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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA

CRISTINA TEIXEIRA MARINS

ENTRE PALCOS E FLASHES


Reflexão etnográfica sobre trabalho, construção de reputação e circuitos de consagração de
fotógrafos de casamento

NITERÓI
2018
CRISTINA TEIXEIRA MARINS

ENTRE PALCOS E FLASHES: REFLEXÃO ETNOGRÁFICA SOBRE TRABALHO,


CONSTRUÇÃO DE REPUTAÇÃO E CIRCUITOS DE CONSAGRAÇÃO DE
FOTÓGRAFOS DE CASAMENTO

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia do Instituto de Ciências Humanas e
Filosofia da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial à obtenção do título de Doutora em
Antropologia
Linha de Pesquisa: Patrimônio Cultural, Práticas
Produtivas e Categorias Ocupacionais

Orientador:
Profo. Dr. Edilson Márcio Almeida da Silva
Co-orientadora:
Profa. Dra. Lucia Eilbaum

Niterói, RJ
2018
Ficha catalográfica automática - SDC/BCG
Gerada com informações fornecidas pelo autor

M337e Marins, Cristina Teixeira


Entre palcos e flashes : Reflexão etnográfica sobre
trabalho, construção de reputação e circuitos de
consagração de fotógrafos de casamento / Cristina Teixeira
Marins ; Edilson Márcio Almeida da Silva, orientador ; Lucia
Eilbaum, coorientador. Niterói, 2018.
233 f.

Tese (doutorado)-Universidade Federal Fluminense, Niterói,


2018.

DOI: http://dx.doi.org/10.22409/PPGA.2018.d.05430292710

1. Trabalho. 2. Reputação. 3. Etnografia. 4. Fotógrafos


de casamento. 5. Produção intelectual. I. Silva, Edilson
Márcio Almeida da, orientador. II. Eilbaum, Lucia,
coorientador. III. Universidade Federal Fluminense. Instituto
de Ciências Humanas e Filosofia. IV. Título.

CDD -

Bibliotecária responsável: Thiago Santos de Assis - CRB7/6164


Para vó Eugênia,
que ensinava que “saber não ocupa espaço”,
com saudades.

Para João,
que segue ensinando sobre universos antes inimagináveis,
com o maior amor do mundo.
AGRADECIMENTOS

Escrever esta tese não teria sido possível sem a inestimável ajuda de muitas e muitos.
Esta seção é uma forma sucinta de agradecer mais diretamente às pessoas que estiveram
presentes nos últimos anos, sabendo que não darei conta de contemplar a todos que, de algum
modo, contribuíram para o processo que resultou na tese.
Começo pelos meus orientadores, Edilson Márcio Almeida da Silva e Lucía Eilbaum, a
quem sou mais que grata pela confiança e generosidade. A Edilson, agradeço especialmente
pelas preciosas aulas sobre teoria antropológica, pela sensibilidade em momentos de
dificuldades, pela leitura minuciosa de meus manuscritos. Agradeço a Lucía, em especial, pela
cumplicidade, pela leitura atenta de meus textos, pelas tantas e tantas conversas encorajadoras.
Chego ao final da tese consciente do privilégio de ter sido acompanhada por ambos ao longo
dos anos de minha formação como antropóloga.
Aos integrantes de minha banca de qualificação, Simoni Lahud Guedes, Lênin Pires e
Antônio Carriço, agradeço pela leitura atenta e pelos comentários que deram entusiasmo para
que eu prosseguisse com a escrita. Ainda a Antônio Carriço e a Lênin Pires e também a Felipe
Berocan e a Wania Mesquita, agradeço pela disponibilidade em integrar a banca de defesa. A
Simoni, dedico agradecimento especial pelos inúmeros ensinamentos que recebi em diferentes
momentos de minha trajetória na academia.
Agradeço, além disso, às professoras do PPGA, Delma Pessanha, Laura Graziela
Gomes e Ana Paula Miranda, por tudo que com elas aprendi durante os cursos; ao professor
Fábio Reis Mota, pela presteza e pela amizade. Durante o doutorado, realizei duas disciplinas
no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ, de modo que agradeço também aos
professores Fernando Rabossi e Maria Laura Cavalcanti. A Renata Menezes, professora do
Museu Nacional, agradeço pelo diálogo e pela acolhida, sempre generosa, ao longo dos últimos
anos.
Obrigada também aos professores e colegas do InEAC, em nome de Roberto Kant de
Lima, Rômulo Labronici, Marcos Veríssimo, Sabrina Souza, Pedro Heitor Barros. Aos colegas
do Grupo de Estudos e Pesquisas em Antropologia do Direito e das Moralidades, o GEPADIM,
em nome de Juliana, Cadu, Andreza, Alice, Sirius, Lucas, Mariana e Julieta, agradeço pelo
amparo. A Flavia Medeiros, amiga cujo trabalho tem sido fonte de inspiração, muito obrigada.
Ao grupo de orientandos do professor Edilson, em nome de Fatima, Sandro e Diano, agradeço
pelo companheirismo. A Talitha, sou especialmente grata pela amizade, pela escuta atenta em
momentos de impasse, pelas palavras de incentivo. Agradeço também aos amigos do PPGA em
nome de Bóris, Sara, Luiza, Rodrigo, Vinícius, Andreh, Cilene, Gabriela, Hully, Yolanda,
Natália, Adriana,Victor. Ao Rafael, in memoriam. Aos funcionários do PPGA, em nome de
Marcelo, Fernanda e Hugo, muito obrigada.
A Michele Escoura, agradeço pelo apoio, pelas conversas animadas, pela generosidade
dedicada à leitura de meus esboços. Alguns de seus comentários e sugestões foram
incorporados na tese, outros permanecem inexplorados, espero, por pouco tempo. Michele faz
parte de um grupo informalmente denominado “etnografia de casório” que é integrado também
por Breno Alencar, Érika Pinho e Marina Blank, todos antropólogos de alguma maneira
envolvidos em pesquisa sobre ritos matrimoniais. Agradeço a eles pela rede de apoio que
formamos e a Breno, em especial, pela parceria no projeto “Etnografias do afeto”.
Deixo registrado meu reconhecimento e minha imensa gratidão a meus interlocutores,
cujos nomes optei por preservar na tese. Agradeço, em especial, à fotógrafa que aqui chamei
de Letícia e que, conforme evidenciado no texto da tese, foi de fundamental importância para a
realização da pesquisa. Registro também que, durante o doutorado, contei com o auxílio
financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
imprescindível para que eu pudesse realizar o trabalho.
A Marta Patallo e Izabel Nuñez, ambas colegas do programa que se tornaram amigas
mais do que queridas, agradeço pelo afeto que foi também refúgio ao longo dos últimos anos.
Pelo apoio emocional, sempre disponível, sempre importante, agradeço também à Marcia Navi
e à Zezé Borges.
Aos meus pais, Nair e Renato, agradeço pelas raízes, pelo incentivo, pelo suporte de
sempre. Às minhas irmãs, Laura e Paula, pelo companheirismo, pelo auxílio e pela gentileza
durante e para além de todo este processo. Aos meus sogros, Nazareth e Ritto, agradeço pela
generosidade e pelo inestimável apoio.
Não consigo imaginar como teria sido escrever esta tese sem a parceira e o amor de
Thiago e João e é por isso que esta tese é nossa, do início ao fim.
O trabalho pode ser visto como um mero ganha-pão, ou como
a parte mais significativa da vida interior; pode ser encarado como
uma expiação ou como uma expressão exuberante de si mesmo;
como um dever inelutável ou como o desenvolvimento da natureza
universal do homem. Nem o amor nem o ódio ao trabalho são
inerentes ao homem, ou a qualquer tipo de ocupação. O trabalho
não tem nenhum significado intrínseco.

Wright Mills
RESUMO

A tese apresenta uma reflexão sobre os processos de construção social de prestígio e reputação
entre fotógrafos de casamento. O trabalho de campo que serve de base para a etnografia se
desenrolou, predominantemente, em espaços de intercâmbio entre estes profissionais, tais como
congressos, premiações, palestras e cursos. Além disso, tirei proveito do vasto conteúdo
disponível online (tais como reportagens, entrevistas, vídeos, podcasts e lives) a respeito deste
universo profissional, tendo também acompanhado meus interlocutores, sistematicamente,
através de redes sociais. Como consequência desta estratégia de pesquisa, meus interlocutores
foram, em sua maior parte, fotógrafos de casamento que, de algum modo, participam de
circuitos de exposição pública de suas fotografias e de consagração, espaços que cumprem a
função de valorização destes profissionais, através da legitimação da figura do fotógrafo de
casamento enquanto especialista. Fundamentalmente, é apregoado nestes circuitos que, para
que alguém seja considerado fotógrafo de casamento, não basta a posse de um equipamento
que lhe permita captar as imagens em ritual: é preciso também que o profissional, tal qual
procurei demonstrar com este trabalho, detenha uma série de conhecimentos de ordem técnica,
estética e moral.

Palavras-chave: Reputação; trabalho; moralidades; fotógrafos de casamento.


ABSTRACT

In this dissertation, I attempt to present a reflection concerning the process of building


prestige and reputation amongst wedding photographers. Fieldwork has been conducted in
arenas of exchange among these professionals, such as congresses, awards, talks and courses.
Besides, I have systematically analyzed extensive online material such as specialized articles,
videos, podcasts and interviews as well as I have followed my interlocutors through social
networks. As a consequence of this research strategy, my interlocutors were, predominantly,
wedding photographers who took part in series of public exposition of photographs and
consecration. Fundamentally, in this circuits, it is advocated that recognition of wedding
photographers depends on his or her reputation as a specialist: he or she should not only be
someone who knows how to operate the photographic equipment, but as a specialist, a wedding
photographer should manage a broad body of knowledge in terms of technics, aesthetics and
moralities.

Keywords: Reputation; work; moralities; wedding photographers.


SUMÁRIO

Introdução .............................................................................................................................. 12
Construindo um objeto de pesquisa ......................................................................................... 16
Fotógrafos de casamento em contexto .................................................................................... 18
Sobre a ausência de fotografias de casamento na tese ............................................................ 21
Estrutura da tese ....................................................................................................................... 23

Capítulo 1: Definindo o campo ............................................................................................. 26


O primeiro congresso ............................................................................................................... 27
Sobre as palestras ..................................................................................................................... 34
Em casa de ferreiro, espeto de ferro: o WB como ritual .......................................................... 39
Letícia ...................................................................................................................................... 50
A entrevista que não terminou .................................................................................................. 53
Sobre pesquisar online ............................................................................................................. 54
“Me add?” ................................................................................................................................ 57
O Projeto 365 e o aprendizado da fotografia ........................................................................... 60
Sobre o trabalho nos casamentos ............................................................................................. 64
Sobre as entrevistas .................................................................................................................. 65

Capítulo 2: O fotógrafo como contador de histórias ............................................................ 69


Fotografia de casamento e a abordagem fotojornalística ......................................................... 73
O Wedding Best e um pouco mais sobre contar histórias ........................................................ 82

Capítulo 3: Sobre técnicas ................................................................................................... 104


A câmera fotográfica .............................................................................................................. 113
Edição .................................................................................................................................... 125
“É muita responsabilidade”: algumas considerações sobre o cartão de memória ................... 131
Capítulo 4: Trajetórias e moralidades entre fotógrafos de casamento .............................. 134
Os Werneck ........................................................................................................................... 135
A evolução como ideologia .................................................................................................... 148
Valores materiais, valores morais .......................................................................................... 163
Sobre a organização (in)formal do trabalho ........................................................................... 179
Superação e ethos religioso .................................................................................................... 183

Capítulo 5: Jogos de reputação, moralidades em disputa ................................................ 192


Fernando Castiel .................................................................................................................... 197
Crise pra quem? ..................................................................................................................... 202
Sobre a dimensão técnico-moral ............................................................................................ 210
Entre tretas e polêmicas: moralidades em disputa .................................................................. 213

Considerações finais: ........................................................................................................... 217

Referências bibliográficas ................................................................................................... 224


LISTA DE IMAGENS

Figura 1.1: Planta do auditório Celso Furtado (ou Grande Auditório) .................................... 29
Figura 1.2: Visão do auditório Celso Furtado (ou Grande Auditório) ainda vazio, preparado
para o evento............................................................................................................................. 30
Figura 1.3: Palestra no Núcleo de Tecnologia ......................................................................... 33
Figura 1.4: Palestrantes no Palco Wedding e no Núcelo de Tecnologia ................................. 40
Figura 1.5: Frente e verso de meu crachá de identificação ...................................................... 46
Figura 1.6: Tela de curso da Photos TV e do chat. ................................................................. 56
Figura 2.1. Fonte: Revista FHOX n˚183, set./out.2016 ............................................................ 71
Figura 2.2: Imagem capturada em 27/07/2016 ........................................................................ 79
Figura 2.3: Material promocional da edição de 2017 do evento Fotografar ............................ 83
Figura 2.4: Alças de couro semelhantes àquelas utilizadas por Alexandre .............................. 94

Figura 4.1: Fotógrafo de casamento conta durante palestra que, devido ao “excesso de
trabalho”, teve os dois braços lesionados .............................................................................. 151
Introdução

Mal havia anoitecido quando uma van estacionou em frente ao hotel onde eu estava
hospedada, na Rua 1500, região central da cidade catarinense de Balneário Camboriú. O veículo
já havia percorrido outros hotéis das imediações em busca de passageiros e aquela era a última
parada antes que seguisse viagem para a cidade vizinha de Itajaí. Mais precisamente, o destino
do grupo ao qual naquele momento eu me somava era o Maria’s Convention, um espaço que
habitualmente servia à realização de festas de casamento, 15 anos, formaturas e eventos
corporativos, mas que, naquela noite, abrigaria a terceira edição do Lente de Ouro — anunciado
por seus organizadores como “o mais importante e prestigioso prêmio mundial para fotógrafos
e videomakers de casamento”.
A atmosfera dentro da van que nos conduzia até o evento era, predominantemente,
alegre. Por boa parte dos vinte minutos de nosso trajeto, os passageiros trocavam impressões a
respeito de seus trajes de gala: “gostei da gravata vermelha, estilosa!”, ouvi dizer um dos
homens. “Eu sou um cara mais sóbrio, quando fui alugar meu smoking pedi logo um clássico”,
observou outro. Em algum momento, um dos passageiros pediu que os demais se voltassem
para seu smartphone: “Pessoal, pessoal! Uma selfie!”. Houve ainda quem fizesse transmissão
de vídeo online, dirigindo-se aos possíveis espectadores: “já estamos a caminho e o clima é de
muita expectativa”, dizia. Se eu encarava minha própria participação naquele evento como algo
inusitado, me parecia razoável supor que para meus colegas de viagem tampouco aquele era
um acontecimento ordinário.
A primeira vez em que ouvi falar no Lente de Ouro foi durante uma entrevista que
realizei com uma fotógrafa que viria a se tornar uma importante interlocutora de pesquisa.
Embora eu me recorde de ter ouvido esta primeira menção ao evento com grande curiosidade,
ele acabou caindo no esquecimento nas fases subsequentes do trabalho de campo. Passados
alguns meses desde esta primeira alusão ao Lente de Ouro, contudo, voltei a ouvir a seu respeito
através de duas de minhas interlocutoras que, naquele ano, haviam sido nomeadas finalistas de
algumas categorias do prêmio. Ambas as fotógrafas me incentivaram a participar do evento
como espectadora, sob a alegação de que “seria bom para a pesquisa” e que, quem sabe “poderia

12
ser até divertido”. Não demorou para que eu me convencesse de que aquela, de fato, era uma
oportunidade promissora.
Após fazer um levantamento rápido, descobri que a cerimônia de premiação era
organizada pela Inspiration Photographers, uma associação que reúne fotógrafos de casamento
e videomakers especializados no registro de ritos matrimoniais1. Na página de apresentação
desta associação, o Lente de Ouro — ou Golden Lens, como as vezes era chamado por seus
organizadores — aparecia como uma “oportunidade” aos seus membros que poderiam “levar
para casa este que é o maior prêmio mundial no segmento e ainda desfrutar de todo prestígio
para alavancar uma carreira internacional”. No evento, seriam entregues troféus aos primeiros
colocados de cada categoria2 sendo os vencedores eleitos a partir de votação dos associados3.

A edição de 2016 do Lente de Ouro aconteceu numa quarta-feira do mês de novembro.


O verão ainda não havia chegado, mas era uma noite particularmente quente e úmida, de modo
que a entrada no salão refrigerado do Maria’s Convention fora um alívio para os participantes
que deixavam as vans no estacionamento. Como tínhamos chegado ao espaço pelo menos uma
hora antes do início da cerimônia, aproveitei para perambular por ali, conversar com fotógrafos
que eu conhecera na véspera e comer pequenos sanduíches e canapés subtraídos de uma mesa
disposta em um dos cantos do salão.
O modo como o espaço onde aconteceria o Lente de Ouro foi decorado, em muitos
aspectos remetia aos salões dos festejos de casamento dos quais eu havia participado como
pesquisadora e também como convidada. Havia móveis e tapetes dispostos como que para
simular uma espécie de sala de estar. Havia também uma pista de dança, um balcão onde
funcionaria um bar e algumas poucas mesas de jantar. Grandes vasos dourados decoravam as
mesas e a iluminação era suave. Enquanto era servido um coquetel ao público, tocava música
ambiente e os convivas conversavam entre si sem que houvesse a necessidade de elevar a voz.

1
Segundo consta no site oficial, a associação também reúne profissionais especializados em “fotografias de
família”, categoria que abrange retratos e ensaios fotográficos de famílias, gestantes, recém-nascidos (chamado
newborn), de crianças, aniversários infantis e parto.
2
As categorias destinadas aos fotógrafos de casamento incluíam “fotógrafo do ano Brasil”, “fotógrafo do ano
internacional”, “revelação do ano fotografia”, “mais premiados do ano fotografia” e “casamento do ano
fotografia”.
3
Embora o evento fosse claramente voltado para os fotógrafos e videomakers, ele era aberto ao público em geral
que, assim como os profissionais associados, deveria pagar um passe que lhe desse acesso. No ano de minha
participação, a entrada no evento custava R$160,00.
13
No momento em que a cerimônia foi iniciada, contudo, o ambiente que me parecia
relativamente familiar se transformou.
O palco, até então reservado à penumbra, foi iluminado de modo a se tornar o centro
das atenções dos participantes. Um casal de apresentadores assumiu o comando do evento,
convidando os fundadores da Inspiration Photographers para um discurso que marcou o início
da premiação. Música em tom apoteótico foi providenciada para acompanhar a leitura dos
nomes indicados para concorrer a cada uma das categorias. Os vencedores chamados ao palco
para receber seus troféus receberam da plateia sorrisos, tapas nas costas, aplausos
entusiasmados e gritos. Os profissionais aclamados, por sua vez, agradeceram aos colegas com
brincadeiras e discursos emocionados. À medida que se aproximava o final do evento e eram
anunciados os prêmios mais esperados da noite, as honrarias destinadas aos vencedores se
tornaram ainda mais entusiasmadas. O fotógrafo que levou o título de “profissional do ano”
subiu ao palco carregado pelos pares que entoavam seu nome em coro.

Introduzir esta tese a partir de uma descrição, ainda que bastante sucinta, de um evento
como o Lente de Ouro, me pareceu propício porque, ao meu ver, ele escancara o principal fio
condutor dessa tese, sendo meu propósito, com este trabalho, refletir sobre os processos de
construção social de prestígio e reputação entre fotógrafos de casamento. Neste sentido, julgo
oportuno assinalar que alguns de meus interlocutores, bem como os próprios organizadores do
Lente de Ouro, se referiam a ele como o “Oscar da fotografia”. A inspiração na premiação da
indústria cinematográfica mundialmente conhecida se fazia visível na maneira como o evento
fora estruturado, na postura dos apresentadores, na música e no vestuário dos participantes. E
assim como o evento que lhe serve de inspiração, também o Lente de Ouro consistia em um
espaço de consagração. Se os troféus e as demais honrarias que circulavam naquele espaço
eram reservados aos profissionais que gozavam de certo prestígio entre os pares, então eu me
perguntava sobre os valores acionados por meus interlocutores a fim de produzir suas
trajetórias de sucesso.
Durante a entrevista com um fotógrafo que registra casamentos há quase duas décadas,
este chamou minha atenção para o fato de que, quando começou a fotografar, não era comum
que fotógrafos de casamento conversassem entre si. Citando dois profissionais atuantes no Rio
de Janeiro desde a primeira metade do século XX, meu interlocutor sublinhou que entre
determinados profissionais, sobretudo aqueles que atuavam no mercado antes que fosse

14
consolidada a fotografia digital, inexistia o diálogo que hoje é comum entre fotógrafos de
casamento:

É legal poder trocar ideia. Porque antes do digital, você não trocava ideia. Eu nunca vi
o Fischer trocar ideia com ninguém. O Lima trocar ideia com ninguém. (…) Antes
ninguém via [as fotografias de casamento feitas por outros fotógrafos], você só
entregava pros noivos.

Meu interlocutor então levava em consideração o fato de que a circulação de fotografias


de casamento entre colegas de profissão era uma prática, até poucos anos atrás, inexistente.
Para ele, este novo modo de se relacionar com outros fotógrafos de casamento era uma
consequência da substituição da tecnologia analógica pela digital que permitira que a circulação
das fotografias produzidas em um determinado evento de celebração de casamento fosse
transformada. Assim, se na época da fotografia analógica, as imagens de um determinado
evento eram acessadas, via de regra, por quem dele participava (noivos, familiares e amigos,
notadamente), com a disseminação da fotografia digital e com a popularização dos diversos
meios de divulgação online das fotografias (tais como blogs, websites e redes sociais), o produto
do trabalho do fotógrafo de casamento passara a ganhar, como nunca antes, uma dimensão
pública. Como consequência importante deste processo, os fotógrafos de casamento passaram
a ter acesso às fotografias produzidas por colegas, de modo que esta possibilidade de exposição
pública de seu trabalho lhes facultou o engajamento em redes de fotógrafos que passavam a
conhecer os trabalhos uns dos outros, a promover encontros, enfim, a “trocar ideia”, como
pontuou meu interlocutor.
Numa tentativa de circunscrever o universo de minha pesquisa empírica, devo sublinhar
que boa parte de meu trabalho de campo se desenrolou nesses espaços de intercâmbio entre
fotógrafos, tais como congressos, premiações, palestras e cursos. Como consequência desta
estratégia de pesquisa (sobre a qual dedicarei reflexão mais detida no capítulo seguinte), meus
interlocutores foram, predominantemente, fotógrafos de casamento que, de algum modo,
participam destes circuitos (Magnani, 2014) de exposição pública de suas fotografias. O leitor
notará ao longo da tese, contudo, que utilizando o recurso da entrevista, ouvi também alguns
profissionais cuja atuação passa ao largo destes espaços. Isto sinaliza um enfoque de pesquisa
que foi sendo delineado à medida que avançava o trabalho de campo em acordo com a sugestão
de Evans-Pritchard, segundo a qual “o antropólogo deve seguir o que encontra na sociedade

15
que escolheu estudar” (2005 [1976], p.244). Julgo pertinente assinalar, por outro lado, que optei
por manter este material na tese por acreditar que dar voz a estes atores nos ajuda a estabelecer
certos contrastes e melhor situar o contexto de atuação dos fotógrafos de casamento com quem
desenvolvi uma interlocução de pesquisa mais intensa.

Construindo um objeto de pesquisa

A pesquisa etnográfica que dá origem a este texto sucede a uma pesquisa de mestrado
(Marins, 2014), na qual procurei refletir sobre ritos matrimoniais. Naquele momento, foram
meus interlocutores privilegiados profissionais conhecidos como cerimonialistas4, de modo que
aquela foi a primeira vez que me aproximei, como pesquisadora e antropóloga, de um grupo
profissional. Entretanto, em minha pesquisa anterior, os profissionais eram encarados por mim
como uma via de acesso aos ritos matrimoniais. Olhar para estes profissionais era, portanto,
uma estratégia metodológica de uma pesquisadora que pretendia “desvelar alguns dos
significados, códigos e valores” (Marins, 2016, p.109) associados a este proeminente ritual de
passagem.
O projeto inicial de minha pesquisa de doutorado seguia uma lógica semelhante. Ao
delinear os primeiros esboços desta tese, eram os ritos matrimoniais que despertavam meu
interesse. Mais precisamente, eu planejava compreendê-los tomando as fotografias produzidas
durante sua realização como ponto de observação. Eram várias as razões pelas quais as
fotografias de casamento chamavam minha atenção naquela etapa da pesquisa. De partida,
interessava-me o fato de a fotografia parecer capaz de reconfigurar uma espécie de concepção
linear de tempo. Se a efemeridade do ritual era recorrentemente aludida durante o trabalho de
campo — “o casamento dura poucas horas”, “passa rápido”, eu ouvia de meus interlocutores
— as fotografias eram valorizadas por sua capacidade de “eternizar o momento” ou “durarem
para sempre”. Neste sentido, as fotografias pareciam ser capazes de carregar consigo uma
temporalidade própria, de prolongarem indefinidamente as imagens de pessoas, objetos e
situações, delimitando fronteiras entre esquecimento e lembrança.
Outro indício de que as fotografias poderiam constituir um rico ponto de observação

4
De modo simplificado, para o leitor não familiarizado com a figura do cerimonialista, trata-se de um profissional
que se ocupa da organização de eventos que marcam a celebração de casamento, exercendo funções relacionadas
com questões protocolares, bem como atividades de produção e de operacionalização.
16
para uma pesquisadora em busca de examinar ritos matrimoniais era o fato de que este era
reiteradamente apontado como um item importante, tanto por profissionais que atuavam nos
bastidores dos eventos que marcam a celebração de casamento, quanto pelos atores engajados
em sua organização. Era comum ouvir destes últimos que a contratação do serviço de fotografia
era definida como uma prioridade e que um fotógrafo profissional era indispensável para o
ritual. Já os profissionais envolvidos nos preparativos identificavam a fotografia como um
elemento capaz de contribuir para a construção de certas representações em torno de um evento:
“a decoração pode estar mais ou menos, a festa pode até estar desanimada, mas um bom
fotógrafo vai saber extrair o melhor dali e o evento vai parecer um sucesso”, ouvi dizer certa
vez um deles.
Interessada no tema das fotografias produzidas por ocasião dos ritos matrimonias, eu
vislumbrava dois possíveis caminhos para a pesquisa. O primeiro deles dizia respeito ao
contexto de “consumo” das fotografias, o que para mim implicava trazer para o centro da análise
o emblemático objeto álbum de casamento. A segunda possibilidade de pesquisa tinha a ver
com o contexto de produção de fotografias de casamento e suscitava, de minha parte, interesse
em relação aos profissionais que se dedicavam a esta atividade. Incapaz de optar por um dos
flancos, achei que poderia encará-los concomitantemente. Ao enfocar as fotografias de
casamento tanto em seu contexto de consumo quanto no de sua produção, eu imaginava que
conseguiria cobrir as diversas etapas do ciclo de vida destas imagens, tomando como inspiração
os escritos de Kopytoff sobre a “biografia cultural das coisas” (2008). Ao fim e ao cabo, meu
plano não me parecia de todo mau.

Nos meses que se seguiram, contudo, o avanço de minha investigação sobre os álbuns
de casamento fora o mais vagaroso possível. Se eu havia idealizado o acesso a coleções de
fotografias na intimidade do ambiente doméstico5, por alguma razão que até hoje ignoro, tive
dificuldades em localizar potenciais interlocutores, isto é, pessoas que conservassem álbuns de
casamento e se mostrassem dispostas a discorrer sobre ele diante da etnógrafa. Quando tentei
acessá-los através dos fotógrafos que constituíam minha rede de pesquisa já estabelecida, estes
se mostravam reticentes em mediar um encontro entre a antropóloga e seus clientes. Tampouco
obtive êxito ao procurar acessar tais álbuns através de minhas redes pessoais e, ainda que, diante

5
Neste sentido, fui particularmente influenciada pela leitura do livro de Mauad (2008), que já na introdução, traz
uma menção sedutora ao “habitat natural” das fotografias armazenadas dentro de gavetas ou caixas, misturados a
“recortes de jornais, santinhos de primeira comunhão, relicários e muitos outros relicários de lembrança” (p.13).
17
de minhas solicitações para “ver o álbum e conversar brevemente a seu respeito”, meus
potenciais interlocutores aparentassem demonstrar boa vontade em colaborar com a pesquisa,
quando eu tentava marcar uma data para o encontro, recebia réplicas vagas que se traduziam
em adiamentos por tempo indeterminado.

Por outro lado, a pesquisa junto aos fotógrafos de casamento, desde o início, se
desdobrava de maneira bastante fecunda. Minha primeira incursão ao campo — um congresso
realizado na cidade de São Paulo que reunia milhares de fotógrafos especializados em registrar
casamentos — havia levantado questões que eu julgava de grande interesse para a reflexão
antropológica. Além disso, encontrar interlocutores dispostos a conversar comigo a respeito de
seu trabalho foi tarefa mais simples do que eu supunha. Não apenas eles demonstravam boa
vontade em responder às minhas questões como, muitas vezes, me procuravam para expor
opiniões, chamar minha atenção para algum material que consideravam interessante para a
pesquisa, me apresentar colegas de profissão.

Gradualmente, meu interesse inicial pelos ritos matrimoniais foi cedendo espaço a uma
crescente curiosidade em relação às múltiplas dimensões envolvidas no trabalho exercido pelos
fotógrafos de casamento. Passei a me voltar então para o modo pelo qual estes organizavam
seus saberes, experiências e emoções no exercício de sua profissão e, neste processo, as
questões suscitadas pelo trabalho dos fotógrafos profissionais foram ganhando protagonismo.
Finalmente, ao assumir esta perspectiva no trabalho de campo, redefini meu objeto de
investigação que deixava de enfocar os ritos matrimoniais para privilegiar trajetórias, carreiras
e os espaços de consagração por onde circulam fotógrafos de casamento.

Fotógrafos de casamento em contexto

A princípio, fotografar casamentos é atividade que pode ser desempenhada por


qualquer pessoa de posse de uma câmera que se disponha a fazê-lo. Assim, não é de todo
incomum que o trabalho seja realizado de maneira circunstancial, por fotógrafos amadores ou
de outras áreas de atuação. Esta tese, no entanto, não se interessa por estes indivíduos (que

18
sequer são reconhecidos como fotógrafos de casamento por meus interlocutores), mas por
aqueles que fizeram desta atividade uma profissão6.

Fotógrafo de casamento é, antes de tudo, uma concepção nativa— daí o emprego do


itálico ao longo desta tese. Embora eu não tenha solicitado, de maneira sistemática, que meus
interlocutores definissem esta categoria, em certos contextos, me parecia que, de maneira geral,
eram considerados fotógrafos de casamento aqueles que obtêm seu sustento, majoritariamente,
dos registros fotográficos de ritos matrimoniais. Num dado momento da pesquisa, contudo,
passei a atentar para a existência de variações desta formulação. Era este o caso, por exemplo,
de uma fotógrafa que me dizia conjugar seu trabalho nos casamentos com suas atividades de
servidora pública. Também encontrei profissionais que a despeito de se apresentarem como
fotógrafos de casamento, dedicavam boa parte de seu tempo ao ensino de fotografia,
encontrando nesta atividade também sua principal fonte de renda. A propósito, no final de meu
trabalho de campo, soube que um dos mais conhecidos (segundo meus interlocutores)
fotógrafos de casamento no Brasil limita as coberturas fotográficas de eventos deste tipo a dez
por ano, sendo que sua remuneração advém, principalmente, de outras modalidades de
fotografia.

Ainda que fotógrafo de casamento seja a categoria nativa hegemônica no meu campo
empírico, são numerosos os profissionais que se apresentam como fotógrafos de casamento e
também fotografam profissionalmente outros ritos familiares, além de produzirem os
denominados ensaios de família e ensaios de casais. Com efeito, não é de todo incomum, que
estes fotógrafos se identifiquem, em determinados contextos, também como fotógrafos de
família, ou ainda fotógrafos sociais — ambas expressões que indicam uma atuação mais
abrangente do que aquela dos casamentos, podendo significar que eles se dedicam também a
fotografar outros ritos familiares tais como aniversários ou nascimentos7.

6
Optei por utilizar o termo profissão, tendo em mente a discussão proposta por Hughes no artigo intitulado
“Professions” (1963). A discussão em relação ao conceito será adensada mais adiante na tese.
7
Aliás, é interessante que eu nunca tenha visto alguém se apresentar como “fotógrafo de 15 anos” ou “fotógrafo
de batizado”. Embora eu admita que talvez não tenha encontrado essas denominações no trabalho de campo por
consequência de minhas estratégias metodológicas (e não porque elas de fato inexistam), parece-me válido
assinalar que esta impressão remete à ideia de que os casamentos ocupam um lugar de superioridade na hierarquia
dos ritos familiares (ver: Thales de Azevedo, 1987 e Marins, 2016) e que apresentar-se como “fotógrafo de
casamento” faz parte do processo de construção de prestígio profissional.
19
Considerando o enquadramento conceitual sugerido por Hughes (2003 [1997], pp.133-
134), pode-se dizer que fotografar casamentos constitui a atividade central (core activity) da
profissão, sendo considerada fundamental a ponto de lhe dar nome. Nesta perspectiva, as
demais atividades implicadas na profissão (não apenas os registros de outros eventos, mas
também atividades administrativas, a edição de imagens e a diagramação de álbuns, por
exemplo) são consideradas auxiliares.

Embora haja variações significantes no modo como desempenham suas atividades, a


maior parte dos meus interlocutores se enquadram na categoria definida pela literatura
sociológica como “trabalho por conta própria” (Prandi, 1978), isto é, sem que haja vínculo
empregatício como empregado, ou como empregador. Isto não significa, contudo, que eles
desempenhem suas atividades sozinhos. Boa parte de meus interlocutores contam com a ajuda
de alguém (quase sempre, o cônjuge) para atividades administrativas, relacionamento com
cliente, finanças etc. Os profissionais que integram meu universo de pesquisa raramente
fotografam casamentos sozinhos, mas contratam segundos fotógrafos (e, em certos casos,
terceiros fotógrafos e assistentes de iluminação) remunerando-os por evento.

Ainda que os discursos de meus interlocutores nem sempre convirjam no que diz
respeito àquilo que caracteriza um fotógrafo de casamento, eles se reconhecem, de maneira
consistente, como integrantes da chamada “indústria de casamento” ou “mercado de
casamentos” 8 . Ao conjunto de profissionais que integram esta indústria, dá-se o nome de
fornecedores. Maquiadores, cabeleireiros, doceiros, cerimonialistas são exemplos de
fornecedores e não é de todo raro que um único evento que marca a celebração de casamento
reúna algumas dezenas deles. No livro de sua autoria, o cerimonialista Roberto Cohen, chama
atenção para o fato de que o contingente de trabalhadores que atuam nos ritos matrimoniais é
maior do que poderia supor um observador eventual:

O convidado na hora vê o cerimonial, a banda ou DJ, os garçons e só. Não sabe o que
está por trás daquilo tudo. Comércio de presentes, costureiras, cabeleireiras, manicures,
fornecedores de alimentos e bebidas, floristas, locadoras de móveis, bandejas, toalhas,
a coisa vai muito longe. (2012, p.20)

8
Diversos autores, em múltiplos contextos, abordaram o tema. Ver, por exemplo: Alencar e Rodrigues (2016),
Blank (2014), Edwards (1989), Escoura, (2016), Howard (2008), Marins (2016, 2017), Mead (2008), Otnes e Pleck
(2003) Pinho (2017) e Segalen (2013[1998], 2003, 2005)
20
De fato, a coisa vai muito longe. Lembro-me vivamente de senso de surpresa que
marcou a etapa exploratória de minha pesquisa precedente, à medida que eu ia me dando conta
de que havia fornecedores especializados, por exemplo, em produzir forminhas para doces,
pequenas esculturas para ornamentar o bolo de casamento, cabides confeccionados
especialmente para pendurar o vestido de noiva no dia de casamento.
Todos os trabalhos recentes aos quais tive acesso que tratam do “mercado de
casamentos” reconhecem que este ritual tem, de maneira crescente, mobilizado somas
significativas de dinheiro, mas também de tempo e de energia. Trata-se de um fenômeno
chamado por Segalen de “espetacularização do casamento” (2013[1998], p.111) que, segundo
a autora, “aporta uma nova dimensão de auto-celebração aos rituais, na qual a fotografia e o
vídeo exercem papel muito importante” (p.112, tradução minha)9.
Com efeito, considerando a literatura que versa sobre o tema, bem como minha própria
experiência de pesquisa voltada aos ritos matrimoniais, tenho convicção de que as fotografias
de casamento ocupam neles posição de destaque. Alguns dos sinais que apontam nesta direção
já foram expostos neste texto. As afirmações recorrentes de que contratação do fotógrafo de
casamento era tratada pelos noivos como prioritária e a capacidade, enxergada por
cerimonialistas, que as fotografias têm de contribuir para a reconfiguração de representações
em torno do evento são alguns exemplos.

Sobre a ausência de fotografias de casamento na tese

O leitor notará que, embora eu faça uso de algumas imagens ilustrativas nos primeiros
capítulos, optei por não reproduzir na tese as fotografias de casamento de autoria de meus
interlocutores, tampouco de outros fotógrafos. Há algumas razões para isto e eu gostaria de
explicitá-las.
Conforme já mencionei, encontrar interlocutores que aceitassem colaborar com minha
pesquisa não foi um empecilho. Ao contrário, as vezes eu tinha a sensação que quando eu
precisava declinar algum convite — por exemplo, de acompanhá-los em algum casamento e
assistir a alguma palestra — ou ainda se os fotógrafos percebessem que eu não havia me

9
No texto original: “...apporte une dimension neuve aux rituels, celle de l’autocélébration où la vidéo et la photo
jouent un rôle très important”.
21
debruçado sobre algum material que julgavam de interesse para a pesquisa, estes demonstravam
certa frustração. Mais adiante, apresentarei algumas interpretações sobre a constante
disponibilidade de meus interlocutores. Acreditando que elas não são necessariamente
excludentes, gostaria de cogitar, desde já, mais uma possível razão.
Diversos etnógrafos, ao ponderarem sobre as condições de realização de suas pesquisas,
apontaram como, em algum momento do trabalho de campo, notaram que suas relações de
interlocução eram facilitadas por outros interesses para além da solidariedade para com os
pesquisadores. Don Kulick, por exemplo, constatou que sua aparência e condição de “gringo”,
fazia com que as travestis que integravam seu universo de pesquisa gostassem de andar com
ele de braços dados pelas ruas “com o fito de que as pessoas ao redor pensassem que [o
pesquisador era] (…) seu namorado estrangeiro rico” (2008, p.31). Jurema Brites (2017, p.147),
em pesquisa sobre relações de subalternidade entre patroas e empregadas domésticas, ponderou
que o “prestígio e carinho” com que fora recebida entre as últimas, relacionava-se, dentre outras
coisas, à percepção de que a pesquisadora “abonada” poderia pagar algumas despesas das
interlocutoras. No caso de minha pesquisa, suponho que talvez alguns de meus interlocutores
pudessem perceber a relação com a antropóloga como mais uma oportunidade de adquirir um
certo capital simbólico. Posto de outro modo, era como se eu talvez fosse tida, em algumas
situações, como mais um elemento da dinâmica de construção de reputações. Digo isto levando
em conta, por exemplo que, em alguns casos, minha presença em campo tenha sido publicizada
por meus interlocutores em suas redes sociais ou blogs.
Considerando o contexto de construção de prestígio dos espaços por onde eu circulava
e levando em conta também que os textos produzidos pelos etnógrafos, potencialmente,
circulam entre os “nativos”, achei prudente tomar algumas providências que me resguardassem,
o tanto quanto possível, de participar ativamente do processo de construção de prestígio dos
fotógrafos10. Por esta razão, os nomes de pessoas aqui utilizados são fictícios e, em certos casos,
alguns dados foram omitidos para dificultar a identificação dos personagens.
Dada a intensa circulação das fotografias de casamento entre os profissionais que
integram os circuitos pesquisados e, consequentemente, o fato de meus interlocutores
conhecerem muitas das fotografias de autoria dos colegas, não seria possível proteger a
identidade de meus interlocutores e, ao mesmo tempo, divulgar as fotografias de sua autoria —

10
Esta decisão leva em conta, também, as experiências relatadas por Aquino (2015) em artigo que apresenta uma
reflexão sobre as repercussões de sua tese entre seus interlocutores de pesquisa.
22
e esta é uma das razões pelas quais optei por não divulgar tais imagens. Some-se a isto a
preocupação de demarcar o objetivo deste trabalho, que não enfoca o ritual matrimonial que
meus interlocutores registram, tampouco as imagens produzidas nestas ocasiões. O
desenvolvimento da tese deixará claro que, mais do que as fotografias per se, para compreender
os processos de construção de reputação de fotógrafos de casamento, deve-se levar em conta,
sobretudo, as histórias que estes profissionais elaboram a seu respeito.
Daí decorre também a quase ausência de diálogo com o campo da “antropologia da
imagem” que, embora possa render debates promissores no futuro, me pareceu pouco profícuo
considerando os objetivos específicos desta tese. Ao longo do trabalho de pesquisa e de escrita,
encontrei inspiração e interlocução em outras pesquisas etnográficas.

Estrutura da tese

A tese é dividida em cinco capítulos, além da seção introdutória e de considerações


finais. No primeiro deles, apresento uma descrição detalhada de minha participação no Wedding
Brasil, argumentando que ela marcou espécie de “descoberta” de um campo de pesquisa. O
primeiro capítulo trata, assim, dos primeiros passos da pesquisa de campo e foi escrito com a
intenção de compartilhar com o leitor o senso de surpresa (ou de perplexidade) que me
acompanhou durante este estágio da pesquisa. Adicionalmente, abordei ali algumas questões
metodológicas da tese, dentre as quais meus impasses ao realizar pesquisa também online.

No segundo capítulo, intitulado “O fotógrafo como contador de histórias” procuro


atentar para o processo de construção da narrativa fotográfica por parte de meus interlocutores.
Dediquei atenção, em especial, à noção de fotojornalismo, tratada como categoria nativa
relacionada com um conceito encontrado em trabalhos das assim denominadas “ciências da
comunicação”. Posto que fotografar implica, necessariamente, fazer escolhas, procuro jogar luz
sobre o modo com que fotógrafos de casamento encaram a seleção daquilo que é ou não
fotografado, dos enquadramentos, das fotografias que são entregues para os noivos, daquelas
que compõem os álbuns de casamento ou que passam a integrar o portfólio dos fotógrafos.

No terceiro capítulo, procuro enfocar a questão da técnica, argumentando que o olhar


sobre ela é revelador de processos de construção de reputação entre fotógrafos de casamento.
Faço isto em três etapas: primeiro, busco pensar na relação dos fotógrafos com a câmera
fotográfica, um “objeto técnico” que ocupa lugar de centralidade dentro do vasto aparato
23
tecnológico do qual se servem os fotógrafos de casamento para a realização de seu trabalho.
Argumentando que a passagem da fotografia analógica à digital ocupa um lugar significativo
em tal centralidade, apresento a trajetória de Seu Pedro e sua esposa, Dona Rosa, ambos
atuantes na área há mais de 46 anos. Este empreendimento permite o contraste entre uma visão
e experiência mais tradicional da fotografia e a de meus interlocutores principais, inseridos na
era digital. Em seguida, dedico atenção ao processo posterior à captura das imagens nos ritos
matrimoniais, denominado genericamente de edição. Finalmente, teço breves considerações
sobre o modo como meus interlocutores interagem com seus cartões de memória.

O quarto capítulo é organizado em torno das “trajetórias de sucesso” expostas pelos


fotógrafos de casamento. Partindo do relato de cunho biográfico de um casal de fotógrafos, os
Werneck, procuro analisar o que chamo de “retórica da superação”, isto é, relatos
autobiográficos que enfatizavam superação de condições de vida desfavoráveis, por sua vez
alcançadas através de trabalho árduo e estudos — ambas categorias nativas que procuro
explorar na tese. Neste capítulo, procuro pensar também sobre o modo como a circulação
monetária é articulada com outros valores, incluindo os morais, éticos e estéticos. A relação
dos fotógrafos de casamento com o Estado e a presença de um ethos religioso naquele universo
também são explorados ali.

O quinto capítulo enfoca as relações entre os fotógrafos de casamento, atentando para


as configurações hierárquicas operantes no contexto que pesquisei. Procuro pensar como se
constrói prestígio e reconhecimento no universo da fotografia de casamento me detendo, em
especial, sobre os valores acionados por meus interlocutores a fim de produzir suas “trajetórias
de sucesso”. Focalizo, para tanto, as trajetórias de Letícia e Fernando, mostrando a relação e
articulação delas com sua experiência profissional e pessoal. As chamadas tretas, isto é, o
conflito aberto entre fotógrafos de casamento, especialmente visíveis nas redes sociais, revelam
processos nos quais moralidades distintas são postas em disputa. Procuro entender como são
construídas essas diferenças e, especialmente, essas formas de administração dos conflitos
surgidos nesse espaço. Ao final, elas parecem se vincular também com os modos de construção
(e de destruição) de reputação.

Nas considerações finais procuro refletir sobre o engajamento de meus interlocutores


em processos de construção de narrativas sobre sua própria profissão e sobre suas carreiras.
Chamo atenção também para a existência de um mercado em torno dos fotógrafos de casamento
assentado sobre duas premissas básicas, a saber: a ideia de que a atividade é promissora e, ao
24
mesmo tempo, está ao alcance de qualquer pessoa, desde que esta apresente disposição para
fazer sacrifícios investindo na carreira através dos estudos e do trabalho duro. Finalmente,
travando um diálogo com um trabalho recentemente publicado, baseado em pesquisa
etnográfica entre motoristas que realizam transporte de passageiro mediado por aplicativos,
chamo atenção para a indissociabilidade das dimensões de produção e consumo no universo
pesquisado.

Em todos os capítulos, busquei o tanto quanto possível expor as trajetórias de meus


interlocutores, transcrever suas falas, enfim, apresentar os personagens que encontrei ao longo
da pesquisa. Esta foi a maneira que encontrei de transmitir aos leitores o meu sentimento de
que o universo pesquisado é privilegiado para pensar o mundo do trabalho, bem como processos
de construção de reputação e prestígio de modo mais amplo.

25
Capítulo 1
Definindo o campo

Em artigo publicado no Annual Review of Anthropology, Marcus (1995) alega ter


apontado, já em meados da década de 1980, dois modos distintos de incorporação da pesquisa
etnográfica ao contexto de um capitalismo global. O primeiro deles consiste na observação
etnográfica focada em um único lugar (single site, no texto original) conjugada a novos métodos
de pesquisa (tais como consultas a arquivos ou a literatura mais abrangente) que permitem uma
contextualização daquilo que é local. O segundo modo de pesquisa etnográfica, conforme
argumenta Marcus, opera um deslocamento em relação a pesquisas tradicionais e examina a
circulação de significados culturais, objetos e identidades em um tempo-espaço difuso. Trata-
se daquilo que o autor chama de etnografia multi-situada (multi-sited ethnography): “uma
forma de etnografia móvel, que percorre trajetórias inesperadas rastreando formas de
organização cultural em múltiplos lugares” (p. 96, tradução minha). Creio que a etnografia aqui
apresentada se aproxima mais deste último modo de fazer pesquisa do que do primeiro.
Ao optar por iniciar meu trabalho de campo num encontro de natureza profissional, tive
acesso a um universo de profissionais que compartilhavam de formas de organização cultural
próprias, mas que estavam longe de formar uma comunidade no interior de fronteiras
geográficas bem definidas. Ao contrário, se eu quisesse conviver com aquele grupo no
prosseguimento de minha investigação, eu deveria forçosamente desenvolver estratégias que
me permitissem encontrá-lo e, com sorte, participar de seu cotidiano. Isto pra mim significava
pisar em terreno estranho, uma vez que ao longo de minha formação em antropologia me
serviram de referência, majoritariamente, etnografias situadas dentro de limites
geográficos/físicos mais ou menos bem demarcados11. Foi, portanto, de modo intuitivo que

11
O rol de etnografias deste tipo é longo. A fim de ilustrar meu argumento, de maneira tão aleatória quanto
rudimentar, citaria os trabalhos de Malinowski (1978 [1922]), Evans-Pritchard (2007 [1940]) e Mead (2006
[1935]) como exemplos de pesquisas etnográficas convencionais no sentido apontado por Marcus, a saber:
“intensively-focused-upon single site of ethnographic observation and participation” (1995, p.96). Dentre os
trabalhos de antropólogos brasileiros e estrangeiros que se pode abrigar sob a rubrica de autores contemporâneos,
mencionaria aqueles de Whyte (2005 [1943]), Wacquant (2002 [2000]), Guedes (1997), Velho (2002 [1973]),
Silva (2010), Eilbaum (2012) e Kulick (2008 [1998]). Ainda que eu tome como referência trabalhos muito recentes
produzidos por colegas tais como Medeiros (2016), Nuñez (2018) e Rocha (2015) a predominância de pesquisas
que privilegiam um ponto de observação geograficamente situado persiste.

26
continuei meu trabalho de campo simplesmente seguindo alguns interlocutores12. Foram eles
que sinalizaram que minha pesquisa não se desenrolaria exclusivamente em minha cidade de
residência, como de início eu imaginara. Ao invés disso, ela passearia por diferentes partes do
país, sendo realizada também online.
Neste trabalho, parece-me importante frisar, opto pela utilização dos termos “online” e
“digital” em lugar de “virtual”, que volta e meia aparece na literatura antropológica. Esta
escolha reflete minha concordância com a perspectiva assumida por Miller (2013[2010]), para
quem não faz sentido pensar em um “mundo virtual” apartado do cotidiano. Ao contrário, para
o autor, "fazer coisas online” faz parte de nosso dia a dia e deve ser tratado pelo pesquisador
como tal.

O primeiro congresso

Eu entrava no quarto semestre de doutorado e já atingia o estágio no qual, de acordo


com o cronograma previsto pelo PPGA, deveria dar andamento à etapa da tese que
convencionamos chamar de trabalho de campo 13 . Era chegada, portanto, a hora de traçar
estratégias a fim de encontrar fotógrafos que pudessem vir a se tornar interlocutores. Minha
primeira providência neste sentido foi a mais banal que naquele momento poderia me ocorrer:
digitei no Google uma expressão da qual não me recordo com exatidão, mas que suponho ter
sido algo como “fotógrafos de casamentos”. Quase instantaneamente, surgiu na tela um
resultado de busca que se revelaria decisivo para os desdobramentos da pesquisa:
Wedding Brasil 2016 – Home
weddingbrasil.com.br/
Wedding Brasil 2016: 8ª Edição do Maior Congresso de Fotografia de Casamento
da América Latina | 26, 27 e 28 de Abril de 2016 - São Paulo - SP.
Programação · Palestrantes · Clube Wedding · Palco MakeMovie ·

12
O próprio Marcus fala em seguir as pessoas (follow the people) como uma técnica de pesquisa que é, segundo
ele, “talvez o modo mais óbvio e convencional de materializar a etnografia multi-situada” (1995, p. 106, tradução
minha).
13
Elemento crucial da pesquisa antropológica, o “trabalho de campo” (ou “pesquisa de campo”) foi objeto de
reflexão de um sem número de estudiosos. Destaco os textos de Oliveira (1996) e Peirano (1995) na tradição
nacional, ou ainda os de Geertz (1989 [1973]), Malinowski (1978 [1922]) e Evans-Pritchard (2005[1937]) como
alguns dos trabalhos que conformaram referencial fundamental em minha própria formação como antropóloga.

27
Seduzida pelo sucinto texto exibido junto ao resultado da busca – que não só sugeria a
existência de um congresso sobre fotografia de casamento, mas também o adjetivava sem
modéstia como “o maior da América Latina” – acessei com senso de urgência o endereço ali
indicado. Diante do seu conteúdo, o evento me parecia de fato ser promissor. Contudo, se
quisesse conhecer de perto o Wedding Brasil14, era necessário que eu me apressasse, já que ele
ocorreria dali a duas semanas – período no qual eu deveria organizar os detalhes de uma
possível viagem. Eu deveria também pagar pela inscrição no evento: a venda de passes era feita
por lote e na data de minha pesquisa ele me custaria R$719,2015 divididos em até seis parcelas
no cartão de crédito. Estudei rapidamente a programação e arrisquei que valeria a pena arcar
com os custos e eventuais transtornos da viagem 16 . Na terça-feira, 26 de abril de 2016,
desembarquei na cidade de São Paulo.

O trajeto do aeroporto de Congonhas até o pavilhão que abrigava o evento, o Parque


Anhembi, foi mais demorado do que eu havia previsto, de modo que cheguei à área de
credenciamento do WB2016 alguns minutos depois do início da primeira palestra do congresso.
Em um dos vários guichês onde eram recepcionados os participantes, apresentei minha
identificação, o comprovante de pagamento referente a minha inscrição no evento, bem como
um termo de autorização de uso de imagem devidamente assinado, conforme solicitado pelos
organizadores dias antes. Através do documento, obrigatório para os congressistas, eu
autorizava "a utilização de minha imagem pessoal – rosto e corpo – em qualquer mídia
impressa, eletrônica, digital ou audiovisual nas publicações da Editora Photos ou de outras
empresas do mesmo grupo econômico”, bem como em conteúdo editorial ou divulgação
publicitária. Em troca, recebi uma bolsa de sarja sobre a qual havia sido impressa a logomarca
do WB contendo material promocional de algumas empresas parceiras, uma pulseira de

14
Doravante, utilizarei também a sigla WB para me referir ao evento.
15
Vale ressaltar que, à época da pesquisa, o montante equivalia a pouco mais de 80% do salário mínimo nacional.
Este valor era referente ao passe básico para os três dias de evento após dedução de 20% do valor cheio, concedido
a estudantes. Eram ofertadas, ainda, outras modalidades de ingresso no evento que podiam incluir a participação
em oficinas e workshops ou mesmo um produto batizado pelos organizadores de “blue pass”, que dava acesso
prioritário a determinadas atividades da programação. Em suma, para o participante disposto a pagar por todos
estes produtos ofertados, os gastos seriam substancialmente maiores.
16
Esta ponderação exigia agilidade e a decisão foi, basicamente, fruto de um processo intuitivo. Entretanto, cabe
a menção de que ela foi sem dúvidas dificultada pelo fato de que eu não dispunha de financiamento destinado ao
custeio de despesas com a pesquisa. Com efeito, apenas os gastos com a inscrição e transporte para o evento (na
ocasião, pude contar com hospedagem na casa de amigos) consumiram pouco mais de metade do valor de minha
bolsa mensal da CAPES.
28
identificação e um crachá que eu deveria portar enquanto estivesse nas dependências do
Anhembi. Preocupada com meu atraso, me dirigi rapidamente ao auditório principal onde ainda
poderia acompanhar a primeira palestra do dia.
Sobre o palco, falava um homem vestindo calça, colete e gravata preta sobre camisa
social branca com as mangas enroladas até a altura dos cotovelos. Embora não aparentasse ter
completado 50 anos de idade, referia-se a si mesmo como “um cara velho” quando mencionava
que sua carreira já somava quase três décadas. O título de sua palestra, “Faça valer a pena”,
sugeria o predomínio em sua fala de uma espécie de “tom de autoajuda”, conforme registrei em
meu caderno de campo.

Figura 1.1: Planta do auditório Celso Furtado (ou Grande Auditório) cuja
área total ultrapassa 3.000m2 e plateia acomoda até 2.505 pessoas.
Imagem disponível em http://www.anhembi.com.br/espaco/auditorio-

Foi no momento de minha chegada ao Grande Auditório (figuras 1.1 e 1.2) que o evento
assumiu para mim formas mais concretas. Até então, me parecia difícil compreender a
magnitude do Wedding Brasil – tanto em termos do número de fotógrafos especializados ali
reunidos, quanto do sofisticado aparato tecnológico mobilizado para sua realização. Um texto
disponibilizado no blog dos organizadores17 , que vim a ler meses mais tarde, comparava a
estrutura do palco àquelas utilizadas em festivais musicais que apresentam cantores conhecidos
nacionalmente:
Você sabia que a estrutura no Palco Wedding Brasil é equivalente a um festival de
shows como João Neto e Frederico, Anitta e Jota Quest? Pois é, para que você
adquira conhecimento com grandes nomes da fotografia de casamento da forma mais
confortável possível é preciso uma força tarefa. (...) Para tornar as palestras ainda

17
O texto foi publicado no site http://blogweddingbrasil.com.br/estrutura-do-palco-wedding-brasil/, acessado em
27/12/2017.
29
mais agradáveis visualmente são usadas quase 1 milhão e 200 mil luzes de LED que
formam o painel de projeção, 48 pontos de iluminação cênica, 16 ribaltas, 12 moving
heads e 30 equipamentos de iluminação de plateia. Na parte de sonorização 36 caixas
de som são distribuídas homogeneamente em ângulos calculados para atingir os
congressistas em qualquer cadeira (...) tudo isso é feito como em um padrão de
televisão, por ser um evento de fotografia a iluminação tem que ser impecável e dar
independência ao palestrante na hora de se mover no palco.

Figura 1.2: Visão do auditório Celso Furtado (ou Grande


Auditório) ainda vazio, preparado para o evento. Imagem
disponível em https://youtu.be/yPGvGqcLJqI, data de acesso:
30/10/2017.

Mesmo que no instante em que adentrei o auditório os mais de dois mil assentos
destinados à plateia não se encontrassem completamente ocupados, a visão do amplo recinto,
das luzes, das imagens projetadas nos telões, do palestrante se movendo sobre o palco
acompanhado por inúmeras câmeras de fotografia e vídeo evidenciavam a dimensão de
espetáculo. Ao menos se comparado aos demais congressos profissionais que até então eu havia
frequentado, saltava aos olhos a sofisticação da produção envolvida naquele evento.
Ao final da primeira palestra do dia, deixei o auditório principal e aproveitei para me
familiarizar com o espaço. Comecei pela área da feira, ocupada por stands de empresas que
exibiam e comercializavam produtos voltados para fotógrafos. Os stands mais numerosos
pareciam ser de encadernadoras, empresas especializadas em produzir álbuns fotográficos que
eram exibidos nos mais diversos tamanhos, modelos e materiais. Mas havia também stands de
grandes fabricantes de câmeras fotográficas, impressoras e uma ampla gama de acessórios cuja
utilidade era para mim um mistério. Dentre outros produtos que me eram mais familiares,
identifiquei bolsas e mochilas para guardar equipamento fotográfico, acessórios para ensaios
fotográficos (sobretudo aqueles destinados ao ramo de negócios da fotografia de recém-
nascidos, tais como roupinhas e enfeites para bebês), além do comércio de uma quinquilharia
que resumirei como “objetos temáticos” e incluíam almofadas, quadros, bibelôs, canecas e
30
chaveiros estampados com imagens de câmeras fotográficas.
Estrategicamente posicionado na área central da feira, estava um grande espaço da
Editora Photos — empresa organizadora do evento — onde eram comercializados inúmeros
títulos de livros e DVDs sobre fotografia. Correndo os olhos sobre as prateleiras, constatei que
a maior parte dos livros comercializados ali focalizava temas como técnica fotográficas,
administração e marketing. Quanto aos DVDs, alguns títulos eram dedicados a técnicas diversas
(iluminação, composição, direção, etc.) e outros exibiam palestras de edições anteriores do
Wedding Brasil.
Próximo ao stand da Editora Photos havia um espaço que os organizadores chamavam
de lounge, que aparentava ter sido projetado como área de descanso. O ambiente com pufes
espalhados sobre o chão e tomadas disponíveis para uso do público serviu para mim como uma
área estratégica de observação, já que funcionava como ponto de encontro e área de
sociabilidade. Era ali que eu me sentava, entre uma palestra e outra, para tomar notas, observar
o movimento nos corredores do Parque Anhembi e me inteirar sobre a programação do evento.
Nestes momentos um pouco mais relaxados em que eu não precisava me concentrar nas falas
dos palestrantes, fiz algumas observações pontuais a respeito do público do WB 2016.
Como era de se esperar num evento daquele porte, os congressistas formavam um grupo
heterogêneo. Ao longo dos três dias de evento, cruzaram meu caminho fotógrafos de todas as
partes do Brasil, atuantes em grandes centros urbanos, em periferias e no interior do país. Tive
a sensação de que era equilibrada a proporção entre homens e mulheres. Já entre os palestrantes,
não se repetia tal equilíbrio18. Em termos de faixa etária, me pareceu clara a predominância de
participantes jovens, que ocupavam tanto a plateia quanto os palcos do Wedding Brasil. Com
efeito, a maioria dos presentes aparentava ter entre 20 e 40 anos de idade, de maneira que era
algo raro avistar indivíduos que aparentassem ter idade superior a isso, assim como observei
que havia ali um evidente predomínio de participantes de pele clara. Notei ainda a repetição de
certos padrões nas vestimentas e no cuidado do corpo que informavam um estilo de vida
informal: nos corredores do Anhembi avistei mais calças jeans do que sociais, um predomínio
de sapatos esportivos e, no caso das mulheres, eram poucas as que andavam sobre saltos altos.

18
Após o evento, procurei verificar se, de fato, minha impressão correspondia à distribuição das palestras
recorrendo, para tal, à programação do evento. Com efeito, levando em consideração os espaços que frequentei
durante o evento, concluí que, dentre os palestrantes dos palcos menores, 30% eram mulheres. Já as palestras do
no palco principal foram em sua totalidade ministradas por homens.

