicologia Transpessoal, Estudantes de Graduação, Psicologia Indígena. Ver: <
https://www.apadivisions.org/division-32/sigs > (Consultado em 21/01/2021).
100
definição dada por Sutich (1969), em que esse autor afirma que a psicologia transpessoal está
interessada no estudo científico e empírico e na “implementação responsável” de descobertas
relevantes ao:
devir/tornar-se [becoming], meta-necessidades individuais e de toda espécie, valores
últimos, consciência unitiva, experiências culminantes, B-value, êxtase, experiências
místicas, admiração/temor [awe], ser, autoatualização, essência, bem-aventurança
[bliss], maravilhamento, sentido último, transcendência do self, espírito, unidade
[oneness], consciência cósmica, sinergia individual e de toda espécie, consciência
sensorial máxima, capacidade de resposta e expressão, encontro interpessoal
máximo, sacralização da vida cotidiana, fenômenos transcendentais, humor próprio
cósmico e brincadeira [playfulness] e conceitos, experiências e atividades
relacionados. (Sutich, 1969 apud May, 1986, pp.87-88)
De acordo com alguns autores (Aanstoos; Serlin; Greening, 2000), foi especialmente
essa segunda crítica em relação a um suposto viés religioso na confusão entre as fronteiras da
psicologia e da religião que levou os membros do conselho representante da Associação a
recusarem a criação de uma divisão própria à psicologia transpessoal. Reforçando esse
entendimento, embora a crítica de May ao solapamento dos “aspectos negativos” da natureza
humana se refira não apenas à psicologia transpessoal mas também à proposta de Maslow
quanto a uma psicologia humanista, é interessante notar que, em entrevista a Edward Hoffman
(2009), May se refira de forma pejorativa ao grupo mais geral do Movimento do Potencial
Humano como uma “psicologia Nova Era”.
101
A crise de Lukoff
Lukoff é uma pessoa ativa na rede transpessoal. Embora não seja alguém com grandes
produções teóricas, o psicólogo foi em um período recente copresidente da Associação
Internacional Transpessoal, e o considerável número de entrevistas e de falas em instituições
de ensino e universidades ao redor do mundo indicam um certo reconhecimento de seu
102
37 Parar relembrar, cito novamente aqui o conteúdo completo presente do DSM-IV: “Esta categoria deve ser
usada quando o foco de atenção clínica é um problema religioso ou espiritual. Exemplos incluem:
experiências negativas que implicam perda ou questionamento da fé, problemas associados com conversão a
uma nova fé, questionamento de valores espirituais que não necessariamente estão relacionados a uma igreja
organizada ou uma religião institucionalizada.” (American Psychiatric Association, 1994, p.685, tradução
minha)
38 Lukoff é especialmente ativo na divulgação de seu trabalho, de temas relacionados à psicologia transpessoal
e de questões psiquiátricas e psicológicas mais amplas na Internet. Ao menos desde a segunda metade dos
anos 1990, encontramos uma rica reunião de artigos e materiais, além do oferecimento de cursos online, em
seu antigo site. Ver: < https://web.archive.org/web/19980501000000*/www.virtualcs.com > (Consultado
22/01/2021). Seu endereço atual leva o nome do tema que o tem interessado mais recentemente, a respeito
das “competências espirituais” que um profissional da saúde mental deve ter para melhor acolher seus
pacientes. Ver: < https://www.spiritualcompetency.com/ > (Consultado em 22/02/2021).
39 Trata-se de uma prática voltada para a produção da atenção plena no momento presente, adotando uma
atitude “curiosa” e sem julgamentos quanto aos pensamentos. Criado nos anos 1970 a partir da prática de
meditação budista, o mindfulness vem sendo especialmente utilizado como um instrumento de promoção de
saúde e tem se popularizado cada vez mais nos últimos anos no Brasil e em outras partes do mundo.
40 Como veremos mais à frente, em algumas situações Lukoff enfatiza que parte do processo de integração de
sua crise espiritual se deu a partir do aprendizado de técnicas neoxamânicas. No entanto, embora esse seja
um ponto central em seus relatos publicados na forma de artigo – como aquele publicado na revista dedicada
do tema, Shaman’s Drums (Lukoff, 1990) –, na maioria de suas falas disponíveis na Internet esse é um ponto
costumeiramente omitido. A exceção é sua palestra para o Centro de Medicina Integrativa da Universidade
da Califórnia, San Francisco, que contou com uma longa fala sua (1 hora). Ver: <
https://www.youtube.com/watch?v=Ap9uo8J_4SY > (Consultado em: 23/01/2021).
103
A história de sua crise espiritual e psicótica começa em 1971, quando ele tinha 23
anos de idade.41 Tendo se formado no curso de civilizações antigas na Universidade de
Chicago e concluído seu mestrado em antropologia social pela Universidade de Harvard,
Lukoff caminhava para uma carreira na academia e seguia os passos de seu pai e de seu avô
materno, ambos professores universitários, quando experienciou o que chamou de uma “crise
existencial”. Sentindo que desperdiçava seu tempo ao aprender sobre outras pessoas sem
conhecer a si mesmo e sem saber o porquê de encaminhar sua vida nesse sentido, ele decidira
abandonar seu doutoramento no programa de antropologia social de Harvard e vender tudo
aquilo que possuía e que não cabia em sua mochila. Sua decisão era a de viajar pelo país
através de caronas oferecidas nas estradas, algo que lhe permitiu viajar não só pelas cidades
dos Estados Unidos para além da costa leste, mas também visitar lugares como Canadá,
México e até o Havaí.
