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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Lucas Toledo Martins Baccetto

Transes, crises e diagnósticos:


religião e espiritualidade em debates recentes dos saberes “psi”

CAMPINAS
2021
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

Transes, crises e diagnósticos:


religião e espiritualidade em debates recentes dos saberes “psi”

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Antropologia Social da Universidade
Estadual de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Mestre em
Antropologia Social.

Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Ferreira Toniol

Este trabalho corresponde à versão final


da dissertação defendida pelo aluno
Lucas Toledo Martins Baccetto e
orientada pelo Prof. Dr. Rodrigo Ferreira
Toniol.

CAMPINAS
2021
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Baccetto, Lucas Toledo Martins, 1996-


B12t BacTranses, crises e diagnósticos : religião e espiritualidade em debates
recentes dos saberes "psi" / Lucas Toledo Martins Baccetto. – Campinas, SP :
[s.n.], 2021.

BacOrientador: Rodrigo Ferreira Toniol.


BacDissertação (mestrado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Bac1. Antropologia da religião. 2. Psiquiatria. 3. Psicologia. I. Toniol, Rodrigo.


II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. III. Título.

Informações para Biblioteca Digital

Título em outro idioma: Trances, crises and diagnoses : religion and spirituality in recent
debates of the psy knowledges
Palavras-chave em inglês:
Anthropology of religion
Psychiatry
Psychology
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Mestre em Antropologia Social
Banca examinadora:
Rodrigo Ferreira Toniol [Orientador]
Carly Barboza Machado
Emerson Alessandro Giumbelli
Data de defesa: 25-02-2021
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: https://orcid.org/0000-0003-4367-6839
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/9223941583793618

Powered by TCPDF (www.tcpdf.org)


UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Dissertação de Mestrado composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública realizada em, considerou o candidato
Lucas Toledo Martins Baccetto aprovado.

Prof. Dr. Rodrigo Ferreira Toniol


Profa. Dra. Carly Barboza Machado
Prof. Dr. Emerson Alessandro Giumbelli

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema e Fluxo
de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Agradecimentos

Boa parte do período de realização desta pesquisa passei com amigos e amigas que a turma
do mestrado de 2019 me deu. Como me senti acolhido desde o início, começar os agradecimentos
por eles e elas não é um exagero. Pela convivência cheia de companheirismos, devo meu muito
obrigado a Brume Dezembro Iazzetti, Felipe Puga, Gabriela Costa Limão, Gustavo Córdoba, Laís
Marachini, Lidia Torres, Lucas Nascimento, Paola Argentin, Renan Dantas e Tarcisia Emanuela,
pessoas com quem aprendi muito com suas pesquisas, opiniões e com a convivência universitária.
Em especial, Gustavo, Lidia e Tarcisia estenderam seu carinho imensurável para além das salas de
aula, oferecendo uma amizade muitas vezes difícil de retribuir. Agradeço muito a eles pela
convivência presencial e virtual, e por todo o cuidado que sempre tiveram. Também a Felipe devo
um agradecimento especial, já que o interesse genuíno que ele teve em minha pesquisa renovou
meu cambaleante ânimo em diversos momentos. Embora Victor Amante não faça parte dessa
turma, sua amizade ligada à universidade me faz pensar nele como um desses amigos com quem
continuo a aprender, merecendo também um agradecimento especial neste espaço.
O período de formação no mestrado passou também pelas reuniões e encontros realizados
nos grupos de pesquisa. A participação no Laboratório de Antropologia da Religião (LAR) me
permitiu continuar a aprender muito com colegas próximos e distantes. A ajuda na coordenação por
parte de Brenda Carranza nesses últimos anos foi importante para dar um novo fôlego aos
encontros. Agradeço a ela e aos colegas sempre dispostos ao debate, particularmente a Clayton
Guerreiro e Jeferson Batista da Silva pela amizade que está para além das reuniões.
Além do Laboratório, os encontros do Núcleo de Estudos em Espiritualidade e Saúde
(NUES) também foram fundamentais nesse período. Agradeço aqui à companhia de Aidan
Valentina Fongaro, Ana Beatriz Foster, Greta Garcia, Isabela Mayumi, Luiá Bolonha, Luciana
Cavalcanti, Manuela Carvalho e Maria Luiza Assad nas viagens coletivas de campo que fizemos em
2019. Maria Luiza é uma amiga que o mestrado e a convivência no NUES me deu nesses últimos
anos. A chegada de Florencia Chapini e Lucía Copelotti deu um novo ânimo ao grupo e aos
encontros fora da universidade, que sei que ainda ocorrerão com maior frequência. Além das
pessoas já mencionadas, as contribuições de Anna Paula Pedra, Cecília Bastos, Giorgia Carolina do
Nascimento, Juliana Boldrin, Marina Sena e Thaís Assis foram importantes no direcionamento
desta pesquisa e em minha entrada no campo mais amplo de discussões. Além disso, as sugestões
de Carlos Alberto Steil e Isabel Cristina de Moura Carvalho foram incluídas mais diretamente neste
trabalho. Agradeço a todas e todos pelas discussões e pela companhia nesses últimos anos.
A amizade de Adriano Godoy (também junto ao LAR), Lis Blanco e Luiza Serber foi
importante antes e durante o período de quarentena. Adriano e Lis tiveram sua parte em minha
formação, ao ministrarem uma disciplina durante minha graduação. Ainda assim, é a amizade deles
e de Luiza que mais importa aqui. Sou muito agradecido pelo contínuo apoio acadêmico e pessoal
que eles me proporcionam, seja em sugestões de escrita ou da possibilidade de um ombro amigo.
Espero que os encontros cheios de humor particular e do interesse por questões conspiratórias
possam continuar.
No campo das amizades, vale ainda mencionar aquelas de Campinas. Gabriel Guimarães,
Leandro Lobo e Matheus Rico são amigos de longa data. Sei que manteremos essa mesma dinâmica
ainda por muitos anos, o que é um alívio. Embora esteja distante, Filipe Mattiazzo Pessoa se
manteve próximo quanto à vida por aqui. Ainda que nosso encontro no exterior tenha tido de ser
adiado para uma outra oportunidade, mantenho ele no horizonte.
Agradeço a Taniele Rui, Nashieli Rangel Loera e Isadora Lins França pelas disciplinas
ministradas durante o mestrado. Estendo esse agradecimento a todos os professores e professoras do
Departamento de Antropologia Social, que em diferentes momentos participaram direta ou
indiretamente de minha formação também durante a graduação. Aos funcionários do IFCH,
agradeço pelo trabalho cotidiano tão fundamental.
Everton Maraldi foi um interlocutor importante na realização desta pesquisa, me situando
em algumas questões envolvendo o campo. Agradeço a ele pela ajuda e disposição.
Agradeço a Carly Machado e Emerson Giumbelli pela gentileza em aceitarem o convite para
participar da banca de qualificação e da defesa deste trabalho, e pelos generosos comentários e
sugestões feitos na qualificação. Ronaldo de Almeida merece também um agradecimento por ter
participado da qualificação e contribuído para este trabalho, assim como pela convivência no LAR e
por ter sido meu professor na graduação e no período do mestrado.
Rodrigo Toniol sempre desempenhou o papel de orientador com um cuidado e dedicação
difícil de descrever. Mais do que o vínculo formal, agradeço pela relação de amizade construída
nesses anos.
À minha família, agradeço pelo apoio sempre presente às minhas decisões. Em especial,
agradeço aos meus pais por toda a dedicação em me permitir seguir pelos caminhos que escolhi.
Giovanna Paccillo esteve presente de alguma forma em quase todas as relações mencionadas
aqui. Sempre disposta a me apoiar durante a realização desta pesquisa, é ela também que faz o
cotidiano ser mais agradável. Obrigado pela companhia e pelo companheirismo, e por continuar
presente em nosso fazer de planos.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), agradeço pelo
suporte financeiro concedido no âmbito do projeto temático Espiritualidade Institucionalizada
(Processo nº 2018/05193-5) para a realização desta pesquisa (Processo nº 2018/25198-1).
- (…) Será que o transe dos místicos é assim?
Um estado de suspensão de si mesmo, de todos os reflexos carnais,
provocados pelo encontro com Deus?
- Não é impossível – disse o padre Carrey. –
Talvez seja um mesmo caminho, percorrido pelos místicos
e por todos aqueles que vivem esses estados de transe.
Os poetas, os músicos, os feiticeiros.
Mario Vargas Llosa
Resumo
Esta dissertação tem como objeto debates recentes realizados por psiquiatras e psicólogos em torno
do tema da religião e da espiritualidade. O foco empírico é a criação, em 1994, de duas categorias
diagnósticas no principal guia de diagnósticos psiquiátricos nos Estados Unidos, o Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM): “problema religioso ou espiritual” e
“transtorno de transe dissociativo”. A análise desenvolvida se centra sobre os modos como os
propositores desses dois diagnósticos articulam uma série de categorias psicológicas e
antropológicas para conceitualizar as experiências religiosas e espirituais como fenômenos normais
ou como psicopatologias, situando suas produções na psicologia transpessoal e nos estudos sobre
dissociação psicológica. A partir da leitura de artigos científicos, obras acadêmicas e entrevistas,
busca-se compreender como são produzidos novos e distintos entendimentos psicológicos sobre
fenômenos como o transe religioso, a possessão espiritual e a experiência transcendental.

Palavras-chave: Religião; Psiquiatria; Espiritualidade; Psicologia.


Abstract
The object of this research is the recent debates carried out by psychiatrists and psychologists
around the theme of religion and spirituality. The empirical focus is the creation, of two diagnostic
categories in the main guide to psychiatric diagnoses in the United States, the Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders (DSM), in 1994: “religious or spiritual problem” and
“dissociative trance disorder”. The analysis focuses on how the proponents of these two diagnoses
articulate a series of psychological and anthropological concepts, conceptualizing religious and
spiritual experiences as normal phenomena or as psychopathologies. It is also of interest the relation
of their productions in the field of transpersonal psychology and in studies on psychological
dissociation. From the reading of scientific articles, academic works, and interviews, we seek to
understand how new and distinct psychological understandings about phenomena such as religious
trance, spiritual possession, and transcendental experience are produced.

Keywords: Religion; Psychiatry; Spirituality; Psychology.


Sumário

Introdução.........................................................................................................................................11
A religião, as ciências médicas e os saberes “psi”.........................................................................17
Sobre a estrutura............................................................................................................................26
Capítulo 1 – Religião e cultura no manual de diagnósticos..........................................................28
O manual de diagnósticos..............................................................................................................28
A “cultura” e o DSM-IV................................................................................................................32
O universal e o particular nos transtornos mentais........................................................................40
As categorias diagnósticas sobre religião e espiritualidade...........................................................44
Culturalizando religião e espiritualidade.......................................................................................50
Capítulo 2 – A dissociação e a possessão........................................................................................57
A múltipla personalidade e a questão da religião..........................................................................59
Normalizando a dissociação..........................................................................................................66
A cultura como normalidade e patologia.......................................................................................73
Os usos do diagnóstico..................................................................................................................82
Capítulo 3 – A psicologia transpessoal e a espiritualidade...........................................................92
Da psicologia humanista à Nova Era.............................................................................................94
A crise de Lukoff.........................................................................................................................101
O potencial de uma crise espiritual..............................................................................................107
A questão do xamã.......................................................................................................................114
Considerações finais.......................................................................................................................125
Referências bibliográficas..............................................................................................................130
11

Introdução

Em um artigo seminal publicado no The Journal of General Psychology em 1934, a


antropóloga estadunidense Ruth Benedict expõe de modo resumido as considerações
analíticas e políticas encontradas em um dos capítulos de sua principal obra, publicada
naquele mesmo ano. Se Padrões de Cultura viria a ser considerada a pedra de sustentação
para toda uma geração de antropólogos reunidos sob o rótulo da escola “cultura e
personalidade” e também um marco no fazer antropológico dos Estados Unidos durante boa
parte do século XX, o direcionamento de seu artigo marcou decisivamente um outro debate
que também estava presente em seu livro. Ao se engajar explicitamente na interlocução com
aquilo que Benedict (1934) chamou de “psicologia anormal” - a começar pelo local da
publicação de seu artigo –, a antropóloga realizava uma defesa da relatividade cultural da
suposta “anormalidade” de certos sujeitos, argumentando que precisávamos não apenas
relativizar o domínio da ética e da moral de cada povo, mas também de nossas próprias
avaliações sobre o que consideramos um comportamento dentro da “normalidade”.
Para provar seu ponto, uma série de casos são elencados por ela em seus dois trabalhos
(1934; 2013), indo desde a prática homoafetiva mencionada no Banquete de Platão até as
relações “megalomaníacas” das populações indígenas da costa noroeste da América do Norte,
com suas riquezas e suas propriedades materiais dispostas na realização do potlatch. Como
escreveu o antropólogo Clifford Geertz (2005, pp.148-149) a respeito da obra da autora, em
todas essas menções há a operação do contraste com um termo implícito sempre presente: sua
própria cultura. Nesse quesito, chama a atenção sua afirmação logo em um dos primeiros
parágrafos do artigo em questão:
O caso mais notório dessa [relatividade cultural da anormalidade] é o transe e a
catalepsia. Mesmo um místico muito moderado é uma aberração em nossa cultura.
No entanto, a maioria dos povos considera até mesmo as manifestações psíquicas
extremas não apenas como normais e desejáveis, mas também como características
de indivíduos altamente valorizados e talentosos. Isso era verdade até mesmo em
nosso próprio pano de fundo cultural, no período em que o catolicismo fez da
experiência do êxtase a marca da santidade. Nascidos e criados em uma cultura que
não faz uso dessas experiências, é difícil para nós perceber a importância do papel
que elas podem desempenhar e a quantidade de pessoas que seriam capazes de
experienciá-las caso elas conquistassem um lugar de honra em qualquer sociedade.
(Benedict, 1934, p.60, tradução minha)

Ao contrário da posição de anormalidade que a cultura ocidental da primeira metade


do século XX trataria as “manifestações psíquicas” de certas religiões ou práticas espirituais
12

ao tomá-las como correlatas às experiências dos sujeitos neuróticos ou psicóticos, grupos


indígenas como os shasta, da região da atual Califórnia, percebiam as experiências de transe
de certas mulheres como indícios de seus prestigiosos poderes xamânicos. De modo similar,
se os xamãs da Sibéria passavam por “convulsões catalépticas” para que pudessem praticar
seu ofício, o sujeito convulsionado era considerado por seus companheiros para uma posição
de liderança na qual apenas indivíduos com grandes poderes sobrenaturais poderiam ocupar
(Benedict, 1934, pp.60-62; 2013, pp.179-182). Não haveria, desse modo, uma condição
natural e universalizável da anormalidade psicológica, mesmo no caso da experiência do
transe religioso e/ou espiritual, considerado por ela como exemplar desse debate. Em vez da
presença de sintomas fixos absolutos e generalizáveis (Benedict, 1934, p.76), essas
experiências só seriam anormais em relação ao padrão elaborado pelas culturas, em sua
escolha frente ao arco de possibilidades comportamentais da humanidade. Se os sujeitos que
experienciam transes são marginalizados por nós por considerá-los psicóticos, em outras
culturas suas tendências inatas seriam reforçadas, ocupando posições de prestígio social.
Ao realizar um balanço histórico da produção da antropologia médica estadunidense, o
antropólogo Byron Good (1994) argumenta que as duas obras de Benedict foram produções
fundamentais para a constituição de uma tradição relativista da área. Em especial, chama a
atenção uma das linhas que Good afirma ter sido continuada na literatura que intersecciona a
antropologia e a psiquiatria. Interessada em experiências como as do transe e do êxtase, essa
linha em questão parte do argumento de Benedict de que “os xamãs de muitas sociedades
seriam considerados seriamente perturbados em nossa própria sociedade” (Good, 1994,
pp.33-34, tradução e ênfase minha). Ainda de acordo com o antropólogo, duas direções foram
seguidas a partir do problema inicial formulado por Benedict em torno dessa conexão. Por um
lado, parte da literatura se interessou pela possibilidade dos xamãs de outros grupos sociais
serem sujeitos diagnosticáveis com o transtorno esquizofrênico, mas situados em um
ambiente cultural que apoia e recebe de forma positiva seus comportamentos considerados
pela psiquiatria como psicopatológicos. Por outro, pesquisadores da área passaram a explorar
as elaborações culturais em torno dos fenômenos de transe e de possessão, tendo mais
recentemente havido um renovado interesse na comparação desses fenômenos com os
transtornos dissociativos presentes nos Estados Unidos.
Nesta dissertação, estou interessado nos debates levados a cabo por dois grupos de
atores que dão continuidade a essa linha inaugurada por Benedict, se separando de modo
13

semelhante – mas não idêntico – à bifurcação indicada por Good. Mais especificamente, o
objeto deste trabalho é a produção de atores estadunidenses da psicologia transpessoal e dos
estudos psiquiátricos e psicológicos sobre dissociação. Desde os anos 1980 esses atores vêm
colocando em circulação um tipo de abordagem que, de acordo com eles, resguarda
determinadas experiências religiosas e/ou espirituais de um processo de total patologização
por parte dos saberes psi.
Foi a partir da inclusão das categorias “problema religioso e espiritual” e “transtorno
de transe dissociativo” na edição de 1994 do principal manual de categorias diagnósticas
psiquiátricas dos Estados Unidos, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM), que as propostas particulares dos autores foram alçadas ao conhecimento do
mainstream da psiquiatria nos Estados Unidos. Além disso, essa movimentação por dentro
das classificações diagnósticas aponta para como esses debates dizem respeito a fenômenos
normalmente enquadrados como patológicos pela psiquiatria, como as experiências místicas
mencionadas por Benedict em suas obras dos anos 1930.
Embora eu me volte primordialmente para artigos científicos, teses e dissertações
acadêmicas, livros técnicos e materiais variados (como conferências, entrevistas públicas e
materiais de cursos especializados), a participação em eventos sobre a temática geral ao longo
de 2019 me permitiu tanto realizar uma primeira aproximação do campo quanto notar as
associações que uma gama variada de atores brasileiros fazem dos debates estadunidenses ou
dos diagnósticos em particular. Três desses eventos me chamaram a atenção pela sua
variedade de natureza e pelas referências diretas de alguns palestrantes às categorias
diagnósticas aqui analisadas. O primeiro deles foi o 13º Encontro Holístico Brasileiro,
realizado nas dependências da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
(PUCRS), em Porto Alegre. O evento tinha como público-alvo os terapeutas holísticos, e os
temas da religião e da espiritualidade emergiam com certa constância. Em uma das
apresentações que tinha como assunto a ligação da glândula pineal com os fenômenos
espirituais, o palestrante mencionara a categoria de “estados de transe e possessão” da
Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID-10) como uma espécie de
reconhecimento do mainstream psiquiátrico da existência desses fenômenos.
O segundo desses eventos foi o 2º Congresso Internacional em Saúde e
Espiritualidade, realizado em Juiz de Fora e organizado pelo Núcleo de Pesquisa em
Espiritualidade e Saúde (NUPES) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Juiz
14

de Fora (UFJF). Se o NUPES é talvez hoje um dos grupos de maior destaque no país em
pesquisas e produções acadêmicas da área médica sobre a relação entre religião,
espiritualidade e saúde, não foi um membro do grupo que fez menção à categoria de
“problema religioso ou espiritual” em sua palestra, mas sim um pesquisador com
contribuições importantes na área dos estudos sobre dissociação. Em sua fala sobre os
fenômenos de transe e de outros estados alterados de consciência, a inclusão da categoria no
DSM foi descrita como um passo importante para a despatologização dessas experiências.
Por fim, o terceiro e último dos principais eventos que acompanhei foi o Repensando a
Loucura, organizado por um grupo de psicólogos transpessoais com o apoio do Programa de
Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSER), ligado ao Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas, vinculado à Universidade de São Paulo (USP), local onde foi realizado
o encontro. Nesse dia, além do contato inicial com os debates sobre a psicologia transpessoal,
foi transmitida uma fala do psicólogo transpessoal David Lukoff, principal proponente da
categoria “problema religioso ou espiritual” – gravada especialmente para o evento –, em que
ele narrava parte da história da proposição da categoria e os desdobramentos em sua própria
trajetória profissional. Naquele espaço, seu trabalho terapêutico era considerado uma
inspiração, e a existência da categoria era tida como uma vitória institucional da psicologia
transpessoal. Seria possível citar ainda a realização do 3º Congresso Internacional em Saúde e
Espiritualidade em 2020, que contava como conferencista principal o psiquiatra transpessoal
Francis Lu, também um dos proponentes dessa categoria. No entanto, devido à eclosão da
pandemia do novo coronavírus e do aumento do número de casos no Brasil e nos Estados
Unidos, a participação de Lu no evento realizado em março daquele ano foi limitada a uma
fala gravada e transmitida, tendo eu mesmo tomado a difícil decisão de não comparecer ao
congresso.
Esses casos indicam como esses diagnósticos e os debates engendrados por eles são
mobilizados por diversos atores no Brasil para fins diversos. Eles convergem, no entanto, em
um sentido de reivindicação da possibilidade de certas experiências religiosas e/ou espirituais
não serem encaradas necessariamente como patologias por parte da psiquiatria e da
psicologia. Além disso, esses debates instituem de modos particulares de concepção de
experiências ligadas a religião e a espiritualidade como objetos de atenção dos saberes “psi”.1

1 Aproprio-me da noção de saberes “psi” da mesma forma como utilizada por Jane Russo (2004) em sua
formulação sobre o campo psi, designando de modo geral os saberes da psicanálise, psicologia e psiquiatria.
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De fato, há um recente interesse por parte de diversas disciplinas da área médica no


manejo clínico, ensino universitário e na produção de pesquisas sobre o tema da
espiritualidade em sua relação com a saúde humana. É sobre esse fenômeno geral e sobre o
caso brasileiro envolvendo uma série de atores e instituições médicas que o projeto
Espiritualidade Institucionalizada, coordenado por Rodrigo Toniol, vem se dedicando nos
últimos anos. Com alguns deslocamentos e continuidades, a pesquisa apresentada nesta
dissertação compõe uma frente desse esforço mais amplo que agrega diversos pesquisadores
interessados em aspectos particulares desse fenômeno.
Grupos como o Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (NUPES) da UFJF e o
Programa de Saúde, Espiritualidade e Religiosidade (ProSer) da USP são alguns dos quais
reúnem atores da psiquiatria e realizam pesquisas que interessam a outros investigadores do
projeto mais amplo. Além disso, eles também ocupam uma posição importante nesta pesquisa
por terem atuado como porta de entrada aos debates analisados. Isso porque enquanto os
eventos mencionados acima ocorreram com a pesquisa em desenvolvimento, meu primeiro
contato com as categorias diagnósticas do DSM se deu a partir das produções acadêmicas
desses atores brasileiros, ao mobilizarem essas categorias como uma forma de legitimar suas
próprias conclusões e investigações. Em vez de me centrar nesses atores, nesta dissertação
busco esmiuçar os debates envolvidos especificamente na inclusão e proposição das
categorias “transtorno de transe dissociativo” e “problema religioso ou espiritual” no DSM-
IV, me atentando a como o guia de diagnósticos e os propositores dessas duas categorias
diagnósticas formulam considerações distintas em torno da questão da religião e da
espiritualidade. Nesse sentido, os psiquiatras e psicólogos brasileiros aparecem nesta
dissertação de modo lateral, me referindo a eles com maior ênfase no segundo capítulo,
quando tomo suas produções como exemplos referentes aos estudos sobre dissociação
psicológica.
Ao tratar dos profissionais da saúde mental, esta dissertação lida ainda com outro
deslocamento em relação ao conjunto de pesquisas médicas em geral. Isso porque as
produções pelas quais estou interessado dizem respeito a fenômenos que possuem um estatuto
mais ambíguo frente a uma possível tentativa de positivação terapêutica, por serem
normalmente enquadrados como possíveis alucinações ou delírios, tomando-os como
sintomas da existência de uma psicopatologia. Se o caso da psicologia transpessoal é
particular dessa tentativa de positivação, os atores e suas proposições também desse grupo
16

tendem a assumir um caráter eminentemente reativo. Como os próprios atores constantemente


enfatizam na seção introdutória de suas produções acadêmicas, a necessidade de tal
movimentação se dá como uma reação à história conturbada das relações que a psiquiatria e o
campo “psi” em geral mantiveram com a religião.
Embora haja a referência ao posicionamento de expressa reserva ou recusa frente a
atitudes e sentimentos religiosos por parte de autores importantes no campo disciplinar –
como o exemplo sempre presente de Sigmund Freud2 –, a história entre as associações entre
religião e loucura parecem ser anteriores à própria constituição da psiquiatria e da psicologia
modernas. Ao menos é isso o que nos indica Michel Foucault (2017, p.462), ao mencionar de
passagem a questão do alienismo inglês e dos grupos quakers na Inglaterra do século XVIII.
Por outro lado, como ressalta o literato Stefan Andriopoulos (2014, pp.86-88), é bem
conhecido o interesse da escola francesa de psiquiatria fisiológica da segunda metade do
século XIX, encabeçada por Jean-Martin Charcot, nas analogias estabelecidas entre as
possessões demoníacas e as mulheres histéricas sob seus cuidados – chegando-se à realização
de uma leitura em retrospecto dos fenômenos da Idade Média e do início da modernidade
como verdadeiros ataques histéricos. Em relação aos Estados Unidos, a utilização da categoria
de “insanidade religiosa” ao longo do século XIX (Geppert, 2019) e a mais recente ênfase da
percepção do misticismo como uma manifestação patológica (Deikman, 1977) ou da
ilustração dos transtornos mentais a partir da descrição de certas crenças religiosas como
pensamentos delirantes (Post, 1992) atestam a continuidade e transversalidade dessa tendência
geral da área.
O caso brasileiro parece ser paradigmático dessa mesma situação histórica. Como
diversos trabalhos da área das ciências sociais e da história apontam (e.g. Dantas, 1988;
Giumbelli, 1997a; 1997b; Almeida, 2007), as religiões afro-brasileiras e o espiritismo
kardecista foram tomados como objeto do saber psiquiátrico no Brasil desde ao menos a
atuação do médico legista Raimundo Nina Rodrigues, no final do século XIX. Se suas
hipóteses baseadas no racismo científico da época não foram necessariamente replicadas pelas
gerações posteriores de médicos psiquiatras,3 sua caracterização patologizante do fenômeno

2 Para ficar apenas em um dos exemplos mencionados na literatura (Lukoff; Lu; Turner, 1992), um caso é a
abertura de O mal-estar na civilização, em que Freud (2011) qualifica o “sentimento oceânico” ligado às
religiões como uma espécie de regressão narcísica.
3 Para Nina Rodrigues, a possessão praticada nos terreiros das religiões de matriz africana se caracteriza como
um “estado de sonambulismo provocado” por práticas rituais. Tal estado sugestionado seria possível devido
ao atributo naturalmente histérico dos praticantes religiosos, por seu pertencimento à raça negra (Giumbelli,
1997b, pp.43-44).
17

possessivo nas religiões de matriz africana e do transe mediúnico no espiritismo kardecista


continuou a ser operada de modo mais ou menos explícito ao longo do século XX no discurso
psiquiátrico brasileiro (Almeida; Oda; Dalgalarrondo, 2007). De modo similar, como atestam
as produções descritas pelo psiquiatra Paulo Dalgalarrondo (2007), o interesse analítico de
Nina Rodrigues pela revolta de Canudos e pela figura de Antônio Conselheiro (Monteiro,
2015) produziu reverberações na disciplina, tendo os movimentos messiânicos e o misticismo
de modo geral sido constantemente debatidos sob uma ótima patologizante em trabalhos
psiquiátricos no século XX.
A partir da reivindicação de contribuições antropológicas e de tradições paralelas nos
saberes psi – como o interesse de Carl Gustav Jung pelas filosofias asiáticas ou as sempre
mencionadas palestras do filósofo e psicólogo William James (1991) sobre experiências
religiosas –, esses atores afirmam se colocar contra um mainstream disciplinar alheio ou
avesso aos fenômenos religiosos e espirituais, posição sedimentada em décadas ou séculos de
produção de saber. Ao mesmo tempo, a relação estabelecida por Benedict entre experiências
“místicas” de sua própria cultura e de outros grupos com as classificações de transtornos
mentais pela psiquiatria moderna continuou em ação no debate estadunidense e mesmo no
brasileiro. Como indicarei ao longo desta dissertação, me parece que a dimensão da diferença
seja central a essas produções, sendo ela própria rearticulada de diversas formas, como no
debate que abordarei no primeiro capítulo entre a suposta universalidade ou particularidade
dos transtornos mentais apresentados no quadro nosológico estadunidense. Para que o debate
ocorra, a referência às “outras culturas” e à antropologia como a disciplina especializada na
“diferença cultural” será essencial de distintas formas, na medida em que as comparações
entre “nós” e “eles” produz tanto uma ligação (nossos místicos são os xamãs deles / há em
operação o mesmo mecanismo psicológico) quanto um afastamento (são tratados de modo
distinto pelas suas culturas), sempre em relação ao tema dos transtornos mentais. Será em
torno dessa triangulação de base feita por Benedict que as reivindicações dos atores se darão,
colocando em disputa as sensibilidades dos saberes diante das fronteiras entre as
psicopatologias e as experiências religiosas e/ou espirituais.

A religião, as ciências médicas e os saberes “psi”


Meu interesse pelas relações entre as ciências médicas e a religião está em grande
medida refletida em minha pesquisa anterior, quando investiguei a participação de médicos na
18

etapa de verificação de milagres nos processos burocráticos de canonização levados a cabo


pela Igreja Católica (Baccetto, 2019). Nesses processos, os médicos atuam na qualidade de
peritos da natureza dos corpos, avaliando objetos como os resultados de exames de
radiografia, eletroencefalogramas e tomografias cerebrais, e elaborando um parecer em que
atestam a inexplicabilidade científica de uma cura física. Dei especial atenção a como era
realizado o trabalho pericial desses atores, no modo como formulavam enunciados sobre o
caso analisado e, a partir da mobilização dos depoimentos de testemunhas e de outros objetos
dispostos como provas, eles constituíam o evento como um acontecimento miraculoso. Como
essa etapa se trata de um momento fundamental da investigação burocrática que não apenas
institui a existência oficial de um milagre católico mas também reconhece a santidade dos
candidatos ao título, me interessou nesse processo como os médicos se tornam os únicos
atores capazes de reconhecer os sinais do sagrado materializados em objetos muito
particulares, ligados à prática médica (Baccetto, 2018).
Assim como em minha pesquisa anterior, a aposta desta dissertação é a de que as
ciências médicas ocupam um lugar fundamental na constituição da religião e da
espiritualidade como fenômenos modernos. Essa aposta parte dos trabalhos de Talal Asad
(1993; 2003) na medida em que me interessa pensar esses fenômenos para além deles
mesmos, em suas relações com dinâmicas mais abrangentes que os constituem como
propriamente uma “religião” ou uma “espiritualidade” na modernidade. No entanto, se antes
meu objeto de análise se dava a partir das dinâmicas da própria Igreja Católica – uma vez que
analisava um processo investigativo colocado em prática pelo Vaticano –, nesta dissertação
me volto para o discurso psiquiátrico a partir de suas articulações internas, analisando o modo
como coletivos e atores produzem a religião e a espiritualidade como experiências
distinguíveis ou não de uma psicopatologia. Nesse sentido, o objeto desta dissertação é
distinto de minha pesquisa anterior na medida em que me desloco do espaço interior da
religião para sua exterioridade. Em alguma medida, observar as produções psi de anos
recentes é estender para além das instituições estatais a proposta elaborada pelo antropólogo
Emerson Giumbelli (2013) de se pensar as formas de regulação do religioso, tendo como
aposta os vínculos paraestatais e a capacidade de intervenção social presentes nesse campo
disciplinar (Foucault, 2006; 2014).
É preciso partir da premissa que a psiquiatria, em especial, mantém ainda uma relação
íntima na produção e no gerenciamento da divisão entre a normalidade e a anormalidade na
19

sociedade. Ao menos desde o pioneiro trabalho de Foucault (2017) em sua arqueologia da


questão da loucura entre os séculos XVI ao XIX, estamos cientes das relações intrínsecas
estabelecidas pela disciplina com a produção do espaço da loucura e com as redes
institucionais de poder que separam concretamente aqueles sujeitos considerados loucos do
convívio em sociedade. A psiquiatria moderna seria precedida historicamente por uma divisão
baseada em critérios morais, em uma estrutura perceptiva na qual se separava o louco devido
a seus comportamentos que iam contra a razão pública. Nesse sentido, a disciplina teria
ocupado esse mesmo espaço, rearticulando essa divisão a partir de seus próprios termos. Essa
indicação da relação intrínseca entre o ordenamento social e a prática psiquiátrica em sua
dimensão governável do comportamento social desviante é explicitada na formulação de
Robert Castel (1978), para quem a psiquiatria operaria como uma gestão técnica dos
antagonismos sociais em sua administração da loucura. Ainda que o tempo das instituições
asilares analisadas por esses autores já tenha passado, concordo com Nikolas Rose (2019)
quanto à afirmação de que o espraiamento da psiquiatria em uma rede de instituições mais
complexa e difusa no tecido social não extingue uma presença normalizadora e coercitiva em
sua operação.
A esse respeito e sobre o próprio material empírico desta dissertação, é importante
retomarmos a questão do diagnóstico psiquiátrico. Sobre a prática de estabelecimento de
diagnósticos na medicina em geral, Charles Rosenberg (2002) argumenta que se trata de um
processo absolutamente fundamental na constituição social da realidade dos fenômenos de
saúde-doença e na organização das respostas terapêuticas oferecidas às enfermidades. O
diagnóstico opera como um mediador que conecta o corpus teórico das várias especialidades
da medicina com casos particulares de pessoas em um processo de adoecimento. Ao fazer
isso, a experiência contingente de adoecimento é estabilizada e enquadrada a partir da
categorização diagnóstica, “facilitando decisões clínicas particulares e providenciando
sentidos culturais já acordados para a experiência individual” (Rosenberg, 2002, p.240,
tradução minha), mas também realocando-a em conjuntos burocráticos mais amplos, que
envolvem desde planos privados de saúde até os próprios sistemas públicos de saúde.
Embora essa dimensão pragmática do diagnóstico seja indispensável para entendermos
as dinâmicas cotidianas das práticas dos profissionais de saúde em geral, é importante nos
atentarmos à especificidade do caso psiquiátrico. Como apontei e como Rosenberg (2006)
ressalta em outro momento, a questão é que a psiquiatria e os saberes psi em geral envolvem
20

práticas diagnósticas que instituem a delimitação de certos comportamentos sociais como


condições patológicas e, portanto, anormais. Para Foucault (2006, p.321), ao pensarmos os
diagnósticos como uma das tecnologias disciplinares postas em operação por parte da
psiquiatria, notamos como a questão fundamental para a área se trata menos da especificação
de um diagnóstico diferencial, isto é, de classificar corretamente aquilo que o sujeito padece.
Em vez disso, o diagnóstico psiquiátrico opera em uma dimensão ainda mais elementar, na
medida em que deve responder à pergunta fundante se tal indivíduo é de fato louco ou não.
Assim, embora o processo de patologização seja extensivo a toda a área médica, há uma
associação inevitável dos saberes psi na localização de uma certa desrazão por parte do
sujeito, invalidando como anormalidade suas crenças e práticas ligadas ao fenômeno sob
escrutínio.
Como venho afirmando nesta introdução e como espero deixar evidente ao longo da
dissertação, os autores e atores dos saberes psi nos quais me debruçarei afirmam se posicionar
criticamente a uma patologização completa de certos fenômenos religiosos e espirituais –
ainda que o grau dessa crítica seja variável. Embora possa parecer paradoxal que a proposição
de categorias diagnósticas poderia atuar como uma porta de entrada à possível normalidade do
fenômeno em questão, é preciso enfatizar as particularidades dessas categorias que estou
interessado. Enquanto “transtorno de transe dissociativo” estabelece critérios de não-aplicação
do diagnóstico, “problema religioso e espiritual” não opera propriamente como um
diagnóstico no sentido corrente do termo. No primeiro, embora continue a atuar como um
marcador de um estado psicopatológico, veremos como a questão da cultura e do indivíduo
emergem como critérios que permitiriam o reconhecimento de uma experiência de transe ou
de um estado possessivo considerado normal, isto é, não patológico, no qual o diagnóstico não
é aplicável. Já no segundo, a categoria não funciona propriamente como um diagnóstico
porque ela busca instituir uma espécie de “freio” à patologização da questão da religião e da
espiritualidade, argumentando que muitas das ocorrências trazidas à clínica e à terapia se
tratam não de transtornos mentais propriamente ditos, mas sim de dificuldades psicológicas
normais.
Uma possível interpretação dessa inclusão de questões referentes à religião e à
espiritualidade no DSM é a que ela diria respeito ao desenvolvimento do processo de
medicalização da sociedade. Como veremos brevemente no início do segundo capítulo, esse é
um argumento utilizado implicitamente por um dos interlocutores envolvidos nos debates
21

sobre a dissociação psicológica e as possessões espirituais. Embora esse conceito seja


utilizado de formas variadas na já bem consolidada literatura sobre o tema (Zorzanelli;
Ortega; Bezerra Júnior, 2014), é a definição de Peter Conrad que parece dar melhor conta da
abertura dos fenômenos abarcados pelo conceito. Para o autor, medicalização “descreve o
processo pelo qual problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como problemas
médicos, frequentemente em termos de doenças ou transtornos” (Conrad, 2007, p.4, tradução
minha). A partir dessa definição, embora seja plausível o argumento de que o objeto analisado
nesta dissertação coloca em movimento um processo de medicalização da religião e da
espiritualidade, me parece que a variedade de sentidos do conceito na literatura possa produzir
alguns mal-entendidos.
Como indica Didier Fassin (2011), há uma generalização no modo como o conceito é
mobilizado, eclipsando particularidades empíricas em prol de um movimento mais amplo,
produzindo assim um efeito homogeneizador. A esse respeito, me parece produtiva a proposta
do autor de repensar a medicalização como uma dentre outras formas de problematização, isto
é, como uma configuração particular em que atores, discursos e práticas concretas instituem a
realidade de objetos e sujeitos a partir de um campo de problemas. No caso dos saberes psi,
trata-se assim de se pensar como a psiquiatria e a psicologia problematizam fenômenos e
experiências associadas à religião e à espiritualidade em situações específicas. Para Fassin, a
vantagem desse leve deslocamento analítico é exatamente a de reencontrar as formas
diferenciais e historicamente situadas de processos que, sob a afirmação da medicalização,
parecem ser homogêneos. Ao mesmo tempo, falar em problematizações permite que
localizemos com maior facilidade uma questão reforçada por outros autores (Sholl, 2017;
Zorzanelli; Ortega; Bezerra Júnior, 2014) e por ele próprio, a respeito do reconhecimento da
diferença entre o que seria o deslocamento de problemas não médicos para a ordem médica
(medicalização) e o processo de tomada de comportamentos e fenômenos por parte dos
saberes da saúde como indicativos ou constitutivos de um processo mórbido (patologização).
Retomo suas considerações por dois motivos em relação ao objeto desta dissertação. O
primeiro deles diz respeito à afirmação de que a inclusão das categorias diagnósticas
“transtorno de transe dissociativo” e “problema religioso e espiritual” envolvera um processo
de medicalização no sentido estrito do termo. Embora seja verdade que a criação dessas
categorias diga respeito a um fenômeno no qual psiquiatras tomam a religião e a
espiritualidade como um objeto de seu discurso e de sua intervenção terapêutica, é preciso
22

lembrarmos que tal situação já ocorria antes. Mais do que isso, os próprios atores envolvidos
nesses debates reconhecem que os saberes psi tomavam essas experiências sob uma ótica
negativada. Assim, de forma análoga ao que afirma Fassin (2011, p.88, tradução minha) a
respeito do caso das relações da medicina francesa com o consumo de drogas, “não é que a
medicalização tenha ocorrido, mas sim que seu significado mudou”.
O segundo motivo da mobilização de sua proposta remete exatamente a essa
modificação da problematização da religião e da espiritualidade por parte dos saberes psi. Se
os autores argumentam que antes a psiquiatria e a psicologia patologizavam de partida alguns
tipos de experiências religiosas ou espirituais – e a história dessas disciplinas dá razão a essa
afirmação –, trata-se agora de estabelecer critérios que permitiriam reconhecer a normalidade
de certas experiências a partir de uma compreensão psicologizada, distinguindo-as de
fenômenos psicopatológicos. Desse modo, podemos compreender melhor as particularidades
envolvidas em um processo que tanto se mantém sob o olhar dos saberes psi, como se altera
em seu modo de concepção da questão.
Um possível terceiro motivo da adoção do conceito de problematização nesta
dissertação se refere ao fato de meu objeto se estender para além da psiquiatria e,
consequentemente, da área médica. De fato, será no primeiro capítulo que me debruçarei com
maior ênfase nessa disciplina. No entanto, mais do que a respeito dessa especialidade da
medicina, esta dissertação se refere mais amplamente à psiquiatria e à psicologia, abarcadas
sob a categoria guarda-chuva de saberes psi.4 No segundo e no terceiro capítulo será a
psicologia que ocupará especialmente a centralidade de minha investigação, no momento no
qual analisarei com maior ênfase os debates a partir dos quais essas categorias foram
produzidas. Assim, conjuntamente a um possível processo de medicalização, ocorre aqui
também a psicologização da religião e da espiritualidade.
A esse respeito, são os trabalhos de Luiz Fernando Dias Duarte (1986) e de Jane
Russo (1993) que melhor dão conta do fenômeno da psicologização. Embora outros sentidos
possam ser apreendidos do uso do termo, aqueles que mais me interessam aqui dizem respeito
tanto à ideia da psicologização como a produção da noção da interioridade, em um processo
de individualização da noção de pessoa, quanto da difusão dos saberes psi e de suas
concepções em outras disciplinas acadêmicas e outros âmbitos da realidade social. Nesse
sentido, como sugerem os autores junto de Ana Teresa Venancio, vemos como ambas as