31
Corpos tatuados19 e barbas longas, no caso dos homens, eram avistados a toda hora, assim como
alargadores de orelha e cabelos coloridos.
Em espaço contíguo à feira, ocupando uma área que, segundo meus cálculos,
ultrapassava os mil metros quadrados, ficava a praça de alimentação, cuja configuração se
assemelhava àquelas encontradas em shopping centers localizadas em centros urbanos: mesas
e cadeiras enfileiradas eram dispostas no centro, rodeadas por algumas opções de restaurantes
delimitados por balcões. Tal como as praças de alimentação localizadas nos centros comercias,
o espaço tinha forte iluminação fluorescente, uma acústica que na hora do almoço tornava
sonoro o burburinho dos comensais e um cheiro de fast food que impregnava o ambiente. Por
outro lado, chamaram minha atenção os preços praticados ali, sensivelmente mais altos do que
aqueles cobrados em outras partes da cidade20.
Durante a realização do Wedding Brasil, o Parque Anhembi abrigava também o
MakeMovie, evento igualmente organizado pela Editora Photos, mas voltado para profissionais
de produção audiovisual. A coexistência destes dois eventos no mesmo espaço não era fruto do
acaso, mas uma indicação de que as duas atividades profissionais — a fotografia e a filmagem
dos ritos matrimoniais — andam lado a lado, sendo inclusive muitas vezes exercidas pelos
mesmos profissionais. O crachá que eu portava não me concedia acesso ao auditório deste
evento, mas notei que alguns dos participantes se dividiam entre as atividades dos dois
congressos. Já os espaços de palestras aos quais eu tinha livre acesso eram quatro: o primeiro
deles, o auditório principal do qual tratei há pouco, era chamado pelos organizadores de Palco
Wedding. Ele abrigava, de longe, o maior número de espectadores, de modo que o ritmo das
atividades que ocorriam ali determinava o movimento no espaço da feira e, até certo ponto,
também nos palcos menores. Assim, quando no auditório principal ocorria uma palestra de
grande apelo junto aos congressistas, os demais espaços do congresso eram esvaziados e os
funcionários que trabalhavam nos stands da feira ficavam ociosos. Ao final das palestras
principais, por outro lado, o espaço reservado à exibição e comercialização de produtos e
serviços era preenchido pelo público que, além de visitar os stands, formava fila diante da

19
Aliás, me pareceu fato um tanto curioso que, inúmeras vezes, eu tenha visto imagens de câmeras fotográficas
tatuadas em braços e pernas congressistas. Pretendo tratar disso mais adiante.
20
O alto preço dos alimentos comercializados na praça de alimentação gerou queixas diversas entre os
participantes do WB. Lembro-me, por exemplo, de ter visto reclamações na página de Facebook da empresa
organizadora do evento, que chegou a ser acusada de ganância. Em resposta, uma funcionária da Editora Photos
procurou esclarecer que a comercialização de alimentos não era de responsabilidade da organização do evento,
mas uma imposição do Espaço Anhembi.
32
máquina de café gratuito no espaço da Editora Photos, fazia pausas para recarregar aparelhos
celulares no lounge, conversava entre si formando um expressivo burburinho e — atividade
muito popular nos corredores da feira — tirava selfies.
Outro auditório, de menor porte, denominado Núcleo do Empreendedor, possuía um
pequeno palco e plateia capaz de abrigar pouco mais de uma centena de espectadores. Neste
espaço, eram abordados assuntos tais como finanças, marketing e empreendedorismo, sendo
algumas das palestras ministradas por profissionais de outras áreas, tais como empresários,
consultores e os autointitulados coaches. Havia ainda o espaço chamado Núcleo de Família no
qual, essencialmente, eram ministradas palestras sobre fotografias de bebês, crianças e ensaios
de família, isto é, fotografias de pais acompanhados por seus filhos. Por último, havia o Núcleo
de Tecnologia (figura 1.3) – o menor espaço que, a despeito do nome, abrigava diversas
palestras sobre fotografia de casamento sem que fossem privilegiados os aspectos tecnológicos
ou técnicos da atividade, como o nome sugeria. O palco e os poucos mais de 100 assentos que
formavam a plateia do Núcleo de Tecnologia não contavam com divisórias que os isolassem do
espaço da feira.

Figura 1.3: Palestra no Núcleo de Tecnologia.


Imagem disponível em https://youtu.be/gTLNMGNJFfs, data
de acesso: 30/10/2017.

Em nenhum dos auditórios do WB havia lugar marcado, sendo os assentos livremente


ocupados pelo público por ordem de chegada. Havia, por outro lado, algumas fileiras destinadas
aos portadores do blue pass: uma credencial obtida mediante pagamento prévio que assegurava
um assento ao seu proprietário até dez minutos após o início de cada atividade. Portadores do
blue pass estavam assim dispensados das filas que se formavam do lado de fora dos auditórios
sem que corressem o risco de ficar de fora de alguma palestra lotada (o que vi acontecer muito
ocasionalmente).

33
Sobre as palestras

Um certificado de participação entregue aos congressistas do WB no ato do


credenciamento continha, além do nome completo do participante, também o nome do evento,
bem como data e local de sua realização. O documento se assemelhava bastante aos certificados
emitidos por ocasião de congressos acadêmicos dos quais eu já havia participado, não fosse por
um detalhe curioso: a indicação da carga horária do congresso ultrapassava as 100 horas, ainda
que ele tenha ocorrido dentro de um intervalo de três dias. Como no WB ocorriam várias
atividades simultâneas, supus que o número devia dizer respeito à duração total das palestras
previstas no programa – e não às horas de atividade cumpridas pelos participantes, como eu
esperava. Contudo, a disparidade entre a duração das palestras oferecidas no congresso e a
possibilidade concreta de engajamento dos participantes nas atividades me pareceu útil para
demonstrar que da extensa programação do WB, seria inevitável que uma parcela considerável
escapasse à minha observação, não importando o quanto eu me esforçasse para assistir o maior
número de palestras possível.
Não me recordo de ter estabelecido previamente critérios claros para escolha das
palestras que eu assistiria no congresso. Porém, me lembro que durante o evento lancei mão de
algumas estratégias simples que me auxiliaram na tarefa. Posto que a quase totalidade dos
palestrantes soava desconhecida para mim, atentei para os textos biográficos dos fotógrafos que
constavam no website do WB 2016. Tendo em mente o recorte de meu objeto de investigação,
privilegiei as falas de palestrantes apresentados como fotógrafos de casamento, dando
preferência também aos palestrantes brasileiros21 em detrimento dos estrangeiros. As palestras
ministradas por profissionais da área de gestão, cujos temas abordados eram, por exemplo,
finanças ou marketing foram preteridas por mim. Com efeito, as poucas falas que ouvi no
Núcleo do Empreendedor me pareceram menos proveitosas para a pesquisa. Ao fim e ao cabo,
sequer entrei no Núcleo de Família, de modo que passei a maior parte de meu tempo no Parque
Anhembi me dividindo entre o Palco Wedding e o Núcleo de Tecnologia.

21
Ainda assim, assisti a duas palestras de fotógrafos americanos e considero que estas experiências foram bastante
proveitosas, sobretudo porque pude observar as reações da plateia nas duas ocasiões. Foi interessante testemunhar,
por exemplo, os espectadores se dissiparem rapidamente durante a fala de um palestrante norte-americano que
sugeria que os fotógrafos brasileiros buscassem diversificar a clientela em períodos de poucos negócios, ampliando
o leque de fotografias sociais para retratos e fotografias de empresas locais.
34
Deixei-me guiar inúmeras vezes pelos títulos exibidos na programação divulgada pelos
organizadores do WB2016. “O novo mundo que se abre para os fotógrafos de casamento”;
“Como contar a verdade de um casamento”; “Essência: transforme momentos em verdadeiras
histórias” são exemplos de títulos que me soaram bastante atraentes naquele estágio do meu
22
trabalho. Ocorreram ainda algumas situações em que o acaso desempenhou papel
fundamental. Por exemplo, eu estava a caminho do banheiro quando passei pelo Núcleo de
Tecnologia e fui atraída pela fala de uma fotógrafa que, em etapas subsequentes da pesquisa,
viria a se tornar uma importante interlocutora.
Ao fim e ao cabo, deixei o evento animada com a perspectiva de ter acessado um campo
de pesquisa que me parecia promissor. A fim de compartilhar com o leitor certos aspectos do
WB que considero especialmente atraentes no que diz respeito a suas possibilidades analíticas,
apresentarei alguns relatos sucintos recortados de meu caderno de campo. Eles serão quatro e
correspondem, cada qual, a uma diferente palestra.

Começa, no auditório principal, a segunda palestra do primeiro dia de


congresso. Os espectadores são numerosos e o palestrante apresentado, um fotógrafo
norte-americano, é recebido com palmas e gritos da plateia. O palestrante chega ao
palco vestindo camisa jeans de mangas longas desabotoada até a altura do peito e
uma bermuda amarela com estampa floral, cujo comprimento não ultrapassa a
metade de suas coxas. Seus cabelos estão presos num coque, seus pés descalços,
metidos apenas em um par de meias brancas, sem sapatos. A maior parte da plateia
está munida de fones de ouvidos através dos quais é possível acessar a tradução
simultânea providenciada pelos organizadores do evento, mas as primeiras frases que
ouvimos são proferidas em língua portuguesa, ainda que com o sotaque carregado
característico dos nativos de língua inglesa: “Eu amo o Brasil. Eu quero ficar aqui
porque vocês são deliciosos”. A plateia ri.
Passada a saudação introdutória é exibida uma série de fotografias de um
parto. Ao final, o palestrante chama atenção para uma imagem em particular na qual
a mãe segura o recém-nascido. O palestrante então se dirige à plateia [a tradução é
minha]: “Cada um de nós já foi um dia um bebê. Se vocês tiveram sorte, alguém olhou
para você com o mesmo olhar da mulher que segura o bebê. É muito claro que o bebê
é muito importante para ela, nós nascemos sabendo que somos importantes. Mais ou
menos com quatro anos, a gente começa a ser infectado com a ideia – a mentira – de
que a gente não é importante. Ao tirar uma foto, vocês negam esta mentira”.
Mais adiante, o palestrante põe-se a tratar das reações supostamente
recorrentes entre pessoas que tomam consciência de que estão sendo fotografadas.
Jocosamente, ele apresenta uma performance de sorrisos forçados e tem uma

22
Para uma reflexão a respeito da noção de acaso, ver Peirano, 1992.
35
explicação: “sorrisos deste tipo demonstram que as pessoas acreditam que não são
importantes”.
O fotógrafo chama ao palco um casal que, pelo que entendi, integrava a
plateia. O palestrante pede que eles posem para uma câmera imaginária e torna a
sublinhar a falsidade dos sorrisos exibidos por seus ajudantes. Ele propõe então que
o casal aproxime os rostos, unindo suas bochechas. Feito isso, ele solicita: “Quando
eu der o sinal, falem, ao mesmo tempo, a cor que você imagina que o outro dirá”. O
casal obedece e, ao nomear as cores em voz alta, começam a gargalhar. O palestrante
se volta mais uma vez à plateia, esclarecendo que tinha acabado de apresentar uma
versão muito simplificada de uma técnica que permite que o fotógrafo olhe para o
casal do mesmo modo que a mãe da fotografia anterior olha para seu bebê. E sintetiza
em tom assertivo: “É nosso papel lembrar nossos clientes que eles são importantes”.
Ouço muitos aplausos.

***

Aguardo o início da palestra que encerra o primeiro dia de evento no Núcleo


de Tecnologia, intitulada “Essência: transforme momentos em verdadeiras
histórias”. Todos os assentos do espaço estão tomados e muitas pessoas assistem à
apresentação de pé. O palestrante começa afirmando: “Nosso trabalho se baseia em
quem nós somos. Ele carrega quem eu sou como marido, como pai, como pessoa”. É
então exibido um vídeo que eu interpreto como uma espécie de
documentário/apresentação do palestrante. Imagens dele junto a sua família se
alternam com trechos nos quais ele diz frases sobre si como “sou um cara simples”.
Ele fala do amor que sente pela mulher e pela filha. O vídeo dura poucos minutos e é
concluído com a frase: “Eu quero que os casais que a gente fotografa tenham a
mesma felicidade que a gente teve com o nosso casamento”.
O palestrante explica que este vídeo é exibido para os seus clientes e
acrescenta que é importante conhecê-los bem, sendo o “ensaio do casal” uma boa
oportunidade para que isto ocorra. “É bom tomar uma cervejinha com o casal”, diz
ele.
Um pouco adiante, fazendo um desvio no assunto, ele defende que é preciso
fotografar de maneira única. O fotógrafo propõe um rápido exercício ao público e
pede que cada um desenhe sobre uma folha de papel: uma nuvem, um sol, uma árvore
e uma casa. Dou uma olhada e constato que as pessoas à minha volta o atendem.
Uma vez que a tarefa é concluída, o palestrante pede que eles observem os desenhos
de seus vizinhos. Logo, emenda: “Por que seus trabalhos são tão parecidos se seus
desenhos são tão diferentes?”.
O palestrante fala de técnica e emoção: “uma foto bonita esteticamente é ok.
Mas eu prefiro que ela carregue mais alguma coisa. Ele prossegue instruindo os
ouvintes sobre aquilo que entende distinguir o ato de “ver” do ato de “enxergar”:
“ver é algo mais superficial e ao enxergar, você sente algo além”. E é enfático ao
dizer: “Você precisa sentir o que você fotografa”.
Toda a palestra é entremeada de frases de efeito como “Onde você estiver,
36
esteja por inteiro”, “Seja sempre você mesmo” ou “seja do tamanho dos seus
sonhos”. Há também uma série de citações de frases atribuídas ao fotógrafo
Sebastião Salgado ou ao escritor Antoine Saint-Éxupéry, por exemplo. O palestrante
exibe ainda um comercial de uma marca de cerveja popular que tematiza a
“obstinação”.
A palestra é encaminhada para o final com a exibição de uma seleção de fotos
de casamentos de autoria do palestrante. Ele conclui franzindo o cenho, assumindo
um ar meio professoral, meio grave ao dizer: “Alcance lugares altos, mas nunca se
esqueça de quem te colocou lá”. A plateia aplaude com entusiasmo.

***

No Núcleo do Empreendedor, o diretor da Editora Photos inicia sua palestra


propondo uma pequena meditação, a fim de “esvaziar o grande número de
pensamentos que ocupa nossa mente e preparar a plateia” para sua apresentação.
Na primeira etapa da fala, intitulada “Enfrente seus medos e aprenda a trabalhar em
equipe”, o palestrante cita uma série de pesquisas cujas fontes são omitidas,
afirmado, por exemplo, que “segundo as pesquisas, ser humano nenhum é capaz de
oferecer excelente produto ou serviço, fazer marketing e cuidar da gestão financeira
da empresa”. O palestrante prossegue apresentando e discorrendo com eloquência
sobre os “12 valores de um líder de sucesso” que são, segundo ele: humildade;
capacidade de ensinar, delegar e cuidar; confiança; respeito; capacidade de escutar;
o hábito de desculpar-se; desapego; gosto por pessoas; verdade; encorajamento;
aceitação das diferenças e a superação das queixas.
O palestrante anuncia a exibição de um vídeo para encerrar sua
apresentação. Nele, um homem jovem, de barba aparada e gel nos cabelos
cuidadosamente penteados para trás se dirige à câmera (...). Além da voz do rapaz,
ouve-se uma música suave de piano. A fala do jovem se estende por cerca de cinco
minutos e é concluída com uma reflexão sobre a oração do Pai Nosso. O vídeo é muito
aplaudido e a esposa do palestrante pede a palavra para dizer, em tom testemunhal,
que o marido reúne todas as qualidades das quais fala. O discurso da mulher é
emocionado e é concluído com uma declaração prontamente retribuída com um beijo
— este registrado por inúmeras câmeras de foto e vídeo. Uma moça vestindo o
uniforme do WB 2016 joga confetes brilhantes sobre o casal. Outros funcionários da
Editora Photos se aproximam com cartazes: “GO BOSS”, diz um deles. A plateia
reage à performance com aplausos e gritos. Logo atrás de mim, ouço vozes femininas
comentarem em voz baixa “que fofo!”.

***

Última palestra do evento. O auditório principal está lotado e o palestrante


chega ao palco ao som de Back In Black da banda australiana AC/DC. A plateia o
recebe muito animada. O fotógrafo põe-se a falar com carregado sotaque gaúcho:
“Eu trabalho para desenvolver bagagem visual. A maioria, eu diria, dos clientes é

37
analfabeto visual. A gente também é, mas a gente tem que tentar evoluir. Vamos parar
com essa coisa de olhar pro concorrente da esquina pra ver o que ele está fazendo.
Vamos ver fotos belas, coisa boa. Vamos ao cinema, vamos ver outras fotografias,
fotojornalismo. Viajar também ajuda a desenvolver nossa bagagem visual. Eu tenho
estudado muito arte”. Como ocorreu em outras palestras, o fotógrafo fala sobre a
importância de buscar referências em profissionais renomados de fora do universo
dos casamentos.
A certa altura, o palestrante propõe um “exercício prático” e chama ao palco
alguns dos fotógrafos que durante os três dias de evento palestraram naquele mesmo
palco. A plateia se agita ao ver aqueles que, aparentemente, são fotógrafos
renomados fazendo as vezes de auxiliares e modelos. O palestrante vai dirigindo a
cena, pede que o casal se aproxime mais: “dá um cheiro nela... e você olha pra
câmera”. A câmera do fotógrafo está conectada aos telões do auditório, de modo que
a plateia vai acompanhando o resultado das fotos. A imagem na qual o olhar da moça
está voltado para a lente do fotógrafo é analisada por ele: “Estão vendo isso aqui?
Não é certo se esforçar pra ele se conectar com ela e pra ela se conectar comigo. Eu
já fiz muito isso, mas não faço mais. [Ele mostra uma foto na qual o casal se volta um
para o outro] A gente tem que se esforçar pra eles se conectarem entre si”.
Ao término do exercício, o palestrante põe-se a falar sobre os predicados que
o fotógrafo de casamento deve buscar em sua carreira. Humildade, persistência e
caráter são alguns dos inúmeros predicados que vêm à tona durante a palestra. Com
dificuldades de conciliar a escuta com a tarefa de registrar em meu caderno o máximo
possível de sua fala, percebo o palestrante, já pelo final da palestra, abraçado em um
álbum de fotografias com capa preta. Tento recuperar o significado daquele objeto
na sua fala e entendo que se trata de um álbum reunindo todas as fotos de sua autoria
premiadas até aquele instante – pelas dimensões do álbum, se eu estiver correta, elas
devem ser muitas. À medida que a palestra vai se encaminhando pro final, a fala vai
se tornando mais e mais emocionada.
O fotógrafo se refere a esta palestra como um marco em sua vida profissional.
Os telões do auditório exibem uma fotografia com aspecto antigo e ele conta que se
trata da família dele. Ele fala da foto com a voz embargada. A fotografia da sua
família parece servir de gancho para seu discurso final: “Nós temos que sair com
nossas câmeras, com a nossa máquina do tempo, pra escolher qual vai ser o tempo
que nós vamos parar hoje. O tempo que nós paramos para estas pessoas é muito
importante para elas. As fotos que fazemos não são entregues para os noivos, elas
são entregues para as gerações que estão por vir”.
O público se coloca de pé e aplaude longamente o palestrante. Uma imagem
do fotógrafo acompanhado da esposa e de seus filhos é projetada sobre o telão. Ele
os convida a subir no palco, esclarecendo que seu filho caçula não viajou com eles
para São Paulo. O menino que sobe ao palco aparenta ter por volta dos sete anos de
idade. Ele abraça o palestrante e os dois choram copiosamente. Olho em volta e na
plateia, vejo homens e mulheres enxugarem as lágrimas. O palestrante chama ao
palco também uma integrante de sua equipe, agradece às pessoas que trabalham com
ele. Ao concluir sua fala é mais uma vez saudado com palmas, gritos e assobios.

38
Em casa de ferreiro, espeto de ferro: o WB como ritual 23

Em artigo intitulado “Etnografia não é método”, Peirano chama atenção para o fato de
que certas situações têm a capacidade de acionar prontamente nosso instinto etnográfico (2014,
p.378). Segundo a antropóloga, este acionamento em geral ocorre quando nos vemos diante de
algo que nos surpreende e intriga. Para ela, situações que nos causam estranhamento nos
conectam a outras situações semelhantes que conhecemos ou vivemos, ou ainda a situações
opostas. Encaro minha participação no Wedding Brasil como uma experiência deste tipo. Se
optei por descrever este congresso já no primeiro capítulo da tese, o fiz com o objetivo
fundamental de dividir com o leitor a descoberta de um campo de pesquisa, aos meus olhos, tão
surpreendente quanto intrigante.
No instante em que soube da existência do evento, durante sua realização e também
após seu término (enquanto permaneci pesquisando a seu respeito e revisando minhas notas de
campo), diversas vezes fui tomada por sentimentos de surpresa — e por vezes, também de
espanto. Neste processo, emergiu uma série de questões de interesse antropológico, boa parte
das quais deixarei para abordar posteriormente por acreditar que a exposição do material de
campo construído em etapas subsequentes da pesquisa favorecerá a tarefa. Neste momento,
considerando que os comportamentos, ações, gestos e palavras que observei no WB 2016
exibiam certo grau de convencionalidade e condensação, proponho uma análise do Wedding
Brasil à luz da noção de ritual24. Meu argumento é de que, como um ritual, o Wedding Brasil
coloca em evidência valores compartilhados pelo grupo em seu cotidiano. Ou ainda, desta vez
tomando de empréstimo a observação de Trajano Filho (S.d.) ao analisar concertos de orquestra,
o WB, enquanto um ritual “cria e expressa intensamente vivências radicais em seus
participantes” (p. 169).

23
Versões preliminares desta seção foram apresentadas na XI Jornada de Alunos do PPGA/UFF e no VII
Seminário dos Alunos do PPGAS/UFRJ. Agradeço aos professores e colegas pelos comentários realizados nas
duas ocasiões.
24
Sendo o ritual objeto de inúmeras reflexões no campo antropológico, cabe a mim esclarecer que parto da
formulação de Tambiah para quem o ritual é um forma de comunicação simbólica, “ele é constituído de sequências
de palavras e atos padronizados e ordenados, frequentemente expressada por múltiplos meios [multiple media, no
texto original], cujo conteúdo e arranjo são caracterizados por um grau variado de formalidade
(convencionalidade), estereotipia (rigidez), condensação (fusão) e redundância (repetição). A ação ritual, em suas
características constitutivas, é performática nestes três sentidos: é performativa no sentido Austiniano, no qual
dizer algo é também fazer algo como ato convencional; no sentido bastante distinto no qual uma performance
encenada utiliza múltiplos meios que permitem que os participantes do evento o experimentem intensivamente; e
no sentido de valores indexicais” (TAMBIAH, 1985, p.128, tradução minha).
39
O primeiro aspecto que pretendo sublinhar, neste sentido, se relaciona com a
performance dos palestrantes caracterizada pela simultaneidade das formas expressivas
exibidas sobre os palcos. Tanto no auditório principal quanto nos espaços de menor porte,
fotografias, músicas, luzes e técnicas corporais eram conjugadas de modo a gerar uma
atmosfera marcadamente excepcional. O simples ato de cruzar as portas que separam a área da
feira do Grande Auditório, em especial, preparava o espectador para a experiência ritual. Ao
fazê-lo, era possível perceber a iluminação fosforescente e abundante da feira ser deixada para
trás, dando lugar a um ambiente cuidadosamente iluminado, com luzes coloridas projetadas nas
paredes laterais e luzes focadas nos palestrantes que deixavam a plateia numa penumbra
acolhedora, semelhante àquela encontrada em salas de concerto ou teatros.
Ao início de cada palestra, um apresentador anunciava o palestrante discorrendo sobre
seu currículo invariavelmente impressionante, destacando um sem número de prêmios
nacionais e internacionais, bem como uma extensa lista de palestras e workshops ministrados.
Ao chegar no palco, a plateia fazia sua parte, saudando os palestrantes com aplausos, em muitos
casos também com gritos e assobios.
Seguindo os ensinamentos de Marcel Mauss (2003[1935]), para quem o exame das
técnicas do corpo é capaz de revelar aspectos relevantes da vida social, procurei atentar para as
maneiras pelas quais os palestrantes se moviam sobre o palco, focalizando seus gestos, postura
e tom de voz. Ainda que cada palestrante tivesse sua marca pessoal e forma particular de se
dirigir ao público, pude notar a existência de certos padrões.
O primeiro aspecto que chamou minha atenção ao observar o gestual dos palestrantes
diz respeito a certa dramaticidade sugerida por seus gestos largos (ver figura 1.4). Mãos e braços
livres, uma vez que utilizavam microfones do tipo headset, eram movimentados
incessantemente, como que assumindo a função de tornar as falas dos palestrantes ainda mais
enfáticas. Quanto ao modo de se posicionarem no palco, era comum que os palestrantes
caminhassem de um lado a outro do espaço que lhes fora reservado, buscando estabelecer certa
relação de proximidade com os congressistas. Ainda que durante as apresentações os
palestrantes estivessem constantemente na mira das câmeras de fotografia e vídeo operadas por
profissionais da organização do evento, eles pareciam ignorá-las, dirigindo-se diretamente ao
público. A propósito, em diversos momentos a audiência era convidada pelos palestrantes a
participar ativamente de suas apresentações e, quando isto acontecia, as interações podiam
assumir formas diversas. Em certos casos, o palestrante pedia que a plateia respondesse seu
cumprimento, tal qual registrei em meu diário:
40
Palestrante: Bom dia, pessoal!
Plateia: [num murmúrio quase inaudível] Bom dia.
Palestrante: Mais animado, gente! Mais animado! Bom dia!
Plateia: [desta vez com um pouco mais de entusiasmo] Bom dia!
Palestrante: Tudo bem com vocês? Tudo em ordem? Tudo tranquilo? [Da plateia vem
um sonoro assobio ao qual o palestrante responde elevando o polegar direito acima da
cabeça] Obrigado!

Figura 1.4: Palestrantes no Palco Wedding e no Núcelo de


Tecnologia. Fonte das imagens: 1.
http://www.robisonkunz.com.br/portfolio/workshop/32753-wedding-
brasil-2016-palestra-e-workshop; 2.
http://www.beth.fot.br/portfolio/um-pouco-mais-sobre-nos/24588-
wedding-brasil-2016; 3. http://blogweddingbrasil.com.br/wp-
content/uploads/2016/05/6D__0250-400x230.jpg ; 4.
http://www.guilhermebastian.com/portfolio/palestras/53153-
wedding-brasil-2016. (Data dos acessos: 09/01/2018)

Em outras ocasiões, os palestrantes forneciam instruções variadas ao público, propondo


atividades específicas. Durante uma das falas, o fotógrafo-palestrante que queria demonstrar
“ao vivo” certa técnica de iluminação, pediu que os espectadores ligassem as lanternas de seus
aparelhos de telefone celular a fim de auxiliá-lo. Nas notas de campo que expus anteriormente,
mencionei um palestrante que propôs que seu público fizesse desenhos e outro que sugeriu um
rápido exercício de meditação. Ocupando eu mesma um lugar na plateia, fui certa vez
encorajada a fechar os olhos, dar as mãos aos congressistas sentados ao meu lado em busca de
alguma espécie de “conexão” que não consegui compreender bem.
A atitude enérgica se exprimia não só no gestual, mas também nas vozes dos fotógrafos
que ocupavam os palcos. As falas eram proferidas com firmeza, sem espaço para o menor sinal
41
de hesitação. Combinada com o olhar, quase sempre dirigido à plateia, mas, por vezes
estrategicamente perdido no horizonte, como em quem experimenta emoção profunda, a voz
funcionava como instrumento eficiente que transmitia a impressão de que os discursos eram
proferidos com plena segurança. Aliás, durante os três dias de evento, chamou minha atenção
a recorrência com que os palestrantes conjugavam verbos no modo imperativo: “busquem o
sentimento”, “mostrem o melhor das pessoas”, “busquem referências fora da fotografia de
casamento” diziam, ora alertando, ora ordenando.
Se as performances dos palestrantes conjugavam falas e atos corporais, a composição
das narrativas também abrangia a utilização de outros recursos midiáticos. Música,
apresentações em programas de edição de slides (como o PowerPoint), exibição de fotografias
e vídeos (de autoria dos palestrantes ou não) e peças publicitárias compunham as palestras.
Havia ainda ocasiões nas quais outros atores eram convidados pelos palestrantes a se
apresentarem ao público. Cônjuges e filhos dos palestrantes eram os mais frequentemente
chamados a subir nos palcos, em alguns casos fazendo breves discursos e, em outros, tomando
parte em demonstrações públicas de afeto visíveis em abraços e beijos. Tampouco eram raras
as vezes nas quais as apresentações contavam com participações de colegas de profissão que, a
julgar pela reação dos congressistas, eram conhecidos do público ali presente. Registrei em meu
caderno de campo um destes momentos:

O palestrante chama um outro fotógrafo para ficar ao seu lado. Enquanto ele
sobe as escadas que separam o palco da plateia, o palestrante diz “esse cara, vocês
sabem, é o Lente de Ouro 2015”. Mesmo sem saber ao certo o que significa ser “lente
de ouro”, supus se tratar de alguma honraria importante no universo da fotografia
(o nome me lembrou o prêmio de futebol “Bola de Ouro”). A pedido do palestrante,
o fotógrafo convidado põe-se a falar sobre sua participação no Wedding Brasil de
2011, quando era tiete do palestrante, segundo dizia. A fala breve descamba para
uma conversa sobre o potencial que o WB tem de alterar o curso da carreira dos
participantes.

Também anotei em meu caderno de campo outras ações que considerei, por assim dizer,
idiossincráticas. Ao menos, assim classifiquei uma espécie de show que simulava um jogo de
basquete em cadeiras de rodas feita por um time de jogadores uniformizados, durante uma das
palestras. Houve ainda um momento em que um casal foi chamado ao palco para uma

42
“demonstração prática”, mas acabou performatizando 25 um pedido de casamento diante da
plateia lotada. Atos como o dos funcionários da Editora Photos que adentraram o palco do
Núcleo do Empreendedor segurando cartazes e jogando confetes sobre o palestrante, já descrito
nas notas de campo reproduzidas neste capítulo, me pareciam sinalizar que a performance não
era um detalhe nos palcos do Wedding Brasil, mas um elemento crucial que permitia que seus
participantes o experimentassem intensivamente — se quisermos recorrer mais uma vez à
formulação de Tambiah (1985, p.128).
Levando em conta a ideia de que forma e conteúdo são indissociáveis na ação ritual
(Chaves, 2002, p.139) gostaria ainda de chamar a atenção para duas estratégias recorrentemente
mobilizadas pelos palestrantes do WB 2016. A primeira delas era a utilização corriqueira de
tom humorístico nas falas. No curso das palestras, alguns palestrantes contavam anedotas, riam
dos outros e de si mesmos, bem como faziam “brincadeiras” em relação aos colegas que
poderiam ser interpretadas como expressões de “relações jocosas”26. Outro artifício bastante
empregado, talvez visando a legitimação do que era dito sobre os palcos, eram as múltiplas
referências a “estudos” e “achados científicos”. Ao contrário do que ocorre na academia, onde
a preocupação em explicitar as fontes de dados e conceitos, no WB 2016 eram feitas referências
aos “estudos” de maneira imprecisa, de modo que falar das fotografias era também falar sobre
“o inconsciente” ou sobre “o funcionamento do cérebro humano” a partir de que se definia
vagamente como teorias “comprovadas pela neurociência”.
Também chamou minha atenção que os palestrantes rotineiramente fizessem usos de
citações atribuídas a personalidades de diversas áreas. Relendo minhas notas de campo,
observei que nas palestras foram proferidas frases atribuídas a fotógrafos como Cartier-
Bresson, Richard Averdon e Sebastião Salgado, além de outras supostamente de autoria de
nomes célebres como Leonardo da Vinci, Saint-Exupéry, Rousseau, Bill Watterson e mesmo o
personagem fictício Dr. House.
Também as peças publicitárias figuravam com certa frequência nas apresentações — o
que me levou a refletir sobre uma possível aproximação entre as representações sobre o trabalho

25
Seguindo Lucas (2005), emprego o neologismo sem utilizar o recurso do itálico, em função da força de seu uso
corrente na literatura antropológica.
26
Ao utilizar a expressão “relações jocosas”, o faço em referência aos trabalhos de Radcliffe-Brown (1940) e
Mauss (1926). Para reflexões acerca das relações jocosas em contextos etnográficos contemporâneos, sugiro a
leitura de Comerford (1998) e Gastaldo (2010).
43
do fotógrafo de casamento expostas nos palcos do WB e o mundo da publicidade, assim
caracterizado por Rocha (1995):

[o mundo da publicidade] é parecido com a vida e, no entanto, completamente


diferente, posto que sempre bem-sucedido. Onde o cotidiano se forma em pequenos
quadros de felicidade absoluta e impossível. Onde não habitam a dor, a miséria, a
angústia, a questão. Mundo onde existem seres vivos e, paradoxalmente, dele se ausenta
a fragilidade humana. Lá, no mundo do anúncio, a criança é sempre sorriso, a mulher
desejo, o homem plenitude, a velhice beatificação. Sempre a mesa farta, a sagrada
família, a sedução. Mundo nem enganoso, nem verdadeiro, simplesmente porque seu
registro é o da mágica. (op. cit., p.25)

De fato, deixei o WB 2016 convencida de que o evento colocava em evidência uma


série de (auto)representações sociais de um cotidiano idealizado. Sobre os palcos do congresso,
o trabalho exercido por fotógrafos de casamento aparecia como inesgotável fonte de emoção e
realização. Os fotógrafos que ali exerciam o papel de palestrantes eram apresentados como
profissionais talentosos, responsáveis, dispostos ao trabalho árduo — conjunto de
características recompensada com suas carreiras consideradas bem-sucedidas e, em certa
medida, também exemplares. Mas as virtudes proclamadas nos palcos iam além.
O exame das palestras proferidas no WB 2016 revelou a ausência de fronteiras nítidas
entre vida pessoal e vida profissional dos fotógrafos de casamento. Com efeito, as falas dos
palestrantes, bem como o material audiovisual veiculado nas palestras, quase sempre
transcendiam o âmbito profissional e se debruçavam sobre aspectos da vida privada e familiar
dos congressistas. A presença das famílias sobre os palcos, constante em minhas notas de
campo (algumas das quais expostas anteriormente) nos fornecem uma indicação da exposição
de vínculos pessoais — laços estes representados como harmônicos, amorosos e felizes — e
também da própria participação dos familiares no congresso 27 . Neste sentido, fiquei
particularmente impressionada com a associação, quase onipresente nas palestras do WB 2016,
entre “ser um bom fotógrafo” e “ser uma boa pessoa”, “ter humildade” ou “valorizar a família”,
por exemplo. O que meus interlocutores pareciam afirmar a todo instante era que o domínio de

27
Em diversos casos, a presença da família no congresso indicava uma parceria que era também profissional. Com
efeito, ao longo de todo meu trabalho de campo, me deparei com sociedades entre marido e esposa, casais de
namorados e irmãos que desempenhavam atividades complementares no negócio da fotografia de casamento.
Retomarei este tema mais adiante.

44
técnicas fotográficas e um bom desempenho comercial não deveriam ser um objetivo per se,
mas precisava ser, antes, obtido como consequência de determinadas virtudes conquistadas no
curso da vida.
Em artigo no qual examina a formação de cozinheiros em institutos de ensino
profissional 28 , Fine (2003) chama atenção para o modo como a aquisição das habilidades
técnicas envolve também o aprendizado de certos preceitos morais:

O processo de socialização numa ocupação não consiste apenas na aquisição de


técnicas para desempenhar certas tarefas; socialização também envolve a assunção de
normas específicas, crenças e preocupações morais (p.76).29

Como ritual, o Wedding Brasil não apenas colocava em evidência concepções morais
(em jogo, por exemplo, nos discursos sobre família, casamento e trabalho) mas também
funcionava como espaço de construção destas. Faço essa afirmação em referência, por exemplo,
à fala de um dos palestrantes que afirmou ser de grande importância o trabalho do fotógrafo de
casamento posto que é ele quem registra “o momento de nascimento de uma família”. Ou ainda
a declaração de outro palestrante que anunciou: “Eu quero que os casais que a gente fotografa
tenham a mesma felicidade que a gente teve com o nosso casamento”. Ou então as diversas
vezes que os palestrantes exibiram, durante suas apresentações, fotografias de seus próprios
casamentos e/ou de suas famílias (seguindo, aliás, os mesmos padrões estéticos das fotografias
que fazem de seus clientes). A mim parece que ações e discursos como estes sugerem que a
prática profissional de meus interlocutores é impregnada de moralidades 30 sobre trabalho,
casamento, família e amor, em especial. Mais do que isso, entendo que os palcos do Wedding
Brasil funcionam como um espaço privilegiado para construção, reprodução e circulação dessas
moralidades, bem como de expressão de emoções nos termos analisados por Mauss (1980
[1921]).

28
Technical Vocation Institutes ou TVI, no texto original.
29
Traduzi do original: “Socialization into an occupation does not consist only on acquiring techniques for
performing certain tasks; socialization also involves taking over specific standards, beliefs, and moral concerns”.
30
O uso do plural aqui não é casual, mas diz respeito a um entendimento de noção de moralidades que tem
contornos específicos. Seguindo as ponderações realizadas por Eilbaum (2012) em seu trabalho sobre formas de
administração de justiça no conurbano bonaerense, entendo que os valores morais em jogo na prática profissional
de meus interlocutores não são “nem únicos, nem homogêneos nem imutáveis, derivados de uma estrutura social
totalizante; mas produto das interações pontuais e contextuais” (p.32) entre pessoas e situações particulares.
45
Figura 1.5: Frente e verso de meu
crachá de identificação

Do mesmo modo que minha participação no Wedding Brasil me fez enxergá-lo como
um espaço de circulação e construção de moralidades, me pareceu claro que o evento funciona
também como espaço de construção de reputações. Já foi mencionado no início deste capítulo
que os participantes do WB 2016 carregavam consigo um crachá de identificação (ver figura
1.5). No meu, a tarja cor-de-rosa impressa na parte inferior informava minha condição de
congressista. Além desta modalidade de participação no evento, observei a existência de cinco
outras. Deste modo, o participante podia ser identificado também como staff (isto é, integrante
da organização do evento), imprensa, expositor (representante de uma das marcas presentes no
espaço denominado feira) ou como palestrante. As diferentes modalidades de participação
inscritas no crachá regulavam o acesso dos participantes aos diversos espaços do evento, mas
atentando para a interação entre os fotógrafos que circulavam naqueles dias pelo Anhembi,
notei que elas também demarcavam uma hierarquia entre eles. Neste sentido, o acesso ao palco
demarcava, do ponto de vista simbólico, uma posição de superioridade.
As interações pelos corredores do congresso eram, aos meus olhos, reveladoras desta
hierarquia. Nos intervalos entre uma palestra e outra não era raro espreitar um palestrante ser
abordado por um integrante do público em busca de um cumprimento, um pedido de selfie,
alguma conversa rápida. Com efeito, certos encontros me remetiam às interações comuns entre
ídolos e fãs. Já por parte dos palestrantes, alguns sinais de apreensão antes de subir ao palco
(tais como o olhar concentrado nos segundos que precediam uma apresentação ou o estalar de
dedos) e mesmo confissões de nervosismo na parte inicial de suas falas sugeriam que

46
“palestrar”, sobretudo diante de um público numeroso, não era para os fotógrafos atividade das
mais corriqueiras. Diante dos sinais de inquietação dos profissionais, conjecturei que as
palestras de algum modo colocavam em jogo suas reputações.
Alguns fotógrafos rememoravam suas participações em eventos anteriores, declarando
que “participar do Wedding Brasil como palestrante era um sonho”. O projeto parece ser
compartilhado por muitos fotógrafos de casamento ao ponto de os próprios organizadores
tirarem proveito disto. Ao menos foi o que presumi ao me deparar com “concursos” promovidos
pela Editora Photos nos últimos anos com o intuito de eleger, dentre os inscritos no evento, um
fotógrafo para ocupar lugar no palco31. Em certos momentos, tais lembrança de participações
em eventos precedentes era compartilhada pelos palestrantes com a intenção de encorajamento
à plateia. Neste sentido, recupero a fala de um palestrante que falava sobre o Núcleo de
Tecnologia que assim se dirigiu ao público: “no ano passado eu estava aí, como vocês. Hoje
me tornei um palestrante. Quando a gente sonha e trabalha duro, tudo é possível.”
Por discursos deste tipo, pela intensa propagação de mensagens do tipo “faça valer a
pena!”, e também pela performance dos fotógrafos que se apresentavam nos palcos do evento,
inúmeras vezes associei o que se passava no Wedding Brasil ao campo da literatura que se
convencionou chamar de autoajuda, definida por Rüdiger como

“o conjunto de relatos, de manuais, de textos, às vezes multimídia, que ensina como


conduzir a vida, sobrepujar a depressão, manejar com pessoas, exercitar a sexualidade,
parar de fumar, perder peso, prosperar financeiramente, etc. (2010, p.7).

No Wedding Brasil, bem como no universo da autoajuda retratado por Rüdiger,


imperava o princípio de que o indivíduo carrega em seu interior os recursos necessários para a
obtenção de sucesso, “a concretização de seus objetivos, felicidade e qualquer outra coisa
necessária para desfrutar de uma vida completa” (Adans, 1967, p.7 apud Rüdiger, op. cit.).
Neste sentido, palestrantes e plateia pareciam compartilhar da crença de que qualquer um

31
Um post de divulgação do concurso disponível no blog da editora traz o seguinte texto: “Você já se imaginou
compartilhando seus conhecimentos fotográficos em algum palco do Wedding Brasil? No ano passado realizamos
a promoção em que o vencedor tem lugar garantido como palestrante do Núcleo de Tecnologia do congresso. (…)
A fim de dar mais uma oportunidade para outros fotógrafos mostrarem seus talentos e habilidades, realizamos a
segunda edição dessa promoção que começa nessa terça-feira, 12, e é destinada apenas aos congressistas desta
oitava edição do evento.” Fonte: http://blogweddingbrasil.com.br/quer-ser-palestrante-do-wedding-brasil-2017/,
data de acesso: 16/01/1982.
47
poderia obter sucesso como fotógrafo de casamento. A profissão proporcionaria realização
pessoal, remuneração satisfatória e reconhecimento pelos pares contanto que o indivíduo
dispusesse de um conjunto de virtudes que englobasse força de vontade, fé, disciplina e
humildade. Trata-se, ao me ver de algo muito próximo do objeto da reflexão de Rüdger: um
fenômeno que reflete a “crença democrática na capacidade individual” (Kaminer, apud.
Rüdger, 2010, p.8) de superar eventuais obstáculos.
O acordo em torno do conjunto de virtudes acionadas nas representações do fotógrafo
de casamento bem-sucedido me parecia tão sólido, que eu tinha a impressão de estar diante
uma certa comunidade moral. Posto de outro modo, participei do Wedding Brasil 2016 com a
sensação de que o evento reunia um grupo que comungava valores e concepções do mundo
muito específicas. Por essa razão talvez, reconheci no evento algo que remete a uma espécie de
caráter religioso, particularmente visível na produção da “efervescência” da qual fala Durkheim
(2013 [1912]) e é explicada por Menezes (2012) como

um conjunto de emoções e sentimentos em uníssono que permitirão que o membro de


uma sociedade se sinta pertencente a um todo mais amplo, que o ultrapassa e o ergue
para além de si mesmo, infundindo-lhe um profundo sentimento moral. (p.37)

Por outro lado, muito embora apresentadores e público do Wedding Brasil expressassem
largamente “emoções e sentimentos em uníssono”, dizer que todos os participantes do evento
compartilhavam da experiência seria inexato. Com efeito, o espectador desavisado que
testemunha risos, gritos, lágrimas e aplausos entusiasmados por todos lados poderia concluir
que a comoção provocada pelas palestras atingia aos presentes de maneira mais ou menos
homogênea. Uma conversa entreouvida durante uma de minhas pausas para descanso entre
palestras serviu para desfazer a impressão precipitada de que o público partilhava do mesmo
sentimento em relação às atividades do WB 2016. Eu estava sentada no chão do espaço que os
organizadores do evento batizaram de lounge, enquanto dois jovens rapazes conversavam ao
meu lado:

Rapaz 1: Você ficou pra festa ontem?


Rapaz 2: Eu vazei. Não tomei nem um gole.
Rapaz 1: Nem eu. Olha o preço disso aqui, véi. Pagar esse tanto pra chegar aqui
meio-dia? Tá doido?
Rapaz 2: E você foi na palestra de … [não peguei o nome] de manhã?

48
Rapaz 1: Pra mim não prestou. Eu já sabia [fez referências a alguns termos técnicos,
naquele momento, incompreensíveis para mim]. Pra alguém que não soubesse era
ótimo, mas, pra mim, nada de novo.
Rapaz 2: Mas foi muito massa, véi.
Rapaz 1: O quê?
Rapaz 2: Aquela mensagem sobre Deus.
Rapaz 1: Véi! Se eu quiser ouvir mensagem sobre Deus eu vou na Igreja.
Rapaz 2: E você vai na Igreja?
Rapaz 1: Eu não, mas se quiser eu vou. Não vim aqui pra isso.

Se o diálogo que reproduzi acima manifesta diferentes vivências em um evento do porte


do Wedding Brasil, ele também evidencia algumas limitações para a pesquisa decorrentes de
meu modo de participação naquele evento. Já mencionei que minha participação no WB 2016
não foi fruto de reflexão demorada, mas uma decisão quase intuitiva de quem dispunha de
pouco tempo para organizar estes primeiros passos no campo. Uma vez que decidi adquirir um
passe para o evento e me misturar aos demais participantes dele, não tive acesso aos seus
bastidores, tampouco pude conversar com seus organizadores previamente32. Diante da intensa
programação do congresso, também optei por não abordar outros participantes durante o evento
(com duas exceções das quais tratarei mais adiante) de modo que não ouvi deles, naquele
momento, qualquer espécie de fala elaborada que tratasse de suas percepções do WB 2016.
Conversas breves que manifestavam a impressão dos congressistas, como a dos dois rapazes
no intervalo entre palestras, eram tão raras quanto valiosas. E situações como estas me
convenciam que era preciso investir nas tentativas de obter outros pontos de vista sobre o
congresso que complexificassem sua face mais visível. Alguns dos interlocutores que encontrei
nas etapas posteriores da pesquisa me ajudaram a olhar para o evento de outros pontos de vista.
A pesquisa online, as conversas particulares com fotógrafos que haviam participado de
congressos, bem como minha presença em locais onde eu podia observar os fotógrafos
interagindo entre si seriam particularmente promissores neste sentido. Outras visões sobre o
Wedding Brasil, bem como análises mais cuidadosas sobre várias das questões ali levantadas
serão apresentadas em outros capítulos. Antes disso, contudo, tratarei dos percursos que
percorri após minha participação no WB 2016.

32
Passado o evento, fiz uma tentativa de contato com a Editora Photos através de e-mail, porém nunca recebi
resposta.
49
Letícia

Conforme procurei demonstrar na seção anterior, um dos fatores que pesaram em minha
decisão de iniciar meu trabalho de campo no Wedding Brasil 2016 foi a possibilidade de acessar
ali futuros interlocutores. Segundo minhas previsões iniciais, num evento daquele porte
certamente surgiriam oportunidades de interagir com outros congressistas e, desta interação,
não deveria ser difícil obter uma possibilidade de estabelecer a posteriori interlocuções mais
aprofundadas. Já no primeiro dia do congresso, entretanto, revisei meu planejamento. O ritmo
das atividades era intenso e difícil de seguir, de modo que procurei me concentrar na
programação de palestras que se revelava mais interessante do que eu poderia imaginar. Disto
decorreu que mal troquei palavras com os demais participantes do evento, com exceções que
se revelaram importantes para o percurso da pesquisa. Apresento uma delas a seguir.
No último dia do Wedding Brasil, pouco depois das nove da manhã, eu me preparava
para me dirigir ao auditório principal. Naquele dia eu não havia decidido de antemão a quais
palestras assistiria, mas, uma vez que o movimento em torno do Palco Wedding me parecia
particularmente grande, achei adequado me juntar à maioria dos participantes do evento.
Entretanto, ao invés de percorrer em linha reta a curta distância que separava o lounge onde me
encontrava das rampas de acesso ao auditório principal, optei por passar antes no banheiro do
outro lado do pavilhão, de modo que eu pudesse aproveitar para dar uma rápida olhada nos
demais espaços do congresso. Eu estava de passagem quando ouvi a palestrante do Núcleo de
Tecnologia se dirigir a uma audiência então mirrada, com uma apresentação intitulada por ela
própria “Que poder tem a sua foto?”. Sobre o pequeno palco, Letícia Katz, uma jovem moça de
pele clara, baixa estatura e compleição magra, apresentava aos ouvintes um conteúdo que
capturou meu interesse de imediato. Na ocasião, a fotógrafa-palestrante dizia ter perguntado
aos “seus casais”33 se, caso pudessem, dentre suas fotos de casamento, guardar apenas uma,
qual seria ela. Senti-me impelida a ocupar uma das cadeiras vazias à sua frente e ouvir o que
Letícia tinha a dizer.
A cada frase dita por Letícia, a cada imagem que ela exibia sobre as duas telas nas
laterais do pequeno palco, eu me convencia a deixar de lado a palestra do auditório principal e
permanecer por ali. Não era só o conteúdo da apresentação que detinha minha atenção, mas

33
Ao longo de toda a pesquisa, ouvi muitas vezes os fotógrafos utilizarem as expressões “meus casais” e “meus
noivos” para se referir aos seus clientes.
50
também certos contrastes mais ou menos sutis entre aquela palestra e as demais que eu assistira
até então. Letícia falava baixo, exibia gestos contidos e embora lançasse mão de alguns recursos
audiovisuais, esta utilização me parecia bastante mais comedida do que a de seus colegas.
Enquanto ouvia Letícia, comecei a conjecturar sobre as possibilidades de uma conversa
posterior. Supondo, a partir de seu sotaque, que a palestrante vivia em algum lugar distante de
minha cidade de residência, cogitei uma entrevista feita à distância, talvez com o auxílio do
Skype ou outro aplicativo de chamada de vídeo. A mim restava então abordar a fotógrafa em
momento que julgasse oportuno.
Ao final de sua palestra, percebendo que uma fila se formava em direção ao palco,
resolvi aguardar a uma pequena distância enquanto observava o movimento. A maior parte das
pessoas ali parecia querer simplesmente cumprimentar Letícia, mas uma das moças da plateia
chamou minha atenção em particular porque enxugava lágrimas enquanto agradecia à
palestrante por “ter sido capaz de mostrar o valor do fotógrafo”. Letícia ouviu atenta, agradeceu
aos cumprimentos e acatou alguns pedidos de selfie. Quando a fila começou a rarear e senti que
a conversa entre Letícia e um pequeno grupo de fotógrafos que ali estava não acabaria tão cedo,
pedi licença, me apresentei rapidamente e falei sobre minhas intenções de uma conversa
posterior.
Este primeiro e breve diálogo com Letícia foi de início levemente desconcertante para
mim. Enquanto eu me apresentava como antropóloga e falava de minha pesquisa, a fotógrafa
permanecia em silêncio não esboçando qualquer reação. Apenas quando me ouviu dizer que
morava no Rio de Janeiro, ponderou um pouco e disse que visitaria a cidade dali a um mês e
meio, propondo um encontro pessoal — possibilidade que eu considerei animadora. Letícia
encerrou a conversa sugerindo que eu a “adicionasse no Facebook” para que pudéssemos
combinar os detalhes da entrevista mais adiante. Isto feito, acertamos de nos encontrar para um
café no bairro de Copacabana, na Zona Sul carioca, onde ela se hospedaria.
A estadia de Letícia no Rio de Janeiro duraria apenas três dias e tinha motivação
profissional. Ela chegaria numa sexta-feira, fotografaria um casamento no sábado e partiria de
volta para casa já no dia seguinte. Nos encontramos no início da tarde de sexta e, assim que
nos acomodamos no local combinado, perguntei a Letícia se ela se opunha à utilização de um
gravador para registro da entrevista. Diante da resposta negativa, coloquei o aparelho sobre a
mesa e minha interlocutora tratou de introduzir nossa conversa:

51
Letícia: Eu tô numa fase bem crítica da minha vida. Ontem eu acabei de fechar meu
formulário no site [o “formulário no site” era o meio através do qual seus potenciais
clientes entravam em contato com ela]. Eu não sei se eu vou continuar fazendo isso.
Esse é o meu sétimo ano fotografando casamento.
Cristina: É?
Letícia: Tô em crise total. Assim, eu tô de saco cheio… então assim, talvez todos estes
meus questionamentos e essa minha inquietação com tudo que eu vejo nos casamentos
tenham me feito chegar a esse ponto. Tudo que eu vejo na fotografia de casamento,
sabe? Tô numa fase bem crítica que pode até ser bom pra você porque eu vou falar
muita coisa.

De fato, Letícia falou muita coisa. Nossa conversa durou cerca de quatro horas, durante
as quais ouviu minhas perguntas com atenção, replicou-as com eloqüência buscando, de tempos
em tempos, certificar-se de que havia respondido todas elas. Sempre que possível, Letícia
apresentava exemplos concretos a fim de ilustrar seus argumentos e parecia bastante à vontade
para tecer críticas ao cotidiano do fotógrafo de casamentos, não poupando os colegas de
profissão, inclusive.
Minha interlocutora não se distraía com seu aparelho celular deixado sobre a mesa,
ainda que com frequência a pequena tela se iluminasse sinalizando mensagens e atividades em
redes sociais. A certa altura de nossa conversa, veio à tona seu número de amigos no Facebook:
quase três mil dos quais afirmava não conhecer a metade, “tem muitos fotógrafos que me
adicionam”. Era um dos inúmeros indícios surgidos durante o trabalho de campo que os
relacionamentos travados naquela rede social, bem como em outros dispositivos online, era
uma parte importante do cotidiano do grupo que eu pesquisava. A fala de Letícia sobre seu
número de amigos era também um dos sinais fornecidos por minha entrevistada de que ela
gozava de alguma notoriedade entre seus colegas de profissão. Mais adiante, apareceriam
outros sinais de sua posição privilegiada entre os pares: a despeito dos seus recém completados
30 anos de idade, Letícia já acumulava inúmeros prêmios, alguns dos quais internacionais. Ao
longo de seus sete anos de carreira, havia se tornado uma das fotógrafas mais requisitadas de
uma capital do Nordeste brasileiro. Além disso, segundo ela mesma destacou, fotografou
casamentos no exterior e era frequentemente convidada a dar palestras e ministrar workshops.
Entrevistando Letícia, eu não tinha dúvidas de que seu relato, bem como as reflexões
que fazia a respeito de suas atividades profissionais, renderiam para minha pesquisa discussões
interessantes. Durante toda nossa conversa ela demonstrava boa-vontade em colaborar com
meu trabalho e nenhuma pressa em encerrar a entrevista. Partiu de mim a conclusão daquele

52
encontro já no início da noite, uma vez que eu precisava dar conta ainda de alguns
compromissos pessoais. Naquele mesmo dia, às 23h28, recebi uma notificação de mensagem
do Facebook. Era Letícia retomando um dos temas de nossa conversa.

A entrevista que não terminou

Na semana que sucedeu a entrevista, Letícia e eu trocamos mensagens diariamente.


Nelas, minha interlocutora desenvolvia alguns assuntos suscitados em nosso encontro e que lhe
pareciam pendentes. De minha parte, além de ouvi-la atentamente, aproveitei a disponibilidade
de Letícia lhe dirigindo novas perguntas, fazendo provocações e mesmo expondo alguns de
meus primeiros esboços analíticos na expectativa de observar suas reações. Continuamos a nos
falar com certa regularidade nos meses seguintes34.
Eu achava curiosa esta forma de interação e demorou algum tempo para que eu me desse
conta de que “bater papo” com Letícia pelo aplicativo do Facebook era uma maneira de fazer
pesquisa. As mensagens surgiam na tela meu aparelho celular em momentos os mais diversos:
enquanto eu participava de uma reunião de trabalho, no momento que eu preparava o meu jantar
ou estava sentada no bar conversando com amigos. Os mais chegados, observando enquanto eu
digitava mensagens destinadas a Letícia, me alertavam em tom de chacota: “esta mulher está te
fazendo de analista”. Tentei explicar algumas vezes, em vão, que não compartilhava da mesma
impressão, mas que, ainda que fosse este o caso, aquele longo e intenso diálogo estava sendo
extremamente proveitoso para minha pesquisa.
Boa parte de nossas conversas começava por iniciativa de Letícia. Muitas vezes, ela me
enviava algum tipo de material, por exemplo, fotografias suas ou de colegas, links para
entrevistas, blogs ou podcasts, enfim, algo que imaginava ser de interesse para minha tese.
Outras vezes, Letícia simplesmente narrava algum episódio que lhe tinha acontecido,
compartilhava alguma fofoca ou exibia alguns de seus trabalhos dentro ou fora da fotografia de
casamento. Aconteceu também de Letícia pedir minha opinião a respeito de alguma decisão

34
Num momento que considerei o meu trabalho de campo concluído, achei por bem fazer um back up das
conversas que tive com Letícia através do aplicativo do Facebook. Assim como no corpo da tese, utilizei fonte
Times New Roman, tamanho 12. As mensagens trocadas preencheram 252 páginas de um documento em Word.
Mesmo depois disso, permanecemos em contato, embora com menor frequência. Diminuir as conversas com
Letícia foi parte de um esforço de deixar para trás a pesquisa de campo para avançar em novas etapas da tese.
53
que estava prestes a tomar. Vez ou outra ela invertia os papéis dirigindo perguntas a mim,
tentando, principalmente, compreender as origens de meu interesse por meu objeto de estudo.
Além desta interação online, entre os anos de 2016 e 2017, Letícia e eu também tivemos
alguns reencontros presenciais. Por exemplo, em viagem a Balneário Camboriú, para
participação no Lente de Ouro, dividimos um quarto de hotel, o que acabou resultando em três
dias de intensa convivência. No Rio de Janeiro, quando no início de 2017 mais uma vez Letícia
veio à cidade fotografar um casamento, aproveitei para acompanhá-la neste evento, além de tê-
la encontrado na véspera para que juntas visitássemos uma exposição fotográfica. Durante um
congresso em São Paulo, do qual eu participei como ouvinte e Letícia como palestrante do palco
principal, também interagimos bastante. Em suma, em diversos momentos ao longo de minha
empreitada de pesquisa, Letícia me apresentou terminologias, equipamentos, técnicas, pessoas
e grupos. Não tenho dúvidas de que muito do que consta nesta tese foi fruto deste diálogo
intenso, como deverá parecer claro ao longo do trabalho. Por ora, dado que minha convivência
com Letícia — e também com diversos outros interlocutores — foi costurada pelo uso de mídias
digitais, creio ser importante dedicar ao tema alguma atenção.

Sobre pesquisar online

O leitor atento certamente terá notado que meus primeiros passos no campo — tanto
minha participação no Wedding Brasil, quanto a interlocução com Letícia — foram, em grande
medida, possibilitados pela utilização de ferramentas digitais. Embora jamais tenha concebido
a possibilidade de realizar uma pesquisa sem a utilização de instrumentos tais como
mecanismos de busca e aplicativos de comunicação, quando a pesquisa era ainda um projeto,
eu não podia imaginar a importância que o universo digital mais amplo assumiria no dia-a-dia
do trabalho de campo. Com efeito, uma parcela muito significativa da pesquisa foi realizada
online e, antes que eu pudesse ter me dado conta, acumulei horas de acompanhamento e
interação com meus interlocutores em redes sociais, integrei rotinas de trocas de mensagens
através de aplicativos de telefone celular, frequentei cursos transmitidos via internet, ouvi
podcasts e tive acesso a um vasto universo de conteúdo disponibilizado em plataformas de
vídeo.
Este modo de me mover pelo campo foi, em parte, fruto da relação que alguns
interlocutores tinham com a internet. Logo no início da pesquisa, já era possível perceber que

54
a rede funcionava para eles como importante fonte de informação (e formação), espaço de
sociabilidade, ferramenta de divulgação do trabalho e também de comércio. Transitar eu mesma
neste espaço se apresentava, portanto, como uma oportunidade de acompanhar e interagir com
fotógrafos de casamento, às vezes de maneiras inesperadas. Dou um exemplo. A mesma
empresa que promove o Wedding Brasil mantém também uma plataforma de ensino online que
transmite cursos ministrados por fotógrafos de casamento enfocando diversos temas. À época
que eu fazia a pesquisa, o acesso aos cursos apresentava o seguinte esquema: caso o espectador
do curso assistisse à transmissão ao vivo, isto é, no momento em que era gravado, o acesso era
gratuito, bastando se cadastrar na plataforma e acessar o site em horários previamente
divulgados. Caso se interessasse por “comprar” o curso, o espectador teria acesso ao conteúdo
no horário que lhe fosse conveniente e teria acesso a aulas extras. Assim, me cadastrei na
plataforma e, ao longo da pesquisa, pude assistir a alguns cursos ao vivo. Além do benefício de
poder acessar o conteúdo dos cursos sem precisar pagar por eles, esta modalidade de
transmissão apresentava outra vantagem: durante a exibição, eu e os demais usuários que
estivéssemos online tínhamos acesso a um chat (ver figura 1.6). Aquele espaço de debate era
usado para dirigir perguntas ao fotógrafo que ministrava o curso ou ao funcionário da Photos
TV que ali atuava como mediador. Mas a ferramenta também era usada como um espaço de
debate entre os fotógrafos-espectadores que emitiam suas opiniões, contrastavam o conteúdo
dos cursos com suas próprias experiências, concordavam ou discordavam entre si — o que, do
meu ponto de vista, acabou rendendo um material de observação bastante interessante.

Outros “espaços” que frequentei com regularidade foram os grupos de Facebook que
tinham a fotografia de casamento como foco principal. Neles, eu acompanhava diariamente
algumas dezenas de posts sobre os mais variados aspectos do dia-a-dia dos fotógrafos. Era
frequente, por exemplo, que diversos deles postassem algumas imagens de sua autoria feitas
em casamentos. Estas costumavam aparecer acompanhadas de textos que, por sua vez,
funcionavam como legendas explicativas. Em outros casos, a publicação das imagens vinha
acompanhada de pedidos de opinião que acabavam por transformar o espaço numa espécie de
fórum que tornava visível uma grande diversidade de percepções — tanto estéticas quanto
morais sobre as fotografias que produziam.

55
Em alguns destes grupos, eram frequentes e assumiam posição de destaque as
chamadas “tretas”, que eu definiria de maneira um tanto quanto simplificada como discórdias
públicas entre alguns de seus integrantes. As “tretas” não eram raras e, fazendo um cálculo
grosseiro, arriscaria dizer que, ao longo de meu trabalho de campo, testemunhei ao menos uma
por semana. Estas ocorrências chegavam a render vários posts e, às vezes, geravam centenas de
comentários e memes de alguns dos fotógrafos ali inscritos.
Devo ressaltar, portanto, que o universo digital não serviu apenas para mediar encontros
com interlocutores “de carne e osso” — muito embora eu reconheça que este tenha sido um de
seus papéis fundamentais. Nas redes sociais pude testemunhar conflitos, brincadeiras e
conversas que a princípio soavam triviais mas que, conforme eu avançava na pesquisa, se
revelavam significativas. Em suma, minha vida online garantia o quinhão diário de

Figura 1.6: Tela de curso da Photos TV e do chat. Imagem


capturada em 23/11/2016.

“convivência com os nativos”, se quisermos fazer alusão aos fundamentos da pesquisa


etnográfica expostos nos escritos célebres de Malinowski (1978[1922]). Era, sem dúvidas, uma
maneira bastante conveniente de acessar informações que de outra forma não estariam ao meu
alcance 35 . Mas pesquisar na internet também apresentava certos impasses. Talvez o mais
desconcertante deles tenha a ver justamente com minha incapacidade de prever o papel que tal
opção metodológica desempenharia no percurso da pesquisa.

35
Devo ressaltar, por outro lado, que o fato de eu ter realizado uma parcela considerável da pesquisa online
impactou diretamente no recorte empírico da pesquisa. Certamente, há uma prevalência aqui dos fotógrafos que
circulam no ambiente digital, em detrimento daqueles cujas atividades passam ao largo destas mídias. Procurando
minimizar esta limitação imposta por minha estratégia de pesquisa online, procurei ouvir também fotógrafos que
lidam com a Internet de maneira bastante mais comedida. Eles aparecerão ao longo da tese.
56
“Me add?”