Seis meses após o início de sua viagem, Lukoff viu-se em San Francisco, na
Califórnia. Como ele afirma em uma entrevista,42 “embora fosse 1971, culturalmente era na
verdade o que nós chamamos de os anos 60, sabe? Havia toda essa coisa da cultura hippie”.
Foi nesse ambiente que lhe ofereceram um tablete de LSD. Embora ele nunca houvesse
experimentado qualquer substância psicodélica, ele decidira aceitar a oferta. Tudo correu bem
naquele dia, vivenciando experiências visuais e um sentimento de conexão com o mundo que
até então ele nunca havia tido, em parte por ter sido criado em um ambiente judaico secular e
nunca ter sido motivado a ter esse tipo de experiência de “abertura espiritual”. Apesar disso,
ele achava que nada de muito mais transformador havia ocorrido. A única diferença notada no
dia seguinte foi que agora ele conseguia compreender um dos livros que carregava em sua
mochila e que até então pouco lhe fazia sentido, o Manual of Zen Buddhism, de Daisetsu
41 Para contar sua história, utilizarei uma série de vídeos disponíveis no Youtube e dois artigos publicados por
ele sobre o assunto (Lukoff, 1990; 2018). Em vídeo, o melhor, mais completo e mais visto relato sobre sua
experiência é sua fala para o canal do Youtube “bipolarorwakingup” (“bipolar ou despertando”), de Sean
Blackwell. Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=RUcbj7hou2c > (Consultado em 23/01/2021). Uma
versão legendada em português pode ser acessada no canal do “Repensando a loucura”. Ver: <
https://www.youtube.com/watch?v=ZwMlsAeiUlM > (Consultado em 23/01/2021). Blackwell é um
sociólogo da religião por formação. Após vivenciar um episódio maníaco e ser diagnosticado com transtorno
bipolar, ele decidira investigar essa experiência a qual ele considerara um “despertar espiritual”. Depois de
se formar como facilitador em respiração holotrópica, prática terapêutica criada por Stanislav Grof e
Christina Grof, Blackwell a adaptou para o contexto da bipolaridade e passou a oferecer retiros terapêuticos.
Ele esteve presente no “Repensando a loucura”, organizado pelas psicólogas transpessoais Ligia Splendore e
Maria Crsitina Barros, evento no qual Lukoff participou mediante um vídeo gravado para a ocasião. De
origem canadense, desde 2011 ele vive em São Paulo. Seu canal do Youtube possui quase 25 mil inscritos e
seus vídeos somam quase 3 milhões de visualizações.
42 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=M7fz_M0VQyY > (Consultado em: 23/01/2021).
104
Lukoff considerava que ele havia se preparado para essa tarefa. Afinal, sua formação
em civilizações antigas e em antropologia social lhe possibilitavam ter um entendimento
compreensivo e científico do modo como as sociedades funcionam, o que lhe permitiria
mudá-las. Somando-se o fato dele estar no estado iluminado do Buda, não haveria nada que o
pudesse impedi-lo de colocar seu plano em ação e preparar essa revolução cultural.
Foi logo após sua realização que ele deu início ao seu trabalho. Durante o processo,
percebeu que poderia contatar os espíritos de pessoas importantes, mortas e vivas, que
poderiam auxiliá-lo na criação de seu livro sagrado. Margaret Mead, Claude Lévi-Strauss,
Bob Dylan, Freud, Jung, Durkheim e Ronald Laing eram algumas das personalidades com
quem ele mantinha diálogos e debates, além de Buda e Cristo. Seu trabalho durou cinco dias e
noites de trabalho exaustivo. Ao final, o resultado eram 47 páginas que combinavam
parábolas, poemas e instruções para a organização de uma nova sociedade. Uma vez feitas 10
cópias de seu livro, Lukoff as enviou para amigos próximos e familiares.
Pelos próximos cinco meses ele aguardou pelas mornas respostas dadas por aqueles
escolhidos por ele para lerem em primeira mão seu projeto de uma nova sociedade. Ficando
na casa de amigos que o acolhiam sem qualquer problema, sua revelação em que era a
43 Embora em seus artigos publicados Lukoff (1990; 2018) se refira a esse livro, em algumas entrevistas dele
há a menção a um outro livro, de autoria de Alan Watts, sobre o zen e a iluminação.
105
reencarnação de Buda e Cristo passou a enfraquecer, assim como o entendimento de que seu
livro era como a nova Bíblia. Ainda assim, Lukoff continuava a trabalhar na obra, acreditando
haver ali boas ideias que deveriam ser publicadas. Já em 1972, ele decidira retornar à costa
leste para morar sozinho em um chalé de verão de seus pais, de modo a continuar o trabalho.
Sua saúde começara a deterior devido a uma doença autoimune que o fazia sentir dores por
todo o corpo, o que atrapalhava sua leitura. Ainda assim, e apesar da solidão e do sentimento
de depressão que começava a invadir, ele continuou seus estudos, conhecendo obras como as
de Joseph Campbell e Carl Jung.