4 Embora a psicanálise seja uma das “pernas” desse tripé, não tratarei dela nesta dissertação.
23

dinâmicas se encontram inevitavelmente entrelaçadas, dado que é exatamente pela difusão


dos saberes psi que o processo de individualização e psicologização dos sujeitos se espraia
com maior vigor (Venancio; Russo; Duarte, 2005, p.7).
Como veremos no segundo e no terceiro capítulo, estaremos diante de um processo de
produção psicologizada da religião e da espiritualidade. Do mesmo modo como no debate
envolvendo a medicalização, o importante aqui será destrinchar como efetivamente ocorre
esse processo, na medida em que a literatura sobre dissociação e a psicologia transpessoal
concebem o sentido da relação entre o sujeito e o sagrado de formas distintas. Se no caso do
capítulo 2 a possessão espiritual e o transe religioso são decompostos como um mecanismo
psicológico universal que é utilizado por parte de instituições culturais para o acesso ao
sagrado, no capítulo 3 é o próprio espaço da interioridade psicológica do sujeito que se torna
sacralizado. Essa forma de conceber a questão produz efeitos para o próprio entendimento das
relações entre religião e espiritualidade, assim como para a possibilidade do estabelecimento
de critérios que reconheçam a existência ou não de um transtorno mental.
Quanto à questão da difusão das concepções dos saberes psi, especial atenção será
dada ao papel da antropologia e de seus praticantes no desenvolvimento dos debates
apresentados. O material que tive contato durante a investigação me apresentou
sistematicamente antropólogos que participaram ativamente como atores ou como referências
bibliográficas basilares na produção dos argumentos e reivindicações de meus interlocutores.
Em certo sentido, seria possível dizer que esta dissertação também se debruça sobre a relação
entre os saberes psi e a antropologia, especialmente quando entendemos essa disciplina a
partir de sua definição como uma ciência da cultura e da diferença, a partir de certa tradição
estadunidense. Seguindo os esforços de Duarte (2000; 2017) quanto à psicanálise, trata-se
assim de observamos como se dão e operam alguns casos de relações íntimas entre a
psiquiatria e a psicologia junto da antropologia. Nesse caso, veremos como tanto a
antropologia partirá de concepções psicologizantes do sujeito – quando a psicologização
opera como uma “provedora de a priori”, já indicado por Sérvulo Figueira (1985, p.10) –,
como também dará sua própria contribuição para esse processo de psicologização.
O objeto desta dissertação se constitui no nível discursivo da realidade, centrado nos
debates realizados na literatura acadêmica e científica. Ainda que fosse um objetivo possível
de investigação, este trabalho não tem a pretensão de realizar um balanço global dessas
literaturas dos saberes psi sobre o tema da religião, da espiritualidade e de suas ligações com
24

as psicopatologias. Também não se trata da realização de uma arqueologia propriamente dita,


na medida em que não busco uma análise voltada à verticalidade histórica, a despeito de
minha menção às obras de Ruth Benedict. Em vez da aposta do balanço teórico ou da
investigação diacrônica, meu intuito é o de apontar para como se dão as formas de operação
das produções postas em circulação a partir desses debates. Trata-se de uma análise realizada
a partir de um corte sincrônico e de baixa profundidade temporal, buscando apreender como a
mobilização de certos artefatos de várias ordens tendem a operar na produção dos interesses,
argumentos e debates alavancados pelos variados atores engajados na questão. Nesse sentido,
as retomadas históricas que farei ao longo desta dissertação serão guiadas em grande medida
pelas referências bibliográficas de meus interlocutores, a partir das obras, textos e conceitos
que eles mobilizam na formulação de seus enunciados.
Mesmo que eu não esteja propondo a execução de um trabalho de profundidade
histórica, as obras de Foucault (2011; 2017) são fundamentais para minha análise na medida
em que realizam um percurso metodológico que me permite estar atento a como o discurso
psiquiátrico institui seus objetos do saber a partir de articulações que se dão entre as ordens
conceitual e perceptiva, das sensibilidades dos sujeitos. Esse me parece ser um ponto crucial
porque, como venho argumentando nesta introdução, o que está em jogo é a possibilidade de
uma compreensão da religião e da espiritualidade por parte dos psiquiatras e psicólogos, sem
patologizar as experiências vinculadas a elas de partida. Para que esse projeto convença e
possa fazer sentido para seus próprios propositores, uma série de conceitos devem ser
mobilizados na constituição de um objeto passível de compreensão e enunciação.
Meu argumento se baseia nas proposições teóricas elaboradas por Ludwik Fleck
(2010) em sua investigação da gênese e consolidação do teste sanguíneo da “reação de
Wassermann” como um instrumento eficaz de diagnóstico da presença da sífilis no corpo
humano. O trabalho do autor é importante nesta dissertação na medida em que situa a
produção de conhecimento dos saberes em geral a partir de suas condições sociológicas e
epistêmicas. Para tanto, Fleck estabelece os conceitos de “coletivo de pensamento” e “estilo
de pensamento”. Se o primeiro deles dá conta de apontar para como certos atores formam
uma comunidade de produção de conhecimento na qual compartilham uma determinada
forma de conceber e problematizar seus objetos de investigação, o estilo de pensamento diz
respeito propriamente a essa forma compartilhada de pensamento.
25

O conceito de estilo de pensamento é importante por se atentar especialmente para a


relação necessária entre o conhecimento produzido conjuntamente por uma série de atores do
campo disciplinar e as formas de percepção do objeto a ser conhecido. Nesse sentido, como
sugerem Lothar Schäfer e Thomas Schnelle (2010, p.16), o conceito dá conta de apreender os
pressupostos sobre os quais a atividade de produção de conhecimento pode ser realizada. Nas
palavras do próprio Fleck (2010, p.110):
O estilo de pensamento não é apenas esse ou aquele matiz dos conceitos e essa ou
aquela maneira de combiná-los. Ele é uma coerção definida de pensamento e mais: a
totalidade das disposições mentais, a disposição para uma e não para outra maneira
de perceber e agir. Evidencia-se a dependência do fato científico em relação ao
estilo de pensamento.

A dependência de que Fleck fala entre o “fato científico” e o estilo de pensamento é


aquela que afirma a absoluta necessidade da mediação de uma série de conceitos e
instrumentos para que o objeto do conhecimento possa emergir enquanto tal (ver também
Latour, 2005; 2011). Mais do que isso, trata-se do reconhecimento da existência de uma
estrutura epistêmica, um arranjo no qual os conceitos mobilizados se relacionam entre si de
uma forma determinada na produção do objeto do saber.
Essa aposta na análise de estruturas epistêmicas ou conceituais se aproxima
substancialmente da distinção realizada por Foucault (2016) entre conhecimento e saber.
Enquanto o primeiro diria respeito aos enunciados considerados verdadeiros em oposição aos
falsos, o saber se refere às próprias regras que determinam a distinção de um enunciado falso
de um verdadeiro (ver Hacking, 1986). Se relativizarmos a oposição estabelecida por Foucault
(2017) entre os níveis perceptivo e conceitual em sua análise sobre a história da loucura,
passando a entendê-los como níveis mutuamente constitutivos (algo que o próprio autor já
realiza em suas obras posteriores), podemos melhor compreender as condições necessárias
para que uma afirmação como a da possível normalidade de certas experiências religiosas ou
espirituais possa ser realizada. Nesse sentido, meu interesse nesta dissertação se dá nas
condições de possibilidade da enunciação dessa normalidade, me centrando na rede de
conceitos utilizados pelos autores e em sua forma de operação na formulação que permite
tomar esses fenômenos como objetos do discurso dos saberes psi.
Para além do vantajoso deslocamento da questão da falseabilidade dos enunciados
para as condições de sua produção em um regime de verdade, essa posição me possibilita
ainda percorrer por trajetos empíricos transversais às fronteiras disciplinares como concebidas
academicamente. Isso permite que nos atentemos melhor a como um estilo de pensamento
26

psicogolizante opera a partir de empréstimos de conceitos e formulações da antropologia.


Mais do que isso, em determinados momentos veremos como um mesmo estilo de
pensamento é compartilhado pelos saberes psi e por parte das produções antropológicas. Esse
movimento metodológico ficará mais evidente no segundo e no terceiro capítulo, nos quais
me debruçarei respectivamente sobre os estilos de pensamento dos estudos sobre a
dissociação psicológica e sobre a psicologia transpessoal.

Sobre a estrutura
Esta dissertação está estruturada em torno das categorias diagnósticas “problema
religioso ou espiritual” e “transtorno de transe dissociativo”. No primeiro capítulo, abordo a
história do DSM, o guia estadunidense de categorias diagnósticas da psiquiatria no qual essas
categorias foram incluídas. Minha aposta é que a inclusão dessas categorias que possuem a
religião e a espiritualidade como tema de interesse só pode ser melhor compreendida a partir
de um movimento mais amplo na psiquiatria estadunidense, que diz respeito à disputa pela
sua “culturalização” no processo de elaboração do DSM-IV, publicado em 1994. Dessa
forma, apresento a história desses debates, me centrando especialmente nas propostas do
grupo de psiquiatras culturais e antropólogos médicos que se associaram nessa disputa e
analisando os elementos que foram de fato incluídos na versão final da quarta edição do
manual. Por fim, aponto para como os proponentes das categorias diagnósticas sobre religião
e espiritualidade se mobilizam junto a essa reivindicação, ao argumentarem que a inclusão de
seus diagnósticos reforçaria o processo de “sensibilização cultural” da psiquiatria
estadunidense. A partir da comparação com os casos contemporâneos de patrimonialização
cultural das religiões afro-brasileiras e da questão das “medicinas tradicionais” no âmbito da
Organização Mundial da Saúde (OMS), exploro as particularidades de se enunciar a religião e
a espiritualidade como “cultura”.
No segundo capítulo, desenvolvo a análise sobre a categoria diagnóstica de
“transtorno de transe dissociativo”, partindo de seu conteúdo apresentado no DSM e
expandindo o eixo de análise para os trabalhos de seus propositores. Argumento que os
fenômenos de transe e de possessão se tornam universais na medida em que são associados ao
funcionamento ao mecanismo psicológico da dissociação. Esses atores afirmam que tal
mecanismo é comum a todos os humanos, recobrindo desde eventos do cotidiano – como o
“sonhar acordado” – até transtornos mentais mais severos – como o transtorno dissociativo
27

de identidade. A universalidade desse mecanismo é particularizada a partir das “variações


culturais” da experiência do fenômeno, em especial dos “usos” feitos pelas culturas dessa
qualidade inata à humanidade. Ao final do capítulo, abordo como os psiquiatras e psicólogos
estabelecem critérios para o reconhecimento de um fenômeno psicopatológico (abarcado pela
categoria diagnóstica) e a exclusão de fenômenos considerados “culturalmente normais”, a
partir da mobilização de obras antropológicas que partem de um referencial “psicologizante”
sobre os fenômenos de transe religioso e possessão espiritual
Por fim, no terceiro e último capítulo, me debruço sobre a categoria de “problema
religioso ou espiritual” e os vínculos de seus propositores com a psicologia transpessoal.
Retraço a emergência desse ramo da psicologia a partir de seu entrelaçamento histórico e
epistêmico com a Nova Era, tomando a trajetória e as produções de seu principal propositor,
David Lukoff, como representativas do debate. Argumento que esse conjunto de atores
privilegiam a noção de “espiritualidade”, utilizando-a como um conceito que dá conta de uma
dimensão humana universal, abarcando um conjunto de fenômenos variados. Diferentemente
do “transtorno de transe dissociativo”, nesse caso os atores da psicologia transpessoal partem
da concepção de que episódios psicóticos ou associados a transtorno mentais podem ser, na
verdade, uma crise espiritual com potencial transformador e de crescimento ao sujeito
afetado. Desse modo, me atento a como experiências normalmente entendidas pela psiquiatria
como patológicas são “positivadas” a partir da comparação com práticas e mitologias de
grupos não-Ocidentais, analisando o caso específico da utilização do neoxamanismo.
28

Capítulo 1 – Religião e cultura no manual de diagnósticos

Neste capítulo, me debruçarei sobre a emergência nos anos 1990 de duas categorias
diagnósticas sobre religião e espiritualidade: transtorno de transe dissociativo e problema
religioso ou espiritual. Tratam-se de categorias incluídas originalmente na quarta edição do
Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM), o principal manual de
diagnósticos psiquiátricos dos Estados Unidos, editado e promovido pela Associação
Americana de Psiquiatria (APA). Apesar de algumas alterações, essas categorias foram
mantidas na quinta edição do DSM, publicada em 2013.
A inclusão desses diagnósticos está entrelaçada com a história do próprio manual.
Dessa forma, apresentarei em um primeiro momento as transformações epistêmicas ocorridas
na terceira edição do DSM, publicada em 1980, quando o manual abandonou uma orientação
de certo viés psicodinâmico em favor de uma orientação biologizante. Essa transformação
marcou os debates do campo disciplinar nas décadas seguintes, tendo sido a partir da crítica à
ênfase biologizante que um grupo de antropólogos médicos se aliou a psiquiatras, durante a
elaboração do DSM-IV, na proposição de mudanças consideráveis no quadro nosológico
apresentado no manual. Eles afirmavam que as dimensões “culturais” dos transtornos mentais
eram constantemente ignoradas. Argumentarei que o que estava em disputa na realização
dessa crítica cultural e nas propostas de modificações era o caráter supostamente universal ou
particular dos transtornos mentais apresentados no guia de diagnósticos. A reivindicação da
“cultura” opera nesse debate como um sinônimo para o “particular” e o “contextual”, sendo
ao mesmo tempo uma espécie de antídoto às pretensões universalistas das categorias
diagnósticas e a própria condição de possibilidade para a realização de um projeto universal
da psiquiatria. Por fim, tratarei do modo como as duas categorias diagnósticas se associaram a
essa espécie de disputa culturalista, na medida em que seus propositores produziram
justificativas que associavam a ignorância ou a aversão aos fenômenos religiosos e/ou
espirituais como uma forma de “insensibilidade cultural”.

O manual de diagnósticos
A história do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) é
marcada pela inclusão e exclusão de categorias diagnósticas que ganharam vida em alguns
29

momentos e, em outros, foram deixadas de lado. Se em alguns casos essas decisões parecem
menores e até mesmo irrelevantes, muitas das vezes elas refletem mudanças profundas na
própria concepção sobre qual é o objeto do saber da psiquiatria, alterando assim o alcance do
território de intervenção dessa disciplina. Publicado desde 1952, a trajetória do DSM é
extensa e complexa. Ainda que a extensão dessa história seja ressaltada, boa parte da
literatura dedicada ao tema vem se debruçando primordialmente sobre a transformação
ocorrida em sua terceira edição, publicada em 1980. Isso porque, de acordo com o cientista
político Rick Mayes e com o sociólogo Allan Horwitz (2005), esse foi um momento decisivo
na história da psiquiatria estadunidense, quando o manual passou a ser mais amplamente
utilizado no próprio país e ao redor do mundo.
Sua primeira edição, de 1952, foi criada com o objetivo de instituir uma única
nomenclatura a ser utilizada pelos profissionais da área da saúde mental no país. Para os
organizadores iniciais do empreendimento, isso permitiria que a comunicação entre os pares e
a produção de dados estatísticos se tornasse possível (American Psychiatric Association,
1952, p.v). De acordo com o antropólogo Atwood Gaines (1992), o DSM teria emergido
como uma reação à sexta edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças (CID),
publicada em 1948 pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e considerada inócua pelos
psiquiatras estadunidenses. Para o autor, esse descontentamento teria sido motivado pelo fato
de alguns fenômenos de interesse dos clínicos locais não terem sido incluídos na iniciativa da
OMS, como as síndromes cerebrais crônicas e alguns transtornos de personalidade.
Segundo Mayes e Horwitz (2005), a primeira edição do DSM apresentava um sistema
classificatório que refletia a perspectiva teórica dominante na psiquiatria estadunidense das
três décadas seguintes à Segunda Guerra Mundial. Influenciado especialmente pela
psicanálise, o paradigma analítico daquele momento era o da psicodinâmica. Nesse caso, os
sintomas do sofrimento mental eram tomados como efeitos de conflitos psíquicos subjacentes,
que deveriam ser explorados pelos psiquiatras mediante a realização da psicoterapia de longa
duração. Partindo da influência dos trabalhos de base conceitual psicossocial de William
Menninger e Adolph Meyer (Gaines, 1992, p.8), os conflitos psíquicos seriam resultados de
uma má adaptação do sujeito sofredor ao seu ambiente social. Nas palavras de Mayes e
Horwitz, o “foco das explicações analíticas e tratamentos era a totalidade da personalidade e
das experiências de vida da pessoa, que providenciavam o contexto para a interpretação dos
sintomas” (Mayes; Horwitz, 2005, p.250, tradução minha). Dessa forma, a atenção dada à
30

pessoa e a sua relação com o ambiente social deslocava uma diferenciação absoluta entre o
sujeito que apresentava sintomas e aquele considerado saudável, na medida em que todos
seriam suscetíveis a essa situação de desajuste social.
Embora em sua segunda edição, publicada em 1968, o DSM tenha abandonado essa
concepção “reativa” frente ao ambiente, a influência psicanalítica teria se aprofundado a partir
da noção do distúrbio mental como uma desorganização psicológica do indivíduo (Russo;
Venancio, 2006, p.464). Dessa forma, o quadro nosológico apresentado pela Associação
Americana de Psiquiatria (APA) continuava a conter uma certa etiologia, isto é, uma certa
concepção de causalidade. Isso se devia ao fato do sintoma ser entendido como uma
afirmação simbólica, algo que deveria ser interpretado pelo clínico para se chegar aos
problemas subjacentes que afetariam o sujeito naquele momento. Ainda assim, de acordo com
Gaines (1992, pp.8-9), o DSM-II seria mais caracterizado pela ausência de um marco teórico
comum, aglutinando ideias remanescentes das obras de várias linhagens teóricas, como a
psicanálise e a psiquiatria de base biológica.
Com o tempo, essa definição dimensional e borrada entre o normal e o patológico –
característica da própria teoria psicanalítica – passaria a ter sua eficácia contestada por atores
da psiquiatria e de outras instituições sociais. O trabalho de Mayes e Horwitz (2005) é
importante a esse respeito por jogar luz a como a abordagem psicodinâmica e sua ênfase em
processos subjacentes não era considerada capaz de responder à necessidade do
estabelecimento de critérios padronizados de reconhecimento de distúrbios mentais. Como os
autores argumentam, essa perspectiva passou a ser criticada por ser muito “subjetiva” na
definição clínica de um diagnóstico, gerando um crescente descontentamento também de
seguradoras, do governo e de psiquiatras que realizavam pesquisas empíricas com
psicofármacos e métodos terapêuticos em geral.
A resposta a essas pressões começou a ser dada em 1974, quando o psiquiatra Robert
Spitzer foi escolhido pela APA para realizar a revisão do DSM-II. Spitzer e os psiquiatras
escolhidos por ele para compor a força-tarefa encarregada da elaboração da terceira edição do
manual se reconheciam no trabalho do psiquiatra alemão Emil Kraepelin, ativo ao final do
século XIX e começo do XX. De acordo com o antropólogo Allan Young (1995, pp.95-96), a
classificação psiquiátrica levada a cabo por Kraepelin tinha como fundamento três ideias: 1)
os transtornos mentais são melhor compreendidos a partir da analogia com doenças físicas; 2)
a classificação dos transtornos depende da observação de sintomas visíveis e não a partir de
31

teorias não comprovadas; e 3) as pesquisas empíricas eventualmente demonstrarão as origens


orgânicas e bioquímicas dos transtornos.
A perspectiva neokraepeliana desse grupo de atores evidencia uma mudança
fundamental que ocorrera no DSM-III: em vez da apresentação de um quadro etiológico
(baseado em causas subjacentes), existia agora uma classificação nosológica padronizada
(baseada na presença de sintomas). Ao centralizar a classificação dos transtornos na descrição
dos sintomas, elementos visíveis e mais facilmente apreensíveis pelo clínico, a força-tarefa
tencionava aumentar a confiabilidade no manual. Ao mesmo tempo, o DSM passava a se
colocar como sendo “ateórico”, na medida em que designava somente aquilo que estaria na
ordem do observável, dando conta assim de ser utilizado por clínicos das mais diversas
perspectivas teóricas: bastaria que “x” critérios fossem observados empiricamente para que o
diagnóstico “y” pudesse ser formulado. Ela deixava de lado, assim, qualquer elemento
etiológico, que diria respeito às possíveis causas da existência do transtorno, questão que era
considerada como produtora das controvérsias entre as linhas teóricas.
De acordo com Mayes e Horwitz (2005, p.263), essa nova forma de classificação dos
distúrbios mentais constituía uma linguagem comum que, pela primeira vez, possibilitava uma
base descritiva compartilhada pelos profissionais da área da saúde mental. Foi essa “revolução
terminológica” (Russo; Venancio, 2006) operada por sua terceira edição que transformou o
DSM em um manual de diagnósticos amplamente utilizado por profissionais e instituições nos
Estados Unidos e no restante do mundo. Nas palavras de Young:
Diferentemente das edições anteriores, essa apresenta um texto autoritativo e
sancionado por instituições-chave, incluindo o Instituto Nacional de Saúde Mental
[National Institute of Mental Health]. No início dos anos 1980, faculdades médicas e
programas de residência estadunidenses rotineiramente esperavam que seus alunos e
médicos fossem aprovados em exames baseados nos critérios do DSM-III. Tanto
pareceristas quanto editores esperavam que os manuscritos submetidos a revistas
acadêmicas fossem escritos em sua linguagem, e era simplesmente assumido que
propostas de pesquisas na área da psiquiatria se conformariam às suas convenções.
Pesquisadores e clínicos que resistiam a essas convenções podiam contar em ser
excluídos dessas arenas e desses recursos. (Young, 1995, p.102, tradução minha)

Como salienta o mesmo autor (Young, 1995, p.97), essa nova linguagem entrava em
contradição com a formulação psicodinâmica dos distúrbios mentais, na medida em que
ambas as formas descritivas operavam por conceitualizações distintas dos sintomas e dos
próprios distúrbios ou transtornos mentais. Em vez disso, como argumentam as antropólogas
Jane Russo e Ana Teresa Venancio (2006, p.465), essa nova forma descritiva apresentava
uma nova afinidade a uma noção fisicalista da perturbação mental, isto é, uma concepção do
32

transtorno como possuindo bases orgânicas em vez de mentais. Isso pode ser evidenciado
tanto pela contribuição que essa nova forma classificatória deu às pesquisas experimentais de
psicofármacos – ao definirem os transtornos a partir de critérios sintomatológicos, garantindo
uma maior precisão no diagnóstico (Mayes; Horwitz, 2005, p.263; Russo; Venancio, 2006,
p.465) –, quanto pela própria influência neokraepeliana de associação dos transtornos mentais
às doenças físicas, exaltada por Spitzer mas não explicitada no texto final do DSM-III. 5
Devido a todas essas transformações, a publicação do DSM-III vem sendo tomada por muitos
autores (Lewis, 2006; Luhrmann, 2000) como um momento fundamental para a acensão da
psiquiatria de base biológica e a consequente desvalorização da psicanálise e das psicologias
profundas como marco teórico da episteme psiquiátrica estadunidense.

A “cultura” e o DSM-IV
A respeito das reações a essa mudança ocorrida na terceira edital do manual, Mayes e
Horwitz (2005, p.264) argumentam que as críticas dos psiquiatras defensores de uma
perspectiva psicodinâmica foram em grande medida ignoradas, tendo o DSM-IV reafirmado
essa transformação geral. Embora concorde com os autores que a forma de classificação não
tenha se alterado substancialmente na quarta edição do manual, me parece que essa conclusão
tende a ofuscar uma outra dimensão da história das diversas edições do DSM, que diz respeito
à disputa pela inclusão de considerações de ordem “cultural”.
É recorrente nas análises presentes em textos críticos ao DSM a afirmação que, a
despeito de suas pretensões expressamente universalistas, o manual seria um produto cultural,
situado histórica e socialmente em determinações particulares. Esse é o argumento de um
texto publicado mais recentemente pela psicóloga Rafaela Zorzanelli (2014), que em certo
sentido se situa em continuidade ao debate que o texto do psiquiatra e professor de
antropologia Horacio Fabrega (1992) se via às voltas quando buscava explicitamente
contribuir na elaboração do DSM-IV. No entanto, a análise dos modos como a “questão
cultural” foi abordada no próprio manual se reteve apenas aos atores envolvidos na disputa da
questão, nunca tendo sido tomada como objeto de uma investigação mais detalhada que inclua
essas reivindicações como material empírico.

5 Como salientam Mayes e Horwitz (2005, p.260), a proposição que afirmava que “as perturbações mentais
seriam um subconjunto das perturbações físicas” foi recusada em votação pela própria força-tarefa.
33

Esse é o caso do próprio Fabrega, que fez parte do grupo de psiquiatras e especialistas
culturais que, a partir da organização de um evento acadêmico e de todo um movimento
institucional, puderam pressionar a força-tarefa do DSM-IV para incluir algumas
considerações envolvendo a importância da “cultura” na formulação, concepção e
operacionalização dos diagnósticos psiquiátricos. Assim, embora os resultados tenham sido
considerados pelos próprios proponentes como insuficientes e mesmo decepcionantes, foi a
partir da mobilização de um conjunto de psiquiatras, psicólogos e pesquisadores de outras
áreas – em especial, antropólogos – que a categoria “cultura” passou a ser acionada e a
estruturar algumas dimensões do manual em sua quarta edição, publicada em 1994.
É possível dizer que a motivação central para a reunião de psiquiatras, psicólogos e
pesquisadores ligados à questão da “cultura” em sua disputa no DSM tenha sido a tensão entre
a localização particular da produção do quadro nosológico de diagnósticos e a pretensão
universalista que o documento assumia. Sobre esse último ponto, como indicam Margaret
Lock e Vinh-Kim Nguyen (2010, pp.173-174), a forma de descrição fenomênica e “ateórica”
possui uma característica universalizante, na medida em que permite que seu quadro
classificatório seja transladado a outras regiões do mundo, aplicando suas categorias sem
maiores empecilhos. Ainda que se possa convincentemente associar tal universalização aos
vínculos que o manual estabelece com uma noção biológica e fisicalista da perturbação
mental, como argumentam Russo e Venancio (2006) e como indicam alguns atores críticos
envolvidos na disputa, me parece que a própria proposta “ateórica” já possui em si mesma
uma certa pulsão universalizadora, ao se deter apenas em critérios observáveis do fenômeno
sob escrutínio.
Engajados com essa questão e sabendo da preparação para a quarta edição do DSM
que ocorria naquele momento, Horacio Fabrega, a psiquiatra Delores Parron e o importante
antropólogo e psiquiatra de Harvard, Arthur Kleinman, decidiram pela realização de uma
conferência nacional sobre o tema “cultura e diagnóstico”, em abril de 1991, na cidade de
Pittsburgh, nos Estados Unidos – mesma cidade onde estava a universidade na qual Fabrega
estava vinculado como professor. Graças ao auxílio concedido pelo Office for Special
Populations, divisão ligada ao Instituto Nacional de Saúde Mental (NIMH) que havia sido
dirigida por Parron na década de 1980, os organizadores do evento puderem reunir 45
especialistas na área da psiquiatria cultural e nos estudos gerais sobre cultura (entre eles,
antropólogos, sociólogos e psicólogos) para debater questões referentes ao tema. Além disso,
34

o evento contou ainda com a participação de quinze especialistas em nosologia psiquiátrica


que já vinham trabalhando na força-tarefa do DSM-IV, de modo que os debates ocorridos ali
efetivamente pudessem ganhar a atenção dos principais nomes da organização do manual
diagnóstico (Mezzich et al., 1999).
Os participantes foram orientados a produzir avaliações críticas quanto a algumas
categorias diagnósticas presentes no DSM-III-R, última versão então existente do manual.
Tais avaliações se davam em relação ao que tangia à “cultura” e à “etnicidade” (Good, 1996,
p.127), no que dizia respeito ao que se poderia ser feito para que os diagnósticos lidassem
melhor com problemas envolvendo sua aplicação em grupos culturais ou étnicos diferentes do
grupo predominante da classe profissional da psiquiatria estadunidense. Animados com os
resultados da conferência, seus idealizadores decidiram pela constituição de um grupo de
trabalho nacional em torno das questões tratadas, nomeando-o como Grupo de Cultura e
Diagnóstico. Graças aos fortes vínculos institucionais de alguns de seus organizadores, o
grupo contou com o financiamento da mesma divisão ligada ao NIMH que já havia auxiliado
a realização do evento. Liderados pelo psiquiatra Juan Mezzich, que posteriormente viria a
ocupar o cargo de presidente da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA), mais de 50
“experts culturais” se mantiveram ativos durante as atividades realizadas nos três anos
seguintes ao evento original. Nas palavras do antropólogo Byron Good (1996, pp.127-128,
tradução minha), que participou ativamente do grupo, “um enorme empenho foi dado em
analisar a literatura intercultural relevante a amplas classes de psicopatologias e em
recomendar uma linguagem explícita para o texto dos critérios e da narrativa do novo manual,
a ser considerado por subcomitês específicos ao DSM-IV”.
Como argumenta o psiquiatra Laurence Kirmayer (1998, p.339), ligado ao
departamento de psiquiatria transcultural da universidade canadense McGill e um dos
principais nomes na área da psiquiatria cultural atualmente, essa ênfase na importância da
“cultura” foi dada a partir de algumas considerações envolvendo o DSM e as diferenças
culturais implicadas a ele. Se por um lado havia a mudança demográfica ocorrida nos Estados
Unidos e, consequentemente, dos pacientes em atendimento para saúde mental – com um
aumento proporcional de populações hispânicas, afro-americanas e asiáticas –, o próprio
corpus técnico da psiquiatria foi afetado por essa mudança. Uma transformação
correspondente da composição étnica dos próprios profissionais da psiquiatria ocorreu,
trazendo questões para o debate que até então haviam sido ignoradas. Por outro lado, o
35

contínuo aumento da utilização do manual em contextos internacionais tensionava o uso das


categorias diagnósticas em situações terapêuticas distantes das encontradas nas clínicas dos
centros urbanos dos Estados Unidos. Essa situação histórica de progressiva pluralização das
diferentes populações atendidas sob a orientação do DSM fomentou uma crescente crítica de
ordem cultural aos diagnósticos psiquiátricos, que já há algum tempo vinha sendo realizada ao
menos desde a antropologia e a psiquiatria cultural. Dessa forma, a centralidade das
preocupações do grupo de trabalho se voltou às “diferenças culturais” envolvidas entre as
assunções presentes no guia de diagnósticos e a população que seria atendida com base no
manual, esteja essa população presente nos Estados Unidos ou fora do país (Kleinman, 1997,
p.343).
Ainda que os líderes do grupo recém-criado tentassem institucionalizá-lo frente a
APA, a força-tarefa do DSM-IV se recusou a conceder o status oficial de grupo de trabalho.
Sua “atividade semioficial, ocorrendo nas margens do processo de negociação política e
científica que nos deu a nova edição do DSM” (Kleinman, 1997, p.343, tradução minha),
levou a duas consequências mais diretamente sentidas pelos atores envolvidos. Para eles, ao
mesmo tempo em que tal status de “semioficialidade” permitiu aos pesquisadores uma maior
autonomia em suas discussões e propostas, essa condição relativamente marginal teria afetado
a recepção de suas proposições, permitindo à força-tarefa não considerá-las em sua totalidade,
sem com isso precisar oferecer justificativas quanto à adesão apenas parcial a elas.
De acordo com Good (1996, p.128, tradução minha), “[a] despeito desses esforços,
haviam escassas evidências de que nossos relatórios com posicionamentos estavam sendo
entendidos e incorporados nas deliberações da maioria dos comitês”. No entanto, como o
próprio antropólogo reconhece, algumas mudanças foram implementadas na concepção do
DSM-IV. Assim, o caso resultou em algo distinto do ocorrido na edição anterior a essa, o
DSM-III-R, quando Arthur Kleinman foi contatado pelo então chefe da força-tarefa de
desenvolvimento do manual para que ele pudesse escrever algumas considerações de ordem
cultural sobre a aplicação do DSM em pacientes pertencentes a minorias étnicas ou a
sociedades não-ocidentais. Apesar de seu esforço, as formulações oferecidas por Kleinman
(1996) naquele momento foram reduzidas a dois parágrafos na introdução do manual.
A respeito do DSM-IV, ele apresentou em sua versão final diversos trechos que,
embora de modo parcial, levavam em conta algumas das propostas do grupo de cultura e
diagnóstico. São eles: um trecho na introdução do manual que menciona a importância de se
36

considerar os aspectos culturais; alguns comentários de particularidades culturais a respeito de


diagnósticos específicos; um glossário que apresenta 25 síndromes ligadas à cultura (culture-
bound syndromes); e um esboço para a realização de uma descrição dos fatores culturais no
atendimento clínico de um paciente (outline for cultural formulation) (Mezzich et al., 1999).
Nomeada como “considerações étnicas e culturais”, a pequena subseção foi deixada
nas últimas páginas da introdução, como uma espécie de precaução na utilização do guia.
Nela, há a afirmação de que o DSM-IV foi organizado sabendo-se dos problemas envolvidos
em sua utilização em “populações culturalmente diversas nos Estados Unidos e em outros
países ao redor do mundo” (American Psychiatric Assocation, 1994, p.xxiv, tradução minha).
Diz o texto que, nesses contextos de prática clínica, a insensibilidade cultural por parte do
psiquiatra poderia levar a um julgamento psicopatológico de uma experiência, comportamento
ou crença considerados comuns na cultura a qual o paciente integra. Assim, a preocupação do
texto final do DSM parece se alinhar a uma presente nos textos dos atores vinculados ao
grupo de “cultura e diagnóstico”, no que diz respeito à preocupação em tornar o manual mais
apto a lidar com contextos interculturais, sejam eles ligados a minorias étnicas nos Estados
Unidos, ou sejam em sua aplicação internacional em contextos culturais distintos dos
presentes em seu país de origem (Kleinman, 1996, p.15).
No entanto, embora essa preocupação fosse de alguma forma compartilhada, o modo
de sua resolução não o era. Enquanto os propositores aconselharam que o manual incluísse a
afirmação que o próprio DSM – e, por consequência, suas categorias diagnósticas – era um
“produto cultural” que refletia questões localizadas (Mezzich et al., 1999, s/p), a força-tarefa
optou por não incluir tal afirmação. Ao contrário, sua defesa foi que a utilização do manual ao
redor do globo seria um indicativo de sua utilidade em descrever transtornos mentais em
contextos dos mais variados, e que os sintomas e o curso dos transtornos descritos pelo
manual poderiam ser influenciados por fatores culturais e étnicos, alterando suas formas de
“expressão”. Ou seja, ao fazer isso, o DSM pôde reter certa dimensão universalizável e
naturalizante das categorias diagnósticas descritas em seu quadro nosológico, incluindo
apenas uma pluralização das possíveis expressões “culturais” dos transtornos.
Para que essa questão da variação “cultural” ou “étnica” dos sintomas e do
desenvolvimento dos transtornos fosse resolvida, determinadas categorias diagnósticas
centrais ao manual passaram a incluir alguns comentários a respeito dessas possíveis
diferenças e particularidades culturais. As “considerações culturais” propostas para a força-
37

tarefa do DSM resumiam informações sobre as possíveis variações envolvidas nos modos do
paciente relatar seu sofrimento, nos padrões dos sintomas, nas disfunções, no curso da doença
e nas correlações sociodemográficas do transtorno em questão. A justificativa do grupo de
trabalho foi a de que isso permitia a promoção de uma maior sensibilização cultural por parte
dos clínicos, de modo que eles pudessem avaliar o contexto cultural a qual o paciente se
insere e assim determinar se a categoria diagnóstica é realmente aplicável. Foram incluídas
versões simplificadas dos comentários oferecidos quanto aos critérios de diagnósticos, sendo
que 76 categorias passaram a apresentar uma subseção com “considerações culturais, de idade
e de gênero” (Mezzich et al., 1999, s/n).
Um caso que chama a atenção envolvendo essas questões diz respeito à esquizofrenia.
O relato da antropóloga Janis Jenkins (1996) – que participou do grupo de trabalho sobre as
características culturais do diagnóstico de esquizofrenia junto ao psiquiatra Marvin Karno – é
interessante para termos uma noção do modo como algumas proposições foram incluídas no
manual. A antropóloga relata que boa parte de suas considerações foram reduzidas e
deslocadas da seção principal do texto para a subseção sobre cultura, idade e gênero. É esse o
caso do segundo critério diagnóstico, que trata das alucinações. Enquanto no texto proposto os
autores indicaram que a alucinação poderia variar culturalmente em termos da distinção
cultural entre normal e patológico, do conteúdo e da forma da alucinação (apontando para
casos dessas variações), o manual reteve apenas uma passagem curta, que privilegiava o
conteúdo da alucinação como elemento a se reter atenção: “Em algumas culturas, alucinações
visuais ou auditivas com conteúdo religioso podem ser uma parte normal da experiência
religiosa (e.g. ver a Virgem Maria ou ouvir a voz de Deus)” (American Psychiatry
Association, 1994, p.281, tradução minha).
Para Jenkins (1996, pp.371-372, tradução minha), tal privilégio ao conteúdo estaria de
acordo a uma “ênfase consistente com a força-tarefa do DSM-IV em tomar a cultura como
relevante em relação a ‘crenças’ (…), mas não tomá-la como relevante de modo geral em
relação à organização da experiência esquizofrênica”. Assim, embora pareça ainda operar a
partir de um entendimento da existência esquizofrênica como um campo quase “pré-cultural”
- que vem a ser organizado posteriormente –, Jenkins aponta para a universalização que o
DSM realiza quanto aos próprios fenômenos da esquizofrenia, unificando-os em torno de uma
mesma forma de manifestação, variável apenas em seu conteúdo.
38

Em certo sentido, é em resposta à ausência de uma maior preocupação com as


“variações culturais” da sintomatologia das categorias diagnósticas centrais ao DSM que a
seção do manual sobre as síndromes ligados à cultura (culture-bound syndromes) foi criada.
Nessa seção, 25 distintas “síndromes nativas” são elencadas e descritas no formato de um
glossário, sendo entendidas como fenômenos de sofrimento que possuem sua própria
interpretação local e seus próprios modos de ser. Tratam-se de fenômenos que não se
encaixam exatamente no quadro nosológico fornecido pelo DSM e que são acreditados como
existentes em algumas culturas em particular – como o caso de taijin kyofusho, uma espécie
de fobia social que supostamente ocorre somente no Japão. De acordo com o manual:
Embora apresentações em conformidade com a maioria das categorias do DSM-IV
possam ser encontradas ao redor do mundo, os sintomas particulares, o curso da
doença e a resposta social são muitas vezes influenciados por fatores culturais. Em
contraste, as síndromes ligadas à cultura são geralmente limitadas a sociedades ou
áreas culturais específicas, além de serem categorias diagnósticas localizadas [folk],
que produzem um quadro coerente de sentido para certos conjuntos de experiências
repetitivas, padronizadas e que causam incômodo. (American Psychiatric
Association, 1994, p.844, tradução minha)

Cientes da possibilidade de “exotização” que a criação desse tipo de glossário poderia


trazer – ao retratar fenômenos estadunidenses de modo separado ao quadro nosológico
principal do manual –, os participantes do grupo de trabalho propuseram a inclusão no
glossário de transtornos considerados por eles como eminentemente ligados à cultura dos
Estados Unidos. Esse foi o caso da anorexia nervosa e do transtorno de personalidade múltipla
que, no entanto, não foram incluídos ao texto final do DSM, minando a potencialidade em
simetrizar os diagnósticos estadunidenses com os restantes. Como veremos no capítulo 2, o
próprio tema do transtorno de personalidade múltipla (atual transtorno dissociativo de
identidade) possui sua própria controvérsia em torno dessa questão. Isso por conta do debate
em torno de sua relação com a chamada síndrome possessiva, um tipo de enfermidade
recorrente em países não-ocidentais que diria respeito aos fenômenos de possessão espiritual
considerados pelos saberes psi como patológicos. Assim, o posicionamento dessas categorias
ao final do documento e sua qualificação como intrinsecamente “culturais” - em oposição à
não marcação das categorias diagnósticas do restante do DSM –, produziu o efeito temido
pelos proponentes: o da exotização via sua particularização (Pussetti, 2006, pp.29-30; Nathan;
Stengers; Andrea, 2000).
Por fim, a quarta e última proposta do grupo que foi incluída no DSM-IV diz respeito
às diretrizes para a formulação cultural na prática clínica (“outline for cultural formulation”).
39

Considerada pelos proponentes como a maior contribuição do grupo de trabalho para o


manual de diagnósticos (Mezzich et al., 1999; Kirmayer, 1998, pp.340-341), essa seção do
texto busca auxiliar os clínicos ao lidarem com situações nas quais uma avaliação cultural é
necessária em sua prática clínica. Com o objetivo de evitar a mal realização de um
diagnóstico ou de produzir mal-entendidos, o texto institui diretrizes para se acessar: 1) a
“identidade cultural do indivíduo”; 2) as explicações culturais do sofrimento e da cura (os
“idiomas de sofrimento”) do paciente; 3) “os fatores culturais relacionados ao ambiente
psicossocial e aos níveis de funcionamento”; 4) os “elementos culturais do relacionamento
entre o indivíduo e o clínico”; e 5) uma avaliação cultural geral sobre o diagnóstico e o
cuidado (American Psychiatric Association, 1994, pp.843-844, tradução minha).
Diferentemente dos outros três casos descritos aqui, o texto da proposição do grupo de
trabalho foi aceito quase que em sua íntegra. A única diferença substancial da proposta foi
que enquanto os proponentes haviam recomendado sua inclusão na introdução do manual,
essa seção foi incluída apenas ao final do documento, na parte dos apêndices, diminuindo
assim sua importância e sua provável visibilidade aos leitores em relação à estrutura geral do
manual. Desse modo, é possível entender o reconhecimento dos proponentes em considerarem
essa a maior contribuição do grupo, uma vez que as diretrizes incluídas dão conta de uma
ampla gama de questões: as identidades, as interpretações, as relações sociais e a construção
de um método para se “acessar” a cultura dos indivíduos implicados.
É dessa forma que podemos perceber como, apesar dos lamentos feitos pelos atores
ligados ao grupo sobre cultura e diagnóstico, algumas de suas propostas foram aceitas e
contribuíram na constituição da quarta edição do manual. Evidentemente, a maior parte delas
foi transformada ou reduzida para se adequar à agenda do mainstream psiquiátrico,
representado pela APA. No entanto, estou interessado exatamente em suas propostas originais
e no modo como foram transformadas ao serem incluídas ao DSM, especialmente naquilo que
há em comum entre elas no modo de operação da enunciação da “cultura”, apesar de sua
extensa variação semântica. A esse respeito, a categoria vai assumindo diversas assunções ao
longo do texto: ora se associa a questões de “etnicidade”, ora é enunciada junto a “gênero” e
“idade”; as vezes assume uma noção de “interpretação”, em outros momentos recorre a uma
dimensão mais fundante da experiência individual; em determinado momento ela é aquilo que
simetriza a relação entre os Estados Unidos e suas minorias étnicas ou com culturas não-
40

ocidentais, e em outro ela passa a ser um marcador da diferença, onde o Outro é sempre
culturalizado. Ainda assim, parece haver uma espécie de fundo comum nessas enunciações.