Já mencionei que em meu primeiro congresso de fotógrafos de casamento me concentrei


nas palestras, deixando em segundo plano meu projeto inicial de abordar potenciais
interlocutores. Também já mencionei a existência de exceções: uma delas foi Letícia e a outra
foi o casal de fotógrafos Luciana e Gabriel Werneck — ambos de pele branca e com idades
que, segundo meus cálculos, deveriam estar em torno dos 30 anos — que, no segundo dia de
congresso, atuaram como palestrantes no Núcleo de Tecnologia.
Assim como ocorreu com Letícia, assisti à palestra dos Werneck com interesse,
suspeitando que uma conversa mais detida com ambos seria particularmente proveitosa para
meu trabalho. Neste caso também, aguardei o final da apresentação para então me aproximar,
falar de minha pesquisa e de meu interesse em ouvi-los um pouco mais. Meu pedido de
entrevista foi acolhido com simpatia e mesmo entusiasmo, de modo que restava apenas
combinar os detalhes do encontro.
Antes que eu pudesse propor um contato posterior por e-mail, Luciana sugeriu, com
smartphone em riste: “Me adiciona no seu Instagram ou seu Facebook.” Aquela tinha sido a
primeira vez de muitas em que ouvi, partindo de potenciais interlocutores, frases como “_me
adiciona”, “me add”, “qual o seu Instagram?”, “vou te procurar no Facebook”. Se para Luciana
(e, posteriormente, para outros interlocutores de pesquisa) esta aproximação via redes sociais
parecia um passo natural no relacionamento que começava a se estabelecer, de minha parte,
estas solicitações causaram certo constrangimento. Refletindo a respeito, constatei que este
incômodo decorria de um certo receio quanto aos possíveis efeitos que o eventual
compartilhamento do conteúdo veiculado por mim em redes sociais poderia provocar sobre a
pesquisa.
Naquele momento eu estava inscrita no Facebook e no Instagram, sendo que minha
participação em cada uma destas mídias possuía características distintas. Embora eu não me
considerasse exatamente uma usuária assídua no Facebook, minhas esparsas manifestações
naquela rede social diziam respeito, basicamente, a meus posicionamentos sobre a conjuntura
política do país. Minha hesitação em permitir que meus interlocutores acessassem tal conteúdo
tinha origem no sentimento de que, diante de um cenário que os meios de comunicação
convencionaram chamar de “polarização política”, minha identificação com uma certa linha
ideológica viesse a dificultar o meu acesso a interlocutores que adotassem posicionamentos

57
políticos opostos36. Já no Instagram, rede social que eu utilizava com maior frequência, eu
veiculava prioritariamente imagens de minha família e casa, produzidas com o intuito de
circulação entre um grupo bastante restrito. Conceder aos meus interlocutores o acesso a estas
imagens, acarretava, para mim, certo prejuízo à minha privacidade.
Ao primeiro pedido realizado por Luciana, mencionado há pouco, reagi de maneira
evasiva. De modo improvisado, tentei desviar o assunto sugerindo que talvez fosse mais simples
uma comunicação pelo WhatsApp. Minha sugestão foi prontamente aceita e me vi livre do
constrangimento de permitir acesso a minhas atividades nas redes sociais. Mais adiante, no
entanto, durante um segundo encontro com Luciana, a solicitação de acesso às minhas redes
sociais voltou a ocorrer. Uma vez que negar o pedido simplesmente não me parecia uma opção
razoável, optei — a contra-gosto — por compartilhar meu Instagram.
Diferente de meu uso pessoal das redes sociais, o de Luciana (e de boa parte de meus
interlocutores, conforme eu viria a descobrir mais tarde) parecia ser calculado para comportar
suas atividades profissionais. Observando as imagens que ela compartilhava, bem como os
textos que as acompanhavam, me parecia evidente que o Instagram37 era utilizado naquele
contexto como uma ferramenta de divulgação de seu trabalho. No caso de Luciana e de seu
marido Gabriel, era visível o notável cuidado com que tratavam esta rede social. Chamava
minha atenção, por exemplo, que as postagens nas duas contas do casal fossem feitas
consecutivamente, muitas vezes de modo complementar. Apenas para citar um exemplo, em
certa ocasião Luciana veiculou no Instagram uma imagem de uma noiva se aprontando para
seu casamento, enquanto Gabriel publicou uma fotografia de seu noivo também durante os
preparativos do ritual. Ambas com apuro estético próprio de imagens produzidas por fotógrafos
profissionais, vieram acompanhadas de legendas (onde lia-se, respectivamente, “Ela” e “Ele”)
seguidas de hashtags idênticas:

[#nome da empresa] #editorial #editorialbuzios #casamentoembuzios #casededia


#casamentoaoarlivre #noivasdebuzios #buzios #casamentosnapraia #casarnapraia
#noivasdobrasil #instacasamento #destinationwedding #instagood

36
Em acordo com a teoria goffmaniana sobre as representações de si (1985 [1956]), eu deduzia que apresentar aos
meus interlocutores o conteúdo de meu perfil do Facebook significava veicular certas informações a meu respeito
que, naquele momento, eu preferia resguardar. Talvez a questão se colocasse em outros termos caso meus
interlocutores propusessem a relação nas redes sociais em outro momento que não o início da interlocução de
pesquisa.
37
Para uma análise mais detida do uso desta rede social em pesquisa etnográfica, recomendo a leitura de Fernandes
(2015).
58
Refletindo sobre as condições de realização de seu trabalho de campo entre habitantes
de Sirkanda, no Himalaia, Gerald Berreman (1975) pondera que a primeira tarefa do etnógrafo
ao chegar no campo é o confronto com sua própria apresentação diante do grupo que pretende
estudar. Neste sentido, o autor argumenta que a interação entre pesquisador e pesquisados
envolve controle de impressões, estas construídas

“a partir do que os indivíduos fazem, assim como do que dizem, tanto em público, isto
é, quando sabem que estão sendo observados, quanto privadamente, isto é, quando
pensam que não estão sendo observados. As tentativas de dar a impressão desejada de
si próprio, e de interpretar com precisão o comportamento e as atitudes dos outros são
uma componente inerente de qualquer interação social e são cruciais para a pesquisa
etnográfica.” (Berreman, 1975, p.125)

Confiando em meu treinamento antropológico, bem como em minha experiência prévia


de pesquisa, me julgava relativamente preparada para o jogo de controle de impressões do qual
trata Berreman. Embora eu tivesse noção de que, tal qual sublinha este autor, o etnógrafo em
campo é observado por seus interlocutores tanto quanto os observa, supus — erroneamente,
como mais tarde se tornaria claro — que minhas atividades em redes sociais estavam inscritas
em uma esfera de minha vida privada que passaria ao largo de minhas atividades de pesquisa.

A primeira experiência de relacionamento online com meus interlocutores deixava clara


a existência de uma assimetria entre nós quanto aos distintos usos de redes sociais, em especial
no que diz respeito ao controle das impressões, para retomar o termo empregado por Berreman.
Se meu uso particular do Instagram se aproximava daquele originalmente previsto por seus
criadores 38 , fotógrafos como Letícia e Gabriel haviam-no convertido em ferramenta de
marketing. Se, para eles, colocar suas contas de Facebook ou Instagram à disposição da
etnógrafa parecia ser ato banal, meu constrangimento colocava em jogo a delicada questão das
fronteiras entre vida pessoal e profissional, entre o público e o privado. Se o tema demandava
reflexão cuidadosa — e portanto, demorada — ela impunha, de imediato, um impasse a ser
resolvido para que eu prosseguisse com a pesquisa, a saber: como lidar então com minhas redes
sociais?

38
“O Instagram é uma rede social que inicialmente pretendia ser um mural de fotos ou de memórias, como antes
era o álbum de fotografias que contava as histórias de famílias, lembranças de viagens, festas, momentos para
serem guardados e revisitados de tempos em tempos” (Fernandes, 2015, p.22)
59
Sem desenvolver uma estratégia clara nos primeiros meses de pesquisa, fui lidando com
a questão de maneira algo atabalhoada. No caso do pedido feito por Luciana, como já indiquei,
acabei permitindo acesso à minha conta do Instagram. Por algum tempo, às sugestões do tipo
“me add” feitas pessoalmente por interlocutores, eu respondia com sorrisos amarelos e
desculpas mal elaboradas como “eu não uso muito o Facebook”. Quando conversava sobre meu
impasse com colegas, algumas vezes ouvi deles a sugestão de criar “um perfil para a pesquisa”
— possibilidade que desconsiderei antecipando os transtornos que a necessidade de gerenciar
duas contas poderia acarretar. Enquanto isso, os novos pedidos de amizades em redes sociais
surgiam e eu, ainda um pouco sem jeito, passei a aceitá-los, tomando o cuidado de reduzir
minhas atividades na rede social — que já eram poucas — a quase nulas. Aquilo que, para mim,
se aproximou de uma espécie de “saída honrosa” surgiu apenas quando decidi eu mesma
aprender a fotografar.

O Projeto 365 e o aprendizado da fotografia

Aprender a fotografar não era algo presente desde o princípio no horizonte de minha
pesquisa. Frequentando eventos voltados a fotógrafos de casamento, observando discussões
travadas em redes sociais, lendo sobre o tema e entrevistando alguns profissionais, eu tinha
clareza de que uma parcela do que eu lia/ouvia era incompreensível39 para mim. No entanto,
pensava eu, esta era uma uma limitação sem muita relevância, uma vez que não era minha
intenção atuar, eu mesma, como fotógrafa de casamento40.
Este cenário começou a mudar à medida que passei a encarar a fotografia como uma
espécie de idioma cultural41, nos termos, por exemplo, do trabalho de Evans-Pritchard (2007

39
Confirmei este fato relendo meu caderno de campo, onde diversas vezes observei que determinadas falas não
eram para mim inteligíveis porque diziam respeito a “questões de técnica”.
40
Meu desinteresse em falar do mundo do trabalho ocupando eu mesma um lugar nele tem algumas razões. Uma
delas era justamente a minha falta de conhecimento técnico, já que não me parecia possível preencher esta lacuna
e viabilizar uma imersão na profissão considerando os prazos para conclusão de um doutorado. Mesmo que eu
conseguisse, se quisesse eu mesma fotografar casamentos, precisaria adquirir equipamento fotográfico, para o qual
seriam necessários recursos financeiros dos quais eu não dispunha. Finalmente, há o fato de que não tinha clareza
quanto ao meu objeto de pesquisa que, no início, era para mim a fotografia de casamento — e não o trabalho do
fotógrafo.
41
Sobre este tema, ver também o trabalho de Wilson (2014 [1954]).

60
[1940]) escrito a partir de pesquisa realizada entre os Nuer42. Tal qual ocorria entre os povos43
estudados por este autor, comecei a perceber que meus interlocutores lançavam mão de um
vocabulário próprio que tanto era capaz de fornecer precisão a determinadas situações práticas,
quanto de estabelecer associações e cumprir funções metafóricas ou mesmo poéticas. No lugar
de falar do gado, meus interlocutores discutiam incessantemente a fotografia — o que incluía
as imagens em si, mas também todo um aparato tecnológico utilizado em sua produção.
Conforme eu avançava no trabalho de campo, se tornava cada vez mais claro para mim que a
fotografia não era apenas o produto a partir do qual fotógrafos de casamento obtinham seu
sustento, mas era em torno dela que organizavam muitas de suas atividades sociais. Para vários
deles “ser fotógrafo” significava encarar o mundo de um modo bastante particular. Era “um
estilo de vida”, como sintetizou certa vez Letícia em uma de nossas conversas.
Considerando que o idioma cultural é “acessível ao aprendizado”, conforme sublinhou
Wilson (2014[1954]), comecei a cogitar então aprender o “idioma fotográfico” compartilhado
por meus interlocutores. Para tanto, era preciso que eu contornasse o que à época me parecia
ser um impedimento importante, a saber: a falta de equipamento fotográfico adequado44. Passei
assim a pesquisar preços e modelos de câmeras, mas o processo se revelou um tanto quanto
complexo. Diante do vertiginoso universo dos tipos de câmeras, lentes e acessórios disponíveis
no mercado, achei por bem recorrer a Letícia. A fotógrafa não só me orientou, como me
encorajou a comprar uma câmera por ocasião de uma viagem ao Exterior que eu faria dentro
de algumas semanas. Percebendo minha hesitação, sobretudo porque ela incorria em gastos
financeiros bastante significativos para mim, Letícia (que àquela altura parecia decidida a me
persuadir) se prontificou a “dar dicas” de fotografia e assegurou que, caso eu me arrependesse,
não teria dificuldades em passar à frente o aparelho sem o risco de perder o dinheiro que nele
eu investisse. Foi o argumento decisivo para que eu comprasse minha Olympus OMD-EM10
mark ii, uma câmera do tipo mirrorless, com sua lente 14-42mm 3.5-5.6.
Além de contar com a luxuosa ajuda de Letícia, foi a partir da leitura de livros e
informações disponíveis na internet que tive acesso ao que frequentemente é conhecido como

42
Evans-Pritchard chega a resumir a ideia de idioma do seguinte modo: “Os Nuer têm tendências para definir
todos os processos e relacionamentos sociais em função do gado. Seu idioma social é um idioma bovino” (p.27)
43
Ver também Evans-Pritchard, 2005 [1937].
44
Isto que eu encarava como impedimento foi mais tarde relativizado por fotógrafos mais experientes que
afirmavam ser possível aprender a fotografar utilizando câmeras simples, tais como as embutidas nos aparelhos
celulares. De qualquer forma, uma câmera um pouco mais sofisticada me permitiria avançar no aprendizado.
61
“os fundamentos da fotografia”. Neste processo de aprendizado, um vocabulário técnico que
inclui termos como “velocidade do obturador”, “abertura do diafragma”, “ISO” e “balanço de
branco” deixou de soar estranho aos meus ouvidos para, pouco a pouco, se tornar bastante
familiar. Quando julguei que o recém-adquirido conhecimento teórico deveria ser posto em
prática, criei uma conta no Instagram (@ctmarins_projeto365) com o compromisso de postar,
diariamente e durante um ano inteiro, fotografias feitas por mim. O Projeto 365 surgiu como
um mecanismo de auto-disciplina, uma vez que eu calculava que se quisesse levar a sério o
aprendizado, eu deveria fazer dele um exercício diário — ainda que em muitos casos isto
tomasse apenas alguns minutos de meus dias.
Minha nova conta de Instagram acabou gerando ainda alguns benefícios suplementares.
Já que eu tinha criado um perfil em rede social que me sentia à vontade para fornecer aos meus
interlocutores, estava solucionado o meu incômodo em relação ao compartilhamento de meus
perfis privados em redes sociais (ainda que eu não tivesse previsto esta possibilidade). O
Projeto 365 acarretou ainda um vínculo com meus interlocutores de natureza inesperada: alguns
deles passaram a submeter espontaneamente minhas imagens a críticas, contribuindo, portanto,
com ensinamentos valiosos, tanto para a pesquisa quanto para minha condição de fotógrafa
neófita.
A meio caminho de concluir meu projeto de postar fotografias diárias, resolvi me
inscrever em um curso livre numa escola de fotografia localizada na Urca, bairro da Zona Sul
do Rio de Janeiro. Embora o curso 45 em questão não fosse relacionado a fotografia de
casamento, ele foi útil para a pesquisa no sentido de me permitir elaborar, a partir do contato
com fotógrafos diversos (tanto professores quanto colegas de curso), um pouco sobre como
meus interlocutores eram vistos fora do circuito da fotografia de casamento.
Adicionalmente, gostaria de dedicar algumas palavras a outra dimensão de meu
aprendizado da fotografia que considero bastante relevante para minha experiência de pesquisa.
Refiro-me aos efeitos que ele produziu sobre meu próprio modo de perceber o mundo visual
que, creio, foi significativamente transformado. Fotografar exigiu de mim, além de empenho

45
O curso intitulado “Básico II – Desenvolvimento da Linguagem Fotográfica” era descrito no site da Escola do
seguinte modo: “Depois de aprenderem a pensar fotograficamente e a se libertarem dos automatismos da câmera
fotográfica no curso Básico I, os alunos serão estimulados no Módulo II a encontrar um caminho pessoal na
fotografia, aprofundando a técnica e linguagem. O curso inclui três saídas práticas com orientação do professor,
sendo uma noturna”.

62
para manusear adequadamente a câmera fotográfica, também um esforço contínuo de
reeducação do olhar seguindo determinadas convenções (Becker, 1974 e 1982) 46 . Com o
compromisso de fotografar todos os dias, passei a incorporar ao meu cotidiano alguns
exercícios que me ajudavam neste sentido: olhar para lugares por onde transitava imaginando
possíveis enquadramentos era um deles. Atentar para as cores e sombras, linhas e formas,
reflexos e contrastes se tornou outra constante. A partir de um determinado momento,
lamentava caso estivesse sem minha câmera, ao identificar uma cena que julgava
“fotografável”. Se, ao contrário, estivesse munida do equipamento e enxergasse uma situação
de luz favorável, parava para capturá-la. Os contrastes entre minhas atitudes ao fotografar e
aquelas de minhas eventuais companhias se tornavam cada vez mais evidentes, tanto no que
diz respeito às escolhas de cenas a serem fotografadas quanto ao modo de executar a captura
da imagem. Dentre as divergências, destacavam-se as diferentes concepções de tempo da
fotografia.
Para a maior parte das pessoas em meu entorno, a fotografia parecia ser algo produzido
instantaneamente, de modo que entre a intenção de fazer uma foto e concluí-la não era
necessário mais que segundos. Para mim, por outro lado, fotografar se tornou ação indissociável
do ato de esperar. Esperar pela luz, esperar que pessoas saíssem ou entrassem no quadro, esperar
por um determinado movimento e assim por diante. Também neste sentido, passei a ver o
trabalho do fotógrafo como algo que não se encerra quando ele captura uma determinada cena
com a câmera, mas prossegue num complexo trabalho de curadoria e edição das imagens.
Ao fim e ao cabo, creio ter conseguido, à minha maneira, apreender determinadas
lógicas nativas incorporando-as a meu próprio sistema de valores e percepção (Magnani, 2009).
Considero que a opção de me submeter ao aprendizado da fotografia (embora sem focalizar
especificamente a fotografia de casamento), de maneira consistente e duradoura foi
fundamental para este processo.

46
Nestes trabalhos que abordam a arte como ação coletiva Becker destaca que as “convenções” consistem no
conjunto de acordos previamente estabelecidos pela rede de indivíduos que participam de uma dada produção
artística.
63
Sobre o trabalho nos casamentos

Desde o início do trabalho de campo, ponderei com hesitação sobre a possibilidade de


acompanhar meus interlocutores durante o seu trabalho em eventos. Embora eu desconfiasse
de que este exercício produziria dados interessantes para a pesquisa (partindo aqui do princípio
que na etnografia, quanto mais melhor) eu também sabia, em decorrência de minha experiência
prévia de pesquisa, que este seria um projeto custoso. Isto porque, após ter acompanhado o
trabalho de alguns cerimonialistas durante os eventos que organizavam, eu já tinha aprendido
que a participação nos casamentos junto aos trabalhadores (ou fornecedores, se quisermos
empregar o termo nativo) era uma experiência de muitas maneiras exaustivas. Era preciso
permanecer longas horas de pé, muitas vezes sentindo fome, frio ou calor e, não menos
importante, era preciso lidar com horas de tédio. Além disso, também por consequência de
minha experiência de pesquisa com os cerimonialistas, eu tinha a impressão que já havia muitas
vezes visto a interação de fotógrafos com os noivos durante rituais matrimoniais e, aos meus
olhos, tudo se tornara um tanto quanto repetitivo: o roteiro pré-estabelecido que incluía a
cerimônia (religiosa ou não), a chegada dos convidados e dos noivos à festa, o brinde, o
banquete, o movimento na pista de dança, o lançamento do buquê, até o gradativo esvaziamento
da festa e seu encerramento despertava em mim uma constante sensação de déjà vu.
Acabei empregando pouco esforço na busca por este tipo de participação no trabalho de
campo. Ainda assim, optei por não desperdiçar duas oportunidades que surgiram ao longo da
pesquisa. A primeira foi apresentada por Alexandre, um fotógrafo de casamento que na ocasião
em que nos conhecemos, logo depois de ouvir sobre minha pesquisa, ofereceu para que eu
acompanhasse sua equipe em um casamento. Aceitei a oferta e em dezembro de 2016 integrei
seu time de fotógrafos, num casamento cuja cerimônia e festejos ocorreram em um salão de
festas localizado no bairro de Vila Valqueire, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A segunda
oportunidade se deu em fevereiro de 2017, com uma segunda vinda de Letícia à cidade para
fotografar um casamento na região da cidade conhecida como Alto da Boa Vista, em meio à
Floresta da Tijuca. Nesta ocasião fui eu quem me ofereci para acompanhar a fotógrafa,
motivada também pelo desejo de fotografar um casamento focalizando, não os noivos, mas os

64
profissionais que atuam no evento47. Considero que ambas as participações nos casamentos48
foram proveitosas para a pesquisa e, ao longo desta tese, certamente aparecerão observações
feitas a partir das duas ocasiões.

Sobre as entrevistas

Na pesquisa que dá origem a esta tese, dediquei uma parte substancial de meus esforços
à realização de entrevistas, apostando que elas funcionariam como instrumentos privilegiados
para pensar nas trajetórias de meus interlocutores, nas maneiras com que estas seriam narradas,
“nas articulações, paralelos ou contradições” (Carriço, 2013, p.351) que eventualmente
pudessem ser estabelecidas entre os discursos dos fotógrafos de casamento e as posições que
estes ocupavam em meu universo de pesquisa.
Sem que eu tivesse estipulado previamente o número de entrevistas formais, acabei
realizando encontros deste tipo com doze fotógrafos de casamento, cujas durações variaram de
cinquenta minutos a quase seis horas. Como não estabeleci critérios claros que guiassem a
escolha de meus entrevistados, as negociações que precederam estes encontros se deram de
modos variados. Dentre os encontros realizados, três foram agendados após eu ter assistido a
palestras ministradas por fotógrafos. Nestes casos, as entrevistas foram motivadas por alguns
aspectos de suas falas que eu julguei serem de interesse para pesquisa. Uma das entrevistas foi
realizada por indicação de uma interlocutora e houve também um caso no qual eu entrevistei
um fotógrafo depois de já ter estabelecido com ele uma interlocução regular ao longo de meses.
A certa altura do trabalho, sem muita clareza ainda a respeito de minhas questões de pesquisa
e do universo que a comporia, fiquei preocupada com o fato de estar deixando de fora fotógrafos
atuantes em contextos outros que não aqueles que integravam os circuitos de eventos tais como
congressos, workshops e premiações. Vali-me então de uma pesquisa no Google e, utilizando
os endereços de e-mail disponíveis nos sites dos fotógrafos, entrei em contato com alguns deles.
Nestes casos, as mensagens que eu enviava tinham sempre o mesmo feitio. Em cerca de cinco

47
Estas fotografias me serviram como trabalho final no curso de fotografia do qual participei como aluna,
conforme já mencionado.
48
De forma complementar, posto que, levando em conta meus interesses de pesquisa, optei por observar,
prioritariamente, a interação dos fotógrafos entre si e não a interação destes profissionais com os noivos.

65
linhas eu me apresentava como antropóloga, falava brevemente de minha pesquisa para então
solicitar um encontro a fim de “conversar um pouco” sobre fotografia de casamento. Diante de
minhas solicitações, todos os fotógrafos aceitaram conceder entrevistas, quase sempre se
prontificando, inclusive, a se deslocar até um local que eu achasse conveniente49.
Além de nenhum dos fotógrafos procurados por mim ter recusado um pedido de
entrevista, quando em nossos encontros, estes conversaram comigo por tanto tempo quanto eu
desejasse. De maneira geral, os profissionais que entrevistei responderam às minhas questões
com eloquência, demonstraram notável boa vontade em colaborar com minha pesquisa. Este
pronto acolhimento às minhas demandas me levou a refletir sobre suas possíveis razões. Sem
descartar que havia na atitude de meus interlocutores uma boa dose de generosidade em
colaborar com a pesquisadora — até então, uma desconhecida, para a maior parte deles —
alguns entrevistados deram sinais de que havia mais em jogo. Neste sentido, a mensagem
sucinta enviada por Fabian em resposta à minha solicitação foi, ao meu ver, bastante
significativa: “Claro Cristina, é só marcar, antropologia e fotografia tem tudo a ver!”. Leonardo,
por sua vez, na ocasião de nosso primeiro encontro, também ponderou sobre a relação entre
antropologia e fotografia estabelecendo conexões, em especial, com o tipo de fotografia que ele
buscava produzir:

Pra ser fotodocumentarista a gente tem que ser um pouco antropólogo. Eu mesmo…
num curso… eu fiz um curso de fotografia em que mandavam a gente ler sobre
antropologia… por que tem muita coisa em comum. Muita coisa mesmo.

A partir de discursos como os de Fabian e Leonardo, me pareceu razoável supor que o


fato de alguns de meus interlocutores nutrirem certa identificação com a antropologia pode ter
facilitado o meu acesso a eles 50 . Por outro lado, não era sempre que meus interlocutores
demonstravam compreender o caráter do trabalho etnográfico. Em duas entrevistas específicas,
me pareceu que diante de minha posição de etnógrafa-entrevistadora alguns deles se mostraram
particularmente cuidadosos em suas falas (um deles chegava ao ponto de se corrigir quando lhe

49
Com a exceção de Seu Pedro e Dona Rosa, dos Werneck e de Mônica, que me receberam em seus espaços de
trabalho (chamados de estúdio, ateliê e escritório, respectivamente) todos os demais entrevistados sugeriram que
as entrevistas ocorressem em lugar público. Shopping center, praça pública, o jardim de um centro cultural, cafés,
restaurante de comida a quilo e lanchonete serviram de cenário para nossas conversas.
50
Algumas situações que vivi fora do circuito dos fotógrafos de casamento (mas ainda dentro do universo da
fotografia) corroboraram esta constatação. Por exemplo, no curso de fotografia que realizei, quando me
apresentava como antropóloga, recebia dos professores claras demonstrações de interesse por minhas atividades
profissionais.
66
escapulia uma gíria, quando em outras situações que não a da entrevista, se expressava de
maneira notadamente coloquial). Eu percebia, a partir de situações deste tipo, que era preciso
lidar com a possibilidade de que, ao menos alguns de meus entrevistados, escolhessem veicular
criteriosamente os discursos que poderiam trazer benefícios aos seus negócios (e que, portanto,
deveriam ser divulgados) em lugar de outros que deveriam ser propositadamente omitidos.
Embora eu não seguisse um roteiro rígido e pré-determinado, procurava conduzir a
conversa partindo dos relatos sobre a entrada dos entrevistados na profissão para, a partir daí,
abordar também outras questões. Antes de cada encontro, eu buscava pesquisar o tanto o quanto
pudesse sobre meus entrevistados — de modo geral, procurando observar com atenção o
conteúdo de seus sites, blogs e redes sociais — a fim de me preparar para a conversa.
Diante de minha declarada inabilidade em tomar notas enquanto converso, todos
permitiram que eu registrasse as entrevistas com o auxílio de um gravador. Durante a etapa de
análise de dados e escrita da tese, tomei o cuidado de transcrever as entrevistas, assim como
diversas outras situações de campo (incluindo trechos de cursos, palestras e premiações).

***

O mais incisivo movimento para a delimitação do espaço empírico da pesquisa é


aquele que, dentre várias possibilidades, escolhe uma determinada alternativa para
estabelecer contatos iniciais no local previamente selecionado, no procedimento
que os antropólogos usualmente denominam “entrada no campo”. Sendo o espaço
da pesquisa, indubitavelmente, teórico, são as questões surgidas no projeto,
anteriores portanto a este movimento, que fornecem as orientações básicas para
instruir tal decisão. Todavia, como sabemos, há muitas etnografias atrás, não há
continuidade perfeita entre projeto e realização. Sob certo ponto de vista, o campo
da pesquisa se impõe tanto ao pesquisador quanto é delimitado por ele, e é
necessário estar atento, registrando e submetendo à reflexão detalhes por vezes
extremamente enfadonhos deste processo que tem a duração da própria pesquisa.
Nesse sentido, a entrada no campo, a par das relevantes consequências que tem
para o trabalho, é apenas o gatilho disparador de um longo processo que se recria
a cada momento. (GUEDES, 1997, pp. 89-90)

O trecho acima reproduzido, retirado de uma etnografia sobre a construção social de


trabalhadores urbanos, joga luz sobre a importância das etapas iniciais da pesquisa de campo
sobre para etapas subsequentes. Ele também evidencia que, antes de se configurar num trabalho
linear, a pesquisa etnográfica percorre caminhos acidentados. Trata-se antes de tudo de um
processo de descobertas, no qual as surpresas encontradas no caminho redefinem,
67
continuamente, os rumos do trabalho de pesquisa. Ao longo deste capítulo, busquei
compartilhar com o leitor meus primeiros passos de pesquisa, optando por apresentar minha
participação no Wedding Brasil 2016 de maneira mais detida por considerar este momento
inicial da pesquisa de grande importância para a sucessão do trabalho. Se não entrei no campo,
no sentido de atravessar fronteiras que delimitam a existência ou o ideal de uma comunidade
hermética e homogênea, e se tampouco existiu um momento exato, um marcador temporal que
separou “estar dentro” do “estar fora” do campo, me parece claro que iniciar o trabalho de
campo pelo Wedding Brasil produziu desdobramentos em toda a pesquisa, tanto em termos
metodológicos quanto analíticos. Ao lançar um olhar retrospectivo sobre minha participação
como congressista no WB, parece-me evidente que este evento constituiu um gatilho disparador
para novas questões de pesquisa.
Na segunda parte deste capítulo introdutório, optei por apresentar ao leitor uma
descrição dos passos seguintes de um trabalho de campo construído, em certa medida, a partir
de práticas heterodoxas (Gupta e Ferguson, 1997, p.19). Espero com isso ter elucidado o
processo que me levou a conjugar estratégias de pesquisa tradicionais (tais como entrevistas e
observação participante) a práticas de pesquisa “alternativas” (op. cit.), notadamente marcadas
pela minha circulação online.
As descrições até aqui apresentadas tangenciam também outras discussões relevantes,
tais como os valores morais suscitados nos discursos de meus interlocutores; o lugar da técnica
na atuação dos fotógrafos; as questões relativas à sua formação e às hierarquias construídas
dentro do universo dos fotógrafos. Decidi aqui priorizar aquelas mais significativas para a
construção progressiva do meu campo, de modo que procurarei adensar a discussão das demais
questões nos capítulos posteriores.

68
Capítulo 2
O fotógrafo como contador de histórias

No capítulo anterior, fiz menção ao meu primeiro encontro com Letícia durante o
Wedding Brasil 2016. Inicio a discussão deste capítulo retomando a palestra ministrada por esta
profissional, em especial um trecho da fala no qual Letícia se deteve sobre uma fotografia de
sua autoria. A imagem exibida pelas telas que ocupavam as laterais do palco, em preto e branco,
trazia em primeiro plano o noivo abraçado à sua mãe: ele de perfil, com os olhos fechados,
enquanto ela, também de olhos cerrados, sorria sem olhar para a lente, aconchegada no peito
do filho. Ao apresentar a fotografia, Letícia explicou que cerca de dois meses antes do
casamento em questão, recebeu um e-mail do noivo, solicitando indicação de uma empresa que
oferecesse serviço de transmissão em vídeo ao vivo. A razão para a demanda era delicada:
queria garantir que a mãe acompanhasse o ritual, posto que sua presença na cerimônia era
incerta por conta de doença grave. Letícia então pôs-se a narrar os desdobramentos da história:

No final ele [o noivo] acabou não contratando o serviço e a mãe conseguiu ir. Eu já
sabia da história. E todo mundo sabia, então assim que ela chegou e todo mundo viu
que ela tinha conseguido ir pro casamento, todo mundo já começou a chorar. Então
assim, foi super emocionante o casamento, a cerimônia toda… eu chorei no dia, eu
chorei editando depois… litros! E aí, uns três meses depois do casamento eu tava
acordando e peguei o celular. Eu ainda estava de olhos meio fechados quando vi essa
mesma foto aparecendo na minha timeline, era um post do noivo. A mãe dele tinha
falecido e ele tinha colocado lá essa foto, se despedindo. [A próxima frase foi proferida
com ênfase] E ele usou a minha foto. Eu passei o dia inteiro chorando. E eu vi, pô,
como é importante isso que a gente faz, né? Alguns meses depois que eles se
recuperaram mais emocionalmente, ele me escreveu um depoimento na minha página
falando que eu fazia milagres fotográficos e que um desses milagres era que pra
sempre ele vai ter o abraço da mãe dele.

Algumas fotos e histórias depois, Letícia prosseguiu com sua reflexão:

Pô, olha como… a importância do que a gente faz. A verdade é que quando a gente
fotografa, a gente não sabe o que vai acontecer. As imagens que a gente faz se tornam
memórias. Eu acredito muito no poder da fotografia… no poder que ela tem em
transportar a gente pra outros lugares, pra outros tempos e pra outras pessoas (…) O
álbum é o primeiro documento da história daquela nova família que tá se formando.
[as telas agora exibem a foto de um bebê olhando para álbum de casamento] Eu vi
essa foto aqui no Facebook que uma noiva postou, essa noiva aí, a Jandira. Ela casou
69
com o Ricardo acho que em 2012, se não me engano. E depois que ela fechou comigo,
ela engravidou. Então ela tava grávida no casamento, grávida de cinco meses do
Guilherme. E ela foi e postou essa foto do Guilherme olhando o álbum de casamento
e ele tá, na verdade, se vendo, né? Então é aquilo que muita gente fala e eu falo
também: porque a gente fotografa não só pra quem tá lá. Porque é muito fácil, já
pensou? A gente foi pra uma festa e a gente vê a foto daquela festa e a gente lembra
como tava a festa. Você lembra o que aconteceu. Então é muito fácil registrar o
momento pra quem tava lá. Mas e pra quem não tava lá? As próximas gerações, quem
vai vir...

Gostaria de chamar atenção para a ênfase com que Letícia atribui ao produto de seu
trabalho valor de memória. Sendo esta relação entre fotografia e memória objeto de reflexão de
diversos pesquisadores51, parece-me pertinente recuperar aqui algumas análises que qualificam
o lugar ocupado pelas fotografias como “suporte da memória familiar”, tal qual aponta Schneid:

As fotografias vão formando o fio da teia, tecendo imagens e recordações que unem o
passado e o presente, ascendentes e descendentes. Esses retratos não apenas se referem
ao passado, mas principalmente produzem pontos de inflexão para a ressignificação das
memórias no presente. (2015, p.25)

Já no trabalho de Schapochnik, as fotografias constituem o registro visual da memória


familiar:

As fotografias são, pois um recurso eminentemente moderno que possibilita a


conservação e a permanência de uma continuidade visual do passado familiar. [...] A
fotografia se afigura um suporte de memória, quando não a própria história visual da
família em que se entrecruzam a vida e a entronização dos mortos. (1998, p. 457 apud
Schneid e Michelon, 2014)

A fotografia de casamento aparece na literatura também como índice e referencial


(Senna, 1999, p.25), como prova concreta da união matrimonial (Mitsi e Souza, 2009, p. 573),
como ato de publicidade da união (Leite, 1993). Ainda segundo Leite, tais imagens “passam a
construir a memória da família, fixando lembranças da crônica oral e registrando para os
descendentes o grande evento matricial” (1993, p.125).
Muito embora estes trabalhos que tratam da fotografia de casamento, quase sempre a
enquadrem num contexto mais amplo das fotografia de família, cabe assinalar que a primeira

51
Ver, por exemplo: Barthes (2015 [1980]), Constable (2006), Dubois (1993 [1990]), Martins (2014) e Mauad
(2008).
70
aparece destacada das demais. Neste sentido, analisando álbuns de família da elite datados entre
a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX, Mauad sublinha que
"dentre todos os ritos da vida católica, o de maior prestígio em termos de representação
fotográfica, é o casamento”. (1998, sem paginação). Já Rendeiro (2018), em dissertação que
enfoca a fotografia familiar no cenário brasileiro da década de 1950, afirma:

“O trabalho de campo revelou que, no universo dos retratos de família, as imagens de


casamento ocupavam espaço para lá de significativo (…) Durante as entrevistas e no
estudo dos acervos particulares que nos foram confiados, as fotografias de casamento
foram destacadas das demais de modo simbólico, despontando como imagens
carregadas de mensagens e de especificidades.” (Rendeiro, 2018, pp.58-59)

Já na década de 1970, a filósofa Susan Sontag (2004 [1977]) chamou a atenção para a
popularização da fotografia a partir da industrialização e do barateamento da câmera
fotográfica, afirmando que a fotografia havia se tornado “um passatempo quase tão difundido
quanto o sexo e a dança” (p.18). Conforme chamam atenção Cunha e Figueiredo (2016), o
movimento do qual tratava Sontag é hoje ainda mais expressivo, posto que nos vemos
“diariamente inundados por imagens a partir de registros das câmeras digitais e celulares de
alta definição” (p.106). A tirinha reproduzida na figura 2.1, encontrada em revista voltada para
segmentos profissionais de fotografia, expõe este processo de popularização da fotografia ao
passo que também ilustra que as fotografias são ordenadas seguindo hierarquias. Tais
hierarquias, por sua vez, revelam que certos eventos são considerados particularmente
importantes de serem lembrados — como bem destacou Cheung (2006, p.21).

Figura 2.1. Fonte: Revista FHOX n˚183, set./out.2016

Tanto a ideia de que a fotografia de casamento ocupa posição elevada dentre as imagens
fotográficas colecionadas por indivíduos e famílias, bem como seu alto valor de memória —
ambos presentes na literatura dedicada à fotografia, como procurei expor nos parágrafos

71
anteriores — também apareceram, de maneira recorrente, nos discursos públicos de meus
interlocutores52. Foi este o caso da fala de Letícia durante sua palestra no Wedding Brasil e
também de um discurso proferido por outro profissional sobre o palco principal do mesmo
evento que, embora já tenha sido mencionado, vale a pena retomar. Na ocasião, dizia o
palestrante:

Nós temos que sair com nossas câmeras, com a nossa máquina do tempo, pra escolher
qual vai ser o tempo que nós vamos parar hoje. O tempo que nós paramos para estas
pessoas é muito importante para elas. As fotos que fazemos não são entregues para os
noivos, elas são entregues para as gerações que estão por vir.

Em texto publicado pelo jornal “O Globo”, tratando das supostas razões que a levaram
trocar a carreira na área de fotojornalismo pela fotografia de casamento, uma profissional que
atuava no segmento compara as duas modalidades de fotografia, apontando vantagem para esta
última:

Nos jornais e revistas, uma fotografia atinge milhares de pessoas, mas essa imagem é
efêmera: no dia seguinte, a notícia já é outra. Já num casamento, as fotos atingem um
pequeno grupo de pessoas. Mas elas são a história de nascimento de uma família e, 50
anos depois, ainda terão um valor inestimável para esses indivíduos. Foi essa visão que
me fez trocar o fotojornalismo pela fotografia de casamentos, em 2004. (Trecho da
coluna “Diário de Carreira”, publicado pelo jornal O Globo em 06/04/2011)

Durante a realização do trabalho de campo, também tive acesso a discursos deste tipo
em podcasts, cursos, textos voltados para fotógrafos de casamento publicados em sites, blogs
e revistas, bem como em redes sociais. Observando os contextos nos quais estes discursos
surgiam e percebendo, em especial, que eles possuíam dimensão pública, comecei a associá-
los a um processo de valorização deste gênero de fotografia e, consequentemente, também do
profissional que a produz. Neste sentido, fotógrafos de casamento se apresentam (ou, em alguns
casos, são apresentados) como aqueles que elaboram uma importante narrativa sobre o ritual,
que constroem “crônicas visuais” (Sontag, 2004 [1977], p.19) sobre as famílias que fotografam

52
Parece-me pertinente apontar também que tais discursos evocam uma reflexão sobre o tempo que remete à
discussão proposta por Leach nos ensaios finais do Rethinking Anthropology (1961). Refiro-me em especial, à
ideia de que a religião ajuda o ser humano a defender-se da sensação de angústia suscitada pela contemplação da
finitude e da morte. Ora, a fotografia de casamento, neste sentido, parece “resolver” a questão da finitude do
evento.
72
ou ainda, conforme meus interlocutores reafirmavam incessantemente: fotógrafos de
casamento seriam contadores de história.
Neste capítulo, pretendo me debruçar sobre o processo de construção da narrativa
fotográfica por parte dos profissionais contratados para se ocupar deste tipo de registro nos ritos
matrimoniais. Neste sentido, pretendo examinar, em especial, a noção de fotojornalismo, que
embora seja tratado aqui como categoria nativa (que, como tal, é investida de significados
específicos ao contexto da pesquisa), tem relação com uma ideia mais ampla encontrada nas
ciências da comunicação de que “o fotojornalismo é a prática de se valer de imagens para contar
histórias” (Avancini, 2011, p.61). Posto que fotografar implica, necessariamente, fazer
escolhas, procuro jogar luz sobre os modos pelos quais fotógrafos de casamento encaram a
seleção — seleção esta que diz respeito àquilo que é ou não fotografado, aos enquadramentos,
às fotografias que são entregues para os noivos, àquelas que compõem os álbuns de casamento
e às que passam a integrar o portfólio do fotógrafos. Finalmente, também procuro compreender
quais são os valores que orientam essas escolhas.

Fotografia de casamento e a abordagem fotojornalística

Certa vez, ouvi um profissional que atua ramo de publicações e eventos voltados a o
segmento de fotografia social dizer que, até a década de 1990, a fotografia de casamento era
“o patinho feio da fotografia”. Segundo ele, há apenas duas décadas, “fotógrafos de casamento
tinham grande dificuldade em obter reconhecimento”. Tratando dos últimos anos, contudo, meu
interlocutor falava em “evolução do mercado” a partir de dois movimentos interligados: o
primeiro deles consistia no substancial aumento do “ticket médio”53 dos fotógrafos atuantes
neste segmento. O segundo dizia respeito ao notável crescimento do número de consumidores
dispostos a contratar os serviços de fotógrafos de casamento profissionais.
A avaliação de que o segmento da fotografia de casamento passou recentemente por
transformações importantes é compartilhada por diversos fotógrafos atuantes nesta área. Em
meu caderno de campo, registrei inúmeras falas a seu respeito. Por exemplo, uma das palestras

53
Cabe notar que eu não costumava ouvir esta expressão partindo dos fotógrafos de casamento. Segundo
informações obtidas no site https://clubesebrae.com.br/blog/ticket-medio-voce-planeja-suas-vendas-com-base-
nesta-metrica (data de acesso: 05/06/2018), “ticket médio” é a métrica que apresenta o valor médio que cada cliente
gasta em um determinado estabelecimento. O valor é determinado pela média entre o montante de suas vendas e
o número de clientes que geraram esse volume de compras.
73
de maior sucesso de público durante o Wedding Brasil foi iniciada com a frase “Nos últimos
anos a fotografia de casamento evoluiu muito no Brasil”. Também segundo minhas notas, no
ano seguinte, em outro evento de grande porte, um palestrante — renomado fotógrafo de
casamento que é também proprietário de uma escola de fotografia famosa entre meus
interlocutores — afirmou que “a fotografia de casamento entrou nos tempos áureos no último
ano”. As mudanças recentes na fotografia de casamento também foram tema de conversa com
Fabian, um de meus entrevistados que atua no setor há cerca de duas décadas. Posto que o relato
de sua trajetória profissional me ajudou a refletir a respeito, recupero parte dele nos parágrafos
a seguir.
Como de costume, iniciei a conversa com meu entrevistado perguntando sobre seu
ingresso na fotografia de casamento. Em sua resposta, Fabian argumentou que se tornou
fotógrafo de casamento “por necessidade”, no final da década de 1990, quando trabalhava em
uma emissora de televisão e “precisava ganhar uma grana extra”. Meu entrevistado contou que,
àquela altura, já sabia fotografar e que lhe pareceu uma boa ideia aplicar seus conhecimentos
aos casamentos:

Eu sabia fotografar, tinha essa coisa assim do fotodocumentário, de fotografar as


coisas acontecendo muito rápido na rua e tal. E eu tava precisando ganhar uma grana
extra porque eu tinha que mudar de apartamento. (…) Eu disse “ah, eu vou fazer uns
casamentos então. Eu fotografo, né? Vou fazer uns casamentos”. Aí conversando com
a pessoa eu mostrava as fotos de rua e falei “então… eu quero fazer isso aí no seu
casamento. Porque eu quando comecei, eu nem sabia. Porque hoje você já deve ter
visto que tem gente que fala de fotojornalismo… tradicional… tem essa divisão, né?
Nessa época eu não sabia, acho que nem existia. Aqui no Rio não tinha muito isso de
fotojornalismo.

Fabian contou ainda que, a fim de atrair uma clientela, anunciou seu trabalho em uma
revista voltada para noivas. Recebeu quatro ligações de potenciais clientes e ao encontrá-los,
admitiu que não tinha experiência em fotografar casamentos. Apresentou então sua proposta
de trabalho “de fotografar o casamento como fotografa a rua”, à época bastante original. A fim
de aumentar suas chances de fechar negócio, ofereceu aos noivos certas condições especiais:

E esse primeiro, que eu não tinha nada, ele fechou uma coisa tipo assim, eu cobrei um
valor… um valor bem pequeno, hoje seria uns mil e poucos reais, eu vou fotografar o
seu casamento e você me paga se você achar que ficou legal. Se não ficou legal, fica
por isso mesmo, eu não te dou as fotos e você não me dá o dinheiro. Foi um negócio
meio maluco e o casal também era meio alternativo. Aí começou…
74
Segundo Fabian, foram três os casamentos fechados a partir deste primeiro anúncio, o
que lhe permitiu construir um portfólio que despertaria a atenção de novos clientes. A partir
daí, sua carreira de fotógrafo de casamento ascendeu rapidamente até o ponto que ele deixou
de encarar o trabalho como uma fonte de renda extra. Meu interlocutor contabilizou cinco anos
entre a data em que fotografou seu primeiro evento e o momento no qual decidiu deixar seu
emprego na emissora de TV para se dedicar exclusivamente à fotografia. O principal critério
para tomar esta decisão, segundo o próprio Fabian, foi a remuneração, pois os casamentos lhe
rendiam consideravelmente mais do que a emissora, “que acabou virando o bico”.
Ao tratar desta etapa de sua trajetória profissional, diversas vezes Fabian fez referências
ao que chamava de “auge do mercado”, “época de ouro” ou “boom”. Neste período, para ele
compreendido entre os anos de 2004 e 2010, a demanda pelos serviços de fotografia menos
tradicionais crescia em ritmo mais acelerado do que o da oferta:

O mercado bombando… até 2004 não tinha muita gente nesse estilo de foto ainda. Em
2004, 2003, já começou a surgir pessoas, entendeu, fotografando também casamento
com essa linguagem diferente. Já começou a ser divulgado mais em revistas… aí
começou a ter essa procura… porque antes tinha procura meio assim,
inconscientemente. Depois ficou assim uma coisa de mercado. O mercado de
casamento institucionalizou que o legal era essa fotografia. Aí as pessoas procuravam
porque era legal essa fotografia. Antes, não. As pessoas procuravam porque não
gostavam da outra, mas não sabiam que existia essa. Eles viam aqueles álbuns caretas,
aquele fundo preto, todo mundo duro… “ai, que feio”. Aí depois essa que virou tipo
assim o mainstream.

Pedi que Fabian me contasse um pouco mais sobre este “estilo”, essa “linguagem” que
começava a surgir. Meu interlocutor então pôs-se a ponderar sobre as mudanças nas fotografias
de casamento e sobre o que rapidamente se tornou conhecido pelos fotógrafos de casamento
como fotojornalismo. Antes que a conversa seguisse a diante, porém, Fabian tomou o cuidado
de sublinhar que ele próprio não se identificava como fotojornalista porque, nos casamentos,
além de produzir fotos que poderiam se enquadrar nesta classificação, fazia também retratos da
noiva, fotografias posadas da família e “todas aquelas fotos mais quadradonas”, conforme
resumiu. Diante de minhas questões, Fabian pontuou que se o fotojornalismo é, ao menos
supostamente, marcado pela ausência de direção, então lhe parecia algo descabido que tantos
profissionais se apresentassem como tal:

75
Ainda mais depois que as pessoas começaram entrar que, tipo assim, usavam esse termo
pra se colocar nesse nicho de mercado, mas nem de longe seguiam. Mas nem de longe!
Nem no making of que é um momento que você não precisava dirigir eles ficavam sem
dirigir.

Outro interlocutor, Leonardo, que além de se apresentar como fotógrafo de casamento,


em determinadas ocasiões se apresentava como fotodocumentarista, durante uma de nossas
conversas, também tratou da oposição entre fotos dirigidas ou posadas e fotojornalismo. Na
ocasião ele explicou, inclusive, como lança mão de algumas estratégias para atrair clientes que
se identificam com este estilo (e repelir aqueles que “não entendem” a abordagem
fotojornalística):

No meu site não tem uma foto posada e… é… por exemplo, não tem uma foto de beijo.
Não tem. Não tem… eu nunca vou deixar o meu site dar uma característica de
tradicional assim ou de conservador nem nada. Então, tudo que você vai ver lá, você
vai ver que tem um quê mais descontraído nas imagens. Sempre solto, loose. Até
algumas noivas… eu já escutei "Ah, você só faz essas fotos meio perdidas”, tipo, que
elas realmente não entenderam a proposta do trabalho.

Ao passo que traz para a discussão a noção de tradição, Leonardo deixa claro que
procura se distanciar dela a partir de seu estilo “mais descontraído” de fotografar casamentos.
Neste sentido, fui gradualmente me dando conta de que fotojornalismo era uma categoria
construída em contraste com outra, muitas vezes denominada fotos tradicionais. A oposição
entre as duas abrigava um vasto léxico que lhes fazia referência e à medida que meus
interlocutores opunham “fotografias de casamento tradicionais” “de antigamente”,
“engessadas”, “quadradonas”, “com aqueles álbuns caretas, aquele fundo preto, todo mundo
duro” a novos estilos de fotografar o ritual “fora da caixinha”, “de um jeito novo”, “solto”,
“espontâneo”, “sem interferência”, passei a encarar o fotojornalismo (e sua variável
fotodocumentarismo) como uma categoria nativa cujos significados deveriam ser explorados
de maneira mais detida.
Se há sinais claros de que este processo de transformação e valorização da fotografia de
casamento se relaciona intimamente aos novos modos de fotografar ritos matrimoniais, o
chamado fotojornalismo parece ter facultado uma rápida ascensão profissional a alguns
fotógrafos. Neste sentido, os discursos de alguns interlocutores — como Leonardo, Fabian e
Letícia — convergem, quando estes afirmam ter sido capazes de se conquistar um “nicho de
mercado” até então pouco explorado. Segundo Letícia:
76
Mas foi uma ascensão muito rápida, eu acho. E, ao mesmo tempo, eu sentia que o
mercado tava querendo alguma coisa diferente. Porque eu entrei… essa minha falta de
conhecimento de casamento, eu não estudava coisa de casamento. Eu não fazia ideia do
que se fazia. Então eu entrei sem estar engessada. (…) Então os primeiros casamentos
que eu fiz, era na fase da transição da fotografia do casamento pro fotojornalismo, entre
aspas o fotojornalismo, eu acho. E eu me sentia muito mais livre, eu não me sentia com
obrigações, eu fotografava o que me chamava atenção, o que dava na telha.

Cada um a sua maneira, fazendo referência ao fotojornalismo, meus interlocutores


estabeleciam uma relação entre a prática de fotografar casamentos e o abandono (ao menos
parcial) das poses, para então efetuar um investimento em fotografias que dialogam, em alguma
medida, com a deontologia do fazer jornalístico. Sem necessariamente lançar mão deste
vocabulário, Leonardo — que conheci na ocasião em que ministrava uma palestra intitulada
“Fotografia documental: a importância de fotografar verdades” — foi meu interlocutor que, de
maneira mais enfática, dizia perseguir valores como imparcialidade, neutralidade e
objetividade. Era o que eu constatava quando o ouvia dizer à plateia, por exemplo:

Eu às vezes perco foto. Se eu estou mal posicionado para fotografar o brinde


[momento ritual que, segundo minha interpretação, é realizado quase que
exclusivamente visando os registros fotográficos] eu perco e passo pra frente. Tem
gente que pede para fazer de novo. Eu assumo o erro e não interfiro.

Se “não interferir” e “contar a verdade” constituem uma espécie de ideal54 perseguido


por fotógrafos de casamento de algum modo identificados com a abordagem fotojornalística,
há uma categoria, em especial, que me parece central na construção de suas práticas. Refiro-me
àquilo que meus interlocutores costumam identificar como momento — uma categoria que, ao
meu ver, está estreitamente relacionada com a noção de instante ou momento decisivo, por sua
vez, associada à fotografia de Cartier-Bresson, fotógrafo francês cujo trabalho foi responsável
por uma “reviravolta conceitual” no campo do fotojornalismo, segundo argumenta Avancini:

54
Se, em conformidade com a observação de Carriço, “explicitar e explorar as contradições de um imaginário
ideal” constitui “uma das maiores potencialidades de se trabalhar a produção de conhecimento etnográfico não
apenas através de entrevistas formais ou de abstrações discursivas, mas no contexto da interação” (2017, pp.21-
22), acompanhar Leonardo durante seu trabalho em um casamento, permitiu que eu percebesse a existência de
uma distância entre a prática e o ideal. Neste sentido, lembro-me, em especial, que uma de suas primeiras
providências assim que entramos na suíte onde se aprontava a noiva, foi de acender a luz de um abajur, interferindo,
portanto, nas condições de iluminação do local.
77
Essa reviravolta conceitual se traduz pela prática de fixar fotograficamente, em lugar
público, um instante preciso no ápice do movimento, e que nunca mais se repete.
(…) O fotógrafo francês se tornou célebre pelo “momento-decisivo” de uma imagem
em preto-e-branco, que registra o perfil de um homem de chapéu, pulando sobre um
espelho d’água ao lado da Gare Saint-Lazare (1932), na Place de l’Europe, em Paris.
Salto flagrado no ar que recria, em direção contrária, o da acrobata do cartaz
desenhado do circo Railowsky (colado ao muro). Na fotografia, há muitas grades e
a sensação da liberdade em pleno momento histórico do entre-guerras. (…) Trazendo
elementos da narrativa jornalística, Cartier-Bresson começou a lidar
simultaneamente com o acaso, o fugidio, a organização estética, o senso de humor,
o poético, a crítica, a denúncia, o lugar desprezado, o periférico do acontecimento.
Essa linguagem voltou-se para o ato de fotografar sob a forma de uma reflexão
despretensiosa, sendo precursora da reportagem fotográfica: produzir fatos da
atualidade em visualidades sequenciais de modo não homogêneo. Ou seja,
contribuiu para deixar de lado o padrão ou clichê da fotografia de imprensa,
promovendo um diferencial no jornalismo visual: a fotografia informativa (e não
apenas a fotografia ilustrativa, cuja legenda ainda faz indicar um caminho único de
leitura). (…) Cartier-Bresson deu contribuição preciosa à reportagem fotográfica,
lidando esteticamente com a justaposição de dois ou mais fragmentos
(aparentemente incoerentes) em conjunto de imagens ou em fotografia única. Não
por acaso, o fotógrafo francês se considerava um artesão, traçou um paralelo entre o
fazer imagens e o construir belas cadeiras. Quando a oportunidade e a
disponibilidade chegavam, não eram desperdiçadas: momento de apontar a câmera.
“Eu não procuro jamais fazer a grande foto, é a grande foto que se oferece”
(CARTIER-BRESSON, 1994). (Avancini, 2011, pp.59-61)

Nas palestras e cursos que assisti durante o trabalho campo, uma das principais
recomendações dos fotógrafos-palestrantes à plateia, era a de procurar tomar o trabalho de
“fotógrafos de outras áreas” como fonte de inspiração para a o trabalho nos casamentos. Este
conselho — que de tão frequente, foi classificado por uma de minhas interlocutoras como
“modismo” — era acompanhado do argumento de que, familiarizar-se com as fotografias
produzidas pelos grandes mestres, permitiria que fotógrafos de casamento “desenvolvessem
sua bagagem visual”, e “elevassem o nível das fotografias” que produziam. Dentre os grandes
mestres citados, provavelmente o mais popular era Cartier-Bresson.
Se o momento — uma categoria quase onipresente em meu universo de pesquisa — é
ou não herdeiro direto do momento decisivo que teria tornado célebre Cartier-Bresson, talvez
seja algo passível de discussão. Mas fato é que a análise de Avancini, em diversos aspectos, se
aplica ao universo que pesquiso. “Fixar fotograficamente um instante preciso no ápice do
movimento”; “lidar simultaneamente com o acaso, o fugidio, a organização estética, o senso de

78
humor, o poético”; assim como lidar “esteticamente com a justaposição de dois ou mais
fragmentos (aparentemente incoerentes) em conjunto de imagens ou em fotografia única” eram
práticas altamente valorizadas por meus interlocutores. A figura 2.2, que apresenta uma
fotografia de minha autoria 55 parece, ao menos por alguns de seus aspectos, incorporar
características associadas à noção de momento decisivo. Penso nisto, em especial, levando em
conta a avaliação de Letícia, que destacou esta, dentre dezenas de outras fotos que eu tinha feito
logo assim que comprei minha câmera:

Figura 2.2: Imagem capturada em 27/07/2016

Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 19:33 UTC-03


essa foi a que mais gostei, que poderia ser de qualquer fotógrafo com 10 ou 30 anos de
experiencia
(…)
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 19:36 UTC-03
o nosso olho vai primeiro pro vermelho, que é uma cor que chama MUITO a atenção
(almodóvar <3). e é a única cor forte da cena. ali temos um grupo de pessoas que estão
praticando uma ação, ajeitando a noiva. depois vemos que tem outro grupo passando que
se conecta com aquele também, pq estão todas olhando pra moça de vermelho. e tudo
isso com o background bem encaixadinho e horizonte reto

55
Idealmente, em lugar de utilizar uma fotografia de minha autoria, eu utilizaria uma feita por meus interlocutores
durante um rito matrimonial. Optei, contudo, por não o fazer em coerência com minha decisão de proteger as
identidades dos fotógrafos que participaram desta pesquisa.
79
Uma rápida consulta a sites de associações de fotógrafos de casamento (tanto nacionais
quanto internacionais), revela que o conjunto de características apontado por Letícia, estas por
sua vez em consonância com aquelas atribuídas ao momento decisivo bressoniano, longe de
configurar uma questão de gosto pessoal, é antes valorizado pelo universo mais amplo dos
fotógrafos de casamento do qual ela faz parte. Não por acaso, uma rápida consulta a sites de
associações de fotógrafos — sejam elas nacionais ou internacionais — revela que fotos com
estas características são valorizadas ao ponto de serem, com grande recorrência, contempladas
com prêmios.
Não obstante, estou bem certa de que os momentos aos quais se referem meus
interlocutores não correspondem rigorosamente à noção de momento decisivo do
fotojornalismo. Ao contrário, penso que no contexto de minhas pesquisas, momento assume
contornos específicos. Em primeiro lugar, momento é uma categoria que possui um valor
intrínseco para o fotógrafo e, idealmente, também para os noivos. Quando entrevistei Letícia,
ela não apenas sugeriu que este valor era compartilhado por ela e seus clientes, como também
assinalou que esta é uma espécie de marca distintiva de seu trabalho, de modo que é contratada
por seus clientes justamente por conta desta habilidade:

Eu me dei conta que as pessoas me procuravam pela foto de momentos que eu sou
capaz de fazer. A maior característica do meu trabalho é, assim, o momento, o
milésimo de segundo exato que a pessoa tem mais emoção, assim.

Fabian, por outro lado, na ocasião de nosso encontro, procurou dar ênfase a certas
restrições que o trabalho nos casamentos impõe ao fotógrafo. Ainda que ele indicasse
predileção por registrar a cerimônia e os festejos de casamento, por se tratarem de situações em
que predominam a espontaneidade e não a pose, ele expunha que a atividade de fotografar
casamento, por mais livre que seja, está cerceada pelos desejos de seus contratantes e pelo seu
próprio caráter documental:

Cara, tem que ter a foto de família! E se não aparecer alguém? A vó gosta de ter aquela
foto, né, mais quadradona… é um registro assim histórico da coisa. Não é a parte da
arte, do documentário. Eu acho que tudo isso se completa.

A busca pelo momento também pode ser encarada como uma espécie de compensação
por um trabalho mais repetitivo, ou ainda, em alguns casos como o de Bárbara e Leonardo, uma

80
importante motivação para prosseguirem atuando como fotógrafos de casamento. Neste
sentido, atentemos para o seguinte trecho da entrevista feita com Bárbara:

Bárbara: Mas a gente consegue uns momentozinhos desses no casamento e pra mim é o
que faz continuar.
Cristina: Momentozinhos?
Bárbara: Que a gente consegue isso, assim, total espontaneidade. Liberdade…
fotojornalismo puro, sem interferência nenhuma. Aquilo ali, assim, é muito difícil. Mas
aquilo ali é a noiva sem máscara nenhuma, é a irmã sem máscara nenhuma. Então é por
isso que eu gosto tanto da festa. Normalmente é a hora que tá todo mundo sem máscara.

Também em conversa travada com Letícia, emerge esta ideia de que o momento buscado
pelo fotógrafo constitui a expressão do real, “sem interferência” e “sem máscaras” como
assinalou Bárbara. No discurso de Letícia, contudo, emergem sinais de que a “busca pelo real”
corresponde a um ideal que, embora perseguido pelos fotógrafos de casamento, observa certos
limites:

Cristina Marins, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:09 UTC-03


vejo as pessoas dizendo que procuram um momento.. você diria isso?
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:10 UTC-03
acho que a abordagem 'fotojornalística' de um casamento é baseada nisso.. na busca por
momentos
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:11 UTC-03
não só busca, no sentido de sair caçando momentos (o q rola também), mas as vezes eles
simplesmente aparecem na sua frente, sem vc estar buscando
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:11 UTC-03
mas só percebe ele quem tá atento
(…)
Cristina Marins, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:13 UTC-03
mas você não se define como "fotojornalista", né?
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:13 UTC-03
eu prefiro não definir nada, rs
Cristina Marins, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:14 UTC-03
sim, você já me disse isso
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:14 UTC-03
o q eu faço é isso, quem gosta me contrata, e pronto.. povo tem mania de botar nome pra
tudo
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:14 UTC-03
mas sendo menos radical
Cristina Marins, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:14 UTC-03
hahaha
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:14 UTC-03
81
a minha abordagem é fotojornalística sim
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:15 UTC-03
no sentido de que me coloco ali como uma testemunha ocular, não interferindo
(propositalmente) em nenhuma situação durante todo o desenrolar do dia do casamento
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:15 UTC-03
o máximo que posso
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:16 UTC-03
mas uma vez perdida, se tem, sei lá, uma porra dum spray do maquiador e eu não
consegui compor minha foto de nenhuma forma que ele não atrapalhe, vou lá e mudo de
lugar
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:17 UTC-03
os sprays tão cada vez mais enormes
(…)
Cristina Marins, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:17 UTC-03
muda o spray de lugar?
Letícia Katz, Quinta, 1 de setembro de 2016 às 20:18 UTC-03
sim, pra tirar da minha foto rs

Confiro destaque, em especial, ao fato de que Letícia caracteriza a abordagem


fotojornalística como aquela na qual não há interferência proposital. A expressão de Letícia, na
mensagem colocada entre parênteses, admite interferências de outras naturezas. Esta
observação, aqui registrada de maneira um tanto sutil, aponta para a ideia de que a fotografia
de casamento, como outros tipos de fotografia, é uma representação social no sentido assinalado
por Martins (2002) que recusa a ideia de que a fotografia congela um instante de maneira
objetiva para apontar que ela carrega, necessariamente, a perspectiva do fotógrafo, “um modo
de ver que está referido a situações e significados (…) referido à própria e peculiar inserção do
fotógrafo no mundo social” (p.223). Destaca-se, assim, o caráter interpretativo e propositivo do
trabalho do fotógrafo de casamento que não se encerra no ato de fotografar propriamente dito,
mas se debruça sobre a etapa seguinte de sua atividade, sobre a qual tratarei a seguir.