Foi nesse meio tempo que, ao ler A Contracultura, do historiador Theodore Roszak,
em que colocava em perspectiva muito do que Lukoff havia vivenciado, ele se sentira
desiludido e completamente envergonhado: sua ideia não era tao original assim, mas sim um
exemplo comum de um plano comunal utópico típico dos anos 1960. No entanto, um dia em
que estava caminhando sozinho na praia, se sentindo deprimido e pensando nos eventos
ocorridos nos últimos seis meses, algo ocorrera: “De repente, eu ouvi uma voz falando
comigo. Eu fiquei assustado. A voz disse claramente: ‘torne-se um curador [healer]’” (Lukoff,
2010, p.5, tradução minha). Essa foi a primeira e única vez que ele ouvira uma voz emanando
de fora dele mesmo, e ela foi decisiva na mudança de sua vida e de sua profissão.
Foi a partir desse “chamado” que Lukoff decidira retornar à casa de seus pais, em
Nova Jersey, para se recuperar. Nesse período, começou a frequentar aulas de ioga e de
plantas medicinais, ingressando posteriormente em um centro de potencial humano que o
permitiu aprender uma série de práticas terapêuticas, como a terapia gestalt, a bioenegética e
o psicodrama. Após trabalhar como facilitador de grupos de crescimento pessoal em um
hospital de Chicago, Lukoff compreendeu que o chamado feito pela voz era para ele se tornar
um psicólogo. Isso o levou a ingressar no doutorado em psicologia clínica na Universidade
Loyola, na mesma cidade em que estava morando.
Foi durante sua formação como psicólogo, em uma aula de psicologia anormal, que
Lukoff aprendeu que a presença de delírios grandiosos e alucinações visuais e auditivas
qualificaria sua experiência como um episódio psicótico agudo – o que na época seria
diagnosticado como uma reação esquizofrênica aguda –, possivelmente desencadeado pelo
consumo de LSD, a falta de horas de sono e pela leitura intensiva de livros sobre o zen-
budismo nos dias que antecederam o evento culminante. Para Lukoff, caso durante esse
período de crise ele tivesse passado por algum centro de atendimento em saúde mental, ele
106
provavelmente teria sido hospitalizado e medicado com antipsicóticos. Se antes de saber seu
possível diagnóstico Lukoff nunca havia voltando a essa experiência em seu trabalho como
facilitador de grupos terapêuticos – mantendo seu “livro sagrado” guardado em uma caixa –,
foi nesse momento que ele teve certeza que não poderia falar sobre, por medo do que seus
colegas de profissão achariam, talvez colocando em risco sua própria carreira. Como ele
sentencia a respeito da classificação psiquiátrica:
Embora esse nível de entendimento jogue alguma luz no que ocorreu, nada em
minha formação como psicólogo me encorajava a explorar mais meu episódio
psicótico. Da perspectiva do modelo médico psiquiátrico, a psicose não traz nenhum
potencial para transformação, mas apenas o risco de seu reaparecimento. (Lukoff,
1990, s/p, tradução minha)
44 Não é difícil encontrarmos na literatura sobre o tema definições sintéticas que coloquem a “espiritualidade”
como objeto ou condição central da subárea. Esse é o caso, por exemplo, de algumas definições dadas em
textos reunidos em uma obra organizada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, quando se
afirma que a psicologia transpessoal se ancora “na ideia de que a espiritualidade é um eixo central para o
entendimento do fenômeno humano” (Ferreira; Silva; 2016, p.82), ou quando se associa sua emergência a
partir da “ideia de que a subjetividade é eminentemente espiritual” (Ferreira; Silva; Silva, 2016, p.63)
45 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=Ax1-gruTdMU&t=28s > (Consultado em 24/01/2021).
109
sua proposição para uma psicologia humanista, ao longo dos anos 1960 ele veio a incluir uma
nova preocupação em seu esquema analítico: a autotranscendência.46 Como mencionado
anteriormente, a ideia da pirâmide é a de que um indivíduo possui distintos níveis de
necessidades que o mobilizam e o motivam, e que embora eles possam “subir” ou “descer” a
depender da satisfação ou não dos níveis mais basilares, o sentido da saúde e felicidade
psicológica seria ascendente, encontrando seu ápice no topo da pirâmide. Dessa forma, sua
teoria da motivação busca ser uma resposta às teorias que postulavam uma forma reducionista
de compreensão das necessidades humanas, como aquelas que instituem a necessidade de
alimentação como o imperativo único e último que nos motiva em nossas decisões e ações em
nossa vida cotidiana. Em vez disso, Maslow reconhecia a primordialidade das necessidades
fisiológicas ao situá-las no primeiro nível da hierarquia, mas argumentava que, após
satisfeitas, novas ordens de necessidades passariam a emergir, nos motivando para outras
áreas da vida.