O universal e o particular nos transtornos mentais


O trabalho de Manuela Carneiro da Cunha (2017) é essencial em meu percurso
metodológico para entendermos o que está em jogo quando essa categoria antropológica deixa
de ser enunciada somente por antropólogos – mas também por eles. Nos casos em questão que
ela traz para sua análise, a antropóloga retém seu interesse nesses processos pelos quais a
“cultura” é uma categoria mobilizada por grupos locais para que possam legitimar suas
reivindicações de direitos de propriedade. Trata-se de um processo de politização da
categoria, quando ela passa a atuar no jogo político dos direitos através da identificação de um
grupo com aquilo que ele diz ser sua “cultura”. Assim, distinguindo o conceito antropológico
cultura da “cultura” (marcada com aspas), esta diria respeito a uma categoria do discurso
nativo. É preciso assim enfatizar que não estou interessado com o conceito antropológico
cultura em seu plano analítico, mas sim com a “cultura”, a categoria que é mobilizada na
literatura psiquiátrica, tratando-a na qualidade de uma categoria nativa. Assim como a autora,
minha preocupação diz respeito aos modos e aos efeitos decorrentes de sua mobilização.
Meu argumento é que no caso dos psiquiatras e antropólogos envolvidos no debate, a
frouxidão na definição da categoria “cultura” é aquilo que a torna tão potente e a faz ser
constantemente enunciada. Efetivamente, trata-se daquilo que a historiadora da ciência Ilana
Löwy (1992) chamou de conceito fronteiriço (boundary concept). Para a autora, os conceitos
fronteiriços são aqueles que, a partir de sua fraca definição, permitem o trabalho conjunto
feito em associação entre grupos distintos de cientistas – muitas vezes de áreas disciplinares
diferentes –, na produção conjunta de conhecimento. A força do conceito fronteiriço reside na
sua capacidade de adaptação a cada local e a cada finalidade situacional em jogo, facilitando a
comunicação entre as distintas partes envolvidas no trabalho comum e a tornando uma
“entidade negociável”, que delimita ao mesmo tempo em que liga territórios particulares do
conhecimento (Löwy, 1992, p.375).
Nesse sentido, é interessante perceber como a “cultura” vai sendo operada ao longo
das disputas envolvidas, em âmbitos distintos, como um conceito fronteiriço. No âmbito do
grupo “cultura e diagnóstico”, é sua parca definição que permite a aliança entre psiquiatras
culturais e antropólogos – esses tidos em alguns momentos como “experts culturais”. Como
41

relatado pelo antropólogo e psiquiatra Roland Littlewood (1992, p.259), se em momentos


anteriores os antropólogos e os psiquiatras culturais haviam “se enfrentado”, na realização do
evento de Pittsburgh o que estava em jogo era a aliança entre esses dois grupos de atores na
disputa com os representantes da força-tarefa do DSM. Por outro lado, em um âmbito distinto,
mesmo os atores ligados à diretoria da Associação Americana de Psiquiatria participaram
conjuntamente na produção de um conhecimento “cultural”. No final das contas, foi a força-
tarefa do DSM que manteve o poder de decisão sobre o que, ao final do processo, contaria
como “cultura” no texto do manual de diagnósticos. Ainda que não seja do modo esperado ou
desejado pelos proponentes (os antropólogos e psiquiatras culturais), por uma verdadeira
assimetria nas relações tidas entre os grupos, são os organizadores que conseguem coordenar
o sentido final auferido à categoria.
No entanto, embora seja verdade que a definição da categoria seja tímida e frouxa, ela
ainda assim não deixa de existir e de ser de algum modo compartilhada por todos os atores
envolvidos. Acredito que sua definição elementar seja a associação feita entre ela e uma certa
noção de “contexto”, de “particularidade” ou “localização”. Em termos gerais, ainda que
hajam infindáveis disputas em torno do que se refere, pode-se dizer que “cultura” é
constantemente acionada por psiquiatras culturais, antropólogos e por representantes da APA
para se contraporem a uma certa “universalidade”. A tensão que percorre a todo o momento
as disputas descritas aqui diz respeito à suposta universalidade ou particularidade das
psicopatologias descritas pelo manual de diagnósticos. Se o grupo de trabalho afirma que as
categorias diagnósticas presentes no DSM são frutos da cultura estadunidense, sua
potencialidade universal se encontra consideravelmente reduzida;6 já se o manual afirma que
certos fenômenos não-ocidentais são culturais, enquanto não diz o mesmo de seu próprio
quadro nosológico, a capacidade universalizante das categorias descritas pelo DSM se
encontra em seu ápice.
Mais do que uma questão pontual, me parece que essa tensão entre o universal e o
particular seja constitutiva da própria episteme de parte da tradição antropológica
estadunidense, em especial da subárea conhecida como “antropologia médica”. No caso dessa
subárea, a tensão parece ser retrabalhada a partir de seus vínculos íntimos com o próprio saber

6 Reduzida, mas não eliminada. Isso porque tanto se pode questionar a tentativa da inclusão de transtornos
particulares na seção das “síndromes ligados à cultura” (caso da anorexia nervosa e do transtorno de
personalidade múltipla), quanto podemos ver o próprio Arthur Kleinman (1996, pp.17-18) afirmando existir
evidências para a universalidade da esquizofrenia, do transtorno bipolar, da depressão e de um grupo de
ansiedades.
42

médico, algo que pode ser explicitado por essa relação de dupla pertença entre a antropologia
e a psiquiatria que alguns de seus principais atores apresentam. Ao realizar uma revisão de
parte da literatura preocupada com a questão das “doenças nervosas”, o antropólogo Luiz
Fernando Dias Duarte (1993) reconhece essa mesma dinâmica. Nas palavras do autor:
A preocupação com a contextualização cultural é a tônica, seja do ponto de vista
explícito da determinação das relações entre experiência e sentido da doença, seja do
ponto de vista latente da definição das unidades culturais significativas. A
concepção de cultura prevalecente é a dos “padrões de comportamento”,
obedecendo a um forte componente funcionalista de atenção à integração e
equilíbrio entre “indivíduo” e “sociedade”. Essa perspectiva garante uma grande
aproximação e continuidade com o pragmatismo das ciências médicas e dos outros
saberes de intervenção social a que se associa (apesar das permanentes tentativas
críticas de distanciamento do paradigma biomédico). (Duarte, 1993, p.46)

Uma formulação paradigmática dessa oposição elaborada pela literatura é aquela


popularizada pelo antropólogo médico Leon Eisenberg (1977) e por Kleinman (1977), entre
“disease” e “illness”, que seria replicada e retrabalhada continuamente nas décadas seguintes
(e.g. Kleinman, 1980; ver também a formulação crítica elaborada por Allan Young, 1982).
Em termos sucintos, “disease” (doença) se referiria à entidade diagnosticada e tratada pelos
médicos no nível da natureza do corpo humano, enquanto “illness” (enfermidade) seria a
experiência cultural e subjetiva do sujeito que padece dessa doença. 7 Good (1996, p.129)
reconhece essa mesma distinção ao reafirmar que o grupo de cultura e diagnóstico
representava uma crítica à realização drástica dessa divisão.
Embora tal distinção seja analiticamente mais bem desenvolvida e relativizada nos
trabalhos empíricos e teóricos dos autores tratados aqui,8 chama a atenção essa constante
retomada estratégica nos enunciados concernentes ao DSM-IV. Nesse caso em questão, se
mantermos em vista o permanente jogo relacional engendrado pela categoria, podemos notar
que é no preciso momento em que a “cultura” é enunciada nos textos, que ela estabelece
contrastivamente o território de certa “universalidade”, produzindo em um mesmo ato esses
dois regimes de ocorrências.
O que salta aos olhos nessa imbricação completa entre a categoria “cultura” e uma
certa universalização das categorias de transtornos mentais apresentadas no manual é o jogo
de inversões estabelecido. Ao contrário do que se poderia imaginar em um primeiro momento,

7 Opto aqui por seguir as traduções normalmente feitas de disease/illness para doença/enfermidade, como em
Langdon (2014) e em Helman (2009). É preciso enfatizar que um terceiro termo é incluído por Young
(1982), o de sickness ou mal-estar, que diria respeito à dimensão sociocultural de manejo do fenômeno,
afastando-se da illness por não se centrar na experiência subjetiva e da produção individual de sentido.
8 O livro de Good (1994) é um exemplo disso, tomando as questões concernentes à antropologia médica de
forma mais sofisticada do que nos debates referentes às propostas do grupo de diagnóstico e cultura.
43

a defesa da “cultura” como fundamental à prática psiquiátrica por parte dos críticos não
parece ser um entrave ou uma contradição ao projeto universalizante da psiquiatria. Essa
posição fica especialmente evidente no texto introdutório escrito por Mezzich, Kleinman,
Fabrega e Parron (1996) ao livro que resultou dos esforços do grupo de trabalho sobre
diagnóstico e cultura. Logo no segundo parágrafo dessa introdução, mencionando o famoso
trabalho da antropóloga Margaret Mead (1928) e a obra do fundador da etnopsiquiatria
francesa, o psicanalista e etnólogo George Devereux (1956), os autores afirmam:
Um desafio antropológico inicial a um conceito universalista e descontextualizado
de diagnóstico psiquiátrico, particularmente em sua versão platônica de “entidade da
doença” [disease entity], foi realizado sob a bandeira do relativismo cultural (…). Os
equívocos dessa posição foram incorporados aos excessos da teoria do
etiquetamento social [labeling theory] e tornaram-se associados aos escritos
antipsiquiátricos (…). O resultado foi uma desvalorização dos insights
proporcionados por aquele desafio antropológico inicial. (Mezzich et al., 1996,
p.xvii, tradução e ênfase minha)

Nessa proposta, vemos uma clara recusa de uma das linhas de investigação
decorrentes dos trabalhos seminais da antropóloga estadunidense Ruth Benedict (1934; 2013),
como delineado por Good (1994). Se no plano teórico os autores reforçam a recusa da
conceitualização da “doença” como uma entidade do plano natural e portanto independente da
cultura, não há a proposição do abandono das categorias diagnósticas psiquiátricas, em um
posicionamento mais alinhado à chamada antipsiquiatria. A posição dos autores pode ser
melhor compreendida a partir do próprio esquema elaborado por Good (1994, p.34), quando
reconhecemos nos principais autores do grupo (em especial, Kleinman e o próprio Good) sua
ligação com uma tradição da antropologia médica dos Estados Unidos interessada em
investigar as variações culturais concernentes às fenomenologias e o curso das enfermidades.
Os efeitos práticos dessa posição parecem ser o não abandono das próprias categorias
diagnósticas, como o caso da “depressão” (Kleinman, 1977), e eles se veem às voltas da
distinção fundante entre a natureza universal das psicopatologias e suas formas particulares de
manifestação. Embora possam não ser entendidas somente como “doenças” alheias à cultura,
as categorias diagnósticas se tornam uma espécie de mínimo comum, os termos
imprescindíveis para a descrição da realidade. Desse modo, não se trata de se abandonar a
existência de “doenças” psiquiátricas em prol das “enfermidades”, ligadas eminentemente à
experiência pessoal e à sua relação com a cultura circundante. Pelo contrário, a atenção à
“cultura” se torna precisamente a condição de possibilidade para uma realização eficaz desse
projeto de atenção às “doenças”, na medida em que permite à disciplina psiquiátrica, com
44

todos os seus atores e tecnologias (como o diagnóstico), se adaptar a situações de sofrimento


psíquico diferentes da encontrada nas camadas médias urbanas dos Estados Unidos,
acoplando a atenção às “enfermidades” e às complexas relações estabelecidas junto das
“doenças”.9 Em certo sentido, vemos a característica dimensão instrumental da antropologia
médica estadunidense entrar em ação e orientar as proposições do grupo (Farmer; Castro,
2012, p.112).10
Apesar de todas as complexidades e diferenças que existem nas obras de uma série de
autores e ao longo da trajetória de cada um deles, ao adentrarem no debate psiquiátrico, um
território comum de comunicação é estabelecido entre as partes envolvidas. Na medida em
que reivindicam a “cultura” como uma forma conceitual de particularização da diferença, há
uma base comum e tensionada nas propostas do grupo de “cultura e diagnóstico” – alinhadas
àquilo que Kleinman (1977) chamou nos anos 1970 da “nova psiquiatria intercultural” – e os
posicionamentos dos psiquiatras que compunham a força-tarefa do DSM-IV, mais propensos
a conceitualizar as “variações culturais” em termos de “manifestações” ou “expressões” de
algo já dado na natureza.11 Em ambos os casos, é apenas se atentando às “culturas” alheias ou
às “variações culturais” internas ao país que possíveis disrupções no quadro nosológico
poderão ser reenquadradas, retendo para si o espaço de enunciação da verdade desses
fenômenos e das possibilidades de intervenção sobre eles.

As categorias diagnósticas sobre religião e espiritualidade


No bojo da introdução das questões “culturais”, a quarta edição do DSM apresentou
também duas novas categorias: “problema religioso ou espiritual” e o diagnóstico de
“transtorno de transe dissociativo”. Ambas parecem ter ingressado no DSM-IV graças à
mobilização descrita nas páginas anteriores, em relação a uma “culturalização” do manual de
diagnósticos psiquiátricos. A primeira dessas categorias foi inserida na seção “outras

9 A esse respeito, ver a nota 18 em Duarte (1993, p.47).


10 Para uma crítica a essa posição, ver o texto de Nancy Scheper-Hughes (1989). De acordo com a autora, “os
antropólogos aplicados à clínica parecem argumentar pela expansão do conhecimento e da expertise
biomédica, para incluir algum reconhecimento às dimensões não-biológica e social do mal-estar [sickness].”
(Scheper-Hughes, 1989, p.66, tradução minha e ênfase da autora). O resultado desse processo seria a
expansão da medicalização para outros domínios da vida.
11 Esse debate entre a universalidade ou não das categorias diagnósticas de transtornos mentais elaboradas nos
Estados Unidos vem se estendendo também no campo da chamada Global Mental Health. Ao mesmo tempo
que as assunções de viés mais universalizante vêm orientando a formulação de pesquisas de escalas globais
de incidência de transtornos mentais e a promoção de políticas públicas por parte de órgãos internacionais,
sua contraparte “particularizante” pode ser também presenciada no lado crítico desse debate (Lovell; Read;
Lang, 2019).
45

condições que podem ser um foco de atenção clínica” - na qual se lista alguns problemas que
geram angústia psíquica mas que não se caracterizam como transtornos mentais, sendo o caso
de “problemas acadêmicos” e “problemas de aculturação”. Sua breve descrição pode ser
citada na íntegra:12
Esta categoria deve ser usada quando o foco de atenção clínica é um problema
religioso ou espiritual. Exemplos incluem: experiências negativas que implicam
perda ou questionamento da fé, problemas associados com conversão a uma nova fé,
questionamento de valores espirituais que não necessariamente estão relacionados a
uma igreja organizada ou uma religião institucionalizada. (American Psychiatric
Association, 1994, p.685, tradução minha)

A descrição da categoria, como estabelecida no DSM-IV, parece dar conta


especialmente da relação existente entre religião e espiritualidade. Assim, se por um lado as
experiências religiosas e espirituais se assemelham a ponto de compartilharem uma mesma
categoria, por outro, o uso do conectivo “ou” para definir o campo de aplicabilidade do
diagnóstico estabelece um regime de diferença entre as experiências religiosas e as
experiências espirituais. Como argumentou Rodrigo Toniol (2019), tal regime institui –
mediante os exemplos dados na descrição – que problemas associadas à aderência do sujeito
ao dogma de instituições sejam marcados como problemas “religiosos”, enquanto que aqueles
relacionados a contextos não institucionais sejam definidos como “espirituais”.
São nos textos escritos pelos proponentes da categoria que encontramos maiores
informações sobre ele. A história de sua inclusão no DSM-IV passa por dois artigos
publicados entre as décadas de 1980 e 1990 (Lukoff, 1985; Lukoff; Lu; Turner, 1992) e de um
escrito após a publicação do manual (Turner et al., 1995), no qual se avaliava os efeitos da
inclusão da categoria. Embora quatro autores assinem ao menos um dos três textos
mencionados, é a figura do psicólogo transpessoal David Lukoff que assume uma posição
central nos debates acerca da proposição da categoria diagnóstica e em sua propagação,
através da realização de cursos e da produção de materiais didáticos (Lukoff, s/d).
O principal destes artigos é o de 1992, escrito por Lukoff em conjunto com os
psiquiatras transpessoais Francis Lu e Robert Turner. Esse foi o texto no qual a descrição final
da categoria se baseou, sendo portanto essencial para entendermos as reivindicações dos
proponentes no momento da elaboração do DSM-IV. Embora notemos a preocupação dos
autores em estabelecer a diferenciação entre os problemas “religiosos” e os “espirituais”, uma
outra questão incluída no manual parece ocupar uma posição mais central na proposta. Refiro-

12 A categoria se manteve inalterada na quinta edição do DSM, tanto em seu conteúdo quanto em sua
localização dentro do manual.
46

me à dimensão da não-patologização das experiências abarcadas pelo diagnóstico, que


aparecera não no texto que descrevia a categoria, mas sim no local no qual essa categoria foi
posicionada dentro do próprio DSM. Isso porque, como indicado anteriormente, a categoria se
situa numa seção que agrupa condições psíquicas que não se referem a transtornos
propriamente ditos, isto é, a condições patológicas. Situada no chamado “V code”, a categoria
não se direciona a uma experiência psicopatológica, mas sim a uma condição não atribuída a
um distúrbio mental e que pode ser objeto de cuidado em um atendimento clínico. O exemplo
análogo dado pelos autores é o da condição do luto, que abrange fenômenos que embora
possam atender aos critérios para um diagnóstico de depressão, são um resultado normal da
perda recente de um ente querido (Lukoff; Lu; Turner, 1998, p.26). Assim, de acordo com os
propositores, os casos listados pela descrição dos “problema religioso ou espiritual” seriam
importantes para a prática clínica dos psiquiatras na medida em que se caracterizariam como
um problema com efeitos prejudiciais para o próprio sujeito assistido pelo psiquiatra, sem, no
entanto, se caracterizarem como um transtorno mental.
O que me interessa nessa defesa da importância da atenção clínica a esses tipos
particulares de problemas é tanto a forma como tal reivindicação é realizada quanto o modo
como ela se conecta ao argumento da não-patologização dessas experiências. O artigo escrito
por Lukoff em conjunto com seus colegas nos apresenta um quadro no qual a psiquiatria teria
tendido em seu passado a ignorar ou patologizar tais experiências, situando-as essencialmente
como fenômenos de ordem prejudicial. Dizem eles que, ao menos desde Freud, a religião e a
espiritualidade eram associadas à psicopatologia por parte dos saberes psi. Por outro lado, no
âmbito das pesquisas médicas, tais fenômenos tenderam a ser ignorados na psiquiatria
(Lukoff; Lu; Turner, 1992, pp.673-674). Em resposta a isso, a reivindicação feita se dá em
termos da defesa de uma “sensibilização cultural” da psiquiatria – ou seja, segundo os autores,
esse modo negativado de se lidar com tais experiências decorreria dessa “insensibilidade
cultural” por parte dos psiquiatras e psicólogos quanto a esses fenômenos. Assim, como o
próprio título do artigo sugere (“Toward a more culturally sensitive DSM-IV”), a inclusão da
categoria “problema religioso ou espiritual” ressaltaria a importância de se levar em conta,
durante o atendimento clínico, as particularidades culturais da coletividade a qual o paciente
se insere.
Tal reivindicação em termos de “sensibilidade cultural” pode ser contrastada com o
artigo escrito por Lukoff nos anos 1980, que nos coloca em contato com uma espécie de “pré-
47

história” da categoria incluída no DSM-IV. É notável que em seu primeiro texto dedicado ao
tema, Lukoff (1985) não tenha mencionado em nenhum momento a “cultura” como uma
determinante para o diagnóstico de “experiências místicas com características psicóticas”,
categoria que ele propunha naquele momento. Em vez disso, como veremos com maior
detalhe no capítulo 3, seu argumento se baseara na possibilidade de distinguir estados mentais
com características psicóticas que não seriam necessariamente indícios de estados
patológicos. Experiências religiosas ou espirituais não seriam em si mesmas necessariamente
patológicas, e uma atenção maior ao fenômeno deveria ser dada por parte do clínico, de modo
que ele pudesse identificar aquelas situações nas quais um diagnóstico de transtorno mental
não seria o correto. Embora aqui parece ocorrer uma reivindicação análoga à apresentada
posteriormente, em termos de uma “sensibilização” a contextos particulares, o que me
interessa é o fato desses “contextos particulares” não serem marcados nos enunciados pelo
signo distintivo da “cultura”.
Essa mudança estratégica no modo pelo qual as reivindicações foram realizadas parece
se associar com o movimento mais amplo de “culturalização” do DSM, mencionado
anteriormente. Assim, os proponentes da categoria teriam se aliado aos questionamentos que
uma parcela da psiquiatria estadunidense vinha fazendo desde os anos 1980 quanto à ausência
de consideração por parte do DSM no que diz respeito aos aspectos culturais das
psicopatologias. Não se pode dimensionar o efeito real dessa associação, mas é possível
indicar que tal fator parece ter ao menos auxiliado a inclusão do diagnóstico, alinhando-se a
uma espécie de “espírito dos tempos” de um período “culturalista” em parte da psiquiatria
estadunidense – alinhamento esse que, vale mencionar, se mantém por parte dos propositores
de “problema religioso e espiritual” no artigo publicado um ano após o DSM-IV, na
manutenção da defesa de uma “sensibilização cultural” na psiquiatria (Turner et al., 1995).
No entanto, o acionamento da categoria “cultura” parece não apenas produzir efeitos
no plano das disputas por categorias diagnósticas no DSM. Escrevendo a respeito de casos
envolvendo “minorias étnicas” e “sociedades não-ocidentais”, os autores afirmam:
[é preciso que o terapeuta entenda] a construção cultural da doença do paciente.
Quando o contexto cultural dos pacientes é considerado, alguns problemas que se
apresentam com conteúdos religiosos e espirituais incomuns são, na verdade, livres
de psicopatologias. (Lukoff; Lu; Turner, 1992, p.676, tradução minha)

Aqui, vemos como a questão da não-patologização passa a ser enunciada também a


partir da mobilização da categoria “cultura”. É nesse nível da produção de um diagnóstico
48

diferencial entre “experiências culturais” e fenômenos psicopatológicos que a segunda


categoria diagnóstica de meu interesse nos leva mais decididamente em minha análise.
Além do “problema religioso ou espiritual”, a categoria “transtorno de transe
dissociativo” foi incluída no DSM-IV como um “transtorno dissociativo não especificado de
outra forma” e no “Apêndice B” - reservado aos diagnósticos que necessitam ainda de novas
investigações. Proposta inicialmente sob o nome “transtorno dissociativo de transe e
possessão”, a categoria foi desenvolvida pelo grupo de trabalho do DSM-IV dedicado aos
transtornos dissociativos, e em especial pelo psicólogo Etzel Cardeña junto dos psiquiatras
Roberto Lewis-Fernández e David Spiegel (Cardeña, 1992, pp.288-289). Um dos objetivos
era se adequar à categoria já existente desde a décima versão do guia de diagnósticos
elaborado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), a Classificação Estatística
Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID), publicada em 1992
– na época, a versão mais recente então elaborada.13 De acordo com o DSM-IV:
A característica essencial é um estado involuntário de transe que não é aceito pela
cultura da pessoa como uma parte normal de uma prática coletiva cultural ou
religiosa, e que causa sofrimento ou comprometimento funcional clinicamente
significativos. Este transtorno não deve ser considerado em indivíduos que entram
voluntariamente e sem sofrimento em estados de transe ou possessão em um
contexto de práticas culturais e religiosas que são amplamente aceitas pelo grupo
cultural da pessoa. Tais estados voluntários e não-patológicos são comuns e
constituem a maior parte dos estados de transe e de transe de possessão encontrados
em distintas culturas. No entanto, alguns indivíduos em estados de transe ou transe
de possessão considerados culturalmente normativos podem desenvolver sintomas
que causam sofrimento ou prejuízo, podendo, portanto, ser considerados para o
transtorno proposto. (American Psychiatric Association, 1994, p.727, tradução
minha)

A partir desse trecho da descrição da categoria diagnóstica, vemos como três


condições atuam como demarcadoras das fronteiras entre a patologia e uma experiência
cultural comum: a vontade e o controle da pessoa em relação ao fenômeno; a relação da
experiência com um certo padrão de práticas culturais e religiosas autorizadas pela cultura na
qual a pessoa se insere; e a ausência ou presença de consequências negativas ligadas
diretamente à experiência.
Embora os outros critérios sejam dimensões importantes que compõem a categoria
diagnóstica, me deterei no conjunto dos critérios apenas no capítulo 2 desta dissertação. Neste
momento, estou interessado na dimensão da “normatividade cultural” da experiência. Em um

13 Um pesquisador da área dos estudos sobre dissociação não soube me informar sobre o desenvolvimento da
categoria diagnóstica presente no CID-10, chamada “estados de transe e de possessão”, assim como eu
mesmo não consegui encontra nenhuma informação relativa à sua inclusão. O que posso indicar é que esta
categoria apresenta uma definição alinhada àquela do DSM-IV, sendo uma versão mais simplificada.
49

dos artigos dos propositores da categoria há a defesa de que a inclusão do diagnóstico


“contribuiria para o aumento da sensibilidade cultural e a internacionalização do DSM”
(Lewis-Fernandez, 1992, p.312, tradução minha) – assemelhando-se ao caso de “problema
religioso ou espiritual” em seu acionamento da categoria “cultura” como legitimadora da
reivindicação. Essa situação é reforçada por Kirmayer (1992), ao indicar que a proposição do
diagnóstico de transe dissociativo foi apoiada pelo grupo de “cultura e diagnóstico”, tratado
anteriormente. No entanto, acredito que a preocupação dos proponentes no modo como a
“cultura” é mobilizada nos leva primordialmente a um outro nível da análise, referente à
proposição e operacionalização de um diagnóstico diferencial.
A esse respeito, chama a atenção o fato de um dos critérios de demarcação entre uma
experiência patológica e uma não-patológica ser a consideração de saber se o fenômeno é
considerado “normal” dentro da cultura a qual a pessoa pertence. Em outras palavras, é a
categoria “cultura” que, assim como no caso do diagnóstico de “problema religioso ou
espiritual”, é uma das determinantes necessárias para se poder considerar certas experiências
de transe e de possessão como não sendo em si mesmas patológicas, mas sim determinadas
por um contexto que deve ser levado em consideração. O que me interessa é o fato de,
novamente, esse contexto ser enunciado na qualidade de um “contexto cultural”. Como
afirmado por um dos próprios proponentes, “o contexto é representado somente pelo critério
B do transtorno” (Lewis-Fernandez, 1992, p.304, tradução minha), em que se lê: “O estado
de transe ou transe de possessão não é aceito como uma parte normal de uma prática coletiva
cultural ou religiosa” (American Psychiatric Association, 1994, p.729, tradução minha).
Ao procederem de tal modo, os autores estabelecem ainda um outro termo que não
aparecera na categoria diagnóstica de “problema religioso ou espiritual” e que aqui parece
sempre acompanhar a “cultura”: trata-se do termo “normal”. Essa relação intrínseca
estabelecida entre os dois termos na formulação diagnóstica aponta para duas questões que se
entrelaçam. A primeira delas diz respeito ao efeito do uso dessa associação, que parece tomar
como um dado o fato de existir uma “norma cultural” que recobriria todos os comportamentos
dos membros daquela coletividade, não dando espaço para pontos de fuga e para a questão do
próprio estabelecimento dessa norma. Essa situação acarretaria considerar os comportamentos
tidos como “desviantes” como potencialmente patológicos – indicação já apontada pela
antropóloga Janice Boddy em um comentário sobre a categoria diagnóstica (1992, p.325).
50

Já a segunda questão se refere ao contraste que podemos notar entre a necessidade de


se colocar uma “norma cultural” para o diagnóstico de “transtorno de transe dissociativo” e a
ausência dessa preocupação por parte dos proponentes da categoria “problema religioso ou
espiritual”. Essa diferença parece se dar por conta dos modos como esses distintos autores
conceitualizam os fenômenos, o que resulta na natureza distinta das duas categorias: enquanto
o “transtorno de transe dissociativo” se refere a uma condição patológica diagnosticável,
“problema religioso ou espiritual” pretende se aplicar a problemas de ordem necessariamente
não-patológica, algo que abordaremos com maior ênfase nos capítulos 2 e 3. Nesse sentido, a
defesa que Lewis-Fernández faz de que a categoria de transe dissociativo aumentaria a
sensibilidade cultural do DSM deve ser entendida em seu aspecto ambivalente: por um lado,
no reconhecimento da existência de experiências de transe e possessão não mórbidas; por
outro, na suposta identificação de possíveis transtornos dissociativos existentes em culturas
outras e até então não reconhecidos pelo manual. Nesse último caso, o aumento da
sensibilidade cultural por parte do DSM diria respeito à lógica indicada anteriormente, quanto
ao alargamento da atenção por parte dos saberes psi aos fenômenos considerados patológicos
que antes eram ignorados pelo manual devido a uma “insensibilidade cultural”.
Independente disso, é notável que o movimento dos proponentes de ambas as
categorias diagnósticas se dê no mesmo sentido, ao situarem as experiências religiosas e/ou
espirituais sob a rubrica da “cultura”. Assim, nos dois casos a categoria “cultura” passa a atuar
como uma espécie de dispositivo conceitual em relação ao quadro nosológico da psiquiatria,
um mediador que permite a formulação de um diagnóstico diferencial entre uma
psicopatologia e uma “experiência cultural normal”: ela é transversal à qualquer possibilidade
de se falar em religião e espiritualidade de modo não-patológico no DSM.

Culturalizando religião e espiritualidade


Vemos assim a importância que a “cultura” parece assumir nos debates analisados. Em
particular, acredito que o trabalho desenvolvido por Marilyn Strathern (1991, 1995; Rohden,
2002) a respeito do surgimento de novas tecnologias reprodutivas na Inglaterra possa nos
auxiliar nas questões apresentadas. Partindo de casos específicos ligados a essas tecnologias, a
autora indica como uma atitude apreensiva passa a rondar as possibilidades de usos
introduzidas por esses procedimentos. Seu argumento aponta para os efeitos
desestabilizadores que a invenção dessas práticas acarreta para uma divisão entre o natural e o
51

cultural, o imutável e o passível de manipulação. A partir dessas tecnologias, a reprodução


humana não mais se encontra calcada em uma base biológica, entendida como natural e
imutável. Em vez disso, a decisão e a escolha passam a ser possíveis a partir do uso dessas
práticas, transformando o modo como pensávamos o parentesco.
Meu interesse por seu trabalho diz respeito ao modo como ela conceitualiza cultura e
como ela articula sua definição de modo metodológico em suas análises da utilização dessas
novas tecnologias. Se para ela a cultura é a forma pela qual analogias entre coisas são
estabelecidas por nós, isto é, a “forma como certos pensamentos são utilizados para formular
outros”, uma série de artefatos são ainda criados para que possamos mediar a experiência em
debate (Strathern, 1991, p.1013). A grande questão passa a ser os efeitos que esses artefatos
passam a produzir no modo pelo qual pensamos outros artefatos, nas possibilidades
conceituais e/ou imaginativas introduzidas por eles. É precisamente disso que ela nos fala
quando chama a atenção para como essas tecnologias reprodutivas instauram a possibilidade
de se pensar a procriação e o parentesco humanos de formas distintas de como vinham sendo,
trazendo junto de si novas questões e novos problemas.
Desse modo, embora não esteja interessado em utilizar o conceito cultura em minhas
análises, é a partir das considerações de Strathern que podemos indicar os efeitos particulares
que o acionamento da categoria antropológica “cultura” produz na psiquiatria estadunidense
contemporânea, tornando-se uma importante analogia nos níveis organizacional e epistêmico.
É em torno dela que uma série de atores críticos aos mainstream da psiquiatria estadunidense
se reúnem e propõem mudanças em seu principal manual de categorias diagnósticas,
reconhecendo em sua mobilização a capacidade de incluir considerações que complexifiquem
uma certa universalidade das categorias. Como mencionado anteriormente, questões
referentes a gênero, etnicidade e idade são propostas e incluídas ao DSM, na tentativa de
sensibilizar os profissionais da área a essas questões em sua prática clínica diagnóstica.
Dentro desse pacote que inclui uma série de elementos da realidade que antes não
eram tomados em questão pelos profissionais na relativização e aplicação dos diagnósticos
psiquiátricos, as chamadas “crenças” religiosas e espirituais são também incluídas no manual,
na condição de diferenças que são enquadradas em termos de uma “diferença cultural”, de
questões particulares frente a uma consideração homogeneizante. É nesse sentido que se pode
afirmar que a “cultura” passa a operar como uma condição de possibilidade da inclusão desses
52

diagnósticos no DSM-IV e da enunciação de experiências religiosas e/ou espirituais como


não-patológicas.
Ao ingressarem dessa forma no manual, alguns efeitos são produzidos para o debate.
Dentre eles, o mais notável é a relação com certa “particularização” e “localização” associada
à categoria “cultura”, como explicitei anteriormente. Tal situação encontra certa ressonância
com ao menos dois outros debates envolvendo religiões e práticas terapêuticas. O primeiro
deles diz respeito à questão da presença das religiões no espaço público e na sua relação com
processos de patrimonialização. Isso porque enquanto o catolicismo conseguiu ser
reconhecido enquanto religião por parte do Estado brasileiro com base no direito da liberdade
religiosa, outros grupos tiveram de apelar à estratégia da patrimonialização, instituindo assim
“a construção de uma outra via de presença da religião no espaço público” (Giumbelli, 2008,
p.85). A esse respeito, os textos de Clara Mafra (2011) e Emerson Giumbelli (2008; 2014;
2018) apresentam casos nos quais, de modo mais ou menos eficaz, atores religiosos
reivindicam que o Estado brasileiro reconheça a importância de suas religiões para a “cultura
nacional”, em um processo de patrimonialização de edifícios e outros elementos materiais ou
imateriais que passam a ter sua existência assegurada por parte dos órgãos estatais.
É o exemplo das religiões afro-brasileiras que chama mais a atenção, exatamente por
sua modalidade de presença pública se dar especialmente a partir da lógica da
patrimonialização cultural. Aqui ocorre aquilo que Giumbelli (2008, p.86) chamou de uma via
“diferencialista”, em oposição à “generalista” ligada à ideia da liberdade religiosa, articulada
especialmente pelo catolicismo. No caso “diferencialista”, os recentes processos de
patrimonialização de terreiros de candomblé operam em uma lógica que “culturaliza” a
religião, ao associá-la inevitavelmente à “tradição” de um grupo social em particular que a
pratica e que, portanto, deve ser protegida por parte do Estado brasileiro.
Mais do que isso, o caso das religiões afro-brasileiras interessa não apenas por elas
operarem a partir dessa modalidade de reconhecimento de presença pública que qualifica
“religião como cultura”, mas também por possuírem uma especificidade mesmo no interior da
própria dinâmica de patrimonialização e de sua “culturalização”. Enquanto templos católicos
passaram e continuam a passar por um processo de tombamento histórico em que o que está
em jogo é o valor arquitetônico e histórico de seus edifícios em sua relação com a história do
Brasil, no caso do terreiro de candomblé Casa Branca, analisado por Giumbelli (2014), o que
vemos é uma relação necessária entre o espaço sob consideração, a religião em questão e o
53

grupo social específico de seus praticantes. Ocorre uma justificativa antropológica que associa
inevitavelmente seu espaço físico à religião de um grupo étnico, ligado à população negra e a
sua história ancestral no país. Curiosamente, trata-se de uma dinâmica que ocorria ao menos
desde as produções antropológicas dos psiquiatras Nina Rodrigues e Arthur Ramos ao fim do
século XIX e começo do XX, na qual viam nas religiões afro-brasileiras uma particularidade
que as diferenciava das outras, sendo o caso de Ramos o mais contundente no processo de
“culturalização”.
Por um lado, há aqui a semelhança ao caso do DSM quanto ao processo de
“culturalização” da religião envolver uma certa dinâmica de diferenciação. Se tentei apontar
ao longo deste capítulo como o espaço da diferença no manual de diagnóstico se dá
precisamente pela “cultura” e por sua lógica particularizadora, existe o mesmo processo no
caso das religiões afro-brasileiras em sua relação com o Estado brasileiro. Não à toa, é preciso
que recorram a essa lógica “diferencialista”, na qual a especificidade cultural da religião é o
que conta para o seu reconhecimento no espaço público. No caso da psiquiatria, se trata de se
reconhecer a possibilidade do papel que a religião e a espiritualidade possuem na
conformação de experiências e comportamentos considerados “normais” para grupos sociais
diferentes daquele ligado aos centros urbanos da modernidade ocidental, ainda que a
ambivalência da eterna possibilidade de uma suposta psicopatologia se mantenha. Por outro
lado, é interessante notar como essa associação entre cultura e etnicidade ocorre também no
caso do DSM no reconhecimento da diferença. Isso porque quando se trata de se marcar a
diferença no interior dos Estados Unidos, ela se dá em termos etnicizados, indicando por
exemplo o aumento da comunidade hispânica, afro-americana e asiática na composição
populacional do país. Já quando os autores falam do uso do manual de diagnósticos em países
ao redor do globo, a diferença é reenquadrada em termos culturais.
O outro debate que se assemelha ao da inclusão de categorias sobre religião e
espiritualidade no DSM diz respeito às chamadas “medicinas tradicionais” e sua relação com
as “medicinas alternativas e complementares” no âmbito da Organização Mundial da Saúde
(OMS). Ao fazer uma retomada histórica do modo como essas categorias emergem nos
documentos da Organização, Toniol (2017; 2018) aponta para duas dinâmicas distintas que as
envolve. Embora ambas designem práticas terapêuticas não biomédicas e ao menos desde os
anos 1990 sejam utilizadas nas discussões da OMS em conjunto, como supostas equivalentes,
ao longo de sua utilização vemos como essas categorias são mobilizadas a depender da
54

relação entre as práticas terapêuticas em questão e o contexto de sua utilização. A esse


respeito, enquanto as “medicinas alternativas e complementares” se refeririam às práticas
terapêuticas utilizadas nos países do Ocidente moderno e originadas em outros lugares do
mundo, as “medicinas tradicionais” apresentariam uma ligação territorial e cultural intrínseca
a sua definição. Como sugere o autor:
[A]s experiências e práticas da categoria ‘medicina tradicional’ têm como
características: a presunção de vínculo com sistemas culturais, a origem não
ocidental e a distância da linguagem biomédica. Fundada na cultura, situada
historicamente num passado distante e geograficamente afastada do Ocidente (…).
(Toniol, 2018, p.278)

Dessa forma, a categoria estaria sempre ligada a grupos culturalmente específicos não-
ocidentais, descrevendo práticas terapêuticas utilizadas em contextos particulares. Elas
constituem assim um espaço da alteridade do Ocidente por excelência, naquilo que o autor
indicou como “espiritualidade dos Outros”. No entanto, um outro elemento importante diz
respeito à sua definição se dar em referência à biomedicina. Como indicou Toniol (2017,
p.61), embora a utilização do termo “medicinas tradicionais” tenha de início uma pretensão
simetrizadora à biomedicina, ao postular o estatuto de “medicina” a práticas terapêuticas não-
ocidentais, um efeito hierarquizante retorna à relação ao não se aplicar o mesmo princípio de
localização cultural à biomedicina. O que resulta é que enquanto as “medicinas tradicionais”
se veem culturalizadas, a medicina ocidental permanece fora da cultura e da história.
Para além da mesma operação da “cultura” como um conceito que descreve a
diferença, me interessa aqui a menção a essa dinâmica entre uma intenção simetrizadora e a
manutenção de uma hierarquia. Como aponta o autor, isso ocorre precisamente por uma
relação entre algo que é marcado e localizado (a “medicina tradicional”) e algo que se
mantém desterritorializado e desistoricizado, invariável em qualquer lugar do globo. Tal
situação fica evidente em relação ao DSM principalmente quanto ao resultado final da disputa
envolvendo sua culturalização, no qual a força-tarefa do manual alterou muitas das propostas
originais do grupo de cultura e diagnóstico. 14 A esse respeito, são ilustrativas a introdução das
“síndromes ligadas à cultura” em separado ao quadro nosológico das categorias diagnósticos
principais e a afirmação presente no manual de que os transtornos mentais poderiam
apresentar variações culturais em suas expressões particulares ao redor do mundo. Isso porque

14 No entanto, retomo aqui minha sugestão anterior de que essa mesma dinâmica hierarquizante já se
encontrava presente nas propostas originais do grupo crítico ao DSM. É preciso pensarmos as duas posições,
das propostas originais e daquilo que foi efetivamente incluído, como polos em tensão entre princípios
universalizantes e particularizantes.
55

ao marcarem a variação como “cultural”, o manual deixa não-marcadas as categorias


principais do manual, como se elas também não fossem situadas culturalmente.
O efeito é que enquanto os transtornos mentais apresentados na seção principal do
manual parecem assumir uma aura universal, essas outras marcações culturais tornam-se
índices exóticos, ocorrências outras que se situam em um lugar afastado dos Estados Unidos
ou em populações originalmente externas à composição populacional e cultural do país. A
cultura se torna uma espécie de elemento contaminador à realidade do transtorno mental, que
seria acessada e descrita pela psiquiatria. Incluídas como um elemento cultural, religião e
espiritualidade não apenas dizem respeito ao campo da “diferença”, como também parecem
não possuir espaço dentro da normalidade psíquica do Ocidente moderno.
Há aqui algo que diz respeito a esse processo contemporâneo mais amplo em que a
religião se apresenta e é enquadrada como cultura. Assim como no caso dos processos de
patrimonialização cultural envolvendo as religiões afro-brasileiras, há aqui a operação de uma
lógica antropológica que liga a religião a uma série de outros elementos que comporiam a
cultura. No caso do DSM, religião e espiritualidade vêm junto de gênero, etnicidade, idade,
etc. Por outro lado, como nas “medicinas tradicionais” enunciadas pela OMS, a qualificação
como cultura implica um outro termo não marcado, instituindo um jogo entre certo
particularismo cultural e um universalismo natural. Se para o manual de diagnósticos os
transtornos mentais estão no polo da natureza, a religião e a espiritualidade emergem como
uma exceção, algo que pode escapar à patologização desde que estejam nos contextos
culturais corretos.