O Wedding Best e um pouco mais sobre contar histórias

Em março de 2017, já na etapa final de meu trabalho de campo, retornei à cidade de São
Paulo para acompanhar mais um evento voltado a fotógrafos profissionais, o congresso
Fotografar. Assim como no caso do Wedding Brasil, os organizadores do Fotografar também
apresentavam o evento de modo superlativo — tratava-se do “maior evento de imagem da
América Latina”, segundo descrição em sua home page. Contudo, havia, já à primeira vista,

82
Figura 2.3: Material promocional da edição de 2017 do
evento Fotografar. Fonte: Instagram

uma diferença entre os dois congressos em termos de organização: os três dias do Fotografar
eram divididos segundo áreas da fotografia social. Assim, a terça-feira seria dedicada aos
casamentos, a quarta, à fotografia de família e a quinta-feira, ao segmento conhecido como
newborn56.

Minha participação no evento foi consequência de algumas conversas que tive com
Henrique, sócio proprietário de uma revista voltada a fotógrafos profissionais e um dos
principais organizadores do Fotografar, que conheci por ocasião de minha viagem a Camboriú.
O empresário, que demonstrou grande interesse na pesquisa que eu vinha realizando, ouviu
sobre a tese que eu me propunha a escrever e replicou que participar do Fotografar seria de
grande proveito para meu trabalho. Elaborando críticas a outros eventos voltados a fotógrafos
de casamento, ele apresentou aquilo que chamava de “diferenciais” do congresso que
organizava em relação aos demais (alguns dos quais aparecem resumidos na figura 2.3).
Henrique acrescentou também que, caso tivesse interesse, ele providenciaria os passes para o
evento de modo que eu participasse dele como sua convidada — oferta que aceitei de bom
grado.
Dentre as atividades do congresso Fotografar expostas por Henrique, havia uma da qual
ele parecia se orgulhar em especial. Tratava-se do Wedding Best, um concurso organizado em

56
É denominada newborn a modalidade da fotografia social que retrata bebês recém-nascidos.
83
parceria com uma empresa de encadernação, que premiava os três “melhores álbuns de
casamento do Brasil”. Em 2017 o prêmio entraria em sua sexta edição e os vencedores seriam
anunciados durante um coquetel ao final da “super terça” — o dia do congresso dedicado aos
casamentos. Sabendo que o julgamento seria feito em etapas, perguntei a Henrique sobre a
possibilidade de eu acompanhar de perto o julgamento. Minha demanda foi prontamente
acolhida e na segunda-feira que antecedeu o anúncio dos ganhadores, me juntei aos
organizadores e jurados em reunião que determinaria a classificação final dos concorrentes.
No horário marcado, cheguei na companhia de Letícia ao espaço onde ocorreria o
julgamento e onde, no dia seguinte, se desenrolariam algumas atividades do congresso.
Encontramos um espaço bem iluminado que recebia os últimos arremates para o evento. Ao
fundo do amplo salão, havia um painel preto onde se lia a inscrição “Wedding Best Gallery
2017”. Nele, encontravam-se penduradas, simetricamente, fotografias produzidas pelos trinta
finalistas ao prêmio — fotógrafos estes cujos nomes eram, em grande parte, familiares para
mim àquela altura.
Diante do painel que exibia as fotografias, havia três ou quatro mesas em madeira escura
que, enfileiradas, davam a impressão de formar um só móvel que devia alcançar quase dez
metros de comprimento. Sobre as mesas robustas e lustrosas, repousavam os doze álbuns
finalistas, todos eles pesados e com aparência vistosa. Caleb, o proprietário da encadernadora
que organizava a premiação em parceria com a empresa de Henrique, estava presente e
aproveitava a oportunidade para discorrer diante dos jurados a respeito da qualidade do
material, dos acabamentos e impressão dos álbuns — que dizia ser excepcional. Além deste,
participavam da reunião também Henrique, seu sócio Pedro e os quatro jurados que incluíam,
além de Letícia, Jéssica (fotógrafa de casamento que no dia seguinte atuaria como palestrante
do congresso), Hannah (fotógrafa americana, também convidada para ministrar palestra no
evento) e Carlos (jornalista que, pelo que pude perceber, era o membro do júri menos
familiarizado com fotografias de casamento).
Coube aos organizadores dar início ao julgamento distribuindo aos jurados três
cadernetas nas quais deveriam ser anotadas as notas correspondentes a cada álbum. Ora em
inglês, ora em português, foram anunciados os critérios que deveriam ser considerados:

84
composição, aspectos técnicos, emoção, storytelling e layout57. Caleb esclareceu ainda que as
capas dos álbuns não deveriam ser julgadas posto que estas eram sua criação, mas que a escolha
das fotografias e a diagramação, estas eram de inteira responsabilidade de seus autores não
havendo sofrido, sequer, interferência dos noivos ali retratados — já que aqueles álbuns tinham
sido elaborados especialmente para o concurso e não necessariamente correspondiam àqueles
entregues aos noivos que contrataram os fotógrafos participantes. “Foi dada a largada” e “take
your time”58 foram as expressões utilizadas por Caleb para que os jurados iniciassem a análise
dos álbuns. Em ritmos diferentes, os jurados começaram a manusear os álbuns com cuidado,
encostando de leve nas bordas de suas páginas rígidas. Eles realizaram a tarefa em ritmos
diferentes havendo quem tomasse uma quantidade considerável de notas a cada página e quem
se limitasse a fazer uma ou outra anotação rápida ao final de cada álbum. Volta e meia, o
silêncio dos jurados era quebrado por algum comentário — que nesta etapa, partia mais
frequentemente de Letícia e Jéssica. “Por que seis fotos da noiva pendurando o vestido?”,
questionava uma delas. “Não aguento mais ver gente se vestindo”, ouvi minutos mais tarde.
Após cerca de uma hora de análise, os jurados passaram a exibir os primeiros sinais de
cansaço. Apesar disso, posto que a escala para atribuição de notas não foi observada de maneira
uniforme por todos os jurados (o que, segundo minha interpretação, se deveu ao fato de a
tradução das instruções iniciais terem sido problemáticas) eles ainda deveriam discutir antes de
entrar em consenso. Aquilo que se traduzia em mais trabalho para os organizadores, se
apresentava para mim como uma oportunidade preciosa de ter acesso as ponderações dos
jurados. “A maioria dos álbuns, se tivesse menos fotos, seria mais consistente” dizia uma das
fotógrafas.
A necessidade de selecionar melhor as fotos tornou-se o principal tema de debate entre
as fotógrafas juradas. Já o jornalista dava sinais claros de exaustão, tendo, inclusive, sugerido
aos organizadores que fizessem nova tentativa de efetuar uma adição numérica a fim de resolver
logo o imbróglio. As fotógrafas, por outro lado, pareciam se animar com o debate e Hannah

57
Uma vez que não vieram acompanhados de explicação, supus que os jurados tivessem familiaridade com os
termos em inglês. Tampouco eu, àquela altura, os estranhei. Levando em conta o que aprendi ao longo do trabalho
de campo, entendo que eles diziam respeito, respectivamente, à escolha das fotografias que comporiam o álbum
(incluindo seu ordenamento) e à diagramação.
58
Dali para frente, boa parte dos diálogos ocorreram em inglês. A fim de facilitar a leitura optei por traduzi-los
diretamente.

85
defendeu aquele que parecia ser seu favorito: “dá pra ver que o casal está apaixonado e dá pra
ver suas personalidades já na primeira página”, justificou. Jéssica, respondeu: “Eu gosto, é
divertido, é simples, mas eu não gosto de só aparecerem os noivos nele”. Um dos álbuns foi
deixado de lado da competição sob a alegação de que ele reunia fotos demais de detalhes59.
Outro saiu do páreo porque seu autor “pesou a mão” nas fotografias em preto-e-branco, o que,
para uma das juradas, atrapalhava a apreciação. Num diálogo que julguei particularmente
interessante, uma das juradas argumentava que um dos álbuns deveria ser eleito vencedor
porque era “o mais verdadeiro”, enquanto os demais eram "excessivamente fake”. Ao que sua
colega respondeu: “Todo casamento é fake, é só ver como as pessoas estão vestidas”,
provocando a tréplica: “Pode até ser. Mas estes noivos aqui são os melhores atores”.
Se a seleção se delineava no debate das fotógrafas juradas como o critério preponderante
(e também o mais problemático) para o veredicto sobre os melhores álbuns, Carlos, o jornalista
que participava do júri, demonstrava não compartilhar da mesma preocupação. Em vão, ele
ensaiou a sugestão de que o prêmio fosse concedido ao único “álbum conceitual” que
participava do concurso.
Já passava das dez da noite quando as juradas, finalmente, começaram a convergir em
torno de um álbum. Com as seguintes frases, elas determinaram o vencedor:

_Eu acho que este conta a história muito bem.


_Este não é o melhor fotógrafo, mas ele produziu a melhor história.
_Eu acho que, de todos, este é o mais consistente.
_A história conta mais que o resto.

***

Oito meses antes do julgamento do Wedding Best, em julho de 2016, comprei minha
câmera fotográfica durante uma viagem com o intuito de apreender a fotografar. De posse de
meu novo equipamento, passei a circular pela cidade que eu visitava na condição de turista
produzindo registros fotográficos — tarefa que procurei realizar com afinco. Assim, tomei o
cuidado de ajustar a câmera para que as fotografias fossem feitas no modo manual, me forçando
assim a explorar as possibilidades que o dispositivo oferecia. Além disso, o tempo todo eu

59
Detalhe, este contexto, diz respeito às fotografias “fechadas” em determinados elementos rituais. Fotografias
das alianças ou de uma parte específica do vestido da noiva, por exemplo, costumam ser chamadas de “detalhes”.

86
procurava me lembrar dos ensinamentos obtidos através da leitura de um livro introdutório60,
atentando assim para a exposição e empregando cuidado na composição das fotografias. Ao
final de três dias, resolvi compartilhar minhas fotos com Letícia e dada a facilidade permitida
por aplicativos de troca de mensagens, mantivemos contato intensivo durante minha viagem.
Considerei a reação de minha interlocutora bastante animadora. Não sei ao certo se por
convicção ou por didática, mas fato é que a primeira avaliação que Letícia fez de minhas
fotografias foi um tanto quanto positiva, de modo geral e não lhe faltaram elogios. Um de meus
méritos, segundo seu julgamento, era já ter alguma noção da importância da seleção — o que
segundo ela, era um problema mesmo para os fotógrafos cujo trabalho ela avaliava:

Cristina Marins, Quarta, 27 de julho de 2016 às 18:48 UTC-03


Acabei de compartilhar com você as primeiras fotos que tirei =^^=
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 19:26 UTC-03
tem umas bem legais
(…)
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 19:29 UTC-03
no geral gostei de ver que vc já se preocupa com a composição. no começo as pessoas
tendem a ficar só brincando de florzinha com fundo desfocado (eu vi que tem uma, é
normal! rs <3), enquanto tenta acertar a exposição
Cristina Marins, Quarta, 27 de julho de 2016 às 19:30 UTC-03
Fiz várias de florzinha, resolvi te poupar !!!
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 19:32 UTC-03
o que é ótimo também! pq vc já tem a noção de que a gente pode fazer todas as merdas
que quiser, mas o que a gente publica é o que importa. a maioria dos fotógrafos não
sabe selecionar. selecionar é uma arte <3

Saber selecionar, prosseguia Letícia, embora fosse algo negligenciado por muitos de
seus colegas, era de suma importância para o trabalho do fotógrafo. Demonstrando o quanto
esta era uma questão a ser aprendida, às vezes por fotógrafos experientes, ela contava tratar
frequentemente do tema em suas atividades de ensino, tendo inclusive adotado como lema a
frase: “ou soma ou some”. A sensibilidade para separar os elementos que devem ser
conservados e aqueles a serem descartados, acrescentava, “serve pra elementos dentro de uma
foto, pra edição (seleção de fotos), e pra vida”.
Como procurei evidenciar ao descrever a reunião de julgamento dos álbuns de

60
Ao leitor eventualmente interessado, quase tudo do que aprendi sobre os chamados “fundamentos da fotografia”
foi através do excelente livro “Dicas de fotografia” (2015) de autoria de Claudia Regina com ilustrações de Sil
Takazaki, disponibilizado no link http://www.dicasdefotografia.com.br/dicas-de-fotografia-ebook-gratis/.
87
casamento na etapa final do Wedding Best, o reconhecimento da importância (quiçá, da
centralidade) da seleção das fotografias era unânime entre as fotógrafas juradas. Mas estou
convencida também de que este reconhecimento era compartilhado por um universo mais
amplo de fotógrafos de casamento — inclusive, pelos fotógrafos que concorriam ao prêmio,
mas que frustraram as expectativas das juradas em relação a este item61. Não por acaso, os
62
organizadores do concurso estabeleceram storytelling como como elemento a ser
obrigatoriamente avaliado.
Segundo minha interpretação, o que estava em jogo na reunião de julgamento do
Wedding Best não era tanto se os concorrentes concebiam a capacidade de contar histórias como
algo importante nos álbuns que produziram. O que sobressaía ali era a multiplicidade de
perspectivas dos fotógrafos, ou seja, o fato de estes profissionais sustentarem posições
dissonantes em relação às histórias que eles concebem como dignas de serem contadas. Mesmo
dentro do pequeno grupo de fotógrafas juradas, estas diferentes perspectivas vieram à tona.
Parece-me que foi por esta razão que o álbum considerado favorito por Hannah (que exaltava a
ideia de que as fotografias em questão exprimiam as personalidades dos noivos), foi preterido
por Jessica (que achava o álbum excessivamente centrado nos noivos).
Evidencia-se, assim, que fotografias de casamento, tais quais os noticiários analisados
por Silva (2010) e os textos etnográficos, objeto de interesse de Geertz (2011[1973]), são
ficções “no sentido de que são ‘algo construído’ (…) não que sejam falsas, não factuais ou
apenas experimentos de pensamento” (op.cit., p.11). Assim sendo, a produção de um álbum de
casamento não corresponde a uma representação objetiva da verdade, mas a uma construção
entre várias possíveis.
Em trabalho etnográfico interessado no processo de construção dos significados da
noção de violência urbana em um jornal de grande circulação diária, Silva (2010) aponta que a
produção de notícias tende a se desenvolver levando em conta expectativas e áreas de interesse

61
Isto não é inteiramente uma suposição, mas uma constatação a partir de um acompanhamento mais longo do
trabalho dos fotógrafos concorrentes (já que boa parte deles eu conhecia por conta de meu trânsito em ambientes
online), que demonstravam dedicar considerável energia à seleção, não só das fotografias que compõem o álbum,
mas também daquilo que merece ser fotografado.
62
Inúmeras vezes me deparei com o termo em inglês durante o trabalho de campo, assim como foi extremamente
comum ouvir os fotógrafos de casamento referirem-se a si mesmos como “contadores de histórias”. Menos do que
elaborar uma tradução para storytelling, interessa-me aqui esclarecer o leitor acerca do significado atribuído ao
termo segundo seu uso “nativo” (que, neste sentido, aproxima-se da sua versão em português). Ele diz respeito à
capacidade de um determinado fotógrafo de narrar a história do casal ou do dia da celebração de seu casamento
através das imagens que produz.
88
de um público específico (p.96). Assim, o autor argumenta que os jornalistas buscam elaborar
as notícias ajustando-se ao “horizonte de expectativas” (Bourdieu, apud. Silva, 1998) da
maioria dos leitores do jornal. Algo semelhante pode ser dito em relação aos fotógrafos de
casamento. Desde o início da pesquisa, me parecia evidente que estes profissionais orientam
seu trabalho levando em conta as expectativas e interesses de seus clientes, isto é, os noivos
(sendo que em certos casos notava-se que as expectativas das noivas, em especial, eram
centrais). Neste sentido, atentemos para o seguinte trecho de minha conversa com Fabian:

Fabian: Antigamente eu fazia mais fotos fora do casamento ali… então eu fazia foto do
garçom trabalhando na cozinha, umas coisas meio doidas [Fabian ri]. É, mas depois com
o tempo, eu comecei a falar “ah, isso aqui não tem nada a ver”. Eu fazia umas fotos legais
de garçom, mas eu não usava, as noivas não usavam. E hoje… não é que assim eu
fotografe no automático, mas eu já sei mais ou menos o que funciona. Então eu fico
circulando ali naquela coisa que é a minha criatividade, mas eu não preciso ficar correndo
atrás de muita coisa que eu acho que não vai usar. Que é quando sai muito da noiva. Eu
não sei… antes eu ia fazer foto de noivo no banheiro, eu ia atrás do noivo no banheiro!
Entendeu? Já fiz foto de noivo sendo carregado no banheiro. Mas não faço, antes eu fazia
umas coisas bizarras [risos].
Cristina: O que é uma foto que funciona… uma foto que vai ou não ser usada?
Fabian: (…) A foto que é usável é mais o que gira em torno do casal, né? Do casal e da
família mais próxima do casal. Acho que isso é o que todo casal dá preferência. E uma
coisa ou outra que seja diferente… ah, eu já vi umas fotos que eu nunca imaginei que
seriam usadas e que foram usadas. Mas de uma forma mais pontual, né? Tipo assim,
fotografei um pé sujo. O pé sujo era do pajem, entendeu? Mas só aparece o pé sujo e a
perna dele caindo assim do sofá. Aí uma noiva usou no álbum. Foi uma foto grande em
uma página de um lado com o pajem também e essa pequena, como contraponto. Acabou
que ela usou, entendeu, acontece… Porque essa foto vai entrar na minha sugestão. Apesar
de eu achar que essa pessoa não use, ela vai estar na minha sugestão. As fotos que eu
acho legais sempre entram na minha sugestão.

A partir da fala de Fabian, compreendi que este profissional leva em conta as


expectativas de seus clientes além de nutrir uma espécie de relação dialética com os noivos à
medida que as manifestações destes sobre as fotografias produzidas por ocasião de seus
casamentos acabam orientando os registros a serem efetuados pelo fotógrafo no futuro.
Segundo me explicou Fabian, o momento privilegiado para esta avaliação é a entrega do álbum

89
que segue um roteiro específico63. Deste modo, as “fotos que funcionam” eram aquelas eleitas
pelos noivos para integrar o álbum de casamento.
A ideia de que as expectativas e as reações dos noivos constituem um importante
parâmetro que orienta o trabalho nos casamentos é posto em evidência, também, na palestra de
Letícia, cuja descrição abre este capítulo. Com efeito, na sua fala, as manifestações do noivo
(tanto a utilização da fotografia feita por Letícia como forma de despedida pública da mãe
quanto, posteriormente, a redação de um depoimento, também público, sobre o trabalho da
fotógrafa) não serviriam apenas de gancho para que Letícia reivindicasse a importância dos
fotógrafos de casamento. Elas também permitiriam que a fotógrafa apregoasse a necessidade
de fotografar casamentos tendo em mente o posterior valor que as imagens adquiririam para os
noivos e suas famílias. Num trecho de sua palestra que pareceu comover particularmente a
plateia, assim Letícia proclamava:

Pô, olha como… a importância do que a gente faz. E hoje em dia, o que eu vejo muito
dentro desse mercado da fotografia de casamento é uma síndrome de protagonismo.
Todo mundo quer ser protagonista. Eu vejo fotógrafos dizendo que o casamento é meu.
Véio, o casamento não é seu! O casamento é da mulher, você tá lá trabalhando!Mas a
galera trata como se fosse um negócio assim, todo mundo quer ser palestrante, todo
mundo quer dar workshop, todo mundo quer prêmio… todo mundo quer foto com um
milhão de likes. Mas pra quê, né? (…) [a plateia começa a rir diante do slide que aparece
projetado na tela no qual lê-se “foda-se”] Eu tenho esse recadinho, espero que ninguém
se ofenda, mas foda-se você [o público aplaude]. No dia do casamento, no dia do que
quer que seja, você ali é a pessoa mais insignificante pra eles. Junto com todos os outros
profissionais. Os convidados é que são as pessoas importantes pra eles. Então foda-se
você, foda-se o seu ego, foda-se se você quer ganhar prêmios, foda-se os seus medos,
seus likes no facebook ou se o seu cachorro morreu. E se você tá cansado, e foda-se os
outros fotógrafos também [risos da plateia]…

Condenando práticas profissionais de fotógrafos que, supostamente, fotografam


casamentos priorizando o valor de circulação das imagens entre colegas de profissão em lugar

63
Primeiro, Fabian dizia encaminhar aos noivos uma sugestão das fotos que ele achava que deveriam compor seus
álbuns. Em seguida, os noivos avaliavam tal sugestão apontando, sempre que fosse o caso, as modificações que
julgavam necessárias. Só depois disso que a versão final do álbum era finalizada pelo fotógrafo e encaminhada
para impressão. Embora outros profissionais tenham descrito processo semelhantes para a composição do álbum,
verifiquei algumas variações. Uma de minhas entrevistadas, por exemplo, afirmou que após o casamento, costuma
enviar primeiro uma apresentação no formato de slideshow contendo um número grande de imagens. Em seguida,
ela manda um arquivo digital sugerindo o álbum pronto, cuidando para que as imagens utilizadas ali sejam
diferentes daquelas do slideshow. Assim, me dizia ela, os noivos, que já tinham as imagens da primeira
apresentação em mente, sentiam falta de algumas imagens e pediam para acrescentar mais páginas ao álbum — o
que acabava se convertendo em lucro para fotógrafa que ganhava uma margem com as páginas extras.
90
de ter em mente o posterior valor que as imagens possuem para os noivos e seus familiares,
Letícia joga luz sobre os “grupos de referência” (Darnton, 1990, p.71) que integram o horizonte
destes profissionais. Fotografar casamentos, assim como redigir textos jornalísticos, é
atividade realizada levando-se em conta grupos de interesses específicos. No caso dos
jornalistas analisados por Darnton, os “grupos de referências” incluem editores, colegas, as
fontes e objetos de seus artigos e repórteres de outros jornais (op. cit., p.86). Já no caso dos
fotógrafos de casamento, os grupos de referência são ao menos três: os clientes (e, por extensão,
seus círculos familiares e de amigos), outros fotógrafos de casamento e a clientela que os
profissionais pretendem atrair (e que, não necessariamente, relaciona-se aos clientes que aquele
fotógrafo já possui).
Tenho a impressão de que não é preciso discorrer longamente sobre as razões que levam
os profissionais a registrarem o casamento tendo em mente os noivos e seus familiares. Posto
que, em geral, são estes os seus contratantes, levar em conta as expectativas dos noivos é
condição necessária para a sobrevivência do fotógrafo no concorrido mercado de fotografia de
casamentos. Ademais, conforme apontaram inúmeras vezes meus interlocutores, a maior parte
de seus clientes contrata seus serviços a partir de indicação64.
Por outro lado, produzir fotografias de casamento pensando em sua circulação entre os
pares faz parte do processo de construção de prestígio profissional nestes circuitos. Para fazer
mais uma vez referência à fala de Letícia, dar palestras e ministrar workshops, angariar likes
em redes sociais e ganhar prêmios são meios que dotam os fotógrafos de casamento de um
“capital simbólico” que, ao menos eventualmente, se converte em capital econômico (Bourdieu,
2010 [1977])65.
Se sabemos que as fotografias de casamento são produzidas visando atender grupos de
referências distintos, nos resta ainda avançar na compreensão sobre os critérios que orientam a
escolha daquilo que será fotografado nos casamentos. Com o intuito de fazê-lo, dedicarei, antes,

64
Não menos importante, ao satisfazer as expectativas de seus noivos, é possível que os fotógrafos de casamento
se habilitem a receber deles novas demandas de serviços variados. Neste sentido, ouvi de um fotógrafo bastante
conhecido nos circuitos estudados que “a fotografia de casamento é a porta para a fotografia de família”.
65
Em termos práticos, consigo pensar em dois modos de ver operada tal conversão. O primeiro deles, diz respeito
a ideia de que tornar-se um fotógrafo premiado é algo valorizado por potenciais clientes. Embora muitos
fotógrafos tratem com reservas a ideia de que os prêmios ajudam a atrair noivos, observando as homepages dos
profissionais, não só constatei que o material promocional apresentado ali fazia menção aos prêmios, como estes
também ocupavam lugar de destaque nele. O segundo modo de converter o capital simbólico angariado com o
prêmio em capital econômico se dá entre fotógrafos de casamento que atuam ou pretendem atuar como
palestrantes.
91
algumas palavras sobre minha experiência ao acompanhar o trabalho de um grupo de fotógrafos
durante um destes eventos.

***

Já era fim de uma noite quente no bairro de Vila Isabel, na Zona Norte do Rio de Janeiro,
quando eu e um grupo formado por quase uma dezena de fotógrafos, profissionais e aspirantes,
deixávamos apressados a mesa de um bar. A chuva inesperada abreviara nosso encontro
improvisado. Estávamos nos despedindo sob a marquise de um prédio quando Alexandre, um
dos fotógrafos do grupo, me contou que dali a algumas semanas faria um casamento junto com
Leonardo, o palestrante que, horas antes, ouvíramos falar em uma escola de fotografia das
imediações. Alexandre então emendou a pergunta: “te interessa vir com a gente?”.
Embora acompanhar fotógrafos em casamentos não fizesse parte de meus planos
iniciais, ao ser surpreendida pela oferta de Alexandre, num impulso, respondi que “sim,
adoraria”. Trocamos números de telefone e a promessa de nos mantermos em contato. Duas
semanas antes da data do casamento, recebi de meu interlocutor uma mensagem, que buscava
confirmar meu interesse em acompanhá-los. Diante de minha resposta mais uma vez positiva,
ele disse que consultaria então a noiva a fim de verificar se ela não se opunha à presença de
uma antropóloga em seu casamento. Isto feito, passamos a tratar da logística através de um
grupo criado por Alexandre no WhatsApp, no qual foram incluídos também Leonardo e
Stephanie.
Não bastasse a sorte de ter recebido a oferta de mão beijada, a configuração da equipe
de fotógrafos naquele casamento era particularmente interessante. Embora Alexandre fosse
atuar como primeiro fotógrafo, se referia a Leonardo (que, naquela noite, trabalhava, ao menos
em tese, sob seu comando) como mestre. Posto que, via de regra, o papel de segundo fotógrafo
era ocupado pelo profissional menos experiente, ali estaria em curso uma espécie de inversão
hierárquica. Já Stephanie, que atuava como iluminadora, era também uma fotógrafa em
formação. Deste modo, ela levou sua câmera e, sempre que os fotógrafos sinalizavam, era
dispensada de carregar de um lado ao outro o pesado monopé66, e convidada a atuar como
terceira fotógrafa do evento. Assim, estava estabelecida entre os fotógrafos uma atmosfera que

66
Trata-se de um acessório de sustentação, no formato de haste, em cuja extremidade superior é fixado um
dispositivo de iluminação.
92
era, ao mesmo tempo, amistosa e pedagógica, por assim dizer. Eu não conseguia pensar em
ambiente melhor para fazer a pesquisa.
Tudo correu conforme combinado e, às 14h30, já estávamos a meio caminho do salão
de festas localizado no bairro de Vila Valqueire, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde
ocorreriam mais tarde, tanto a cerimônia quanto os festejos do casamento. Antes de chegar,
porém, fizemos uma parada rápida para comprar algumas provisões: água, chocolate, e “mais
alguma coisa para comer já que nunca se sabe”, conforme aconselhou Leonardo. Posto que o
trânsito estava particularmente bom naquele sábado, chegamos cedo ao nosso destino e
descarregamos o equipamento armazenado em malas e mochilas com tranquilidade. Depois de
um breve encontro com a noiva, que se aprontava para a cerimônia em companhia de sua mãe
e irmãs numa das suítes no piso superior, fiquei observando enquanto a equipe de fotógrafos se
preparava para entrar em ação.
A etapa de preparação foi breve e realizada sem cerimônias. Primeiro, os três fotógrafos
retiraram das bolsas as câmeras que usariam durante o making of67, além de alguns acessórios
de iluminação. Ato contínuo, os profissionais verificaram cartões de memória e baterias. Com
Leonardo e Stephanie incumbidos de registrar os acessórios da noiva e a decoração, ambos
começaram a coletar os objetos que seriam fotografados: buquê, sapatos, tiara. Já Alexandre
tirou da bolsa as alças (figura 2.4) que serviriam de suporte para as câmeras que utilizaria
durante o evento. O movimento de vesti-las era semelhante ao de vestir um paletó e, como se
fossem mangas, Alexandre passou os braços por entre as tiras de couro fazendo com que as
alças se cruzassem sobre suas costas. Ao verificar que o suporte estava no lugar, acoplou suas

Figura 2.4: Alças de couro semelhantes


àquelas utilizadas por Alexandre. Fonte:
http://blogweddingbrasil.com.br/wp-
content/uploads/2013/07/al%C3%A7as-
wedding-Oferta3.jpg acesso em
04/03/2018.

67
Os fotógrafos de casamento chamam de making of o conjunto de fotografias feitas enquanto a noiva (e, em
alguns casos, também o noivo) se prepara para a cerimônia.
93
câmeras às duas extremidades de metal, de modo que ficassem penduradas na lateral do corpo,
à altura das mãos. Estava, portanto, pronto para a primeira parte do seu trabalho.

Uma vez que Alexandre me dera liberdade para circular pelo salão, passei meu tempo
me dividindo entre a suíte onde a noiva terminava de ser arrumada e o corredor do lado de fora,
onde Leonardo e Stephanie pelejavam para fotografar os objetos previamente separados com o
auxílio de um acessório de iluminação. Quando terminaram a tarefa, Stephanie foi até a suíte
para buscar o vestido da noiva. A peça, pendurada num cabide, foi levada com cuidado para o
salão de festas no andar de baixo, onde Leonardo buscava o cenário adequado para fazer as
fotos. O lugar escolhido era, aos meus olhos, improvável: o estreito corredor que ligava o salão
à área da cozinha, por onde mais tarde os garçons do buffet circulariam em ritmo frenético.
Fotografar o vestido da noiva foi mais complicado do que eu poderia supor. Primeiro, porque
pendurá-lo no ângulo que satisfizesse Leonardo foi uma tarefa que demandou inúmeras
tentativas. Segundo, porque Leonardo parecia o tempo todo preocupado com as condições de
luz do local. “Se a gente conseguisse alguma coisa azulada… um pano talvez…”, disse. Na
companhia de Stephanie, Leonardo pôs-se a vasculhar o salão, perguntando a um e outro onde
poderiam encontrar o tal pano. O fotógrafo já parecia estar a ponto de desistir quando viu passar
por perto um funcionário encarregado da montagem. Sem hesitar, o chamou (“Ei, amigo!”),
providenciou uma cadeira para que o rapaz se sentasse e, com a ajuda de Stephanie, pudesse
posicionar o flash por dentro de sua camisa azul, permitindo assim que Leonardo fizesse
registro do modo que imaginara. Agora sim, estava satisfeito.
Os acessórios da noiva e também o vestido já tinham sido fotografados e levados de
volta para a suíte. Eu estava por ali quando a maquiadora pediu que os homens se retirassem
do cômodo para que a noiva pudesse se vestir. A equipe de fotografia então se reuniu do lado
de fora, planejando os próximos passos. Leonardo, o fotógrafo mais experiente da equipe, já
havia esquadrinhado o salão e chamou Alexandre para perto: “Hoje tá fácil fotografar a
cerimônia. A luz está ótima. E eu vi um depósito lá embaixo, ótimo pra fazer uns retratos. Se a
noiva topar…”. Em pouco tempo fomos chamados para retornar à suíte. O making of foi então
concluído e a equipe passou a fazer os retratos da noiva que, a pedido dos fotógrafos posava
no corredor, junto à mesa de doces, e também no recinto mal-acabado que naquele momento
servia tanto de depósito quanto de refeitório improvisado dos garçons que jantavam antes do
começo do evento.

94
Se até a conclusão dos retratos da noiva a atmosfera entre os fotógrafos parecia relaxada,
os minutos que precederam a cerimônia de casamento foram de maior concentração. Neste
momento, eles voltaram a se reunir junto às malas que armazenavam o equipamento, desta vez
para combinar entre si as posições que cada um assumiria durante a cerimônia e a redistribuição
das lentes. Alexandre ficaria junto à noiva, no momento da entrada68 e, mais tarde, durante a
fala do celebrante, ficaria posicionado por trás dos noivos. Já Leonardo permaneceria do outro
lado, fazendo as fotos de frente para os noivos. Uma vez que Leonardo assegurava que, dada
as condições do espaço, o flash das câmeras bastaria para fazer boas fotos, Stephanie não
precisaria se ocupar da iluminação, podendo atuar como terceira fotógrafa, gravitando em torno
do “altar improvisado” onde ocorria a cerimônia. Decidiu-se assim qual lente ficaria com quem
e os fotógrafos voltaram-se mais uma vez para os equipamentos, verificando baterias, trocando
pilhas dos flashes, fazendo pequenos ajustes. Tudo pronto, cada um assumiu sua posição.
Durante a cerimônia, não havia interação verbal entre os fotógrafos. No máximo,
percebi certos sinais discretos, como trocas de olhares e gestos sutis com as mãos que
comunicavam, por exemplo, rápidas trocas de posição. A cerimônia foi um momento no qual a
equipe trabalhou de forma especialmente concentrada. Já durante a festa, sobretudo nas horas
finais, predominava entre os fotógrafos um clima de descontração: com o passar das horas eles
circulavam pela festa com mais liberdade, inclusive para trocar impressões, fazer brincadeiras
uns com os outros e se engajar em bate-papos breves.
No final da noite, os convidados foram embora, a música cessou de tocar, as luzes do
salão foram acesas. Os fotógrafos fizeram registros do noivo adormecido sobre o sofá da suíte
onde mais cedo a noiva se arrumara e só deram seu trabalho por encerrado depois que o noivo
foi acordado e, em companhia da noiva, deixou o salão. Eles então se reuniram mais uma vez,
numa atitude que beirava a tensão, tamanha a meticulosidade empregada na última tarefa do
dia: era chegada a hora de guardar o equipamento, o que incluía os cartões de memória contendo
os registros do evento.
Uma vez que os equipamentos se encontravam seguramente guardados, a concentração
da equipe se dissipou. Com certa malícia, Leonardo fez sinal para que não deixássemos o salão
pela porta da frente, mas sim pelos fundos, “ali pro lado da cozinha”. Em resposta, Stephanie

68
“O início da caminhada da noiva em direção ao local da celebração é marcado por visível comoção. Os
convidados se põem de pé, esticam os pescoços na tentativa de melhor avistarem a noiva, alguns sorriem, outros
enxugam as lágrimas. Muitos tiram fotografias com câmeras amadoras e aparelhos celulares. Ouve-se um certo
burburinho”. (Marins, 2016, p.123)
95
manifestou uma animação sutil que não fui capaz de compreender imediatamente. Apenas
depois de descer uma escada estreita e íngreme, já a poucos passos de distância da porta de
saída para rua me dei conta do que se passava. Leonardo, mais cedo, realizando incursão
exploratória pela casa de festas, tinha avistado uma espécie de bar improvisado junto a um
galpão. Nos juntamos assim a alguns poucos funcionários da casa de festas (quatro ou cinco,
no máximo) que, como nós, haviam encerrado o expediente na festa de casamento. O sucesso
do plano de Leonardo se tornou evidente quando fomos agraciados com copos de plástico, estes
reabastecidos de cerveja em fluxo contínuo por tanto tempo quanto permanecemos ali.
Como de praxe ocorre com grupos que se reúnem para “jogar conversa fora” enquanto
tomam cerveja, conversava-se ali sobre os temas mais variados. Batista, que durante a
cerimônia e a festa de casamento atuara como espécie de supervisor do salão, se mostrava
particularmente hospitaleiro e articulado, de modo que, durante um bom tempo, eu e a equipe
de fotógrafos formamos uma audiência para os causos que contava. Quando, a certa altura,
Batista começou a falar sobre o evento daquela noite, sublinhou que aquele tinha sido um
casamento tranquilo. Em particular, ele ressaltava algumas características dos noivos “muito
gente boa, eles… simpáticos… tratavam todo mundo bem… uma galera animada, a fim de
aproveitar a festa”, disse com a anuência de todos. Foi o gancho para que Alexandre, Leonardo
e Stephanie se engajassem numa espécie de balanço da noite.
De modo geral, o clima ao falar do casamento era de alegre satisfação. Cada um dos
fotógrafos compartilhou, em tom de comemoração, algumas situações pontuais, como, por
exemplo, o fato de a noiva ter topado ir posar para fotos no galpão, antes da cerimônia: “não
era qualquer noiva que topava não”. Falou-se também sobre as coreografias exibidas na pista
de dança e sobre a mãe da noiva que, diante do noivo embriagado ao final da festa, “levou tão
na boa” que fez troça do genro. A única ressalva, feita por Leonardo, fora direcionada a mim:
“toda hora tinha alguém pedindo pra tirar uma foto posada…”. Seus companheiros
concordavam, e acrescentavam com resignação: “realmente não tem graça fazer essas fotos…,
mas faz parte”.
No transcorrer da conversa, Leonardo, como que assumindo sua posição de mestre,
ponderou sobre certas situações daquela noite de maneira pedagógica. Assim, o fotógrafo mais
experiente deu dicas, por exemplo, sobre a iluminação do local, sobre as possibilidades de
enquadramento que a cerimônia oferecia e sobre as lentes que considerava mais adequada para
fotografar cada situação. Pensando em retrospecto, não me recordo de terem vindo à tona a
qualquer momento questões sobre o que deveria ser ou não fotografado. Mesmo naquele grupo
96
cujos integrantes possuíam diversos níveis de experiência, era como se todos soubessem
exatamente o que não poderia ficar de fora dos registros.

Em situações de entrevista, quando perguntava aos meus interlocutores: “o que você


fotografa nos casamentos?”, não era incomum que que ouvisse como resposta, simplesmente:
“tudo”. Se eu então revertesse a pergunta para: “o que você não fotografa?”, minha pretensa
esperteza se revelava inútil diante da resposta, igualmente sucinta (e frustrante): “nada”. Certa
vez, ao ouvir uma réplica deste tipo, num rompante de irritação, indaguei meu interlocutor se
ele costumava fotografar a calcinha da noiva ou os salgadinhos que seriam servidos enquanto
estes estivessem ainda na cozinha. Em resposta, num tom que revelava impaciência com a
antropóloga inconveniente, ouvi dele: “quando eu digo tudo, tudo quero dizer tudo que importa,
né?”. Decidi abreviar o sofrimento do meu interlocutor e mudar de assunto pelo bem daquela
entrevista. Mas, intimamente, tive vontade de prolongar a prosa sugerindo que ele falasse então
sobre “o que importa”. Hoje, enquanto redijo esta tese, sinto-me satisfeita por não ter insistido.
As respostas de meus interlocutores não eram evasivas, como, de início, eu julgava. Ao
contrário, a falta de eloquência diante de meus questionamentos poderia ser proveitosamente
analisada caso eu a interpretasse com um sinal de que operavam entre os fotógrafos de
casamento, esquemas de percepção e de apreciação que já deviam ter sido, há tempos,
incorporados. Trata-se, em outras palavras, de um habitus (Bourdieu, 2013 [1978], p.111), de
modo que a seleção daquilo que será ou não fotografado, não é fruto de reflexão constante, mas
sim de disposições interiorizadas que os levam a classificar os acontecimentos dos casamentos
quanto a seus graus de importância em termos de registro fotográfico. Neste sentido, a fala de
Fabian que reproduzo a seguir, me parece bastante reveladora:

Cara, mas quando você começa a fazer muitos casamentos você começa a ver que é
uma linha de produção. Tanto é uma linha de produção que, depois de um tempo, eu
fui percebendo… as pessoas me perguntavam assim: “Poxa, Fabian, como você fez
essa foto?” Tipo uma foto de um beijo ou de um momento. “Ah, que nessa hora eu
fico tão preocupada de perder aquele momento ali”. E eu falo assim que, depois de
um tempo, você já sabe que aquilo ali vai acontecer. Então você não fica com medo
de perder, sabe? Você começa a fazer umas coisas assim diferentes porque você já
sabe quando aquilo vai acontecer. Então às vezes alguém pergunta “como foi que você
conseguiu pegar o olhar da noiva?”. Eu não sei como eu peguei, mas eu já sabia que
ela ia olhar pra cá. É impressionante. Então, por mais que o casal seja diferente…
sempre tem aquela coisa, né? Aquela onda que é sempre igual, que se repete de um
casamento pro outro. Nem tô falando a coisa assim que se repete porque mandam
97
repetir. Tem aquelas coisas que se repetem sem ninguém mandar repetir. Que é tipo
essa coisa do olhar da noiva, da hora que o cara ri. É engraçado, mas sempre a coisa
se repete. A coisa que se repete sem controle, se repete eu não sei por quê. E tem a
coisa da linha de montagem que aí é do cerimonial e do roteiro.

Miriam Moreira Leite, tendo se dedicado ao estudo da representação da família a partir


de imagens fotográficas, argumentou em entrevista (Barbosa, Ferraz e Ferreira, 2009) que,
observando as coleções de fotografias que compunham seu material de pesquisa, notou haver
entre elas “uma semelhança muito grande (…), não propriamente da fisionomia das pessoas,
mas da posição, da maneira com que tiravam retratos e a frequência com que tiravam retrato”
(p.340). Dizia ela:

Para mim foi extremamente útil perceber que, em vários momentos, no caso de algumas
fotografias que são muito repetidas, você acaba não vendo mais, justamente porque é
muita repetição. Tanto que, no fotojornalismo, as pessoas recorrem a elementos
extremamente exóticos para chamar a atenção, porque senão a saciedade da percepção
é muito grande, e você acaba não vendo aquela coisa que se quer mostrar. (op. cit., p.
341)

O que chama minha atenção na fala de Leite é o fato de ela ter escolhido contrastar a
repetição característica das fotografias de família com a busca pelo exótico no fotojornalismo
— isto, suponho, desconhecendo a combinação das duas linguagens fotográficas atualmente
comum nas fotografias de casamento. Com efeito, ao lançar mão de uma linguagem
fotojornalística para registrar casamentos, meus interlocutores parecem buscar o inesperado
dentro da repetição do ritual. Esta busca, me parece, além de se relacionar com um processo de
valorização da fotografia de casamento e com a construção de prestígio dos fotógrafos (vale
assinalar que o inusitado registrado por meus interlocutores é bastante valorizado nos circuitos
de fotografia pelos quais transitei), ela diz respeito a certa dimensão de prazer, apontada por
alguns de meus interlocutores como fundamental no exercício da profissão.
De minha parte, assistir (e também experimentar) esta busca pelo momento, pelo
inusitado ou pelo exótico, me fez vislumbrar uma dimensão de jogo ou esporte no modo como
alguns de meus interlocutores desempenhavam seus trabalhos. Em especial, guardo na
lembrança duas situações de campo nas quais emergiram esta impressão de modo
particularmente vivo. A primeira delas ocorreu no casamento do qual eu tratava há pouco.

98
Já passava das dez da noite e no salão de festas em Vila Valqueire, a música tocava em
alto volume. Eu perambulava com minha pequena Olympus nas mãos, em busca de alguma
cena com condições de luz suficientes para que eu conseguisse fotografar (meu equipamento
era extremamente limitado para aquela situação). Detive-me por um instante nas proximidades
da pista de dança em cujo centro mulheres dançavam alinhadas fazendo uma coreografia.
Distraída com a cena, só notei que Leonardo se aproximara de mim quando já me dirigia a
palavra: “Quer uma dica? Abaixa aqui e espera. Este ângulo é bom e pelo visto não vai demorar
pra elas descerem até o chão. Já fica posicionada que aí é só clicar”.

Fiquei observando enquanto Leonardo se afastava à procura ele mesmo de posicionar-


se estrategicamente em busca de seus momentos. A noiva, alheia ao movimento do fotógrafo,
dançava com suas amigas enquanto Leonardo examinava a cena de longe. Num dado instante
Leonardo trouxe sua câmera à altura dos olhos e flexionou os joelhos em busca de um ângulo
específico para então pressionar com o dedo indicador o botão disparador de sua câmera
algumas vezes. Busquei com os olhos a cena que foi registrada e percebi que o noivo tinha se
aproximado da noiva na pista de dança. Olhei mais uma vez para Leonardo e ele, desta vez,
olhava para as imagens que acabara de capturar na pequena tela de sua câmera. Parecia
satisfeito. Pouco tempo depois, o vi cruzar com Alexandre também nos arredores da pista de
dança. Observando-os de longe, notei quando Leonardo fez um gesto para que Alexandre visse
a imagem que há poucos capturara. Alexandre olhou pra tela com atenção e levantou a cabeça
sorrindo como em comemoração.

A situação seguinte que gostaria de descrever ocorreu em julho de 2017, quando fui
participar de um congresso da FLACSO (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) na
cidade espanhola de Salamanca. Terminados meus compromissos na universidade onde ocorria
o encontro, tirei o último dia para vagar pela cidade e, com meu projeto de fotografar
diariamente chegando ao fim, explorar as possibilidades fotográficas que ela oferecia naqueles
bonitos dias de verão. Num dado momento, resolvi entrar na catedral da cidade, um edifício
impressionante que combinava elementos góticos e barrocos com uma cúpula de 80 metros de
altura. No interior da igreja ampla e luminosa tirei uma série de fotos, mas foi quando encontrei
um grupo de freiras no caminho que estabeleci para mim um novo desafio. Passei algum tempo
acompanhando-as à procura de oportunidades de enquadrar em fotografias aquele grupo de
mulheres em suas vestes religiosas e a arquitetura complexa do lugar. Eu me divertia tentando
99
fazer isso. A certa altura, uma das freiras do grupo, percebendo meu movimento, se aproximou
exibindo no rosto um sorriso simpático. Pelo que entendi com meu limitadíssimo espanhol,
disse que estava impressionada com a beleza do templo e tudo que eu fazia era a assentir. Ela
me perguntou então se eu estava conseguindo tirar belas fotos. Respondi que eu estava satisfeita
e mostrei no visor da câmera algumas imagens nas quais ela aparecia com seu grupo. Mais uma
vez ela sorriu e, antes de se afastar, comentou que eu tinha conseguido um “bello recuerdo”.

Deixei a Catedral de Salamanca pensando que aquelas fotografias pra mim não eram
exatamente “recuerdos”. O valor de memória das fotografias naquele contexto era muito baixo
se comparado com o seu valor de jogo. Como na pesca esportiva, em que a diversão advém da
captura do peixe (e não do seu consumo), fotografar para mim tinha se tornado algo que tinha
valor “pelo esporte”69. Eu tinha conseguido fazer fotos que me deixariam orgulhosa e estava
tomada por uma espécie de “excitação prazerosa”, para utilizar a expressão de Dunning
(Gastaldo, 2008, p.224). Considerando minhas conversas com fotógrafos como Bárbara,
Leonardo e Letícia, suponho que uma sensação semelhante não é apenas algo compartilhado
por eles, mas constitui — ao menos até certo ponto — a própria motivação para que eles
continuem fotografando casamentos. Neste sentido, atentemos para a seguinte fala de Leonardo
preferida na ocasião que o entrevistei:

Cara… eu não penso nem como casamento, eu gosto de clicar. Gosto de clicar. Eu não
encaro, sei lá, como casamento, sabe? Eu saio pra clicar de novo, então pra mim é…
é… tu vai me ver clicando, não é uma coisa que é assim uhulll. Eu sou muito intro…
tipo, pa pa pa pa pa pa pa. Depois de doze horas eu pego as imagens, sento e tipo, falo
“cara, ficou maneiro”. Aí eu, tipo, tenho aquele prazer de, sei lá, satisfação. Mas na
hora eu tô executando ali. Eu, tipo, eu nem olho minhas fotos pra trás, às vezes. Eu olho
uma ou duas pra ver se eu tô fotometrando certo, tipo nem olho o resultado. (…) Como
eu gostava de fotografar e só tinha escolhido o casamento por ser, sei lá, onde eu vou
aplicar a fotografia que eu gosto de fazer, apesar de ser o lugar que eu escolhi pelo
dinheiro, mas não pra fazer dinheiro, né, coincidiu de eu acabar, né, é… sei lá, me
encontrando, né, acabar unindo o útil ao agradável, né?

Tendo em mente meu objetivo ao escrever este capítulo dedicado a desvelar algumas
questões implicadas nas escolhas dos fotógrafos em relação àquilo que fotografam, gostaria de

69
Parece-me igualmente pertinente a aproximação entre fotógrafos e caçadores, conforme o argumento do
fotógrafo Erich Solomon, recuperado por Aquino: “como o caçador está obcecado por sua paixão de caçar, assim
vive o fotógrafo com a obsessão de obter uma foto única”. (Aquino 2016, p. 96).

100
dedicar atenção a certos valores que parecem orientar tais escolhas 70 . Uma fotografia
particularmente polêmica postada em um dos grupos que eu acompanhava no Facebook trazia
um casal de noivos posando diante de uma cachoeira. O homem vestia terno escuro, gravata e
tinha os pés metidos em um par de sapatênis que amenizava o ar formal de seu traje. A noiva
portava um longo vestido branco e trazia nas mãos um buquê. No topo de sua cabeça, havia
uma guirlanda de flores delicadas da qual pendia um longo e volumoso véu. Ela sorria sem
encarar a lente do fotógrafo e, inclinando ligeiramente a cabeça, direcionava seu olhar para o
alto. Até aí, a fotografia não apresentava nada que fosse muito diferente das imagens que os
fotógrafos de casamento publicavam diariamente naquele grupo. A razão para a controvérsia
instalada em torno daquela fotografia específica residia em dois detalhes: o noivo encarava a
noiva com expressão descontente e as mãos juntas na frente do corpo estavam envolvidas por
uma pesada corrente. Felipe, o autor da fotografia, publicou a imagem com uma legenda “vai
casar comigo, sim” completando ainda que estava “sentindo-se divertido”. Partiu de uma moça
a primeira reação à foto, na caixa destinada aos comentários: “Eu sei que a idéia é ser engraçado,
mas não vejo a menor graça nisso”. Em seguida, um rapaz, questionou “Se o cliente quer e ele
está pagando, qual é o problema?”. Outro rapaz entrou na discussão alegando que a fotografia
“reforça um comportamento machista” “que resiste em forma de brincadeira”. Houve quem
entrasse na discussão para classificá-la como “mimimi”. Nas horas que seguiram à postagem
original, abundaram as manifestações condenando ou louvando a fotografia. Seu autor achou
por bem esclarecer que “não foi nada programado ou pensado” e que tudo que ele havia feito
era registrar um momento espontâneo de brincadeira do casal. Em resposta a um dos muitos
comentários, ele também acrescentou: “sei que o casamento é algo belo e sublime, mas tem
vezes que o casal nos surpreende”.
Opiniões controversas em torno do que devia ou não ser fotografado faziam parte do
cotidiano daquele grupo de Facebook que, à época da realização da pesquisa, reunia quase 50
mil integrantes. Lembro-me, por exemplo, da discussão acalorada em torno de uma fotografia
na qual, o noivo, cujas calças encontravam-se arriadas na altura de seus tornozelos estava
sentado sobre um vaso sanitário. Outra fotografia particularmente polêmica retratava os noivos
sorrindo ao lado de um conhecido deputado federal, que à época encontrava-se em pré-
campanha para as eleições ao cargo de presidente da república. Qualquer que fosse a natureza

70
Neste sentido, argumento que os registros fotográficos dos casamentos passam pelo acionamento de certas
moralidades (Eilbaum, 2012; Eilbaum e Medeiros, 2018).
101
da polêmica, eu notava que havia sempre presente uma alegação de que, ao fotógrafo de
casamento, não cabe fazer julgamentos, mas fazer um registro isento da história do casal.
Afirmações deste tipo surgiam, aliás, também em diversas situações de campo. Uma delas que,
pessoalmente, elegi como favorita, partiu de um palestrante que dizia em tom taxativo: “Não
adianta julgar o que é certo e o que é errado. A gente tem que ir lá mostrar o que está
acontecendo, sem julgamentos”, para em seguida emendar “nosso trabalho é mostrar o melhor
das pessoas, não a parte ruim”.
Ao procurar mostrar, através de registros fotográficos, “o melhor das pessoas”, “o valor
da família”, “a essência do amor” (retomando aqui algumas expressões empregadas por
fotógrafos de casamento e registradas por mim durante o trabalho de campo), meus
interlocutores demonstraram agir em conformidade com certos princípios morais em torno do
casamento, da família e amor. E embora estes princípios nem de longe sejam homogêneos,
arrisco afirmar que é possível identificar certos padrões que, em determinados contextos, são
colocados em disputa dentro do universo pesquisado71.
Parece-me evidente, além disso, que elaborações de ordem moral dos fotógrafos de
casamento são, de certo modo, convertidas em instrumento de trabalho. O modo que ele
concebe (ou diz conceber) a família, por exemplo, é evidenciado sobretudo em suas estratégia
de comunicação. Alguns de meus interlocutores, inclusive preconizavam a importância de
traçar valores morais em comum com seus clientes. Letícia, por exemplo, me contou que, em
determinado momento de sua carreira, decidiu recusar contratos a partir deste critério:

Não vou fechar mais casamento de pessoas que eu sei que não têm nada a ver comigo
e que seriam pessoas que não serias minhas amigas em outras situações e que estão ali
valorizando coisas que eu não valorizo.

Embora estratégias para “filtrar clientes” de acordo com esta espécie de compatibilidade
de universos morais tenha aparecido de modo recorrente em meu trabalho, entendo que esta é
uma prática facultada a profissionais que ocupam posições privilegiadas no mercado. Mesmo
nestes casos, é importante frisar, as atividades dos fotógrafos de casamento estão, ao menos em
parte, sujeitas a decisões dos seus contratantes.

71
Como pode sugerir a situação descrita no início desta seção, considero o Facebook um ponto de observação
privilegiado para acessar tais disputas. Tratarei mais detidamente de tais disputas em capítulo posterior.
102
Os fotógrafos de casamento não costumam ter a palavra final, por exemplo, no que diz
respeito às imagens que compõem o álbum de casamento. Eles tampouco escolhem aquelas que
circularão nos perfis de redes sociais de seus clientes e, em alguns casos, inclusive, as
fotografias são modificadas por estes últimos. No entanto, é verdade que os fotógrafos de
casamento exercem controle sobre as fotos, na medida em que decidem quais fotografias
divulgam em seus sites, blogs e redes sociais, quais inscrevem em concursos e quais são
exibidas durante as palestras, cursos e workshops que ministram.
“Fotos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la — e podem ajudar a
desenvolver uma posição moral ainda embrionária”, argumenta Susan Sontag (2004 [1977]
p.28). Através das cenas que escolhem fotografar, das imagens que entregam para seus clientes,
das fotografias divulgadas em suas redes, daquelas que destinam aos concursos e aquelas
selecionadas para exibição durante palestras, fotógrafos de casamento aderem, reforçam e
constroem perspectivas morais. Neste processo, as escolhas sobre como fotografam (para além
daquelas sobre o quê fotografam) também exerce papel fundamental. É sobre isso que tratarei
no capítulo seguinte.

103
Capítulo 3
Sobre técnicas e reputação

Numa tarde do mês de novembro de 2016, desci da estação de metrô Afonso Pena, no
bairro da Tijuca, Zona Norte do Rio de Janeiro, em busca do estúdio fotográfico onde
trabalhavam seu Pedro e sua esposa, Dona Rosa. Seguindo as explicações fornecidas dias antes
por telefone, me dirigi a uma tradicional galeria da região, passando por uma lavanderia
abarrotada de roupas penduradas, por um minúsculo salão de beleza em cujo interior manicures
conversavam enquanto atendiam suas clientes e por uma loja especializada em conserto de
relógios, naquele instante desprovida de qualquer movimento. Posto que meu destino, a sala da
Pedro's Photo Studio, localizava-se no primeiro andar do edifício, optei por utilizar as escadas
para aceder ao piso superior ao invés do antigo elevador que as ladeava. Encontrar o estúdio
fotográfico foi tarefa fácil: a porta de vidro que separava o estabelecimento do estreito corredor
do andar repleto de salas comerciais, não apenas exibia, pintado a tinta, o nome de seu
proprietário, como também deixava entrever uma série de produtos fotográficos produzidos ali,
dentre os quais um painel com inúmeras fotografias impressas de noivos, um quadro exibindo
a imagem de uma moça na ocasião da comemoração de seu 15˚ aniversário e um display de
pouco mais de um metro, em papel cartão, no qual fora estampada a foto de uma criança e os
dizeres “Bia, 4 aninhos”.
Toquei a campainha e se passaram poucos segundos até que Dona Rosa viesse abrir a
porta. Sem esperar que eu me apresentasse, a senhora que tinha um ar atarefado pediu que eu
aguardasse na antessala por um instante, pois “estava com uma cliente”. Acomodei-me num
banco de madeira e não tardou para que Dona Rosa voltasse na companhia de sua cliente. Antes
de se despedir dela, se dirigiu a mim buscando confirmar minha identidade: “você é a
antropóloga, né?”. Diante de meu aceno, voltou-se pra sua cliente, uma mulher que calculei ter
pouco mais de quarenta anos e que levava um envelope de papel nas mãos. “Ela é antropóloga
e está querendo saber sobre fotografia de casamento. Veio entrevistar a gente”. A mulher sorriu,
se despediu de Dona Rosa prometendo retornar ainda aquela semana “para lhe entregar os
cheques”. Ao fechar à chave a porta de vidro que separava a sala do corredor, minha
entrevistada fez um gesto indicando que eu esperasse mais um pouco.
Ainda na antessala, pude ouvir enquanto Dona Rosa se movia pelo cômodo ao lado,
arrastando equipamentos e móveis. Quando se deu por satisfeita, Dona Rosa me convidou a
104
ocupar uma das quatro cadeiras que circundavam uma mesa repleta de álbuns de fotografia,
envelopes e alguns DVD’s: “Só não repara a bagunça… isso aí é tudo álbum pra entregar pra
cliente, tem contrato, alguma coisa que a gente deixa aqui de mostruário. Porque é bom ter uma
variedade pra mostrar pros nossos clientes, né?”. A julgar pela disposição dos móveis que
existiam ali, deduzi que a sala para onde fui encaminhada servia a múltiplos usos. Os refletores
e difusores, suportes e fundo fotográfico que ocupavam um dos cantos sugeriam que ali eram
feitas fotos de estúdio; “a gente aqui faz de tudo um pouco: books de quinze anos, fotos
infantis… você conhece livro de assinatura?”. Enquanto retirava de uma pilha de álbuns um
exemplo de “livro de assinatura” que, segundo ela mesma, consistia num “álbum com
fotografias e um espaço para que os adolescentes possam escrever”, Dona Rosa me dizia que o
produto fazia “o maior sucesso”, embora “o carro chefe da Pedro's Photo Studio” sempre tenha
sido as fotos de casamento. E enquanto abria espaço para que ela também pudesse se sentar
(das quatro cadeiras dispostas em torno da mesa redonda que ocupava o centro da sala, duas
estavam cobertas por álbuns), prosseguia:

Nossos clientes confiam na gente. Você vê, essa mulher mesmo que estava saindo
daqui, veio assinar contrato pra gente fotografar os 15 anos da filha. Há alguns anos o
Pedro fez o casamento dela.

Enquanto Seu Pedro não chegava, Dona Rosa se incumbiu de preencher qualquer
possibilidade de silêncio no cômodo, sem que para isso eu precisasse lhe dirigir qualquer
pergunta. Conversar comigo, entretanto, não a impedia de continuar se ocupando da arrumação
do estúdio, de modo que a certa altura observei enquanto ela tomou nas mãos uma caixa em
acrílico que devia medir vinte por trinta centímetros. Num movimento rápido, Dona Rosa abriu
a caixa, percorreu com a ponta do dedo indicador as fichas que traziam dados dos clientes
preenchidas à mão e, antes de guardar ali o papel que repousava sobre a mesa, sustentou-o no
ar enquanto explicava:

Você vê, hoje mesmo veio essa menina… era pra ser uma coisa simples, foto pra escola.
Mas tinha que ser uma camisa totalmente branca e ela estava vestindo um top por baixo
que aparecia e aí não pode, entendeu? Então uma coisa que era pra ser rápida demorou
porque a gente teve que improvisar, teve que dar um jeito. Mas a gente resolve… eu
arrumei um papel, coloquei por baixo assim [com um gesto Dona Rosa indica que
colocou o papel entre o top e a camisa branca da jovem], consegui deixar ele bem
lisinho, o Manuel ajeitou a luz e deu tudo certo.

105
A conversa foi interrompida pela chegada de Seu Pedro que me cumprimentou com
simpatia. Antes de se sentar, o homem sorridente e franzino caminhou até a cafeteira: “quem
aceita um?”. Enquanto trazia para a mesa os três minúsculos copos de plástico que continham
a bebida, o fotógrafo quis saber o porquê de eu ter escolhido conversar com eles. Respondi de
maneira direta:

Cristina: O que me chamou atenção foi a experiência de vocês. Eu tenho conversado


com vários fotógrafos e tem um pessoal muito novo, parece que tem muita gente
entrando no mercado.
Dona Rosa: É, tem mesmo.
Cristina: E eu queria encontrar alguém com um pouco mais de experiência…
Dona Rosa: É, o Pedro passou por várias fases desde a época do filme. O Pedro
aprendeu a fotografar, ele tirou curso na Escola de Belas Artes, depois tirou curso de
retocagem numa época que só fazia-se fotografia preto e branca. Depois veio a
fotografia colorida, né? E não existia o que existe hoje em dia, a tecnologia que é
computador, né? Que você tem muito mais recurso hoje. Sim, é evidente que o Pedro
continua sendo [pronuncia o artigo com ênfase] o fotógrafo. Mas a gente contrata assim
uma designer que faz a diagramação. Alguém que vai retocar o álbum, entendeu? Fora
que tem o laboratório, que a gente trabalha com algumas encadernações, umas de São
Paulo e outras aqui do Rio, entendeu?