Seu estudos empíricos se davam especialmente com pessoas que ocupavam o topo da
pirâmide, chamadas por ele de “autoatualizadas”. Para Maslow (1943, p.382), a
autoatualização se referiria ao desejo de se autorrealizar, ou seja, “se atualizar naquilo que ele
é potencialmente”, algo que estaria inscrito tanto na biologia da espécie humana, quanto na
particularidade de cada indivíduo. Nesse sentido, a forma específica dessa autorrealização
seria variável a cada pessoa, e Maslow (p.152) chega a incluir uma lista de personalidades
históricas que fizeram sua vida desde a política institucional, o mundo artístico e o discurso
espiritual, como George Washington, Goethe, Ralph Waldo Emerson e Benjamin Franklin,
como sujeitos possivelmente autoatualizados. Em comum a elas seria seu senso de gratidão e
de sentido que aquilo que faziam lhes propiciava, tendo eles possivelmente realizado o
potencial de seu ser.
No entanto, ao menos desde o começo dos anos 1960 Maslow começou a acreditar que
seu quadro não estava completo. De acordo com Koltko-Rivera (2006), o psicólogo teria
começado a se questionar sobre o quão adequado era a noção de autoatualização ocupar o
topo da hierarquia das necessidades a partir de seus estudos sobre as experiências culminantes
(peak-experiences) e sobre os estados cognitivos relacionados a elas. Isso porque nesse estado
46 Vale notar que Maslow não foi o único “psicólogo humanista” a incluir aspectos transcendentais e
espirituais ao longo de sua trajetória profissional. Como argumenta Robert Fuller (2005), o importante
psicólogo Carl Rogers também se viu afetado pela experiência de Esalen e as transformações mais
abrangentes ocorridas na sociedade estadunidense, com a emergência dos círculos Nova Era, tendo adotado
uma metalinguagem espiritual em um momento posterior de sua vida e trabalho.
111
48 Essa tipologia é seguida quase que integralmente por Lukoff (s/d) em seu material didático sobre a categoria
“problemas religiosos ou espirituais”, classificando-os como “problemas espirituais”.
113
espiritual inscrito na experiência possa ser integrado à pessoa. A esse respeito, Lukoff (1985)
e os Grof’s utilizam o exemplo do “episódio psicótico” para desenvolverem a plausabilidade
psiquiátrica de seus argumentos. De modo similar ao visto no capítulo anterior quanto à
utilização do conceito de “dissociação” como um termo descritivo, não há aqui o abandono do
termo “psicótico” para descrever fenômenos vistos como delírios e alucinações visuais e
auditivas. Para eles, há a possibilidade de existência de um “episódio psicótico agudo” –
chamado por Grof e Grof (1989, p.4) como “psicoses funcionais” –, no qual o prognóstico é
muito melhor do que em casos de psicoses crônicas e de fundo orgânico, essas mais
facilmente associadas a transtornos mentais, como a esquizofrenia.
Em seu primeiro artigo sobre o tema, Lukoff (1985) aborda exatamente essa
sobreposição confusa entre os fenômenos de “experiências místicas com características
psicóticas” e os “transtornos psicóticos com características místicas”. Devido à semelhança
fenomênica do misticismo com algumas experiências de transtornos psicóticos, parte de seu
texto é dedicado à tentativa de estabelecer critérios para identificar episódios psicóticos que
possam ter um bom prognóstico.49 No entanto, o que me interessa em seu texto e nos de
Christina Grof e Stanislav Grof é exatamente a ideia de que estados psicóticos e crises
espirituais possam se sobrepôr. Embora em alguns momentos nos escritos desses autores haja
uma definição exclusiva, de tipo “isso ou aquilo” (estados psicóticos ou crises espirituais), na
maioria das vezes parece ocorrer essa sobreposição: um estado psicótico que é uma crise
espiritual, não sendo sintoma de um transtorno mental. Isso é expresso no relato de Lukoff
sobre sua própria crise, em que acreditava ser a reencarnação de Buda e de Cristo. Não há por
parte dele a recusa em qualificar sua crise como um “estado psicótico”, mas há a proposta de
pensar esse estado mais propriamente também como uma “crise espiritual”, com potenciais
transformadores e de crescimento pessoal.
Ao proceder dessa maneira e ao recorrer às práticas neoxamânicas em seu processo de
cura – entendida como a integração da experiência e de suas potencialidades transformadoras
–, Lukoff estabelece uma relação já de alguma forma consolidada na literatura transpessoal.
Trata-se da ideia de que os místicos de outros tempos ou os xamãs de outras culturas
vivenciariam também crises psicóticas. No entanto, diferente das pessoas diagnosticadas com
transtornos mentais hoje em dia, os místicos e xamãs saberiam lidar com essas experiências.
49 Os critérios são: bom “funcionamento” social anterior à experiência; emergência aguda dos sintomas,
durando três meses ou menos; ocorrência de eventos estressantes antes ao episódio; atitude positiva e
exploratória durante o episódio (Lukoff, 1985, p.170).
114
Nesse sentido, foi o encontro com as práticas e a mitologia da crise iniciatória xamânica que
permitira a Lukoff reenquadrar seu próprio episódio psicótico e integrar as potencialidades
espirituais inscritas nesse episódio.