***
Dediquei-me neste capítulo ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos
Mentais (DSM), retraçando a história de sua emergência e me debruçando com maior detalhe
em parte do processo da organização de sua quarta edição, publicada em 1994. Em especial,
meu interesse se deu por sua “culturalização”, quando uma série de atores ligados à
psiquiatria e à antropologia se reuniram na formulação de críticas e proposições à edição que
se encontrava em concepção. Apesar de algumas das propostas terem sido ignoradas ou então
transformadas em seu processo de incorporação ao texto, houve uma inclusão considerável de
elementos que tentam dar conta da “cultura” no DSM. Minha aposta ao fazer essa retomada
parte do modo como as categorias “transtorno de transe dissociativo” e “problema religioso
56

ou espiritual” buscaram legitimar sua bem-sucedida inclusão no manual. Assim, ao


ingressarem sob o signo da “cultura”, as questões envolvendo a religião e a espiritualidade se
viram inevitavelmente entrelaçadas à dinâmica da própria culturalização do manual e dos
debates em torno desse processo.
A esse respeito, é o diagnóstico de “transtorno de transe dissociativo” e a literatura
mobilizada em sua concepção que se situa em franca continuidade com os debates
apresentados neste capítulo. Como vimos, “cultura” não apenas operou como legitimadora
para sua inclusão, mas também foi articulada como um critério mesmo de diferenciação entre
experiências de transe ou possessão espiritual “normais” e aquelas consideradas
psicopatológicas. No próximo capítulo, me debruçarei sobre os debates a partir dos quais essa
categoria diagnóstica resultou, dando atenção para como uma experiência religiosa ou
espiritual é produzida como “normal”.
57

Capítulo 2 – A dissociação e a possessão

Em um artigo de opinião publicado em 2013 na revista de divulgação Psychiatric


Times, um debate controverso dos anos 1980 e 1990 era retomado de forma não menos
polêmica.15 Escrito pelo psicólogo e historiador dos saberes psi Richard Noll, o texto tratava
do que ficou conhecido como a explosão de acusações de abusos cometidos contra crianças
em rituais satânicos nos Estados Unidos. O autor questionava se não era hora da psiquiatria
revisitar e reavaliar o papel pequeno mas decisivo que alguns de seus profissionais tiveram na
validação cultural do medo público frente ao “satanismo” – fenômeno que ele e outros autores
qualificavam como um verdadeiro pânico moral (de Young, 2008). Os profissionais em
questão, os quais ele clamava por uma espécie de exercício de mea-culpa, eram aqueles
ligados aos debates em torno da dissociação, em particular os que escreviam sobre ou
atendiam sujeitos diagnosticados com o então chamado transtorno de múltipla personalidade,
carro-chefe da recém-criada classe de transtornos dissociativos do DSM.
Embora o tema dos supostos abusos cometidos em cultos satânicos esteja ligado ao
processo de recuperação de memórias traumáticas durante o processo de psicoterapia e à
questão de sua suposta verdade histórica como um acontecimento factual, o texto de Noll nos
interessa neste trabalho por um outro motivo, que diz respeito ao seu argumento mais amplo e
às conexões que ele estabelece. Explicitando sua posição cética em relação aos transtornos
dissociativos, o autor considerava que a criação e institucionalização do diagnóstico de
transtorno de múltipla personalidade na terceira edição do DSM, publicada em 1980, se
tratava de uma intromissão por parte da psiquiatria em um terreno até então legado à religião.
Para o autor, havia ainda o agravante de os psiquiatras e psicólogos ligados ao comitê
consultivo do DSM saberem “que estavam expandindo a fronteira de jurisdição da psiquiatria
‘científica’ e colonizando o sobrenatural”. Em particular, o próprio interesse nos anos 1990
por parte dos atores do campo de estudos da dissociação pela categoria diagnóstica do
“transtorno de transe dissociativo” e pelos fenômenos recobertos (ou não) por ela era visto por
Noll como uma intensificação dessa perspectiva.
Para entendermos a que Noll se refere não é preciso ir muito além dos critérios
estabelecidos pelo próprio DSM-III para o diagnóstico de “múltipla personalidade”:
15 O texto, as réplicas de alguns psicólogos e psiquiatras mencionados e a tréplica do autor estão disponíveis no
site da revista. Ver: < https://www.psychiatrictimes.com/view/speak-memory > (Consultado em
19/12/2020).
58

A. A existência dentro do indivíduo de duas ou mais distintas personalidades, sendo


cada uma delas dominante em um momento específico.
B. A personalidade que é dominante em qualquer momento específico determina o
comportamento do indivíduo.
C. Cada personalidade individual é complexa e integrada ao seu próprio padrão de
comportamento único e às suas relações sociais. (American Psychiatric Association,
1980, p.259, tradução minha)

Apresentado nessa forma sucinta, a característica central do transtorno seria a


existência e manifestação de ao menos alguma outra personalidade que não a “principal”, isto
é, ligada à identidade “original” do sujeito. Tais critérios fenomenológicos podem nos levar a
pensar em como eles podem abarcar uma variedade de fenômenos de possessão espiritual que
existem nos mais diversos contextos.
Não à toa, essa possível sobreposição foi reconhecida pelo próprio manual em sua
edição revisada, publicada em 1987. Para além de outras alterações feitas no texto referente
ao diagnóstico, houve a inclusão da menção a “possessões” na seção dedicada à descrição do
diagnóstico diferencial. Diz o texto:
A crença de estar possuído por outra pessoa, espírito ou entidade, pode ocorrer
como um sintoma do transtorno de múltipla personalidade. Nesses casos, a queixa
de estar ‘possuído’ na verdade é a experiência da influência da personalidade
alternativa no comportamento e humor da pessoa. No entanto, o sentimento de estar
‘possuído’ pode também ser um delírio em um transtorno psicótico, como a
esquizofrenia, e não um sintoma de um transtorno dissociativo. (American
Psychiatric Association, 1987, pp.271-272, tradução minha e ênfase do autor)

Ainda que fosse possível nos determos com maior calma nesse trecho – se atentando,
por exemplo, para o caráter de “crença” dado à possessão, de forma semelhante à enunciação
da variação cultural da esquizofrenia no DSM-IV, como indicado no capítulo anterior –,
gostaria antes de ampliar o conjunto da análise. Acredito que a dimensão das “experiências de
possessão”, compreendidas de forma abrangente, se constituiu como um problema para uma
série de autores ligados aos estudos sobre dissociação, tendo parte do debate se deslocado nos
anos 1990 com a criação do diagnóstico de “transtorno de transe dissociativo”.
Para que consigamos compreender a emergência desse diagnóstico como um
deslocamento envolto de ambivalências e não apenas como uma ampliação de uma lógica
patologizante já presente no transtorno de múltipla personalidade – posição que Noll está
propenso a defender –, é necessário primeiro que remontemos a uma figura paradigmática da
literatura sobre a dissociação, que parece ter contribuído decisivamente na consolidação dessa
visão patologizante e psicologizante dos fenômenos de possessão e/ou de transes religiosos. É
na própria “pré-história” da múltipla personalidade que vemos o entrelaçamento entre a
59

“origem” da dissociação e casos descritos como fenômenos semelhantes a possessões


demoníacas da tradição cristã.

A múltipla personalidade e a questão da religião


A origem dos debates sobre dissociação se dá especialmente com Pierre Janet (1859-
1947), filósofo, médico e psicólogo francês ativo na virada dos séculos XIX e XX. Sempre
referenciado na literatura como o precursor do interesse pelo fenômeno, o filósofo Ian
Hacking (2000, pp.55-56) o qualifica como uma espécie de patriarca dos estudos sobre
dissociação, tendo sido ele o primeiro a tratar de forma mais sistematizada do estudo dos
fenômenos dissociativos no espaço clínico – ainda que a “múltipla personalidade” se
apresentasse naquele momento na França como uma “dupla personalidade”.16
Aluno de Jean-Martin Charcot, a atuação clínica de Janet se voltava em grande medida
para os casos de pessoas diagnosticadas com histeria, a qual ele considerava uma enfermidade
que afetava a capacidade geral de síntese da consciência. Entre esses casos, ele identificou a
ocorrência repetida de um tipo de fenômeno particular, em que certos elementos da memória
ou da identidade do sujeito afetado se desagregavam de conjuntos mentais da consciência em
direção à subconsciência e se manifestavam de forma autônoma em determinados momentos,
sem o controle da própria pessoa. O suposto todo coeso da identidade e da memória passaria
por um processo de compartimentalização e automatismo, produzindo efeitos visíveis no
comportamento. Dessa forma, a mente se veria dividida em conjuntos diferenciados de
consciência, deixando de ser operada uma síntese unitária da personalidade e passando a
manifestar ataques histéricos menores (como um movimento repetido de membros do corpo)
ou mesmo uma outra personalidade mais ou menos desenvolvida (Maraldi, 2014, pp.200-202;
Castillo, 1994a, p.5).
Uma vez que o fenômeno estava quase sempre associado a uma condição histérica –
ou seja, uma “fraqueza na síntese psicológica” (Blaser, 2015, p.111) –, Janet considerava a
dissociação como um mecanismo fundamentalmente patológico. Para muitos dos autores
recentes do tema da múltipla personalidade (van de Hart; Dorahy, 2009, p.7; Putnam, 1989),
Janet foi o primeiro a dar um valor central para a questão do trauma psicológico como um
elemento primário causador dos sintomas dissociativos. Além disso, a influência de Charcot

16 Sobre as possíveis continuidades e descontinuidades dos fenômenos tratados por Janet na França no final do
século XIX e aqueles que emergiram com maior popularidade nos Estados Unidos nos anos 1980, em que o
número de “personalidades alternativas” era maior, ver Hacking (2000).
60

em seu trabalho contribuiu para o uso que Janet fazia da hipnose como uma técnica
terapêutica que permitia o acesso às memórias traumáticas do sujeito, até então inacessíveis
devido ao esquecimento gerado pela dissociação da memória. A ligação entre a hipnose e a
dissociação era ainda ampliada em sua definição do estado hipnótico como uma forma de
dissociação, estabelecendo assim uma conexão que seria retrabalhada nas recentes produções
sobre o tema.17
Embora eu esteja interessado no recente desenvolvimento dos trabalhos sobre
dissociação e em sua apreensão de experiências religiosas e/ou possessivas ligadas ou não a
uma religião, a figura de Janet é paradigmática pela posição central que o autor ocupa nas
bibliografias e na produção da autoimagem de boa parte da literatura recente. A esse respeito,
por exemplo, é ilustrativa a mobilização que se faz dele como uma espécie de “anti-Freud”,
quanto ao interesse pelos fenômenos dissociativos e à própria questão da ligação desses
fenômenos com as experiências traumáticas, elemento tão central em produções recentes
(Hacking, 2000, p.55; tal mobilização é evidente, por exemplo, em Castillo, 1994a).18
Dentre os casos sob cuidado de Janet que foram descritos por ele está o de Achille,
apresentado em sua obra Névroses et idées fixes, publicada originalmente em 1898. De acordo
com a descrição oferecida por Janet, Achille era um homem de 33 anos no momento de sua
passagem por Salpêtrière, hospital psiquiátrico em que o médico trabalhava. Tratava-se de um
pequeno comerciante vindo de uma família de camponeses do sul do país. Embora ele próprio
não fosse “supersticioso” e nem tivesse muitas “crenças religiosas”, seus companheiros de
vilarejo e sua própria família o eram, tendo seu pai sido acusado de se entregar ao diabo e de
conversar com a figura demoníaca todos os domingos em troca de dinheiro – algo que Janet
enfatiza para afirmar que Achille era “hereditariamente predisposto à insanidade” (Janet,
1898, p.380, tradução minha). Apesar disso, Achille conseguira levar uma vida considerada
normal, se casando e tendo uma filha. Sua vida começou a mudar a partir do retorno à casa

17 Sobre a produção teórica de Janet e a construção e operacionalização de seus conceitos, ver o detalhado
trabalho de Juliana Gonçalves Blaser (2015). A respeito da hipnose, Janet seguia as posições de seu mestre,
Charcot, se opondo à teoria da chamada Escola de Nancy, encabeçada por Bernheim. De acordo com
Bernheim, o estado hipnótico seria um estado sugestionado, sem uma alteração significativa dos
mecanismos psicológicos envolvidos. Enquanto a posição de Janet seria desenvolvida e modificada pela
teoria neodissociativa de Ermest Hilgard nos anos 1970, a de Bernheim daria seus frutos na teoria
sociocognitiva de Nicholas Spanos (Riskin; Frankel, 1994).
18 De acordo com Castillo (1994a, pp.10-11), se a princípio Freud teria considerado que os sintomas histéricos
de seus pacientes se deviam a traumas psicológicos decorrentes de abusos sexuais em sua infância – algo
consistente com a proposição de Janet –, posteriormente o pai da psicanálise abandonara essa chamada
“teoria da sedução”. Em lugar de eventos reais, Freud proporia que as memórias sexuais infantis se deviam a
fantasias presentes na infância, que seriam reprimidas pela culpa envolvida.
61

após uma curta viagem a trabalho, já no ano de sua futura internação. Embora ele dissesse
estar bem, sua esposa o encontrou mudado, agindo de forma sombria e distante em relação a
ela e a sua filha. Seu estado foi piorando com o passar do tempo, indo de um mutismo
completo acompanhado por dias sem sair de sua cama, até uma euforia que ele alegava ser
produzida pelo próprio diabo que possuía seu corpo e o fazia de tempos em tempos gritar
blasfêmias contra Deus e os santos – elementos esses que Janet comparou com os presentes
no diário de Jeanne des Anges, uma das vítimas da epidemia de possessões demoníacas de
Loudun, no século XVII (Andriopoulos, 2014, p.89).
Após seguidas tentativas de suicídio e a visita de alguns médicos, a família decidiu por
levá-lo à Salpêtrière, seguindo o conselho de um dos médicos que, nas palavras de Janet
(1898, p.383, tradução minha), afirmara ser “o local mais propício hoje em dia para o
exorcismo dos possuídos e a expulsão dos demônios”. Nas fracassadas tentativas iniciais por
parte de Janet em hipnotizar Achille, era o diabo quem respondia ao médico, zombando de
sua impotência. Foi apenas quando conseguiu induzir seu paciente à prática da escrita
automática que ele pôde então conversar com o próprio diabo – que o respondia pela escrita –,
convencendo-o a provar seus poderes ao colocar Achille no estado de sonambulismo, ou seja,
de profundo transe. Instado pelo desafio, o demônio assim o fizera. Foi nesse momento que
Janet pôde descobrir o que ele considerou a verdadeira razão do comportamento de seu
paciente, que passara a responder suas perguntas sem maiores resistências: não havia
verdadeira possessão, e tudo se devia ao remorso que Achille sentia por ter sido infiel à sua
esposa em sua viagem a trabalho, evento esse que foi dissociado de sua memória e da sua
consciência em vigília, e retornara na forma de um demônio. Dessa forma, o “exorcismo
moderno” a que Janet se referia no próprio título do texto passava pela cura dos sintomas de
amnésia e da emergência de uma outra personalidade (a do demônio), algo que só pôde se dar
a partir de sugestões hipnóticas variadas, dentre as quais a que sua esposa o havia perdoado,
reintegrando assim a memória traumática de Achille à sua personalidade.
Mesmo que o tema da possessão demoníaca cristã seja um exemplo extremo das
ambiguidades entre o suposto estado psicológico do sujeito afetado e a possibilidade de uma
verdadeira possessão – devido ao sofrimento envolvido –, a opinião de Janet a respeito dos
médiuns de seu tempo não era muito diferente. Ao menos é isso o que ele nos deixa entrever
em sua tese de doutoramento em filosofia, intitulada L’automatisme psychologique e
publicada originalmente em 1889. Em seu trabalho, Janet dedica um capítulo inteiro apenas
62

ao fenômeno mediúnico, da comunicação espiritual, qualificado por ele como a manifestação


de uma parte desagregada da mente do praticante (Maraldi, 2011, p.123; Moreira-Almeida;
Lotufo Neto, 2004).
É verdade que autores como o filósofo e psicólogo William James – um dos que
introduziram o termo “dissociação” na literatura de língua inglesa (Hacking, 2000, p.55) – e
os membros envolvidos na Society for Psychical Research na Inglaterra (Alvarado, 2002)
relativizaram a distinção absoluta entre experiências religiosas patológicas e não-patológicas
na mesma época em que Janet escrevia. Ainda assim, essa tensão vista em Janet de interesse
clínico por parte de psicólogos e psiquiatras sobre experiências entendidas como religiosas ou
espirituais parece ter se mantido ao longo do tempo, em uma certa continuidade em sua
concepção enquanto um problema de ordem prática e teórica. Ao mesmo tempo, sua
contribuição ao enquadrar casos de possessão como um fenômeno dissociativo se manteve na
literatura, instituindo uma consolidada interpretação psicológica sobre esses fenômenos. Não
à toa, esse tipo de interpretação chegou a ser inclusive utilizada por antropólogos nos anos
1960 e 1970 na compreensão das experiências de possessão espiritual, como veremos mais à
frente.
Basta que voltemos ao debate indicado por Noll e mencionado no começo deste
capítulo para reencontrarmos essa problemática em uma aparição mais recente. Em
determinado momento de seu texto, Noll relata sobre como a possessão e o exorcismo se
mantiveram como temas de debate na revista Dissociation, publicação oficial da então
Sociedade Internacional para o Estudo da Múltipla Personalidade e Dissociação e principal
espaço de discussão dos psiquiatras e psicólogos ligados aos estudos e tratamentos da múltipla
personalidade (Hacking, 2000, p.50). Noll fazia referência aqui a um dossiê organizado
exatamente sobre esse tema, publicado em 1993, e que contara com sua própria participação
como comentador dos textos apresentados.
Enquanto uma instância de debate, podemos notar como o dossiê faz emergir uma
gama de posicionamentos em torno da questão, algo que fica explícito no próprio
desdobramento do texto de opinião de Noll, escrito 20 anos após a publicação do dossiê. Isso
porque se em 2013 ele se referia em tom crítico à existência de uma edição especial dedicada
à questão, sua provocação não foi recebida em silêncio. Em resposta ao artigo publicado na
Psychiatric Times, o psiquiatra Richard Kluft, então editor da Dissociation na época da
realização do dossiê, argumentava que o interesse pelos fenômenos possessivos se dava não
63

nos termos de uma “promoção da colonização do sobrenatural” – como Noll o havia acusado
–, mas sim de uma movimentação por parte da psiquiatria em promover uma “perspectiva
intercultural”.
O próprio dossiê de 1993 apontava para esse estado de coisas no campo dos estudos
sobre dissociação. Composto por quatro artigos originais, três comentários (Noll entre os
comentaristas) e as réplicas dos autores, as produções ali reunidas deixam claro como a
questão estava dividida. Isso porque se dois dos artigos originais se colocavam em um sentido
bastante semelhante àquele operado por Janet, os outros dois passavam a articular uma forma
de enunciação mais sutil, com aportes teóricos vindos especialmente da literatura
antropológica.
No caso dos artigos que se mostravam em continuidade com a posição de Janet,
qualquer enunciação pelo tema se dava sob a assertiva de que os supostos estados possessivos
se tratam apenas de algum transtorno dissociativo como a múltipla personalidade, sendo
necessária não a realização de um exorcismo de qualquer tipo, mas sim a psicoterapia voltada
para esse tipo de transtorno. A psiquiatra e professora da Universidade de Indiana, Elizabeth
Bowman (1993) – que viria a se tornar presidente da Sociedade Internacional entre 1995 e
1996 –, e o psiquiatra George Fraser (1993), apresentavam dados e relatos de casos da
realização de exorcismos cristãos em pessoas posteriormente diagnosticadas com o transtorno
de múltipla personalidade por eles próprios ou por seus colegas de profissão. A mobilização
desses casos na construção do argumento deles opera como um modo de evidenciar os perigos
envolvidos nas práticas religiosas de exorcismo, servindo como um alerta para os terapeutas
que viam com bons olhos a adoção dessa prática mesmo em um espaço terapêutico. No
entanto, toda a construção retórica dos textos se dava a partir de um a priori mais ou menos
evidente sobre o fenômeno, algo que foi questionado pelos três debatedores do dossiê (Rosik,
1993; Noll, 1993; Crabtree, 1993). Esse é o caso de Fraser (1993), que embora tenha sido
mais sutil ao longo do artigo, afirmava logo em sua introdução:
Aqueles de nós que são familiares com a atual teoria e apresentação clínica dos
estados de ego dissociados no transtorno de múltipla personalidade são
provavelmente a primeira geração de terapeutas que sabem a verdadeira natureza
dessas supostas entidades possessivas nas versões judaico-cristãs da síndrome
possessiva. Do ponto de vista científico, tais entidades representam estados de ego
dissociados da pessoa ‘possuída’. (…) No passado, a apresentação de estados de
ego dissociados era erroneamente interpretada como sendo de origem sobrenatural,
e como tal, deveria ser tratada em uma base sobrenatural [exorcismo]. (Fraser, 1993,
p.239, tradução e ênfase minhas)
64

Vemos nesse trecho como seu argumento parte da suposição que experiências
possessivas são na verdade “estados de ego dissociados”. Mais do que isso, o autor se permite
até uma leitura em retrospecto, típica daquela operada por Charcot junto de Paul Richet na
análise de obras de arte que representavam possessões demoníacas ao longo da história, em
que afirmavam que as personagens apresentadas não estavam possuídas por algum espírito
maligno, mas eram na realidade afetadas pela histeria (Gonçalves; Ortega, 2013; Grossi,
2020). Com alguma ironia, o precedente histórico do tipo de conclusão trai a suposição do
ineditismo da “descoberta médica” de Fraser. De forma similar, Bowman (1993) não apenas
remete à mesma lógica de releitura diagnóstica atual e da história das possessões demoníacas
cristãs, como também em mais de um momento (Bowman apud Rosik, 2003) afirma ser
necessário “educar a comunidade cristã conservadora sobre a realidade do transtorno de
múltipla personalidade e sobre como ele pode se assemelhar à sua conceitualização [cristã] da
possessão demoníaca” (Bowman, 1993, pp.230-231, tradução minha).
Os outros dois artigos escritos para esse mesmo dossiê são os de autoria do psiquiatra
e professor da Universidade de Indiana, Phillip Coons – uma referência importante no campo
de estudos da múltipla personalidade e antigo presidente da Sociedade Internacional em 1988
e 1989 –, e do psicólogo clínico e ex-professor assistente de psiquiatria na Universidade de
Yale, David Begelman, quem havia concebido e organizado o dossiê. Mais do que a vontade
de abarcar todas as contribuições originais do dossiê, minha intenção ao trazer esses dois
artigos para a análise é a de introduzir um outro posicionamento frente ao tema das possessões
espirituais, em que se articulam formas de enunciação dessas experiências como não sendo
necessariamente psicopatologias como a múltipla personalidade, e que, não por acaso,
mencionam a categoria diagnóstico “transtorno de transe dissociativo”, apresentada no
capítulo anterior. Esses textos diferem dos de Bowman e Fraser não apenas por se
posicionarem do lado oposto do debate, mas também por se concentrarem em discussões no
plano teórico e em análises que não são de casos isolados, algo que talvez possa ser explicado
por se tratarem de contribuições que tentam instituir uma chave de análise diferente daquela
operada majoritariamente nos saberes psi ao menos desde Charcot e Janet.
De fato, Begelman (1993a) e Coons (1993) partem do argumento de que os fenômenos
de possessão espiritual não são redutíveis a uma condição psicopatológica, embora os autores
difiram em relação ao nível da relativização dessa correlação. Em sua resposta oferecida aos
comentários dos debatedores, Begelman (1993b) argumenta que há apenas uma sobreposição
65

parcial entre a ocorrência de estados dissociativos e a crença na ocorrência de uma possessão


espiritual, e que essa sobreposição pode ou não estar ligada à existência de um transtorno
dissociativo como a múltipla personalidade. Em outras palavras, o autor afirma reconhecer a
existência de experiências possessivas não-patológicas. Da forma semelhante, Coons (1993)
defende a mesma posição da existência de uma clivagem nos fenômenos possessivos, em que
se dividiriam entre aqueles considerados “normais” e os que envolveriam a existência de uma
psicopatologia de tipo dissociativa.
Ao proporem a existência dessa clivagem no fenômeno, implicando uma existência
considerada “normal” de ao menos algumas experiências de possessão espiritual, o
procedimento de análise se altera em relação aos textos de Bowman e Fraser. Como
mencionado anteriormente, a análise empírica de relatos de casos isolados deixa de estar
presente na construção textual. Isso porque as unidades de análise passam a ser de outro tipo,
envolvendo coletividades e conjuntos de significações e comportamentos que se sobrepõem
ao plano individual e que não se restringem a ele. Begelman (1993a, p.202), por exemplo,
recorre à exemplificação do argumento pela referência aos casos das possessões pelo espírito
santo em grupos pentecostais e carismáticos dos Estados Unidos e à prática da mediunidade
espiritualista e espírita nos séculos XIX e XX. Coons (1993, pp.215-216) é ainda mais
enfático nesse sentido, trazendo uma subseção do texto intitulada “Formas não
psicopatológicas de possessão e transe de possessão”, em que além dos casos já mencionados
por Begelman, ele descreve os fenômenos do vodu haitiano, das religiões mediúnicas
brasileiras (espiritismo kardecista, umbanda, candomblé, xangô, etc.) e do xamanismo.
No processo de formular modos similares de concepção da questão, os autores
recorrem a uma operação epistêmica presente em parte do próprio campo de estudos de
dissociação. Não à toa, um de seus artefatos não apenas foi citado explicitamente por Coons
(1993, pp.216-217), como também orientou parte do debate do dossiê: a categoria diagnóstica
“transtorno de transe dissociativo”. Embora no momento da organização e publicação do
dossiê o diagnóstico ainda não tivesse sido oficialmente incluído no DSM – dado que a quarta
edição do manual só viria a ser publicada no ano seguinte, em 1994 –, os autores tinham
conhecimento dos debates em torno dele. O próprio Coons fizera parte do comitê consultivo
de transtornos dissociativos para o DSM-III-R, em que foi levantada pela primeira vez a
possibilidade de inclusão de uma categoria diagnóstica específica para casos de transe e
possessão (Kluft; Steinberg; Spitzer,1988, p.44).
66

De fato, a mobilização do diagnóstico apenas explicita os vínculos que esses autores


mantinham com um certo modo de se encarar a questão da possessão e dos transtornos
dissociativos que já há alguns anos vinha se constituindo. Em outras palavras, podemos dizer
que o diagnóstico é a superfície, a sedimentação de um conjunto de associações que envolve
conceitos e pesquisas que atravessam as fronteiras formais de áreas do conhecimento, mas
que também produz efeitos em sua posterior utilização. Para que possamos melhor
compreender o tipo de formulação que o diagnóstico coloca em circulação, é preciso que não
apenas nos detenhamos em seu texto incluído efetivamente no DSM, mas que também
recorramos ao conjunto mais amplo do qual ele é resultado e, em parte, novo produtor. Nesse
aspecto, encontramos duas frentes de debates que me parecem fundamentais para
entendermos a abertura que “transtorno de transe dissociativo” oferece à possibilidade da
existência de experiências de transes religiosos e de possessões espirituais “normais”. A
primeira delas diz respeito aos debates em torno da “dissociação” como um conceito que
descreveria fenômenos normais (não-patológicos). Já a segunda se refere às produções
antropológicas que evidenciam a “normalidade cultural” de estados possessivos e de transe
religioso em “outras” culturas.

Normalizando a dissociação
Embora o tema da dissociação e os casos de múltipla personalidade tenham chamado a
atenção de psicólogos e psiquiatras no final do século XIX e nas duas primeiras décadas do
século XX – especialmente nos Estados Unidos, com William James e Morton Prince –, por
volta de 1920 o interesse já havia esfriado, assim como a aparição desses casos no espaço da
clínica, algo que só viria a retornar com mais força no debate dos saberes psi a partir dos anos
1970. Independente das possíveis causas dessa lacuna na história dos transtornos
dissociativos,19 a questão é que quando o tema voltou a interessar psiquiatras e psicólogos a
partir especialmente dos anos 1980, algo havia mudado em sua concepção. Se em Janet a
dissociação estava inevitavelmente ligada a uma condição mórbida, no final do século XX já
era comum um entendimento desse fenômeno psicológico como algo também normal.

19 Há ao menos duas posições que tentam explicar esse certo vazio entre 1920 e 1970, quando o tema voltará a
ser debatido com algum interesse nas revistas acadêmicas da área. Se para os céticos a queda do número de
casos se dava devido ao fato dos transtornos dissociativos serem condições sugestionadas pelo terapeuta
(e.g. Acocella, 1999), para os que defendiam sua existência isso se devia à prática incorreta do diagnóstico,
efeito da ascensão da psicanálise (e da histeria) e da criação do diagnóstico de esquizofrenia nesse meio
tempo (Ross, 1996, p.6).
67

Esse novo entendimento da questão está presente na proposição do diagnóstico


“transtorno de transe dissociativo”. Em um dossiê dedicado ao tema, dois dos principais
propositores da categoria, o psicólogo Etzel Cardeña e o psiquiatra cultural Roberto Lewis-
Fernández, contribuíram com artigos originais em que expunham as intenções envoltas da
proposta e alguns potenciais questionamentos frente a ela. É com Cardeña (1992) que a
rationale da categoria fica mais evidente, ressaltando os critérios que permitem reconhecer
um fenômeno patológico – a partir de seu contexto de ocorrência e do controle ou vontade da
pessoa sobre o fenômeno. Já o texto de Lewis-Fernández (1992) recorre às questões de ordem
cultural de um ponto de vista mais geral, sobre a necessidade de se atentar ao contexto local
das experiências para diferenciar condições mórbidas de fenômenos normais.
Para esses autores, assim como os casos de transe e transe de possessão considerados
por eles como patológicos, também os considerados “normais” seriam fenômenos
dissociativos. Isso fica evidente no texto de Lewis-Fernández quando, ainda que rapidamente,
mobiliza a “dissociação” como uma categoria que ajuda a compreender os fenômenos não-
patológicos. De acordo com o autor:
a esmagadora maioria dos estados de transe em diversas culturas é normal, e
provavelmente representa o uso voluntário da habilidade dissociativa não-aflitiva
para os propósitos e curas rituais, práticas religiosas e filosóficas e rituais seculares
de vários tipos culturalmente aceitos (…). (Lewis-Fernández, 1992, p.304-305,
tradução e ênfase minha)

Será dessa mesma forma que Cardeña (1989, p.14), em um texto anterior a esse
debate, irá se referir à “dissociação” nas práticas possessivas, partindo de sua análise do caso
do vodu haitiano: como uma “capacidade” do indivíduo.
De fato, essa noção de que a dissociação não estaria necessariamente ligada a um
fenômeno psicopatológico já era a perspectiva consolidada na literatura psiquiátrica e
psicológica sobre o tema nessa época. Mais especificamente, ela se dava a partir da concepção
de que a dissociação existe em uma espécie de continuum, que vai de formas mais brandas até
mais intensas. Na metade dos anos 1980 podíamos ler em um dos principais artigos sobre o
tema da múltipla personalidade a seguinte afirmação:
A maioria das autoridades em dissociação a identificam como ocorrendo em formas
menores e maiores ou patológicas. Essas diferentes formas são geralmente
conceitualizadas como situadas ao longo de um continuum, desde as dissociações
menores da vida cotidiana até as principais formas de psicopatologia, como o
transtorno de múltipla personalidade. (Bernstein; Putnam, 1986, p.728, tradução
minha)
68

Tal interpretação da dissociação se tornou tão difundida que muitas vezes sua
enunciação passou a ocorrer sem qualquer referência a estudos ou trabalhos que a
comprovasse, se tornando aquilo que Latour (2011, p.32) chama de uma modalidade positiva,
isto é, um enunciado que vale por si mesmo como um fato, se afastando dos detalhes das
condições de sua produção. Em grande medida, a difusão e consolidação dessa interpretação
“normalizadora” da dissociação se deve a esse mesmo texto de Eve Bernstein e Frank
Putnam, já que foi ele que instituiu a primeira escala de avaliação de experiências
dissociativas – a Escala de Experiências Dissociativas –, que viria a ser amplamente utilizada
como um instrumento de pesquisa após sua publicação. Essa escala se constitui a partir de um
questionário de 28 perguntas em que o sujeito entrevistado deve responder, de 0% a 100%, o
quanto ele vivenciara determinadas experiências. Dentre as questões, há tanto perguntas sobre
fenômenos corriqueiros e normais – como sonhar acordado, falar sozinho, ou se sentir
absorvido ao assistir a um filme –, quanto sobre experiências mais incomuns ou intensas –
sobre a sensação de despossessão corporal, de sentir que coisas e pessoas ao redor não são
reais, ou de não se reconhecer no espelho. Para os autores e seu questionário, todas essas
experiências mais ou menos díspares teriam como semelhança o fato de serem “dissociações”
psicológicas.
Como argumenta Hacking (2000, p.119), a escala construída por esses autores opera
em um movimento argumentativo tautológico, uma vez que Bernstein e Putnam partiram da
existência do continuum como uma hipótese a ser “testada”, sem, no entanto, construírem um
instrumento que permitisse testar de fato essa hipótese. Isso porque a escala constrange os
resultados do questionário a se distribuírem na forma de um continuum que vai da menor
pontuação dissociativa para a maior. Boa parte das questões incluídas se referiam a
fenômenos relativamente normais, como a “absorção”, o que impede que alguém consiga uma
pontuação zerada como resultado. Dessa forma, ao aplicar esse questionário tanto em
populações “normais” quanto em aquelas diagnosticadas com algum tipo de transtorno
mental, todos aqueles que responderam ao questionário se viram contidos em seu resultado.
Essa autorreferencialidade é explícita quando em outro momento Putnam (1989, p.415)
argumenta que os resultados do uso dessa escala são evidências que apoiam o conceito do
continuum dissociativo. Ecoando os trabalhos de Latour, Hacking afirma:
Dessa forma os questionários objetivam e legitimam a múltipla personalidade – o
terapeuta é levado a sentir que está usando um instrumento científico. Um
antropólogo observando as práticas de programar e testar os questionários poderá
sugerir que a sua função básica não é prover um instrumento de trabalho para os
69

hospitais ou clínicas, mas estabelecer a objetividade do conhecimento sobre


distúrbios dissociativos. (Hacking, 2000, p.114)

No entanto, embora o uso desse instrumento tenha consolidado a conceitualização do


continuum dissociativo a partir de sua mediação na produção mesma do fenômeno,
objetivando-o, Bernstein e Putnam tiveram de referenciar outros trabalhos para sustentar a
ideia de início de sua proposta. Dentre as referências – situadas exatamente no trecho que citei
acima –, chamam a atenção os trabalhos dos psiquiatras Arnold Ludwig e Ernest Hilgard,
ambos situados entre os anos 1960 e 1970. A esse respeito, é o texto de Onno van der Hart e
Martin Dorahy (2009), dois psicólogos de fora da América do Norte, que melhor apreende
esse momento da história. De acordo com os autores:
O final dos anos 1960 foi marcado pelo aumento do interesse acadêmico, não-
clínico, na dissociação (ou, ao menos, por experiências semelhantes à dissociação
[dissociative-like]). Ao contrário dos trabalhos anteriores, esse novo interesse levou
à ampliação do conceito de dissociação: ele passou a ser aplicado a experiências que
não estavam relacionadas a divisões de consciência (ou ao que, às vezes, foi referido
como divisões na personalidade). (van der Hart; Dorahy, 2009, p.15, tradução
minha)

A contribuição de Ludwig para esse debate diz respeito ao seu papel central na
consolidação dos estudos sobre estados alterados de consciência. De fato, foi em um artigo
publicado originalmente em 1966 – e republicado em 1969 no importante compêndio
organizado pelo psicólogo e parapsicólogo Charles Tart em torno do tema – que Ludwig
estabeleceu o que é considerada a primeira definição sobre o termo. Para ele, os estados
alterados de consciência (EAC) são:
qualquer estado mental, induzido por quaisquer manobras ou agentes fisiológicos,
psicológicos ou farmacológicos, que pode ser reconhecido subjetivamente pelo
próprio indivíduo (ou por um observador objetivo do indivíduo) como representando
um desvio suficiente na experiência subjetiva ou funcionamento psicológico de
certas normas gerais para aquele indivíduo durante a consciência alerta, desperta.
(Ludwig, 1969, p.11, tradução minha)