Como ocorreria ao longo dos outros dois encontros que tive com o casal, foi Dona Rosa
quem mais falou, respondendo às minhas perguntas com notável desenvoltura. Seu Pedro,
falando sensivelmente menos do que Dona Rosa, quase sempre se limitava a assentir com gestos
discretos, volta e meia pontuando, com poucas palavras, o discurso de sua esposa72. Nos dias
que precederam aquele encontro com Dona Rosa e Seu Pedro, eu completava aproximadamente
cinco meses de realização de trabalho de campo entre fotógrafos de casamento. Àquela altura,
eu começava a me preocupar com o universo de pesquisa que então se delineava. Afinal, não
era fruto de planejamento prévio que quase todos os meus interlocutores guardassem algumas
características em comum: tinham idades que variavam entre 25 e 35 anos, somavam menos de
dez anos de profissão, frequentavam eventos voltados a fotógrafos de casamento, utilizavam
largamente mídias sociais e pareciam encontrar nelas suas principais ferramentas de divulgação

72
Este fato não me pareceu dizer respeito somente às personalidades de meus interlocutores, mas ser um indicativo
da divisão do trabalho que operava ali. Dona Rosa, que se levantava para atender o telefone a cada toque e
respondia às questões de seus interlocutores do outro lado da linha com desembaraço, era a responsável pelo
atendimento da clientela de modo geral. Portanto, suspeito que sua postura diante da etnógrafa fosse uma espécie
de extensão desse papel.
106
do trabalho. Meu incômodo advinha, fundamentalmente, do fato de que, naquele momento, me
parecia importante ouvir também fotógrafos de casamento que possuíssem perfis distintos
daqueles dos que até então conformavam meu universo de pesquisa. Eu me perguntava, em
particular, o que os profissionais que não participavam dos espaços de intercâmbio entre
fotógrafos que eu frequentava tinham a dizer sobre suas práticas. Busquei suprir esta que me
parecia uma lacuna da pesquisa valendo-me de estratégias diversas que acabaram garantindo
meu acesso a fotógrafos que se ocupam profissionalmente dos registros fotográficos de ritos
matrimoniais ao menos há duas décadas. No caso de Seu Pedro e Dona Rosa, foi mais uma vez
uma busca no Google que me levou ao casal sexagenário. Vasculhando o site da Pedro's Photo
Studio, encontrei na seção “quem somos” a informação que procurava: “Somos uma empresa
presente no mercado há mais de 30 anos especializada em fotografia e filmagem de casamentos,
15 anos, bodas e outros eventos sociais”, dizia o texto de apresentação.
Mesmo antes que eu tivesse chegado à sala da Pedro’s Photo Studio, já chamavam
minha atenção certos contrastes entre minhas impressões sobre o trabalho que se desenrolava
naquele espaço e o de meus demais interlocutores. A começar pelo modo como fora arranjado
o primeiro de nossos encontros: em resposta ao meu primeiro e-mail, enviado para o endereço
eletrônico indicado na seção “contato” do site da empresa, recebi uma mensagem indicando
que eu deveria telefonar para a Pedro’s Photo Studio a fim de combinar a visita. Já nesta
primeira conversa telefônica, Dona Rosa agendou minha visita ao estúdio, ressaltando seu
funcionamento em horário comercial. Levando em conta o modo como eu negociava entrevistas
com interlocutores até então, saltava aos olhos que Dona Rosa não tivesse sugerido que nos
puséssemos em contato via redes sociais ou mesmo se utilizasse de aplicativos de troca de
mensagem, tais como o WhatsApp, conforme eu já estava habituada. O próprio fato de eu ter
sido convidada a comparecer ao estúdio, um espaço físico em cujo interior eram guardados
equipamentos de fotografia, fichas cadastrais, álbuns e outros objetos que compunham os
mostruários apresentados a clientes, efetivos ou potenciais, já constituía uma peculiaridade, já

107
que a maior parte de meus interlocutores sequer possuía um espaço comercial onde recebiam
seus noivos73.
Partindo das conversas que tive com Dona Rosa e Seu Pedro, mas também de
observações atentas da homepage da Pedro's Photo Studio, bem como de suas páginas e perfis
em redes sociais e plataformas de vídeo, me pareceu claro que o investimento feito por estes
profissionais na Internet diferia, em muitos aspectos, dos usos feitos por fotógrafos como
Letícia, Leonardo ou Luciana e Gabriel Werneck, apenas para citar alguns de meus
interlocutores que encaravam o universo on-line como um importantíssimo espaço de
construção de reputação. Esta constatação tem fundamentos diversos, mas apenas para
mencionar um deles, exponho um contraste entre o relato de Seu Pedro acerca de sua inserção
no mercado de fotografia de casamento e o de Leonardo.
Segundo me contaram Seu Pedro e Dona Rosa, quase cinquenta anos antes, o primeiro
fora proprietário de um pequeno restaurante no centro do Rio. “Ele já gostava muito de andar
com uma máquina fotográfica pra tudo que era lugar”, salientou Dona Rosa, que também
relatou que foi um concunhado, dono de um tradicional estúdio de fotografia, quem iniciou Seu
Pedro na profissão. Apostando que a fotografia poderia representar um negócio mais promissor
do que seu restaurante, Seu Pedro “fechou o estabelecimento e tirou o diploma de fotografia”
na antiga Escola de Belas Artes. O fotógrafo recém-formado teria passado então a acompanhar
um fotógrafo profissional em cerimônias de casamento até o momento em que se sentiu seguro
para trabalhar por conta própria: “Aí, depois de um certo tempo, quando ele se achou capaz, aí
alguém também acreditou nele e contratou o serviço dele, aí fluiu”, disse Dona Rosa.
Intrigada com o processo que minha interlocutora sintetizou com o verbo “fluir”, pedi
que ela me contasse um pouco mais sobre o modo como Seu Pedro conseguiu seus clientes e
estabeleceu-se no mercado. A conversa então se desenrolou da seguinte maneira:

Dona Rosa: Eu vou te dizer que há quinze, vinte anos atrás, era praticamente indicação,
tá? Ninguém contratava um profissional sem indicação. Hoje isso tá mudando um
pouco.

73
Não eram poucos os fotógrafos de casamento que afirmavam que, via de regra, não tinham encontros presenciais
com seus clientes até o dia do casamento. Nestes casos, meus interlocutores contavam que a comunicação com
potenciais clientes e clientes era realizada, fundamentalmente, por e-mail, WhatsApp e também por meio de redes
sociais. Considerando o universo mais amplo de meus interlocutores, a maior parte deles desempenhava suas
atividades profissionais (exceto a captura das fotografias nos rituais matrimoniais) em suas casas e, quando
encontravam seus clientes, o faziam em lugares públicos tais como centros culturais, cafés, ou shopping centers
— lugares eleitos também para encontrar a etnógrafa diante da solicitação de entrevistas.
108
Seu Pedro: Hoje tem internet…
Dona Rosa: Hoje tem indicação… por exemplo, as duas clientes que estavam aqui agora
há pouco, as duas já eram nossas clientes por indicação. Elas chegaram aqui por
indicação. Aí depois vira cliente. E aí faz vários eventos da família, e aí vão passando
pros amigos, pros parentes… mas hoje em dia muita gente olha fotografia por site, por
Facebook, entendeu?

Enquanto Dona Rosa discorria sobre o ingresso de Seu Pedro na profissão, o fotógrafo
volta e meia pontuava que “já deu pra ganhar dinheiro como fotógrafo de casamento”, mas que,
hoje em dia, isto era difícil por conta do aumento da concorrência e da diminuição da clientela,
outrora tão abundante que partia, inclusive, de bairros distantes, tanto do ponto de vista
geográfico quanto simbólico (Velho, 2002 [1973]).
Por outro lado, tanto meu trânsito pelos espaços de intercâmbio entre fotógrafos quanto
os diálogos que eu vinha travando com outros profissionais apontavam numa direção diversa.
Com efeito, outros interlocutores de pesquisa não só indicavam que o mercado de fotografia de
casamento havia experimentado uma expansão recente — o que já apareceu, inclusive, no
capítulo anterior — como o tema surgia, com frequência, nas diversas falas em que tratavam
de suas trajetórias profissionais. Dentre estes casos, cito Leonardo, fotógrafo que após descrever
um período prolongado de estudos de fotografia e investimento em equipamentos, assinalou a
divulgação de seu trabalho através de ferramentas digitais como elemento chave para a
construção de sua reputação e atração de novos clientes. Em um dos trechos de nossas
conversas, ele falou sobre seu primeiro casamento, no qual atuou como terceiro fotógrafo de
dois profissionais já estabelecidos no Rio de Janeiro:

Aí fui pro casamento com o equipamento certo e fui como terceiro fotógrafo. Saí de
São Paulo [cidade onde então residia] pagando passagem, pagando tudo, sem ter onde
ficar, pagando hotel. (…) E ali eu cliquei meu primeiro casamento e depois a Janaína
[profissional que atuava como primeira fotógrafa naquela ocasião] gostou do material
e me chamou pra clicar mais umas três vezes como terceiro fotógrafo. E depois, no
quarto, ela falou, “Ó Leo, se você quiser, no próximo você pode vir como segundo e eu
começo a te pagar. E eu comecei a clicar como segundo e pedi pra ela autorização de
alguns casamentos para montar um blog. Ela falou “Ó, esse casamento, esse, esse e
esse”, me apontou uns três casamentos “esses você pode tratar, dar a sua edição e
postar”. Daí eu comecei meu blog. Comecei o meu blog com três casamentos e
investi… eu e minha esposa, a gente sempre tava disposto a fazer o negócio certinho.
E a minha esposa, pô, a Ana é sinistra. Ela além de me apoiar, ela corre muito atrás de
tudo, assim. Ela é daquelas autodidatas e sinistrinhas, assim. (…) Ela foi lá, começou a

109
pesquisar, comprou o site e tal, começou a pesquisar como funcionava a SEO74. Na
época não era esse boom que é hoje em dia, tal. E eu com três casamentos, com duas
semanas de site já tava na primeira página do Google.

Embora em suas falas Seu Pedro e de Dona Rosa levem a crer que eles consideram a
Internet um instrumento não desprezível para seus negócios, ainda assim, me pareceu claro que
a incorporação das novas ferramentas digitais às suas atividades profissionais tenha sido
realizada por eles com certa parcimônia. Para Dona Rosa, o site da empresa e o Facebook eram
espaços nos quais “muita gente olha fotografias”, mas a comunicação com os clientes é feita
por telefone ou pessoalmente, já que é nas visitas destes ao estúdio que estes manuseiam e
atestam a qualidade dos álbuns, assinam contratos, recebem DVD’s contendo as imagens. O
WhatsApp é uma ferramenta que Dona Rosa “até utiliza” “mas é restrito à família”, segundo
me contou. Sem que eu precisasse lhe perguntar sobre as razões da reserva, Dona Rosa
esclareceu que passa o dia todo respondendo a ligações de “noivas ansiosas” e que não gostaria
de estender estas conversas para fora do horário comercial: “se eu tiver WhatsApp, acho que
acabou minha vida”, resumiu.
Por outro lado, a relação de Leonardo com o universo digital parecia mais orgânica, por
assim dizer. Quase todo seu relacionamento com clientes é mediado por redes sociais e
aplicativos de mensagens, de modo que as conversas telefônicas e os encontros pessoais são
raros. Conversando sobre o seu cotidiano de trabalho, Leonardo demonstra com clareza que sua
página no Facebook, seu blog e seu site são centrais para a construção de sua reputação e
consequente captação de clientes (não é por acaso que este fotógrafo atribui sua rápida ascensão
profissional à habilidade de sua esposa em manejar a SEO). Em uma de nossas conversas ele
contou, por exemplo, que seleciona criteriosamente as fotografias que exibe nestas mídias,
tendo em mente o público que lhe interessa atrair. Em outra passagem, disse que é através do
Facebook que seus clientes têm acesso aos primeiros registros profissionais de seu casamento:

O que eu faço, assim, antes de eu divulgar as fotos pros noivos, eu ponho o slideshow
no Facebook deles. Cerca de 100 fotos, uns dez minutos de slideshow. (…) Peço
autorização, peço por inbox pra ela marcar todos os padrinhos… cara, a galera pira.

74
A sigla corresponde à expressão em inglês “Search Engine Optimization” (ou otimização para motores de busca)
e diz respeito a um conjunto de técnicas que permitem influenciar os algoritmos das ferramentas de busca (tais
como o Google) de modo a colocar um determinado site em posição de destaque nas páginas de resposta destes
buscadores.

110
Pira. (…) Então o que eu coloco ali, sei lá, eu tiro cinco mil no dia e eu entrego 600,
700, no slide tem 100, imagina! Tá o supra-sumo ali (…) E hoje em dia eu sobrevivo
só de indicação. Eu não anuncio já tem dois, três anos.

Em ambos os casos relatados, a indicação é mencionada como elemento crucial para o


sucesso do fotógrafo de casamento75. Com efeito, a indicação perpassa os discursos de todos
os meus interlocutores como algo diretamente relacionado à ideia de confiança, outro
importante termo que integra a dinâmica de reputações neste campo profissional, conforme
voltarei a tratar ao final deste capítulo. Por ora, gostaria de chamar a atenção para o fato de que,
embora indicação e confiança estejam presentes nos discursos de fotógrafos como Leonardo e
de Seu Pedro, elas assumem contornos específicos quando levamos em conta os distintos
contextos nos quais estes elementos são articulados. No caso de Seu Pedro e Dona Rosa, as
indicações parecem ser de ordem familiar e vicinal, sobretudo. São as indicações que fazem
com que Seu Pedro seja chamado a fotografar, com frequência, casamentos de vários
integrantes da mesma família e não raro, de filhos dos casais fotografados por eles 20, 30 anos
mais cedo. No caso de Leonardo, embora a indicação de familiares também cumpra importante
papel, ela também parte de contextos de outra ordem, já que o alcance da divulgação de seu
trabalho parece ser maior. Fica a impressão de que a indicação no contexto descrito pelo jovem
fotógrafo é feita com maior agilidade, via redes sociais, atingindo assim um grande número de
potenciais clientes de uma só vez.
Se ressalto os contrastes entre o casal sexagenário e Leonardo (mas assim como outros
interlocutores da pesquisa), o faço porque este é o tom que dirige a escrita deste capítulo.
Embora reconheça que também pudesse explicitar pontos em comum entre o trabalho, cotidiano
e trajetórias de Seu Pedro e os de outros fotógrafos de casamento, opto por tomar o primeiro
como uma espécie de contraponto que favorece a reflexão em torno da “técnica” que, na
antropologia, tem se firmado como um campo de estudos profícuo76 e, no contexto nativo,
também é compreendido a partir de um conjunto de significados específicos.

75
O tema da indicação como elemento crucial na relação entre prestadores de serviço e clientes aparece também
em outros contextos etnográficos. Por exemplo, Osório (2006), em tese sobre estúdios de tatuagem, assinala a
importância da “indicação” na construção das reputações de tatuadores: “Ter uma indicação de um amigo é como
ter um atestado de que o local é limpo e seguro – mais confiável que o da Vigilância Sanitária, por assim dizer,
muito embora os critérios sejam outros – e de que o tatuador indicado apresenta qualidades artísticas. Preço, ao
que parece, nem sempre é a questão fundamental num ‘boca-a-boca’” (p.70).
76
Dentre trabalhos de cunho etnográfico que procuram explorar as possibilidades analíticas desta noção, ver, por
exemplo, Sautchuk (2007), Mura (2011) e Di Deus (2017).
111
A autora do livro que serviu de base para o meu aprendizado da fotografia apresentou o
capítulo dedicado à técnica, como sendo aquele no qual falaria de modo aprofundado sobre
“luz, botões, configurações e números”. Não só esta descrição sucinta correspondia ao meu
imaginário acerca de técnica fotográfica como, de fato, muitas das alusões à técnica com as
quais me deparei ao longo do trabalho de campo mencionavam pelo menos alguns desses
elementos. Conforme o trabalho de campo avançava, entretanto, eu entrava em contato com
novas formulações a respeito da técnica, percebendo, inclusive, variações na sua definição entre
os fotógrafos de casamento.

Para alguns de meus interlocutores, técnica era algo que dizia respeito,
fundamentalmente, às diferentes possibilidades de lidar com a câmera fotográfica. Controlar a
abertura do diafragma, o tempo de exposição, o ISO e o balanço de branco eram assim
consideradas questões de técnica por excelência. Outros interlocutores, ao tratarem de técnica,
a definiam de maneira mais abrangente, admitindo que ela era integrada também pela tríade
luz-momento-composição ou ainda compreendia as estratégias adotadas pelos fotógrafos ao
dirigirem fotos posadas. De todo modo, o que meus interlocutores pareciam afirmar a todo
momento, e de maneira contundente, era que o conjunto de conhecimentos que denominavam
de técnica era um pré-requisito mínimo para qualquer pessoa que cogitasse desempenhar a
profissão de fotógrafo de casamento.

Considerando a formulação de Marcel Mauss sobre técnica (2003 [1934]) e operando


um desdobramento das reflexões deste autor, ressalto que pensar em técnica a partir de
observações realizadas junto a fotógrafos de casamento, se traduz em atentar, por exemplo,
para os modos como estes se servem de seu equipamento, de seu corpo (mãos, dedos, joelhos)
e sentidos (em especial, o olhar) a fim de desempenhar seu trabalho. O domínio da técnica
conjuga o aprendizado e a incorporação de parâmetros estéticos, convenções e técnicas
corporais num processo de caráter eminentemente social. Assim sendo, pensar no trabalho dos
fotógrafos de casamento pelo viés das técnicas oferece ao pesquisador inúmeras possibilidades
de análise. Eu poderia refletir, por exemplo, sobre as diversas etapas e processos envolvidos no
aprendizado da profissão. Poderia, igualmente, me debruçar sobre as consequências da
substituição da fotografia analógica pela tecnologia digital no segmento da fotografia de

112
casamento. Poderia pensar ainda nas técnicas como o conjunto de estratégias77 das quais meus
interlocutores lançam mão a fim de produzir fotografias que classificam como belas,
emocionantes ou verdadeiras — retomando aqui algumas expressões recorrentemente
empregadas por eles ao enumerar qualidades desejáveis para tais imagens.

Contudo, dado o escopo desta tese, neste capítulo pretendo abordar a noção da técnica
aqui tendo em vista a questão que orienta a escrita deste texto de modo mais geral,
demonstrando como o olhar sobre ela é revelador de processos de construção de reputação entre
fotógrafos de casamento, problema central que orienta esse trabalho. Farei isto em três etapas:
primeiro, buscando pensar na relação dos fotógrafos com a câmera fotográfica, um “objeto
técnico” (Di Deus, 2017, pp. 26-27) que ocupa lugar de centralidade dentro do vasto aparato
tecnológico do qual se servem os fotógrafos de casamento para a realização de seu trabalho.
Em seguida, dedicarei atenção ao processo posterior à captura das imagens nos ritos
matrimoniais, denominado genericamente de edição. Finalmente, tecerei breves considerações
a partir de minhas observações sobre o modo como meus interlocutores interagem com seus
cartões de memória.

A câmera fotográfica

Talvez o observador ocasional não atente para o extenso conjunto de objetos que
integram o cotidiano do fotógrafo de casamento profissional. Ao longo desta tese já apareceram
alguns deles: cartões de memória, dispositivos para iluminação, pilhas e baterias. Há ainda uma

77
Apenas para citar um exemplo, certa vez ouvi um palestrante “ensinar truques” a seu público que, segundo ele,
permitem aos fotógrafos obterem de seus noivos “sorrisos mais naturais”. Na ocasião, ele demonstrava sua técnica
com o auxílio de dois integrantes da plateia que subiram ao palco por pedido seu. Dirigindo-se ora ao casal com
quem dividia o palco, ora ao público, assim dizia o palestrante: “Se vocês simplesmente pedirem que os noivos
sorriam, é muito provável que vocês só consigam deles sorrisos forçados. Por exemplo [agora voltando-se ao casal
de voluntários], sorriam que eu vou tirar uma foto. [após a captura da imagem, continuou conversando com o
casal]. Agora é o seguinte, esqueçam os sorrisos que eu tenho uma tarefa pra vocês dois. Por favor, pensem qual
é a cor favorita do seu par, pensem, mas não falem! Pensaram? Muito bem. Agora eu vou contar até três e quando
eu disser ‘já’ cada um diz a cor que o outro prefere. Entenderam? [após sinalizarem positivamente com um
movimento de cabeça, o fotógrafo-palestrante se posicionou diante deles para capturar mais imagens]. Agora: um,
dois, três e já! [os dois integrantes da palestra disseram simultaneamente a palavra “verde” e, em seguida, puseram-
se a rir da coincidência. Neste instante o fotógrafo pressionou algumas vezes o botão obturador de sua câmera. E
então, mais uma vez se dirigindo à plateia, o palestrante arrematou da seguinte maneira] Vocês percebem a
diferença entre pedir que os noivos sorriam e estimular uma gargalhada natural? Existem muitas técnicas para
conseguir fazer fotos naturais e eu ensino várias delas em meu workshop”.

113
série de componentes que entram em cena na etapa conhecida como edição ou pós-produção,
tais como computadores, HDs externos, fios e conectores. Seria possível ainda incluir neste rol
tripés, mochilas, filtros para lentes. Em suma, desempenhar o trabalho de fotógrafo de
casamento significa, necessariamente, colocar-se em contato com instrumentos de trabalho
considerados mais ou menos imprescindíveis para o exercício da profissão.
Por outro lado, que não há fotógrafo de casamento sem o dispositivo ótico que lhe
permite capturar as imagens do ritual, não é preciso dizer. Com efeito, a câmera fotográfica78
não é apenas o instrumento de trabalho fundamental do fotógrafo, mas funciona como símbolo
de sua profissão. Não é por acaso que representações gráficas da câmera fotográfica estampam
objetos decorativos, cartões de visita, sites, material promocional, tatuagens: a câmera é o
objeto síntese do fazer do fotógrafo de casamento (para não dizer do fotógrafo, de modo mais
amplo).
O sentimento de que observar com cuidado a interação de meus interlocutores com as
câmeras fotográficas poderia ser rentável para a pesquisa apareceu já nos primeiros dias de
trabalho de campo. No congresso que descrevi no primeiro capítulo, chamava minha atenção o
forte interesse pelos modelos de câmeras exibidos ali. Neste sentido, eu destacaria, em primeiro
lugar, que, ao contrário dos funcionários que trabalhavam em stands de outros tipos 79 (em
especial aqueles que atuavam nas encadernadoras de álbuns e acessórios periféricos), aqueles
que representavam os grandes fabricantes de câmeras fotográficas não pareciam empregar
qualquer esforço para atrair potenciais clientes. Era como se as câmeras por si só já dessem
conta da tarefa. Assim, sempre que a área da feira registrava maior movimento de pessoas (em
geral, nos intervalos das palestras que ocorriam no palco principal) formavam-se pequenas
aglomerações ao redor dos aparelhos. Ainda nos stands, uma vez que os fotógrafos se

78
Devo esclarecer que ao me referir nesta seção à câmera, estou me referindo também à lente. Pois a lente é um
objeto ambíguo: ora ela é tratada como acessório (já que ao corpo de uma câmera podem ser acoplados vários
tipos de lente), ora como parte integrante da câmera (neste sentido, é importante esclarecer que o corpo da câmera
não funciona sem a lente). Isto posto, esclareço que, ao tratar da câmera, refiro-me ao corpo e à lente como um só
conjunto.
79
De modo geral, as estratégias para atrair os congressistas e obter seus contatos através da leitura do código de
barras impresso nos crachás eram, aos meus olhos, quase agressivas. Se na maior parte dos casos, os representantes
das marcas procuravam atrair os passantes com sorrisos e princípios de conversas, algumas vezes tive meu crachá
escaneado sem que sequer tenha sido solicitada autorização para tal (o que se refletiu em infindáveis e-mails
promocionais enviados para meu endereço eletrônico que, aliás, perduram até o momento que escrevo estas linhas).
Cabe assinalar que também me chamou particularmente a atenção uma marca de acessórios de fotografia (tais
como rebatedores e dispositivos de iluminação) que mantinha sempre duas ou três mulheres circulando pelo
ambiente da feira em trajes curtíssimos, com decotes profundos e maquiagem carregada em busca dos dados dos
congressistas do sexo masculino que por ali circulavam.
114
aproximavam das câmeras, o movimento quase que automático era de tomá-las nas mãos,
examinando-as com minúcia para em seguida elevá-las à altura dos olhos, mirando o visor. Aos
atendentes que estivessem por perto, eram dirigidos comentários e perguntas e, caso os
fotógrafos estivessem acompanhados de alguém conhecido, era de praxe que o manuseio das
câmeras desse início a conversas animadas.
Também em outras situações de campo pude observar o interesse despertado pelas
câmeras por parte de fotógrafos de casamento. Em ambientes de encontro entre estes
profissionais, elas frequentemente se tornavam temas de conversas. Nas redes sociais, em
especial nas páginas do Facebook que eu acompanhava sistematicamente, eu notava que
perguntas e comentários postados a respeito das câmeras desencadeavam debates com
regularidade. Marcas, modelos e lentes, valores e qualidade, facilidade de manuseio e
durabilidade eram alguns dos tópicos sobre os quais os fotógrafos de casamento argumentavam.
Nas entrevistas que eu fazia as câmeras ganhavam destaque, sobretudo, quando meus
interlocutores, ao serem questionados a respeito de seu ingresso na profissão, faziam menções
ao interesse longínquo pelo dispositivo. Fabian contou que seu interesse pela fotografia nasceu
de um processo de experimentação da câmera possibilitado por sua mãe:

a minha mãe sempre fotografou muito a vida da família, assim. Em passeios e viagens,
ela tava sempre com uma câmera e tal. Eu me lembro, assim, até em viagens que ela
deixava uma câmera comigo. Eu, criança, tentava fazer foto pela janela do carro, carro
andando, uma coisa assim que eu me lembro mais antigo de ter usado uma câmera de
entender como funciona, o que acontece quando você fotografa, ver como funciona,
esse tipo de coisa.

Na fala de Leonardo, impressionou-me especialmente a riqueza de detalhes com que


eram descritas as sucessivas câmeras que o fotógrafo teve ao longo da vida, a começar pela
primeira, herança de seu pai80:

Quando eu tinha assim uns dezoito anos, eu tava entrando na faculdade e a minha mãe
se separou do meu pai e meu pai deixou duas câmeras lá. Era uma pequenininha, era
uma Yashica. Pequenininha. E uma maiorzinha que era uma semiautomática que era
Fuji, eu acho que era Fuji essa câmera. Era uma Fuji semiautomática, com duas pilhas

80
Não apenas nos dois casos aqui citados, mas frequentemente verifica-se uma vinculação da câmera com relações
familiares e, poderíamos dizer, afetivas.
115
ainda. É. Aí eu, mexendo nas coisas do meu pai, eu achei aquelas câmeras. E nem me
interessei em fotografar nada não. Era mais as câmeras em si.

A câmera seguinte, uma Sony Alpha 100, foi comprada pelo fotógrafo durante uma
temporada no exterior, segundo me contou. Leonardo pontuou o momento em que começou “a
levar a coisa mais a sério” também com a aquisição de equipamento:

Fui pra escola de fotografia… comprei uma 7D, comecei a investir em equipamento
(…). E eu resolvi fazer o curso básico e gostei. Aí fiz o 1, o 2, o 3… aí decidi fazer
luz, luz master… fiz moda, moda 1… tava, sei lá, querendo conhecer mesmo, estudar.
Acabei zerando a escola. (…) Eu sempre fui chato com equipamento. Então a primeira
lente que eu comprei, quando eu comprei a 7D, eu falei "ah, eu preciso de uma lente
legal, e tal..." Aí todo mundo falou pra eu comprar uma 24-70 2.8, assim, que é a mais
genérica que é uma lente boa. Mas eu falei não e comprei uma 50 1.2, que é tipo…
foda de uma lente (…) E tava limitado também porque a 7D era cropada então ela não
equivale a uma 50mm, ela equivale a uma 80mm. Era fechadíssima. Mas na época eu
não tinha essa noção.

Era notável como Leonardo entrelaçava os fios de sua trajetória profissional fazendo
referências a seus equipamentos. Desde a primeira câmera, passando pelos equipamentos
adquiridos em viagens, o fotógrafo enumerava sem esforço cada uma das câmeras, lentes e
mesmo malas que ao longo de sua trajetória compuseram seu acervo. Achei particularmente
curioso quando, a certa altura, ele se admirou por ainda ser capaz de lembrar do nome dos
noivos de seu primeiro casamento fotografado. Já a memória apurada quanto aos dispositivos
que tivera ao longo da vida parecia ser naturalizada:

Meu primeiro casamento no Brasil foi na Casa de Santa Teresa, foi… porra , eu até
lembro dos noivos, foi Paulo e Patrícia. Eu fui com a minha [lente] 50mm só que nessa
época eu já tinha mudado essa câmera por uma 5D (…) que era a câmera full frame,
que correspondia a minha lente certinha.

Se, já num primeiro momento, tamanha atenção dedicada à câmera fotográfica por parte
de meus interlocutores despertava meu interesse, alguns discursos a respeito deste objeto o
intensificaram ainda mais. Refiro-me, em especial, às mensagens proferidas por profissionais
considerados experientes que buscavam relativizar a importância da câmera fotográfica. Frases
como “o equipamento não faz o fotógrafo”, “não fazemos fotos apenas com a câmera”, “o que
importa é o olhar do profissional” eram variações de mensagens que soavam como alertas
dirigidos aos fotógrafos de casamento ou aspirantes que integravam as plateias em congressos

116
e palestras, ocupavam lugar de alunos nos cursos on-line ou constituíam o grupo de leitores de
sites, blogs e revistas especializadas.
Embora as anotações feitas em campo dêem a entender que tais frases, na maior parte
das vezes, vinham à tona sem que fossem acompanhadas de grandes explicações, encontrei em
meio aos meus registros de áudio uma fala um pouco mais nítida que se relaciona com o tema.
Trata-se de um trecho da palestra de Francisco Salles, profissional cujo nome é vastamente
conhecido entre fotógrafos de casamento e é proprietário de uma escola de fotografia pela qual
passaram, em algum ponto de suas carreiras, diversos interlocutores. Durante a edição de 2017
do congresso Fotografar, assim discorreu Francisco sobre o tema:

Teve uma época que eu fotografava o casamento com três câmeras, eu tinha oito lentes
na bolsa. É verdade, gastei uma grana e em vários momentos eu me sentia perdido
porque se eu entrava no casamento e não utilizava todas as lentes, eu sentia que tava
alguma coisa faltando. E aí, gente, a energia não vai pra fotografia, não vai pra
observação. A energia vai pra quê? Pra trocar equipamento. Hoje eu fotografo a festa
com uma câmera, o making of e a cerimônia com duas câmeras, três lentes, um flash
e mais nada. Não tem led, não tem mais nada. Só os cartões de memória, mais nada.
O interessante é que não é só a história da economia — o que já é muito importante.
Mas o tanto que a gente começa a enxergar e ampliar nossos canais perceptivos, o
nosso poder de enxergar o que está acontecendo ali.

Francisco não foi o único fotógrafo que cruzou meu caminho a afirmar que tornar o
equipamento utilizado para fotografar os casamentos mais enxuto havia produzido efeitos
positivos sobre a qualidade de seu trabalho. Jéssica contou sobre o mesmo palco, algumas horas
mais tarde, que recentemente tinha passado a fotografar seus eventos utilizando apenas uma
câmera em lugar de várias e que isto lhe permitia “prestar mais atenção no casamento”. Eu
entendia, a partir de discursos como os de Francisco e de Jéssica que, embora tais fotógrafos
não menosprezassem a importância de empregar cuidado na escolha de suas câmeras
fotográficas (que reconheciam como dispositivo fundamental para seu trabalho), esta não
deveria ofuscar outras dimensões inerentes ao trabalho do fotógrafo de casamento. As câmeras
e demais equipamentos fotográficos requerem dos fotógrafos, além de investimento financeiro
considerável, substancial dose de tempo e energia (empregados tanto em sua escolha quanto
em sua utilização). Dada a centralidade da câmera e o fascínio que se verifica entre os
fotógrafos, vários palestrantes chamam atenção para o risco de um suposto excesso de
investimento no equipamento em detrimento de outros igualmente importantes. Notadamente,

117
a atenção voltada para a câmera, segundo eles, pode produzir profissionais que negligenciam a
técnica, a sensibilidade e a criatividade dos fotógrafos de casamento.
Também nas entrevistas, o tema surgia. Leonardo que, conforme vimos, narra sua
trajetória profissional fazendo referência a suas câmeras, toma o cuidado de denunciar o uso
não capacitado da câmera, tecendo uma crítica difusa àqueles que supostamente se utilizam
profissionalmente da câmera fotográfica sem estarem devidamente “capacitados
fotograficamente”. De modo semelhante, é recorrente na interação entre fotógrafos as menções
críticas a falas desabonadoras que, segundo sugerem estes profissionais, reiteradamente
desqualificam seu ofício, sendo talvez a frase “é só apertar o botão” a que melhor sintetiza tais
discursos. Em resposta, surge, também recorrentemente, a afirmação de que “o que faz o
fotógrafo não é o equipamento, mas a pessoa”.
Um retorno às minhas visitas ao Pedro's Photo Studio pode nos ajudar a construir uma
compreensão mais alargada dos discursos daqueles que rejeitavam a centralidade da câmera no
fazer fotográfico, reivindicando que esta posição cabia ao fotógrafo. Especificamente, penso
em uma de minhas conversas com Seu Pedro e Dona Rosa, quando vieram à tona algumas das
diferenças sobre as câmeras utilizadas pelo fotógrafo há algumas décadas e as de hoje. Segundo
Dona Rosa:

A máquina era uma máquina muito profissional. Tanto que quando o Pedro
fotografava com aquela máquina (…) as pessoas diziam assim, “nossa, que máquina
é essa?” Assim, as pessoas ficavam encantadas com o equipamento que o profissional
usava. E a diferença era essa: a gente lá na Zona Norte, morando na Penha e com um
estúdio que não era nem num prédio comercial e eu tinha noiva de Ipanema, da Barra,
de Copacabana… de todos os cantos do Rio de Janeiro. Porque elas diziam assim:
“existe uma diferença da nitidez da foto… porque era o filme. Não era só o fotógrafo.
Era o material que você usava, entendeu?

Ao meu ver, a fala de Dona Rosa (que, como no restante da entrevista, foi assentida por
Seu Pedro) apresenta uma oposição bastante interessante em relação aos discursos que eu
costumava ouvir, posto que ela delineia a ideia de que, há algumas décadas, a distinção entre o
fotógrafo amador e o profissional — ou ainda entre o bom e o mau fotógrafo — era
determinada, em grande medida, pelo equipamento que o profissional utilizava. “Hoje, com a
era digital”, destacou Dona Rosa, “Canon, Nikon, tem um modelo um pouco melhor, mas são
muito parecidas”. Com essas palavras, Dona Rosa delineia um passado no qual a diferença entre
o equipamento utilizado por profissionais e amadores era tamanha que era perceptível a olhos

118
nus. Conforme seu testemunho, não era necessária expertise fotográfica para que pudesse ser
percebida a superioridade da “máquina muito profissional”.
A ideia de que a aparência de certas câmeras é capaz de “impressionar” ou “impor
respeito”81 emergiu também em outras situações de campo. Ela estava implícita, por exemplo,
na discussão travada por um pequeno grupo de fotógrafos que cogitavam substituir as câmeras
DSLR pelas mirrorless82 para fotografar casamentos. Conforme ponderavam, câmeras do tipo
mirrorless possuíam a vantagem de serem mais leves e, portanto, mais fáceis de carregar. Por
outro lado, prosseguiam, era preciso considerar o risco do benefício da câmera menor se
converter em desvantagem: segundo eles, diante de uma câmera com aquela aparência, seus
clientes poderiam encarar o novo equipamento como “menos profissional” e colocar em dúvida
também a seriedade dos fotógrafos. Em outro momento, eu conversava com Leonardo (que
utiliza uma câmera menor do tipo mirrorless para fazer fotografias de rua) e mencionei a
possibilidade de ter questionada a seriedade como fotógrafo por conta do equipamento
utilizado. Ele então me contou sobre um projeto fotográfico que tinha realizado em um aterro
sanitário meses antes. Segundo seu relato, vendo o porte diminuto de sua câmera, os homens
que lá trabalhavam compararam seu equipamento aos dos demais fotógrafos que ali estavam e
puseram-se a revirar o lixo falando em tom de troça: “bora achar uma câmera nova pra esse
japonês, coitado!”.
Situações como as que acabo de expor informam que a câmera é um objeto tão
carregado de valor do ponto de vista simbólico que, para muitos fotógrafos de casamento,
encontra-se disseminada no senso comum a ideia de que ela “faz o profissional”. Neste sentido,
não me parece ser mero acaso que, em todas as situações que descrevi, a visão de que a câmera
constitui o elemento fundamental que delimita quem pode ou não ser considerado fotógrafo

81
Cabe mencionar uma experiência que vivenciei enquanto aluna de fotografia durante uma “aula prática”
realizada na Feira de São Cristóvão, conhecida área de comércio e lazer da Zona Central do Rio de Janeiro.
Buscando realizar meus registros, abordei um dos feirantes a fim de pedir autorização para fotografá-lo e acabei
me vendo engajada em uma longa conversa. A certa altura, ele manifestou um desconforto em relação ao “pessoal
que fica fotografando” e expôs, inclusive, as razões de sua desconfiança. Apontando para um de meus colegas,
que carregava uma câmera com uma lente longa acoplada — o que a tornava muito maior do que a minha — meu
interlocutor foi enfático: “olha só a câmera do sujeito. Vai me dizer que ele é estudante? Não cola! É diferente de
você… a sua câmera a gente logo vê que é de amadora”. A julgar pela reação do feirante, a aparência da câmera
fotográfica, não apenas é capaz de impressionar, mas também de ameaçar em alguns casos.
82
Ao leitor não familiarizado com os termos, esclareço que as câmeras DSLR (digital single lens reflex) são as
câmeras mais usadas por profissionais, por permitirem total controle de configurações e utilizarem lentes
intercambiáveis. As mirrorless são câmeras que chegaram mais recente ao mercado e, ao contrário das câmeras
DSLR, não possuem um dispositivo ótico (com espelho e prisma), o que as torna mais compactas e leves. Durante
a realização do trabalho de campo, eram poucos os fotógrafos de casamento que a utilizavam profissionalmente.
119
profissional parta de leigos. Tudo leva a crer que a insistência de meus interlocutores em rejeitar
esta ideia repetindo frases como “o equipamento não faz o fotógrafo”, “não fazemos fotos
apenas com a câmera”, “o que importa é o olhar do profissional” são tentativas de fazer
reverberar a ideia de que, sem aquilo meus interlocutores chamam de técnica fotográfica, não
se faz registros fotográficos de qualidade profissional. Nesta perspectiva, o bom fotógrafo de
casamento não é aquele que possui uma câmera excepcional, mas aquele que detém
conhecimento técnico que lhe permite operar seu equipamento, mas que é também um bom
observador, criativo e preparado para registrar os momentos.
Se a técnica, conforme nos ensina Mauss (2003 [1934]), pressupõe um domínio do
corpo — um habitus — que antecede o domínio dos instrumentos técnicos, argumento que, no
caso dos fotógrafos, a técnica corporal se inscreve especificamente no olhar. Há aqui uma
distinção em relação ao que meus interlocutores entendem ser próprio do senso comum, a saber:
a associação corrente entre a técnica fotográfica e o objeto técnico (no caso, a câmera). O que
meus interlocutores parecem argumentar a todo tempo, ao contrário, é que o olhar, enquanto
técnica no sentido proposto por Marcel Mauss, é aprendido a partir da tradição. Posto de outro
modo, o olhar83 do fotógrafo, com sua capacidade de perceber momentos, mas também luzes e
cores, sombras e linhas, é aquilo que os habilita tecnicamente segundo eles próprios.
Tenho a impressão de que, para Seu Pedro, a valorização da profissão não passava
necessariamente pelos esforços de distinção entre objeto técnico e técnica, conforme eu
verificava ouvindo outros interlocutores. Suponho que isto se relaciona ao fato de que, durante
a maior parte do tempo em que Seu Pedro exerceu a profissão a posse do “equipamento
profissional”, por si só, já era capaz de demarcar a distinção entre as fotografias feitas por um
profissional e aquelas que eventualmente pudessem ser produzidas por amadores. Conforme
me explicou Dona Rosa, “até o filme que você usava era diferente” pois “o negativo dele era
enorme… chamava-se médio formato”.
Nos três encontros que tive com Dona Rosa e Seu Pedro, o casal sinalizava que o
desempenho de suas atividades profissionais se dava de modo completamente alheio aos
circuitos de construção de prestígio no qual eu realizava minha pesquisa. Nas conversas
gravadas (que somaram mais de três horas), não encontrei uma só menção a congressos,
workshops, mentorias ou concursos de fotografia. Quando questionados sobre o aprendizado

83
Parece-me pertinente uma menção ao trabalho de Oliveira (2000, p.19) que entende o olhar como sentido passivo
de domesticação.
120
da profissão, Dona Rosa e Seu Pedro me contaram sobre a Escola de Belas Artes onde o
fotógrafo havia “tirado curso”. Eles também falaram sobre o processo, para eles nada simples,
de adaptação às câmeras digitais. Mas posto que Wedding Brasil, Fotografar, Inspiration
Photographers e Golden Lens não apareceram em seus discursos, me pareceu razoável pensar
que aqueles não eram espaços por eles frequentados, conhecidos ou, ao menos, valorizados.
Na perspectiva de Seu Pedro, o segmento da fotografia de casamento é cada vez mais
desfavorável aos profissionais que dele participam. É interessante notar como, em seu discurso,
a deterioração de suas condições de trabalho aparece relacionada às mudanças tecnológicas de
seu principal instrumento de trabalho:

Seu Pedro: Quando era filme, num casamento a gente tirava 150, 160 fotos no
casamento todo. Na igreja… é, no máximo duzentas na igreja e na festa. Hoje em dia
não, é oitocentas, mil fotos. E fica mais horas de trabalho. Antes a noiva mandava a
gente pra igreja e pra festa, dava seis horas. Hoje é doze horas.
Dona Rosa: Ai de você se você esquecer um detalhe hoje em dia, porque a noiva vai
reclamar depois.
Seu Pedro: Tem que fotografar cada detalhezinho. (…) Você ganhava dinheiro naquela
época, hoje em dia não. Naquela época você vendia uma foto 10x15, há 15 anos atrás
você vendia por 3 reais. Hoje você não vende ela por 1 real. Ninguém quer. Hoje em
dia, com o digital, parou de fazer fotos… você ganhava dinheiro.

Se a visão que Seu Pedro apresentava sobre a fotografia de casamento contrastava com
as expressões dominantes nos circuitos de consagração nos quais realizei a maior parte de
minha pesquisa, isto é, de que este era um segmento de negócios em plena ascensão, eu
constatava que esta oposição guardava relação também com as distintas representações em
torno da câmera fotográfica nos dois contextos. Creio que meu argumento pode ser melhor
elaborado se o estabelecermos em diálogo com o campo da antropologia do trabalho. Neste
sentido, proponho que nos voltemos para uma etnografia sobre o trabalho e o modo de vida dos
operários da parte industrial de usinas de açúcar realizada por José Sergio Leite Lopes na década
de 1970. Comentando a descrição do processo produtivo feita por operários conhecidos como
profissionistas, o autor escreve:

Quando perguntamos a respeito de como é o trabalho na usina, eles tendem a começar


sua descrição exatamente do lugar em que a cana entra na fábrica e acompanham todo
o percurso de transformação da matéria-prima pelas diversas máquinas parciais
sucessivas. Fascinado pelo percurso da cana, com a atenção presa aos caprichos do seu
aparelho e tomado pelo ritmo ensurdecedor do pleno funcionamento da ferragem, o

121
operário profissionista da fabricação limita ao mínimo indispensável a menção a
qualquer operário na sua descrição do processo produtivo. É como se os profissionsitas
fossem a própria encarnação da definição de classe operária de Halbwachs, a saber “o
conjunto de homens que, para darem conta de seu trabalho, devem voltar-se para a
matéria, e sair da sociedade” (Halbwachs, 1972: 60 e 1970). (Lopes, 1976, p.24)

Se consideramos os discursos proferidos pelos fotógrafos de casamento sobre os palcos


dos congressos, em palestras e cursos, verificamos que estes profissionais parecem caminhar
em direção diametralmente oposta dos “profissionistas” ouvidos por Lopes. Assim, em lugar
de dedicar atenção para “a relação com a maquinária” (idem), meus interlocutores
reivindicavam que o desempenho de suas atividades profissionais ligava-se, primeiro, a
habilidades técnicas adquiridas no curso de suas trajetórias e, a partir daí, a sua capacidade de
observar os acontecimentos do ritual, de perceber e registrar momentos e também à
sensibilidade e criatividade do profissional. Ao meu ver, isto torna produtiva a discussão
também com a figura do “artista” — que na etnografia de Lopes é apresentada como uma
categoria nativa, mas que servirá aqui como elemento de análise, posto que denota um modelo
de profissão e de organização do trabalho. O “artista”84 é apresentado pelo autor por oposição
ao “profissionista”, ressaltando-se que o primeiro confere maior importância à atuação do
trabalhador no processo de produção fabril. Segundo o autor:

Se o professionista tende a se auto-excluir enquanto trabalhador ao descrever o processo


produtivo e enquanto categoria entre o servente e o artista, este, ao contrário, tende a
ressaltar a figura do professionista e de seu trabalho quando descreve o processo
produtivo na fabricação. (p.34)

Ainda sobre os operários que nas usinas são chamados pelos próprios trabalhadores de
“artistas”, Lopes sublinha que sua importância na produção é marcada pelo emprego do verbo
“fazer”:

84
Na literatura sociológica, outros enquadramentos conceituais para a categoria “artista” nos ajudam a refletir
sobre o processo de construção de reputação e prestígio da profissão e dos profissionais. Antecipo ao leitor que,
neste sentido, a oposição entre “arte de artesão” e “arte de artista” sugerida por Norbert Elias (1995[1991]), bem
como o “modelo artesanal” problematizado por Wright Mills 1976 [1951] serão abordados mais adiante na tese.
Adicionalmente, sublinho que o termo “artista” também surgiu em meu trabalho de campo enquanto categoria
nativa. Pelo tipo de discussão que esta suscita, pretendo explorá-la mais detidamente no quinto capítulo.
122
O fazer do artista ressalta o aspecto artesanal de seu trabalho, no sentido de ver sua obra
acabada após ter percorrido ele próprio as etapas necessárias a sua realização. (p.36)

A descrição de Lopes do “artista” abarca a ideia de que este operário valoriza “a


organização da produção fluida e móvel da oficina” (p.37), na qual a divisão interna do trabalho
“não imobiliza de maneira imperativa o trabalhador em tarefas parcelares” (idem). Ao
contrário, o “artista” é alguém que mantém algum nível de controle sobre seu trabalho bem
como a organização do tempo para sua execução, opondo-se ao trabalho mecânico e monótono
da fabricação do “profissionista”. O “fazer do artista” é delineado assim como elemento de
autovalorização do trabalhador, na contramão da desvalorização do trabalho manual próprio da
ideologia dominante.
Podemos, portanto, pensar nos fotógrafos já mencionados ao longo desta tese a partir
dos modelos de trabalho dos “profissionistas” e dos “artistas” descritos por Lopes. A julgar
pelo modo com que descreve seu trabalho, isto é, sem procurar retirar seu equipamento, e em
especial sua câmera fotográfica de um lugar de centralidade em suas atividades, Seu Pedro se
aproximaria do primeiro modelo. Por outro lado, profissionais como Francisco, Jéssica,
Leonardo e Letícia que em seus discursos enfatizam a centralidade do fotógrafo seriam
identificados com o segundo modelo. Outros elementos corroboram esta observação: por
exemplo, o modo com que Dona Rosa apresenta o trabalho de seu marido como parte de uma
cadeia produtiva (ele captura as fotos, enquanto processos como a seleção e edição das fotos e
também a diagramação dos álbuns são entregues a terceiros). Via de regra, para meus
interlocutores que participam dos circuitos de produção de prestígio que tenho procurado
descrever e analisar nesta tese, estas são atividades realizadas pelos próprios fotógrafos (e,
como veremos na seção deste capítulo dedicada à edição das fotografias, para eles, tais
atividades se relacionam com a autoria do trabalho do fotógrafo de casamento). Se, por um
lado, Seu Pedro faz a maior parte de seus registros privilegiando as poses e os detalhes, para os
fotógrafos com quem estabeleci uma interlocução mais intensa de pesquisa, a obrigação de
capturar imagens deste tipo durante os eventos era encarada como fonte de frustração dada a
repetição e o caráter mecânico da atividade.
Buscar aproximar o trabalho do fotógrafo de casamento do modelo artesanal tal qual
descrito por Lopes, joga luz sobre um esforço coletivo de angariar prestígio para a profissão.
Isto se faz, por um lado, conferindo à atividade um caráter mais dinâmico, no qual a técnica
adquirida através de estudos e prática é requisito básico para o exercício da profissão (ainda

123
que a técnica não se sustente sozinha, como deverá ficar claro mais adiante na tese). Por outro,
procura-se produzir um protagonismo do fotógrafo de casamento em relação a sua câmera
fotográfica, rejeitando-se comentários que desqualificam seu ofício, sintetizados em frases
como “é só apertar um botão”.
Revisitando as notas tomadas nos congressos dos quais participei, me dei conta de que
os primeiros minutos das palestras costumavam ser bastante semelhantes. Em geral, os
fotógrafos-palestrantes dedicavam um tempo para interagir com a plateia ou se apresentar e,
ato contínuo, exibiam sobre os telões um slideshow: uma sucessão de fotos de casamento de
própria autoria, em geral acompanhadas de fundo musical. Refletindo sobre a repetição da ação,
me perguntei se tais exibições não corresponderiam a credenciais, como se as fotografias uma
vez que fossem bem avaliadas pelo público legitimassem a posição dos palestrantes. De fato,
com o avançar da pesquisa de campo tornou-se cada vez mais claro que a aprovação pelos pares
das fotografias que produziam constituía requisito básico para a boa reputação dos fotógrafos
de casamentos nesses circuitos. Ao mesmo tempo, logo ficou claro que o modo como tais
registros fotográficos eram produzidos recebia também considerável atenção.
A expressão “cultura da metralhadora”, que volta e meia surgia nas palestras e cursos,
diz respeito à prática (atribuída, por meus interlocutores, a fotógrafos inexperientes ou pouco
preparados) de disparar o obturador indiscriminadamente 85 em busca dos momentos. Na
entrevista que fiz com Fabian, a questão apareceu de forma bastante nítida, ainda que meu
interlocutor não tenha lançado mão da expressão exata em seu discurso. Citando uma frase que
atribuiu ao fotógrafo Cartier-Bresson, Fabian ponderou:

“Até mesmo um cego, se der mil tiros pro ar, derruba um passarinho”. Cara! A câmera
de quatro anos, 600 mil cliques. Que que é isso, velho? 600 mil cliques? Numa câmera
de quatro anos? É muito clique! Caraca! Ah não, não dá pra entender. O cara faz oito
mil fotos no casamento, às vezes eu ouço o pessoal falando. Pô! Por isso que demora
pra editar. Aí vai derrubar um passarinho. Aí um casal que quer identificar isso é difícil
às vezes… aí depende do que o cara vai extrair daquelas oito mil fotos. O cara pode
extrair dez coisas ali que vai mostrar uma coisa que ele não é, porque ele acertou
atirando a esmo. Mas será que ele vai conseguir manter aquilo constantemente? De um
casamento pro outro? Não vai. Aí a pessoa fica sem estilo, sem… uma meta, né, uma
meta visual. Acho que hoje em dia tem muito isso.

85
Embora o número varie bastante entre os diversos modelos de câmeras utilizados pelos fotógrafos de casamento,
basta esclarecer ao leitor que dispositivos populares entre meus interlocutores capturavam, em média, seis quadros
por segundo.
124
Se, por um lado, os recentes desenvolvimentos tecnológicos das câmeras — em especial
a superação dos limites impostos pelos filmes na época da fotografia analógica — permitiram
aos fotógrafos de casamento o abandono gradual das poses e a busca pelos momentos inspirada
pelo fotojornalismo, eles também produziram um efeito indesejável, segundo denunciavam
fotógrafos considerados pelos pares como “experientes”. As consequências que supunham-se
negativas, conforme tangenciado na fala de Fabian acima reproduzida, faziam-se especialmente
visíveis na fase posterior à captura das imagens. Passemos então ao processo de edição.

Edição

Caso eu devesse ranquear as diversas atividades desempenhadas por fotógrafos de


casamento de acordo com a frequência ou intensidade com que estas aparecem em seus
discursos, colocaria no topo da lista, sem medo de errar, a atividade de capturar imagens durante
os ritos matrimoniais. Conforme argumentei na introdução desta tese, fotografar casamentos é,
ao menos à primeira vista, a atividade central da profissão: é ela que confere seu nome e também
é sobre fotografar casamentos que tratam a maior parte dos cursos, palestras, workshops que
observei. Contudo, entre a captura das imagens em ritos matrimoniais e a entrega das
fotografias para os noivos, há uma etapa que, para grande parcela dos fotógrafos com quem
interagi ao longo da pesquisa, demanda um esforço considerável: o tratamento das fotos, em
alguns contextos chamada também de edição ou pós-produção86.

Com efeito, uma de minhas “descobertas” como fotógrafa principiante foi que as
imagens produzidas por meus interlocutores quase nunca saem prontas da câmera fotográfica.
Ao invés disso, fotógrafos profissionais costumam fazer seus registros num formato específico
diferente daqueles feitos por fotógrafos amadores, o que permite maior controle sobre a imagem

86
Procurando informações a respeito, encontrei textos de fotógrafos que defendem haver uma distinção entre os
termos. Por exemplo, há quem diga que “tratar as fotos” é diferente de “editar” posto que a segunda expressão
inclui também a seleção das fotografias de casamento que serão enviadas ao cliente.

125
após sua captura, o RAW87. Para tratar imagens contidas em arquivos RAW é preciso fazer uso
de um software capaz de processá-las 88 . Assim, por exemplo, se as condições em que foi
capturada uma determinada imagem a deixaram mais escura do que o desejado, em poucos
segundos faz-se um ajuste no Lightroom e a foto parece mais clara. Caso o fotógrafo deseje
destacar as cores de uma imagem, deixando-as mais intensas ou destacando uma das demais,
isso também é feito com o auxílio do software. As chamadas “correções”, por exemplo, que
tornam mais lisa a pele de uma noiva ou ameniza rugas também podem ser feitas no Lightroom.
O Photoshop, segundo me explicou uma interlocutora, entra em jogo quando o fotógrafo deseja
manipular imagens. Por exemplo, caso queira “retirar de cena” um objeto ou “abrir o olho” de
uma madrinha que piscou no momento do registro89.

Aprender a utilizar o Lightroom foi a etapa mais custosa no meu aprendizado da


fotografia. Muito embora os sites voltados a fotógrafos de casamento se referissem ao
Lightroom como “intuitivo”, tive muita dificuldade em aprender a operá-lo por conta própria.
Recorri então a aulas anunciadas em uma plataforma de cursos online voltados a fotógrafos de
casamento. O que eu aprendi ali foi o suficiente para que eu pudesse tratar minhas próprias
fotos (ainda que de maneira bastante elementar), mas também me levou à conclusão de que era
preciso muita prática para que minhas habilidades se aproximassem minimamente das de meus
interlocutores. Por exemplo, me impressionou quando depois das primeiras tentativas de tratar
minhas próprias fotos me deparei com o registro da conversa que tive com Bárbara:

87
Ao leitor não familiarizado com o arquivo RAW, apresento um texto retirado do livro que utilizei para aprender
os fundamentos da técnica fotográfica, que considero bastante esclarecedor: “Existem vários formatos de arquivo
digital para nossas imagens. Você provavelmente conhece o JPG, que é o padrão na maioria das câmeras e
celulares. Porém, além dele, você vai gostar de conhecer também um formato que permite mais qualidade e
controle sobre sua foto. Este formato é chamado de arquivo RAW. (…) A diferença entre o formato RAW e o
formato JPG é que o formato RAW grava tudo que a câmera viu, enquanto o JPG tem uma outra etapa: antes de
gravar no cartão de memória, a câmera interpreta as informações e comprime tudo em um arquivo menor. Logo,
o arquivo RAW nos permite a liberdade de processarmos e interpretarmos a imagem nós mesmas, enquanto o
arquivo JPG já sai processado e interpretado pela câmera”. (Regina e Takazaki, 2015, pp. 34-35)
88
O software mais utilizado por meus interlocutores para este fim é o Lightroom e, eventualmente, utiliza-se
também o Photoshop, ambos criados pela companhia americana Adobe Systems. O primeiro é amplamente
utilizado para realizar ajustes (tais como de cores, enquadramento, contraste, brilho, etc.). Já o Photoshop, costuma
ser utilizado para edições como recortes e montagens.
89
Ao leitor familiarizado com estes softwares, é bem provável que minha explicação soe excessivamente
simplificada ou ainda imprecisa. Optei por arriscar a redação deste parágrafo apesar de minhas evidentes limitações
como usuária dos softwares, pensando em possibilitar que o leitor leigo possa acompanhar a continuação da seção.

126
Cristina: E na pós-produção, você trabalha sozinha?
Bárbara: Sozinha. Tudo eu.
Cristina: Tem uma média de cliques?
Bárbara: Em torno de 12 a 15 mil por casamento.
Cristina: E quantos você entrega?
Bárbara: 800… Entre 800 e mil, as vezes chega a 1100.
Cristina: Então você fica mais tempo editando do que clicando?
Bárbara: A minha meta é a cada dez horas clicando, dez horas… o que a gente chama de
editar é escolher e tratar, é tratar mesmo, é mexer na foto. É colocar cor e tal, essas coisas.
Então editar, eu edito hoje muito rápido. Por exemplo, esse casamento que eu tratei e
editei, foram exatamente 18 mil fotos.

Além de minha lentidão para tratar fotos — que imputo à minha falta de conhecimento
e prática em operar o software, para mim esta era uma atividade um tanto quanto enfadonha (ao
contrário de sair na rua para captar novas imagens, que eu achava bastante estimulante) 90 .
Entretanto, com todas as dificuldades que o aprendizado impunha, desde o princípio me
pareciam evidentes os benefícios de se dedicar à tarefa, em termos de melhoria das imagens
capturadas. Com efeito, ainda que em geral os fotógrafos de casamento não falassem
detidamente sobre o tema em suas palestras ou nas entrevistas, com certa regularidade, eu
encontrava em blogs textos que faziam referência à importância desta atividade para a
fotografia de casamento. Em um deles a pós-produção era apontada como “uma das
ferramentas mais importantes para a identidade de um fotógrafo”. Também Letícia costumava
dizer para mim que a edição pode “salvar" ou “matar” uma foto. Não deixa de ser curioso pensar
que fotografias são passíveis de serem tratadas, salvas ou mortas, à luz da teoria sobre “a vida
social das coisas” de Appadurai (2008 [1986], p.17), que questiona a ideia, segundo ele,
arraigada no senso comum ocidental, que opõe o mundo das coisas, inerte e mudo, à capacidade
das pessoas de agir e das palavras de comunicar.

Se, por um lado, meu próprio aprendizado de tratamento de fotos não passou de um
estágio incipiente, ele também se prestou a produzir um efeito significativo em minha própria

90
Há aqui o risco de projetar sobre meus interlocutores minhas próprias impressões, mas estou inclinada a afirmar
que os fotógrafos com quem estabeleci interlocução mais próxima demonstravam um certo pendor à
procrastinação diante da atividade de tratar fotos. De um modo ou de outro, uma coisa é certa: nas palestras de
tom motivacional ou nos vídeos nos quais fotógrafos de casamento celebravam as vantagens da profissão jamais
apareceu menção à atividade de sentar-se diante do computador e permanecer ali por horas tratando fotos.

127
maneira de fotografar. Logo nos primeiros dias como aprendiz de fotógrafa, quando comecei a
apresentar a Letícia algumas imagens que eu produzia, minha interlocutora fez o seguinte
comentário ao observar uma fotografia superexposta91:

Letícia Katz, Quinta, 28 de julho de 2016 às 20:41 UTC-03


nessas situações vc pode perceber a vantagem do arquivo RAW ao invés do JPG. no
RAW vc poderia corrigir a exposição facilmente, com pouca ou nenhuma perda de
qualidade. como se tivesse exposto corretamente direto na câmera. no JPG, não dá pra
recuperar informação estourada do branco ou preta demais na sombra.

Chamando minha atenção para as possibilidades de correção posterior da imagem,


Letícia apontava para a possibilidade de fotografar tendo em mente as mudanças que poderiam
ou não ser feitas mais tarde através de um software de edição de imagens. Conforme eu ia me
familiarizando com esta ferramenta, passei a levar isto em conta enquanto aprendiz. Assim,
passei a encarar o ato de fotografar como exercício de abstração do olhar, um exercício de
imaginação que buscava antecipar no que uma determinada foto se transformaria após o
tratamento da imagem. Havia ali um aprendizado semelhante àquele descrito por Santos sobre
a prática da alfaiataria:

Saber olhar é (…) um esforço para antever os possíveis defeitos que a roupa apresentará
sobre aquela silhueta em específico e um exercício de solucionar os desafios postos pela
combinação de tecidos, medidas corporais, modelos de terno, expectativas, tempo e
habilidades. “Quando vou cortar, quando trabalho, eu tenho o corpo do cliente na minha
cabeça”. (Santos, 2017, p.97)

Alguns meses após minha conversa com Letícia, na ocasião de minha primeira visita ao
estúdio onde trabalhavam Seu Pedro e Dona Rosa, estranhei quando esta descreveu a
dificuldade de cobrir um detalhe na blusa de sua cliente para que Seu Pedro pudesse fotografá-
la. Já submetendo minhas próprias fotografias ao processo de tratamento (ainda que de
desajeitadamente) e atenta aos usos que meus interlocutores faziam de ferramentas de edição,
não compreendi de imediato o porque de desperdiçar tempo fazendo um ajuste que, segundo

91
Dizer que uma fotografia é superexposta significa observar que na imagem há áreas mais luminosas ausentes de
informação de cor e textura. Embora uma fotografia superexposta não decorra necessariamente de um erro do
fotógrafo, no caso em questão foi precisamente o que se sucedeu.
128
minha avaliação, podia ser feito em poucos segundos na etapa da pós-produção. À medida em
que eu conversava com o casal, me ocorreu que o modo como pensava e produzia sua fotografia
não devia levar em conta as possibilidades de edição já que, com a chegada da tecnologia
digital, este trabalho era confiado a terceiros. Conforme explicou Seu Pedro:

Eu usava gilete e pincel, às vezes tirava as rugazinhas fora pra ajeitar o rostinho, ficar
lisinho… quarenta e poucos anos atrás eu tirei o curso de retocagem. Hoje o computador
faz. Naquela época era mais difícil. Mas hoje, com o fluxo de trabalho tão grande… (…)
Porque a gente bate a foto no digital. Aí a gente manda a foto pra outra pessoa pra ela
dar mais brilho ou menos brilho, mais luz ou menos luz. Quem trata a foto é outra
pessoa…

Seu Pedro não foi o único fotógrafo que encontrei durante o trabalho de campo que
delegava o trabalho de edição. Nos demais casos, contudo, isto não ocorria por pouca
familiaridade dos profissionais com ferramentas digitais de pós-produção. Ao delegar a tarefa
a funcionários ou estagiários (nos raros casos em que fotógrafos de casamento contavam com
outras pessoas em sua equipe que não fossem seus cônjuges) era sobretudo um modo de aliviar
o pesado volume de trabalho que a atividade impõe — o que denotava, a meu ver, a existência
de diferentes percepções quanto a importância dada à tarefa por parte dos diferentes fotógrafos.