A questão do xamã
O tema do xamanismo é um exemplo importante dessa proposição não apenas por ser
mobilizado por Lukoff em seu relato pessoal. Ele interessa também porque, ao longo da
história, seus praticantes de sociedades não-ocidentais foram compreendidos como sujeitos
“descompensados” em termos psicológicos, muitas vezes sendo descritos como possuindo
transtornos mentais mais severos. Ao menos desde a metade do século XIX, os escritos de
viajantes e etnógrafos sobre a região da Sibéria – área geográfica de onde o termo “xamã” é
originário – apresentavam esse tipo de compreensão psicológica dos praticantes. De acordo
com o historiador Andrei Znamenski (2007), essa interpretação teria se consolidado na virada
dos séculos XIX ao XX, especialmente com os trabalhos de uma série de etnógrafos de
origem russa que se viram exilados na região. Para o historiador, em parte isso se devia à
associação que era feita por esses viajantes entre o xamã e um fenômeno local chamado de
“histeria ártica”, no qual parte dos habitantes da região seria acometida por ataques histéricos
provavelmente causados pelo clima extremo da região. Ainda que a população nativa
diferenciasse explicitamente o xamã e seu ofício de controle espiritual daquelas pessoas que
seriam “possuídas e torturadas por espíritos” - consideradas pelos viajantes como histéricas –,
a associação acabou se tornando uma interpretação comum, alterando-se as vezes o
diagnóstico psiquiátrico ou psicológico oferecido pelo analista para se compreender os xamãs.
Foi com a publicação da tradução ao inglês de algumas dessas obras etnográficas que
o debate entrou na academia dos países ocidentais.50 A interpretação dos etnógrafos russos foi
em geral aceita pelos antropólogos ocidentais na primeira metade do século XX – dentre eles
Robert Lowie e Paul Radin –, tendo adotado como ponto de partida a ideia de que o
verdadeiro xamanismo estaria inevitavelmente ligado à existência de uma psicopatologia.
Para Znamenski, mesmo aqueles antropólogos que viam com ressalvas o uso de diagnósticos
psiquiátricos para definir os xamãs acabavam concordando que “o xamanismo era um nicho
50 Além das etnografias de Waldemar Bogoras e Vladimir Jochelson, Znamenski cita ainda a obra Aboriginal
Siberia, escrita pela antropóloga de origem polonesa Marie Czaplicka e publicada em 1914. A obra continha
uma revisão das produções dos etnógrafos russos e foi usada como referência por Ruth Benedict em suas
menções ao xamanismo siberiano nos textos que abrem esta dissertação.
115
51 A obra de Castaneda é repleta de controvérsias envolvendo a real existência de Don Juan ou a total invenção
ficcional por parte do autor. Seja como for, sua formação em antropologia parece o ter habilitado a redigir
uma obra que fosse a princípio minimamente plausível para seus colegas na academia. Castaneda defenderia
ainda sua tese de doutoramento em antropologia na Universidade da Califórnia, Los Angeles, em 1973, antes
de se afastar do debate público e da própria academia (Znamenski, 2007; Caravita, 2019).
116
terapêutica passou a ser central. Do interesse intelectual, houve a apropriação de suas técnicas
e mitologias em parte desses círculos situados nos centros urbanos ocidentais, produzindo
aquilo que alguns autores chamam de neoxamanismo. Embora o debate envolvendo essa
integração de práticas espirituais de populações indígenas e técnicas psicoterapêuticas seja
extenso e suas ramificações internas sejam consideráveis, remeto a ele porque foi a partir de
um desses grupos que Lukoff pôde reenquadrar sua própria experiência psicótica, graças às
técnicas de produção de êxtase e estados alterados de consciência com as quais ele teve
contato. Não à toa, a fundadora da instituição a qual ele veio a trabalhar e a se iniciar era Joan
Halifax, considerada pelos autores do tema (Stuckrad, 2014; Znamenski, 2007; Boekhoven,
2011) uma das antropólogas responsáveis pela consolidação e popularização dessa adaptação
das práticas xamânicas ao contexto terapêutico e espiritual Ocidental.
Meu interesse por esse debate diz respeito não propriamente à emergência da
utilização de técnicas xamânicas tradicionais, mas sim ao modo como Lukoff rearticula sua
própria crise psicótica à luz da experiência de crise iniciatória dos xamãs, estabelecendo uma
conexão entre os xamãs tradicionais e pessoas acometidas por algum episódio psicótico. Esse
tipo de articulação parece ser produto de um deslocamento sensível do problema do “xamã
como um transtornado”, como era então enunciado pelos primeiros etnógrafos da região da
Sibéria.
Talvez o tipo de solução com maior aderência recente a esse problema tenha sido
aquele que afirma que o xamã das sociedades indígenas não é um sujeito acometido por
algum tipo de psicopatologia e que suas experiências não possuem nada de semelhante aos
sintomas de um estado psicótico. É em torno dessa premissa que o psicólogo Richard Noll
(1983) elabora seu bastante referenciado texto a respeito do uso da “metáfora esquizofrênica”
na descrição do xamanismo. Em uma operação análoga àquela feita por Bourguignon em seu
trabalho comparativo sobre os fenômenos de transe e transe possessivo que descrevi no
segundo capítulo, Noll recorre ao termo “estado xamânico de consciência” (EXC), cunhado
por Michael Harner (1995), categorizando fenomenologicamente um “estado alterado de
consciência” particular que definiria os estados xamânicos ao redor do globo. Sua definição
“neutra” em termos de uma explicação psicológica o permite comparar esse fenômeno
singular ao que seria a fenomenologia de um estado esquizofrênico, equiparando ponto a
ponto as características psicológicas desses dois estados e evidenciado a diferença entre eles.