Embora suas referências à “dissociação” ao longo de seu texto se deem quase sempre
em um sentido psicopatológico (associado a uma condição histérica, por exemplo), van der
Hart e Dorahy (2009, p.16) argumentam que sua definição dos EAC’s é comparável ao
entendimento contemporâneo sobre o continuum dissociativo. A própria dissociação parece
ser entendida como constituindo um “tipo” de EAC, passando a se associar mais diretamente
a toda uma outra gama de fenômenos, como os estados de “transe”, entendidos em seu sentido
mais abrangente, apresentados na lista oferecida por Ludwig (1969, pp.13-14). Em certo
sentido, os dois termos se tonaram sinônimos em seu uso na literatura. Para Ludwig, esses
70

estados envolveriam tanto formas “adaptativas” quanto “mal adaptativas” (normais e


patológicas).20 Não à toa, o restante da obra organizada por Tart (1969) é composta por textos
que se debruçam sobre experiências místicas, de consumo de drogas psicodélicas como o
LSD, de alterações da consciência durante os sonhos, de meditação, de hipnose, dando conta
tanto de relacionar essa série variada de fenômenos, quanto de se atentar aos seus métodos de
indução.
Por outro lado, a obra de Ernest Hilgard (1986) foi aquela responsável pela
consolidação dessa nova abrangência descritiva do termo, tendo sido publicada originalmente
em 1977. Psiquiatra com longa atuação na área das pesquisas experimentais sobre hipnose, o
trabalho de Hilgard estabeleceu as bases para aquilo que chamou de teoria neodissociativa do
estado hipnótico. O importante de sua contribuição para esta dissertação diz respeito ao
deslocamento que ele operou no uso do termo como então feito no século XIX e começo do
XX. Em lugar do interesse pelas divisões estruturais de personalidade durante estados
hipnóticos ou em condições histéricas, sua proposta da teoria neodissociativa estava
interessada nas atividades mentais durante a realização simultânea de distintas atividades
cognitivas. Nesse sentido, o termo “dissociação” passou a recobrir também atividades
cotidianas que envolviam a divisão da atenção durante a realização “automática” de certas
tarefas (por exemplo, ao se conduzir corretamente um automóvel sem se atentar
constantemente ao trajeto), ao mesmo tempo em que continuava a enquadrar os casos de
múltipla personalidade como um exemplo da dissociação por excelência (van der Hart;
Dorahy, 2009, p.17).
Com a publicação do DSM-III e a criação da seção dos transtornos dissociativos, o
deslocamento das estruturas da personalidade para os aspectos fenomenológicos do tema foi
não só realizada oficialmente, como popularizada a partir da importância do manual. Nas
palavras de van der Hart e Dorahy (2009, p.18, tradução minha), “a dissociação passou a ser
entendida de forma mais ampla como um ‘colapso’ derivado psicologicamente no
funcionamento integrado normal”. Ainda que autores como Cardeña (1994) e os próprios van
der Hart e Dorahy sejam críticos dessa abrangência mais recente do conceito, é inegável a
ampla circulação de seu uso na literatura junto da noção da dissociação como um
“mecanismo” psicológico que não seria redutível apenas a uma resposta ao trauma

20 Vale ressaltar que nos anos 1980 Ludwig (1983) defenderia explicitamente que a experiência dissociativa
poderia ou não ser patológica, embora ele não tenha se manifestado a respeito da ideia do continuum.
71

psicológico – algo consolidado no debate sobre transtornos dissociativos –, mas também


como uma “capacidade” variável entre a população.
Da mesma forma, a suposta existência de um continuum dissociativo é mais
recentemente contestada por alguns autores em favor de uma noção tipológica que diferencie
experiências patológicas de não-patológicas – dentre eles o próprio Putnam, um dos criadores
da primeira escala (Waller; Putnam; Carlson, 1996). No entanto, a ideia de um continuum
dissociativo parece ter contribuído decisivamente na mudança ocorrida na literatura em
relação à possível existência de estados dissociativos não patológicos.
Essa espécie de “vantagem estratégica” da concepção do continuum é inclusive
reconhecida indiretamente pela psicóloga Lisa Butler (2004), em um editorial para um dossiê
coordenado por ela em torno do tema da “dissociação na cultura”. Ao afirmar que a literatura
sobre o tema observa que as experiências dissociativas se situam ao longo de um continuum, 21
a autora indica uma nota de rodapé na qual diz invocar a “metáfora do continuum para
transmitir, como outros fizeram, aspectos da apresentação fenotípica. Eu não quero sugerir
que um único continuum pode ou de fato capturar a complexidade subjacente de experiências
ou mecanismos dissociativos” (Butler, 2004, p.9, tradução minha). Nesse sentido, essa
conceituação parece ser mobilizada em certos casos para operar mais como um atalho já
consolidado sobre a afirmada existência de experiências dissociativas não-patológicas, não
sendo levado às últimas consequências as implicações de se pensar uma noção bidimensional
e gradativa das experiências dissociativas, como um continuum.
Essa abertura a fenômenos ligados àquilo que a própria Butler (2006) chama de
“dissociação normativa” é fundamental para a ampliação do escopo de objetos de
conhecimento considerados não-patológicos. Volto a enfatizar, no entanto, que esse
procedimento estabelece uma conexão não necessariamente óbvia entre distintos fenômenos.
Parece haver aqui algo de análogo ao campo dos estudos dos estados alterados de consciência,
provavelmente um efeito direto da aproximação que houve entre essas áreas de pesquisas
acadêmicas nos anos 1960. Em certo sentido, isso parece decorrer também da noção da
dissociação como uma capacidade, algo que pode ser “utilizado” e “treinado” de distintas
formas. Não à toa, o dossiê em questão que tratava sobre a “dissociação na cultura” contou
com contribuições originais sobre o gênero de música eletrônica “new age” e “trance”, a

21 Duas de suas três referências para “comprovar” esse enunciado são o texto de Bernstein e Putnam (1986),
em que propunham originalmente a Escala de Experiências Dissociativas, e o artigo de Ludwig (1983) dos
anos 1980, em que o autor não faz referência à ideia do continuum.
72

prática de meditação, as possessões espirituais no pensamento Cabalista do século XVI e as


práticas de transe religioso em igrejas cristãs contemporâneas nos Estados Unidos – esse
último escrito pela renomada antropóloga Tanya Luhrmann (2004).
A própria trajetória de certos atores desse campo, em sua relação com o teatro,
também é um exemplo dessa abertura. David Begelman, psicólogo mencionado anteriormente
como um dos participantes do dossiê sobre exorcismos e possessões, trabalhara como crítico
de teatro e de cinema, além de ter atuado profissionalmente no teatro. O próprio Cardeña
relata em uma entrevista recente22 que além de atualmente ser diretor de arte do Teatro
Internacional de Malmo – cidade na qual hoje é professor universitário da cadeira de
parapsicologia –, também atuou profissionalmente durante o período em que fazia sua
graduação em psicologia no México, seu país de origem. Foi durante a realização de uma peça
experimental que Cardeña entrara em um “estado alterado de consciência, apenas pela
atividade física que era muito extenuante, sem drogas ou qualquer coisa do tipo”. De acordo
com o psicólogo, isso o impactou profundamente, a ponto de o fazer abandonar seu desejo de
se tornar psicólogo clínico para se dedicar a pesquisar o assunto, o que o fez realizar seu
doutoramento em psicologia na Universidade da Califórnia, em Davis, sob supervisão do
próprio Charles Tart, organizador da obra sobre estados alterados de consciência e referência
importante no campo da parapsicologia.
A esse respeito, é indicativo do alargamento do “domínio da dissociação” alguns
exemplos comparativos que o próprio Cardeña utiliza em seus textos, mais de passagem do
que com maiores consequências analíticas. Em ao menos dois de seus textos (Cardeña, 1989;
Cardeña et al., 2009) o psicólogo recorre a um trecho do livro de memórias do bailarino
Léonide Massine, em que ele relata a sensação de, durante uma de suas apresentações, sentir
em seus movimentos uma força maior do que julgava conseguir alcançar, como se seu corpo
estivesse naquele momento possuído por alguma outra pessoa. Mobilizando essa passagem
como uma introdução à questão em debate, Cardeña sugere reconhecer em certos momentos
da prática do teatro, da dança e também dos esportes, algo de um estado psicológico comum
ao fenômeno do transe religioso e da possessão espiritual.
Se de fato os rituais de possessão já foram compreendidos na história da antropologia
à luz da analogia com o teatro – como nos trabalhos de Michel Leiris –, em lugar da atenção
ao caráter estético do fenômeno, trata-se agora de localizar um mesmo mecanismo

22 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=eF2w3qyYE7Y > (Consultado em: 31/12/2020).


73

psicológico, uma capacidade comum (embora desigual) aos humanos, que é utilizada (ou
negada) de formas distintas pela cultura local e por suas instituições: a dissociação. Dessa
forma, outros elementos precisam ser adicionados para que uma experiência dissociativa
possa ser considerada normal pelos atores da psicologia e da psiquiatria, e parte da atenção se
volta para essas práticas em contextos religiosos ou “culturalmente sancionados”, como no
caso do vodu haitiano que Cardeña pesquisara.

A cultura como normalidade e patologia


Ainda que tenha sido fundamental que a “dissociação” tenha passado por
transformações em sua forma de concepção, tornando-se também mais abrangente em sua
própria relação com termos como “estados alterados de consciência” e “transe”, esse
deslocamento não parece ter sido suficiente para que fenômenos como a possessão espiritual e
o transe religioso pudessem ser compreendidos por psiquiatras e psicólogos como
experiências dissociativas “normais”. O problema aqui parece ser a implicação que a maior
ocorrência de experiências dissociativas intensas indicariam a existência de um transtorno.
Além disso, se o processo de alargamento do entendimento sobre a noção de dissociação
psicológica passou por seu deslocamento das alterações de personalidade para o
gerenciamento da atenção cognitiva por parte do sujeito, as experiências de transe religioso e
possessão espiritual continuam a dizer respeito à própria noção de alteração da personalidade.
Como argumentam o psiquiatra Alexander Moreira-Almeida e Cardeña (2011, p.26; ver
também a tese de doutoramento de Moreira-Almeida, 2004, p.114):
A associação entre experiências espirituais e níveis normais ou até melhores de
saúde mental e ajustamento social não corroboram a visão de que experiências
mediúnicas são sintomas menos graves em um continuum com os transtornos
psicóticos ou dissociativos. Se este fosse o caso, uma correlação diretamente
proporcional entre a intensidade de experiências mediúnicas e transtornos
psiquiátricos ou má adaptação social seria provavelmente encontrada.

Outros critérios precisaram entrar em ação para que se os atores do campo psi
pudessem avaliar a possível existência de uma condição mórbida do fenômeno. Isso fica
evidente no próprio diagnóstico de “transtorno de transe dissociativo”, o qual indica que a
experiência deve causar sofrimento ou incapacitar a pessoa que a vivencia, estando também
fora do controle da pessoa, para que o diagnóstico seja aplicável. No entanto, como salientam
Moreira-Almeida e Cardeña (2011) – e como enfatizou Boddy (1992, p.324) em seu
comentário sobre a proposta da categoria diagnóstica –, esses critérios não poderiam ser
74

aplicados de forma automática, dado que experiências de desconforto e sofrimento podem ser
corriqueiras em estados possessivos considerados normais pela religião, cultura local ou até
por uma psiquiatria ou psicologia sensível a essas questões. Mesmo que os autores
argumentem pelo mesmo problema quando escrevem a respeito do critério cultural (de que o
fenômeno seja aceito pela “cultura” local), me parece que é esse critério que assume uma
posição central nas análises desenvolvidas pelos atores.
Se a dissociação, os estados alterados de consciência ou os transes podem ser
encarados tanto como “normais” quanto como patológicos, a noção de uma variação do
fenômeno a depender do contexto cultural no qual ele ocorre é a parte fundamental da
operação analítica dos psicólogos e psiquiatras interessados nesse tema. Nesse caso, duas
referências da literatura antropológica dos anos 1960 e 1970 sobre possessões espirituais e
transes religiosos são constantemente mobilizadas: a pesquisa de proporções mundiais de
Erika Bourguignon (1973a), para evidenciar a normalidade desses fenômenos ao redor do
globo, e a obra comparativa de Ioan Lewis (1977), para operacionalizar um critério que
permita distinguir casos “culturalmente normais” daqueles considerados patológicos.
As obras escritas por Bourguignon e Lewis, interessadas pelos estados alterados de
consciência e, especificamente, pelas experiências de possessão espiritual e transe religioso,
são produtos de um mesmo momento histórico. Não que a antropologia já há muito não se
interessasse por esses temas. No entanto, a diferença de apenas dois anos da publicação
original dessas obras, no início dos anos 1970, não parece ser mero acaso. De fato, são os
próprios autores que apontam para o momento histórico do qual emergiram, enfatizando como
a investigação de estados místicos e de transe em culturas e sociedades tradicionais estava
inevitavelmente conectada à então nascente busca pelo experienciamento desses estados nos
próprios centros urbanos dos países industrializados do Ocidente moderno, algo que abordarei
no terceiro capítulo. Com a chamada contracultura, o tema ganhava uma relevância nova,
digna de algo maior do que a acusação de ser mera curiosidade antropológica, e os diálogos
passavam a ser feitos também entre psicólogos e psiquiatras que passavam a pesquisar o
assunto, como na obra mencionada pouco acima.
Desse modo, veremos nessa seção como não apenas algumas obras de antropólogos
são mobilizadas por parte dos saberes psi para a produção de conhecimento e de categorias
diagnósticas, mas como também essas mesmas produções antropológicas partem de
pressupostos epistêmicos oriundos da própria psicologia e psiquiatria. Trata-se efetivamente
75

de um diálogo, explícito pela mobilização de certos conceitos psicológicos ou antropológicos,


mas também por certas condições históricas. Não por acaso, a própria Bourguignon (1973b,
p.ix) participara do simpósio sobre “Estados possessivos em povos primitivos” realizado em
Montreal, no Canadá, em 1966, no qual Ludwig apresentou seu artigo pioneiro sobre os
estados alterados de consciência.
Aluna de Irving Hallowell e orientanda de Melville Herskovits, Bourguignon possui
em sua biografia uma vasta experiência de pesquisa sobre as possessões espirituais praticadas
no vodu haitiano. Não à toa, é a partir desse tema que a autora refaz sua própria trajetória
intelectual e profissional em um compêndio organizado sobre autores importantes no
subcampo estadunidense da antropologia psicológica, no qual ela se reconhecia
(Bourguignon, 1978). No entanto, os trabalhos de sua autoria que são mobilizados na
literatura de interesse desta dissertação não dizem respeito às suas obras de caráter
etnográfico, mas sim a resultados de um amplo projeto de pesquisa coordenado por ela junto
de um antropólogo físico e um psiquiatra. Intitulado Um estudo intercultural de estados
dissociativos (A Cross-Cultural Study of Dissociative States) e sediado na Universidade
Estadual de Ohio, o projeto ocorreu entre 1963 e 1968, tendo sido financiado pelo Instituto
Nacional de Saúde Mental (NIMH) dos Estados Unidos. É no prefácio da principal obra que
reuniu textos das várias antropólogas e sociólogas engajadas na pesquisa que a autora
explicita os objetivos do projeto:
Nosso foco foi a realização de uma análise multifacetada do que parecia ser um
fenômeno psicocultural generalizado, sobre o qual, no entanto, curiosamente pouco
se sabia de sua natureza sistemática. O fenômeno com o qual nós estávamos
preocupados era a avaliação religiosa – frequentemente como possessão por
espíritos – de um estado psicológico diversamente nomeado como ‘dissociação’,
‘transe’ ou, mais recente e de forma geral, ‘estados alterados de consciência’.
(Bourguignon, 1973b, p.viii, tradução minha)

É interessante notar aqui a escolha dos termos usados por Bourguignon. De fato, a
presença de “transe”, “dissociação” e “estados alterados de consciência” segue a mesma
tendência da literatura analisada, na qual esses termos operam praticamente como sinônimos
de descrição de um mesmo nível de análise. Em determinado momento na introdução da obra
(Bourguignon, 1973c, p.5), a autora afirma que usará a categoria de “estados alterados de
consciência” - que é a escolhida para compôr o título do livro – por ser mais abrangente que
as outras e por não precisar se comprometer com nenhuma teoria explicativa dos fenômenos.
No entanto, em um texto posterior, Bourguignon recorrerá à definição dada pela psiquiatra
Margaret Field (1960, p.19 apud Bourguignon, 1978, p.486, tradução minha) para o termo
76

“dissociação”, segundo a qual seria “um mecanismo mental através do qual uma parte
separada da personalidade toma posse temporariamente do campo total da consciência e do
comportamento”, algo que não seria necessariamente patológico para a psiquiatra. A
antropóloga não apenas demonstra conhecimento do debate psiquiátrico em torno do tema –
chegando a apresentar as proposições de Ludwig sobre as características psicofisiológicas dos
estados alterados de consciência –, como se apropria dele e de seus termos em sua própria
construção teórica.
A questão central envolvida na escolha dos termos diz respeito ao interesse da autora
pela dobra entre o que seriam os estados “psicobiológicos” e os usos feitos por parte da
cultura desses estados, limitando o escopo de análise apenas aos fenômenos que são práticas
institucionalizadas – e não marginalizadas – nas diversas sociedades investigadas. Nesse
sentido, Bourguignon argumenta pelo uso desses termos porque eles seriam mais “neutros” do
que aqueles envolvidos nas interpretações culturais locais, que se dividiriam entre os estados
interpretados como ocorrendo por uma possessão espiritual (chamado por ela de transe
possessivo) e aqueles que não envolveriam uma possessão (apenas transe).
É dessa forma que a autora consegue colocar em prática uma investigação quantitativa
de escala global, a partir de dados inicialmente contidos no Ethnographic Atlas, organizado
pelo antropólogo George Murdock. De fato, das 488 sociedades contidas em sua amostra –
sendo em sua maior parte sociedades “tradicionais” –, 437 (90%) delas foram identificadas
como possuindo alguma forma culturalmente padronizada e institucionalizada de estados
alterados de consciência. Essa abrangência do fenômeno permite à Bourguignon (1973c, p.11,
tradução minha) afirmar que “[f]ica claro que estamos lidando com uma capacidade
psicobiológica disponível a todas as sociedades e que, de fato, a vasta maioria das sociedades
a utilizou em seus próprios modos particulares, e o fizeram primariamente em um contexto
sagrado.” Além disso, graças às suas categorias de ordem cultural, ela pode reconhecer outras
variações internas em sua amostra total, entre as quais a existência da crença na possessão
espiritual em ao menos 360 (74%) delas, e em 251 (52%) a existência do fenômeno do transe
de possessão.23
Embora seu trabalho aponte para as conexões existentes entre a religião, os estados
alterados de consciência e os processos de transformações sociais implicados na presença
desses fenômenos, o elemento que fica de sua impressionante investigação para a literatura

23 Bourguignon (1973c, pp.15-17) enfatiza que a crença na possessão não necessariamente é acompanhada
pelo “transe”, isto é, pelo estado alterado de consciência.
77

sobre o tema são os dados quantitativos. Afinal, como ressalta a autora, os fenômenos
incluídos na pesquisa eram aqueles institucionalizados e encorajados pelos grupos em
questão, sendo portanto encarados como “culturalmente normais”. Não é exagero afirmar que
a maior parte dos trabalhos sobre “dissociação” e fenômenos de possessão ou transe religioso
faz referência à alta porcentagem apresentada pela autora da presença desses fenômenos em
culturas ao redor do mundo.24 Como resume o psicólogo Adair de Menezes Júnior (2012,
p.41) ao citar os dados estatísticos oferecidos por Bourguignon em sua tese de doutoramento
sobre experiências mediúnicas e transtornos mentais: “[a] universalidade das experiências de
transe e de transe de possessão deve trazer o cuidado de não ser considerado patológicas
experiências que em outras culturas são consideradas normais.”
O ponto é que sua abordagem parte de considerações provenientes da psiquiatria e da
psicologia de sua época – o que talvez explique o financiamento oriundo de uma instituição
nacional de saúde mental –, compartilhando assim um referencial teórico com as produções
atuais. Parece que o que é tão atrativo de seu conjunto conceitual é a possibilidade de se
pensar a relação entre uma suposta capacidade universal da espécie humana e as formas
culturalmente variáveis e relativas de sua manifestação. Nas palavras da própria antropóloga,
essa dobra entre o estado psicológico e a manifestação cultural existente nas possessões
espirituais e nos transes religiosos é “o testemunho de ambas a unidade e a diversidade da
natureza humana” (Bourguignon, 1978, p.508, tradução minha). Tal forma de conceber a
questão abre espaço para que um exercício comparativo possa ser realizado, em que o que é
comparável é a experiência da dissociação como uma possessão espiritual ou um transe
religioso considerados normais em culturas “tradicionais”, e uma experiência semelhante em
culturas “modernas”. Como afirma Talal Asad (1994, p.78, ênfases do autor), “a estatística
converte a questão de culturas incomensuráveis em uma de arranjos sociais comensuráveis,
sem torná-los homogêneos”: a capacidade psicológica da dissociação se torna um elemento
comparável devido à universalidade psíquica da humanidade, tornada variável nas diferentes
manifestações da utilização dessa capacidade por parte da cultura.

24 Enquanto os trabalhos dos psiquiatras mobilizam principalmente esse aspecto, estando interessados nas
possíveis conexões ou desconexões entre transtornos mentais e a prática possessiva/de transe (e.g. Moreira-
Almeida, 2004; Menezes Júnior, 2012), são os psicólogos sociais (e.g. Maraldi, 2011; 2014; Zangari, 2003)
e antropólogos (e.g. Luhrmann, 2004; 2005) que também retomam mais fundamentalmente as premissas
culturalistas (e antropológicas) de sua análise. Aqui me refiro ao argumento de que o fenômeno do transe ou
do transe de possessão não é redutível ao estado psicológico (ou “psicobiológicos”, nas palavras da autora).
Bourguignon (1973c, p.14, tradução minha) parte do pressuposto de que o transe “é sujeito a uma
quantidade maior ou menos – mas sempre significativa – de aprendizado.”
78

No entanto, se o psicólogo social Wellington Zangari (2003, p.56) afirma sobre um


outro texto da autora25 que “[a] análise de Bourguignon oferece a possibilidade de
compreender que a diferença entre a dissociação patológica e a dissociação não-patológica
reside na cultura”, é outro antropólogo que é mobilizado direta e indiretamente por Cardeña e
por outros autores para que um critério cultural de distinção de fenômenos normais e
patológicos emerja em suas produções. Trata-se de parte da obra de Ioan Lewis, publicada
originalmente em 1971. Como afirma Cardeña em seu artigo sobre a categoria de “transtorno
de transe dissociativo”:
Essa proposta faz uma forte distinção entre alterações da consciência que são
culturalmente sancionadas como expressões de tensões e ambiguidades sociais, uma
forma de transcendência religiosa e/ou uma técnica terapêutica, e alterações que
ocorrem fora de um cenário ritual, que se dão aparentemente além do controle
consciente da pessoa, e que trazem desajustes, prejuízos e/ou angústias acentuados.
Somente as últimas, às vezes referidas como possessões periféricas, involuntárias ou
patológicas se situam dentro do alcance da categoria diagnóstica proposta. (Cardeña,
1992, p.289, tradução minha)

A primeira parte desse trecho traz o reconhecimento de Bourguignon de que muitos


estados alterados de consciência são “sancionados” por parte da cultura local como
fenômenos normais. No entanto, embora a menção à ideia de “possessões periféricas” seja
feita pela referência ao trabalho da psicóloga Colleen Ward (1980), ela diz respeito
originalmente à obra de Lewis.
O antropólogo propõe em sua obra realizar uma análise comparativa dos diferentes
modos pelos quais distintas sociedades e culturas conceituam e tratam dos fenômenos de
transe religioso, dando especial ênfase para as condições sociológicas de sua presença. Assim
como Bourguignon, Lewis (1977, p.41) parte de uma definição da psicologia para o termo
“transe”, definindo-o como uma espécie de sinônimo para a ideia da “dissociação mental”.
Nesse sentido, ele se refere ao nível da experiência do sujeito e do estado de sua consciência,
e não apenas da crença cultural da possessão espiritual – que seria uma categoria muito mais
ampla, envolvendo estados psicológicos não qualificados como de transe.

25 O artigo de Bourguignon (1989) ao qual Zangari faz menção se trata de uma comparação entre o caso de
uma paciente estadunidense que manifestara uma personalidade alternativa e fora diagnosticada por seu
psicólogo como possuindo um “desenvolvimento defeituoso do ego”, e o caso de um homem brasileiro
praticante da umbanda, que atuava como cavalo de alguns espíritos. O texto inteiro é costurado por
aproximações e distanciamentos culturais e de estatutos ontológicos entre esses dois fenômenos,
questionando a proposição feita por George Devereux, para quem as fantasias e impulsos das pessoas seriam
universais, exemplos da “unidade psíquica da humanidade”. Em seu lugar, Bourguignon parece estar apta a
reconhecer a universalidade do mecanismo psicológico da dissociação, mas não de seus conteúdos e usos
culturais, afirmando na última frase de seu texto que “[p]ara os dois casos discutidos aqui, há apenas
analogia, não identidade substancial de fenômenos” (Bourguignon, 1989, p.383, tradução minha).
79

Parte de seu argumento se baseia na distinção sociológica feita por ele entre cultos de
possessão central e de possessão periférica. Enquanto os primeiros diriam respeito à atuação
de espíritos que apresentam uma ênfase de manutenção da ordem moral e institucional, se
manifestando especialmente entre homens que ocupam posições de poder na estrutura social
local e sendo encarados de forma positiva pela comunidade, os segundos seriam
eminentemente amorais, possuindo pessoas de posição social desprivilegiada, em especial as
mulheres. Nesse segundo caso, eles seriam entendidas como uma espécie de enfermidade ou
aflição ao sujeito possuído, enquanto que em termos sociológicos esses cultos seriam
“movimentos de protesto tenuemente disfarçados” por parte dos grupos oprimidos, colocando
em risco a ordem social estabelecida (Lewis, 1977, p.31).
Ao associar os cultos periféricos a uma prática de grupos sociais desprivilegiados,
Lewis (1977, pp.242-243) reconhece que “as sessões regulares de cultos de possessão
periféricas são evidentemente psicodrama dançados; ‘laboratórios’ em que algum grau de
compensação psíquica às injúrias e vicissitudes da vida diária é obtido”. No entanto, ele
enfatiza que se tratam antes de uma forma de “alívio” psicológico para problemas mundanos e
sociais típicos de “pessoas comuns ‘normalmente’ neuróticas”, e não de perturbações mentais
graves – alívio terapêutico esse que também seria encontrado nas possessões centrais. Apesar
de seu cuidado no debate com a literatura psiquiátrica, sua associação das possessões
periféricas às enfermidades e como uma forma de expressão de frustrações fez com que
Boddy (1994, p.410) e Thomas Csordas (1987, p.2) argumentassem que sua divisão entre
cultos centrais e periféricos contribuíra para um processo de medicalização do tema da
possessão na antropologia norte-americana.
A despeito de Lewis (2003, p.xiii-xiv) questionar essa leitura em um prefácio a uma
reedição de sua obra – argumentando que a diferenciação entre os cultos centrais e periféricos
não se baseia em seu âmbito terapêutico ou médico, mas sim na relação moral envolvida entre
os espíritos em questão e a ordem pública –, é inegável que sua distinção foi operada
posteriormente em um sentido medicalizante, como no encontrado no texto de Cardeña. A
questão é que essa operação se deu a partir da mediação do trabalho de Ward (1980), em um
artigo que retoma a contribuição do antropólogo e a aplica explicitamente para um debate
psicopatológico, consolidando essa interpretação em parte da literatura psiquiátrica e
psicológica. Ao argumentar que ambas as formas de culto de possessão se tratam de reações
ao estresse social ou psicológico, Ward (1980, pp.159-160) enfatiza que enquanto as
80

possessões centrais diriam respeito àquelas forma culturalmente sancionadas de


enfrentamento (coping) do estresse social – ocorrendo em um setting ritual e de forma
voluntária –, as periféricas representariam “uma resposta individual ao conflito pessoal”, e
não uma forma culturalmente sancionada. Nesse sentido, a possessão periférica sempre diria
respeito a algum tipo de psicopatologia.
Se o entendimento de que qualquer fenômeno possessivo deve ser compreendido na
chave médica/terapêutica não é seguido por Cardeña e outros autores, a ideia de que a
clivagem entre o normal e o patológico se dá no interior da própria cultura é replicada. Como
argumentam Menezes Júnior e Moreira-Almeida a partir da referência a um outro artigo de
Cardeña escrito com alguns colegas (Cardeña et al, 2009):
Cardeña [e seus colegas], utilizando os conceitos de Lewis, afirmam que a possessão
central (não patológica) vem de uma predisposição provavelmente biológica, que foi
modelada por fatores socioculturais organizados, que levaram a rituais controlados
de possessão. É neste sentido que poderemos compreender os transes de possessão
da mediunidade, que acontecem nas religiões mediúnicas, como no Espiritismo, na
Umbanda e no Candomblé. Já a possessão periférica (patológica) também decorreria
de uma predisposição biológica, mas que foi impactada por traumas físicos ou
sexuais, gerando alterações de identidade difíceis de controlar e organizar. Os
indivíduos passam a apresentar sofrimento psicológico e prejuízos significativos nos
seus funcionamentos social e ocupacional. (Menezes Júnior; Moreira-Almeida,
2009, p.80)

Nessa forma de conceitualização os autores estabelecem a possibilidade de


reconhecerem as formas patológicas e as “normais” das experiências possessivas e de transe
religioso no interior da própria cultura na qual elas ocorrem, a partir da utilização e mesmo do
cultivo de uma habilidade psicológica ou psicobiológica que, embora variável entre
indivíduos, parece ser acessível a toda a humanidade. Aqui, são apenas as “possessões
periféricas”, aquelas que não ocorreriam em um contexto ritual ou que não são valorizadas
pelas instituições da cultura local, que poderiam ser enquadradas sob o diagnóstico do
“transtorno de transe dissociativo” a partir do critério cultural.
No entanto, esse é apenas um dos critérios que estabelecem uma clivagem patológica
no interior da cultura. É o retorno à centralidade do sujeito a partir da decomposição da
experiência entre o mecanismo psicológico e o uso cultural dessa habilidade humana que
permite que uma outra diferenciação seja efetuada pelos psiquiatras e psicólogos dentro da
própria normalidade dos grupos culturais. Afinal, nas pesquisas realizadas em centros
espíritas (Negro Júnior; Palladino-Negro; Louzã, 2002; Moreira-Almeida, 2004; Menezes
Júnior, 2012), ainda que os autores argumentem pela normalidade cultural e psicológica da
grande maioria dos fenômenos ali experienciados, alguns médiuns que são capazes de se
81

comunicar com os espíritos e que possuem sua habilidade reconhecida pelos seus pares no
grupo não deixam de serem diagnosticados pelos psiquiatras como possivelmente
apresentando algum tipo de transtorno mental. Nesse caso, a associação normalmente feita
pelos pesquisadores é a de que médiuns mais experientes possuem um controle maior sobre
sua habilidade dissociativa e, consequentemente, possuem menores taxas de perturbações
mentais. Nesse caso, o argumento é que a religião poderia operar como uma espécie de “fator
protetivo” contra as psicopatologias, ao cultivar em seus praticantes o controle sobre uma
capacidade que emergira de foram abrupta e sem a vontade deles, ao mesmo tempo em que o
sujeito poderia aprender a “dissociar” e entrar no estado mediúnico, ganhando controle com o
tempo sobre sua experiência (Krippner, 1999).
A possibilidade de enunciação da “normalidade” psicológica/psiquiátrica de uma
experiência possessiva e/ou de transe religioso envolve como pressupostos do pensamento
duas operações que se entrecruzam no sujeito da experiência. Por um lado, esses autores
instituem uma relação de identidade entre uma gama variada de fenômenos que incluem tanto
experiências patológicas quanto saudáveis. Por outro, eles estabelecem um critério que possa,
em grande medida, apreender a variabilidade da presença ou não do aspecto mórbido, isto é,
localizar a diferença na igualdade do fenômeno. Na primeira operação, termos como
“dissociação”, “estados alterados de consciência” e “transe” são utilizados de modo a se poder
relacionar fenômenos variados que vão desde o “sonhar acordado” até a experiência de
possessão por alguma entidade espiritual em uma prática ritual. Já na segunda, de modo
análogo ao visto no primeiro capítulo, é especialmente a “cultura” que emerge como a
unidade de análise que permite “contextualizar” os fenômenos analisados e avaliá-los com
base na norma de seus valores, crenças, significações, para se poder reconhecer e identificar a
variabilidade mórbida. Ambas as operações ganham sua concretude em sua decantação no
sujeito da experiência, no modo como o fenômeno em particular é experienciado pela pessoa.
Aqui, um terceiro conjunto de termos emerge para que se auxilie esses atores no processo de
distinção de experiências culturalmente normais das patológicas: trata-se do “controle” e
“vontade” do sujeito sobre o que é considerada como o experienciamento de uma capacidade
humana.
82

Os usos do diagnóstico
A ambivalência no estabelecimento de uma categoria diagnóstica é notável. Se por um
lado a presença de um critério de ordem cultural constitui para esses atores um passo
importante para uma psiquiatria mais sensível às particularidades locais de fenômenos que
eram rapidamente enquadrados como decorrentes da existência de algum transtorno mental,
por outro ela continua a operar como um diagnóstico. Nesse sentido, o que “transtorno de
transe dissociativo” e a literatura a ele associado faz é repartir o território das experiências,
possibilitando um espaço possível da existência de fenômenos muitas vezes ligados a
religiões não-cristãs (embora parte dessas também) e a práticas espirituais entendidas de
forma mais abrangente possível. No entanto, em todo ato de partilha há o estabelecimento de
ao menos duas partes, e a contraparte a uma experiência “culturalmente normal”, sem
sofrimentos ao praticante e mais ou menos sob seu controle e vontade, continua
inevitavelmente a ser a existência de um transtorno mental de tipo dissociativo.
Essa questão é particularmente evidente no artigo de Lewis-Fernández (1992) para o
dossiê sobre a proposta da categoria. Embora o autor destaque a existência do critério cultural
para a formulação do diagnóstico e reconheça que provavelmente a maioria dos estados de
transe e transe possessivo ao redor do mundo sejam fenômenos normais – e que um dos riscos
da criação dessa categoria envolva a patologização dessas experiências –, sua preocupação
central se dá precisamente com as formas mórbidas de transe dissociativo que ocorrem
especialmente em outras partes do mundo. Logo na frase de abertura de seu texto, o psiquiatra
enfatiza a necessidade da criação da categoria devido ao fato de “[c]ulturas ‘não-ocidentais’ –
que compõem 80% do mundo e um terço da população dos Estados Unidos – exibem
síndromes dissociativas culturalmente padronizadas (…) que são fenomenologicamente
distintas dos transtornos dissociativos descrito no DSM-III-R” (Lewis-Fernández, 1992,
p.301, tradução minha). Como indiquei rapidamente no capítulo anterior, seu argumento é
que a insensibilidade cultural do DSM não deriva apenas do processo de patologização de
experiências culturalmente normais, mas também do fato do manual não levar em conta
muitos fenômenos mórbidos que ocorreriam nas “culturas não-ocidentais”, como o próprio
autor enfatiza. Nesses termos, uma psiquiatria culturalmente sensível envolveria não apenas
uma possível “despatologização” de certas experiências não-ocidentais, mas também uma
nova atenção a fenômenos psicopatológicos antes ignorados ou deturpados por uma certa
cegueira cultural.
83

Para Lewis-Fernández (1992, p.301, tradução minha), de modo a conseguir corrigir


tal “insensibilidade cultural” do manual, era necessário que a categoria de transtorno de transe
dissociativo fosse incluída porque “muitas dessas síndromes indígenas compartilham várias
características em comum com os transtornos psiquiátricos ocidentais e, portanto, podem ser
formuladas de acordo com o formato diagnóstico do DSM”. Essa afirmação nos faz voltar ao
tema das “síndromes ligadas à cultura”, apresentadas no capítulo anterior. Não por acaso, o
psiquiatra afirma que ataque de nervios (em Porto Rico) e possession syndrome
(especialmente na Índia) são os protótipos para a categoria proposta, e que essas e outras
“síndromes ligadas à cultura” “são provavelmente dissociativas em sua natureza”.
A esse respeito, é esclarecedora a diferença atribuída aos termos “síndrome” e
“transtorno”. De acordo com o psiquiatra Paulo Dalgalarrondo (2019, p.23, ênfases do autor)
em uma obra amplamente utilizada no ensino de psiquiatria nas universidades brasileiras,
enquanto as síndromes são definidas “como agrupamentos relativamente constantes e estáveis
de determinados sinais e sintomas”, os transtornos “[s]ão os fenômenos mórbidos nos quais
podem-se identificar (ou pelo menos presumir com certa consistência) certas causas ou
fatores causais (etiologia), o curso relativamente homogêneo, certos padrões evolutivos e
estados terminais típicos.” Embora Cardeña (1992, p.295) não indique uma causa para o
transtorno de transe dissociativo e coloque em suspensão a relação de causalidade entre o
trauma psicológico e a emergência da enfermidade – algo estabelecido no diagnóstico de
transtorno dissociativo de identidade (múltipla personalidade) –, é difícil não reconhecer nas
proposições de Lewis-Fernández a ideia de um “descortinamento” da realidade do fenômeno.
É verdade que o psiquiatra adverte que não se trata da substituição do sistema
classificatório local pelo da psiquiatria estadunidense, argumentando pela necessidade de
manutenção dessas categorias de “síndromes ligadas à cultura” no manual. Para ele, não
haveria uma total sobreposição entre as duas classificações – nem sempre algo classificado
como um ataque de nervios ou como uma síndrome possessiva deveria receber o diagnóstico
de transtorno de transe dissociativo, tratando-se as vezes de um caso de transtorno de pânico.
No entanto, essa relação ambivalente entre o sistema classificatório psiquiátrico e as
classificações locais se mostra menos simétrica do que o autor faz parecer nessas ressalvas,
articulando a tensão explicitada no primeiro capítulo entre certo universalismo psíquico –
acessível aos saberes psi – e as manifestações locais, interpretadas simbolicamente pelo
colorido da cultura.
84

É possível ver um exemplo dessa utilização do diagnóstico em um artigo escrito pelo


psicólogo Ram Sapkota (et al., 2014; ver também Gaw et al., 1998) junto de uma série de
colegas de distintas disciplinas – incluindo Laurence Kirmayer, como último coautor –, sobre
a ocorrência de uma série de casos de possessão espiritual em um vilarejo na região rural do
Nepal. Esses eventos se tratavam de casos de possessões involuntárias, que podem ocorrer
devido à ação de bruxas. A partir de um caso inicial de uma mulher de 21 anos de idade,
outras mulheres do vilarejo passaram a experienciar o mesmo fenômeno, chegando a ocorrer
em 30 pessoas diferentes, incluindo dois homens e dois garotos. Esse artigo apresenta todos
os elementos que nos interessa, sendo o resultado de uma investigação voltada para as
possíveis relações entre possessões espirituais e transtornos mentais.
No início do artigo há a ressalva de que a possessão espiritual é um fenômeno
dissociativo comum a muitos países em desenvolvimento, mas que pode apresentar formas
patológicas caso elas não se conformem às “normas e expectativas sociais” do local. Essa
ambiguidade entre a possibilidade da redução dos casos de possessão à existência de
transtornos mentais e a ênfase no reconhecimento do fenômeno como algo “cultural” parece
ser resolvida com a aposta na ambivalência, isto é, na formulação do fenômeno como uma
manifestação cultural de sofrimento. É nesse sentido que os autores afirmam que a possessão
pode servir como um “idioma de sofrimento, fornecendo a indivíduos um meio para
expressarem sofrimento em um contexto no qual uma expressão mais direta não é possível ou
pode ter efeitos negativos” (Sapkota et al., 2014, p.643, tradução minha), especialmente no
caso das mulheres em seu enfrentamento da opressão de gênero, como indicaria a clássica
literatura antropológica referenciada – entre eles os trabalhos de antropólogos renomados,
como Janice Boddy, Gananath Obeyesekere e Ioan Lewis.
De um lado, a equipe de pesquisa – que envolvia o psicólogo, alguns assistentes
sociais, médicos e um estatístico – aplicou uma série de escalas adaptadas ao contexto
nepalense para mensurar as taxas de depressão, ansiedade e transtorno de estresse pós-
traumático entre as mulheres afetadas por possessões e um grupo controle do mesmo vilarejo,
formado também apenas por mulheres. O resultado foi a maior presença de sintomas dos
transtornos mentais mencionados no grupo de mulheres experienciando casos de possessão,
assim como uma taxa levemente maior de experiências traumáticas. De acordo com os
autores, “os sintomas e comportamentos das mulheres, junto da ausência de evidência de um
transtorno neurológico, sugerem que as mulheres sofrem de transtornos mentais,
85

especificamente, de transtorno conversivo ou transtorno de transe dissociativo”26 (Sapkota et


al., 2014, pp.658-659, tradução minha).
Por outro lado, ao realizarem o que chamam de sessões “psicoeducativas” com os
grupos focais da investigação, os habitantes locais rejeitaram sistematicamente as explicações
psicológicas e psiquiátricas das possessões. Os autores também relatam que as mulheres
possuídas não apresentaram nenhuma melhora com as terapêuticas propostas pelos agentes de
saúde, dentre elas o uso de psicofármacos, o aconselhamento psicológico e as próprias sessões
psicoeducativas. Em vez disso, foi apenas com o engajamento de curandeiros tradicionais e a
realização de um processo ritual sob sua supervisão que os habitantes do vilarejo finalmente
se livraram da ação possessiva dos espíritos. No entanto, embora os autores enfatizem a
complexidade do fenômeno a partir da necessidade de se tomar um conjunto de fatores em
conta (preexistência de enfermidades mentais, violência sociopolítica, eventos traumáticos,
opressão de gênero às mulheres), eles acreditam que afirmar que a possessão é um “idioma de
sofrimento” ou um mecanismo de enfrentamento (coping) da realidade social seria capaz de
dar conta dessa complexidade, sem reduzir as possessões a um ou outro fator. Ainda assim,
são os próprios habitantes que recusam tal assertiva:
Essa visão da possessão espiritual não coincide com o entendimento local nas vilas
que estudamos no Nepal. (…) De fato, quando os resultados deste estudo foram
apresentados à comunidade, [os habitantes] se recusaram a aceitar a descoberta que
mulheres possuídas tinham um risco maior de apresentar um transtorno mental
comum em comparação com mulheres não-possuídas. Eles também não viram a
possessão como um modo de enfrentamento [coping]. Em vez disso, eles
reafirmaram o ponto de vista em que espíritos que estavam irritados ou chateados
tinham a habilidade de infligir danos possuindo pessoas. (Sapkota et al., 2014,
p.663, tradução minha)

Escrevendo sobre esse mesmo artigo e sobre a situação presenciada por ela também no
Nepal, envolvendo psiquiatras, psicólogos e habitantes de vilarejos acometidos por possessões
espirituais coletivas, a antropóloga Aidan Seale-Feldman (2019, p.311) aponta para o conflito
conceitual existente entre as concepções locais e as operadas pelos agentes de saúde mental.
Parece evidente que exista aqui um certo encobrimento da compreensão das formas
conceituais locais, efeito da projeção de categorias psiquiátricas e mesmo antropológicas.
Trata-se de algo que, embora seja mais evidente na utilização de categorias diagnósticas
originadas no sistema classificatório da psiquiatria – por força da natureza coercitiva do

26 O transtorno conversivo referenciado pelos autores a partir da Classificação Estatística Internacional de


Doenças 10 (CID-10) se sobrepõe à dissociação no caso do CID. Trata-se de uma categoria que dá conta de
conflitos psíquicos que são convertidos em sintomas somáticos, manifestados na própria condição corporal
da pessoa.
86

diagnóstico, enfatizada por Charles Rosenberg (2002) –, também é produzido a partir de certa
análise antropológica, quando o discurso nativo se torna mero reflexo de algum outro nível da
realidade que não apenas é exterior a ele, como também supostamente mais profundo e
esclarecedor (Goldman, 1985, p.28).27
Desse modo, vemos como todo o processo de criação da categoria diagnóstica de
“transtorno de transe dissociativo”, assim como os debates dos quais ela é tanto a
sedimentação como sua nova articuladora, possuem duas facetas. De um lado, a categoria
continua operando propriamente como um diagnóstico, e as produções psiquiátricas e
psicológicas não abandonam seu marco epistêmico medicalizante e patologizante. Por outro
lado, temos uma série de investigações e trabalhos levados a cabo por psiquiatras e psicólogos
no Brasil e fora dele que partem dos pressupostos epistêmicos descritos nas páginas anteriores
para analisarem as experiências de possessão espiritual e de transes religiosos/espirituais sem
partirem de um a priori patologizante, mas tomando-os especialmente como fenômenos
psicologizados.28
No caso dessa “abertura” a uma compreensão não psicopatológica que a literatura em
torno categoria diagnóstica oferece, chama a atenção como alguns autores da antropologia são
mobilizados nesse processo. Mais do que isso, ao analisarmos as obras que atuam como
referenciais, vemos como esses próprios antropólogos partem de concepções da psicologia na
compreensão dos fenômenos de transe religioso e possessão espiritual. Se é verdade que a
própria formação da antropologia estadunidense possui uma história íntima de diálogo e
rearticulação de proposições teóricas e questões vindas do campo da psicologia, como
apontou George Stocking Jr. (1976; 1986) e como a longevidade da subárea da chamada
“antropologia psicológica” atesta (Duarte, 2017), o caso de Erika Bourguignon e de sua
relação estreita de contribuição e “empréstimo” epistêmico segue uma tendência local. Já no
que diz respeito a Ioan Lewis, que vem da tradição antropológica do Reino Unido, seu uso
semelhante de definições psicológicas como ponto de partida para sua análise ressalta a
penetração desse tipo de compreensão em outras áreas do saber.