Na véspera do evento de premiação do Lente de Ouro, num momento em que eu


organizava minhas notas de campo tomadas no dia anterior no quarto compartilhado com
Letícia, observei enquanto minha companheira de viagem posicionava sobre a cama um
computador e HD’s externos. Diante de meu manifesto interesse pelo que fazia e como quem
dá um brinquedo à criança demasiadamente curiosa, Letícia “me adicionou” a um grupo criado
por ela, com o propósito de “ver as possibilidades e a percepção de cada um” dos colegas de
profissão. Segundo me explicou, o grupo funcionava da seguinte maneira: primeiro, algum dos
fotógrafos de casamento que participasse do grupo disponibilizava ali arquivos em RAW, sem
tratamento. A partir daí, outros membros do grupo editavam as fotos como bem entendessem e
postavam as imagens em baixa resolução 92 para que os demais pudessem ver. Estas eram,

92
Este que pode parecer um mero detalhe revela, na verdade, um dado que julgo digno de nota. Quando perguntei
à Letícia a razão pela qual os arquivos são postados em baixa definição, minha interlocutora respondeu que

129
preferencialmente, acompanhadas de textos, nos quais os autores das edições explicavam suas
escolhas. Se Letícia pretendia que eu cessasse com minhas perguntas deixando-a trabalhar em
paz, sua estratégia deve ter funcionado. Lembro-me de ter passado horas a fio vendo as
múltiplas possibilidades de edição para a mesma foto e lendo as justificativas dadas pelos
fotógrafos.
Naquele momento, eram dois os meus principais focos de interesse no grupo. O primeiro
se relacionava a minha condição de aprendiz de fotógrafa: observar os inúmeros tratamentos
possíveis para uma mesma imagem, ler as justificativas dos fotógrafos para suas escolhas e
avaliar quais versões me agradavam mais ou menos me parecia um exercício ao mesmo tempo
divertido e produtivo. Além disso, não demorou para que eu começasse a pensar naquele grupo
como mais um espaço no qual eram construídas reputações — o que parecia ser indicado pelo
número de “curtidas” (likes) que cada uma das fotos recebia, pelos comentários de seus
integrantes a respeito das fotos (“fotão”, “uma foto que eu queria ter feito”), pelos comentários
que louvavam a habilidade de colegas para tratar as imagens (“tratamento daora”, “salvou
muito”) ou ainda, pelos comentários que já não mais diziam respeito às fotografias postadas,
mas a seus respectivos autores (“você arrasa!”, “quero ser você quando eu crescer”).
Se no grupo criado com o intuito de debater as edições, a tônica das discussões era
amistosa, em outro grupo de fotógrafos de casamento que eu acompanhava, volta e meia críticas
sobre o tema tecidas pelos pares resultavam em tretas. Em um dos casos que registrei junto ao
meu material de campo, por exemplo, um fotógrafo postou uma foto de um casal de noivos
abraçados e, junto à imagem, escreveu: “Primeira postagem no grupo! Pós-wedding desse casal
lindo!”. O primeiro comentário, que partiu de outro membro do grupo, dizia “acerte o tom de
pele, eles estão verdes”. No desenrolar da conversa, ficou claro que o autor da foto não gostou
da observação e, a partir daí, os fotógrafos trocaram uma série de insultos nos comentários (o
que foi atentamente acompanhado por outros membros do grupo, conforme denunciava o
número de curtidas no campo de comentários).
Dadas as situações que acabo de descrever, observar os valores acionados pelos
fotógrafos de casamento ao avaliar as edições feitas pelos pares me pareceu algo
particularmente elucidativo. Neste sentido, julguei a expressão “direto da câmera”, que vez
outra acompanhava postagens no Facebook, bastante significativa. A imagem, quando

“realizar o tratamento em alta [resolução] seria “trabalhar de graça” indicando que esta é uma atividade que cabe
ao “dono da imagem”, isto é, ao primeiro fotógrafo de um determinado evento.
130
acompanhada da observação de que foi postada direto da câmera sugeria que ela não recebera
qualquer tipo de tratamento (exceto, talvez, a simples conversão do arquivo de RAW para JPG).
Considerando as reações a postagens deste tipo, tornava-se claro que a habilidade de fazer uma
foto cuja qualidade fosse considerada excepcional sem que para isso o fotógrafo recorresse a
ferramentas de edição era bastante apreciada, despertando comentários elogiosos.

Por outro lado, o “excesso de tratamento” correspondia a uma das principais críticas
que fotógrafos de casamento dirigiam a seus pares. Quando consideravam que um colega havia
“errado na mão” ao tratar uma foto, era comum que surgissem dois tipos de acusações: o
primeiro deles, apontava para a ideia de que, ao “pesar no tratamento”, o fotógrafo acabava
escondendo ou piorando a foto original. O segundo tipo de acusação era a de que o fotógrafo
procurava disfarçar uma foto ruim. Este último caso costumava provocar um questionamento:
tratar-se-ia de um bom fotógrafo que, por uma razão pontual, não fora capaz de realizar a
captura como deveria? Ou o fotógrafo em questão devia ser considerado um mau profissional
que precisava a todo tempo ser salvo pela edição (usando os softwares como muletas, como
certa vez colocou uma interlocutora)?

Identifiquei no universo que pesquisei, portanto, a existência de um padrão: o fotógrafo


de casamento ideal era aquele que produzia fotografias respeitando determinados parâmetros
estéticos, que contassem histórias, utilizando-se da correção técnica apreendida através de
estudos. Ele devia fazer isso sem um uso indiscriminado de cliques (“cultura da metralhadora”)
e utilizando com parcimônia softwares de edição. No entanto, nem a soma de todos estes
atributos teria algum valor, caso ele não cuidasse bem do acessório a ser abordado em seguida.

“É muita responsabilidade”: algumas considerações sobre o cartão de memória

Na semana passada um dos fotógrafos que trabalha com a gente foi assaltado voltando
de um casamento. Coitado, levaram a mala com todo o equipamento dele… teria saído
mais barato se tivessem levado o carro. Câmeras, lentes, tudo… [“E as fotos?”,
pergunto] Ah não! As fotos, graças a Deus, não! Os cartões de memória estavam no
corpo, não levaram não. Deus me livre! Já pensou?

A fala reproduzida acima é de Dona Rosa. Não me recordo exatamente do contexto,


mas posto que a fala não foi registrada com o auxílio do gravador, suponho que o assunto tenha
vindo à tona em algum momento em que eu me preparava para deixar o estúdio, após uma

131
conversa. Mas lembro-me vivamente de ouvir a voz mansa de Seu Pedro que observava: “É
muita responsabilidade. Isso que a gente faz… pra ser fotógrafo de casamento, tem que ser
muito responsável”.
Já deve ter ficado claro até aqui que Seu Pedro encarna um modelo de trabalho distinto
daquele representado por meus interlocutores que participam dos circuitos de produção de
prestígio que tenho procurado descrever e analisar nesta tese. As maneiras como Dona Rosa e
Seu Pedro falam da profissão, os significados que atribuem a ela e o modo como descrevem o
cotidiano de seu trabalho difere e muito daqueles dos demais interlocutores. Contudo, se ao
longo deste capítulo, Seu Pedro e Dona Rosa aparecem como contraponto aos fotógrafos de
casamento com quem estabeleci uma interlocução de pesquisa mais intensa, ao tratar da noção
de responsabilidade eles estabelecem um significativo ponto de convergência em relação aos
outros profissionais com quem conversei. Com efeito, não houve fotógrafo que não
demonstrasse verdadeiro pavor diante da simples menção à possibilidade de perder as imagens
capturadas em um casamento.
Não por acaso que, ao acompanhar fotógrafos em casamentos, chamou minha atenção
o extremo cuidado com que estes profissionais armazenavam os cartões de memória ao final
do expediente. Este acessório, cujas dimensões são mínimas (cabendo facilmente na palma da
mão de uma pessoa adulta) e que raramente aparecia nos discursos de meus interlocutores, se
recebe a devida atenção, revela a suscetibilidade de suas carreiras. A perda dos cartões de
memória — e isto parecia claro para meus interlocutores — não significava apenas a quebra de
contrato com um casal ou uma família específica. Segundo me contavam, perder fotos de
casamento constituía evento tão grave, que provavelmente significaria a ruína do fotógrafo de
casamento. Um suicídio profissional, conforme colocou certa vez um interlocutor.
Tão logo eu tocava no assunto, ouvia relatos sobre uma série de estratégias para evitar
que algo tão terrível lhes sucedesse: esconder os cartões nas roupas íntimas, fazer back up ainda
no local do casamento e distribuir os cartões entre os membros da equipe foram alguns dos
artifícios que ouvi — revelando-se, assim, uma técnica no sentido maussiano de lidar com o
ofício através da imaginação e da criação de estratégias.
Tenho a impressão de que a possibilidade da perda das fotografias é o que desperta
maior solidariedade dos colegas. Nas redes sociais, quando no evento raro de algum fotógrafo
relatar dificuldades em acessar as imagens contidas nos cartões de memória, rapidamente
surgiam inúmeras sugestões de maneiras para superar o problema. Nas vezes em que vi isto
acontecer, impressionou-me a capacidade que estas situações tinham de mobilizar os
132
fotógrafos. Se a falta de domínio de técnicas fotográficas pode, em certos contextos, ser
endereçada em tom de acusação, de fofoca depreciativa (Elias e Scotson, 2000 [1990], p.121)
e com certa maledicência, um cartão de memória que não funciona corresponde a uma tragédia
à qual, pelo menos em certa medida, todos os fotógrafos percebem-se como potencialmente
sujeitos.
Se ao longo desta tese tenho me concentrado no processo de construção de reputação,
vale a pena sublinhar que, do ponto de vista daquilo que o cartão de memória representa, a
reputação se assenta como que sobre fino solo. Ainda que o tema não apareça com frequência,
fotógrafos de casamento precisam constantemente lidar com a possibilidade — um tanto
remota, é verdade, porém não de todo ausente — de ruína súbita de seu patrimônio mais valioso.

133
Capítulo 4
Trajetórias e moralidades entre fotógrafos de casamento

Alguns meses antes da realização do Lente de Ouro em 2016, enquanto eu ainda


ponderava sobre a possibilidade de viajar até Balneário Camboriú com o objetivo de assistir de
perto à entrega de prêmios, soube que seus organizadores planejavam também uma atividade
chamada por eles de Life Share — a história por trás do nome. O material promocional
divulgado antes do evento prometia que “oito profissionais e empreendedores da fotografia e
vídeo” contariam “suas trajetórias de sucesso” durante um dia inteiro de palestras. Embora o
projeto não fosse de todo original para mim (naquele ponto eu já estava familiarizada com
narrativas de “trajetórias de sucesso” em cursos e palestras), chamou minha atenção o fato de
que, naquele evento, as “trajetórias”, “histórias de vida” e “testemunhos” dos fotógrafos-
palestrantes tinham um lugar de centralidade já indicada no título. Aquele fora o incentivo que
faltava para que eu agendasse minha viagem até o litoral do estado de Santa Catarina.
Durante o Life Share, expondo ao público as etapas da construção de sua carreira, um
dos palestrantes falou sobre as duras condições financeiras enfrentadas por sua família durante
a infância. Outro fotógrafo-palestrante, a certa altura de sua fala, se debulhou em lágrimas
enquanto apontava a morte de seu pai como evento fundamental para os posteriores
desdobramentos de sua vida profissional. Um casal de fotógrafos que juntos subiram ao palco
para falar de suas carreiras construídas em comum, elegeu etapas do relacionamento (namoro,
noivado, casamento) como fio condutor para a narrativa.
Ao passo que me impressionava a naturalidade como eram expostas publicamente
histórias que, aos meus olhos, pareciam mais adequadas a círculos mais restritos ou, em alguns
casos, aos consultórios de psicanálise, percebi que esse tipo de discurso e performance era
constitutivo das formas de construção de reputação entre os fotógrafos de casamento, tema
central dessa tese. Este capítulo consiste numa tentativa de conferir tratamento analítico a
discursos deste tipo e, com este intuito, parto do relato de cunho biográfico de um casal de
fotógrafos.

134
Os Werneck

Meu primeiro contato com Luciana e Gabriel Werneck ocorreu durante o Wedding
Brasil 2016, quando ouvi como espectadora uma palestra ministrada pelo casal. Naquela
ocasião, a fala dos Werneck se organizava em torno do fato de terem experimentado eles
mesmos, apenas alguns meses antes, os papéis de noivo e noiva em cerimônia e festejos de
casamento. Na palestra, ambos defendiam que “estar no outro lado” teve efeitos sobre o modo
como encaravam a fotografia de casamento. Como ocorreu com Letícia, terminei a palestra
com vontade de ouvi-los um pouco mais. Me apresentei e falei de minha intenção.
Diante de meu pedido, a resposta dos fotógrafos não foi apenas positiva, mas eles
também se mostraram animados com a possibilidade de falar de suas vidas e trabalho diante de
uma etnógrafa. Não foi preciso mais do que algumas mensagens trocadas pelo WhatsApp para
que eu combinasse com Luciana e Gabriel os detalhes de uma entrevista, cerca de três semanas
após nosso primeiro e breve encontro no Wedding Brasil.
A viagem que separa o Rio de Janeiro da região serrana, onde o casal vivia, durou pouco
mais de uma hora naquela manhã ensolarada. Assim que atravessei o portão de madeira que
demarcava o terreno da casa, fui apresentada por Luciana aos cachorros que viviam ali – aquele
foi o primeiro de uma sucessão de gestos que compunham uma calorosa hospitalidade. À
medida em que eu percorria, na companhia dos fotógrafos e dos animais, o curto caminho que
nos levava até a área construída do terreno, Gabriel tratava de me situar: “está vendo aquela
parte lá no alto? É onde vai ser nossa futura casa. Aqui onde a gente mora hoje foi feito para
funcionar como ateliê. É pequeno, mas já é o suficiente pra gente viver”. Entramos na residência
provisória do casal e logo notei que as vidraças que faziam as vezes de paredes externas
conferiam ao espaço uma agradável sensação de amplitude. Já as paredes de tijolos e a estrutura
em madeira tornavam a casa aconchegante. Tirei os sapatos sob protesto de meus anfitriões que
cessaram assim que aleguei ter o hábito de andar com os pés descalços também em minha casa.
Fui então convidada a fazer um tour pelos cômodos.
Primeiro, passamos pela pequena sala de estar em cujo centro havia um sofá e duas
cadeiras voltadas para uma grande tela plana. “É aqui que a gente vê filmes e é aqui também
que a gente recebe os clientes”, esclareceu Gabriel. Num dos cantos da sala, uma mesinha reunia
objetos confeccionados para a celebração de casamento dos fotógrafos que ocorrera quase um
ano antes: passarinhos esculpidos em madeira, velas no formato das iniciais de seus nomes,
uma garrafa de vidro envolta em barbante rosa — um trabalho feito pelas mãos do próprio
135
casal com a ajuda de seus familiares, segundo me contavam. Contra a parede de fundo, um
pequeno móvel abrigava livros de fotografia, revistas especializadas em casamento e réplicas
de câmeras antigas. Seguimos para o cômodo ao fundo da casa, onde funcionava o escritório
dos fotógrafos. Nele, havia uma mesa comprida, de frente para a parede, que servia de suporte
a quatro computadores. Era ali que fotos dos casamentos eram tratadas e os backups feitos,
além de servir de espaço de estudo, conforme explicava Gabriel. O cômodo ao lado, que servia
como quarto, foi o único deixado de fora da visita após a advertência de Luciana “melhor não
entrar aí não porque tá muito bagunçado”. Passamos então à pequena cozinha onde Gabriel
prepararia nosso almoço. Ficamos os três batendo-papo por ali até que o gratinado de frango
fosse levado ao forno. “Você não quer aproveitar enquanto esperamos para começar a
entrevista?”, sugeriu um deles.
Voltamos então à sala ao lado, onde nos acomodamos. A primeira pergunta não partiu
de mim, mas de Gabriel:

Gabriel: Por onde começar?


Luciana: [voltando-se para mim] Por onde você quer começar? [ambos riem]
Cristina: Me fala aí como você começou a fotografar…
Gabriel: Quer que eu comece do começo?
Luciana: É melhor começar do começo.
Gabriel: Tem muita coisa. Tem que começar do começo. Eu não sei até onde o
profissional… eu não sei muito.
Cristina: Você me disse que tava trabalhando no…
Luciana: O começo vai fazer diferença…
Gabriel: Faz muita diferença. Na verdade, eu…

Sem que eu tivesse completado minha pergunta, Gabriel tratou de tecer o relato sobre sua
carreira (Hughes, 2003 [1997], p.130) recuperando os fios de sua trajetória (Bourdieu, 2006
[1986], p.190)93 que então lhe pareciam relevantes. Para minha surpresa, “o começo” do qual
falava meu interlocutor remontava à união de seus pais, ao nascimento de sua irmã dois anos
mais velha e à posterior separação do casal, ocorrida quando Gabriel completara oito meses de
idade. Em seguida, meu interlocutor contou sobre uma infância que incluía espancamentos do
pai e da madrasta: “Já fugi várias vezes de casa, dormi com mendigo, coisas meio pesadas,

93
O uso da noção de trajetória, aqui, se baseia no argumento de Bourdieu, segundo o qual, não se deve
compreender uma trajetória sem levar em conta os “estágios sucessivos do campo no qual ela se desenrolou” (op.
cit.). A alusão à noção de carreira, por sua vez, segue o sentido amplo sugerido por Hughes, que a toma como o
curso de uma pessoa pela vida, especialmente aquela fração na qual ela trabalha.
136
sabe?”. Enquanto eu ouvia em silêncio, Luciana se limitava a assentir discretamente com a
cabeça como que para que confirmar a história que me estava sendo contada. Já eu, começava
a ficar um tanto quanto intrigada, sem entender como, a partir daquele relato tão cheio de
detalhes sobre seus familiares, Gabriel responderia a minha pergunta sobre o início de sua vida
profissional. A certa altura, meu interlocutor, talvez percebendo minha mal disfarçada
inquietação, observou antes de prosseguir: “Hoje na verdade, eu uso isso tudo como um
trampolim pra vida”.
Segundo Gabriel me contou, com nove anos de idade, logo após a morte de seu pai,
começou a trabalhar "carregando sacos de cimento”, incentivado pelo tio que também veio a
falecer em seguida, logo após completar 26 anos de idade. Foi o modo como enxergou as mortes
prematuras dos homens da família que acabariam definindo seus próprios rumos profissionais,
conforme sublinhou:

…a oficina que era do meu pai e do meu tio automaticamente passaria pra mim. Aí eu
falei, “ó, eu não quero. Eu vou buscar algo que realmente me faça…”, né? Eu pensei
comigo, eu não quero terminar igual eles terminaram, minha cabeça só funcionava
assim.

Por intermédio de sua avó que, assim como sua tia, trabalhava como faxineira, Gabriel
conta ter conseguido ingressar em um curso de formação profissional destinado a adolescentes.
Como parte do programa, Gabriel faria estágios, tendo o primeiro deles ocorrido na prefeitura,
experiência que não lhe agradou. Foi então que decidiu cumprir o estágio seguinte numa loja
que comercializava material fotográfico.

Aí eu entrei nessa loja e na primeira vez que eu vi esse cara, ele tava tirando uma pessoa
da imagem e colocando em outro fundo. Eu falei “pô, amigo, que faculdade você fez
pra fazer isso aí?”. Ele riu da minha cara “faculdade pra fazer isso aqui, cara?”. Eu falei
“ah, vou fazer isso também”. Arrumei o programa, instalei em casa e em pouco tempo
eu já tava mexendo nisso. E nessa loja eu percebi que eu era um balconista que só levava
bronca porque eu tinha que ficar no balcão, mas eu queria ver o que o pessoal tava
fazendo.

Gabriel então me contou como convenceu seu patrão a lhe transferir para outra filial da
loja onde achava que conseguiria adquirir mais conhecimento. Segundo ele, foi neste

137
estabelecimento que, “mexendo”94, aprendeu a operar o equipamento que havia ali. De certa
forma, foi também “mexendo” que Gabriel deu seus primeiros passos como fotógrafo:

Assim, a minha carreira de fotografia começou na verdade (…) quando eu tava nessa
segunda loja. A gente tinha um sótão assim que era meio baixo e a gente comprou um
TNT [a sigla corresponde ao termo “tecido não tecido”. Trata-se de um material
produzido a partir de fibras aglomeradas e fixadas, com baixo custo], botamos, fizemos
book de algumas crianças, sabe? Eu já tinha feito alguns books das minhas sobrinhas,
eu sempre gostei bastante dessa… sempre gostei de trabalhar em laboratório porque eu
viajava o mundo ali, entende? Tipo, pô, revelar uma foto do Pantanal, revelar uma foto
da Europa. Consegui meio que conseguia viajar sem sair do lugar…

Se o longo relato de meu interlocutor não fora realizado de modo linear, era notável
como a narrativa evocava o trabalho, a uma só vez, como necessidade ou instrumento para sua
sobrevivência, mas também como fonte de realização pessoal e superação familiar. A narrativa
de Gabriel aponta para uma busca de sentido para o trabalho como um processo intuitivo que
ia ganhando corpo no curso de sua carreira. Num trecho particularmente esclarecedor, meu
interlocutor conta sobre seu primeiro trabalho no casamento de um primo. Segundo Gabriel,
embora seu primo já houvesse contratado um fotógrafo profissional que ficaria a cargo dos
registros, ele permitiu que Gabriel fizesse algumas fotos do casamento “sem compromisso”,
com uma câmera emprestada.

Aí eu fui, fiz umas fotos do casamento dele. Gostei das fotos e eu não tinha dado
presente pra eles de casamento. (…) Aí, sei lá que estalo que deu na minha cabeça e eu
resolvi criar um álbum de casamento pra eles. Eu nunca tinha feito, não sabia empresa
que tinha que fazer, não sabia como montava nada… me informei, vi com alguns
fotógrafos, eles me indicaram uma empresa lá e eu fiz um álbum de casamento e dei
pra eles de presente. E eu não falei pra eles. Eu chamei eles um dia na casa da minha
tia e falei “olha, seu álbum de casamento, é um presente”. E ali ela começou a folhear
o álbum e começou a chorar, entende? Aí aquilo que me fez ter um sentimento muito
bacana. Eu falei “putz, é isso aí que eu quero pra minha vida”.

94
O termo “mexer”, neste contexto, é uma reprodução da fala de meu interlocutor, mas é empregado também em
referência ao trabalho de Guedes (2004). Para esta autora, o aprendizado do “saber prático” se dá com base no que
seus interlocutores “denominam ao mesmo tempo vaga e precisamente como ‘aprender vendo’. Ou seja, trata-se
de, primeiro, identificar as possíveis situações de aprendizagem e aproveitá-las. Tais situações desencadeiam um
processo: observar o que os experientes fazem; fazer, posteriormente, de modo incipiente (o que denominam como
‘mexer’) para adquirir prática e, enfim, tornar-se ele mesmo uma pessoa experiente" (p.189).
138
A construção da carreira de fotógrafo de casamento como projeto de vida (Velho, 1994
[1988], p.101) posteriormente compartilhado com Luciana, não se deu, contudo, de forma
linear. Seguindo oportunidades de trabalho que apareciam, em especial, por conta do
conhecimento adquirido nas lojas e laboratórios de revelação, Gabriel foi morar em outras
cidades do interior do estado. Numa delas, começou a perceber uma demanda de “clientes de
casamento, de aniversário, de tudo” e, com o auxílio de Luciana, passou a conjugar o trabalho
na loja com os eventos. Segundo o seu relato, Gabriel se desapontava gradualmente com o
trabalho na loja e dizia não obter reconhecimento pelos patrões, embora “desse o sangue” ali
diariamente.

Gabriel: Eu já percebi que eu já tinha que começar a pensar no meu, sabe? E aí, sei lá,
eu acho que uns dois anos depois…
Luciana: Com esses trabalhos que ele foi pegando… ele fez de tudo, né? Então a gente
foi conseguindo fazer um pé de meia e ele ficava assim, tipo tem que montar álbum, ele
montava na loja. Ficava tipo, chegava em casa, aí dormia, dava meia-noite, ele acordava
e ficava até três, quatro da manhã.
Gabriel: Dormia um pouquinho e ia pra loja de novo…
Luciana: Com bastante esforço, a gente foi fazendo um pé de meia…

Foi então que Gabriel resolveu investir nos eventos “de maneira mais séria”:

Gabriel: Nessa época, a gente cometeu a maior loucura da nossa vida que foi: eu
fotografava… a gente oferecia foto, vídeo, som, telão e cerimonial [risos]. Eu
fotografava, botei o meu tio pra filmar…
Luciana: É porque assim, tipo, o tio dele hoje tem cinquenta…
Gabriel: Hoje tem cinquenta…
Luciana: É que, tipo, trabalhar em obra é meio pesado, né? E o Gabriel sempre pensou
assim “poxa, meu tio não vai aguentar muito tempo na obra”. Aí estudou, pensou numa
maneira de comprar uma câmera e botou ele no vídeo, que é uma coisa mais leve e tal.
Gabriel: Te obriguei a fazer o cerimonial…
Luciana: [rindo] É, me obrigou a ser cerimonialista…
Gabriel: Porque os nossos primeiros casamentos eram um caos, assim, os padrinhos
entravam um atrás do outro… [Gabriel fala como quem se diverte] a Lu cobrava 100
reais pra fazer o cerimonial [ambos riem]. Aí tinha o rapaz que trabalhava na loja que…
Luciana: Chamou ele pra ser DJ…

Na continuação de nossa conversa, Gabriel contou que, a certa altura, teve dificuldades
com a equipe e percebeu que as contas do negócio não iam bem. A fim de reverter a situação,

139
optou por dissolver o grupo e se desfazer de equipamentos, se concentrando nas fotos. Foi neste
período que Luciana, que já o auxiliava nos casamentos, passou a fotografar também:

Eu tava tentando fazer uma foto do vestido assim, todo torto, aí a Lu fez uma foto e
perguntou se eu gostava. Eu adorei a foto. E aí ela fotografou esse casamento e tem
fotos incríveis! Até hoje, né? A gente gosta bastante. E aí, de lá pra cá… foi
naturalmente, sabe?

Enquanto espremia as laranjas para o suco que acompanharia nosso almoço, Luciana
me contou que ela e o marido empregavam bastante cuidado em selecionar seus clientes e que,
ao longo de aproximadamente dez anos de trabalho, tinham somado mais de 150 casais.
Comparando com seus colegas, eles sublinhavam, não era um número muito alto, mas uma
quantidade condizente com o tipo de trabalho que eles afirmavam querer realizar.

Luciana: A gente tem essa política de, tipo, escolher os casais… na verdade escolher e
ser escolhido, né? Porque…
Gabriel: A gente não deixa o nosso trabalho ser inteiramente comercial, sabe? Assim,
por exemplo, só pra você ter ideia, a gente de vez em quando sai de um contrato.
Cristina: Como assim?
Gabriel: Se a gente percebe que não existe um sentimento tão legal do casal… ou que,
sei lá, não bate aquela química perfeita, sabe? (…)
Cristina: Eu ia perguntar isso pra vocês. Quem é o cliente que vocês não querem, vocês
me dão um exemplo?
Luciana: No outro dia, por exemplo, apareceu uma noiva que… nós éramos os únicos
fotógrafos da cidade que tínhamos disponibilidade na data dela. Então ela queria
facilidade pelo fato dela não ter que chamar alguém do Rio, pagar hospedagem (…) Aí
ela falou “ah tá, eu vou fechar com vocês. Mas a gente não gosta muito dessa cor que
vocês fazem… eu queria umas poses…”. E a gente ficou “poxa, a gente não faz isso, a
gente faz diferente e não tem nada a ver o que ela tá pedindo com a nossa proposta de
trabalho”.

Tanto Luciana quanto seu marido contaram histórias de contratos que haviam firmado
“por conta de grana” para mais tarde acabarem se arrependendo. Gabriel ponderava que poder
selecionar os clientes era condição fundamental para que os fotógrafos pudessem ter carreira
longeva:

Gabriel: Essas coisas, eu acredito que elas fazem com que nosso trabalho tenha vida
longa. (…). É muito legal quando o cliente vem e fala pra você “obrigado, cara, muito
obrigado!”. Mas é um rombo quando você percebe que não é aquilo que o cliente queria,
entendeu? E acontece muito se você só trabalha por grana. (…)

140
Luciana: Como pode? E aí a pessoa que tá desanimada, assim, é muito exaustivo. Só pra
você ter uma ideia: primeiro a gente tem um trabalho árduo de conquistar os clientes por
todas as vias de marketing, enfim… aí o cliente chega aqui, a gente faz uma reunião, aí
vamos dizer que ele fechou o casamento. Até o casamento, a gente vive trocando e-mail,
dando dica, avisando (…). Aí tem o casamento… e casamento, por exemplo, esse final
de semana a gente vai na sexta-feira. A gente vai passar a sexta-feira lá, vai na igreja, vai
no local, vai estudar tudo, vai conversar com o casal. De repente, se eles se reunirem pra
um jantar, a gente vai estar lá e tal. Se aproximar mais. Aí no sábado, geralmente onze
da manhã, a gente tá almoçando. (…)
Gabriel: É muito puxado.
Luciana: Aí quatro da manhã a gente tá saindo do evento. Aí depois tem edição e a gente
fica um mês trabalhando. Vamos botar assim, tudo que a gente tem que fazer depois do
casamento é um mês de trabalho da equipe. É muito exaustivo. Então se você não tem
um cliente assim bacana, você cansa daquilo. (…) A gente recebeu uma menina aqui e
ela “eu odeio fotografia, vou fechar pro meu casamento porque eu sou obrigada”. Aí
descarregou um monte de problemas. Aí depois queria negociar, tipo jogar nosso preço
pra baixo (…) Aí a gente viu que não ia dar certo.
Gabriel: Uma semana depois ela ligou querendo fechar e a gente tipo, não dá! Ficamos
em casa, naquele final de semana…
Luciana: Depois eu vou te mostrar os depoimentos dos nossos casais e você vai entender
o quanto que a gente é próximo. Por exemplo, o ensaio, a gente não é do tipo “ah, tem
horas, tem quantidade de fotos…” A gente vai e se entrega mesmo pra cada trabalho que
a gente faz.
Gabriel: Porque isso na verdade alimenta a gente, sabe? Isso é muito legal.

Durante nosso almoço, perguntei a Luciana e a Gabriel sobre seus projetos dali pra
frente e, pela facilidade com que responderam, seus os planos pareciam muito claros:

Luciana: Construir a nossa casa…


Gabriel: Conseguir manter, sabe? Conseguir manter, que eu digo… uma casa dessa com
um jardim desse… isso é muito custoso… A gente precisa ter um jardineiro, a gente não
tem um… É isso: nossa casa. E só né? [Após voltar-se para Luciana em busca de
confirmação, Gabriel aperta os olhos e lhe dirige a pergunta em tom sarcástico]
Helicóptero? [Luciana ri].
Luciana: O nosso plano é, tipo, ter um plano de aposentadoria do tipo, construir umas
quitinetes, ter uns alugueis como segurança e tal, até porque o nosso pique de trabalho
nos eventos é muito forte, então a gente sabe que quando tiver uma idade mais pra frente,
a gente não vai dar conta como a gente dá hoje. (…) Então a gente tem esse plano de ter
alguma coisa confortável, de conseguir ter uma renda… mas é um plano, depois que a
nossa casa tiver pronta a gente começar a pensar nesse passo. A gente sempre assim, vai
pensando num passo de cada vez. Primeiro o ateliê, aí vamos pro casamento, agora a
casa.

141
***

Semanas antes de nosso encontro na residência dos Werneck, logo após ter retornado
da viagem ao Wedding Brasil, acessei o site de Luciana e Gabriel, conforme indicado no cartão
de visitas que recebi das mãos da fotógrafa. Enquanto esmiuçava seu conteúdo, chamou minha
atenção o modo como os dois fotógrafos formavam uma espécie de unidade indivisível: no
próprio domínio95 do site, bem como na logomarca, o nome que aparecia era sempre Werneck.
Os verbos dos textos que veiculavam eram conjugados na primeira pessoa do plural e a autoria
das fotografias exibidas ali era indicada por uma discreta marca d’água com a logomarca do
casal, de modo que não era possível ao visitante distinguir quais delas tinham sido feitas por
Luciana ou Gabriel. Havia ainda no site uma seção intitulada “nós”, na qual os fotógrafos se
apresentam através de um breve texto autobiográfico. O conteúdo do site parecia guardar
coerência com o modo como os fotógrafos se apresentavam também em outros contextos nos
quais pude observá-los: na palestra proferida no WB 2016, em nossas conversas por WhatsApp,
nas ações de divulgação de seus trabalhos no Instagram e Facebook, Luciana e Gabriel
pareciam compartilhar um projeto de maneira homogênea.
Chamou minha atenção, portanto, que na primeira hora de minha conversa com Luciana
e Gabriel, tenha predominado, com larga margem de folga, a fala deste último. “O começo de
tudo”, conforme o próprio fotógrafo anunciou, dizia respeito quase que exclusivamente à sua
própria história familiar. O relato repleto de detalhes que abarcava a relação com seus pais, o
abandono por parte da mãe, as duras condições de vida enfrentadas pela avó e o estado precário
de moradia da tia contrastava com o silêncio de Luciana, que se limitava a acenar em anuência
de tempos em tempos. Se, por um lado, a eloquência de Gabriel e o silêncio de Luciana
pareciam resultar do fato de que as primeiras experiências do trabalho com fotografia partiram
de Gabriel, por outro, o modo detalhado com que apresentava o relato de sua vida familiar não
apresentava conexão óbvia com minha pergunta.
Tomando como base o argumento de Bourdieu, segundo o qual o relato autobiográfico
se organiza em torno da intenção de dar sentido, consistência e constância ao empreendimento
autobiográfico (2006 [1986], p.184), eu me perguntava sobre as razões que fizeram com que
meus interlocutores selecionassem os acontecimentos significativos da narrativa. Em especial,

95
Considerando que neste texto utilizo nomes fictícios, esclareço que o domínio escolhido por eles seria
equivalente a www.wernecks.com.br.
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me intrigava o que parecia ser um acordo entre o casal: “o começo de tudo” compreendia a
gravidez e o subsequente nascimento da irmã mais velha de Gabriel, abrangia também o
nascimento deste último, sua infância, a relação com a avó e a morte dos pais. Em contraste,
informações sobre a infância de Luciana, sobre a situação financeira de sua família ou a relação
com seu pai e mãe não recebiam a mesma atenção. As poucas informações a respeito da vida
da jovem antes de seu encontro com Gabriel, apareciam de maneira um tanto quanto esparsa.
Soube, por exemplo, que ela integrava uma equipe de hóquei na adolescência porque este teria
sido tema de conversa do casal na ocasião de seu primeiro encontro, quando Luciana levou
algumas fotos praticando o esporte para revelar na loja de Gabriel.
Se, no momento da entrevista, o modo como meus interlocutores encadeavam os
acontecimentos que integravam seu histórico profissional/familiar me parecia um tanto quanto
enigmático, com um distanciamento do trabalho de campo, pensando o relato dos Werneck
contra um contexto de pesquisa etnográfica mais abrangente, a escolha de meus interlocutores
ganhava novo sentido. Bastava, aliás, que levasse a sério a pista fornecida pelo próprio Gabriel,
que afirmava usar “tudo isso como trampolim para a vida”, para que eu entendesse como os
relatos de superação eram transformados por meus interlocutores em importante fonte de
motivação. A fotografia de casamento promoveu melhora significativa nas condições de vida
de Luciana e Gabriel (melhorias estas que contemplaram também os familiares do casal) e isto
não era mero detalhe. Nesse caso, a retórica da superação contemplava o âmbito familiar do
fotógrafo, em especial no que dizia respeito a suas condições de vida materiais, mas não só. A
fotografia de casamento alterara drasticamente a relação de Gabriel com o mundo do trabalho,
sobretudo se levarmos em conta que sua posição familiar, conforme ele próprio pontuou, o
colocava na posição de “herdeiro natural” da oficina que antes pertenceu a seu tio e a seu pai.
Embora não caracterizasse o trabalho nos casamentos propriamente como um “trabalho
leve”, Gabriel reconhecia que se tratava de uma atividade bem menos nociva a sua saúde do
que o trabalho na oficina realizado pelos homens de sua família ou do que as atividades que
exerceu aos nove anos de idade, quando foi trabalhar como assistente de pedreiro, “carregando
nas costas saco de concreto”. À medida que novas oportunidades surgiam por intermédio de
sua avó — uma mulher “muito humilde”, conforme várias vezes foi ressaltado durante a
conversa — Gabriel buscava equilibrar possibilidade de ascensão profissional e realização
pessoal. Foi isto que o levou aos empregos nas lojas de fotografia com os quais, mais tarde,
viria se decepcionar: “Eu dei o sangue e os caras, tipo, eu não tinha reconhecimento por isso”,
disse. A carreira de fotógrafo de casamento, construída em conjunto com Luciana, embora
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demandasse muito trabalho, conforme meus interlocutores inúmeras vezes enfatizaram,
reverteria este quadro, uma vez que o esforço empregado ali se mostraria, gradualmente, como
algo recompensador, tanto do ponto de vista financeiro, quanto da obtenção de reconhecimento
por parte dos clientes.
Como fotógrafos de casamento, os Werneck não estavam submetidos à figura de um
patrão e isto, conforme relataram, os libertara de uma relação marcada por desconfianças e
frustrações em grande medida ocasionadas pela constante sensação de que o seu trabalho duro
não era reconhecido por seus superiores hierárquicos. A mudança da posição de empregado
para trabalhador autônomo não acarretou, no entanto, que a questão do reconhecimento
passasse a ocupar segundo plano. Ao contrário, conforme alguns trechos de nossa conversa
apresentados anteriormente deixam entrever, esta dimensão do trabalho não só conservaria sua
pertinência, como ela também era apontada como fundamental para a escolha da profissão (e
também para sua permanência nela). O reconhecimento que passou a vir dos clientes — e não
mais dos patrões —, expresso sob forma de mensagens, depoimentos em redes sociais e
lágrimas, em alguns casos, era descrito como algo tão importante para os fotógrafos quanto a
própria remuneração. O projeto de vida dos Werneck era concebido como um íntimo
entrelaçamento entre vida profissional, pessoal e familiar. Como consequência, a profissão de
fotografar casamentos era vista como algo que pressupunha entrega, uma conexão com os
clientes e uma química entre os fotógrafos e os casais.

A partir da escuta das narrativas dos Werneck, situações que observei em outros
momentos do trabalho de campo passaram a adquirir novo sentido. A retórica da superação não
era algo peculiar a Luciana e Gabriel — embora eu reconheça que o relato exposto por Gabriel
talvez expusesse a situação de superação mais radical que ouvi durante a realização da pesquisa
— mas também permeava diversos outros discursos proferidos em situações diversas como nas
palestras, nas entrevistas, em conversas informais.
No Life Share, evento que mencionei na introdução deste capítulo, as histórias de
superação assumiam contornos diversificados, mas invariavelmente eram centrais nos relatos
de cunho autobiográfico dos fotógrafos de casamento. Assim, analisados pelo viés da
superação, os discursos muitas vezes emocionados dos fotógrafos de casamento que tratavam
publicamente da morte de parentes, divórcio dos pais, dificuldades financeiras ou de qualquer
outra natureza, deixavam de ser aos meus olhos descabidos e se revelavam como parte
importante de uma lógica inerente ao grupo profissional que eu investigava.
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Os fotógrafos de casamento que conformaram meu universo de pesquisa representavam
a si mesmos como indivíduos cujas trajetórias foram marcadas por “histórias de superação”.
Fernando Castiel, profissional renomado a quem dedicarei atenção mais detida no capítulo
seguinte, em suas inúmeras aparições públicas (em vídeos, palestras, podcasts e programas de
entrevistas) relacionava os reveses de sua biografia para então delineá-los como condições para
a obtenção de seu sucesso profissional. Assim, a obrigatoriedade do trabalho ainda na infância,
a distância entre sua pequena cidade natal dos grandes centros culturais e os parcos recursos
financeiros dos quais dispunha no início de sua carreira eram elementos que, uma vez
superados, seriam apontados como fundamentais para uma posterior ascensão na carreira.
Já, Daniel, outro fotógrafo de casamento que ouvi palestrar no palco do Life Share,
ressaltava que, na ocasião de sua mudança para um país da Europa Ocidental, trabalhou lavando
pratos, aspirando edifícios, transportando turistas em veículos de tração humana até que
vislumbrasse um futuro profissional mais promissor: “eu queria mais e vi que não podia ter
aquele tipo de trabalho o resto da vida”, disse. Mesmo no caso de Letícia, fotógrafa proveniente
de família de classe média-alta, a retórica da superação também se fazia presente, ainda que em
outros termos. No seu discurso, a ênfase recaía sobre seu cotidiano de estudos obsessivos,
conforme sugerido, por exemplo, na ocasião em que entrevistei a fotógrafa:

Eu sempre quis melhorar, o tempo inteiro. Então eu procurava, na época não tinha
conhecimento disponível no Brasil, não tinha. Tipo, eu acho que os fotógrafos não se
abriam tanto, não tinham workshops, essas coisas. Então, eu procurava conhecimento
fora. Em inglês. (…) era o dia inteiro, assim. Incansavelmente, sabe? E eu acho que,
claro, com tanto esforço, vem a evolução. Não existe… minha ex-sogra dizia… não
existe trabalho sem recompensa.

A superação de situações adversas, que podem ir do abandono materno na infância à


dificuldade de acessar fontes especializadas de conhecimento, parecia, de modo geral, constituir
um valor em si. Em todos os casos que identifiquei, a condição para aquilo que era visto como
“superação” era o trabalho árduo. O sucesso profissional era apresentado como uma
recompensa precedida de sacrifício, uma noção que, conforme apontou Bataille (2013 [1933]),
diz respeito a um processo de construção de coisas sagradas a partir de uma operação de perdas:
“é a constituição de uma propriedade positiva da perda da qual decorrem a nobreza, a honra, a
posição na hierarquia” (p.25).
No primeiro capítulo da tese, quando apresentei uma descrição do congresso Wedding
Brasil, argumentei que aquele evento colocava em evidência representações sociais de um
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cotidiano idealizado. Sobre os palcos do congresso, assim como em outros espaços tais como
cursos, palestras e redes sociais, o trabalho exercido por fotógrafos de casamento aparecia como
inesgotável fonte de emoção e realização. Os fotógrafos que gozavam de certa notoriedade eram
apresentados como profissionais talentosos, responsáveis, dispostos ao trabalho árduo —
conjunto de características recompensado com suas carreiras consideradas bem-sucedidas e
exemplares. Mas este conjunto de atributos não parecia esgotar-se em si mesmo. As carreiras
representadas nos circuitos de minha pesquisa, via de regra, delineavam trajetórias sempre
vistas/apresentadas como ascendentes. Posto de outro modo: eram raríssimos os discursos que
admitiam derrotas, decisões infelizes, arrependimentos ou infortúnios — a não ser que, logo
em seguida, fosse apontada uma superação. As exceções foram tão excepcionais, que guardo
na lembrança situações precisas em que elas apareceram.
Dentre estas, provavelmente a mais marcante partira de Jéssica, uma fotógrafa de
casamento de pele clara, cabelos longos e avermelhados e, segundo meus cálculos, próxima
dos trinta anos de idade, que conheci na reunião de julgamento do prêmio Wedding Best e atuou
como palestrante no congresso Fotografar. Já no início de sua fala, ela fez menção a uma crise
não superada. Transcrevo um trecho do início de sua palestra, a seguir:

Eu acho que todo relacionamento tem seus altos e baixos e eu tô brigada com a
fotografia hoje. Quer dizer, ultimamente. Não tô amando fotografia, não tô gostando,
tô chateada. Eu sou muito grata por tudo que a fotografia me deu, as pessoas que a
fotografia trouxe pra minha vida, mas infelizmente hoje eu não faço questão nenhuma
de fotografar. Sendo muito honesta. Mas eu acho que você não precisa morrer de
amores pela fotografia pra ser profissional. (…). É isso, eu tô chateada com a fotografia,
mas nem por isso eu acho que eu fotografo mal os casamentos, tá?

Na sequência de sua fala, Jéssica apresentou ao público algumas recomendações


práticas para fotografar no dia do casamento. Ela tratou, por exemplo, das roupas que escolhia
para trabalhar nos eventos, falou do equipamento que costumava utilizar e também abordou
alguns aspectos técnicos de sua fotografia. Porém, o que eu gostaria de destacar é que, ao longo
de toda a palestra que durou aproximadamente quarenta minutos, a postura de Jéssica
contrastava em muito com a dos demais palestrantes. De modo geral, chamou minha atenção
como ela, publicamente, admitia seus erros, suas deficiências como fotógrafa e tratava o ritual
que fotografava com uma espécie de pilhéria. A certa altura de sua palestra, por exemplo, ela
admitiu não possuir um grande conhecimento técnico em relação ao uso de flash: “morro de
preguiça”, observou. Mais adiante, escolheu a expressão “é só chatice” para classificar as
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cerimônias de casamento. Quando tratava de outro momento ritual, Jéssica declarou: “tento
fazer tudo o mais rápido possível porque odeio”. A todo instante, Jéssica arrancava risadas da
plateia — algo que, ao meu ver, constituía mais um indicador do caráter inusitado (tanto no
sentido de que ela não correspondia ao esperado naquele espaço, quanto pelo sentido de
provocação) de sua fala, se tomarmos como pano de fundo as representações dominantes acerca
da profissão. O contraste entre a visão de Jéssica e as de seus colegas fotógrafos-palestrantes
parecia evidente ainda quando ela afirmava de maneira bastante enfática: “se a noiva me mostra
uma foto no celular e diz que quer uma igual àquela, eu faço igualzinho, não tô nem aí não”.
Também neste sentido, Jéssica admitia a possibilidade de um fotógrafo de casamento exercer
sua profissão sem que esta fosse necessariamente fonte de realização pessoal. Igualmente
notável era o modo com que seu discurso relativizava a ideia de que o sucesso profissional na
fotografia de casamento deveria ser produto de superação ao tratar abertamente de limitações
profissionais sem conferir-lhes tratamento de etapas a serem vencidas.
Poucas horas após sua palestra, cruzei com Jéssica enquanto caminhava nas imediações
do centro de convenções onde ocorria a Fotografar. Eu já me preparava para voltar ao Rio de
Janeiro e, por isso, foi um encontro rápido. Mas, como tínhamos convivido durante os dois dias
em que participei do evento (havíamos sido apresentadas por Letícia no dia do julgamento do
Wedding Best), me senti à vontade para cumprimentá-la e dizer que tinha gostado de ouvi-la
falar. Jéssica agradeceu e contou que tinha ficado nervosa para a palestra, mas que, naquele
momento, estava aliviada, já que “tinha dado tudo certo”. Antes de se despedir, compartilhou
comigo um ocorrido que julgava curioso. Dizia ela que assim que encerrou sua fala, foi
abordada por um fotógrafo de casamento que estava na plateia e pretendia lhe dar os parabéns.
Segundo Jéssica, o homem demonstrava-se surpreso com o que ouvira. De início, a reação do
fotógrafo teria sido de reprovação (“ele disse que quando me ouviu falar que não estou amando
a fotografia, chegou a se levantar pra ir embora, acredita?”). O que o teria feito mudar de ideia
foram as fotografias de autoria de Jéssica, exibidas durante a apresentação: “Ele viu que, apesar
do que eu estava dizendo, eu sabia fotografar e por isso resolveu ouvir o que eu tinha a dizer”,
explicou Jéssica. Afastei-me de minha interlocutora pensando que, de fato, era curioso o relato
que tinha acabado de ouvir. Em especial, eu me perguntava sobre as possíveis razões que
levaram o fotógrafo a supor que Jéssica não sabia fotografar, com base em sua declarada
insatisfação com a atividade que desempenhava. Ocorreu-me que talvez a atitude de Jéssica
desafiasse, em algum grau, noções hegemônicas naquele universo, como a de superação, sobre
a qual venho tratando até aqui. Posto que este é um tema importante para pensar nos processos
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de construção de prestígio entre os fotógrafos de casamento, sugiro que nos detenhamos um
pouco mais sobre este tema a partir da análise de outra importante categoria nativa.

A evolução como ideologia

Assim como a ideia de superação, chamava minha atenção o modo como vinha à tona,
em múltiplos contextos da pesquisa, o termo evolução. Já nos registros de campo feitos durante
minha participação como espectadora do Wedding Brasil, a palavra apareceu repetidas vezes
nas notas tomadas durante as palestras: “eu trabalho para desenvolver bagagem visual, a gente
tem que tentar evoluir”, ouvi dizer um fotógrafo, que se apresentava sobre o palco principal.
Ao final deste evento, quando foi exibido um vídeo institucional produzido por seus
organizadores — posteriormente veiculado em uma plataforma de vídeos na internet,
transformando-se assim em material de divulgação para edições seguintes do WB —, notei um
trecho em que o proprietário da Editora Photos, na posição de chefe da organização do evento,
fala à sua equipe: “nossa responsabilidade é enorme porque a gente sabe que tem centenas,
milhares de pessoas aqui… que a gente possa dar a oportunidade pra que eles possam crescer,
evoluir”.
Evolução é um termo que também apareceu seguidas vezes nas falas dos integrantes
dos circuitos de produção de prestígio explorados nesta tese. Nas entrevistas, evolução surgia,
em diversos casos, para demarcar estágios da carreira: “eu tinha muito pra evoluir ainda”, falou
Alexandre sobre sua entrada na profissão. O termo apareceu ainda quando Leonardo falava
sobre ensinar a fotografia de casamento a colegas menos experientes: “é muito prazeroso ver
esse resultado da galera evoluindo e tal”. A ideia de evolução foi ainda a tônica da palestra de
um casal de fotógrafos no evento Life Share. Naquela palestra específica, o casal de fotógrafos
exibiu, sob risos da plateia, uma série de imagens produzidas no início de suas carreiras como
fotógrafos. Antes que exibissem suas fotografias mais recentes — para a apresentação em
questão, forma selecionadas suas fotografias premiadas — os dois palestrantes ressaltaram que
entre a produção das primeiras imagens e das últimas, percorreram um longo caminho:
“fizemos muitos casamentos, estudamos muito e começamos a evoluir”.
Vi surgir a ideia de evolução também nos cursos que assisti online, bem como nos
discursos dos fotógrafos de casamento que subiram ao palco do Lente de Ouro para serem
laureados. Ao final de 2016, vi uma prática se popularizar em um grupo de fotógrafos no
Facebook: seus integrantes selecionavam uma fotografia de casamento recente de sua autoria
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e a postavam ao lado de outra imagem que guardasse certa semelhança com a primeira e que
tivesse sido produzida no início de sua carreira. Assim, um fotógrafo de casamento postou, por
exemplo, uma imagem de um casal de noivos diante de uma mesa de doces datada de 2013 ao
lado de outra na qual noivos posavam diante da mesa de doces, porém em 2016. A ideia do
exercício era a de ilustrar o que entendiam por evolução e, nas caixas de comentários, quase
sempre o que eu lia eram congratulações dos colegas.
A despeito das variações entre contextos nos quais a ideia de evolução emergia, a mim
não parecia que a mesma apresentasse grandes variações quanto a seu significado. Evolução,
no universo pesquisado, dizia respeito a estágios sucessivos de desenvolvimento profissional.
As condições para que a evolução ocorresse, segundo apontavam meus interlocutores, eram
fundamentalmente duas, a saber: trabalho árduo e estudos. Comecemos por esta última.
No capítulo anterior, ao apresentar e refletir sobre o percurso profissional de Seu Pedro,
fiz referência, ainda que en passant, ao seu processo de aprendizado da fotografia. Retomo a
trajetória deste profissional, para chamar atenção para o modo como as falas relacionadas ao
aprendizado, naquele contexto, emergiam associadas ao campo institucional. Especificamente,
refiro-me ao fato de que tanto ele quanto Dona Rosa, apontavam a passagem pela “antiga Escola
de Belas Artes”, onde seu Pedro “tirou diploma”, como etapa fundamental de sua formação de
fotógrafo.
Mais uma vez, a visita ao estúdio de Seu Pedro e Dona Rosa rende um contraste em
relação a outros discursos assimilados nos circuitos que conformam o chão empírico desta tese.
Ainda que diversos de meus interlocutores tenham, em algum momento de suas trajetórias
profissionais, passado por instituições de ensino, a julgar pelo modo como narram seu ingresso
na profissão e o processo de aprendizado, este parece ter se dado predominante à margem dos
contextos institucionais. À exceção de Seu Pedro, não encontrei um só fotógrafo de casamento
que tivesse feito alusão a certificações emitidas por instituições de ensino, assim como tais
informações não figuravam nas seções biográficas de seus sites. O que parecia funcionar como
chancela, como espécie de certificado informal dos fotógrafos, eram os prêmios que
acumulavam e as palestras que ministravam ao longo dos anos. Ainda assim, nos discursos
públicos e nas entrevistas que me concederam, os fotógrafos falavam — e muito — sobre a
importância dos estudos.
Os estudos, no contexto pesquisado, abrangiam atividades diversas. Estudar incluía
conhecer e familiarizar-se com o trabalho de outros fotógrafos, tanto especializados nos
registros de casamento, quanto de outras áreas. Estudar era também descrito como “educar o
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olhar” a partir da observação de produções artísticas de naturezas diversas, tais como o cinema
e as artes plásticas. Ler blogs, ouvir podcasts, participar de congressos, assistir a palestras e
submeter o próprio trabalho à crítica de colegas, tudo isto era abrigado sob a rubrica dos estudos.
Estudar era, portanto, atividade informal (no sentido de se dar fora de contextos institucionais),
que idealmente deveria ser desempenhada com regularidade e disciplina, de maneira contínua.
Já trabalhar duro, no contexto de minha pesquisa, parecia compreender mais do que as
jornadas de trabalho nos casamentos — que, a partir de minhas experiências de trabalho de
campo até então, eu considerava extenuantes. Mais uma vez, a fala de Daniel no palco do Life
Share, à qual fiz breve menção anteriormente, nos auxiliará na compreensão desta importante
categoria nativa. A apresentação do jovem palestrante, de pele e olhos claros, que declarava ter
crescido em meio a uma “família simples” residente na região sul do país, tal qual ocorreria nas
demais apresentações daquele dia, seguia um roteiro. Primeiro, ela consistia na apresentação
do profissional, o que abrangia uma exibição de fotografias de sua autoria e também uma fala
sobre sua família, no caso, sua esposa e seus pais. Após tratar, numa atitude visivelmente
emocionada, da perda de seu progenitor, Daniel pôs-se a falar de sua adolescência, enfatizando
o período como aquele no qual iniciara sua vida profissional. Neste ponto específico, seu relato
soava um pouco vago aos meus ouvidos, de modo que registrei apenas que, desde os 14 anos
de idade, o palestrante desempenhava algum tipo de atividade comercial.
Prosseguindo com sua “história de vida” (Becker, 1993), aqui organizada em ordem
cronológica, Daniel contou que, num dado momento de sua juventude, resolveu partir de sua
pequena cidade no sul do país rumo a uma capital europeia, onde viria a se tornar fotógrafo.
Antes de ingressar na profissão, porém, conforme procurava enfatizar, exerceu diversas
funções: “já fui lavador de pratos, já aspirei prédios, já trabalhei carregando turista em
bicicletas”. Sobre este último trabalho, Daniel se deteve, explicando aos ouvintes que lançava
mão de estratégias peculiares a fim de aumentar seus rendimentos. Ao final dos passeios,
segundo contou, costumava retirar da bolsa uma maçã já parcialmente consumida alegando que
aquela era sua “pausa pro lanche”. Segundo seu raciocínio, a astúcia do ato estava em dar a
entender aos turistas que vivia um estado de penúria de quem não tinha outra coisa para comer
senão uma maçã já mordida. Arrancando risos da plateia, Daniel afirmou que sua estratégia não
costumava falhar e que, lamentando pelo jovem esforçado que sequer tinha uma fruta inteira
para lanchar, os turistas costumavam caprichar em sua gorjeta.
O relato de Daniel voltou a ganhar ar mais sério à medida que ele narrava que suas
experiências em empregos que ele classificava como “bicos” foram determinantes para que ele
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adquirisse novas ambições. O jovem profissional contou ainda que a ideia de fotografar
casamentos lhe ocorreu após ter comprado uma câmera para registrar suas viagens. “Aí eu
comecei a gostar da coisa”, disse, acrescentando que, “com muito sacrifício”, juntou dinheiro
para investir no equipamento e se inscrever em um workshop no Brasil. A partir de então, Daniel
relatou ter colocado no jornal um anúncio no qual se oferecia para fotografar casamentos “de
graça”, de modo que pudesse “praticar sem medo e assim conseguir evoluir um pouquinho”.
Neste ponto, o fotógrafo tomou o cuidado de sublinhar que, a despeito de não lhe faltarem
clientes que o remunerem por seus serviços, ainda hoje “trabalha de graça para ajudar amigos”.
E então, prosseguiu:

Se a gente não tomar cuidado, a gente estagna e não vai pra frente… eu mesmo andava
desmotivado, com problemas pessoais… aí eu comprei esse “reloginho” pra medir a
quantidade de passos que eu dou enquanto estou fotografando um casamento. Se eu
der menos de dez mil passos durante o casamento tem alguma coisa errada. Porque eu
preciso andar, eu preciso me mexer… se eu não me mexo, então eu não vejo os
momentos.

Enfatizando que os muitos prêmios que vinha acumulando nos anos anteriores eram
“resultado de muito trabalho”, Daniel encaminhava sua apresentação para o final, não sem antes
observar que houve um momento de sua carreira no qual seu esforço fora “excessivo”. Exibindo
no telão ao fundo do palco uma imagem (figura 4.1) que, segundo ele próprio, retratava a época
em que “exagerou” na carga de trabalho, passou então a aconselhar o público: “se dedique,
corra atrás, acorde cedo, mas encontre um equilíbrio”.

Figura 4.1: Fotógrafo de casamento conta durante


palestra que, devido ao “excesso de trabalho”, teve
os dois braços lesionados.

151
Se a combinação de estudos com trabalho árduo aparecia frequentemente nos discursos
de meus interlocutores, ela também se fazia notar nas expressões que encontravam, no polo
oposto, uma importante categoria de acusação. Neste sentido, aquele que porventura fosse
classificado como preguiçoso, acomodado ou estagnado encarnava a imagem da qual
fotógrafos de casamento procuravam, a todo custo, se distanciar. Nas palestras de eventos do
segmento da fotografia de casamento, a exemplo do Life Share, as críticas neste sentido eram
frequentes, embora não fossem dirigidas a sujeitos determinados, assumindo antes uma forma
difusa de acusação, quase sempre iniciada por expressões como “tem gente por aí que…”.
Apontava nesta direção, a fala de Leonardo, registrada durante a entrevista que realizei com
ele:

Eu vejo uma galera muito mais acomodada e clicando no automático. No automático


que eu digo, não da câmera, mas no automático mentalmente, pro que realmente,
assim, e os caras que eu vejo assim (…) se você for examinar bem o mercado aí.
Assim… buscando fazer foto maneira, são pouquíssimos. A maioria tá no modo
automático aí. A maioria… e gente renomada, aí. Gente com nome no mercado. Gente
que, cara [Leonardo ri enquanto fala], gente que vende casamento pra caralho. E eu já
fui clicar junto… Cara, você não acredita!