117
Nesse sentido, é em tom de desacordo que Noll se coloca frente aos usos indiscriminados de
categorias psicopatológicas na análise do estado psicológico dos xamãs:
Infelizmente, ambos os estudos psicológicos e antropológicos tendem a ligar
arbitrariamente o EXC e a esquizofrenia como versões transculturais de um mesmo
estado psicológico. Apenas muito recentemente que o EXC tem sido estudado como
um tipo específico de estado alterado com suas próprias características interculturais
e experienciais. Mais frequentemente do que não, o EXC é considerado como um
estado perturbado, análogo aos estados esquizofrênicos. (Noll, 1983, p.447,
tradução minha)
52 De acordo com Campbell (1993), os arquétipos diriam respeito a essas ideias elementares que seriam
encontradas com algumas variações em mitologias de todo o mundo. Desse modo, enquanto o arquétipo da
divindade seria universal, suas formas de manifestação seriam variadas.
119
Para não deixar dúvidas daquilo que postula, Campbell afirma logo em seguida que as
águas nas quais esse conjunto de pessoas mergulha são as mesmas, tratando-se das águas dos
“arquétipos universais da mitologia”. O problema se daria não nessa experiência, mas sim no
modo como a cultura a enquadra e como a sociedade recebe aqueles que a experienciam, sem
prestar o necessário auxílio para que a pessoa possa atravessar as profundezas oceânicas de
sua crise e retornar ao mundo comum, terreno, com seu self transformado. Para Znamenski
(2007, p.119, tradução minha), a mobilização por parte de Campbell do debate em torno das
possíveis psicopatologias do xamã serve para o mitólogo “contrastar a espiritualidade clássica
oriental e tribal com o modo ocidental esvaziado do sagrado e do espiritual”.
Esse me parece ser o ponto fundamental da questão do “xamã”. Ao situar a noção de
que um episódio psicótico seria a base sobre a qual tanto um diagnóstico psiquiátrico quanto o
chamado para se tornar um xamã é feito – na medida em que a psicose é encarada como uma
jornada espiritual no íntimo do ser –, torna-se possível tomar outras culturas como uma fonte
de inspiração para se lidar com essas experiências. Isso fica claro no relato feito por Lukoff
(1990, s/p, tradução minha), especialmente quando ele confessa que “gost[a] de pensar que
em uma época mais antiga [sua] crise iniciatória xamanística [o] teria marcado como um
xamã-eleito, e [ele] teria se tornado aprendiz de um mestre xamã para aprender a controlar
essas habilidades”. Em seu caso, a eleição do xamanismo como ferramenta de construção de
sua própria mitologia teria se dado tanto por acaso, ao começar a trabalhar na Fundação Ojai
com suas técnicas neoxamânicas, quanto por notar certos paralelos arquetípicos (de símbolos)
e experienciais ao estudar a literatura xamânica após seu contato inicial com suas práticas.
Essencial nesse processo teria sido seu próprio aprendizado com mestres xamãs, na
vivência de um estado alterado de consciência semelhante àquele experienciado por ele em
seu episódio psicótico, e no ensino oferecido por seus professores a como tomar controle
sobre sua crise espiritual. Nesse sentido, como indicam os antropólogos Juan Scuro e Robin
Rodd (2019, p.1082), no processo de adaptação do xamanismo ao contexto psicoterapêutico
do Ocidente, certas características passam a ser enfatizadas em detrimento de outras,
120
Foi durante esse período que eu conheci os indígenas Huichóis, do México. Minha
relação com eles mudou minha vida de uma forma muito dramática, porque eu
percebi que eu não queria apenas estudar culturas tribais ou estudar métodos de
cura, mas eu queria estudar com povos tribais. Eu não mais queria ser uma
antropóloga analisando eles. Eu queria entrar em uma outra cultura para encontrar
um modo de me curar do sofrimento. (Halifax apud Gordhamer, 1995, p.141,
tradução minha e ênfase da autora)
Existe aqui a ideia de uma relação com o sagrado mais íntima e original por parte
especialmente de populações não-ocidentais, algo que é uma constante nas práticas e tradições
mobilizadas no chamado movimento Nova Era (Bowman, 1995; Carozzi, 1999b). Se o
Ocidente perdeu sua forma de conexão com o sagrado em favor de uma visão racionalizada e
desencantada do mundo – mantendo tal relação apenas em casos “extremos”, como o dos
místicos –, então seria preciso nos voltarmos para as tradições que ainda mantém esse tipo de
relação mais “íntima”, que saibam encarar melhor essas experiências pelas quais todos os
seres humanos supostamente passam. Nesse sentido, é indicativa a afirmação de Lukoff ao se
remeter ao passado para caracterizar sua possibilidade de se tornar um xamã: “em outra
época” ele assim seria reconhecido, assim como seria em outra cultura pré-moderna, em um
certo elogio ao “primitivo”. Se a formação acadêmica de Lukoff em civilizações antigas e em
antropologia não é mencionada por ele como uma influência em sua aproximação inicial com
as técnicas neoxamânicas, Halifax é bem explícita a respeito dessa “inspiração pela
alteridade” produzida por seu próprio trabalho como antropóloga. Enquanto uma disciplina
121
vê nesse outro (xamã) uma nova chave de compreensão de nossa própria psiquê e dos
fenômenos patologizados pelos saberes psi.