27 É isso que nos mostra Seale-Feldman (2019, p.308, tradução minha) ao indicar como as análises das
antropólogas Janice Boddy e Aihwa Ong estipulam que as possessões espirituais entre mulheres operam
como “uma forma de resistência ao poder que ‘fala’ através do corpo”. Há aqui uma estranha afinidade entre
o discurso antropológico e o psiquiátrico/psicológico, tanto no deslocamento do discurso nativo, quanto na
conceitualização da possessão como uma forma de resposta a algo de um outro nível da realidade.
28 A esse respeito, o artigo de Moreira-Almeida e Cardeña (2011) apresenta uma ampla literatura sobre o tema,
além de se basearem tanto na ideia da dissociação não-patológica quanto na variabilidade e ampla presença
cultural. Para uma apresentação das pesquisas “psi” históricas e atuais sobre mediunidade, ver o texto de
Zangari e Maraldi (2009).
87

A antropologia se constitui como uma disciplina absolutamente fundamental nesse


processo de relativização de uma certa pulsão patologizante por parte dos saberes psi. Não à
toa, a proposição da categoria diagnóstica “transtorno de transe dissociativo” se viu investida
da mobilização não apenas textual de trabalhos de antropólogos, mas buscou estabelecer um
diálogo direto com essa área do saber. Isso fica explícito na própria escolha da realização de
um dossiê em torno da proposta da categoria ao DSM, publicado na revista Transcultural
Psychiatry, em 1992. Em circulação desde 1956 (como Transcultural Psychiatric Research
Review) e editado desde 1991 por Laurence Kirmayer, o periódico é provavelmente o espaço
de debates mais fecundo da intersecção entre a psiquiatria cultural e a antropologia médica
nos dias atuais. Antropólogos contribuem anualmente em seus números, e a descrição oficial
da revista enfatiza que “Transcultural Psychiatry oferece um canal de comunicação para
psiquiatras, outros profissionais da área da saúde mental e cientistas sociais preocupados com
os determinantes sociais e culturais da psicopatologia”.29 O próprio dossiê é representativo da
busca desse tipo de diálogo, uma vez que a maior parte dos debatedores da proposta eram
antropólogos, sendo alguns com extensas pesquisas no tema da possessão espiritual, como
Janice Boddy, Michael Lambeck e a própria Erika Bourguignon.30
O que esses trabalhos oferecem aos saberes psi é a possibilidade de se pensar nos
fenômenos de possessão espiritual e de transe religioso como estados dissociativos
“culturalmente normais”, sendo a pesquisa estatística de Bourguignon a evidência necessária
e suficiente para apontar para essa normalidade generalizada em sociedades ao redor do
mundo. Afinal, como argumentar contra a afirmação de que 437 sociedades ao redor do
mundo (90% de sua amostra total) possuem alguma forma de utilização cultural e
institucional de estados alterados de consciência? A generalidade do fenômeno e de sua
aceitação na maior parte das culturas do mundo atuam como a porta de entrada para o debate,
como seu eixo de sustentação.
Para tanto, é preciso que de partida seja estabelecida uma divisão entre estados e
mecanismos psicológicos e a utilização que as culturas fazem deles, a partir do cultivo de suas
instituições religiosas e/ou seculares, algo adotado pela própria Bourguinon e pelos atores dos
saberes psi interessados nesse assunto. Mais do que isso, mesmo trabalhos mais recentes de
antropólogos partem dessa mesma estrutura epistêmica. É um exemplo disso o premiado
trabalho de Luhrmann (2012) sobre as experiências de cristãos evangélicos em sua relação

29 Retirado de: < https://journals.sagepub.com/description/TPS > (Consultado em 26/12/2020).


30 Ver: < https://journals.sagepub.com/toc/tpsd/29/4 > (Consultado em 26/12/2020).
88

íntima com Deus, através do ouvir de vozes ou da visão de imagens. Interessada em como a
experiência semelhante ao transe é aprendida pelos fiéis, a autora parte de considerações da
ordem de um mecanismo psicológico em seu entrelaçamento com as formas culturais que a
religião cultiva.
Como no caso analisado por Giumbelli (1997a; 1997b) sobre o espiritismo e sua
apreensão pela psiquiatria no início do século XX no Brasil, há aqui uma fenomenização da
experiência possessiva ou de transe, tomando-a como um fenômeno psicológico normal e apto
à compreensão das disciplinas da mente. A possessão e o transe são decompostos em níveis
distintos, entre o psicológico e o cultural. No processo de sua psicologização, os fenômenos
são esvaziados da cosmologia local e das interpretações “religiosas”, se transformando em um
mecanismo psíquico universal, que diz respeito de alguma forma à experiência vivenciada por
artistas, esportistas, e praticantes que utilizam técnicas de produção da dissociação psicológica
como um modo de acesso ao sagrado.
É nesse sentido que podemos dizer que a religião é deslocada nesse debate ao mesmo
tempo em que ganha uma centralidade importante. Isso porque embora ela se torne uma
dentre outras instituições culturais que podem se utilizar de uma capacidade que é universal à
humanidade, ainda assim é nas instituições que o critério fundamental de normalidade será
procurado. Passa-se a se falar de habilidades variáveis a cada indivíduo, mas que podem ser
cultivadas ou reprimidas por instituições locais. No caso de seu cultivo e de sua manifestação
em um setting ritual, “adequado” às expectativas locais e sem o envolvimento de “más
consequências” ao sujeito, haveria o pleno reconhecimento de um fenômeno “normal”. Dessa
forma, como atesta Duarte (2005) a respeito da obra de William James, o enfoque da análise
ocorre precisamente na experiência do sujeito e em sua relação íntima com a cultura ou a
religião a qual pertence. É precisamente em seu entrecruzamento no indivíduo psicologizado
que os saberes psi conseguem articular a análise de ambos os níveis psíquico e cultural, ainda
que haja o privilégio ao nível psíquico do indivíduo.

***
Neste capítulo, busquei retraçar os modos operativos do estilo de pensamento dos
saberes psi em torno da “dissociação” e de sua relação com práticas e fenômenos religiosos
e/ou espirituais. Partindo da categoria diagnóstica “transtorno de transe dissociativo”, incluída
na quarta edição do principal manual de diagnósticos psiquiátricos dos Estados Unidos,
89

argumentei que essa categoria e o debate do qual ela resulta instituem uma abertura conceitual
à possibilidade de uma compreensão não-patológica por parte da psicologia e da psiquiatria
dos fenômenos da possessão espiritual e do transe religioso. Se desde a emergência do uso do
termo “dissociação”, com Pierre Janet no final do século XIX, ele já era aplicado na descrição
e explicação de possíveis fenômenos de possessão por alguma entidade, ao longo do século
XX a dissociação psicológica deixou de indicar um processo eminentemente patológico na
literatura psi, como era no caso de Janet, e passou a se referir a processos mentais
considerados “normais”. Tal transformação se deu tanto por um movimento interno ao debate
psi – referente aos deslocamentos na concepção de dissociação –, quanto a um movimento
mais amplo, relacionado à emergência do interesse “leigo” e profissional nos chamados
estados alterados de consciência nos anos 1960.
Junto desse novo interesse pelo tema dos estados alterados de consciência, a
antropologia ocupou uma posição central nessa mudança. As obras mobilizadas pelos autores
e atores dos saberes psi engajados nessa compreensão não necessariamente patológica sobre
as possessões e os estados de transe não são apenas um produto desse mesmo momento
histórico, como também tomam a compreensão psicologizada do fenômeno como um dado de
partida. Nesse ponto, me parece que a antropologia contribuiu junto dos estudos sobre os
estados alterados de consciência na transformação da compreensão sobre a dissociação em um
tipo de habilidade que poderia ser treinada por indivíduos a partir da orientação das
instituições cultuais locais, algo que ao menos desde os anos 1930 já era consenso na
disciplina a partir das populares obras de Ruth Benedict que abordam as experiências de
“transe”.
Influenciados pela afirmação antropológica da normalidade dos casos de possessão e
transe na maior parte das sociedades ao redor do mundo, os psicólogos e psiquiatras
dedicados ao tema afirmam ser necessário operar um rudimentar ofício etnográfico. Nesse
caso, se trataria de recorrer à antropologia e aos “experts culturais” locais para se apurar se o
fenômeno em questão se encontra em concordância com as práticas e crenças autorizadas pela
cultura local e pelo contexto ritual. No entanto, apesar de central, o critério cultural não é
suficiente por si mesmo para os psicólogos e psiquiatras. Para que a hipótese da existência de
um transtorno mental seja rechaçada – embora mantendo-se como uma eterna possibilidade
para esses atores –, é preciso ainda que o sujeito e sua relação particular com a experiência
seja incluído na análise. É a partir dessa necessidade que Cardeña e outros autores mobilizam
90

a distinção entre as possessões “periférica” e “central”, estabelecida por Ioan Lewis,


rearticulando-a a partir da ideia de uma possessão “involuntária”, que ocorre para além do
contexto da prática ritual e da vontade do sujeito acometido pela entidade em questão.31
É por conta dessa centralidade conjunta da norma cultural e da vontade do sujeito que
os casos de possessão demoníaca no cristianismo e mesmo as possessões coletivas no Nepal
parecem ser quase inevitavelmente compreendidos sob uma ótica patologizante – ou em sua
forma mais ambivalente, da expressão cultural de um sofrimento psíquico – por parte dos
saberes psi. Afinal, como indicam Janice Boddy (1992) e Michael Lambeck (1992) em seus
comentários sobre a proposta, há aqui não apenas uma noção monolítica da “cultura” e de
suas instituições sociais que “controlam” os estados alterados de consciência, mas também
uma pressuposição da autonomia da vontade do sujeito de “entrar” e “sair” do estado
dissociativo. Como encarar fenômenos que são reconhecidos pela lógica da cultura local, ao
mesmo tempo em que não são “desejáveis”, mas encarados como um problema? Como indica
Marcio Goldman (1985, p.23), se o cristianismo toma as possessões demoníacas como um
problema, buscando expulsar as entidades invasoras, ela o faz para que o sujeito afetado possa
retomar sua unidade do “eu”.
Esse parece ser o ponto central da questão. Ao proporem um maquinário analítico no
qual se argumenta pela ideia da dissociação como uma desconexão da personalidade
produzida conscientemente ou por alguma vontade interior, esses atores pressupõem uma
noção de pessoa ligada especialmente ao individualismo ocidental moderno. Há aqui algo que
transforma a questão em uma técnica psicológica a serviço do indivíduo autônomo, em sua
tentativa de produção da experiência do sagrado. Não à toa, é em sua versão negativada
(como patologia diagnosticada) que isso fica mais explícito, ao estipular como critério a falta
de controle do sujeito sobre um fenômeno que é, em si mesmo, caracterizado como uma
forma de falta de controle consciente sobre si.
A questão é que, nesse estilo de pensamento posto em movimento por psiquiatras e
psicólogos, esse indivíduo autônomo necessariamente precisa estar situado em relação às
instituições culturais, como as religiões estabelecidas que determinam os modos de acesso aos
estados dissociativos e, consequentemente, ao sagrado. Assim, diferentemente do caso da
psicologia transpessoal no qual as religiões perdem seu valor na compreensão e avaliação da
31 Embora esse critério do “controle” ou “vontade” seja questionado por atores do próprio campo de debates ao
o colocarem diante do material empírico – como feito pelo psiquiatra Alexander Moreira-Almeida (2004) –,
ele tende a ser referenciado na literatura e é apresentado na própria categoria diagnóstica do “transtorno de
transe dissociativo”.
91

experiência em prol do indivíduo autonomizado, aqui elas ainda ocupam uma posição
fundamental. O sujeito não pode estabelecer formas de experienciamento que não sejam
reconhecidas por seus pares, ao menos não sem serem qualificadas a partir da anormalidade.
Para que ela possa ser considerada saudável por esses atores, essa “invasão” ou “perda da
consciência” precisa se dar por formas ritualmente homologadas, que permitam ao sujeito
retomar a si mesmo quando assim queira. Surpreendentemente, trata-se de uma concepção
quase idêntica àquela proposta por Roger Bastide em sua divisão entre o transe cultivado e o
espontâneo como uma forma de resposta ao argumento patologizante desses fenômenos.
Como coloca Duarte (2005, p.180) a respeito dessa divisão, o transe ritualmente organizado
estaria intimamente relacionado no esquema de Bastide aos transes dos místicos cristãos, “em
que a inconsciência convive com a responsabilidade – e por oposição ao transe do que então
considerava como os ‘primitivos’ (ou o ‘primitivo’)”, verdadeiro território do patológico.
Diferentemente dessa ambivalência que se situa entre a patologização e a possibilidade
de uma normalidade desses fenômenos, veremos no próximo capítulo uma outra forma de
concepção da questão de experiências ligadas à religião ou à espiritualidade. A partir da
categoria “problema religioso ou espiritual”, me debruçarei sobre o debate da psicologia
transpessoal, um ramo da disciplina que possui afinidades históricas e epistêmicas com o
chamado movimento Nova Era. Veremos em operação uma forma de psicologização da
religião e da espiritualidade distinta da apresentada neste capítulo, embora com conexões
quanto à ênfase de atores dos anos 1960 nas técnicas de produção de estados alterados de
consciência como um modo de acesso ao sagrado.
92

Capítulo 3 – A psicologia transpessoal e a espiritualidade

Em um curso organizado e parcialmente ministrado por Laurence Kirmayer para o


Programa de Verão em Psiquiatria Social e Cultural de 2012, da Universidade McGill, no
Canadá, uma de suas aulas era dedicada à temática abordada no capítulo anterior, sendo
intitulada “Transe, Possessão e Dissociação na Psiquiatria Cultural”. 32 A partir de uma série
de fotografias e vídeos etnográficos de rituais de possessão e de fenômenos de transe em
diferentes culturas – entre eles um trecho do pequeno documentário Transe e Dança em Bali,
de autoria de Margaret Mead e Gregory Bateson –, Kirmayer nos apresenta as questões
ambivalentes envolvendo o estilo de pensamento da dissociação e sua relação com as
variações culturais ao redor do mundo. Como vimos no capítulo anterior, essa ambivalência
encontra seu ápice na categoria de “transtorno de transe dissociativo”, em que há a tensão
entre o reconhecimento da possibilidade de uma normalidade cultural de alguns desses
fenômenos e a possibilidade deles representarem psicopatologias – experiências mórbidas e
em desacordo com a cultura local, nas quais os sujeitos são afetados a despeito de sua
vontade.
Ao abordar a utilização do termo “transe” na categoria diagnóstica do DSM e
enfatizar que se trata de um conceito psicológico que não diz respeito às concepções locais do
fenômeno sob escrutínio, mas sim a alterações na consciência e na atenção do sujeito,
Kirmayer o relaciona especificamente às produções sobre os “estados alterados de
consciência” realizadas especialmente nos anos 1960. De acordo com o psiquiatra:
[O termo transe] era muito popular nos anos 1960, quando havia essa noção de
“estados alterados de consciência”, em que teríamos todo o tipo de coisa e que
poderia ser uma área de estudo, que incluiria tudo desde estar chapado com…
maconha ou LSD, e isso remonta ainda mais ao passado, claro, a todo o interesse em
drogas psicodélicas e à geração beat. E o termo “psicodélico”, que foi um termo que
Humphry Osmond, um psiquiatra (…) propôs a Aldous Huxley, para os tipos de
experiências, e Huxley estava muito interessado nessa ideia que alucinógenos e o
LSD abririam as portas da percepção. Essa era uma visão muito… digamos,
romântica, dessa ideia de aprimorar o potencial humano, e isso caminha junto com
essa ideia, de novo, que de alguma forma esses estados alterados de consciência são
outras formas de operação que podem ser acessíveis a nós e nós talvez sejamos
capazes de fazer coisas extraordinárias. Na maior parte, em termos de hipnose, não
há qualquer evidência de que alguém pode fazer alguma coisa durante a hipnose que
não poderia realizar fora da hipnose, não há nenhuma habilidade ou talento mágico
que alguém desenvolva.

32 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=gl8dfW_cAgU&t=701s > e < https://www.youtube.com/watch?


v=rAw2g9I-E8Q > (Consultado em 18/01/2021).
93

Kirmayer faz mais do que referenciar as pesquisas sobre os estados alterados de


consciência. Ele as caracteriza a partir de uma certa inocência romântica, enfatizando que a
ideia da possível presença de potencialidade transformadora nessas experiências – que
incluiriam o uso de drogas e alucinógenos – seria desmentida por estudos vindos do campo da
hipnose.
Por outro lado, em um evento realizado na cidade de São Paulo, em 2019, organizado
por um grupo de psicólogos transpessoais, o psicólogo David Lukoff era apresentado como o
palestrante principal do encontro, embora sua presença se desse apenas por meio de um vídeo
gravado para a ocasião. Sua fala retomava sua trajetória profissional de mais de 40 anos de
atuação e passava pelo seu trabalho na proposta da categoria “problema religioso e espiritual”
no DSM. A inclusão da categoria na quarta edição do manual era tida por ele como um
importante reconhecimento das questões espirituais e religiosas que afetam os pacientes da
área da saúde mental, algo que teria sido salientado em matérias de televisão e de jornais
impressos, como no New York Times.33 Ao listar uma série de experiências que seriam
recobertas pela categoria e que, portanto, deveriam ser tratadas como “problemas espirituais”
em vez de transtornos mentais, ele mencionara o caso da possessão: “possessão é outra
experiência ligada à cultura que algumas [culturas] têm, e que deveriam ser tratadas mais
como uma crise espiritual do que uma condição médica, como um transtorno dissociativo”.34
Enquanto o trecho da aula de Kirmayer nos leva ao material de interesse deste
capítulo, que está ligado histórica e epistemologicamente a esses trabalhos dos anos 1960 e ao
entusiasmo quanto às potencialidades transformadoras dos estados alterados de consciência, a
fala de Lukoff representa propriamente parte desse material. Curiosamente, em ambos os
trechos vemos como a recusa das posições é recíproca por parte desses atores. Embora o texto
da categoria “problema religioso ou espiritual”, apresentada no primeiro capítulo desta
dissertação, não vá muito além da tentativa pragmática enunciada por seus propositores de
resguardar experiências religiosas e/ou espirituais de uma patologização a priori promovida
pelo DSM, sua concepção foi realizada por atores associados não apenas ao conjunto de
trabalhos mencionados por Kirmayer, mas também a essa espécie de ambiente intelectual ao
qual ele faz referência – ou, para sermos mais exatos, a esse estilo de pensamento posto em
circulação. De fato, neste capítulo estarei interessado especialmente nas produções de Lukoff

33 Ver: < https://www.nytimes.com/1994/02/10/us/psychiatrists-manual-shifts-stance-on-religious-and-


spiritual-problems.html > (Consultado em 18/01/2021).
34 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=38gGDyv9-UA > (Consultado em: 05/01/2021).
94

e em sua relação de identificação e reconhecimento com a chamada psicologia transpessoal,


me atentando para os textos e conceitos utilizados por ele em sua formulação de uma
perspectiva positivada do que ele chama de “crises espirituais”.

Da psicologia humanista à Nova Era


A psicologia transpessoal é uma subárea do campo da psicologia, sendo sua
emergência um produto direto dos movimentos e debates oriundos dos anos 1960 nos Estados
Unidos – e, em especial, na Califórnia. Anunciada publicamente pela primeira vez em 1967,
em uma conferência proferida pelo importante psicólogo Abraham Maslow (1968) – que se
tornaria presidente da Associação Americana de Psicologia no ano seguinte –, a psicologia
transpessoal fora concebida como a “quarta força” do campo disciplinar, compondo-a assim
junto do behaviorismo, da psicanálise e da psicologia humanista – essa última a qual o próprio
Maslow ajudara a consolidar como uma subárea. É a partir do esforço de Maslow na definição
e institucionalização da psicologia humanista que podemos melhor compreender a emergência
da psicologia transpessoal como uma espécie de desenvolvimento do primeiro projeto, que
acompanhou também as próprias mudanças ocorridas na sociedade estadunidense da época.
Adotando tons autoconscientes de certa contribuição revolucionária à psicologia,
Maslow (s/d, pp.53-54) argumentava que o behaviorismo ignorava o inconsciente e reduzia o
humano e sua complexidade a um animal com motivações orientadas apenas pela necessidade
de resposta a um estímulo exterior. Por outro lado, ainda que a psicanálise freudiana tivesse
contribuído decisivamente à psicologia ao “descobrir” o inconsciente e a profundidade da
personalidade humana, ela teria baseado toda a sua estrutura teórica na análise de sujeitos em
processos mórbidos, considerando assim os desejos e impulsos que motivam o humano como
um perigo a ser combatido. Resumindo seu problema com a psicanálise – muito menor do que
com o behaviorismo (De Carvalho, 1990, p.34) – em uma sentença repetida com certa
constância pela literatura do tema, Maslow (s/d, p.30) afirma que “é como se Freud nos
tivesse fornecido a metade doente da Psicologia e nós devêssemos preencher agora a outra
metade sadia.”
Parte essencial das proposições de Maslow (1943; 1954) diz respeito a seu trabalho
teórico em torno daquilo que as pessoas entrevistadas por ele diziam ser motivadas em suas
vidas cotidianas. De fato, o psicólogo é até hoje lembrado nos cursos de psicologia ao redor
do mundo especialmente por sua contribuição quanto à proposta de uma teoria da motivação
95

humana, nomeada como “hierarquia das necessidades”. Essa ideia da hierarquia se materializa
na figura de uma pirâmide segmentada em níveis de necessidade que vão do mais elementar e
primordial, localizada na base, até formas mais complexas, em seu topo. Parte-se das
necessidades fisiológicas como a fome, a qual é absolutamente necessária de ser satisfeita
para que a pessoa possa sobreviver, para os níveis da segurança, do afeto e amor, da estima, e,
no cume da pirâmide, da autoatualização, na qual a pessoa teria atingido todo o seu potencial
inscrito em sua natureza, alcançando um estado de saúde e bem-estar psicológico e podendo
experienciar aquilo que ele chamou de experiência culminante (peak-experience): um estado
de êxtase e de felicidade absoluta, igual à experiência mística.
Em lugar das perspectivas da primeira (behaviorismo) e da segunda força (psicanálise)
que encaravam a pessoa como um doente em potencial e que esvaziavam e/ou colocavam sob
suspeita as motivações e os desejos humanos, a psicologia humanista (Maslow, s/d, pp.27-30)
se centraria no ser humano em todas as suas potencialidades de desenvolvimento e
transformação, partindo do pressuposto de que a natureza humana não seria má, mas sim boa
ou ao menos neutra. Um dos objetivos dessa “psicologia da saúde”, centrada na totalidade do
humano, seria encontrar possibilidades de aperfeiçoamento de nossas vidas a partir da
descoberta do núcleo interno único a cada indivíduo, auxiliando-o a ser bom, feliz, e a
aprimorar/aperfeiçoar seu ser. Como Maslow (s/d, p.17) enfatiza, não se trata da recusa das
duas primeiras forças, mas sim de sua integração em uma “verdade total”, que abarcaria tanto
a ênfase científica empírica dos behavioristas, quanto a dimensão do inconsciente presente da
psicologia dinâmica dos freudianos, em uma proposição holista.
Se na primeira metade dos anos 1960 a psicologia humanista liderada por Maslow
ganhava ares institucionais a partir da criação do Journal of Humanistic Psychology em 1961
e da Associação Americana de Psicologia Humanista em 1963, foi também nesse momento de
aproximação da subárea ao mainstream acadêmico que as proposições do psicólogo e de seus
colegas passaram a se difundir de modo mais abrangente para além dos círculos
universitários, acompanhando as transformações as quais a sociedade estadunidense
começava a vivenciar. O chamado Movimento do Potencial Humano – do qual a obra de
Maslow sobre a autoatualização das potencialidades individuais formava parte considerável
de sua sustentação (Stone, 1976) – ganhava cada vez mais adeptos e novos centros de
crescimento pessoal emergiam com vigor especialmente no oeste estadunidense. Como
remontam Kay Alexander (1992) e Leila Amaral (2000), um ambiente se formava no estado
96

da Califórnia ainda nesse período, impulsionado por condições históricas díspares que iam
desde a presença de líderes espirituais de tradições “orientais” até a reunião em San Francisco
de pessoas ligadas à geração beat, que aderiam a uma visão alternativa sobre a sociedade. Foi
nesse estado de coisas que, com a ajuda de intelectuais de renome como Aldous Huxley e
Gregory Bateson, dois ex-alunos de psicologia da Universidade de Stanford, Michael Murphy
e Richard “Dick” Price, fundaram o Esalen Institute na região do Big Sur, na Califórnia, em
1962 – instituição que viria a se tornar o mais famoso centro ligado ao Movimento do
Potencial Humano.
Maslow não conhecia Murphy ou Price e sequer sabia da existência do instituto
quando, por acaso, o visitou pela primeira vez, “em um daqueles eventos que tornaram mais
fácil acreditar que algum poder superior tinha um interesse pessoal” no empreendimento
(Anderson, 1983, p.67, tradução minha). De acordo com Walter Truett Anderson (1983) em
um relato que se tornou canônico na história do instituto, Maslow estava de férias, viajando
com sua esposa pelas estradas da Califórnia no verão de 1962, quando decidiu parar o carro
justo em Esalen, em busca de um local para passarem a noite. Price logo se apresentou ao
psicólogo e contou dos planos que ele e Murphy tinham a respeito do local. Maslow se
interessou pelo que tinha ouvido, mantendo contato por correspondências com os dois
fundadores e posteriormente ministrando uma aula em 1966 sobre o tema das pessoas
autoatualizadas.
O local passara a atrair uma série de pessoas que estavam engajadas com novas formas
de conceber não apenas o humano e sua consciência, mas também sua relação com o mundo.
Além disso, ecoando o chamado de Maslow para uma dimensão de transformação prática, o
que era antes um espaço limitado apenas a residentes tornara-se rapidamente uma instituição
que oferecia workshops e cursos abertos ao público em geral. Ali se ofertavam ativamente não
apenas sessões das mais diversas práticas terapêuticas que davam ao corpo uma conexão
privilegiada com a mente – como a então recém-criada terapia Gestalt, com Fritz Perls e sua
visão holista e centrada no aqui e agora (Carozzi, 1999a, p.22) –, mas também cursos com
temas de interesse que entrecruzavam as práticas e tradições filosóficas e espirituais asiáticas
com a prática emergente do consumo de psicodélicos. Enquanto esse clima de “abertura ao
Oriente” é, por exemplo, expresso pelo primeiro seminário realizado em Esalen em janeiro de
1962 – ministrado por Alan Watts, teólogo inglês e importante figura na popularização do
zen-budismo nos Estados Unidos –, era de fato Huxley quem parecia representar fielmente a
97

síntese desse interesse geral, dando palestras em universidades da região sobre as


“potencialidades humanas”, sendo um iniciado no hinduísmo, além também de ser um
explorador e defensor das experiências místicas com LSD e outros psicodélicos (Kripal, 2007,
pp.86-87).
Ao longo dos anos 1960, o Movimento do Potencial Humano foi se afirmando e
ganhando cada vez mais interessados e adeptos, ao mesmo tempo em que foi se
transformando em relação aos interesses iniciais do movimento, voltando uma maior atenção
às práticas espirituais e às experiências culminantes (peak experiences). Como afirma Daniel
Stone (1976, p.96, tradução minha), ao longo do tempo houve “uma mudança na ênfase da
autotranscendência de ir para além das rotinas da vida cotidiana, para uma autotranscendência
de se fundir com a infinita energia cósmica.” Para uma série de atores ligados de alguma
forma à psicologia humanista e que acompanhavam de perto ou participavam nesse
movimento durante o passar dos anos 1960, parecia agora que falar apenas do self individual
já não era mais suficiente, pois excluía de partida uma série de outros fenômenos cada vez
mais importantes para um número maior de pessoas. Foi esse sentimento que, na metade da
década de 1960, levou o psicólogo Anthony Sutich, fundador do periódico e da Associação da
psicologia humanista, a organizar encontros informais em sua casa na Califórnia para se
discutir e estudar tópicos “transumanistas”, estabelecendo assim um grupo de interessados por
esses temas.
Não demorou muito para que esse incômodo com a “limitação” das propostas da
psicologia humanista assumisse um sentido propositivo e institucionalizante. Já em 1967, um
pequeno grupo de trabalho se reuniu com a intenção de estabelecer uma nova subárea da
psicologia, agregando figuras importantes como Sutich, Maslow e o psiquiatra de origem
checa Stanislav Grof – um freudiano por formação que ficou conhecido por suas pesquisas
desenvolvidas nos anos 1950 em seu país natal, nas quais administrava o uso de LSD em seus
pacientes nas sessões psicoterapêuticas. No mesmo ano, em uma palestra proferida na
Primeira Igreja Unitária em San Francisco (sob os auspícios de Esalen), Maslow (1968)
anunciava publicamente a emergência de uma “quarta força” na psicologia. Assim nascia a
psicologia transpessoal, que ganhava já em 1968 seu próprio periódico, o The Journal of
Transpersonal Psychology. De acordo com Maslow (s/d, p.11), em sua definição feita no
prefácio da reedição de sua obra Introdução psicologia do ser, a psicologia transpessoal seria
“uma Quarta Psicologia ainda ‘mais elevada’, transpessoal, transumana, centrada mais no
98

cosmo do que nas necessidades e interesses humanos, indo além do humanismo, da


identidade”.
A subárea é muitas vezes caracterizada de modo similar à definição de Maslow, como
se interessando essencialmente pelas chamadas experiências transpessoais, ou seja, aquelas
experiências nas quais “o sentido de identidade e do self do sujeito se estendem para além
(trans) do individual ou pessoal, englobando aspectos mais amplos da humanidade, da vida,
da psiquê ou do cosmos” (Walsh; Vaughan, 1993, p.203, tradução minha). Como afirma o
historiador Wouter Hanegraaff (1996, p.50, tradução minha), não se trata aqui da recusa dos
postulados humanistas, como o das naturais potencialidades de um indivíduo, mas sim da
inclusão do nível transpessoal dessas potencialidades: “[o] completo desenvolvimento do
Potencial Humano de uma pessoa agora é entendido como incluindo a consciência dos
domínios transcendentais (‘transpessoais’) experienciados em estados alterados de
consciência.” A própria compreensão dos sujeitos passa se alterar, formulando uma distinção
já muito debatida por cientistas sociais e antropólogos a respeito da diferença existente nos
círculos Nova Era entre o ego como a imagem da sociedade/cultura e o self como o
verdadeiro eu a ser descoberto (Toniol, 2015; Amaral, 2000; Heelas, 1996). Nesse caso,
vemos como o deslocamento operado na área da psicologia humanista para a transpessoal está
absolutamente entrelaçada ao próprio deslocamento do interesse do Movimento do Potencial
Humano para as chamadas práticas espirituais, na formação das bases daquilo que ficaria
conhecido nos anos seguintes como movimento Nova Era (Heelas, 1996, p.53).
Ainda que toda definição mínima tenha como condição a manutenção de uma abertura
considerável ao se limitar apenas às características mais essenciais daquilo que é definido, é
sintomática na caracterização oferecida pelo psiquiatra Roger Walsh e pela psicóloga Frances
Vaughan a ênfase no interesse em tudo aquilo que, de alguma forma, transcende a psiquê
individual de alguém e aponte para a dimensão espiritual da pessoa. Em certo sentido, há aqui
algo próximo ao ecletismo de temas típico da Nova Era – como apontado por vários autores,
como Amaral (2000) – e do interesse nascente nos estados alterados de consciência
entendidos de forma abrangente, como visto no capítulo anterior. No entanto, por tentar se
constituir como uma subárea da psicologia com intenções institucionais, essa característica foi
tomada de forma negativa pelo restante da área disciplinar, como indicam alguns autores ao
afirmarem que “o fracasso em condensar o complexo campo de conteúdos da subárea em uma
foram compreensível, a deixou marcada como um vago conglomerado de fenômenos além do
99

ego” (Hartelius; Caplan; Rardin, 2007, p.14, tradução minha). De fato, uma das questões
controversas na aceitação da disciplina dizem respeito a essa abertura, que se dá tanto em
termos da quantidade de fenômenos quanto à qualidade “espiritual” deles.
Embora ao longo dos anos 1970 a subárea tenha conseguido estabelecer uma
associação nacional e internacional, assim como um instituto de ensino próprio (o Institute of
Transpersonal Psychology, que na década seguinte passou a oferecer cursos de mestrado e
doutorado na área), ela enfrentou sérias resistências em suas tentativas de se integrar ao
mainstream da psicologia estadunidense.35 Essa situação fica explícita quando retraçamos as
fracassadas tentativas de um grupo de psicólogos transpessoais em criarem uma divisão
transpessoal independente na Associação Americana de Psicologia durante os anos 1980,
buscando se distinguir assim da Divisão 32, representante da psicologia humanista, a qual a
maioria dos “transpessoais” estavam associados. Mesmo tendo recebido o apoio do conselho
executivo da Divisão 32 por uma votação apertada em 1984 e 1985, a proposta não conseguiu
os votos necessários no conselho de representantes da Associação. No ano seguinte, na
terceira e última tentativa possível, houve um empate no conselho executivo da Divisão 32, e
seu presidente à época optou por retirar a proposta. Em lugar do reconhecimento como uma
divisão específica, a psicologia transpessoal foi realocada como um Grupo de Interesse
Especial no interior da psicologia humanista36 (Aanstoos; Serlin; Greening, 2000).
As críticas abertas feitas por Rollo May, figura conhecida nos círculos da psicologia
humanista da época, são apontadas como tendo se não contribuído, ao menos explicitado
publicamente a opinião de muitos membros da Associação. Em um pequeno texto publicado
no periódico The Humanistic Psychologist, no mesmo ano da última tentativa da psicologia
transpessoal se constituir como uma divisão independente, May (1986) retoma parte da longa
35 Não apenas segue enfrentando resistências nos Estados Unidos, como também no próprio Brasil. Um
exemplo recente em nosso país chegou a envolver as instâncias jurídicas do estado de Santa Catarina. Isso
porque uma psicóloga foi alvo em 2009 da instauração de um processo de ética por parte do Conselho
Regional de Psicologia de Santa Catarina, por ofertar cursos de técnicas ligadas à psicologia transpessoal,
consideradas pelo Conselho como “alheias à psicologia enquanto ciência e profissão”. Ao recorrer na justiça
a censura púbica que sofrera, o juiz do caso concedeu ganho de causa para a psicóloga, afirmando que o
Conselho não podia “usurpar a competência do legislador ao tentar limitar a liberdade profissional”. Em sua
decisão, havia ainda a menção à aprovação do oferecimento de uma disciplina sobre psicologia transpessoal
no curso de psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Ver: <
https://www.conjur.com.br/2012-jul-23/conselhos-profissionais-nao-podem-legislar-pesquisa-educacao >
(Consultado em 28/01/2021).
36 O fato de ser um “grupo de interesse” parece qualificar a psicologia transpessoal mais por uma qualidade de
“temática” do que propriamente como um campo relativamente autônomo da prática e conhecimento
psicológico, como no caso das divisões. Atualmente, os Grupos de Interesse Especial da Divisão 32 são a
Psicologia Construtivista, Ciência Humana, Psicologia Positiva, Psicoterapia e Arte, Psicoterapia, Teoria e
Filosofia, Psicologia Transpessoal, Estudantes de Graduação, Psicologia Indígena. Ver: <
https://www.apadivisions.org/division-32/sigs > (Consultado em 21/01/2021).
100

definição dada por Sutich (1969), em que esse autor afirma que a psicologia transpessoal está
interessada no estudo científico e empírico e na “implementação responsável” de descobertas
relevantes ao:
devir/tornar-se [becoming], meta-necessidades individuais e de toda espécie, valores
últimos, consciência unitiva, experiências culminantes, B-value, êxtase, experiências
místicas, admiração/temor [awe], ser, autoatualização, essência, bem-aventurança
[bliss], maravilhamento, sentido último, transcendência do self, espírito, unidade
[oneness], consciência cósmica, sinergia individual e de toda espécie, consciência
sensorial máxima, capacidade de resposta e expressão, encontro interpessoal
máximo, sacralização da vida cotidiana, fenômenos transcendentais, humor próprio
cósmico e brincadeira [playfulness] e conceitos, experiências e atividades
relacionados. (Sutich, 1969 apud May, 1986, pp.87-88)

Ainda que essa dimensão quase excessiva da definição já estivesse presente na


oferecida anteriormente por Sutich (1963) quanto à psicologia humanista, May considera que
há dois problemas quanto à proposta. A primeira delas diz respeito a como a utilização do
termo “transpessoal” leva não só ao eclipsamento do sujeito, mas também aos “aspectos
negativos” da natureza humana, focando apenas nessas experiências e valores últimos e
“bons”. Já a segunda, que nos interessa mais decisivamente nesta dissertação, diz respeito a
uma suposta confusão entre a psicologia, como uma disciplina científica e prática terapêutica,
e o discurso religioso:
Até onde o cosmos vai, a psicologia lida com aquela parte do cosmos que é humana,
e qualquer coisa que vá além disso está legitimamente no campo da religião. A
experiência religiosa é certamente de grande interesse para muitos de nós na
psicologia (…). Mas falando psicologicamente, nós precisamos estudar a religião e
as seitas do ponto de vista de seus aspectos psicológicos, suas necessidades e
interesses humanos, não do ponto de vista que vai além do humano. A esse respeito,
a psicologia transpessoal confunde psicologia e religião. (…) O que eu estou
questionando aqui é a confusão entre religião e psicologia, que eu acredito não fazer
justiça a nenhuma das duas. (May, 1986, pp.88-89, tradução minha)

De acordo com alguns autores (Aanstoos; Serlin; Greening, 2000), foi especialmente
essa segunda crítica em relação a um suposto viés religioso na confusão entre as fronteiras da
psicologia e da religião que levou os membros do conselho representante da Associação a
recusarem a criação de uma divisão própria à psicologia transpessoal. Reforçando esse
entendimento, embora a crítica de May ao solapamento dos “aspectos negativos” da natureza
humana se refira não apenas à psicologia transpessoal mas também à proposta de Maslow
quanto a uma psicologia humanista, é interessante notar que, em entrevista a Edward Hoffman
(2009), May se refira de forma pejorativa ao grupo mais geral do Movimento do Potencial
Humano como uma “psicologia Nova Era”.
101

A despeito das críticas de May e da recusa da Associação na criação de uma divisão


transpessoal, chama a atenção o fato de, nessa mesma época, o psicólogo transpessoal David
Lukoff (1985) publicar seu primeiro trabalho em que propunha a criação de uma categoria
diagnóstica que permitiria distinguir experiências espirituais intensas, com características
psicóticas, de verdadeiros transtornos mentais. Ao mesmo tempo, menos de dez anos se
passaram desse debate institucional até que Lukoff e dois psiquiatras transpessoais
conseguissem incluir a categoria “problema religioso ou espiritual” no DSM-IV,
estabelecendo assim uma espécie de “freio” à compreensão dessas experiências como
psicopatologias. Se é verdade que a categoria do DSM “problema religioso e espiritual” não
apresenta nada em seu texto que possa ser fundamentalmente reconhecido como
“transpessoal” (Maraldi; Martins, 2016), não é possível ignorar a posterior defesa feita pelos
pelos propositores da categoria sobre sua origem.
Como venho tentando indicar ao longo desta seção, a emergência e o desenvolvimento
da psicologia transpessoal não pode ser pensada de modo independente à própria formação
das bases do movimento Nova Era. Ambas se entrelaçam não só historicamente, mas se
influenciam uma a outra nos estilos de pensamento postos em movimento em suas tentativas
de conceitualizar o sujeito e sua relação com o cosmos. Apesar de estar atento ao argumento
de Toniol (2016) quanto aos riscos que se corre ao se associar muito rapidamente o arsenal
analítico da Nova Era a certas práticas terapêuticas, veremos a partir do caso de Lukoff como
uma série de temas reconhecidamente Nova Era são articulados em sua construção de seu
próprio relato de sua “crise espiritual”, assim como de sua conceitualização prática como
psicólogo transpessoal. Privilegiarei seu relato biográfico pela centralidade que o próprio
autor dá a ele em suas falas e textos e na justificativa de seu trabalho. Além disso, seu relato
me parece ser representativo do tipo de estilo de pensamento que o psicólogo coloca em
movimento para conceitualizar experiências espirituais e sua relação com a possível
existência de transtornos psiquiátricos.