Também testemunhei acusações deste tipo serem lançadas a profissionais específicos,


ora por interlocutores com quem estabeleci uma relação de maior convivência, ora por
fotógrafos desconhecidos que criticavam colegas nas redes sociais. O primeiro tipo de acusação
era mais raro, mas, nas redes sociais, as acusações a fotógrafos de casamento a quem, ao menos
supostamente, não interessava evoluir eram tão frequentes que até me permitiram identificar
uma dinâmica própria. Começava com um dos integrantes de grupos de fotógrafos de
casamento publicando entre os colegas alguma fotografia de sua própria autoria. Em seguida,
algum outro fotógrafo com quem dividia aquele espaço de interação, na caixa destinada aos
comentários, condenava um ou mais aspectos da imagem postada (poderia ser o
enquadramento, o tratamento de cor feito na etapa de edição, ou um problema na fotometria,
por exemplo). Se o autor da fotografia publicada reagisse, demonstrando-se descontente com a
crítica, instalava-se uma troca de insultos. Estava, assim, estabelecida a treta, categoria que
nomeia o conflito aberto entre participantes de uma rede social. Durante todo o tempo de
realização do trabalho de campo, acompanhei diversas tretas, mas devo assinalar que fora das
redes sociais eram excepcionais as exibições públicas de tensões entre os participantes dos
circuitos de produção de reputação e prestígio que investiguei.
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Em etnografia interessada pelas relações de poder, realizada entre habitantes de uma
pequena cidade do sul da Inglaterra, Elias e Scotson (2000[1965]) apontam a “fofoca” como
importante mecanismo de controle social. Os autores de “Os estabelecidos e os Outsiders”,
argumentam que a “fofoca”, fenômeno dependente de normas e crenças coletivas, bem como
das relações comunitárias, deve ser apreendida por suas duas faces. A primeira, à qual somos
imediatamente remetidos diante da menção ao termo “fofoca”, diz respeito à circulação de
informações depreciativas sobre terceiros. É o que os autores chamam “blame gossip” (p.121).
A segunda forma de “fofoca”, chamada por Elias e Scotson de “pride gossip” (op. cit.), é
elogiosa e exalta determinados valores identificados com certos indivíduos e grupos. Penso que
a distinção apontada por estes autores nos ajuda a pensar nos múltiplos contextos em que
tensões se faziam visíveis em meu trabalho de campo. Embora não se tratasse necessariamente
de fofoca, uma vez que não eram sempre sobre terceiros, falas de caráter elogioso que
exaltavam certas virtudes do grupo eram manifestadas amplamente nos discursos públicos de
meus interlocutores. Já a fofoca depreciativa, sobretudo aquela que encontrava um alvo
específico (e não um sujeito indeterminado, como quando se dizia que “existem fotógrafos
que…”), surgia com frequência em conversas particulares. O fotógrafo que dizia “cobrar
fortunas para trabalhar em casamentos” mas que, ficou-se sabendo, “anda desesperado atrás de
clientes”; outro que “no outro dia estava palestrando no palco principal”, mas agora “vive de
vender espetinhos numa periferia”; dois profissionais que aparecem juntos em um congresso,
mas que, “pelas costas”, costumam “alfinetar-se” mutuamente; e o palestrante que “cobra
fortunas por workshops, mas que há tempos, não estuda fotografia”… todos estes personagens
figuravam em fofocas depreciativas que me foram contadas por interlocutores (e, por vezes eu
desconfiava, com um certo deleite) ao longo do trabalho de campo. Assim como constatam
Elias e Scotson, considero que o fluxo de rumores e mexericos possuía função integradora, ao
mesmo tempo que produzia exclusões no universo pesquisado.
Ao enaltecer fotógrafos de casamento, identificando suas bem sucedidas carreiras como
resultado de disposição ao trabalho árduo e aos estudos, à força de vontade e aos anseios de
“evoluir sempre”, relegava-se profissionais que não ocupavam tais posições de destaque
naquele universo profissional ao papel de “preguiçosos”, “acomodados” ou, na melhor das
hipóteses, de alguém em início de carreira, “que ainda tem muito por evoluir”. Se não havia
“trabalho sem recompensa”, conforme afirmou Letícia já nos primeiros minutos da nossa
entrevista, então os fracassos sinalizariam, segundo tal raciocínio, trajetórias de indivíduos que
não tivessem dado duro o bastante.
153
No caso específico do discurso de Letícia, o assunto voltaria a surgir meses mais tarde,
numa ocasião em que pude questionar tal lógica. Ela elogiava meu desempenho como aprendiz
de fotógrafa, declarando-se impressionada pelo modo como, em pouco tempo, eu tinha sido
capaz de produzir fotografias melhores (segundo seu julgamento, claro) do que as de alguns de
seus colegas que exerciam, há anos, a profissão. Como que refletindo em voz alta, argumentei
que eu não estava certa de que a comparação era justa, já que a estética das fotografias que eu
produzia — e que ela elogiava — não resultava de poucos meses de aprendizado, mas de um
processo mais longo de “educação do olhar”, retomando a expressão utilizada por outro
interlocutor. Afinal, assim como Letícia, eu vinha, há anos, assistindo a exposições de arte,
frequentando salas de cinema e centros culturais mundo afora. Nos termos de Bourdieu,
produzir fotografias cuja qualidade era reconhecida por minha interlocutora resultava de um
processo de aquisição de “competência cultural” (2007 [1979], p.70)96 consideravelmente mais
extenso do que o meu aprendizado da fotografia propriamente dita. Nesta conversa
despretensiosa, iniciada num momento de tédio em Balneário Camboriú, perguntei ainda a
Letícia se fazia sentido minha suspeita de que a “indústria” erigida em torno dos fotógrafos de
casamento (formada pelos cursos, publicações, congressos, palestras e workshops), à qual ela
própria costumava se referir de maneira um tanto quanto crítica —, não seria sustentada por
essa lógica de que o trabalho duro é necessariamente recompensado. Se bem me lembro, foi
neste momento que vi o assunto esmaecer. Minha interlocutora, que costumava ouvir com
atenção aos comentários que, àquela altura, eu me sentia à vontade para tecer, limitou-se a
responder com um olhar reticente, um inclinar sutil da cabeça e duas palavras, pronunciadas
com um longo intervalo entre elas: “é… talvez…”.

***

Alexandre é um fotógrafo de casamento com quem estabeleci interlocução regular ao


longo de meses. Nos conhecemos ao final da palestra de Leonardo e, conforme já mencionei
nesta tese, pude acompanhar de perto enquanto os dois trabalhavam, na companhia de
Stephanie, em um casamento. Nós também permanecemos em contato através do Instagram e

96
A noção de “competência cultural” é útil para pensar também na desigualdade de condições encontrada pelos
fotógrafos que disputam clientes de estratos sociais mais elevados. Por exemplo, parece-me razoável pensar que
um profissional com pouca escolaridade e que cometa muitos erros de ortografia em seus textos de divulgação,
acaba se confrontando com barreiras simbólicas importantes para atingir um determinado público.
154
trocamos mensagens ocasionais pelo WhatsApp. Ao longo de todo esse tempo, Alexandre se
revelou um dos interlocutores mais prestativos e acolhedores que encontrei enquanto realizava
trabalho de campo. A certa altura, ocorreu-me que, após meses de interlocução, eu não o havia
entrevistado. Perguntei então ao fotógrafo sobre sua disponibilidade e, conforme eu previa,
recebi dele mais uma demonstração de boa vontade em colaborar com a pesquisa. Nos
encontramos numa tarde do mês de março de 2017 para uma conversa que, como de costume,
seria registrada com o auxílio de um gravador.
Em minhas notas tomadas logo após este encontro, assinalei que entrevistar Alexandre
não foi tarefa das mais fáceis. Naquela ocasião, meu interlocutor parecia ter adotado uma
postura mais formal do que de costume, demonstrando, ainda que sutilmente, preocupação com
o que eu pudesse vir a publicar a seu respeito97. Talvez tenha partido daí minha dificuldade em
compreender como Alexandre classificava a si mesmo, em termos de sua experiência enquanto
fotógrafo de casamento e do atual estágio de sua carreira. Em especial, o modo como narrava
sua trajetória (discorrendo longamente sobre questões mais abstratas e se esquivando em
algumas situações nas quais eu lhe questionava sobre casos concretos) me deixava com a
suspeita de que, para ele, conseguir clientes era uma dificuldade sobre a qual evitava falar.
Houve um único momento em que me pareceu possível me aproximar, ainda que ligeiramente,
da questão:

Alexandre: Se tem uma coisa que eu tenho que estudar em fotografia, hoje, é a parte
de marketing, que eu sou péssimo. E hoje o fotógrafo precisa conhecer muita coisa,
não só fotografar. E é uma coisa que eu peco, eu sei que eu peco muito. Eu deveria
estar anos luz na frente se eu soubesse atuar mais nessa área de marketing. (…) O
máximo que eu já fiz de propaganda paga é post de Facebook. Mais nada. (…) nem
revista, nem outro site…
Cristina: E você tem um fluxo de cliente…
Alexandre: Assim, a grande maioria dos clientes que vêm, vêm através do Facebook.
Agora Instagram e tal. Mas ainda falta muito investir nessa área de propaganda. Eu
não me considero um fotógrafo de uma agenda tão agitada, digamos assim, mas os

97
Em especial, eu notava que Alexandre empregava um grande cuidado em suas escolhas de palavras ao responder
minhas questões. Percebi, por exemplo, que quando alguma gíria lhe escapava, meu interlocutor procurava corrigir
o “lapso” imediatamente, buscando então se expressar de modo menos coloquial. Assim, ao contar que saiu de um
evento “com geral” interrompeu a si mesmo, antes que tivesse concluído a última palavra, tratando de consertar:
“saí de lá com amigos”. Em outros casos, acrescentava a expressão “entre aspas” ao discurso que lhe parecia
demasiado informal como em: “ele ficou, entre aspas, botando pilha”.

155
que buscam e vêm são através do Facebook e indicação, né? (…) Se eu fosse investir
alguma grana em algum curso seria na área de marketing.

Refletindo a partir da fala de Alexandre, atentei para uma ausência de queixas entre os
fotógrafos de casamento com quem eu interagira até então em relação a uma conjuntura
econômica desfavorável. Afinal, eu me dava conta, a realização de meu trabalho de campo
coincidia com um período de recessão98 no país. Por que então eu não ouvia reclamações? Seria
possível que o segmento da fotografia de casamento, como um todo, estivesse àquela altura
experimentando um crescimento? Ou os fotógrafos de casamento que compunham meu
universo de pesquisa ocupavam uma posição no mercado que, de tão privilegiada, passaria
incólume por uma situação econômica desfavorável? A fala que reproduzo a seguir, proferida
em tom assertivo por um fotógrafo de casamento nos minutos finais de seu curso99, nos fornece
uma pista importante para a reflexão em torno da ausência de queixas entre meus interlocutores:

As oportunidades não estão lá fora, meu querido. As oportunidades estão dentro do teu
nível de coragem que tu tem em abraçá-las. Então não me venha reclamar de mercado
antes de se olhar no espelho e fazer um check-up geral do que que você está transmitindo
ao mercado. Por favor, não faça isso.

Tenho a impressão de que, em meu universo empírico, queixar-se das dificuldades é


prática que se choca com as representações idealizadas dos fotógrafos de sucesso que atribuem
sua evolução enquanto profissionais ao trabalho duro e aos estudos. Nas vozes de fotógrafos
de casamento consagrados como “profissionais de sucesso”, “reclamar do mercado” aparecia
como ato relegado aos desprovidos de força de vontade, coragem para arriscar, visão de
negócios, persistência. O profissional virtuoso, segundo a lógica hegemônica em meu campo
empírico, era aquele que, à despeito das intempéries do mercado, mantinha-se firme em seus
propósitos e encontrava soluções criativas para prosperar, “saindo de sua zona de conforto”:

Eu acredito que a crise existe. (…) mas eu estou observando que algumas pessoas, que
as mais exigentes, elas estão comprando mais. Então a gente pode vender mais
produtos. Você não precisa ter muitos clientes, você precisa ter bons clientes e atender

98
A afirmação baseia-se nos indicadores do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística que apontam uma queda,
em 2016, de 3,6% no valor do Produto Interno Bruto Brasileiro, seguindo um desempenho também negativo no
ano de 2015. Fonte: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-
noticias/releases/9439-pib-recua-3-6-em-2016-e-fecha-ano-em-r-6-3-trilhoes.
99
O curso em questão foi veiculado na plataforma digital destinada a profissionais da fotografia que eu costumava
acessar.
156
ele o melhor possível. Por quê? Assim como existe o médico de família, é possível hoje
ser fotógrafo de família. Então você pode fotografar o casamento e continuar
fotografando outros eventos na vida dessa pessoa. Então, se você atender muito bem o
cliente…

Parece-me pertinente refletir a respeito deste tema levando em conta o trabalho de


Wright Mills sobre a ascensão da então nova classe trabalhadora dos “colarinhos brancos”100,
no qual o autor procura destrinchar, a partir da análise de livros que compunham o catálogo da
Biblioteca Pública de Nova York, aquilo que chama de “ideologias do sucesso” (1976 [1951]
p.278) — os sistemas de ideias, valores e crenças que sustentam modelos de sucesso distintos.
Mills identifica dois modelos coexistentes (embora tenham surgido em momentos históricos
diferentes): o do “antigo empresário” e o “dos colarinhos-brancos”, cada qual com
características próprias. Segundo a “ideologia do antigo empresário”, argumenta Mills, o
sucesso está sempre relacionado com virtudes pessoais sem as quais ele é impossível —
enquanto “com elas, tudo é possível” (p.278), sublinha o autor. Em um trecho particularmente
pertinente para a discussão que proponho e que traz à baila a relação entre virtudes pessoais e
estrutura social, afirma Mills:

Essa ideologia inspiradora quase nunca se refere à estrutura impessoal das


oportunidades de êxito, aos limites impostos pela economia à prática das virtudes
pessoais; e, quando fala nesses fatores, as virtudes pessoais sempre são consideradas
mais importantes. (p.279)

Mills destaca ainda que a passagem de um capitalismo liberal de pequenos proprietários


para um capitalismo de monopólio e de grandes companhias produz um novo modelo de
sucesso que, embora não dispense a importância das virtudes pessoais, articula o êxito
profissional a novas qualidades do trabalhador:

A literatura do sucesso acompanhou a modificação de seus modelos. Ela ainda destaca


as virtudes pessoais, mas não são mais aquelas virtudes austeras atribuídas aos
empresários vitoriosos. Hoje acentua-se mais (…) o “saber levar” num ambiente de
colegas, superiores e regras, do que o “levar adiante” num mercado livre; mais as

100
O termo, conforme esclarece a tradutora, Vera Borda, em nota que precede a edição em língua portuguesa
apontado nas referências desta tese, alude a trabalhadores não-empenhados diretamente na produção de bens,
caracterizados pelo recebimento do salário mensal e leva em conta fatores como prestígio, status social e nível de
renda.
157
pessoas que você conhece do que as coisas que você sabe; mais as técnicas de
autopromoção e o jeito para lidar com pessoas do que a integridade moral, as
realizações substanciais e a solidez de caráter. (p.281)

Optei por abordar a discussão proposta por Wright Mills, fundamentalmente, porque ela
permitiu que eu mesma identificasse, nos circuitos que pesquiso, um padrão hegemônico de
sucesso apoiado em virtudes individuais. Neste sentido, minha intenção não é situar o fotógrafo
de casamento em um ou outro modelo proposto pelo autor, mas chamar atenção para o modo
como os discursos de meus interlocutores de pesquisa parecem coadunar elementos
relacionados a uma lógica liberal de pequenos empresários, bem como outros presentes em uma
lógica corporativa — com uma predominância dos primeiros, eu diria.
Pensando no primeiro terreno, o do modelo de êxito do empresário, eu chamaria atenção
para o modo como as trajetórias profissionais são articuladas em torno de determinadas virtudes
específicas: disposição para o trabalho, honradez, valorização da família e solidez de caráter
são algumas das qualidades de ordem moral que aparecem nos discursos dos fotógrafos e
constituem o “virtuosismo do empreendedor” (p.281). “Nosso trabalho se baseia em quem nós
somos: ele carrega quem eu sou como marido e como pai”, disse um palestrante. “Tenha bons
pensamentos”, aconselhou outro. “Eu quero que meus filhos tenham a simplicidade e a
humildade que o meu pai tinha, que a minha mãe tem” concluiu, com lágrimas nos olhos, um
fotógrafo de casamento que subiu ao palco principal da edição do Wedding Brasil de 2016.
Praticando tais virtudes com grande determinação, apontam meus interlocutores, o fotógrafo de
casamento alcança o êxito e, ao fazê-lo, abre caminho para os demais. “Todos são
recompensados segundo sua capacidade e esforço”, é a mensagem que parecem reverberar a
todo tempo.
É importante notar ainda que as virtudes do indivíduo, nos discursos de meus
interlocutores, sobrepujam as condições sociais nas trajetórias de ascensão profissional. A fala
de Alexandre, reproduzida acima, indica que o mesmo vale para os eventuais malogros nos
empreendimentos, posto que a dificuldade de atrair clientes é justificada pela inaptidão do
fotógrafo “na área de marketing” — uma falta a ser superada pelo investimento em um “curso
da área”, o que me parece bastante conveniente para a prosperidade do mercado de cursos,
eventos, workshops e palestras cujo público-alvo é formado por fotógrafos de casamento. Não
ter obtido sucesso, nesta perspectiva, constitui uma situação transitória, uma consequência do
investimento ainda insuficiente.
158
Quanto ao “modelo dos colarinhos-brancos” proposto por Mills, este também oferece
elementos sobre os quais me parece frutífero pensar a fim de entender certos discursos e práticas
dos fotógrafos de casamento. A começar pelas virtudes acentuadas neste modelo, que também
ganham destaque em meu universo empírico. Refiro-me, em especial, às técnicas de
autopromoção, à habilidade para lidar com pessoas, à cortesia. “As circunstâncias, a
personalidade, o temperamento, o acaso, assim como o trabalho e a paciência, são fatores
essenciais entre o sucesso ou o fracasso” (p.281), ressalta Mills, que também aponta, na
literatura sobre o sucesso em grandes companhias, a “cortesia” como importante ferramenta
para a progressão dentro de hierarquias burocráticas das empresas. Aludindo ao modo como o
tema é abordado ali, o autor destaca:

A cortesia “ajuda-o a progredir… torna seu trabalho mais divertido… você estará
menos fatigado à noite… será mais popular terá mais amigos”. Portanto “exercitar-se
para sorrir… Expresse vivacidade física e mental… Irradie confiança em si… Sorria
com frequência e sinceramente”. “Tudo o que você faz, ou diz, deixa uma impressão
nos outros… do berço ao túmulo você precisa lidar com os outros. Empregue os
princípios sólidos de vendas e você “venderá” melhor sua mercadoria, suas ideias e
você mesmo”. (pp. 281-282)

Em um dos cursos sobre fotografia de casamento veiculados pela Photos TV, o fotógrafo-
palestrante aconselhava seus alunos: “a menor distância entre dois pontos é uma reta. A menor
distância entre duas pessoas é o sorriso. Aprendam a usar o sorriso!”. Em outro, o jovem
fotógrafo a cargo da aula estendia-se sobre a importância de “tratar bem as pessoas”, “não só
os clientes, mas também os outros fornecedores do casamento”.
Se, por um lado, o trabalho de Wright Mills nos ajuda a apreender o conteúdo ideológico
dos circuitos de construção de reputação dos fotógrafos de casamento contemplados nesta
pesquisa, por outro, ela apresenta um ponto de marcado contraste entre os contextos de sua
pesquisa e aquele do qual nos ocupamos nesta tese:

A heráldica do sucesso americano tem sido o papel-moeda; mesmo quando os autores


dessas obras inspiradoras [em referência aos livros dedicados à temática do sucesso que
constituem a base empírica de sua análise] são mais líricos, o dinheiro está sempre
presente. Os modelos de sucesso do empresário e do empregado implicam sempre uma
reformulação da personalidade para objetivos pecuniários, mas para o empresário o
padrão dinheiro-sucesso envolvia a aquisição de virtudes boas em si mesmas: o dinheiro
deve ser usado para boas ações, pois a virtude e as boas ações justificam a riqueza. No
modelo dos colarinhos-brancos não há essa santificação moral dos caminhos para chegar
159
ao sucesso; são apenas incitados a se tornarem um instrumento de sucesso, a adquirir
táticas, e não virtudes; o sucesso monetário é aceito como um objetivo evidentemente
bom, para o qual nenhum objetivo é demasiado. (p.282)

Ainda que no “modelo de sucesso do empresário” o dinheiro esteja associado à


disposição beneficente por parte do empresário bem-sucedido, chamou minha atenção como o
autor identifica, nos dois modelos, a constante presença do dinheiro e o objetivo pecuniário
encarado como algo legítimo. No meu universo de pesquisa, ao contrário, as referências ao
dinheiro são, com frequência, postas em segundo plano e, mais do que isso, o interesse
monetário puro e simples é moralmente condenável. Sobre este tema, é interessante atentar para
o caso narrado por um fotógrafo-palestrante (que aqui chamarei de Arantes) durante uma aula
na Photos TV:

O Carlito é um fotógrafo e ele acabou de sair do meu workshop e ele tava pilhado ele
já… (…). Ele já é muito articulado e ele foi atender o primeiro cliente e ele me ligou só
pra agradecer. Ele disse “Arantes, seguinte: tô ajudando as pessoas, me tornando um
ser humano melhor e, por último, ganhando mais dinheiro. Obrigado”. O pai da noiva
estava relutante, a noiva e o pai foram no escritório dele. O pai da noiva disse que só
podia gastar seis mil reais com fotografia. O pacote mediano dele era nove mil. Os dois
começaram a conversar e sem querer a noiva disse que o pai gosta mesmo é das
vaquinhas leiteiras dele, da roça. E nesse momento o Carlito disse “eu gosto desse
senhor”. “Meu senhor, o que que o senhor tá fazendo aqui?”; “não… tô aqui vendo as
fotos que a minha filha…”. “Não, mas quantos anos o senhor tem?”; “Eu tenho setenta
e…”; “Não. Quantos anos o senhor tem…”; “Eu tenho setenta e dois”; “O senhor não
entendeu a minha pergunta. Quantos anos o senhor ainda tem?”. E aí ele ficou em
silêncio. “Por que que o senhor não tá lá com suas vaquinhas? Deixa eu dizer uma coisa
pro senhor. A minha infância foi toda vendo meu pai tirando leite da vaca, às cinco da
manhã. Meu pai ainda tem as vaquinhas dele. Sabe onde ele tá agora? Está lá com as
vaquinhas dele. Sua filha tá criada. Tá crescida”. De repente a noiva percebeu que só
existia conversa entre ele e o pai da noiva. E a conversa se estendeu e eles criaram um
vínculo e Carlito foi muito verdadeiro. Foi muito verdadeiro e a intenção dele era
realmente ajudar. E o pai foi embora fechando o pacote máximo dele. A noiva ficou
meio sem entender muito, mas foi isso que ele me passou. Primeiro, ajudar as pessoas.
E com esse ajudar, enxergar a si próprio e se tornar um ser humano melhor. E é de
graça, ainda mais. E por último, sempre por último, é ganhar mais dinheiro.

A história narrada por Arantes, bem como a lição que procura extrair dela, parece
interessante para pensar em como o dinheiro é encarado naquele contexto. Embora não conteste
a importância do dinheiro para a profissão, o discurso de Arantes (que encontrava ressonância
com outros discursos que ouvi enquanto realizava trabalho de campo) preconiza que ele deve
160
ser consequência da prática de princípios mais elevados: “ajudar as pessoas”, “tornar-se um ser
humano melhor”. Cabe aqui o argumento de Weber, oportunamente relembrado por Mesquita
(2007) em artigo que enfoca formas de inserção de fiéis evangélicos no universo do trabalho
autônomo: “se o capitalismo foi difundido e universalizado, isso não significa que a
racionalidade econômica tenha sido homogeneizada, isto é, não eliminou as especificidades nos
diferentes contextos culturais e outras configurações sociais” (p.197). Assim, a partir das falas
sobre o dinheiro (ou ainda a partir do silêncio a seu respeito) me pergunto sobre as
especificidades a respeito da questão monetária em meu campo de pesquisa. Neste sentido,
gostaria de enfatizar que, revisitando meu material de campo, sobretudo a parcela dele que foi
construída a partir da observação de palestras e cursos, chamou minha atenção a escassez de
menções à conjuntura macroeconômica e também aos custos implicados na atividade101. Nas
raras ocasiões em que tais questões vinham à tona, elas serviam como pano de fundo para que
os fotógrafos pudessem expor aos espectadores suas táticas heroicas no mercado de livre
concorrência, como indica o discurso de Fernando, reproduzido alguns parágrafos acima, que
enunciou sua inspiração na figura do “médico de família” para lançar-se como um fotógrafo
que presta diversos serviços ao mesmo cliente ao longo dos anos.
É igualmente importante assinalar que, nem nos discursos públicos, nem nas conversas
privadas que travei com fotógrafos de casamento, foram feitas referências por parte dos meus

101
Julgo pertinente sublinhar que eu tinha a clara impressão de que o investimento mínimo dos fotógrafos
iniciantes e seus custos mensais não eram desprezíveis, embora em alguns momentos os discursos de alguns
palestrantes parecessem sugerir o oposto. Em parte, esta impressão decorria de meus próprios gastos com a
fotografia. Ao decidir aprender a fotografar, calculei o valor necessário para a aquisição da câmera, mas não
imaginava que este seria o primeiro de uma série de gastos que teria com a atividade. A começar pela compra de
acessórios: lente, bateria suplementar e cartões de memória, HD externo para armazenar as imagens. Com o
equipamento em mãos e fotografando nas ruas do Rio de Janeiro diariamente, achei por bem fazer um seguro. Para
editar as fotografias eu precisava pagar pela assinatura do software e, após minhas tentativas desastradas de
manuseá-lo (mesmo depois de assistir a tutoriais na Internet, conforme sugestão de uma interlocutora), acabei
comprando um curso sobre Lightroom. Acabei também me inscrevendo em um outro curso oferecido por uma
escola de fotografia de um bairro vizinho ao meu. Ao fim de um ano tentando aprender a fotografar, foram
consumidos quase cinco mil reais.

161
interlocutores às condições de desigualdade entre fotógrafos que buscam ascender 102 . Na
direção contrária, o que os fotógrafos de casamento sinalizavam — e de maneira consistente
— era que as condições para crescimento estavam ao alcance de todos aqueles dispostos a
evoluir. As formas escolhidas por meus interlocutores para classificar seus colegas eram
reveladoras desta ideia: um fotógrafo de casamento poderia ser alguém avaliado positivamente
(um bom fotógrafo, um mestre, uma referência, um fotógrafo top), poderia ainda ser apontado
como alguém que corre atrás (está evoluindo, investe no crescimento, é um batalhador) em
contraste com alguém estagnado (preguiçoso, acomodado).
A ideia de evolução pressupõe, para eles, implicitamente, uma escolha moral. Aquele
que obtém êxito é alguém merecedor por reunir e praticar com afinco um conjunto de virtudes
consideradas fundamentais para o sucesso. Já o sujeito desprovido de tais virtudes se
“acomoda”, “opta pelo caminho mais fácil” ou “anda pelo mau caminho”103 e está, portanto,
fadado ao fracasso. Creio que a palestra de Jéssica, sobre a qual tratei na seção anterior, bem
como a desconfiança do espectador por ela mencionado, podem ser proveitosamente analisadas
à luz da evolução enquanto categoria nativa. Ao admitir a preguiça e ao desafiar a ideia de que
fotografar casamentos é, necessariamente, fonte de realização pessoal, Jéssica marca uma
posição contrária ao padrão ideológico hegemônico naquele universo. Seu discurso consistia
em um contraponto à medida em que questionava a curva sempre ascendente de evolução, já
que para ela não era preciso evoluir sempre. Ao contrário, Jéssica parecia confortável com seu
estágio de conhecimento da fotografia, apontando seus limites e não fazendo menção ao anseio
de superá-los. Era como se já houvesse aprendido o suficiente para garantir para si um fluxo de

102
Por outro lado, vi brotar este tipo de questionamento em conversas entreouvidas durante os eventos que
frequentei. Em uma delas, no Wedding Brasil, um pequeno grupo de congressistas que tomavam café próximo ao
lugar onde eu estava sentada, relativizaram os ensinamentos de alguns palestrantes, sublinhando que se tratava de
“estrelas”, “num nível da carreira que já tem nove pessoas trabalhando na equipe”. Eles constatavam que colocar
em prática seus ensinamentos, quando se fotografa um casamento apenas com o auxílio de outro profissional, era
“praticamente impossível”. Tive ainda uma conversa rápida, porém esclarecedora, durante um intervalo do mesmo
evento, com um fotógrafo de casamento atuante em um pequeno município do litoral do estado do Rio de Janeiro.
Quando perguntado sobre o que estava achando do evento, respondeu mais ou menos assim: “Olha, tô achando
que no ano passado estava melhor. Eu venho aqui pra pegar umas ideias que eu acho que vão funcionar na minha
cidade. Porque na minha cidade não adianta achar que a gente vai fazer isso tudo e as pessoas vão pagar quatro,
cinco mil reais, não é assim. Mas a gente pega uma ideia ou outra que fazem a diferença… no ano passado eu
aprendi a usar uns tecidos para fazer ensaio, fez o maior sucesso lá, valeu muito a pena. Porque tem que dar retorno,
né? É caro vir aqui, tem passagem, hospedagem, você viu o preço da comida? Então a gente pega uma ideia ou
outra, volta pra casa, experimenta. Agora, achar que vai fazer, acontecer e de repente vai ter gente pra pagar? Não
é assim, né? Tem concorrente… A gente rala pra ir atrás de cliente.”
103
Em mensagem que buscava promover a edição de 2019 do Wedding Brasil, que recebi por e-mail, aparecia uma
variação interessante desta expressão. Referindo-se aos profissionais que supostamente já haviam reservado vaga
no evento, o autor da mensagem os classificava como “fotógrafos que já escolheram caminhar pela luz do sol”.
162
clientes e isso bastasse. Ouvindo Jéssica, tive a impressão de que esta fotógrafa encarava seu
trabalho, principalmente, como garantia de seu sustento — e o que me surpreendia, àquela
altura do trabalho de campo, era que ela não demonstrava pudor em afirmar isso.
Nos próximos parágrafos, dedicarei maior atenção às condições materiais
proporcionadas pelo trabalho dos fotógrafos de casamento, dimensão até aqui pouco explorada
(ao menos de maneira direta) na tese. Elas garantem o sustento de meus interlocutores, mas
também se articulam a valores morais, conforme ficará claro a seguir.

Valores materiais, valores morais

Algumas horas após termos deixado o salão de festas no bairro de Vila Valqueire, onde
acompanhei Alexandre e sua equipe em um casamento, embarcamos os quatro (além deste
fotógrafo e eu, também Leonardo e Stephanie) no automóvel de Alexandre, a fim de iniciarmos
o percurso até nossas casas. Quando estávamos prestes a alcançar nosso primeiro destino,
Leonardo, avistando um posto de gasolina com uma loja de conveniência aberta àquela hora da
madrugada, sugeriu que fizéssemos uma rápida parada ali com o intuito de “tomar a saideira”.
Naquele momento, a temperatura do lado de fora estava particularmente agradável, de modo
que todos concordamos que não era a melhor das ideias permanecer no interior da loja, onde o
ambiente era resfriado por aparelhos de ar-condicionado e iluminado por fortes lâmpadas
fluorescentes. Assim, compramos algumas garrafas de cerveja e, a fim de consumi-las, nos
instalamos na penumbra do espaço onde, durante o dia, se fazia a manutenção de automóveis.
A área externa do posto de gasolina estava quase deserta, à exceção de um único
funcionário. O frentista ocupava uma cadeira a poucos metros de nós e com a cabeça recostada
contra a parede, parecia lutar contra o sono, sem muito sucesso. Considerando que era
localizado em uma das principais ruas que ligam a Zona Sul à região central da cidade, o
ambiente do posto estava bastante silencioso. Os carros que circulavam na via passavam em
velocidade constante e o som dos automóveis cortando o ar era bem mais discreto do que o das
buzinas que compunham a paisagem sonora no horário de pico. Acabamos permanecendo
sentados sobre o meio fio, bebendo nossas cervejas por algumas horas. Mais uma vez, os
assuntos abordados foram vários, mas na maior parte do tempo giravam em torno do cotidiano
dos profissionais da fotografia de casamento.
Houve um momento em que a conversa foi tomando um rumo nostálgico. Faltavam
poucos meses para que Leonardo se mudasse do país e ele contava que o casamento que acabara
163
de fotografar tinha sido seu penúltimo evento antes que embarcasse rumo à Austrália. Leonardo
começou a rememorar em voz alta seus anos vivendo no Rio de Janeiro, como que antecipando
as saudades. “Foi muito bom enquanto durou”, comentava ao enumerar as benesses da vida que
levava. Elas não eram poucas. A flexibilidade de horários do trabalho como fotógrafo de
casamento, segundo contava Leonardo, permitia que ele aproveitasse a vida no litoral. Surfista,
contava que costumava acordar cedo, de modo que via o sol nascer a caminho das praias da
Zona Sul ou Oeste da cidade. De volta a sua casa, que era também seu espaço de trabalho, tinha
tempo de brincar com a filha até que ela fosse para a escola. Com os anos de profissão, Leonardo
dizia ter aprendido como editar fotografias com agilidade e, contando com a auxílio da esposa
que, mesmo trabalhando em um escritório de arquitetura em horário integral, se ocupava da
divulgação do trabalho e do relacionamento com os clientes, em poucas horas diárias era capaz
de dar conta de suas tarefas. Havia, sim, segundo ele, a necessidade de trabalhar nas noites dos
finais de semana e isso era, de fato, cansativo. Porém, ele também levava em conta que tinha a
liberdade de limitar o número de casamentos que fotografava, podia tirar folga nas segundas-
feiras e, no fim das contas, era recompensado com uma remuneração “mais do que suficiente
para viver bem”. No relato de Leonardo, pareciam tão atrativas as vantagens da profissão que
Stephanie, levantando as sobrancelhas e inclinando a cabeça em minha direção, observou com
ar malandro: “te ouvindo falar assim, até a Cris vai querer virar fotógrafa de casamento”. O
frentista, despertado subitamente de seu cochilo, pela primeira vez demonstrava interesse por
nossa conversa. Notando que eu o mirava de soslaio, me devolveu um sorriso cúmplice, como
quem dizia: “até eu!”. Tive a impressão de que faltou pouco para que ele nos perguntasse o que
deveria fazer para levar a vida que Leonardo descrevia.

Aquela não foi a primeira, tampouco a última vez que ouvi alguém dirigir a mim uma
provocação como a de Stephanie. Lembro-me vivamente de observações deste tipo partindo de
colegas antropólogos, quando em encontros de natureza acadêmica eu discorria sobre meus
interlocutores. Precisamente, as observações de que eu acabaria por me tornar fotógrafa,
proferidas ora em forma de pergunta, ora como constatação, vinham à tona quando eu
mencionava os proventos de meus interlocutores. Devo dizer que, considerando a remuneração
de bolsistas de pós-graduação em dedicação exclusiva como eu, tais comentários me pareciam
compreensíveis (embora também distantes de meus planos).

164
Uma vez que fotografar casamentos não é atividade que passa por qualquer tipo de
regulamentação no país104, cabe a cada profissional estipular seus preços. O cálculo, segundo
contavam meus interlocutores, levava em conta uma série de variáveis, dentre elas os preços
praticados no mercado local de atuação, a demanda dos clientes, o número de assistentes que
trabalhariam nos eventos, gastos com equipamentos, seguros e divulgação, por exemplo.
Quando perguntados sobre suas finanças, meus interlocutores não respondiam com estimativas
de ganhos mensais ou algo que o valha. Ao invés disso, eles faziam referências a suas propostas.
Tratavam-se de documentos, quase sempre em arquivos no formato PDF105, que continham
uma apresentação do trabalho e espécies de “pacotes” dentre os quais os clientes poderiam
selecionar. Para que o leitor possa ter uma ideia um pouco mais ajustada das formas que tais
“pacotes” podem apresentar, exemplifico com orçamentos contidos em uma só proposta, a qual
tive acesso:

Opção 1:
- 10 horas de cobertura fotográfica, incluindo making of, cerimônia e festa
realizada por mim e meu segundo fotógrafo
- Média de 800 fotos editadas, entregues em alta resolução
Investimento: R$7.000,00
Opção 2:
- 10 horas de cobertura fotográfica, incluindo making of, cerimônia e festa
realizada por mim e meu segundo fotógrafo
- Média de 800 fotos editadas, entregues em alta resolução
- Ensaio fotográfico do casal, realizado de segunda a quinta-feira (média de 100
fotos editadas, em alta resolução)
Investimento: R$8.500,00
Opção 3:
- 10 horas de cobertura fotográfica, incluindo making of, cerimônia e festa
realizada por mim e meu segundo fotógrafo
- Média de 800 fotos editadas, entregues em alta resolução
- Álbum 30 x 30 com 80 fotos
Investimento: R$8.800,00
Opção 4:

104
Após uma pesquisa rápida, constatei que tramita no congresso federal, pelo menos desde 2009, um projeto de
lei que regulamenta a profissão de fotógrafo (e não de fotógrafo de casamento, especificamente). De qualquer
modo, mesmo que tal lei venha a ser aprovada, ela não prevê qualquer regulamentação no que diz respeito aos
preços praticados.
105
Trata-se de um formato de arquivo digital de fácil visualização. A sigla corresponde ao termo em inglês
“Portable Document Format” ou “formato portátil de documento”, em tradução livre.
165
- 10 horas de cobertura fotográfica, incluindo making of, cerimônia e festa
realizada por mim e meu segundo fotógrafo
- Média de 800 fotos editadas, entregues em alta resolução
- Álbum 30 x 30 com 80 fotos
- Ensaio fotográfico do casal, realizado de segunda a quinta-feira (média de 100
fotos editadas, em alta resolução)
Investimento: R$10.000,00
Opção 5:
- 10 horas de cobertura fotográfica, incluindo making of, cerimônia e festa
realizada por mim e meu segundo fotógrafo
- Média de 800 fotos editadas, entregues em alta resolução
- Álbum 30 x 30 com 80 fotos
- Ensaio fotográfico do casal, realizado de segunda a quinta-feira (média de 100
fotos editadas, em alta resolução)
- Álbum 20 x 30 com 20 fotos do ensaio do casal
Investimento: R$10.800,00

Diferentes fotógrafos de casamento organizam suas propostas conforme julgam mais


adequado e a variação entre elas é substancial106. Para além dos “pacotes”, há casos em que elas
apresentam aos potenciais clientes um valor “básico” de cobertura fotográfica e alguns serviços
e produtos “adicionais”107. Fabian me contou que, por não se considerar bom vendedor, estipula
um valor para o álbum com o intuito de se sentir desobrigado de tentar lucrar após o evento.
Letícia, por outro lado, revelou lançar mão de certos estratagemas para que seus clientes
solicitem páginas extras no álbum contratado após o evento, o que aumenta seus ganhos. De
qualquer modo, o que pretendo ressaltar é que as variações entre as propostas não permitem
que comparemos com o mínimo de precisão os rendimentos de meus interlocutores. Se
levarmos em conta que igualmente variáveis são os esquemas de custos destes profissionais,
então o cálculo se torna ainda mais complexo. Ainda assim, arriscarei uma estimativa um tanto
quanto rudimentar, considerando que o preço inicial de uma única cobertura fotográfica
“básica” é algo em torno dos R$6.000 e que os custos variáveis em um evento, incluindo o

106
Tenho armazenadas em meus arquivos, cerca de duas dezenas de “propostas”. Algumas delas recebi de
interlocutores, outras obtive depois de receber um e-mail promocional, cujo título era algo como “saiba quanto
cobram os melhores fotógrafos de casamento do Brasil”. A proposta de menor valor era de R$4.800 apenas pela
“cobertura fotográfica” e o maior valor, correspondente a um “pacote” repleto de itens, totalizava R$43.000.
107
Aqui também a gama de possibilidades é ampla e pode incluir páginas extras nos álbuns, caixas especiais para
armazená-los, horas suplementares de cobertura fotográfica, álbuns extras com dimensões menores para presentear
os pais dos noivos e assim por diante.
166
pagamento do segundo fotógrafo, se aproximem dos R$1.000. Embora admitidamente tosco —
já que não encontrei dados que sustentassem uma caracterização do perfil socioeconômico mais
consistente de meus interlocutores, o que já pode ser considerado significativo, entendo que
este cálculo ajudará o leitor a acompanhar a discussão que proponho a seguir. Antes de avançar,
contudo, devo fazer um adendo importante: tendo em vista que meus interlocutores, via de
regra, gozam de uma posição muito privilegiada no mercado em que atuam, não é razoável
pensar que a partir de tais números possamos calcular algo como uma média de ganhos de
fotógrafos de casamento atuantes no país. Avancemos, pois.
Em janeiro de 2017, eu almoçava com meus colegas e professor do curso de fotografia
durante uma aula externa. Um dos alunos, um rapaz de pouco mais de vinte anos de idade,
declarando sua intenção de tornar-se fotógrafo profissional, discorria sobre seus investimentos
no segmento da “fotografia de moda”. Um grupo de três ou quatro pessoas, no qual eu me
incluía, ouvia com interesse enquanto meu colega contava que já vinha realizando alguns
trabalhos para lojistas do seu bairro ou fotografava, a princípio sem remuneração, algumas
amigas que iniciavam na carreira de modelo. Já não sou mais capaz de lembrar se algum de nós
lhe dirigiu a pergunta ou se o rapaz resolveu, por conta própria, explicar as razões que o levaram
a dar este rumo para sua incipiente carreira. Mas recordo com clareza do modo categórico,
embora quase distraído, com que alegou: “eu quero fazer dinheiro e pra ter dinheiro só na
fotografia de moda mesmo”.
O professor, que era também um fotojornalista empregado em um jornal nacional de
grande circulação e participava da conversa, discordou da análise com veemência. Primeiro,
ele argumentou que tinha conhecidos que atuavam naquele universo havia anos, sendo alguns
deles responsáveis por “fotografias muito famosas” e que, até onde sabia, isto que não lhes
garantira uma situação financeira vantajosa. Além disso, dizia, boa parte da produção comercial
deste segmento era dominada por agências que pagavam pouco pelos registros fotográficos. A
pá de cal sobre a avaliação de meu colega viria em forma de pergunta: “você sabe quanto ganha
um fotógrafo por um editorial de grandes revistas de moda?”. E antes que algum de nós pudesse
arriscar um palpite, tratou de responder ele mesmo: “uns quinhentos reais”. E prosseguiu
dizendo ser comum que “no máximo, estes fotógrafos fazem algum dinheiro por ter o nome
associado a grandes marcas”. Trocando em miúdos, o funcionamento daquele mercado,
segundo entendi a partir da fala do professor, seria mais ou menos assim: o “fotógrafo de moda”
venceria inúmeras barreiras conseguindo inserir-se no circuito de revistas de grande circulação.
A partir daí, com seu nome associado a “marcas” de prestígio, ele ganharia “condições de cobrar
167
um pouco mais” por serviços prestados a clientes particulares, fazendo, por exemplo, retratos
de pessoas dispostas a remunerá-lo bem por isso. Mesmo assim, o professor ressaltava,
enriquecer com fotografia era algo que beirava o impossível. À audiência interessada, permitiu-
se ainda dar um último conselho: “a única área da fotografia que tem dado dinheiro, pelo que
tenho conversado por aí, é a da fotografia social”.
A impressão do professor parecia encontrar respaldo nas narrativas de meus
interlocutores, que percebiam nos ritos matrimoniais uma via expressa para obtenção de
recursos financeiros com a fotografia, ou um modo de “unir o útil ao agradável”, para recuperar
a expressão utilizada por Leonardo. Tanto os profissionais que se dedicavam a fazer este tipo
de registro eram os melhor remunerados no campo mais amplo da fotografia, disse certa vez
Letícia, que os cursos destinados a este público específico faziam jus à pujança financeira do
segmento:

Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:19 UTC-02


me dei de aniversário um curso no méxico em julho
Cristina Marins, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:31 UTC-02
Uau, que maneiro!
Cristina Marins, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:31 UTC-02
Por acaso é o foundation?
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:32 UTC-02
não
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:32 UTC-02
o foundation é um workshop ministrado por fotógrafos de casamento com background
em fotojornalismo para fotógrafos de casamento sem background em fotojornalismo
Cristina Marins, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:33 UTC-02
E o que vc vai fazer?
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:33 UTC-02
o que vou fazer é o foundry, que é de fotojornalistas mesmo, galera da national
geographic, nytimes, etc
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:34 UTC-02
o engraçado é que, quando se fala em casamento, as coisas (e cursos) duplicam de
preço, triplicam, ou até mais
Cristina Marins, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:34 UTC-02
Sério?
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:34 UTC-02
o foundation hoje deve custar tipo 4 a 5 mil dólares (paguei 4 em 2013)
Cristina Marins, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:34 UTC-02
Porque será?
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:34 UTC-02
paguei 475 no foundry
168
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:35 UTC-02
n sei
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:35 UTC-02
pq o povo paga haha
(…)
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:35 UTC-02
também fotografo de casamento ganha mais que fotojornalista. é sempre mais grana
envolvida
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:36 UTC-02
os workshops que o Julian, o Arantes [ambos fotógrafos de casamento brasileiros]
dão… eles cobram uns 4 mil reais
Letícia Katz, Terça, 10 de janeiro de 2017 às 12:37 UTC-02
louco, né? fiz um de 5 dias com um fotógrafo de guerra que custou 550 reais

Com efeito, foram diversas as situações em campo que apontavam para a fotografia de
casamento como o segmento que, comparado aos demais, não era apenas vantajoso do ponto
de vista da possibilidade de ganhos financeiros, como também em relação à ausência de
barreiras para o exercício da profissão. Para tornar-se, por exemplo, “fotógrafo de moda”, como
apontou meu professor de fotografia, seria preciso “ter contatos”. Imagino que o mesmo valha
para fotógrafos que anseiam trabalhar para grandes veículos de comunicação. Para que alguém
se torne fotógrafo de casamento, por outro lado, “bastava” encontrar clientes dispostos a confiar
a tarefa ao novato, a princípio. E embora conquistar clientes nem sempre fosse considerada
tarefa das mais simples, a dificuldade não parecia das maiores, ainda mais se comparada as de
encontrar um trabalho em jornais ou em agências de publicidade, por exemplo.
Se levarmos em conta o rendimento médio domiciliar per capita no país, a questão dos
ganhos de meus interlocutores adquire novo relevo. Segundo levantamento do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística, este indicador foi de R$1.268 mensais no ano de 2017108.
Ou seja, o rendimento médio domiciliar per capita brasileiro corresponde a menos de 10% dos
ganhos mensais de boa parte de meus interlocutores. Em diversos momentos os fotógrafos de
casamento com quem conversei reconheceram em suas condições de trabalho de uma situação
privilegiada. Nestas ocasiões vinha à tona, não só questões relativas à sua remuneração, mas
também a seus próprios “campos de possibilidades” (Velho, 1994, p.40). Na fala de Letícia,
registrada na ocasião de nosso primeiro encontro no Rio de Janeiro, emergiu a questão dos

108
Informação acessada em
<ftp://ftp.ibge.gov.br/Trabalho_e_Rendimento/Pesquisa_Nacional_por_Amostra_de_Domicilios_continua/Rend
a_domiciliar_per_capita/Renda_domiciliar_per_capita_2017.pdf>. Data de acesso: 27/09/2018.
169
ganhos com a fotografia de casamento quando a profissional ponderava sobre a nada simples
decisão de recusar novos contratos para avaliar a possibilidade de operar uma mudança
importante na sua carreira:

Por isso que é difícil essa decisão, ainda mais no meio de uma crise econômica (…) e a
galera querendo me pagar 10 mil reais pra eu fotografar um dia… dói pra caralho.
Ontem foi a decisão assim, né, tipo, tirei meu formulário (…). Eu resolvi fechar porque
eu tô há dois meses sem responder e-mail. No mês passado uma mulher me mandou e-
mail contando uma história incrível, contando que vai casar aqui no Rio e em Israel,
pediu orçamento pros dois… (…) aí, enfim, vamos ver.

Tenho a impressão de que o modo com que meus interlocutores tomavam consciência
de seus privilégios no mundo do trabalho durante as entrevistas diferia em relação às
abordagens que vinham à tona em seus discursos públicos. Embora eu não chegue ao ponto de
afirmar que os ganhos financeiros constituíssem um tema vedado nas palestras, podcasts e redes
sociais, chamava minha atenção como ele ocupava uma parcela ínfima nos discursos veiculados
em tais espaços. Assim, ao tratar dos privilégios dos quais gozavam enquanto fotógrafos de
casamento — o que, a propósito, era feito com grande frequência — os profissionais davam
ênfase, prioritariamente, às dimensões da atividade de ordem simbólica. A capacidade de
“eternizar sonhos”, de “registrar o nascimento de uma família” ou de “parar o tempo” era
evocada como noção idealista 109 da profissão (Becker e Geer, 2003 [1958]). Se as fotos,
conforme argumentavam meus interlocutores, “contavam histórias”, eles próprios elaboravam,
à exaustão, suas próprias narrativas sobre as “histórias” por trás das fotografias de sua autoria.
Ao contar histórias sobre as histórias, isto é, ao reivindicar o alto valor documental de seu
trabalho, fotógrafos de casamento centravam suas narrativas na importância do serviço que
ofereciam não só para seus clientes, mas também para seus descendentes e, não menos
importante, para eles próprios.
Ainda assim, os sinais de que os fotógrafos que ocupavam os palcos nos circuitos
pesquisados eram também profissionais cujos rendimentos encontravam-se em patamar
superior ao da maior parte de seus colegas faziam-se presentes, mesmo que não fossem
enunciados. Os slides, quase sempre exibidos já no início de suas palestras, eram um exemplo

109
No artigo de Becker e Geer, esta noção diz respeito à confiança que determinados profissionais depositam no
valor de seu trabalho para o mundo e constitui critério para que certas profissões sejam consideradas nobres.

170
disso. Isto porque as fotografias exibidas ali deixavam claro, para qualquer observador
familiarizado com o “mercado de casamentos”, que seus clientes tinham disponibilidade
financeira para investir em festas de grandes proporções 110 e que, presume-se, tinham
capacidade de remunerar bem os profissionais nelas envolvidos. A alta rentabilidade alcançada
por determinados fotógrafos poderia ser notada ainda nas imagens de seus “escritórios” ou dos
espaços construídos para receber os clientes que, volta e meia, eram exibidas em suas palestras.
Tratavam-se de construções vistosas, exibidas com orgulho, por vezes ao lado de imagens que
retratavam algum espaço precário utilizado como local de trabalho por fotógrafos de casamento
proeminentes ainda no início de suas carreiras.
Por outro lado, nas conversas face a face travadas com meus interlocutores, era comum
que as dimensões materiais e simbólicas da profissão aparecessem entrelaçadas. Isto era
evidente nos discursos de Letícia e Bárbara — ambas fotógrafas que afirmavam ter “ganhado
dinheiro” registrando casamentos mas que, naquela altura de suas carreiras, se questionavam
sobre a permanência na profissão. Atentemos, neste sentido, para as falas destas profissionais,
começando pela última:

Antes (…) eu tava atraindo casamentos que não tinham nada a ver comigo. Casamentos
que poderiam ser bons pra qualquer outro fotógrafo. Eu não tô falando mal do
casamento, mas casamentos assim grandes, sofisticados, lindos, mas que eu tava ali me
sentindo um produto. A noiva tava ali querendo ficar impecável, querendo ser uma
bonequinha de luxo, uma princesa na festa, mais preocupada com o bolo, com a
decoração gigantesca, ficar irretocável, ficar uma princesa e nenhuma conexão. E teve
um casamento esse ano que eu fui no carro chorar (…). Nunca tinha acontecido isso
comigo, eu fiquei no intervalo chorando. E eu falei com ele [seu companheiro e colega
de trabalho] nesse dia, “eu não quero mais fotografar casamento”. (…) É muito difícil
dizer não. Porque, em tese, são casamentos grandes que, enfim, só que não é minha
praia, sabe? Eu não quero escolher casamento só pela grana, sabe? A noiva vai me pagar
aí… sei lá… (…) eu quero agora casal… eu quero a história do casal, a gente tem pedido
mais a história do casal antes de fechar. Antes era o primeiro e-mail com orçamento.
Agora é dois, três e-mails até mandar o orçamento pra entender a história do casal e pra
poder ter essa conexão um pouco maior, assim, de chegar num casamento… enfim,
seria um sonho, eu acho, não sei se de todo fotógrafo. Mas o meu sonho, no caso, como
eu não tô ali realmente pela grana só, eu queria muito fotografar casais que entendessem
a fotografia.

110
O local onde era realizado a festa, a indumentária dos anfitriões e dos convidados, a profusão e o tipo de flores
reunidas ali, bem como o mobiliário e os tipos e quantidades de doces ofertados eram alguns dos indicativos do
volume de dinheiro dispensado na organização da cerimônia e dos festejos que marcavam os ritos matrimoniais.
171
Julgo particularmente interessante a clareza com que Bárbara constrói em seu discurso
a ideia de que, para ela, o trabalho em casamentos não é sempre igual. Há aqueles que fotografa
com prazer e há também outros que lhe perturbam, a tal ponto, que a fazem repensar seu futuro
profissional. Já a fala de Letícia, que apresentarei a seguir, precisa ser melhor contextualizada
para que o leitor possa compreender onde quero chegar. Assim como a de Bárbara, ela também
foi ouvida durante a entrevista e dizia respeito a certas estratégias para atrair clientes com um
determinado perfil e repelir outros. O depoimento reproduzido logo abaixo, seguia uma história,
contada por minha interlocutora, sobre um noivo que compareceu a uma reunião com o intuito
de contratá-la. Segundo seu relato, quando, durante o encontro, identificou sinais de que não
tinha interesse em fotografar aquele casamento específico (ela resumia o evento que estava
sendo organizado como “evangélico” e “careta”), procurou dissuadi-lo de fechar negócio, sem
no entanto, dizer isto diretamente. Como parte de sua estratégia, Letícia escolheu exibir
fotografias feitas em um casamento cujas características ela considerava incompatíveis com o
perfil do noivo em questão:

Foi um casamento no ano passado que foi no sertão de Alagoas e Sergipe, por ali. Se
chama Piranhas, aí era lindo assim na beira do São Francisco. Cactos… e a noiva
mesmo que fez o vestido… sabe, foi tudo muito assim. (…) E aí foi do caralho. A gente
pegou seis, sete horas de estrada pra chegar lá. Ela tava descalça e tal… e aí chegou um
padrinho, no meio da festa, e falou “eu não tenho presente caro pra dar de padrinho, o
meu presente é esse aqui”. Aí ele abriu uma caixinha de madeira com 50 baseados e
distribuiu pra todo mundo da festa. Aí falaram assim “ó mandaram dar pros fotógrafos”.
Aí deram dois pra mim e dois pra Carlos que tava comigo. E era assim, todo mundo
muito doido. E aí todo mundo entrou na piscina. E Carlos entrou na piscina também e
depois me jogaram na piscina… (…) Então eu mostrei pra ele, bem pra chocar mesmo
e falei assim, “Ó, esse é o casamento que eu mais gosto de fazer”.

Tanto a fala de Letícia quanto a de Bárbara se unem àquela dos Werneck, apresentada
no início deste capítulo, no sentido de que estes fotógrafos buscam construir uma relação de
continuidade entre seus próprios universos morais e aqueles de seus clientes. Articulando
valores morais e materiais, meus interlocutores evidenciavam um complexo cálculo que, para
eles, tinha a ver também com sua própria sobrevivência na profissão. A condição para que eles
tivessem carreiras longevas, conforme deixavam muito claro as falas de Luciana e Gabriel
Werneck, era conseguir encontrar clientes que “tivessem a ver”, com quem “rola química”.
Com este intuito, os fotógrafos descreviam estratégias diversas, sendo provavelmente a mais
172
comum a de selecionar criteriosamente as fotos que veiculam em seu material de divulgação
(site, páginas do Facebook e outras redes sociais), de modo a atrair os clientes que lhes
interessam ter. Para Letícia, conquistar clientes com quem tenham alguma afinidade permite
também que ela produza fotografias que considera superiores por suas qualidades estéticas:

Letícia Katz, Quinta, 9 de junho de 2016 às 15:05 UTC-03


então.. tem casal que não bate. igual a gente. tem gente que vc conhece e quer ser
amiga, tem gente que vc não faz questão de ver nunca mais na vida. não por ter feito
algo mal a vc, mas Pq não bate mesmo
Letícia Katz, Quinta, 9 de junho de 2016 às 15:06 UTC-03
e isso reflete no casamento deles... geralmente vai ser música insuportável pra mim..
sertanejo, etc. casal sem expressão, monte de frescuras.. gente que não seriam meus
amigos em outras circunstâncias
Letícia Katz, Quinta, 9 de junho de 2016 às 15:08 UTC-03
e, bola de neve, isso vai refletir nas fotos também
Cristina Marins, Quinta, 9 de junho de 2016 às 15:09 UTC-03
Acho que isso tem tudo a ver com a conversa que a gente estava tendo antes.
Letícia Katz, Quinta, 9 de junho de 2016 às 15:09 UTC-03
se eu quero tá lá, se tou gostando, consequentemente as fotos vão ser melhores pra
mim rs pra eles também, mas talvez não notem

Foi a própria Letícia quem me contou que, com o passar dos anos, refinou suas
estratégias para avaliar seus potenciais clientes e decidir se trabalhar para eles seria ou não
vantajoso. Foi neste contexto que ela disse ter deixado de ir encontrá-los em suas residências
ou em estabelecimentos públicos para recebê-los em casa:

Eu já fiz muito isso no começo, quando eu não sabia como fazer, né, eu vou aprendendo,
assim. E eu percebia que quando eu tava na casa deles, era como se eu tivesse na toca do
leão, assim. Ali o poder é deles. (…) E na minha casa era na minha casa e pronto. E ao
mesmo tempo, acho que traz essa conexão também, né? Eu tô recebendo as pessoas na
minha casa, na minha sala. (…) Eu quis montar um espaço na minha casa que não fosse
com cara de escritório (…) eu tenho uma mesa de jantar e hoje eu atendo o cliente de
pantufa e, tipo, se a pessoa chega na minha casa e ela já se incomodou porque eu tô de
pantufa na minha casa é que já não é meu cliente.

Experiências de fotografar pessoas com quem não compartilhavam dos mesmos


preceitos morais eram, por outro lado, apontadas como fonte de sofrimento. A fala de Bárbara
reproduzida anteriormente, na qual relata ter abandonado um evento momentaneamente para ir
chorar longe da vista de seus contratantes exprime bem essa ideia. Observando as falas dos

173
fotógrafos com quem conversei mais detidamente, pude notar uma variação substancial nos
critérios para que os clientes fossem considerados compatíveis com eles ou não. Leonardo, por
exemplo, me falou sobre uma frustração quando o próprio cliente ou algum outro profissional
que trabalhava no evento impunha limites a sua fotografia documental. Quando pedi que ele
tratasse de uma situação concreta em que isto acontecia, relatou que, ao fotografar o making of,
costuma ser convidado a se retirar do recinto pela maquiadora quando a noiva está prestes a
colocar seu vestido:

Eu não tava como estuprador, sei lá, tarado… essa é a hora de eu fazer uma foto mais
sensual, com uma luz legal, sei lá, dela pondo o vestido. Sei lá, é um momento maneiro,
ela só põe o vestido uma vez na vida (…). Uma vez eu fiz um casamento que eram todas
as madrinhas francesas e daí elas perguntaram pra noiva e a noiva falou pra elas em
francês e depois falou "Ah, Leonardo, elas estavam perguntando se você não ia sair do
quarto, eu falei que não”. Daí as meninas também começaram a trocar de roupa, trocou
todo mundo de roupa e eu tenho umas fotos lindas, lindas, lindas. A luz também tava
impecável no quarto. Aí eu também, porra, também tem uma coisa de comportamento
né… você não cai chegar ô, vou dar um close aqui. Não, tipo, vou tirar uma foto mais
aberta… (...) Mas tem gente que não entende a proposta e isso engessa muito o nosso
trabalho...

Durante a entrevista que fiz com Alexandre, quando perguntei “qual é a parte ruim de
fotografar casamentos?”, meu interlocutor acionou valores morais sobre família, amor e
casamento:

Alexandre: Existem casamentos que você tá ali… por exemplo, eu fui fotografar o
making of do noivo e você escuta histórias que você fala “pô, por que esse cara tá
casando?” Só coisas assim… negativas em relação à imagem dele mesmo. Mas aí eu não
vou entrar na questão de machismo e tal…
Cristina: Eu queria dados mais concretos, eu não sei se estou conseguindo entender muito
bem…
Alexandre: As conversas, né… entre noivo, tios que estavam reunidos ali… antes do
casamento e tal. Falando de quantas mulheres ele tinha, “ah, fulana e tal”. E não era uma
coisa que tinha acontecido. A conversa era de coisas atuais, assim. E até então, você
como fotógrafo, você não tá ali… você escuta, é claro, você não é surdo, mas você não
tá ali pra registrar o momento. Eu fiz o making of e fui pro casamento. E no casamento
eu constatei que algumas pessoas de quem ele tinha falado estavam no casamento. E
assim, acabei vendo algumas cenas que me incomodaram muito. (…) Eu acredito muito
no casamento, por isso fotografo casamento. Mas em alguns momentos, você só sabe
quando você tá dentro. (…) Você tá ali, tem contrato, tem que cumprir. Mas confesso
que é muito chato quando isso acontece. Foi a primeira vez que eu vi acontecer e assim,

174
vi o noivo praticamente… dançando muito agarrado com uma dessas (…). Enfim, e
fiquei com aquilo na cabeça, pensando “não é possível”. Enfim, fiquei fotografando a
festa, o pessoal chapando e num determinado ponto da festa, um pouco mais pro final,
uma outra cena, com uma outra pessoa. E eu falei “cara!”, incrível isso, né? Enfim, isso
me deixou muito é… triste. (…) E teve uma outra história no ano retrasado que o casal
já tava junto há 16 anos e eles resolveram se casar. Fui, fotografei o casamento todo… o
maior alto astral, não sei o quê… não conhecia eles a fundo, por mais que tenham sido
indicados de uma amiga minha. Mas eu fiquei sabendo que uma semana depois eles
tinham se separado. E isso pra mim foi um baque, assim, que eu nunca tinha recebido
antes na minha vida. (…) Aí essa concunhada me ligou “ah, pelo visto você não tá
sabendo, né? Aí eu “o quê?”. “Pois é, a Camila e o Júlio se separaram. Cara eu tomei um
susto assim… eu falei “o quê?!”; “Nossa senhora, não acredito nisso!”. Eu fiquei chocado
ali na hora, falei “não acredito, não acredito”… Dezesseis anos de união, esperaram pra
casar e separaram. (…) Quer dizer, você imagina que o que vai rolar naquele dia é alegria,
é comunhão, né? Mas você não sabe o que tá por trás daquilo. (…) O ideal é que eu
acredite numa história de amor.