Para tanto, o estilo de pensamento posto em movimento por esses autores reconhece
uma identificação da experiência entre alguns psicóticos e os xamãs de outras culturas. Mas
em vez de tomar a identificação de um ponto de vista negativado ou patologizante – como
fizeram os antigos antropólogos ao reconhecerem nos xamãs indícios do psicótico ou do
neurótico –, eles veem nessa identificação uma potencialidade espiritual: os sujeitos modernos
diagnosticados com transtornos psicóticos, como a esquizofrenia, poderiam ser considerados
xamãs em outras sociedades, tendo suas experiências reconhecidas e incentivadas pela cultura
e ocupando posições de prestígio em que ajudam aos membros de seu grupo social. Nesse
caso, o modo de resolução da crise iniciatória ao xamanismo serve como inspiração, ao ser
tratado como um modo mais competente de se lidar com esse tipo de situação e em seus
potenciais transformadores. Parte desse processo diz respeito à “terapeutização” de técnicas
outras, adequando-as ao contexto psicoterapêutico ocidental. É a partir do encontro com
outras técnicas e mitologias que nosso próprio entendimento sobre parte dos pacientes
psiquiátricos é alterado.53
***
Como tentei apontar ao longo deste capítulo, a emergência histórica desse estilo de
pensamento e da psicologia transpessoal como um ramo possível da psicologia está
completamente entrelaçada à própria emergência das bases do movimento Nova Era nos
Estados Unidos dos anos 1960. Mais do que isso, a própria influência teórica pode ser
incluída na análise. Para Hanegraaff (1996, p.50, tradução minha), por exemplo, “a psicologia
transpessoal pode ser considerada a ala teórica do Movimento do Potencial Humano”. A
participação de atores como Abraham Maslow, Stanislav Grof e Christina Grof em Esalen, no
que é considerada uma das principais instituições da formação do Movimento do Potencial
Humano, é um exemplo disso. Foi a produção terapêutica e teórica deles que engendrou tanto
a noção da existência de potencialidades autoatualizadoras nas experiências espirituais,
53 É importante apontar que essa forma de operação do pensamento não se limita aos atores ligados à
psicologia transpessoal. Embora não seja meu objetivo nesta dissertação, me chama a atenção a enorme
difusão que o enunciado “os esquizofrênicos seriam xamãs em outras culturas” tem. Apenas para ficar em
um exemplo rápido, esse é o argumento central de uma palestra dada pelo fotógrafo e documentarista Phil
Borges, para o Tedx Talks, em 2014. Disponível com legendas em japonês, polonês e russo, o vídeo possui
mais de 4 milhões de visualizações. Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=CFtsHf1lVI4&t=27s >
(Consultado em 20/01/2021).
123
Considerações finais
ele ocupa na prática clínica e acadêmica para a disciplina. Exatamente por conta dessa
centralidade institucional que analisar seu caso se torna fundamental, visando compreender
sob quais condições a questão da religião e da espiritualidade ingressam explicitamente no
manual, ganhando um novo estatuto no escrutínio psiquiátrico.
É desse modo que no capítulo 1 busquei localizar a criação dessas categorias e a
concepção do DSM-IV em um plano mais abrangente, abarcando a história do próprio
manual. Ao proceder dessa maneira, foi possível notar que a forma como a criação dessas
categorias foi reivindicada estava conectada a uma outra disputa, sobre a possível
“culturalização” do guia de diagnósticos. Nesse caso, psiquiatras culturais e antropólogos
críticos a uma concepção universalizante e biologizante das perturbações mentais se aliaram
na proposta de uma série de modificações no manual. Embora algumas delas tenham sido
ignoradas, outras acabaram ingressando no DSM com algumas alterações. Esses atores
argumentavam que a cultura não era levada em conta pelo quadro nosológico do DSM,
deixando de lado diferenças importantes na saúde mental em populações ao redor do globo.
Ao ser incluída no manual, “cultura” passa a descrever o espaço da diferença.
Ao afirmarem que a inclusão de “transtorno de transe dissociativo” e “problema
religioso ou espiritual” era fundamental na “sensibilização cultural” da psiquiatria e do
próprio guia de diagnósticos, os propositores dessas categorias vinculam a religião e a
espiritualidade às dinâmicas epistêmicas explicitadas no debate da “culturalização”. Nesse
sentido, argumentei que ao postularem a religião e a espiritualidade como “cultura”, ambas
passam a se associar a uma certa particularização, algo da ordem da diferença e da localização
de determinados grupos étnicos ou culturais, em oposição a uma certa universalidade
primordial da psiquê humana a qual elas não teriam lugar estabelecido.