A crise de Lukoff
Lukoff é uma pessoa ativa na rede transpessoal. Embora não seja alguém com grandes
produções teóricas, o psicólogo foi em um período recente copresidente da Associação
Internacional Transpessoal, e o considerável número de entrevistas e de falas em instituições
de ensino e universidades ao redor do mundo indicam um certo reconhecimento de seu
102

trabalho. Em especial, seu esforço à frente da proposição da categoria “problema religioso ou


espiritual” parece ter sido decisivo na formação desse reconhecimento nessa comunidade de
psicólogos e psiquiatras. Diferentemente de Francis Lu e Robert Turner, psiquiatras
transpessoais que também contribuíram na proposição da categoria ao DSM, Lukoff se
manteve particularmente ativo na promoção e divulgação da categoria, tendo estabelecido um
material didático (Lukoff, s/d) para auxiliá-lo no oferecimento de cursos sobre a utilização da
categoria. Em lugar do pequeno parágrafo incluído no DSM-IV,37 que mencionava alguns
poucos problemas ligados à prática religiosa, as 115 páginas de seu material recheado de
exemplos explicita a rationale e as intenções na criação da categoria.38
Ainda que em algumas de suas falas Lukoff aborde outros temas, como sua
experiência enquanto instrutor de mindfulness39 ou então sobre seus interesses mais recentes,
envolvendo a questão das “competências espirituais”, é notável que a maior parte delas seja
sobre sua trajetória profissional e pessoal. Nessas ocasiões e em alguns artigos de sua autoria
(Lukoff, 1990; 2018), é especialmente sua biografia e sua própria “crise espiritual” e psicótica
que ocupa a maior parte de sua exposição e situa o contexto e sentido de seu argumento,
mantendo a mesma estrutura narrativa e alterando apenas pequenos detalhes ou omitindo
certos episódios e interpretações a depender do contexto de recepção do material.40

37 Parar relembrar, cito novamente aqui o conteúdo completo presente do DSM-IV: “Esta categoria deve ser
usada quando o foco de atenção clínica é um problema religioso ou espiritual. Exemplos incluem:
experiências negativas que implicam perda ou questionamento da fé, problemas associados com conversão a
uma nova fé, questionamento de valores espirituais que não necessariamente estão relacionados a uma igreja
organizada ou uma religião institucionalizada.” (American Psychiatric Association, 1994, p.685, tradução
minha)
38 Lukoff é especialmente ativo na divulgação de seu trabalho, de temas relacionados à psicologia transpessoal
e de questões psiquiátricas e psicológicas mais amplas na Internet. Ao menos desde a segunda metade dos
anos 1990, encontramos uma rica reunião de artigos e materiais, além do oferecimento de cursos online, em
seu antigo site. Ver: < https://web.archive.org/web/19980501000000*/www.virtualcs.com > (Consultado
22/01/2021). Seu endereço atual leva o nome do tema que o tem interessado mais recentemente, a respeito
das “competências espirituais” que um profissional da saúde mental deve ter para melhor acolher seus
pacientes. Ver: < https://www.spiritualcompetency.com/ > (Consultado em 22/02/2021).
39 Trata-se de uma prática voltada para a produção da atenção plena no momento presente, adotando uma
atitude “curiosa” e sem julgamentos quanto aos pensamentos. Criado nos anos 1970 a partir da prática de
meditação budista, o mindfulness vem sendo especialmente utilizado como um instrumento de promoção de
saúde e tem se popularizado cada vez mais nos últimos anos no Brasil e em outras partes do mundo.
40 Como veremos mais à frente, em algumas situações Lukoff enfatiza que parte do processo de integração de
sua crise espiritual se deu a partir do aprendizado de técnicas neoxamânicas. No entanto, embora esse seja
um ponto central em seus relatos publicados na forma de artigo – como aquele publicado na revista dedicada
do tema, Shaman’s Drums (Lukoff, 1990) –, na maioria de suas falas disponíveis na Internet esse é um ponto
costumeiramente omitido. A exceção é sua palestra para o Centro de Medicina Integrativa da Universidade
da Califórnia, San Francisco, que contou com uma longa fala sua (1 hora). Ver: <
https://www.youtube.com/watch?v=Ap9uo8J_4SY > (Consultado em: 23/01/2021).
103

A história de sua crise espiritual e psicótica começa em 1971, quando ele tinha 23
anos de idade.41 Tendo se formado no curso de civilizações antigas na Universidade de
Chicago e concluído seu mestrado em antropologia social pela Universidade de Harvard,
Lukoff caminhava para uma carreira na academia e seguia os passos de seu pai e de seu avô
materno, ambos professores universitários, quando experienciou o que chamou de uma “crise
existencial”. Sentindo que desperdiçava seu tempo ao aprender sobre outras pessoas sem
conhecer a si mesmo e sem saber o porquê de encaminhar sua vida nesse sentido, ele decidira
abandonar seu doutoramento no programa de antropologia social de Harvard e vender tudo
aquilo que possuía e que não cabia em sua mochila. Sua decisão era a de viajar pelo país
através de caronas oferecidas nas estradas, algo que lhe permitiu viajar não só pelas cidades
dos Estados Unidos para além da costa leste, mas também visitar lugares como Canadá,
México e até o Havaí.
Seis meses após o início de sua viagem, Lukoff viu-se em San Francisco, na
Califórnia. Como ele afirma em uma entrevista,42 “embora fosse 1971, culturalmente era na
verdade o que nós chamamos de os anos 60, sabe? Havia toda essa coisa da cultura hippie”.
Foi nesse ambiente que lhe ofereceram um tablete de LSD. Embora ele nunca houvesse
experimentado qualquer substância psicodélica, ele decidira aceitar a oferta. Tudo correu bem
naquele dia, vivenciando experiências visuais e um sentimento de conexão com o mundo que
até então ele nunca havia tido, em parte por ter sido criado em um ambiente judaico secular e
nunca ter sido motivado a ter esse tipo de experiência de “abertura espiritual”. Apesar disso,
ele achava que nada de muito mais transformador havia ocorrido. A única diferença notada no
dia seguinte foi que agora ele conseguia compreender um dos livros que carregava em sua
mochila e que até então pouco lhe fazia sentido, o Manual of Zen Buddhism, de Daisetsu

41 Para contar sua história, utilizarei uma série de vídeos disponíveis no Youtube e dois artigos publicados por
ele sobre o assunto (Lukoff, 1990; 2018). Em vídeo, o melhor, mais completo e mais visto relato sobre sua
experiência é sua fala para o canal do Youtube “bipolarorwakingup” (“bipolar ou despertando”), de Sean
Blackwell. Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=RUcbj7hou2c > (Consultado em 23/01/2021). Uma
versão legendada em português pode ser acessada no canal do “Repensando a loucura”. Ver: <
https://www.youtube.com/watch?v=ZwMlsAeiUlM > (Consultado em 23/01/2021). Blackwell é um
sociólogo da religião por formação. Após vivenciar um episódio maníaco e ser diagnosticado com transtorno
bipolar, ele decidira investigar essa experiência a qual ele considerara um “despertar espiritual”. Depois de
se formar como facilitador em respiração holotrópica, prática terapêutica criada por Stanislav Grof e
Christina Grof, Blackwell a adaptou para o contexto da bipolaridade e passou a oferecer retiros terapêuticos.
Ele esteve presente no “Repensando a loucura”, organizado pelas psicólogas transpessoais Ligia Splendore e
Maria Crsitina Barros, evento no qual Lukoff participou mediante um vídeo gravado para a ocasião. De
origem canadense, desde 2011 ele vive em São Paulo. Seu canal do Youtube possui quase 25 mil inscritos e
seus vídeos somam quase 3 milhões de visualizações.
42 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=M7fz_M0VQyY > (Consultado em: 23/01/2021).
104

Teitaro Suzuki,43 um dos principais responsáveis pela introdução e popularização da tradição


no Ocidente. Mais do que entender a leitura, ele “sentia que havia resolvido o enigma dos
ensinamentos zen e entendido o que significava ser ‘iluminado’” (Lukoff, 2018, p.2, tradução
minha).
No entanto, quatro dias após sua experiência com LSD, Lukoff acordou no meio da
noite descansado e cheio de energia para voltar a escrever em seu diário. Ao caminhar em
direção ao banheiro e se olhar no espelho, ele notou que sua mão direita brilhava, irradiando
uma luz branca. Sua mão formava a posição gyan mudra, na qual o polegar toca o dedo
indicador. Esse sinal parecia claro:
[E]u fui Buda em uma vida passada. Então outro pensamento veio: Buda foi
reencarnado como Jesus Cristo. Portanto, eu também fui Jesus Cristo. Agora, nesse
momento, a imagem luminosa no espelho estava me despertando para meu
verdadeiro propósito: para mais uma vez tirar a raça humana do declínio. Minha
escrita no diário era na verdade a criação deu uma “nova Bíblia”, um livro sagrado
que uniria todas as pessoas em torno dos princípios comuns de um único sistema de
crenças. Em vez de unificar apenas um único grupo social, como Buda e Cristo
fizeram, minha missão era escrever um livro que iria criar uma nova sociedade
mundial livre de conflito e cheia de relacionamentos amorosos. (Lukoff, 1990, s/p,
tradução minha)

Lukoff considerava que ele havia se preparado para essa tarefa. Afinal, sua formação
em civilizações antigas e em antropologia social lhe possibilitavam ter um entendimento
compreensivo e científico do modo como as sociedades funcionam, o que lhe permitiria
mudá-las. Somando-se o fato dele estar no estado iluminado do Buda, não haveria nada que o
pudesse impedi-lo de colocar seu plano em ação e preparar essa revolução cultural.
Foi logo após sua realização que ele deu início ao seu trabalho. Durante o processo,
percebeu que poderia contatar os espíritos de pessoas importantes, mortas e vivas, que
poderiam auxiliá-lo na criação de seu livro sagrado. Margaret Mead, Claude Lévi-Strauss,
Bob Dylan, Freud, Jung, Durkheim e Ronald Laing eram algumas das personalidades com
quem ele mantinha diálogos e debates, além de Buda e Cristo. Seu trabalho durou cinco dias e
noites de trabalho exaustivo. Ao final, o resultado eram 47 páginas que combinavam
parábolas, poemas e instruções para a organização de uma nova sociedade. Uma vez feitas 10
cópias de seu livro, Lukoff as enviou para amigos próximos e familiares.
Pelos próximos cinco meses ele aguardou pelas mornas respostas dadas por aqueles
escolhidos por ele para lerem em primeira mão seu projeto de uma nova sociedade. Ficando
na casa de amigos que o acolhiam sem qualquer problema, sua revelação em que era a
43 Embora em seus artigos publicados Lukoff (1990; 2018) se refira a esse livro, em algumas entrevistas dele
há a menção a um outro livro, de autoria de Alan Watts, sobre o zen e a iluminação.
105

reencarnação de Buda e Cristo passou a enfraquecer, assim como o entendimento de que seu
livro era como a nova Bíblia. Ainda assim, Lukoff continuava a trabalhar na obra, acreditando
haver ali boas ideias que deveriam ser publicadas. Já em 1972, ele decidira retornar à costa
leste para morar sozinho em um chalé de verão de seus pais, de modo a continuar o trabalho.
Sua saúde começara a deterior devido a uma doença autoimune que o fazia sentir dores por
todo o corpo, o que atrapalhava sua leitura. Ainda assim, e apesar da solidão e do sentimento
de depressão que começava a invadir, ele continuou seus estudos, conhecendo obras como as
de Joseph Campbell e Carl Jung.
Foi nesse meio tempo que, ao ler A Contracultura, do historiador Theodore Roszak,
em que colocava em perspectiva muito do que Lukoff havia vivenciado, ele se sentira
desiludido e completamente envergonhado: sua ideia não era tao original assim, mas sim um
exemplo comum de um plano comunal utópico típico dos anos 1960. No entanto, um dia em
que estava caminhando sozinho na praia, se sentindo deprimido e pensando nos eventos
ocorridos nos últimos seis meses, algo ocorrera: “De repente, eu ouvi uma voz falando
comigo. Eu fiquei assustado. A voz disse claramente: ‘torne-se um curador [healer]’” (Lukoff,
2010, p.5, tradução minha). Essa foi a primeira e única vez que ele ouvira uma voz emanando
de fora dele mesmo, e ela foi decisiva na mudança de sua vida e de sua profissão.
Foi a partir desse “chamado” que Lukoff decidira retornar à casa de seus pais, em
Nova Jersey, para se recuperar. Nesse período, começou a frequentar aulas de ioga e de
plantas medicinais, ingressando posteriormente em um centro de potencial humano que o
permitiu aprender uma série de práticas terapêuticas, como a terapia gestalt, a bioenegética e
o psicodrama. Após trabalhar como facilitador de grupos de crescimento pessoal em um
hospital de Chicago, Lukoff compreendeu que o chamado feito pela voz era para ele se tornar
um psicólogo. Isso o levou a ingressar no doutorado em psicologia clínica na Universidade
Loyola, na mesma cidade em que estava morando.
Foi durante sua formação como psicólogo, em uma aula de psicologia anormal, que
Lukoff aprendeu que a presença de delírios grandiosos e alucinações visuais e auditivas
qualificaria sua experiência como um episódio psicótico agudo – o que na época seria
diagnosticado como uma reação esquizofrênica aguda –, possivelmente desencadeado pelo
consumo de LSD, a falta de horas de sono e pela leitura intensiva de livros sobre o zen-
budismo nos dias que antecederam o evento culminante. Para Lukoff, caso durante esse
período de crise ele tivesse passado por algum centro de atendimento em saúde mental, ele
106

provavelmente teria sido hospitalizado e medicado com antipsicóticos. Se antes de saber seu
possível diagnóstico Lukoff nunca havia voltando a essa experiência em seu trabalho como
facilitador de grupos terapêuticos – mantendo seu “livro sagrado” guardado em uma caixa –,
foi nesse momento que ele teve certeza que não poderia falar sobre, por medo do que seus
colegas de profissão achariam, talvez colocando em risco sua própria carreira. Como ele
sentencia a respeito da classificação psiquiátrica:
Embora esse nível de entendimento jogue alguma luz no que ocorreu, nada em
minha formação como psicólogo me encorajava a explorar mais meu episódio
psicótico. Da perspectiva do modelo médico psiquiátrico, a psicose não traz nenhum
potencial para transformação, mas apenas o risco de seu reaparecimento. (Lukoff,
1990, s/p, tradução minha)

Seu retorno a esse episódio só foi possível no período de estágio no hospital da


Universidade da Califórnia, em Los Angeles, em que ele começou a se consultar com uma
psicóloga junguiana. Foi durante esse período que, em uma noite, ele sonhou com um grande
livro vermelho no meio da estrada, bloqueando sua passagem. Ao comentar com sua terapeuta
e ser perguntado quanto ao que ele associava esse livro, ele decidira contar sobre seu episódio
psicótico, tentando se distanciar dele ao apresentá-lo em uma linguagem psicopatológica, por
medo do que ela pensaria a respeito. Tendo recebido o reconhecimento de sua terapeuta de
que essa parecia ter sido uma experiência importante em um “nível profundo”, ele concordou
em levar o livro para ela e finalmente revisitar essa memória, para que eles pudessem
trabalhar sobre ela.
Embora esse tenha sido um passo importante em seu processo terapêutico e ele tenha
continuado se consultando com ela por cinco anos, seu persistente desconforto quanto à
experiência não o permitia mergulhar completamente nela. Ele agora possuía os símbolos para
interpretar o fenômeno como se ele fosse um sonho, mas “o potencial espiritual inerente à
[sua] experiência se manteve dormente” (Lukoff, 1990, s/p, tradução minha) até seu contato
com um outro conjunto de práticas: o xamanismo. Após terminar seu doutorado em 1980 e
continuar em Los Angeles como pesquisador assistente em uma clínica de pesquisa na
universidade, ele também se tornou um membro da equipe da Fundação Ojai, um centro de
retiro para o ensino de técnicas xamânicas, fundado pela antropóloga Joan Halifax. Foi
mediante o aprendizado com professores xamãs tradicionais e com curadores indígenas que
ele pôde entrar em contato com a dimensão espiritual de seu episódio psicótico:
Nos estados alterados de consciência induzidos pelas práticas xamanísticas, eu
revivi, pela primeira vez desde meu episódio psicótico, o sentimento de unidade com
o universo. Mais uma vez, eu estava comunicando com espíritos divinos e
107

compreendendo o sentido da própria vida. Em vez de reprimir essas experiências


extáticas que trouxeram memórias dolorosas, agora estava aprendendo a confiar
nelas novamente. (Lukoff, 1990, s/p, tradução minha)

A prática e mitologia xamânica permitiram a Lukoff (1990, s/p, tradução minha)


“criar uma mitologia pessoal baseada em [sua] vida íntima”. A partir delas, ele conseguiu
reenquadrar seu episódio psicótico a partir da ideia da iniciação xamânica, na qual o sujeito se
vê acometido por uma grave crise ou enfermidade e, a partir dela, se inicia nas artes e técnicas
curadoras e espirituais. Nesse sentido, a integração da dimensão de sua crise espiritual e
psicótica lhe permitiu não apenas se tornar um psicólogo – a partir do chamado que ouvira
para se tornar um curador e do fato de não ter sido hospitalizado no processo –, mas também
orientar seus esforços na tentativa de integração da dimensão espiritual no entendimento que a
psicologia e a psiquiatria oferecem a episódios psicóticos.
Embora muito pudesse ser dito de sua biografia e do modo como Lukoff a constrói
narrativamente em suas exposições, gostaria de me ater nas próximas seções em dois pontos
que me parecem fundamentais para melhor compreendermos seu trabalho como psicólogo
transpessoal. Em particular, me deterei na relação estabelecida entre a noção de
“espiritualidade/crise espiritual” e a existência de “potencialidades transformadoras” mesmo
em momentos de crise, e na utilização de práticas e mitologias “tradicionais” de povos não-
ocidentais costumeiramente estudados por antropólogos – nesse caso, na utilização de práticas
terapêuticas neoxamânicas. Veremos nas próximas páginas como esses pressupostos do
pensamento são articulados a partir da mobilização explícita ou implícita de uma série de
autores, de modo a poder reenquadrar fenômenos e experiências que seriam facilmente
diagnosticados como transtornos mentais.

O potencial de uma crise espiritual


É evidente no relato oferecido por Lukoff e exposto nas páginas anteriores o interesse
e a importância que o autor reserva para a noção de “espiritualidade”. Como ele mesmo
afirmara a respeito de sua experiência com o LSD, seu sentimento de conexão com o mundo,
em uma espécie de unidade do eu com o cosmos, era entendida por ele como uma experiência
espiritual. Mais do que isso, seu próprio “episódio psicótico” de cerca de cinco meses de
duração é qualificado por ele muitas vezes como uma crise ou despertar espiritual, a despeito
do fato dele próprio se considerar à época ateu ou agnóstico.
108

Esse tipo de interesse dado à noção de “espiritualidade” é a marca da literatura da


psicologia transpessoal. Para o psiquiatra Bruce Scotton (1996, p.4), a psiquiatria transpessoal
transforma o modelo biopsicossocial em um modelo “biopsicossocial-espiritual”, e as
definições corriqueiras sobre a subárea tendem de fato a enfatizar seu interesse fundante na
espiritualidade.44 Se acompanharmos o psiquiatra Stanislav Grof (1993, p.84, tradução minha)
na proposição de que o “transpessoal” se refere mais propriamente a um nível particular da
consciência, no qual há sua expansão “para muito além dos limites usuais de nossos corpos ou
egos”, a dimensão espiritual seria “acessada” pelo sujeito nesse nível de sua consciência.
Nesse sentido, como afirmam Christina Grof e Stanislav Grof (1990, p.40, tradução minha),
“transpessoal” seria “o termo moderno usado para a experiência direta das realidades
espirituais”.
No entanto, a relação que o termo mantém com a “religião” é de diferenciação. De
fato, para muitos desses autores, religião e espiritualidade não são a mesma coisa. Há o
entendimento de que enquanto a religião diria respeito a crenças, dogmas e a uma organização
institucional, a espiritualidade seria propriamente a experiência do sujeito mesmo com algo
maior, que o transcenda, como o próprio cosmos. Nesse sentido, a religião organizaria de
alguma forma essa “força primal” que são as experiências do transcendente, enquanto essas
últimas não se reduziriam apenas a sua relação com as religiões instituídas – por exemplo no
caso do estabelecimento de uma relação espiritual com a natureza, como ocorria com os
transcendentalistas estadunidenses do século XIX. É essa definição que Lukoff avança não
apenas em seus textos que propõem a categoria de “problema religioso ou espiritual”, mas
também em uma série de vídeos curtos disponíveis em seu canal do Youtube.45
Como psicólogos e psiquiatras interessados nas experiências transpessoais, a atenção
central desses atores se dá exatamente com a experiência da pessoa em detrimento da religião
propriamente dita, caso a tomemos da forma como esses autores a conceituam. Isso pode ser
notado mesmo na própria história da proposição da categoria “problema religioso ou
espiritual” para o DSM. Como nos contam Lukoff, Lu e Turner (1998) em um texto posterior
à inclusão da categoria, originalmente ela havia sido pensada para se referir somente aos

44 Não é difícil encontrarmos na literatura sobre o tema definições sintéticas que coloquem a “espiritualidade”
como objeto ou condição central da subárea. Esse é o caso, por exemplo, de algumas definições dadas em
textos reunidos em uma obra organizada pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, quando se
afirma que a psicologia transpessoal se ancora “na ideia de que a espiritualidade é um eixo central para o
entendimento do fenômeno humano” (Ferreira; Silva; 2016, p.82), ou quando se associa sua emergência a
partir da “ideia de que a subjetividade é eminentemente espiritual” (Ferreira; Silva; Silva, 2016, p.63)
45 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=Ax1-gruTdMU&t=28s > (Consultado em 24/01/2021).
109

“problemas espirituais”. Foi apenas com o estabelecimento de um diálogo inicial com


psicólogos da religião e com outros atores ligados à Associação de Psicologia Transpessoal
que, além de outras modificações, eles optaram por incluir os “problemas religiosos” à
proposta, “[p]ara obter maior apoio (…) e para reconhecer as muitas áreas de sobreposições
entre espiritualidade e religião” (Lukoff; Lu; Turner, 1998, p.26, tradução minha). No
entanto, tal assimetria de interesse pode ser compreendia a partir de um outro texto dos
autores (Lukoff; Turner; Lu, 1995) sobre a categoria do DSM. Logo após retomarem a divisão
entre “religião” como a adesão a um conjunto de crenças ou práticas de uma instituição, e a
“espiritualidade” como a relação do sujeito com o transcendente, eles recorrem a uma
definição de Frances Vaughan (1991), para quem a espiritualidade seria uma “experiência
universal” e subjetiva do sagrado, e não uma “teologia” sobre ele. Mais do que isso, a
espiritualidade seria “uma capacidade inata que existe em todo ser humano” (Vaughan, 1991,
p.116, tradução minha).
O fato é que essa noção da espiritualidade se encontra intimamente ligada à ideia de
um potencial de transformação e crescimento do sujeito. Não parece ser à toa que Vaughan
comece seu texto com a menção à obra de Abraham Maslow. Como vimos anteriormente,
Maslow foi fundamental na formação não só do que viria a ser chamado de Movimento do
Potencial Humano, mas também na proposição da psicologia transpessoal como uma subárea
da psicologia. Embora Lukoff (1988) mobilize sua obra explicitamente apenas em um de seus
artigos, a noção da existência de um potencial transformador positivo nas experiências
espirituais é basilar em suas produções sobre o tema, assim como também é em sua própria
narrativa, ao enfatizar o “potencial espiritual” inerente e ignorado em seu “episódio
psicótico”. Como afirma o autor junto de seus colegas no texto de proposição da categoria do
DSM-IV, a questão é que uma experiência espiritual pode ser “integrada e usada como
estímulo para o crescimento pessoal” ou então ser reprimida e tomada como o sintoma de um
transtorno mental, a depender da atitude do clínico (Lukoff; Lu; Turner, 1992, p.679,
tradução minha). Maslow seria uma das principais influências nessa ideia, uma vez que,
como afirma Vaughan (1991, p.105, tradução minha) a respeito do autor, “em suas
observações os indivíduos psicologicamente saudáveis eram aqueles com um sentido de
espiritualidade profundo e bem integrado”.
De fato, embora Maslow publicasse textos a respeito de sua pirâmide da hierarquia das
necessidades ao menos desde 1943, fazendo dela o fundamento de sua teoria psicológica e de
110

sua proposição para uma psicologia humanista, ao longo dos anos 1960 ele veio a incluir uma
nova preocupação em seu esquema analítico: a autotranscendência.46 Como mencionado
anteriormente, a ideia da pirâmide é a de que um indivíduo possui distintos níveis de
necessidades que o mobilizam e o motivam, e que embora eles possam “subir” ou “descer” a
depender da satisfação ou não dos níveis mais basilares, o sentido da saúde e felicidade
psicológica seria ascendente, encontrando seu ápice no topo da pirâmide. Dessa forma, sua
teoria da motivação busca ser uma resposta às teorias que postulavam uma forma reducionista
de compreensão das necessidades humanas, como aquelas que instituem a necessidade de
alimentação como o imperativo único e último que nos motiva em nossas decisões e ações em
nossa vida cotidiana. Em vez disso, Maslow reconhecia a primordialidade das necessidades
fisiológicas ao situá-las no primeiro nível da hierarquia, mas argumentava que, após
satisfeitas, novas ordens de necessidades passariam a emergir, nos motivando para outras
áreas da vida.
Seu estudos empíricos se davam especialmente com pessoas que ocupavam o topo da
pirâmide, chamadas por ele de “autoatualizadas”. Para Maslow (1943, p.382), a
autoatualização se referiria ao desejo de se autorrealizar, ou seja, “se atualizar naquilo que ele
é potencialmente”, algo que estaria inscrito tanto na biologia da espécie humana, quanto na
particularidade de cada indivíduo. Nesse sentido, a forma específica dessa autorrealização
seria variável a cada pessoa, e Maslow (p.152) chega a incluir uma lista de personalidades
históricas que fizeram sua vida desde a política institucional, o mundo artístico e o discurso
espiritual, como George Washington, Goethe, Ralph Waldo Emerson e Benjamin Franklin,
como sujeitos possivelmente autoatualizados. Em comum a elas seria seu senso de gratidão e
de sentido que aquilo que faziam lhes propiciava, tendo eles possivelmente realizado o
potencial de seu ser.
No entanto, ao menos desde o começo dos anos 1960 Maslow começou a acreditar que
seu quadro não estava completo. De acordo com Koltko-Rivera (2006), o psicólogo teria
começado a se questionar sobre o quão adequado era a noção de autoatualização ocupar o
topo da hierarquia das necessidades a partir de seus estudos sobre as experiências culminantes
(peak-experiences) e sobre os estados cognitivos relacionados a elas. Isso porque nesse estado

46 Vale notar que Maslow não foi o único “psicólogo humanista” a incluir aspectos transcendentais e
espirituais ao longo de sua trajetória profissional. Como argumenta Robert Fuller (2005), o importante
psicólogo Carl Rogers também se viu afetado pela experiência de Esalen e as transformações mais
abrangentes ocorridas na sociedade estadunidense, com a emergência dos círculos Nova Era, tendo adotado
uma metalinguagem espiritual em um momento posterior de sua vida e trabalho.
111

de excitação oceânica, as pessoas seriam levadas a transcenderem suas próprias preocupações


pessoais, para além de seu self e das potencialidades ligadas a ele, experienciando uma
sensação de conexão com o mundo – experiência essa que Maslow (1976) qualifica em outro
momento como o “núcleo universal” de todas as religiões do mundo. Embora seja uma
questão em debate saber se o que ele chamou de “autotranscendência” seria um nível distinto
à autoatualização (Koltko-Rivera, 2006), a experiência de transcendência do sujeito parece ter
sido reconhecida por ele como uma espécie de “cume” da pirâmide, acompanhando assim no
plano teórico o que ele vinha propondo para a formação da psicologia transpessoal. Como ele
escreveu no mesmo artigo que mencionara a ideia da “quarta Psicologia” pela primeira vez:
“O ser humano totalmente desenvolvido (e muito afortunado), trabalhando sobre as melhores
condições, tende a ser motivado por valores que transcendem seu self” (Maslow, 1968, p.4,
tradução minha).
É a partir dessa atenção dada às experiências culminantes e transcendentais como um
fenômeno intimamente ligado ao potencial de desenvolvimento pessoal mais sublime que
Stanislav Grof e Christina Grof desenvolvem o conceito de “crise de emergência espiritual”
(spiritual emergency). De acordo com Lukoff, Lu e Turner (1998), a proposta da categoria
“problema religioso ou espiritual” é diretamente tributária dos trabalhos dos Grof’s e desse
conceito em particular. Não à toa, o ímpeto inicial da criação de uma categoria no DSM veio a
partir das atividades realizadas na Spiritual Emergence Network, fundada em Esalen em 1980
por Christina Grof, com o objetivo de fornecer apoio a pessoas em “crise espiritual”,
“providenciando informações que lhes dão uma nova compreensão dos processos pelos quais
passam e as aconselhando sobre alternativas disponíveis ao tratamento tradicional” (Grof;
Grof, 1989, p.xiv, tradução minha). Como relata Lukoff,47 foi inclusive como membros do
conselho da rede que Francis Lu e ele passaram a trabalhar em conjunto e chegaram à ideia da
proposição da categoria para o DSM, como uma forma de incluir o debate sobre as crises de
emergência espiritual no mainstream acadêmico, reconhecendo a existência desses
fenômenos.
A grande contribuição feita por Christina Grof e Stanislav Grof (1989) nesse debate é
a de incluir nesse esquema de desenvolvimento espiritual experiências normalmente
consideradas pela psiquiatria como possivelmente patológicas. Os autores partem de um jogo
de palavras que se perde na tradução ao português, entre spiritual emergence e spiritual

47 Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=Ap9uo8J_4SY > (Consultado em 20/01/2021).


112

emergency, que traduzirei respectivamente como emergência espiritual e crise de emergência


espiritual. Como a tradução deixa transparecer, enquanto a emergência espiritual diria
respeito a uma “oportunidade de ascensão a um novo nível de consciência”, experienciando
um estado de conexão com o mundo que se dá de maneira suave, a crise de emergência
espiritual possuiria essa mesma potencialidade de transformação, mas envolveria também
uma crise intensa e abrupta, desafiando o cotidiano da pessoa (Grof; Grof, 1989, p.x,
tradução minha). Nesses casos de emergência espiritual, muitas vezes desencadeados pela
prática de exercícios espirituais – como a meditação e a contemplação monástica –, a
consciência da pessoa se ampliaria para além do nível individual, acessando “o reino
mitológico das formas arquetípicas”, representado por uma variedade impressionante de
fenômenos (Grof; Grof, 1989, p.11, tradução minha). De fato, sob a categoria de “crise
espiritual” ou de “formas arquetípicas”, os autores agrupam fenômenos que seriam “tipos”
particulares dessas crises, como a crise xamânica, episódios de consciência unitiva /
experiência mística, experiências com vidas passadas, comunicações com espíritos-guia,
experiências com extraterrestres, estados de possessão, entre outras.48
O problema diria respeito ao fato da psiquiatria considerar como transtornos mentais
muitos fenômenos que seriam, na realidade, crises espirituais. Nesses casos, experiências
valorizadas em culturas do mundo inteiro e em toda a história pré-industrial seriam reprimidas
e categorizadas como patologias da mente por parte da psiquiatria na modernidade ocidental,
desperdiçando assim todo seu potencial espiritual. Como afirmam enfaticamente:
Sentimentos de unidade com todo o universo. Visões e imagens de tempos e locais
distantes. Sensações de correntes vibrantes de energia percorrendo o corpo,
acompanhadas de espasmos e de violentos tremores. Visões de divindades,
semideuses e demônios. Vividos vislumbres de luzes brilhantes e das cores do arco-
íris. Temores de insanidade iminente, e até de morte. (…)
Nós encontramos muitos paralelos desses incidentes nas histórias de vida de santos,
iogues, místicos e xamãs. Na verdade, a literatura e as tradições espirituais ao redor
do mundo validam o poder de cura e transformação desses estados extraordinários
para as pessoas que os experienciam. Por que, então, as pessoas que têm essas
experiências nos dias de hoje são quase invariavelmente consideradas como doentes
mentais? (Grof; Grof, 1989, p.2, tradução minha)

Em lugar dessa atitude, os autores consideram essencial no manejo “clínico” que os


episódios de crises espirituais sejam diferenciados da ocorrência de transtornos mentais, para
que possam ser recebidos em um espaço acolhedor e receptivo, que conte com o apoio de
pessoas com conhecimento nesses fenômenos de modo a que todo o potencial positivo

48 Essa tipologia é seguida quase que integralmente por Lukoff (s/d) em seu material didático sobre a categoria
“problemas religiosos ou espirituais”, classificando-os como “problemas espirituais”.
113

espiritual inscrito na experiência possa ser integrado à pessoa. A esse respeito, Lukoff (1985)
e os Grof’s utilizam o exemplo do “episódio psicótico” para desenvolverem a plausabilidade
psiquiátrica de seus argumentos. De modo similar ao visto no capítulo anterior quanto à
utilização do conceito de “dissociação” como um termo descritivo, não há aqui o abandono do
termo “psicótico” para descrever fenômenos vistos como delírios e alucinações visuais e
auditivas. Para eles, há a possibilidade de existência de um “episódio psicótico agudo” –
chamado por Grof e Grof (1989, p.4) como “psicoses funcionais” –, no qual o prognóstico é
muito melhor do que em casos de psicoses crônicas e de fundo orgânico, essas mais
facilmente associadas a transtornos mentais, como a esquizofrenia.
Em seu primeiro artigo sobre o tema, Lukoff (1985) aborda exatamente essa
sobreposição confusa entre os fenômenos de “experiências místicas com características
psicóticas” e os “transtornos psicóticos com características místicas”. Devido à semelhança
fenomênica do misticismo com algumas experiências de transtornos psicóticos, parte de seu
texto é dedicado à tentativa de estabelecer critérios para identificar episódios psicóticos que
possam ter um bom prognóstico.49 No entanto, o que me interessa em seu texto e nos de
Christina Grof e Stanislav Grof é exatamente a ideia de que estados psicóticos e crises
espirituais possam se sobrepôr. Embora em alguns momentos nos escritos desses autores haja
uma definição exclusiva, de tipo “isso ou aquilo” (estados psicóticos ou crises espirituais), na
maioria das vezes parece ocorrer essa sobreposição: um estado psicótico que é uma crise
espiritual, não sendo sintoma de um transtorno mental. Isso é expresso no relato de Lukoff
sobre sua própria crise, em que acreditava ser a reencarnação de Buda e de Cristo. Não há por
parte dele a recusa em qualificar sua crise como um “estado psicótico”, mas há a proposta de
pensar esse estado mais propriamente também como uma “crise espiritual”, com potenciais
transformadores e de crescimento pessoal.
Ao proceder dessa maneira e ao recorrer às práticas neoxamânicas em seu processo de
cura – entendida como a integração da experiência e de suas potencialidades transformadoras
–, Lukoff estabelece uma relação já de alguma forma consolidada na literatura transpessoal.
Trata-se da ideia de que os místicos de outros tempos ou os xamãs de outras culturas
vivenciariam também crises psicóticas. No entanto, diferente das pessoas diagnosticadas com
transtornos mentais hoje em dia, os místicos e xamãs saberiam lidar com essas experiências.

49 Os critérios são: bom “funcionamento” social anterior à experiência; emergência aguda dos sintomas,
durando três meses ou menos; ocorrência de eventos estressantes antes ao episódio; atitude positiva e
exploratória durante o episódio (Lukoff, 1985, p.170).
114

Nesse sentido, foi o encontro com as práticas e a mitologia da crise iniciatória xamânica que
permitira a Lukoff reenquadrar seu próprio episódio psicótico e integrar as potencialidades
espirituais inscritas nesse episódio.

A questão do xamã
O tema do xamanismo é um exemplo importante dessa proposição não apenas por ser
mobilizado por Lukoff em seu relato pessoal. Ele interessa também porque, ao longo da
história, seus praticantes de sociedades não-ocidentais foram compreendidos como sujeitos
“descompensados” em termos psicológicos, muitas vezes sendo descritos como possuindo
transtornos mentais mais severos. Ao menos desde a metade do século XIX, os escritos de
viajantes e etnógrafos sobre a região da Sibéria – área geográfica de onde o termo “xamã” é
originário – apresentavam esse tipo de compreensão psicológica dos praticantes. De acordo
com o historiador Andrei Znamenski (2007), essa interpretação teria se consolidado na virada
dos séculos XIX ao XX, especialmente com os trabalhos de uma série de etnógrafos de
origem russa que se viram exilados na região. Para o historiador, em parte isso se devia à
associação que era feita por esses viajantes entre o xamã e um fenômeno local chamado de
“histeria ártica”, no qual parte dos habitantes da região seria acometida por ataques histéricos
provavelmente causados pelo clima extremo da região. Ainda que a população nativa
diferenciasse explicitamente o xamã e seu ofício de controle espiritual daquelas pessoas que
seriam “possuídas e torturadas por espíritos” - consideradas pelos viajantes como histéricas –,
a associação acabou se tornando uma interpretação comum, alterando-se as vezes o
diagnóstico psiquiátrico ou psicológico oferecido pelo analista para se compreender os xamãs.
Foi com a publicação da tradução ao inglês de algumas dessas obras etnográficas que
o debate entrou na academia dos países ocidentais.50 A interpretação dos etnógrafos russos foi
em geral aceita pelos antropólogos ocidentais na primeira metade do século XX – dentre eles
Robert Lowie e Paul Radin –, tendo adotado como ponto de partida a ideia de que o
verdadeiro xamanismo estaria inevitavelmente ligado à existência de uma psicopatologia.
Para Znamenski, mesmo aqueles antropólogos que viam com ressalvas o uso de diagnósticos
psiquiátricos para definir os xamãs acabavam concordando que “o xamanismo era um nicho

50 Além das etnografias de Waldemar Bogoras e Vladimir Jochelson, Znamenski cita ainda a obra Aboriginal
Siberia, escrita pela antropóloga de origem polonesa Marie Czaplicka e publicada em 1914. A obra continha
uma revisão das produções dos etnógrafos russos e foi usada como referência por Ruth Benedict em suas
menções ao xamanismo siberiano nos textos que abrem esta dissertação.
115

conveniente para indivíduos mentalmente perturbados que experienciavam problemas de


ajustamento à vida social de suas comunidades”, sendo uma espécie de loucura culturalmente
sancionada (Znamenski, 2007, pp.100-101, tradução minha).
Sergei Shirokogoroff foi uma exceção dos etnógrafos russos que mantinham uma
interpretação de fundo psicológico. De acordo com Znamenski (2007, p.107), sua obra dos
anos 1930 produziria um profundo impacto nos estudos sobre xamanismo realizados no
Ocidente. Isso porque Shirokogoroff não apenas afirmava que a chamada “histeria ártica” não
era uma psicopatologia, mas sim um comportamento referendado culturalmente, como
também argumentava que os xamãs eram pessoas saudáveis e que suas crises iniciatórias
envolvendo convulsões, delírios e sofrimento físico e mental, na verdade eram um costume
local. Mais do que isso, o etnógrafo russo dava um papel central ao xamã em suas sociedades,
tomando o praticante espiritual como um curador poderoso que sustentava a ordem de seu
grupo social.
Ainda que a obra de Shirokogoroff não tenha se tornado conhecida na academia dos
países ocidentais, foi Mircea Eliade quem retomou do etnógrafo russo a ideia do xamã como
uma figura central na organização de suas sociedades, recusando a questão da suposta
psicopatologia presente nesses agentes do sagrado. Publicada originalmente em francês em
1951 e traduzida ao inglês em 1964, sua obra O Xamanismo e as Técnicas Arcaicas do Êxtase
foi fundamental também no processo de popularização do tema no Ocidente. Para Kocku von
Stuckrad (2014, p.160, tradução minha), Eliade “deve ser tratado como o principal ‘prato
giratório’ entre o discurso intelectual do século XIX e as apropriações populares do
xamanismo na segunda metade do século XX.” Junto de Carlos Castaneda e sua dissertação
de mestrado em antropologia transformada em best-seller, The Teachings of Don Juan, de
1968 – sobre um suposto xamã Yaqui, da região do México51 –, Eliade contribuíra com a
descontextualização e universalização da prática xamânica (Scuro; Rodd, 2019),
transformando o xamã em um especialista no êxtase que não estaria restrito à região da
Sibéria.
Foi nesse processo de popularização do xamanismo nos círculos antropológicos e
Nova Era a partir dos anos 1960 e 1970 que sua característica como uma prática espiritual e

51 A obra de Castaneda é repleta de controvérsias envolvendo a real existência de Don Juan ou a total invenção
ficcional por parte do autor. Seja como for, sua formação em antropologia parece o ter habilitado a redigir
uma obra que fosse a princípio minimamente plausível para seus colegas na academia. Castaneda defenderia
ainda sua tese de doutoramento em antropologia na Universidade da Califórnia, Los Angeles, em 1973, antes
de se afastar do debate público e da própria academia (Znamenski, 2007; Caravita, 2019).
116

terapêutica passou a ser central. Do interesse intelectual, houve a apropriação de suas técnicas
e mitologias em parte desses círculos situados nos centros urbanos ocidentais, produzindo
aquilo que alguns autores chamam de neoxamanismo. Embora o debate envolvendo essa
integração de práticas espirituais de populações indígenas e técnicas psicoterapêuticas seja
extenso e suas ramificações internas sejam consideráveis, remeto a ele porque foi a partir de
um desses grupos que Lukoff pôde reenquadrar sua própria experiência psicótica, graças às
técnicas de produção de êxtase e estados alterados de consciência com as quais ele teve
contato. Não à toa, a fundadora da instituição a qual ele veio a trabalhar e a se iniciar era Joan
Halifax, considerada pelos autores do tema (Stuckrad, 2014; Znamenski, 2007; Boekhoven,
2011) uma das antropólogas responsáveis pela consolidação e popularização dessa adaptação
das práticas xamânicas ao contexto terapêutico e espiritual Ocidental.
Meu interesse por esse debate diz respeito não propriamente à emergência da
utilização de técnicas xamânicas tradicionais, mas sim ao modo como Lukoff rearticula sua
própria crise psicótica à luz da experiência de crise iniciatória dos xamãs, estabelecendo uma
conexão entre os xamãs tradicionais e pessoas acometidas por algum episódio psicótico. Esse
tipo de articulação parece ser produto de um deslocamento sensível do problema do “xamã
como um transtornado”, como era então enunciado pelos primeiros etnógrafos da região da
Sibéria.
Talvez o tipo de solução com maior aderência recente a esse problema tenha sido
aquele que afirma que o xamã das sociedades indígenas não é um sujeito acometido por
algum tipo de psicopatologia e que suas experiências não possuem nada de semelhante aos
sintomas de um estado psicótico. É em torno dessa premissa que o psicólogo Richard Noll
(1983) elabora seu bastante referenciado texto a respeito do uso da “metáfora esquizofrênica”
na descrição do xamanismo. Em uma operação análoga àquela feita por Bourguignon em seu
trabalho comparativo sobre os fenômenos de transe e transe possessivo que descrevi no
segundo capítulo, Noll recorre ao termo “estado xamânico de consciência” (EXC), cunhado
por Michael Harner (1995), categorizando fenomenologicamente um “estado alterado de
consciência” particular que definiria os estados xamânicos ao redor do globo. Sua definição
“neutra” em termos de uma explicação psicológica o permite comparar esse fenômeno
singular ao que seria a fenomenologia de um estado esquizofrênico, equiparando ponto a
ponto as características psicológicas desses dois estados e evidenciado a diferença entre eles.
117

Nesse sentido, é em tom de desacordo que Noll se coloca frente aos usos indiscriminados de
categorias psicopatológicas na análise do estado psicológico dos xamãs:
Infelizmente, ambos os estudos psicológicos e antropológicos tendem a ligar
arbitrariamente o EXC e a esquizofrenia como versões transculturais de um mesmo
estado psicológico. Apenas muito recentemente que o EXC tem sido estudado como
um tipo específico de estado alterado com suas próprias características interculturais
e experienciais. Mais frequentemente do que não, o EXC é considerado como um
estado perturbado, análogo aos estados esquizofrênicos. (Noll, 1983, p.447,
tradução minha)

Se a posição de Noll sobre o tema da ligação dessa prática social à esquizofrenia é a de


total recusa de qualquer paralelo que justifique a utilização da categoria psiquiátrica como
metáfora, há ainda uma outra perspectiva sobre esse tema, recoberta parcialmente pelos textos
citados por ele. É a partir dessa outra posição que Lukoff articula suas propostas e relata sua
própria experiência. Essa outra perspectiva se alinha a Noll ao recusar a patologização dos
praticantes xamãs, ao mesmo tempo em que se distancia dele ao reconhecer a existência de
alguma ligação psicológica entre o sujeito diagnosticado com esquizofrenia e o xamã.
Esse outro tipo de concepção da questão foi elaborada de modo mais claro pelo
psicólogo clínico Julian Silverman, em um texto publicado em 1967 no periódico American
Anthropologist. No momento da publicação de seu artigo, Silverman já era chefe da seção de
estudos perceptivos e cognitivos no Instituto Nacional de Saúde Mental. Partindo de uma
distinção entre esquizofrenia “processual” e “reativa”, semelhante àquela mencionada
anteriormente quanto ao episódio psicótico agudo e a psicose crônica, ele argumenta que a já
notada similaridade nos comportamentos psicóticos (psychotic-like) dos xamãs e dos
“esquizofrênicos agudos” “reflete identidades ainda mais básicas nos processos cognitivos
que geram esses comportamentos” (Silverman, 1967, p.21, tradução minha). Nesse sentido,
Silverman propõe que o estado psicológico de ambos em um momento de crise é idêntico,
sendo distinto o modo como a cultura a qual os indivíduos integram apreende seus
comportamentos. Reconhecido por seus companheiros pela sua habilidade de ingressar em
outros estados de consciência, acessando o mundo espiritual e assim possuindo uma função
social curativa, o xamã conseguiria reorganizar sua experiência iniciática de cunho psicótico,
enquanto o esquizofrênico agudo nos centros urbanos ocidentais seria rotulado como um
doente mental e assim teria sua experiência negada, intensificando ainda mais seu sofrimento.
Esse é o texto que parece ter consolidado amplamente essa perspectiva ao menos na
literatura em torno da psicologia transpessoal, sendo inclusive retomado por Lukoff (1990) no
principal relato escrito de sua experiência. Em parte, isso pode ser explicado pela relação que
118

Silverman manteve com figuras-chave na psicologia transpessoal e no então nascente


movimento Nova Era, tendo sido gerente de Esalen ao longo dos anos 1970 e, em 1968,
organizado um importante simpósio na instituição sob o título O valor da experiência
psicótica, que contou com a participação de personalidades como Stanislav Grof, Allan Wats
e mesmo o poeta beat Allen Ginsberg (Anderson, 1983, p.216). Por outro lado, o texto foi
catapultado ao reconhecimento público quando o célebre mitólogo Joseph Campbell o
mencionou em um de seus textos reunidos no livro Myths to Live By, publicado pela primeira
vez em 1972, adicionando à tese ainda o elemento dos arquétipos mitológicos.52
Campbell (1993) conta que embora nunca tivesse estudado o tema da esquizofrenia,
ele fora convidado em 1968 por Michael Murphy para apresentar uma série de aulas sobre o
tema em Esalen, local onde já havia lecionado um curso sobre mitologia no ano anterior. Ao
ser convencido da possibilidade de conciliar suas pesquisas com os debates em torno da
esquizofrenia, Campbell aceitou ministrar o curso em conjunto com o psicólogo junguiano
John Weir Perry, que havia escrito um artigo poucos anos antes argumentando que as formas
simbólicas da fantasia esquizofrênica combinavam com aquelas arquetípicas e universais
descritas pelo mitólogo em sua popular obra O herói de mil faces. De acordo com Campbell,
o argumento de Perry era de que alguns casos de crise esquizofrênica não deveriam ser
interrompidos com tratamentos de choque e medicação. Em vez disso, essas pessoas deveriam
ser auxiliadas na travessia dessa “jornada” em direção ao interior da psiquê, algo que
envolveria um processo de desintegração e reintegração do self.
Foi por Murphy e Perry que o mitólogo teve contato com o artigo de Silverman. O que
o interessou no trabalho foi propriamente essa dimensão que ligava o xamã de alguma
sociedade tradicional a um esquizofrênico de sua própria sociedade, os Estados Unidos.
Apesar de terem o mesmo tipo de crise psicológica em suas experiências, a saber, uma de tipo
psicótica, a recepção distinta por parte de suas culturas transformava essa experiência em
direção à profundidade da psiquê com todos os seus simbolismos e arquétipos em resultados
muito distintos. De fato, foi em seu texto que Campbell formulou o problema da identidade e
da diferença entre o místico/xamã e o esquizofrênico/psicótico/transtornado de modo
paradigmático, sendo citado continuamente e tornando-se epígrafe em várias obras, como no
livro dos Grof’s sobre as crises de emergência espiritual:

52 De acordo com Campbell (1993), os arquétipos diriam respeito a essas ideias elementares que seriam
encontradas com algumas variações em mitologias de todo o mundo. Desse modo, enquanto o arquétipo da
divindade seria universal, suas formas de manifestação seriam variadas.
119

Qual é a diferença entre uma experiência psicótica ou de LSD e uma experiência


iogue ou mística? Os mergulhos se dão todos no mesmo mar profundo e interior –
sobre isso não há dúvida. (…) A diferença, para colocá-la claramente, é
simplesmente equivalente àquela entre um mergulhador que pode nadar e um que
não pode. O místico, dotado com talentos nativos para esse tipo de coisa e seguindo,
estágio por estágio, as instruções de um metre, entra na água e descobre que sabe
nadar; enquanto o esquizofrênico, despreparado, sem um guia e sem dotes, caiu ou
mergulhou voluntariamente, e está afundando. (Campbell, 1993, p.209, tradução
minha)

Para não deixar dúvidas daquilo que postula, Campbell afirma logo em seguida que as
águas nas quais esse conjunto de pessoas mergulha são as mesmas, tratando-se das águas dos
“arquétipos universais da mitologia”. O problema se daria não nessa experiência, mas sim no
modo como a cultura a enquadra e como a sociedade recebe aqueles que a experienciam, sem
prestar o necessário auxílio para que a pessoa possa atravessar as profundezas oceânicas de
sua crise e retornar ao mundo comum, terreno, com seu self transformado. Para Znamenski
(2007, p.119, tradução minha), a mobilização por parte de Campbell do debate em torno das
possíveis psicopatologias do xamã serve para o mitólogo “contrastar a espiritualidade clássica
oriental e tribal com o modo ocidental esvaziado do sagrado e do espiritual”.
Esse me parece ser o ponto fundamental da questão do “xamã”. Ao situar a noção de
que um episódio psicótico seria a base sobre a qual tanto um diagnóstico psiquiátrico quanto o
chamado para se tornar um xamã é feito – na medida em que a psicose é encarada como uma
jornada espiritual no íntimo do ser –, torna-se possível tomar outras culturas como uma fonte
de inspiração para se lidar com essas experiências. Isso fica claro no relato feito por Lukoff
(1990, s/p, tradução minha), especialmente quando ele confessa que “gost[a] de pensar que
em uma época mais antiga [sua] crise iniciatória xamanística [o] teria marcado como um
xamã-eleito, e [ele] teria se tornado aprendiz de um mestre xamã para aprender a controlar
essas habilidades”. Em seu caso, a eleição do xamanismo como ferramenta de construção de
sua própria mitologia teria se dado tanto por acaso, ao começar a trabalhar na Fundação Ojai
com suas técnicas neoxamânicas, quanto por notar certos paralelos arquetípicos (de símbolos)
e experienciais ao estudar a literatura xamânica após seu contato inicial com suas práticas.
Essencial nesse processo teria sido seu próprio aprendizado com mestres xamãs, na
vivência de um estado alterado de consciência semelhante àquele experienciado por ele em
seu episódio psicótico, e no ensino oferecido por seus professores a como tomar controle
sobre sua crise espiritual. Nesse sentido, como indicam os antropólogos Juan Scuro e Robin
Rodd (2019, p.1082), no processo de adaptação do xamanismo ao contexto psicoterapêutico
do Ocidente, certas características passam a ser enfatizadas em detrimento de outras,
120

transformando a própria prática. Nesse processo, chama a atenção a mudança de escala de


ação do xamã do cósmico ou social para o pessoal e individual, a partir da ênfase
psicoterapêutica e do “cultivo do self” nas práticas nomeadas como neoxamânicas.
De acordo com Lukoff (1990), a própria Joan Halifax, durante um workshop intitulado
Psicose: misticismo, xamanismo ou patologia?, contou que sua inspiração para estabelecer a
Fundação Ojai veio de uma experiência psicótica pessoal. Como relata Halifax em uma
entrevista a respeito de sua crise e seu contato “íntimo” com outras culturas:
Eu havia trabalhado no departamento de psiquiatria na Universidade de Maryland e
havia estado com pessoas loucas, e eu percebia que eu tinha sintomas muito
parecidos. Mas eu sabia pelos meus estudos como antropóloga que havia outro
modo de explorar isso – que é o que muitos indivíduos em culturas tribais passam
para se tornarem curadores [healers] –, e que era possível usar uma crise mental e
corporal como um modo de levar o indivíduo à experiência do morrer e do renascer.
Foi isso que me levou a explorar o xamanismo. Eu sabia que o que eu estava
passando estava fora de controle e era extremo, mas eu não achava que era louca. De
alguma forma eu sabia que era uma experiência muito poderosa, e talvez até mística.
Embora fosse muito agonizante, ela abriu todos os tipos de portas na minha vida.

Foi durante esse período que eu conheci os indígenas Huichóis, do México. Minha
relação com eles mudou minha vida de uma forma muito dramática, porque eu
percebi que eu não queria apenas estudar culturas tribais ou estudar métodos de
cura, mas eu queria estudar com povos tribais. Eu não mais queria ser uma
antropóloga analisando eles. Eu queria entrar em uma outra cultura para encontrar
um modo de me curar do sofrimento. (Halifax apud Gordhamer, 1995, p.141,
tradução minha e ênfase da autora)

Existe aqui a ideia de uma relação com o sagrado mais íntima e original por parte
especialmente de populações não-ocidentais, algo que é uma constante nas práticas e tradições
mobilizadas no chamado movimento Nova Era (Bowman, 1995; Carozzi, 1999b). Se o
Ocidente perdeu sua forma de conexão com o sagrado em favor de uma visão racionalizada e
desencantada do mundo – mantendo tal relação apenas em casos “extremos”, como o dos
místicos –, então seria preciso nos voltarmos para as tradições que ainda mantém esse tipo de
relação mais “íntima”, que saibam encarar melhor essas experiências pelas quais todos os
seres humanos supostamente passam. Nesse sentido, é indicativa a afirmação de Lukoff ao se
remeter ao passado para caracterizar sua possibilidade de se tornar um xamã: “em outra
época” ele assim seria reconhecido, assim como seria em outra cultura pré-moderna, em um
certo elogio ao “primitivo”. Se a formação acadêmica de Lukoff em civilizações antigas e em
antropologia não é mencionada por ele como uma influência em sua aproximação inicial com
as técnicas neoxamânicas, Halifax é bem explícita a respeito dessa “inspiração pela
alteridade” produzida por seu próprio trabalho como antropóloga. Enquanto uma disciplina
121

caracteristicamente voltada à investigação de grupos “não-modernos”, a antropologia se torna


um saber privilegiado no acesso às tradições e práticas dessas outras culturas.
Desse modo, vemos como essa operação não apenas busca despatologizar experiências
ligadas a práticas religiosas e espirituais entendidas como psicopatológicas pelos saberes psi.
Há um considerável deslocamento do debate colocado pelos estudos sobre dissociação. Não
se trata mais de se olhar para a religião como uma instituição cultural na qual a relação com o
sagrado se dá a partir da utilização de algum mecanismo psicológico universal à humanidade,
algo que seria evidenciado pela investigação dos “usos normais” da “dissociação” em outras
culturas. Assim como também não é mais o privilégio à “cultura” a qual a pessoa está inserida
que forneceria aos profissionais de saúde mental um critério de averiguação da existência de
um transtorno mental. Se a categoria “problema religioso e espiritual” pode fornecer uma
espécie de “freio” a uma pulsão patologizadora por parte da psiquiatria aos fenômenos ligados
à religião e à espiritualidade, parte da literatura transpessoal faz mais do que estabelecer um
princípio de precaução.
Para Lukoff e alguns atores da psicologia transpessoal, as “outras” culturas atuam
como uma fonte de sabedoria para se repensar nossas próprias considerações sobre algumas
pessoas diagnosticadas com transtornos mentais. O próprio Lukoff (1985, p.158) é explícito a
esse respeito ao indicar que embora muitos trabalhos reconhecessem a possibilidade de um
episódio psicótico agudo ter prognósticos positivos e mesmo transformadores à pessoa, o
DSM-III não reconhece tal possibilidade, patologizando indiscriminadamente qualquer tipo
de experiência desse tipo.
O que as outras culturas nos ensinariam é que mesmo esses casos reconhecidamente
psicóticos e em que não há nenhum tipo de relação com um comportamento preconizado pela
cultura local ou por instituições religiosas seriam ocorrências de crises espirituais, uma
jornada ao interior profundo e sagrado da psiquê da espécie humana. Isso seria explícito pelo
uso exemplar feito por outras culturas das potencialidades transformadoras desses mesmos
estados, na identificação feita entre o psicótico e o xamã. Ao procederem dessa maneira, o
problema se desloca da experiência psicótica para o tipo de recepção feita por nossa cultura
moderna a esse fenômeno, deixando assim de fazer sentido a utilização do critério da
normalidade cultural, uma vez que é nossa própria cultura e suas normas sociais que ficam
sob suspeita. Colocando em curso um jogo de inversões, se há aqui a adoção de uma lógica
psicologizante do Ocidente na compreensão do outro, entra em circulação uma concepção que
122

vê nesse outro (xamã) uma nova chave de compreensão de nossa própria psiquê e dos
fenômenos patologizados pelos saberes psi.
Para tanto, o estilo de pensamento posto em movimento por esses autores reconhece
uma identificação da experiência entre alguns psicóticos e os xamãs de outras culturas. Mas
em vez de tomar a identificação de um ponto de vista negativado ou patologizante – como
fizeram os antigos antropólogos ao reconhecerem nos xamãs indícios do psicótico ou do
neurótico –, eles veem nessa identificação uma potencialidade espiritual: os sujeitos modernos
diagnosticados com transtornos psicóticos, como a esquizofrenia, poderiam ser considerados
xamãs em outras sociedades, tendo suas experiências reconhecidas e incentivadas pela cultura
e ocupando posições de prestígio em que ajudam aos membros de seu grupo social. Nesse
caso, o modo de resolução da crise iniciatória ao xamanismo serve como inspiração, ao ser
tratado como um modo mais competente de se lidar com esse tipo de situação e em seus
potenciais transformadores. Parte desse processo diz respeito à “terapeutização” de técnicas
outras, adequando-as ao contexto psicoterapêutico ocidental. É a partir do encontro com
outras técnicas e mitologias que nosso próprio entendimento sobre parte dos pacientes
psiquiátricos é alterado.53

***
Como tentei apontar ao longo deste capítulo, a emergência histórica desse estilo de
pensamento e da psicologia transpessoal como um ramo possível da psicologia está
completamente entrelaçada à própria emergência das bases do movimento Nova Era nos
Estados Unidos dos anos 1960. Mais do que isso, a própria influência teórica pode ser
incluída na análise. Para Hanegraaff (1996, p.50, tradução minha), por exemplo, “a psicologia
transpessoal pode ser considerada a ala teórica do Movimento do Potencial Humano”. A
participação de atores como Abraham Maslow, Stanislav Grof e Christina Grof em Esalen, no
que é considerada uma das principais instituições da formação do Movimento do Potencial
Humano, é um exemplo disso. Foi a produção terapêutica e teórica deles que engendrou tanto
a noção da existência de potencialidades autoatualizadoras nas experiências espirituais,

53 É importante apontar que essa forma de operação do pensamento não se limita aos atores ligados à
psicologia transpessoal. Embora não seja meu objetivo nesta dissertação, me chama a atenção a enorme
difusão que o enunciado “os esquizofrênicos seriam xamãs em outras culturas” tem. Apenas para ficar em
um exemplo rápido, esse é o argumento central de uma palestra dada pelo fotógrafo e documentarista Phil
Borges, para o Tedx Talks, em 2014. Disponível com legendas em japonês, polonês e russo, o vídeo possui
mais de 4 milhões de visualizações. Ver: < https://www.youtube.com/watch?v=CFtsHf1lVI4&t=27s >
(Consultado em 20/01/2021).
123

quanto a categoria de “crise de emergência espiritual”, na qual há a reivindicação de que


mesmo em crises psicológicas intensas consideradas pelo mainstream psiquiátrico como
indícios de transtornos mentais, há na verdade uma crise espiritual. Não a toa, é essa última
categoria que é reivindicada por Lukoff, Lu e Turner como a principal influência para a sua
proposição de uma categoria para o DSM, embora seu resultado final tenha pouco ou quase
nada de algo reconhecidamente “transpessoal”.
Ao mesmo tempo, a própria ênfase na espiritualidade em oposição às religiões
institucionalizadas se apresenta como uma conexão evidente. Como vários autores já
apontaram a respeito do movimento Nova Era (de la Torre Castellanos, 2005; Carozzi,
1999a), uma de suas características basilares é sua constituição em oposição às instituições
religiosas e aos dogmas provenientes delas. “Espiritualidade” permite assim agrupar qualquer
tipo de relação do sujeito com o sagrado, universalizando a experiência calcada na pessoa em
detrimento de suas particularidades culturais e sociais. É esse tipo de composição que permite
que haja “a circulação e o empréstimo eclético entre grupos e disciplinas” no plano
terapêutico, como indicou María Julia Carozzi (1999b), mas também é o que permite que a
experiência de uma crise iniciatória de um xamã evenki/tungue na região da Sibéria seja de
alguma forma conectada à crise vivida por Lukoff na Califórnia dos anos 1970. Mais
importante, como propôs Abraham Maslow (1976), é também o que permite à psicologia falar
dessas experiências ao colocá-las como uma dimensão humana, uma força primordial sobre a
qual as religiões apenas construiriam suas proposições teológicas, deslocando assim sua
importância em favor da experiência pessoal do sujeito.
Há uma ênfase que se não é particular à psicologia transpessoal, ao menos parece ser
especialmente característica dela. É difícil não reconhecer aqui a língua franca indicada por
Paul Heelas (1996) a respeito da ênfase na sacralidade desse self íntimo ao sujeito, enfatizada
pela ideia de uma “jornada interior” espiritual e transformadora da personalidade. Se o self se
torna o espaço do sagrado, ele o é a partir de suas conexões transpessoais com o cosmos,
representado pelos arquétipos presentes nesse mar que é o “inconsciente coletivo” – algo
inscrito na natureza biológica da espécie humana e não em suas biografias individuais, sendo,
portanto, acessível a qualquer um a partir de técnicas espirituais milenares. Há aqui um
evidente processo de psicologização da espiritualidade, o que permite que estados psicóticos
sejam comparados a experiências díspares como a iniciação xamanística. No entanto, em vez
do tratamento patologizante do enunciado em que define “o xamã como psicótico”, a
124

comparação opera uma transformação positivada no modo de concepção do próprio sujeito


que vivencia um estado psicótico, tornando “o psicótico como um possível xamã”.
Estamos assim diante de um processo de psicologização da religião e da
espiritualidade distinto daquele visto no capítulo anterior, no qual as próprias relações entre os
saberes psi e a antropologia também se dão de uma outra forma. Se no capítulo anterior vimos
como a literatura sobre dissociação elabora a ideia de um mecanismo psicológico universal
que é utilizado de modos distintos para, de alguma forma, se acessar ao sagrado, nesse caso é
o próprio sagrado que é psicologizado por completo. Como afirmou Hanegraaff (1996, p.227;
ver também Viotti, 2014), há uma “psicologização da religião e sacralização da psicologia”.
Em lugar da proposta de um diagnóstico diferencial que possibilitaria distinguir fenômenos de
transe e transe de possessão “culturalmente normais” daqueles no qual há a incidência de um
transtorno mental, aqui ocorre o quase total encapsulamento de fenômenos patológicos pela
noção da “espiritualidade” e de seus potenciais, centrando no self psicologizado dos sujeitos a
própria condição de conexão com o sagrado que não reconhece fronteiras.
125

Considerações finais

No decorrer desta dissertação, busquei dar conta de três instâncias de um processo


mais amplo de tomada da religião e da espiritualidade como objetos do conhecimento dos
saberes psi. Diferentemente do que se poderia esperar a respeito desse tema, tentei apontar
para o fato dos atores envolvidos nesses três debates buscarem estabelecer uma abertura à
possibilidade da religião e da espiritualidade serem encaradas como fenômenos normais e,
para alguns, até desejáveis. Afinal, como afirmei na introdução, embora fosse possível falar
de um processo de medicalização sobre o objeto ao qual me debruço, parece ser mais
produtivo pensar as produções analisadas como novas formas de problematização por parte
dos saberes psi sobre esses temas, reenquadrando a questão da patologização de experiências
religiosas ou espirituais. No caso da psicologia transpessoal, analisada no capítulo 3, o
enquadramento patológico chega até a ser subvertido em prol de uma atitude positivada frente
as experiências. Nesse sentido, o interesse que guiou a escrita e a estruturação da dissertação
foi compreender a partir de quais condições epistêmicas e sob quais operações conceituais as
experiências religiosas ou espirituais poderiam ser enunciadas como possivelmente normais
por esses atores.
A pesquisa partiu da criação das categorias de “transtorno de transe e dissociativo” e
“problema religioso ou espiritual” na quarta edição do principal manual de diagnósticos da
psiquiatria nos Estados Unidos, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM), publicada em 1994. De modo a conseguir compreender o processo de inclusão dessas
categorias e os debates a partir dos quais elas foram concebidas, optei por estruturar este
trabalho dedicando cada capítulo a uma dessas instâncias. Assim, me concentro em primeiro
lugar ao próprio DSM e ao debate em torno da criação dessas categorias, para nos dois
capítulos restantes me dedicar à literatura que cada uma delas toma como ponto de partida.
Essa aposta na organização do texto tem como premissa o reconhecimento da especificidade
das dinâmicas envolvidas em cada um desses debates.
Dessa forma, enquanto o DSM foi a porta de entrada empírica para os materiais
analisados nos outros capítulos, ele próprio também se constitui como um âmbito da presença
da religião e da espiritualidade nos saberes psi. Mais do que isso, trata-se efetivamente da
instância mais próxima aos centros institucionais da psiquiatria estadunidense, devido ao fato
do manual ser organizado pela Associação Americana de Psiquiatria e pela importância que
126

ele ocupa na prática clínica e acadêmica para a disciplina. Exatamente por conta dessa
centralidade institucional que analisar seu caso se torna fundamental, visando compreender
sob quais condições a questão da religião e da espiritualidade ingressam explicitamente no
manual, ganhando um novo estatuto no escrutínio psiquiátrico.
É desse modo que no capítulo 1 busquei localizar a criação dessas categorias e a
concepção do DSM-IV em um plano mais abrangente, abarcando a história do próprio
manual. Ao proceder dessa maneira, foi possível notar que a forma como a criação dessas
categorias foi reivindicada estava conectada a uma outra disputa, sobre a possível
“culturalização” do guia de diagnósticos. Nesse caso, psiquiatras culturais e antropólogos
críticos a uma concepção universalizante e biologizante das perturbações mentais se aliaram
na proposta de uma série de modificações no manual. Embora algumas delas tenham sido
ignoradas, outras acabaram ingressando no DSM com algumas alterações. Esses atores
argumentavam que a cultura não era levada em conta pelo quadro nosológico do DSM,
deixando de lado diferenças importantes na saúde mental em populações ao redor do globo.
Ao ser incluída no manual, “cultura” passa a descrever o espaço da diferença.
Ao afirmarem que a inclusão de “transtorno de transe dissociativo” e “problema
religioso ou espiritual” era fundamental na “sensibilização cultural” da psiquiatria e do
próprio guia de diagnósticos, os propositores dessas categorias vinculam a religião e a
espiritualidade às dinâmicas epistêmicas explicitadas no debate da “culturalização”. Nesse
sentido, argumentei que ao postularem a religião e a espiritualidade como “cultura”, ambas
passam a se associar a uma certa particularização, algo da ordem da diferença e da localização
de determinados grupos étnicos ou culturais, em oposição a uma certa universalidade
primordial da psiquê humana a qual elas não teriam lugar estabelecido.
Ao nos deslocarmos do debate específico ao DSM em direção às propostas e à
literatura que sustenta as duas categorias em questão, vimos como esse quadro se
complexifica a partir de uma ênfase maior na psicologia. Das duas categorias que me dediquei
a analisar nesta dissertação, “transtorno de transe dissociativo” é aquela mais próxima ao
debate em torno da culturalização do manual. De fato, ao longo do segundo capítulo
demonstrei como sua proposta chegou a receber a manifestação de apoio do grupo de atores
envolvidos no movimento de culturalização do manual. Mais do que a própria justificativa em
termos da “sensibilização cultural”, um dos critérios de demarcação do diagnóstico mobiliza
direta e explicitamente a questão da “cultura”, peça central também na literatura psi sobre o
127

tema. A esse respeito, vimos como alguns trabalhos comparativos de antropólogos dos anos
1960 e 1970 sobre experiências de transes religiosos e possessões espirituais são mobilizados
nas produções de psiquiatras e psicólogos para tanto afirmarem a normalidade desses
fenômenos na maior parte das culturas ao redor do mundo, quanto para estabelecer um critério
de demarcação entre o normal e o patológico. Para esses psicólogos e psiquiatras, quando
condizente com as normas culturais da religião em questão, o fenômeno poderia ser
considerado normal, isto é, não patológico. Em suma, “cultura” se torna uma espécie de porta
de entrada à possível normalidade do fenômeno para os saberes psi. Ainda assim, para além
do alinhamento à norma cultural na produção de um diagnóstico diferencial, para esses atores
seria absolutamente fundamental que a pessoa envolvida nessa experiência tivesse algum
controle ou vontade sobre ela, de modo a poder considerar o fenômeno como “normal”.
É dessa forma que a cultura é apenas uma das facetas do problema. Esses fenômenos
são conceitualizados a partir da ideia de um estado psicológico, a dissociação. Embora esse
seja um conceito psicológico de longa data, utilizado ao menos desde o final do século XIX
para marcar patologicamente experiências de possessão ou de transe, foi especialmente nos
anos 1960 com o renovado interesse cultural pelos chamados “estados alterados de
consciência” que o uso do conceito foi expandido na literatura psi para além dos fenômenos
considerados mórbidos. Foi a partir dessa época que a “dissociação” passou a ser vista como
uma espécie de habilidade humana, um mecanismo que poderia ser articulado por sujeitos em
várias práticas como a dança, a prática de esportes, o teatro, e mesmo os rituais possessivos ou
os cultos religiosos extáticos, de modo a se alcançar esses estados psicológicos.
Ao mesmo tempo, as próprias produções antropológicas mobilizadas nesse debate se
relacionam ao interesse da época e partem dessa mesma interpretação psicologizada sobre os
fenômenos de transe e possessão. Meu argumento nesse capítulo é que essa literatura coloca
em operação um jogo entre a universalidade de uma habilidade psicológica e a particularidade
dos modos pelos quais as instituições culturais (dentre elas a religião) a cultivam nas pessoas
e a utilizam em determinados contextos, como nas tentativas de acesso ao sagrado. Desse
modo, esses atores instituem não apenas um espaço de abertura à possível compreensão não-
patológica do transe e da possessão, mas também todo uma estrutura conceitual que é em
alguma medida compartilhada por alguns antropólogos e por atores dos saberes psi que
investigam fenômenos como as possessões espirituais e a mediunidade espírita. No entanto, a
partir dessa estrutura, os psicólogos e psiquiatras se mantém como aqueles capazes de
128

estabelecer a identificação de um fenômeno possessivo ou de transe religioso como um


transtorno mental ou não, em uma certa ambivalência que reconhece a possibilidade de certa
normalidade do fenômeno ao mesmo tempo em que mantém no horizonte sua possível
manifestação patológica.
Se é possível dizer que a categoria “problema religioso ou espiritual” também opera
uma psicologização da religião e da espiritualidade, ela apresenta uma situação diversa desse
mesmo processo. Vimos que se por um lado sua inclusão se dá a partir da estratégia de
“sensibilização cultural”, o próprio texto apresentado no DSM não faz referência a essa
questão. Além disso, apresentei no capítulo 3 como os debates a partir dos quais a categoria se
originou apresentam temas muito mais amplos do que a dimensão pragmática incluída no
manual, que apenas visa problematizar uma patologização a priori de fenômenos religiosos e
espirituais que geram sofrimento psíquico. Sua concepção se deu por atores ligados à área da
psicologia transpessoal, um ramo controverso da psicologia que sofre ainda hoje resistência
por parte do mainstream dos saberes psi. De modo a melhor compreender as produções desses
atores, retomei a história da emergência do ramo disciplinar e de seu vínculo estreito com as
bases formativas nos anos 1960 do que veio a ser conhecido como movimento Nova Era,
compartilhando e muitas vezes orientando as bases epistêmicas em torno das quais o
movimento se desenvolveu nas décadas seguintes. Assim como no caso dos estudos
dissociativos, há aqui uma grande influência do interesse da época pelos estados alterados de
consciência, tanto em seu estudo quanto em sua utilização.
Ao focalizar as produções do principal propositor da categoria e de seu relato de sua
própria “crise espiritual/psicótica”, foi possível notar o privilégio dado à categoria
“espiritualidade”. De fato, é essa categoria que permite englobar toda possível experiência
“transpessoal” como uma relação com o sagrado, centralizando no sujeito a ênfase da
experiência, em detrimento das instituições culturais ou religiosas. Mais do que isso, a
centralidade da ideia de “crise de emergência espiritual” aciona tanto essa noção englobante
da relação com o sagrado quanto uma positivação absoluta dos fenômenos abarcados, mesmo
em situações envolvendo sofrimento psicológico. Toda a problemática da relação entre
experiências religiosas ou espirituais e sua patologização é retrabalhada a partir de um jogo de
inversões. Isso porque a adoção dessa lógica possibilita não apenas que as experiências
transcendentais sejam afastadas da possibilidade de uma psicopatologia, mas também que
129

certos estados “psicóticos” possam ser entendidos como fenômenos espirituais normais e
valorizados.
Essa inversão fica evidente no caso do xamanismo, investido por uma certa
imaginação antropológica. Enquanto a literatura clássica patologizava a figura do xamã ao
qualificá-lo como um esquizofrênico ou um psicótico, esses atores da psicologia não recusam
a associação da experiência xamânica com a psicótica, mas tomam o caso do xamanismo em
culturas não-ocidentais como fonte de inspiração para a resolução do estado psicológico
crítico. Assim, ao associarem a crise psicótica como uma jornada na profundidade do ser, a
própria dimensão do sagrado passa a se tornar uma questão psicológica – ou, como busquei
argumentar, há uma sacralização da própria psicologia do sujeito. O que importa aqui é a
relação íntima do sujeito com essa consciência transpessoal que o permite acessar o sagrado,
não apenas deslocando as instituições religiosas como também as colocando sob suspeita.
É desse modo que esses debates analisados nesta dissertação compõem parte de um
processo de produção da religião e da espiritualidade, enfocando as problematizações recentes
por parte dos saberes psi. Qualificada como cultura para se adequar ao manual psiquiátrico,
elas passam a se referir ao campo da diferença e da particularidade cultural, assim como nos
debates sobre “religião como cultura” levados a cabo por outros autores das ciências sociais a
respeito de outros territórios da vida social. Ao mesmo tempo, quando ocorre um processo de
psicologização desses fenômenos, a ênfase no indivíduo não se dá de forma homogênea. De
um lado, há a decomposição da possessão e do transe entre um estado psicológico e sua
utilização por culturas ao redor do mundo. Aqui, religião importa na medida em que cultiva
essa habilidade psicológica no acesso ao sagrado e demarca as condições para sua
normalidade. Em outro debate, ao “espiritualizar” boa parte das experiências transcendentes
ou mesmo de estados alterados de consciência, a psiquê humana se torna o espaço mesmo do
sagrado, e as diferenças passam a dizer respeito sempre à exterioridade do sujeito, no modo da
recepção dessa experiência íntima. Assim, acompanhamos a produção de um território que
envolve antropólogos, psicólogos, psiquiatras, atores religiosos e buscadores espirituais, no
qual os casos analisados nesta dissertação compõem apenas algumas facetas de sua existência,
que se pluralizam a depender de cada situação.
130

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