Ao nos deslocarmos do debate específico ao DSM em direção às propostas e à
literatura que sustenta as duas categorias em questão, vimos como esse quadro se
complexifica a partir de uma ênfase maior na psicologia. Das duas categorias que me dediquei
a analisar nesta dissertação, “transtorno de transe dissociativo” é aquela mais próxima ao
debate em torno da culturalização do manual. De fato, ao longo do segundo capítulo
demonstrei como sua proposta chegou a receber a manifestação de apoio do grupo de atores
envolvidos no movimento de culturalização do manual. Mais do que a própria justificativa em
termos da “sensibilização cultural”, um dos critérios de demarcação do diagnóstico mobiliza
direta e explicitamente a questão da “cultura”, peça central também na literatura psi sobre o
127
tema. A esse respeito, vimos como alguns trabalhos comparativos de antropólogos dos anos
1960 e 1970 sobre experiências de transes religiosos e possessões espirituais são mobilizados
nas produções de psiquiatras e psicólogos para tanto afirmarem a normalidade desses
fenômenos na maior parte das culturas ao redor do mundo, quanto para estabelecer um critério
de demarcação entre o normal e o patológico. Para esses psicólogos e psiquiatras, quando
condizente com as normas culturais da religião em questão, o fenômeno poderia ser
considerado normal, isto é, não patológico. Em suma, “cultura” se torna uma espécie de porta
de entrada à possível normalidade do fenômeno para os saberes psi. Ainda assim, para além
do alinhamento à norma cultural na produção de um diagnóstico diferencial, para esses atores
seria absolutamente fundamental que a pessoa envolvida nessa experiência tivesse algum
controle ou vontade sobre ela, de modo a poder considerar o fenômeno como “normal”.
É dessa forma que a cultura é apenas uma das facetas do problema. Esses fenômenos
são conceitualizados a partir da ideia de um estado psicológico, a dissociação. Embora esse
seja um conceito psicológico de longa data, utilizado ao menos desde o final do século XIX
para marcar patologicamente experiências de possessão ou de transe, foi especialmente nos
anos 1960 com o renovado interesse cultural pelos chamados “estados alterados de
consciência” que o uso do conceito foi expandido na literatura psi para além dos fenômenos
considerados mórbidos. Foi a partir dessa época que a “dissociação” passou a ser vista como
uma espécie de habilidade humana, um mecanismo que poderia ser articulado por sujeitos em
várias práticas como a dança, a prática de esportes, o teatro, e mesmo os rituais possessivos ou
os cultos religiosos extáticos, de modo a se alcançar esses estados psicológicos.
Ao mesmo tempo, as próprias produções antropológicas mobilizadas nesse debate se
relacionam ao interesse da época e partem dessa mesma interpretação psicologizada sobre os
fenômenos de transe e possessão. Meu argumento nesse capítulo é que essa literatura coloca
em operação um jogo entre a universalidade de uma habilidade psicológica e a particularidade
dos modos pelos quais as instituições culturais (dentre elas a religião) a cultivam nas pessoas
e a utilizam em determinados contextos, como nas tentativas de acesso ao sagrado. Desse
modo, esses atores instituem não apenas um espaço de abertura à possível compreensão não-
patológica do transe e da possessão, mas também todo uma estrutura conceitual que é em
alguma medida compartilhada por alguns antropólogos e por atores dos saberes psi que
investigam fenômenos como as possessões espirituais e a mediunidade espírita. No entanto, a
partir dessa estrutura, os psicólogos e psiquiatras se mantém como aqueles capazes de
128
certos estados “psicóticos” possam ser entendidos como fenômenos espirituais normais e
valorizados.
Essa inversão fica evidente no caso do xamanismo, investido por uma certa
imaginação antropológica. Enquanto a literatura clássica patologizava a figura do xamã ao
qualificá-lo como um esquizofrênico ou um psicótico, esses atores da psicologia não recusam
a associação da experiência xamânica com a psicótica, mas tomam o caso do xamanismo em
culturas não-ocidentais como fonte de inspiração para a resolução do estado psicológico
crítico. Assim, ao associarem a crise psicótica como uma jornada na profundidade do ser, a
própria dimensão do sagrado passa a se tornar uma questão psicológica – ou, como busquei
argumentar, há uma sacralização da própria psicologia do sujeito. O que importa aqui é a
relação íntima do sujeito com essa consciência transpessoal que o permite acessar o sagrado,
não apenas deslocando as instituições religiosas como também as colocando sob suspeita.
É desse modo que esses debates analisados nesta dissertação compõem parte de um
processo de produção da religião e da espiritualidade, enfocando as problematizações recentes
por parte dos saberes psi. Qualificada como cultura para se adequar ao manual psiquiátrico,
elas passam a se referir ao campo da diferença e da particularidade cultural, assim como nos
debates sobre “religião como cultura” levados a cabo por outros autores das ciências sociais a
respeito de outros territórios da vida social. Ao mesmo tempo, quando ocorre um processo de
psicologização desses fenômenos, a ênfase no indivíduo não se dá de forma homogênea. De
um lado, há a decomposição da possessão e do transe entre um estado psicológico e sua
utilização por culturas ao redor do mundo. Aqui, religião importa na medida em que cultiva
essa habilidade psicológica no acesso ao sagrado e demarca as condições para sua
normalidade. Em outro debate, ao “espiritualizar” boa parte das experiências transcendentes
ou mesmo de estados alterados de consciência, a psiquê humana se torna o espaço mesmo do
sagrado, e as diferenças passam a dizer respeito sempre à exterioridade do sujeito, no modo da
recepção dessa experiência íntima. Assim, acompanhamos a produção de um território que
envolve antropólogos, psicólogos, psiquiatras, atores religiosos e buscadores espirituais, no
qual os casos analisados nesta dissertação compõem apenas algumas facetas de sua existência,
que se pluralizam a depender de cada situação.
130
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