Uma vez que meus interlocutores se dizem livres (ao menos, em certa medida) para
selecionar seus clientes e dado que eles também entendem que são escolhidos pelos noivos, os
profissionais traçam estratégias que lhes permitam identificar e evitar os clientes cujas visões
de mundo não se alinhem ou, potencialmente, se choquem com preceitos morais dos
profissionais. É certamente este o caso de Alexandre, que não apenas afirma “acreditar no
casamento”, mas também vincula a isto sua escolha profissional. Também é este o caso de
Bárbara, que me contou ser capaz de saber se vai “rolar afinidade” ao saber dos gostos das
noivas: “são os filmes, a música…chega no dia do casamento… quando o gosto parece, é
impressionante”111.
Foram diversas as situações de campo em que registrei que o sentimento de orgulho das
fotos que produzem não era mero detalhe para meus interlocutores. Quando, em conversas
descontraídas entre os pares, tomavam nas mãos seus smartphones e exibiam fotografias de sua
autoria e contam feitos, isto parecia claro: “Eu precisei esperar quase dez minutos pra pegar
esse momento em que os dois olham para a janela. Meu braço já não aguentava mais”,
relembrou um fotógrafo do feito; “Olha essa cena da noiva dançando com as amigas”, disse

111
Julgo interessante mencionar que, eu também, enquanto pesquisadora, comecei a desenvolver certa
sensibilidade em relação aos diferentes fotógrafos de casamento a partir das fotografias que eles produziam. Ao
“bater o olho” nas fotos que exibiam, eu começava a projetar o tom de seus discursos e quase sempre acertava.
Quero dizer com isso que, por suas qualidades estéticas, as fotografias eram capazes de indicar certos preceitos
morais dos profissionais incumbidos de fazer os registros.
175
outro durante uma conversa entre amigos. No primeiro capítulo, quando tratei de meu próprio
aprendizado da fotografia, mencionei que a atividade, para mim, adquiria certo valor de jogo.
Ali argumentei também que esta dimensão da fotografia como jogo ou como caça constitui
importante motivação para que os profissionais com quem travei relação de interlocução
continuem fotografando casamentos.
Tendo em mente os discursos de meus interlocutores, constato que produzir imagens
das quais se orgulham é algo que também depende dos perfis dos noivos e dos eventos que
registram. Letícia, em depoimento que reproduzi acima, dá uma pista importante neste sentido:
quando fotografa casais que “batem” com ela, sente-se capaz de produzir fotografias cuja
qualidade julga superior. Mesmo admitindo que esta percepção não é necessariamente
compartilhada com seus contratantes (que, eventualmente, se satisfazem com registros que a
própria fotógrafa considera devedora em termos estéticos ou técnicos), ela aponta sua própria
avaliação do trabalho que entrega como algo importante. Sentir orgulho das fotografias que
produzem só é possível se as cenas que fotografam não se chocam com seus próprios
sentimentos e idealizações sobre o ritual que marca a união matrimonial.
Se meus interlocutores divergem em termos dos valores morais que acionam ao
avaliarem os casamentos que registram, mas apontam, todos eles, para uma desejável relação
de continuidade entre seus próprios universos morais e aqueles de seus clientes, parece-me
pertinente nos debruçarmos sobre o modelo de trabalho artesanal descrito por Wright Mills
(1976 [1951]). Atentemos, portanto, para os seis aspectos que, segundo este autor, caracterizam
“um modelo plenamente idealizado de satisfação com o trabalho” (p.238): 1. a esperança de
encontrar prazer no próprio trabalho; 2. a satisfação diante do produto final; 3. a liberdade para
começar o trabalho de acordo com seus planos e a liberdade para modificar forma e técnica de
criação; 4. o trabalho como um meio de desenvolver habilidades e de desenvolver a si próprio
como pessoa; 5. a ausência de separação entre trabalho e divertimento e, finalmente, 6. o
trabalho como base de sua vida. Ora, lendo a descrição de Mills ao longo de quatro páginas de
seu livro dedicado à então emergente classe dos “colarinhos brancos”, impressionou-me a
precisão com que ele descrevia o modelo de trabalho idealizado (e, ao menos até certo ponto,
praticado) também por meus interlocutores. Qual não foi minha surpresa ao me deparar com a
sequência do argumento de Mills:

Ao construirmos esse modelo artesanal, não afirmamos que algum dia existiu uma
comunidade em que todos esses significados fossem encontrados (…). De qualquer

176
modo, para nossos objetivos, basta saber que em determinadas épocas e em
determinadas ocupações o trabalho comportava uma ou mais características do
artesanato. Diante desse modelo, uma vista de olhos no modelo do trabalhador
moderno é suficiente para evidenciar que nenhum desses aspectos é encontrado hoje
na experiência do trabalho. O modelo artesanal tornou-se um anacronismo. (1976
[1951, pp. 241-242)

Uma vez que cada um dos aspectos do modelo artesanal de trabalho parecia
contemplado nos discursos e práticas de meus interlocutores, foi com certo estranhamento que
li que se tratava, para Mills, de um modelo anacrônico. Minha percepção, ao contrário, era de
que tanto as decisões de ingressar e permanecer na carreira de fotógrafo de casamento, quanto
as crises enfrentadas por alguns interlocutores se relacionavam com o modelo descrito pelo
sociólogo norte-americano. Posto de outro modo, as dimensões do trabalho artesanal descritas
por Mills se revelavam centrais (quase onipresentes, eu diria) em meu campo de pesquisa. A
fala de Gabriel Werneck durante a palestra ministrada em conjunto com sua esposa, Luciana,
mas que também ouvi em diversas outras situações e partindo de outros interlocutores, parece
sintetizar esta ideia: “a gente fotografa aquilo que a gente é e a gente é aquilo que a gente
fotografa”.

Meses após minha visita à residência dos Werneck, na véspera do Natal de 2016, recebi
deles, via WhatsApp, uma espécie de “cartão virtual natalino” que, imaginei, devia ter sido
enviado também para outros de seus contatos, incluindo seus clientes. Alguns dias depois,
retribuí a gentileza com uma mensagem na qual lhes desejava um feliz ano novo e este foi o
gancho para que Gabriel me contasse “uma novidade”, através de três fotografias de Luciana
grávida da primeira filha do casal. Acompanhei, pelo Instagram, a evolução da gestação de
Luciana, o nascimento e diversas etapas do desenvolvimento da pequena Clara. Do mesmo
modo, acompanhei, meses mais tarde, a expectativa pela chegada de Sofia, a quarta integrante
da família Werneck.
As fotografias que compartilhavam com seus seguidores naquela rede social continham
o mesmo apuro empregado nas fotografias de casamento que produziam profissionalmente. As
imagens do nascimento da primeira filha ficaram a cargo de um fotógrafo trazido pelos
Werneck de São Paulo e uma delas passou a ilustrar a seção “nós” do site profissional do casal,
onde também eram exibidos vídeos de seu casamento — o mesmo que foi exibido pelos
Werneck na ocasião de minha visita ao atelier. Falar de si, de seu casamento, de sua família e

177
de sua prática religiosa112 não era algo que os fotógrafos faziam apenas em resposta às questões
da etnógrafa, mas era também o que faziam nas redes sociais e nas palestras que ministravam.
Posto de outro modo, expor publicamente os valores que parecem estruturar suas vidas era
prática cotidiana.
Construindo e tornando pública uma narrativa sobre sua trajetória e evidenciando suas
visões de mundo, eles procuravam atrair clientes cujos valores morais fossem, na perspectiva
deles, se não semelhantes, pelo menos compatíveis com os seus próprios. Num dado momento
de nossa conversa, Gabriel e Luciana chegaram a defender que o trabalho de um fotógrafo de
casamento não deve ser “meramente comercial” — uma afirmação que, acredito, pode ser
proveitosamente analisada à luz do argumento de Pires (2013), que, ao realizar pesquisa
etnográfica em uma loja de atacado ao sul da capital argentina, verifica que a circulação de
dinheiro é articulada com valores outros, incluindo os “morais, éticos e estéticos” (p.150). Os
Werneck, bem como outros interlocutores, pareciam tomar consciência desta ideia e articular
estas múltiplas dimensões no modo como se apresentavam no espaço público. E, ao mesmo
tempo que projetavam uma imagem de si, eles construíam uma concepção específica de sucesso
que potencialmente adquiria conotações negativas se apontassem para o dinheiro como um fim
em si mesmo.
No caso dos Werneck, o sucesso passava pela formação de uma nova família (que
implica uma superação de uma configuração familiar original, em grande medida,
desventurada), de novas alianças e também de prosperidade em termos materiais — o que
incluía a compra do terreno onde posteriormente seriam construídos seu atelier e sua casa, a
manutenção desta e, eventualmente, a aquisição de algum imóvel que lhes garanta alguma renda
quando, num futuro indeterminado, eles deixarem de fotografar casamentos. Daí decorrem
duas questões que eu gostaria de abordar à guisa de encerramento deste capítulo: a primeira, é
a da ausência do Estado no discurso de meus interlocutores. Já a segunda questão diz respeito
à presença de um certo ethos religioso nos circuitos pesquisados.

112
Luciana e Gabriel Werneck eram católicos e isto transparecia com grande recorrência. Por exemplo, no
Instagram, nas legendas que acompanhavam as fotografias no Instagram falava-se com frequência da “fé em Deus”
e muitas das imagens veiculadas ali enquadravam imagens religiosas.
178
Sobre a organização (in)formal do trabalho

Não me lembro de situações durante o trabalho de campo em que testemunhei fotógrafos


de casamento ligando o desempenho de suas atividades profissionais ao Estado, ou a alguma
instância específica dele, com exceção de uma ou outra discussão travada no Facebook em
torno de questões burocráticas. Em um destes casos, um fotógrafo de casamento já atuante
consultou os colegas alegando que precisava emitir notas fiscais e queria saber se valia a pena
“abrir empresa no MEI” 113 . As respostas à questão davam a entender que boa parte dos
profissionais ali, de fato, atuavam formalmente como microempreendedores e outros poucos
como microempresários. A decisão de formalizar a empresa emergia, em geral, ligada a alguma
necessidade prática, como a exigência de nota fiscal por parte de clientes, conforme aparecia
na pergunta do fotógrafo que abrira a discussão. Lamentava-se, no entanto, sobre a necessidade
de pagamento de impostos e de ter que “lidar com a papelada”. Havia ainda quem declarasse
exercer a atividade de maneira informal. No comentário que reproduzo a seguir, o fotógrafo
que interagia com os colegas em um grupo do Facebook argumentava em favor da
informalidade:

Mas te falar. Tive MEI pra nunca mais. (…) hoje nem CNPJ tenho mais. Hoje minhas
contas são poupança. (…) Hoje estou acamado vou passar 90 dias deitado devido
acidente de moto. Eu te indico: trabalhe para você. Não para os outros. Eu trabalhei
pra sustentar governo e banco. Hoje parado, graças a Deus, tenho dinheiro guardado
para manter a minha empresa e minha casa por esses 90 dias.

Optei por reproduzir o comentário acima, não por ele ser representativo em termos
quantitativos (já que a maior parte dos fotógrafos que se manifestavam sobre o tema ali
declaravam ser microempreendedores do ponto de vista formal), mas porque, de certa maneira,
o tom empregado por seu autor me parece significativo da atitude geral de meus interlocutores
em relação ao papel do Estado. De modo geral, eu diria que os fotógrafos de casamento
naturalizavam a ideia de que o Estado constituía um entrave aos seus negócios (notadamente,
por recolher impostos e fazer exigências burocráticas) sem lhes oferecer em troca qualquer

113
A sigla MEI corresponde ao termo “microempreendedor individual”. Segundo informações acessadas no site
do governo federal http://www.portaldoempreendedor.gov.br, pode ser considerado MEI o pequeno empresário
que tenha faturamento limitado a R$ 81.000,00 por ano; que não participe como sócio, administrador ou titular de
outra empresa; e que contrate no máximo um empregado.
179
contrapartida. Assim como observou Mesquita (2007), em trabalho sobre a inserção de fiéis
evangélicos no universo do trabalho autônomo, a relação com o sistema público de seguridade
não parecia ser uma preocupação de primeira ordem para meus interlocutores. Com efeito,
muitos deles jamais tiveram acesso à proteção de leis trabalhistas e previdenciárias. Por outro
lado, meus entrevistados sugeriam que tal ausência de proteções não constituía propriamente
uma preocupação. Afinal, eles se sentiam recompensados por disporem de uma remuneração
condizente com suas aspirações materiais, pela possibilidade de definirem seus próprios
horários, por escaparem do tédio do trabalho repetitivo e da figura autoritária de um patrão.
Este esquema de trabalho autônomo e independente, e as benesses que o acompanhavam, no
entanto, apresentavam uma exigência: um senso de responsabilidade que fosse não apenas
forte, mas, de preferência, infalível.
No capítulo anterior, ao tratar dos cuidados que os fotógrafos de casamento
dispensavam aos cartões de memória que armazenam as imagens capturadas nos ritos
matrimoniais, enfatizei que a eventual perda dos registros poderia significar a ruína
profissional, segundo os próprios fotógrafos assinalavam. Ser responsável, contudo, abriga
ainda outras dimensões, como indicado na conversa que tive com Bárbara e seu companheiro,
Roberto:

[pergunto sobre eventuais doenças e impossibilidades de ir fazer um casamento]


Bárbara: Isso é uma coisa que me preocupa muito também.
Roberto: Pode…
Bárbara: Não, não pode…
Roberto: Isso está previsto em contrato…
Bárbara: Na minha cabeça só se eu estivesse morrendo. Eu já fui trabalhar, por exemplo,
com uma crise renal.
Roberto: Teve também aquele dia que você passou mal e vomitou…
Bárbara: Ah é, eu tava fazendo o making of, chamei o segundo fotógrafo e falei “ó, segura
pra mim dez minutinhos”, eu tava quase desmaiando e ele começou a fotografar. Eu saí
do making of, fui ao banheiro, vomitei, passei mal, baixou minha pressão, eu voltei uns
15, 20 minutos depois, ninguém soube o que aconteceu. Nada… Eu fotografei mais 10
horas…
Roberto: Friamente, dá pra acontecer? Dá pra acontecer! Mas é um suicídio profissional.
Um compromisso nesse nível, não comparecer é um suicídio profissional.
Bárbara: Esse é um peso muito grande do trabalho.
Roberto: Além de ter um prejuízo financeiro enorme, é um suicídio profissional. Não dá
pra ser encarado como uma possibilidade.
Cristina: Por contrato…

180
Bárbara: Eu posso recomendar uma outra equipe caso aconteça alguma coisa comigo.
Doença…
Cristina: Mas você não pode colocar o seu auxiliar? O Roberto não pode ir no seu lugar?
Roberto: Não!
Bárbara: Não, não.
Roberto: Tem equipes que fazem assim, entendeu? Você contrata o estúdio X. Aí o
estúdio X que vai parametrizar lá qual equipe que vai cobrir seu evento. No caso da
equipe dela, ela é a equipe. O que vende é o olhar dela e o que entrega é o olhar dela. A
gente não pode vender outro olhar.

Se a responsabilidade dos fotógrafos de casamento implicava que eles temessem por


eventuais imprevistos que lhes impedissem de registrar um evento, conforme combinado com
os noivos, esta noção deveria ser firmemente observada, além disso, no modo com que
administravam suas finanças. Neste sentido, chamou minha atenção a fala de um palestrante
durante um debate promovido no congresso Fotografar:

É que eu acho que fotógrafo de casamento, a gente não pensa é que tem uma hora que
a gente vai cansar. Eu ainda acho que eu tenho tempo ainda (…) eu não penso em parar.
Mas uma coisa pra mim é certa, eu quero fotografar outras coisas porque eu acho que
final de semana pra mim é sagrado (…). Eu acho que a gente tem que pensar… nosso
povo não tem essa cultura da poupança, de guardar recursos nas épocas de vacas gordas
pra investir (…). A gente gasta muitas vezes dinheiro com passivos, ou seja, algo que
não vai gerar dinheiro. (…) Aí é um pouco questão da disciplina, dessa visão a longo
prazo. A gente muitas vezes, trabalhando com receita antecipada, muitos de nós
recebemos antes do casamento, dinheiro na mão é vendaval… aí sai gastando e esquece
que tem uma longa jornada por aí.

Responsabilidade, disciplina, visão de longo prazo, constituíam assim alguns dos


predicados necessários para que o fotógrafo de casamento obtivesse êxito em sua carreira. Se
praticadas com afinco, tais qualidades garantiriam ao indivíduo a realização de seu projeto de
superação das condições originais de vida (Velho, 1987, pp. 13-37). Nota-se que o sucesso (e
também o fracasso) era a todo tempo atribuído ao indivíduo, de modo que não se fazia menção
a condições conjunturais que eventualmente pudessem lhes ter facultado a mobilidade social.
Em outras palavras, meus interlocutores se apropriavam, tal qual definiu Lima (2008), de
“parâmetros nitidamente importados do imaginário neoliberal” (p.8). Notadamente, valores

181
como Estado mínimo, empreendedorismo e autonomia individual 114 integravam o universo
moral de interlocutores como, entre outros, os Werneck.
A julgar pelos discursos dos fotógrafos de casamento, o máximo que se alcançava em
termos de unidade de referência coletiva era a família. Já no processo de ingresso na carreira, a
família se mostrava importante e as parcerias entre cônjuges, entre pais e filhos e em certos
casos, também entre irmãos ou primos, se estabeleciam, fosse a partir de empréstimos, doações
de dinheiro ou equipamento que permitiriam aos fotógrafos darem seus primeiros passos na
profissão, fosse no compartilhamento de atividades produtivas ou administrativas. Luciana e
Gabriel Werneck, ao longo da carreira, puderam contar com o apoio um do outro, mas também
de outros integrantes de seu círculo familiar115.
Longe de constituir um caso especial, a parceria entre membros da família é algo
recorrente. Nos eventos que frequentei, não foram poucas as palestras ministradas por casais
de fotógrafos. A propósito, na minha descrição do Wedding Brasil, apresentada ao leitor no
primeiro capítulo, figuram diversas situações nas quais fotógrafos de casamento chamavam ao
palco seus familiares, todas marcadas por discursos de forte apelo emocional. Algo semelhante
se passa nos veículos de divulgação do trabalho dos fotógrafos: nas redes sociais e em seus
sites, estes profissionais costumam apresentar-se ressaltando relações familiares. “Marcelo
Almeida, marido de Cláudia e pai de Ana”; “Somos Andréa e Douglas, pais de Valentina e
Enzo, e nossa paixão é fotografar outras famílias” são algumas formulações comuns nas seções
“quem somos” ou “sobre nós” dos sites que também cumprem a função de apresentar seus
portfólios a potenciais clientes. Em suma, relações familiares são, a todo tempo, postas em
evidência, integrando, além do dia-a-dia da profissão, os processos de construção de reputação
de meus interlocutores.
Em muitas situações da pesquisa, a noção de família acionava ainda um discurso que
beirava o religioso. Apostando que este tema é digno de reflexão mais detida, proponho que
mais uma vez retomemos uma situação vivenciada em campo.

114
Interessante notar, a propósito, como os fotógrafos palestrantes lançavam mão de um vocabulário próprio do
universo empresarial que incluía termos como “diferencial competitivo” e “valor agregado”.
115
Lembro que, no início do negócio, o casal trabalhava em parceria com um tio de Gabriel, que fazia as vezes de
cinegrafista. Atualmente, Luciana e Gabriel contam com a ajuda da avó das duas filhas, que os acompanha em
viagens profissionais, se ocupando das crianças enquanto os fotógrafos fazem os registros fotográficos de seus
clientes.
182
Superação e ethos religioso

Numa tarde de outubro de 2016, sentei-me diante de meu computador para acompanhar
a transmissão ao vivo pela Photos TV do curso “A luz, a técnica e a essência de Bruno Arantes”.
Ainda pouco familiarizada com os fotógrafos proeminentes nos circuitos de congressos e
palestras, eu pouco sabia a respeito daquele profissional. Letícia já havia comentado a seu
respeito quando tratou de suas expectativas para a palestra que havia ministrado no Wedding
Brasil. Na ocasião de nossa conversa, Letícia contou haver imaginado que ninguém apareceria
para assistir a sua apresentação na edição de 2016 daquele evento, já que ela coincidiu com o
horário da palestra de Arantes. Comentei que não o conhecia e Letícia disse que se tratava de
alguém bastante conhecido no meio, para em seguida sintetizá-lo do seguinte modo: “o negócio
dele é fazer o público chorar e parece que ele sempre consegue”. Nos minutos que precederam
a transmissão, eu observava o movimento no chat, o espaço reservado pela Photos TV para
interação entre os espectadores. Um dos comentários ali dizia “o cara é fera”. Outra pessoa
concordava e acrescentava: “não vejo a hora”. Lembrei-me do modo como Letícia o apresentara
no instante em que li o comentário “vou preparar meu lenço!”.
No horário marcado, foi iniciada a transmissão do curso que acontecia em um estúdio
na cidade de Balneário Camboriú. Apareciam na transmissão, além de Bruno Arantes, também
uma apresentadora da Photos TV e três fotógrafos convidados para compor a pequena plateia
presencial. O cenário da aula era minimalista: parede branca ao fundo, uma tela, provavelmente
de plasma ou LCD, na qual eram projetados os slides do palestrante, uma “mesa de bistrô” com
tampo redondo em vidro (cuja altura ultrapassava o umbigo do palestrante e servia de suporte
para seu laptop), além de uma banqueta. Basicamente, o estúdio reunia os mesmos objetos de
outros cursos que assisti ali, exceto por um violão apoiado ao lado do palestrante, um homem
corpulento, com cabelos grisalhos, cuja fala era cadenciada e a voz, sensivelmente mansa.
O curso se dividiu em duas etapas: na primeira, dedicada à “técnica fotográfica”, o
fotógrafo abordou temas como luz e composição, sempre enfocando algo genericamente
chamado de “experiências sensoriais”. Apregoou-se ali a importância de “analisar o ser humano
como um todo” e seu discurso, segundo constava na chamada da Photos TV, era baseado em
“estudos profundos da linguagem não verbal e do comportamento humano”. O curso
contemplou ainda a atividade “prática com o casal”, isto é, uma espécie de aula prática na qual
o professor dirigia e fotografava um casal de voluntários no set de gravação enquanto fornecia
explicações aos espectadores. Nos últimos minutos do curso, a apresentadora sugeriu que a
183
plateia dirigisse a Arantes algumas perguntas antes de passar ao encerramento”. Chamou minha
atenção como se desenrolou esta etapa final, de modo que a transcrevo a seguir:

[rapaz da plateia pergunta] O que que tu falaria pra ti mesmo, se hoje fosse a primeira
vez que tu subiria no palco do Wedding Brasil?
[Arantes responde] O que eu falo? É o que eu falei pra mim mesmo antes de começar
isso aqui. Eu falo pra mim mesmo toda vez que eu vou começar um encontro desse…
eu repito a oração que a minha mãe me manda que diz assim: “infinito amor de Deus,
flui para o meu interior e te faz forte.” E eu digo que eu vou entrar ali de forma simples,
humilde… e que eu vou tentar ajudar as pessoas. E que aquelas pessoas que estão lá nas
cadeiras são muito mais importantes do que eu. E que minha missão ali é ajudar eles. É
um exercício de humildade. É isso. Reconhece essa oração?
Depois de uma pequena pausa, com uma alteração no tom de voz de quem procurava
demonstrar ter sido subitamente tomado por um espírito prático, Arantes dirige-se à
apresentadora:
[Arantes] Pronto?
[Apresentadora] Pronto.
[Arantes] De volta ao trabalho?
[Apresentadora] De volta, sigamos.
[Arantes] Então temos música. [como que se dirigindo aos técnicos de som do estúdio,
repete] Música!

Começa a tocar uma música instrumental que, imediatamente, me remeteu ao que em


serviços de streaming digital116 aparece classificado como “músicas para meditação”. Arantes
solta um longo e profundo suspiro, pigarreia, e após mais uma pausa começa a leitura de um
texto (sem esclarecer se é de sua autoria, embora ao ouvi-lo eu tenha suposto que sim) a respeito
de uma foto:

hoje ao examinar essa foto… essa maca hospitalar mal estacionada no seu quarto, eu
lembro o quanto foi dura a sua luta quanto a morte. Ele amava a vida… ao ver o seu
corpo cansado de lutar, na companhia de dois relógios que marcam a cada minuto, um
minuto a menos… ao sentir a ironia de ele estar emoldurado com sua coleção de filmes
na parede dos quais a maioria ele assistia sozinho… seu casamento tombou, os filhos
foram morar longe, fisicamente ou não… cada um criou seu próprio erro, sua própria
[trecho da gravação inaudível]. Eu gostaria de ter perguntado a ele antes de partir: até
que ponto devemos prezar a nossa individualidade? [por alguns segundos, parece que
tive um problema com a transmissão de modo que perdi um pequeno trecho da fala] só
pra ter tempo de evoluir.

116
Ao leitor não familiarizado com o termo, esclareço que tratam-se de serviços digitais que fornecem aos seus
usuários, acesso instantâneo a músicas (e eventualmente, também a podcasts e vídeos). Alguns dos serviços de
streaming mais utilizados no Brasil são o Spotify, o Deezer, o Google Music e o Apple Music.
184
A música cessa e então Arantes se põe a dedilhar seu violão e cantar com afinação
questionável. A qualidade precária de minha gravação não me permitiu entender a letra da
música. Ao final da canção aparece projetada na tela ao fundo a frase “o essencial é invisível
aos olhos”. Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Arantes diz:

Preciso terminar fazendo um convite… Eu preciso explicar que nós temos algo
gigante… eu espero que vocês tenham gostado de tudo isso. Mas eu preciso dizer que
isso aqui é só a ferramenta para o que está por vir (…) que é o curso que diz o que
fazer com tudo isso. Realmente, o que fazer com tudo isso de uma forma muito
poderosa e única. No curso, imagens assim são capazes de derrubar pessoas, pra
depois ela se reerguer. Tudo tem um significado tão forte. E ei descobri, com o passar
do tempo, que eu criei um dicionário “Arantês” (…) Tô fotografando coisas invisíveis:
saudades, as diferenças, a solidão, a alegria, [com ênfase na voz] os medos, porque
não há nada pior do que feridas guardadas… E lá vocês podem ter acesso a esse
dicionário de imagens que falam. Assim como o escritor usa as letras, eu uso o meu
dicionário de imagens pra falar. Coisas simples como, por exemplo: o meu pai, ele me
levava pra ver o futebol [a última frase, pronunciada com a voz embargada é
interrompida repentinamente. Após um pigarro, Arantes retoma a fala] A gente
descobre o tamanho das coisas… a gente descobre que o tamanho das coisas é medido
com o tamanho da intimidade que nós temos com ela. Então não é a luz, não é a
composição, não é a fotografia… o que realmente importa são as pessoas. Eu não
quero que vocês escutem isso. Eu quero que vocês sintam. Então imaginem uma
mulher na varanda de sua casa? O que essa mulher significa? Nada. É uma mulher na
varanda de sua casa. Agora imaginem uma mulher… ela caminha sozinha e coloca as
flores na lápide de seus pais. Seus pais viveram juntos uma vida plena, ela foi a filha
que não se casou, cuidou de seus pais até a morte, dedicou a vida pra cuidar de seus
pais. E agora seus pais estão mortos. Ela caminha de volta e agora ela senta na varanda
de sua casa. Imaginem uma mulher na varanda de sua casa. Mudou alguma coisa,
gente? O tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as
coisas. [mais uma breve pausa] Nós temos um curso (...) em Vitória, agora, mês que
vem. Em novembro, eu vou estar no Rio…

Daí em diante, Arantes expôs seu calendário de workshops e palestras que aconteceriam
em diversas cidades do país. Algumas das atividades que ele anunciava levavam no título o
nome de marcas de encadernadoras, sugerindo que eram patrocinadas por elas. No caso dos
workshops, Arantes se empenhava em explicar que o conteúdo seria diferente daquele
ministrado na Photos TV, ressaltando também que abriria apenas poucas vagas. Enquanto o
curso era encerrado, o chat continuava movimentado. Alguém ali aconselhava que os demais
buscassem uma outra canção, “maravilhosa”, que Arantes costumava cantar em seus cursos.

185
Outra pessoa se declarava “impactada com a oração da mãe de Arantes e agradecia à Photos
TV pela oportunidade. Outro comentário dizia: “Grande Arantes, fonte inesgotável de
inspiração!!!!” e ainda outro observava: “Ele é ótimo, mas às vezes dá uma de bispo ou de
pastor”.
Ao longo de trabalho de campo, mas também após sua conclusão, quando comecei a
redigir os primeiros esboços desta tese e apresentá-los em eventos de divulgação científica,
ocorreu a mim e a alguns de meus colegas antropólogos que talvez houvesse uma espécie de
ethos religioso no universo que eu pesquisava, manifestos na forma e no conteúdo dos eventos
por mim frequentados. Em alguns episódios, os próprios fotógrafos que integravam os circuitos
nos quais realizei minha pesquisa faziam observações neste sentido. Em um deles, já
mencionado no primeiro capítulo, dois jovens rapazes apresentavam avaliações dissonantes
sobre uma determinada palestra do Wedding Brasil. Enquanto um dos rapazes classificava
como “muito massa” a “mensagem sobre Deus” apresentada ali, o outro rejeitava aquele
discurso, alegando que, se quisesse “ouvir mensagem sobre Deus”, trataria de “ir na Igreja”.
Com efeito, a associação entre palestrantes e líderes religiosos — especificamente aqueles de
igrejas evangélicas — não era uma manifestação isolada. Do mesmo modo, foram incontáveis
as falas proferidas sobre os palcos que faziam alguma referência a Deus 117 . Registrei, por
exemplo, o discurso de um fotógrafo durante sua palestra no Wedding Brasil (que havia atraído
público suficiente para lotar o auditório principal), que comentou após a exibição de fotografias,
de sua autoria e de sua esposa, sobre os momentos capturados: “Para nós, não é sorte, é Deus.
Será que quando você extravasa as fotos é sorte? Ou será que tem alguém acima de você?”.
Outra palestrante, quando no palco do Life Share, na companhia de seu marido, finalizou sua
apresentação resumindo-a do seguinte modo: “a mensagem que a gente queria passar era essa…
não desanima, não escuta quem te faz mal, enche seu coração de Deus e corre atrás dos seus

117
Dentre as notas tomadas em diário de campo no último dia de minha participação no Wedding Brasil, encontrei
a seguinte tentativa de síntese daquele evento: “‘Por Deus e pela minha família’ é bem representativo do que ouvi
nos últimos dois dias aqui”. Como minha presença ali ocorrera menos de uma semana após a votação, na Câmara
dos Deputados, de abertura do processo de impeachment da então presidente do país, Dilma Rousseff, escrevi a
frase em referência às numerosas vezes em que Deus e a instituição da família figuraram nas justificativas dos
votos pela admissibilidade do impeachment (ver: Prandi e Carneiro, 2018). Deixei escapar este registro nos meses
subsequentes, mas tendo me deparado com ele na fase final da redação da tese, exatamente quando o país se
encontrava mergulhado num processo eleitoral fortemente marcado por distintas moralidades em disputa, não me
furto de pensar no potencial quem tem a pesquisa etnográfica em compreender como atores sociais experimentam
em seu cotidiano os “mundos da política” (Kuschnir, 2007, p.9), mesmo em contextos que possam ser
considerados, a princípio, alheios a este universo.
186
sonhos”. Também testemunhei algumas situações em que os palestrantes propunham aos
presentes que se engajassem em orações.
Não por acaso, a leitura de trabalhos que articulam noções de empreendedorismo às
práticas dos fiéis em igrejas evangélicas, em especial a Igreja Universal do Reino de Deus
(IURD, doravante), tem se mostrado rentável para pensar nos meus próprios dados de pesquisa
— alguns destes trabalhos, inclusive, já foram citados neste capítulo. Diversas vezes chamou
minha atenção a semelhança entre os discursos dos fotógrafos de casamento e os “testemunhos”
que, no artigo de Montero (2006), são classificados como ritos performáticos capazes de
produzir “um discurso que não funciona nem como verdade nem como normatividade, mas
como mise-en-scène da soberania divina, da força da fé” (p.64). O diálogo que reproduzo a
seguir, por considerá-lo emblemático, ocorreu no Congresso Fotografar, logo após um debate
entre dois proeminentes fotógrafos de casamento, Fernando Castiel e Francisco Salles, após o
mediador conceder a palavra a integrantes da plateia que pretendessem lhes dirigir perguntas:

Olá Fernando, sou Marcelo Rangel, tive o prazer de palestrar ontem pro pessoal (…)
foi o maior número de congressistas que eu já pude palestrar, pra seiscentos
congressistas ontem. E você foi o início da minha história de querer um dia palestrar.
Estar sentado aqui e olhar pra você lá em 2011 palestrando foi a coisa melhor que pôde
ter acontecido na minha vida. Você falou pra mim assim: “o meu preço”… quer, dizer
“o meu valor”… não é preço! “O meu valor é R$9.900,00… isso é o custo de um
aniversário de um aninho seu hoje [a plateia ri]. E naquela época eu cobrava mil e
pouquinho e eu disse “eu vou experimentar botar oito mil!”. Hoje você passou de
cinquenta mil reais e a minha média é vinte mil reais. [Fernando, do palco, diz ao
microfone: “Parabéns, cara!”]. E consegui realizar o sonho, você como espelho de estar
aí em cima falando ontem pra maior quantidade de pessoas que eu já imaginei. Muito
obrigado! [a plateia responde com aplausos e assobios e Fernando então responde] Você
merece o retorno financeiro que tá tendo porque você é organizado. Eu já fui no seu
estúdio e é um dos mais belos que eu conheço. Às vezes nós só precisamos de coragem
e nós já temos o resto.

Neste mesmo sentido é interessante como Gutierrez (2017), autor de uma tese
interessada “no modo como os evangélicos produzem noções acerca de vários temas relevantes
no debate público brasileiro, como pensam sua participação nessas arenas e, de forma mais
ampla, como se constroem reflexivamente enquanto evangélicos, homens, cidadãos e
empreendedores” (p.19), observa que os testemunhos nos cultos da IURD, assim como —
acrescentaria eu — os testemunhos das palestras de fotógrafos de casamento, privilegiavam as
narrativas de sucesso e não os fracassos:
187
Por isso, trabalhei com um corpus de dados representativo dos “vencedores”.
As poucas conversas informais com membros cujos projetos fracassaram
revelam que persiste a crença de que houve erro na execução, ou no objetivo
almejado, e resta a perseverança para recomeçar. (p.216)

Gutierrez observa ainda que a maior parte das narrativas de seus interlocutores comporta
histórias de superação, “com um passado permeado por dificuldades e a concretização de um
plano de vida e de um projeto do eu, após muito esforço” (2017, p. 217). Do mesmo modo, o
artigo de Diana Lima, que focaliza trajetórias de uma rede de fieis da IURD, identifica a
“mudança de vida” como categoria central da experiência de seus interlocutores. Além disso,
quando esta antropóloga descreve o trabalho de campo iniciado em um templo da IURD, saltam
aos olhos as semelhanças entre o tom com que se anunciam as “reuniões dos empresários”
organizadas pela Igreja e os objetivos expostos pela Editora Photos ao anunciar o Wedding
Brasil118. Também salta aos olhos o modo como o repertório mobilizado pelos fotógrafos de
casamento tem forte consonância com os discursos das lideranças da IURD que, por sua vez,
assemelham-se aos manuais de autoajuda para executivos, conforme a autora chamou atenção.

Já o trabalho de Mesquita, publicado em 2007 e que procura compreender a relação


entre religião e atividade econômica, atentando para as formas de inserção de fiéis evangélicos
no universo do trabalho autônomo, chama atenção para o fato de que as ideias e valores
religiosos auxiliam os adeptos na (re)definição de suas posições e aspirações:

As atividades da Igreja são movidas por palavras de fé, orações, palestras e


testemunhos que buscam estimular o início ou a retomada de uma atividade por conta
própria ou empresarial. Para tanto, a Igreja oferece aos fiéis o impulso inicial para
buscarem uma vida melhor, para desenvolverem novas habilidades, visualizarem as
oportunidades, coragem para serem inovadores e criativos. (Mesquita, p.196)

118
Segundo Lima (2008), assim é descrita a proposta da IURD em sua página inicial: “As reuniões realizadas às
segundas-feiras na Igreja Universal do Reino de Deus são para pessoas que sejam empresárias, que estejam
passando por problemas financeiros e não aceitam mais viver nesta situação, bem como para quem busca
crescimento financeiro. Durante as reuniões, as pessoas desenvolvem potenciais, descobrem seus talentos, traçam
objetivos e planejam cada detalhe para a realização de suas metas” (2008, p.15). Já a chamada para inscrição no
Wedding Brasil, veiculada na página oficial do evento, exibe o seguinte texto: “Conquiste reconhecimento e
sucesso financeiro. Seu concorrente tem os melhores clientes e você não? Você não consegue elevar a qualidade
do seu trabalho por não ter dinheiro para investir, e sem investir não consegue aumentar o seu lucro? Essa é a sua
oportunidade de alavancar a sua carreira junto dos melhores fotógrafos de casamento do Brasil e do mundo. O
evento é pra você que: Quer atrair os melhores clientes; Quer alcançar o padrão de vida dos seus sonhos; Não se
sente reconhecido como o melhor profissional da sua região”.
188
Na conversa que tive com Luciana e Gabriel Werneck, ao falarmos do Wedding Brasil
— evento do qual participam anualmente tanto como palestrantes como espectadores de outras
apresentações, os dois enfatizaram sua importância como fonte de motivação, defendendo que
o evento anual “sempre dá um gás”, “ajuda a pensar no sentido da fotografia”. Falas como as
destes interlocutores me fazem pensar nos palcos deste evento, mas também falas como as de
Arantes, reproduzidas pouco acima, como espaços nos quais se produz a “eficácia simbólica”
da qual nos fala Lévi-Strauss. Os elementos simbólicos articulados nos diversos eventos
voltados a fotógrafos de casamento profissionais — dentre eles a música, as imagens, as
lágrimas, os gestos — fazem dos congressos, cursos e workshops, eventos que conferem aos
participantes apoio moral e o estímulo para crer em si próprios, num processo que se aproxima
daquele destacado por Lévi-Strauss ao analisar um processo de cura psicanalítica:

A carga simbólica de atos os torna aptos a constituir uma linguagem. Na verdade, o


médico dialoga com o paciente, não por meio da palavra, e sim por operações concretas,
verdadeiros ritos, que atravessam a barreira da consiência sem encontrar obstáculos,
para levar sua mensagem diretamente ao inconsciente (2008 [1949], p.216).

Aproximando os eventos de processos terapêuticos, fotógrafos-palestrantes encorajam


os espectadores a conhecer a si próprios e buscar em seu interior suas aspirações e, mais uma
vez, num formato muito próximo dos cultos descritos por Gutierrez, estimular a reflexividade
dos ouvintes:

Em muitos momentos, bispos e pastores insistem acerca da necessidade do fiel conhecer


a si próprio. Frases como “quem é você? O que você gostaria de ser? Você precisa pensar
mais, sair do automático e refletir” são utilizadas com frequência durante os cultos. Nos
materiais distribuídos aos membros, há uma série de “exercícios” que estimulam a
reflexividade dos fiéis. Em um Congresso para o Sucesso (culto dos empresários) na Vila
Mariana, em São Paulo, tive acesso a um deles. Um pequeno pedaço de papel escrito
“vencedores” no alto, com o símbolo de uma coroa, conta com as seguintes perguntas:
“Quem é você? O que faz atualmente em sua vida? Qual o seu sonho e como você gostaria
de ser no futuro? Explique em detalhes.” O pastor os adverte que não é para preencher
no momento do culto, mas sim em casa, “para fazer uma reflexão mais profunda”.
Iniciativas como essa são relativamente comuns e uma boa parte dos materiais
distribuídos foca na questão de si e do “Eu” futuro. Como esse material impresso
permanece com os fiéis para exercício de autorreflexão, ou em alguns casos entregue a
um obreiro para uma campanha, não temos acesso a ele. (2017, p.216)

189
Num dado momento do Wedding Brasil 2016, foram distribuídas folhas de papel A4
duas vezes dobradas na horizontal, de modo a caber de maneira justa em envelopes do tipo
ofício. Na parte externa da dobra, cor de rosa-choque, lia-se em letras maiores “cápsula do
tempo”. Ao desdobrar a primeira aba, os participantes que receberam a folha encontravam, em
letras grandes, a inscrição “Tudo começa com um sonho” e, junto com algumas instruções de
preenchimento, o texto: “A roda da vida é um fluxo constante em busca de equilíbrio. Para
atingi-lo você precisa pensar sobre você, seus sonhos e desejos, e assim conseguir materializá-
los”. A parte interna da folha era encabeçada pelo enunciado “Quais são os seus principais
objetivos daqui até 2017? Escreva e reflita” e seguida de oito tópicos sobre os quais os
organizadores propunham que os congressistas refletissem por escrito: “objetivos
profissionais”; “objetivos financeiros”; “objetivos sociais”; “objetivos de saúde física”;
“objetivos emocionais”; “objetivos intelectuais”; “objetivos familiares”; “objetivos
espirituais”. Seguindo as instruções ali contidas, preenchi formulário e depositei em uma urna
localizada no lounge.
No ano seguinte, recebi, pelos correios, o papel preenchido meses, antes acompanhado
de uma carta com o logotipo da nova edição do evento e o slogan “saber - fazer - ser”. Dizia o
texto:

Olá Cristina,
Como prometido estamos lhe devolvendo sua Cápsula do tempo, nem parece,
mas já se passaram 10 meses de quando você escreveu seus propósitos. Alguns você
deve ter conseguido concluir com êxito, outros podem estar em processo e talvez
tenham restado outros que você ainda não tenha conseguido colocar em prática. Mas
não desanime, trace novas metas e foque para que nos próximos meses você consiga
realizá-los.
Queremos te ajudar a manter esses propósitos acesos ou até mesmo botar em
prática os que ficaram em stand by, por isso a sua presença em mais esse Wedding
Brasil é tão importante para nós. Sabemos que você ainda não se inscreveu no
Wedding Brasil 2017, mas que tal aprimorar ainda mais seus conhecimentos e
garantir a sua vaga?! Ou quem sabe focar em outras áreas como por exemplo na
Oficina de Diagramação, em uma MasterClass, nos passaportes do MakeMovie e do
BluePass ou até mesmo no Concurso Wedding Brasil de Fotografia Impressa?!
Você está ganhando R$100 de bônus para usar dentro dessas suas
possibilidades e deixar a sua experiência do Wedding Brasil 2017 ainda mais intensa.
Atenção: seu desconto é acumulado com os descontos acumulados no Clube
Wedding, entre em contato conosco que te ajudamos a fazer a inscrição.
Grande abraço,
[a carta era assinada por um nome feminino por mim desconhecido]
190
Considerando o conteúdo desta carta, bem como diversos outros elementos do vasto
material de pesquisa construído ao longo do trabalho de campo, julgo pertinente encerrar o
capítulo com referência ao trabalho de Boltanski e Chapello (2007 [1999]) dedicado às
“mudanças ideológicas que acompanharam transformações recentes no capitalismo” (p.3,
tradução minha). De acordo com os autores, o capitalismo — entendido como a possibilidade
de obter lucro através de investimento econômico — é dependente de uma ideologia, isto é, um
conjunto de crenças compartilhadas, inscritas em instituições e vinculadas a ações. Segundo a
teoria de Boltanski e Chapello, o capitalismo só é capaz de sustentar-se e agregar as pessoas
em torno de seus objetivos por conta das justificações morais angariadas pelo sistema — daí a
ideia de que o capitalismo tem a necessidade de um “espírito”. Apreendido por este prisma, o
conteúdo “espiritual” dos circuitos pesquisados revela-se como algo indispensável para o
sucesso e é fonte inspiradora de força para as pessoas, principalmente por meio dos exemplos
dos casos de sucesso. Ainda sobre este aspecto, a conduta disciplinada da vida, em todas as
suas esferas, assim como valores morais específicos, são acionados.
Tratando sobre os “colarinhos-brancos”, Wright Mills observa que, ao arranjar um
emprego, estes trabalhadores vendem não apenas seu tempo e energia, mas também suas
personalidades: “vendem por semana ou por mês o sorriso e os gestos amáveis”, ressalta o
autor, acrescentando ainda que “esses traços pessoais têm relevância comercial” e “são
necessários à distribuição mais rendosa dos bens e serviços” (1976 [1951], p.19). Mais do que
vender suas personalidades, acredito que os fotógrafos de casamento transacionam valores
morais. Não por acaso, suas relações com a família e com o trabalho, com o casamento e com
a religião são divulgadas à exaustão, não apenas nos cursos e palestras que ministram, como
também na comunicação com potenciais clientes. Assim como é possível falar de moralidades
hegemônicas no universo pesquisado, também é correto dizer que os circuitos nos quais se
forjam as reputações dos fotógrafos de casamento são também espaços nos quais moralidades
são postas em disputa. O tema voltará a surgir no capítulo seguinte.

191
Capítulo 5
Jogos de reputação, moralidades em disputa

Em julho de 2018 uma notificação do aplicativo WhatsApp na tela de meu aparelho


celular sinalizava uma mensagem de Letícia. Fazia já algum tempo desde a última vez que
havíamos nos falado e minha interlocutora resolveu entrar em contato para informar que faria
uma rápida visita ao Rio de Janeiro, acenando, assim, para a possibilidade de um encontro.
Combinamos um almoço que acabaria ocorrendo na véspera de meu exame de qualificação da
tese e encontrar com Letícia, àquela altura, foi uma experiência um tanto curiosa. Sem saber ao
certo o porquê, eu sentia que tê-la transformado em personagem de um texto etnográfico em
fase de redação provocava alguma mudança, ainda que sutil, na maneira como eu a enxergava.
O sinal mais evidente do estranhamento era o modo como eu confundia, seguidas vezes, seu
nome verdadeiro com o fictício.
Compareci a este encontro sem o senso de obrigação que, em geral, me acompanhava
enquanto eu realizava trabalho de campo. Sequer cogitei levar ao restaurante um caderno para
tomar notas, muito menos registrar nossa conversa com o auxílio do gravador, como de costume
eu fazia. Fui almoçar com Letícia movida pela mesma sensação de quem encontra velhos
amigos com quem é mantido contato esporádico. Logo que nos encontramos, fiz a pergunta que
geralmente se faz em situações deste tipo: “e aí, o que você conta de novo?”.
Assim como ocorre quando encontramos amigos de longa data, a conversa transcorreu
animada. Embora eu tivesse alguma ideia sobre os rumos tomados por Letícia nos meses que
sucederam o período mais intenso de meu trabalho de campo, minha interlocutora apresentava
novidades. De minha parte, foi com sincera curiosidade que escutei enquanto ela descrevia os
bastidores de um reality show sobre fotografia do qual tinha acabado de participar ou enquanto
falava dos eventos nos quais tinha atuado como palestrante. “E a crise?”, perguntei a certa
altura, referindo-me ao termo que ela costumava utilizar para tratar das incertezas de sua
carreira em nossas muitas conversas. Letícia deu de ombros, disse que ainda não tinha resolvido
e com um sorriso que me pareceu meio preocupado, meio divertido, disse que não sabia bem o
que seria de sua vida profissional.
Antes de iniciar a escrita deste capítulo, tomei o cuidado de consultar mais uma vez o
site de Letícia para confirmar algumas impressões que guardei desta nossa última conversa. O
192
formulário da seção intitulada “contato”, o principal meio através do qual seus potenciais
clientes entrariam em contato com a fotógrafa, era exibido com uma observação: “Para
casamentos, no momento, a agenda está fechada”, com esta última palavra destacada em
negrito. No site, Letícia se apresentava como “fotógrafa documental” e, dentre as imagens
exibidas em seu portfólio, aquelas capturadas em viagens e manifestações de rua eram as que
ganhavam maior destaque — e não mais as fotografias de casamento, conforme eu havia
verificado muitos meses antes, quando comecei a fazer meu trabalho de campo.
De volta ao meu almoço com Letícia, houve um momento em que ela perguntou sobre
minhas aventuras enquanto aprendiz de fotógrafa. Respondi que minhas tentativas fotográficas
ficavam cada vez mais raras desde que eu havia dado por encerrado o meu “projeto 365”.
Lamentei ainda que a conta do Instagram criada para meu novo projeto fotográfico (que
consistia em postar livremente as fotos de minha autoria que mais me agradassem) andasse
abandonada, aproveitando a oportunidade para resmungar sobre o modo como minhas
atividades acadêmicas vinham consumindo minha energia a ponto de deixar pouco espaço para
outros interesses. Mergulhada em autocomiseração, só me dei conta de que algo do meu
discurso provocara em Letícia um certo estranhamento quando ela me interrompeu, com o
cenho franzido, dando início a um novo assunto numa conversa que transcorreu mais ou menos
assim:

Letícia: Mas por que você foi fazer isso?!


Cristina: Isso o quê?
Letícia: Por que você encerrou a conta do projeto 365? Você podia só ter mudado o
nome da conta e começado o novo projeto ali mesmo. Por que você resolveu criar outro?
Cristina: Ué, porque o projeto acabou. [Letícia ainda me olhava como quem ainda
esperava uma explicação e eu acrescentei] Eu achei que ia ser legal uma conta com o
número 365 no nome ter 365 fotografias… [Mais uns segundos de silêncio se passaram]
Sei lá, só isso mesmo.

Dando o assunto por encerrado, eu devo ter ensaiado uma retomada de meus lamentos
quando Letícia voltou a insistir:

Letícia: Mas você não devia ter feito isso!


Cristina: É… não sei… mas já fiz, né…
Letícia: Onde já se viu desperdiçar os seguidores que você conseguiu durante um ano
inteiro? [Como não obteve resposta, Letícia prosseguiu falando em tom de sermão]
Mantinha a conta, podia até mudar de nome, mas aproveitava os seguidores que já
tinha…
193
Procurei argumentar que eu não me importava com o número de seguidores, mas Letícia
deixava claro que não via sentido em minha atitude. Como que demonstrando impaciência com
a aluna que se negava a entender a lição, limitou-se a encerrar a discussão com um suspiro
profundo e um muxoxo de resignação acompanhado de um olhar erguido em direção ao teto.
Tenho para mim que a falta de paciência de Letícia devia ter algo a ver com a enorme
distância entre meus conhecimentos sobre construção de reputação em redes sociais e os de
minha interlocutora. Assim como na ocasião de nosso primeiro encontro, a tela de seu celular,
deixado sobre a mesa, se iluminava a todo instante indicando um fluxo de mensagens bastante
intenso para meus padrões. Em uma das raras vezes que Letícia deu atenção ao aparelho durante
nosso encontro, ela me contou que estava tentando convencer os outros participantes do reality
show do qual havia acabado de sair vitoriosa a comparecer a um festival de fotografia que
aconteceria dali a alguns dias. A justificativa para seu esforço de persuasão me pareceu
engenhosa: segundo Letícia, posto que o reality show teria acabado de ir ao ar em um canal
fechado de televisão na data do tal festival, ela atrairia mais atenção no evento se fosse vista ali
junto com o grupo. “Estou tentando aproveitar a onda pra ganhar mais visibilidade”, explicou.
Deixei o encontro com Letícia convencida de que ela havia aplicado a mesma disciplina
investida nas “técnicas fotográficas” no aprendizado de uma nova e sofisticada técnica: a do
manejo de sua reputação. Um dos sinais mais significativos deste movimento surgiria mais
adiante na conversa, quando Letícia discorreria, com propriedade, sobre o funcionamento de
“robozinhos” capazes de angariar seguidores no Instagram. “Como assim?”, perguntei
intrigada. Pelo que entendi da resposta expressiva e cheia de detalhes, alguns dos quais tive
alguma dificuldade em acompanhar, os “robozinhos” contratados por Letícia faziam
automaticamente o que ela poderia fazer sozinha caso dedicasse algum tempo à atividade.
Primeiro, eles identificavam “perfis de Instagram” que a interessavam, por exemplo, potenciais
clientes para suas palestras e workshosps. A partir daí os robôs interagiam com tais perfis
(passando a segui-los e “curtir posts”). Numa espécie de lógica de reciprocidade em operação
nas redes sociais, os donos dos perfis com quem o “robozinho” contratado por Letícia interagia,
se engajariam de alguma maneira com o perfil da fotógrafa, em geral seguindo-a de volta,

194
curtindo, comentando suas fotos119. Isto tornaria seu nome conhecido dentro do universo da
fotografia — se tudo desse certo, talvez não só da fotografia de casamento, mas de um universo
mais amplo de fotógrafos profissionais e amadores.
Foi rindo que Letícia contou que, em alguns casos, o “robozinho” lhe havia metido em
algumas situações constrangedoras. Por exemplo, volta e meia recebia um comentário de algum
fotógrafo desconhecido dizendo algo como “Não acredito que Letícia Katz curtiu uma foto
minha, que honra!”. Ao contar, minha interlocutora acrescentava “mal sabem eles que quem
curtiu foi o robôzinho…”. Houve também um caso de o tal robô seguir um de seus desafetos:
“estava dentro do meu público-alvo, ia fazer o quê?”. O cuidado com a construção de sua
imagem não dizia respeito apenas a suas redes sociais. Letícia agora contava também com a
ajuda de uma consultora de estilo para ajudá-la a selecionar o que vestiria em certas situações.
Frequentava alguns “eventos de fotografia”, às vezes não porque sentia vontade, mas porque
calculava que sua presença ali importava a seus propósitos profissionais: “a gente tem que
aparecer”.

Não foi imediatamente que me dei conta, mas passei a me questionar, sobretudo após
ouvir os comentários da banca durante a qualificação da tese, se o que faziam os fotógrafos de
casamento que conformavam meu objeto e minha pesquisa era, realmente, fotografar
casamentos. Se esta atividade parecia, à primeira vista, ser aquela que os definia enquanto
profissionais — a atividade central (core activity), segundo o enquadramento conceitual
sugerido por Hughes (2003 [1997], pp.133-134) — e, em boa parte dos casos, sua principal
fonte de sustento, eu também me perguntava sobre a parcela não desprezível de profissionais
que, como Letícia, investiam uma dose significativa de seu tempo e energia em outras
atividades — em certos casos, obtendo destas também a maior parte de sua remuneração.
Chamava minha atenção, em especial, como alguns dos profissionais, a despeito de se
apresentarem como fotógrafos de casamento, pareciam dedicar-se majoritariamente a
atividades que chamarei genericamente de “práticas de ensino”. Elaborar conteúdo de cursos,
ministrar palestras, escrever sobre fotografias em blogs, conceder entrevistas, organizar
workshops (tanto presenciais quanto online), dedicar-se a suas redes sociais ou produzir vídeos

119
A explicação dada por Letícia era elucidativa de minha própria experiência enquanto proprietária de dois perfis
no Instagram abertos ao público (primeiro o @ctmarins_projeto365 e, mais tarde o @ctmarins_freestyle). Ouvindo
minha interlocutora falar, eu percebia que algumas de minhas interações naquela rede social foram geradas pelos
robôs aos quais Letícia se referia.
195
voltados para outros fotógrafos de casamento (ou ainda para fotógrafos aspirantes): todas estas
eram atividades que consumiam tempo e energia e, em alguns casos, rendiam aos fotógrafos
retornos financeiros ainda mais vultosos do que aqueles obtidos no trabalho direto em
casamentos.
Foi neste sentido que passei a me questionar quanto ao processo que, em nossas
conversas, Letícia denominava “crise”. Não seria a “crise” de minha interlocutora, eu me
indagava, uma espécie de transição da posição de fotógrafa de casamento para uma outra
posição construída a partir de um evidente investimento em sua carreira de palestrante,
mentora, mestre? De todo modo, era certo que alguns dos fotógrafos de casamento que eu havia
observado durante o trabalho de campo, ao construírem para si uma posição de proeminência
em seu universo profissional, puderam assumir novos papéis (de palestrantes, mentores,
mestres) e, por consequência, eram outorgados pelos pares a falar legitimamente em nome do
grupo, tanto como conhecedores das dimensões técnicas da profissão (Di Deus, 2017), quanto
como representantes de “mundos morais” (Pita, 2010).
O fato de fotógrafos de casamento não se encontrarem dentro de organizações com
hierarquias formalmente definidas não significa, em absoluto, que eles não possam ser
apreendidos dentro de estruturas hierárquicas, seguindo aqui a definição dumontiana que toma
a hierarquia como “princípio de gradação dos elementos de um conjunto em relação ao
conjunto” (Dumont, 2008 [1966], p.118). Neste capítulo, pretendo analisar as relações entre os
fotógrafos de casamento, atentando para as configurações hierárquicas operantes no contexto
que pesquisei. Procuro pensar como se constrói prestígio e reconhecimento no universo da
fotografia de casamento e, com este intuito, buscarei estender a reflexão sobre os valores
acionados por meus interlocutores a fim de produzir suas trajetórias de sucesso. Mais uma vez,
encontramos respaldo em Bourdieu (2006 [1986]), para quem “a ilusão biográfica”, além de
consistir numa tentativa de conferir ordem a algo desordenado no mundo, é também uma
“ilusão retórica” (p.185). A retórica dos fotógrafos de casamento, por um lado, cumpre o papel
de convencer seus noivos de lhes confiar os registros dos ritos matrimoniais e, por outro lado
— sendo este o principal foco de interesse desta tese — se presta à função de convencer seus
pares de que eles merecem ocupar um lugar privilegiado no universo dos fotógrafos de
casamento.

196
Fernando Castiel

A Fernando Castiel não faltam epítetos. “Business man”, “fotógrafo do glamour e da


grandiosidade”, “homem do marketing” e “fotógrafo das celebridades” foram algumas das
expressões que vi serem empregadas a fim de qualificá-lo. Com efeito, foram as numerosas
referências a seu nome ao longo do trabalho de campo que me levaram a buscar saber mais a
seu respeito — e encontrar informações sobre o fotógrafo não foi tarefa difícil. Em pouco tempo
a fisionomia de Fernando, o homem de pele branca e pouco mais de 40 anos de idade, cujos
cabelos grisalhos, cuidadosamente penteados, bem poderiam ter saído de uma propaganda de
xampu, se tornaria familiar para mim. Em veículos de mídia especializados em fotografia ou
casamentos, Fernando tematizava inúmeras reportagens e entrevistas. Em suas próprias redes
(que incluíam site, conta de Instagram e canais em plataformas de vídeo) havia um amplo
material disponível sobre sua vida e seu trabalho.
Embora eu não tenha dialogado diretamente com este profissional, considero Fernando
um personagem importante desta etnografia pela recorrência com que ele aparecia no universo
da pesquisa e, sobretudo, pelo que ele representava ali. Através dos discursos de meus
interlocutores, logo comecei a encarar Fernando como alguém que incorporava a figura de um
medalhão, conforme definiu DaMatta:

são as pessoas que podem ser chamadas de ‘homens’, ‘cobras’, ‘figuras’, ‘personagens’
etc. e que ocorrem em qualquer campo. São os que já transcenderam as regras que
constrangem as pessoas comuns daquela esfera social. É alguém que não precisa mais
ser apresentado e com quem se deve primeiro falar (e/ou ‘se entender’). (DaMatta,
1997, p.205)

Cristalizando qualidades morais daquele domínio social, Fernando era, sem sombra de
dúvidas, uma figura de referência da qual outros profissionais buscavam se aproximar ou se
distanciar. Esta é uma impressão que teve origem nas inúmeras ocasiões (por exemplo, ao final
de uma palestra, em respostas públicas a vídeos e textos publicados na Internet) que o vi sendo
tratado como “mestre”, “uma inspiração”, “um ídolo”, mas que também parte de outras
situações, mais reservadas, na qual ouvi fotógrafos classificá-lo, em tom de desaprovação,
como “marqueteiro”, “oportunista”, “charlatão”. De todo modo, chamava minha atenção o
quanto seu nome era conhecido por meus interlocutores, ao ponto de, certa vez, quando
perguntei a Letícia se ela sabia quem era “o tal de Fernando Castiel”, ela haver respondido com

197
uma risada marota e uma pergunta devolvida: “por acaso sei, mas como assim você ainda não
sabe?”.
Lembro-me de ter estado na presença de Fernando uma única vez durante o trabalho de
campo. Foi no primeiro dia da edição de 2017 do Congresso Fotografar, quando assisti a um
debate promovido pelos organizadores do evento que trazia ao palco também Francisco Salles,
outro profissional cujo nome era muito conhecido entre fotógrafos de casamento. Ali, assim
como nos vídeos que veicula na internet, Fernando deixava a impressão de que, ao falar em
público, tinha plena consciência de sua oratória, assumindo ar professoral e, entre uma frase e
outra, fazendo pausas como quem acaba de ter uma iluminação, pousando suavemente os dedos
flexionados sobre os lábios para então prosseguir seu raciocínio.
As narrativas em torno da biografia de Fernando Castiel, reconstituída aqui a partir do
material ao qual me referi nos parágrafos anteriores, contam que o fotógrafo vem de uma
pequena cidade do sul do país, onde seus pais eram proprietários de um estúdio fotográfico. Em
uma das entrevistas concedidas por Fernando, ouvi o fotógrafo contar que, quando criança,
“não podia brincar porque tinha que ficar no balcão” auxiliando o trabalho da mãe na pequena
loja. Sobre sua adolescência, o fotógrafo costumava mencionar atuações em diversas atividades
profissionais tais como a venda ambulante, o trabalho em comércio local e em fábrica. Foi o
próprio Fernando quem contou, em uma entrevista veiculada no YouTube, que quando tinha
entre quinze e dezesseis anos começou a “empreender”, buscando seus próprios clientes.
Segundo o relato, aos dezenove anos, ele abriu seu próprio estúdio fotográfico no imóvel no
qual residia, posto que “as contas ainda não fechavam” e, portanto, não podia “pagar dois
aluguéis”.
A partir do momento que inaugura seu trabalho no próprio estúdio, a trajetória
profissional de Fernando Castiel é descrita como uma curva sempre ascendente. Enfatizava-se,
sobretudo, a ideia de que este profissional alcançou retumbante sucesso em sua área de atuação.
Nas descrições que acompanhavam uma das chamadas para as inúmeras palestras proferidas
por Fernando por todo o país, constava que ele era uma referência internacional. Outra
formulação, comum nos textos a seu respeito, apresentava o fotógrafo como um agente de
transformação, alguém que “já mudou a vida de muita gente através de seus ensinamentos”. Na
capa de um e-book lançado recentemente por ele — um “guia definitivo” para “uma carreira de
sucesso” — constava, junto ao seu retrato (num estilo que lembra os que figuravam na capa da

198
revista americana Forbes 120 ), as seguintes chamadas: “lições de quem veio do nada”; “ele
transformou fotografia simples que aprendeu com sua família em artigo de luxo”; “conquistou
seu primeiro milhão aos 30 anos fotografando casamento”.
Nos textos de apresentação disponíveis em seus próprios canais de comunicação, a
palavra “fotógrafo” aparece com frequência acompanhada do termo “coach”. O vocábulo
inglês — que admite traduções tais como “técnico”, “treinador” e “mentor” — funciona ali
como referência às atividades de ensino exercidas por Fernando que, no momento da realização
da pesquisa, parecia ser uma prática na qual o fotógrafo estava firmemente engajado. Em uma
entrevista veiculada, no ano de 2015, em um podcast popular entre fotógrafos de casamento121,
Fernando anunciou o lançamento de um “portal de conteúdos”. Durante o anúncio do novo
negócio, ele afirmou que seu propósito era alcançar “o maior número possível de pessoas,
gerando transformação na vida daqueles que aplicam o que aprendem”.
Durante minha pesquisa, tive acesso a um vasto material disponibilizado por Fernando
Castiel no YouTube. Em alguns vídeos veiculados ali, ele aparece fotografando em cidades no
exterior. Em outros, surge ao lado de pessoas que dão algum tipo de testemunho a seu respeito,
como o caso de um barbeiro que trabalha em sua cidade de origem que conta ter obtido sucesso
em sua barbearia porque recebeu dicas de negócios vindas do fotógrafo. Há ainda um vídeo no
qual Fernando convida os espectadores a conhecerem seu apartamento, sua coleção de carros e
a sede de sua empresa. No vídeo intitulado “Minha vida”, apresentado como um
“documentário”, aparecem ainda imagens de sua esposa e filhos — sendo que o mais velho
deles que, segundo meus cálculos, deve ter cerca de 18 anos de idade, segue os passos do pai,
trabalhando ele também como fotógrafo. Em uma entrevista concedida a um podcast sobre
fotografia, ouvi Fernando contar que já teve até 18 pessoas trabalhando em sua equipe, que
reunia publicitário, jornalista e “até um diretor de TV”. Pensando no trabalho de Diaz-Benitez
(2010 p.184), no qual esta autora demonstra como atores que integram o universo de sua
pesquisa são capazes de construir uma indústria em torno de si, penso que este é o caso também
de certos fotógrafos de casamento — Fernando é, neste sentido, possivelmente um dos
exemplos mais inequívocos deste processo.

120
A Forbes é uma revista cujos artigos e reportagens tratam, predominantemente, de temas como finanças,
indústria, investimentos e marketing. Também é conhecida por apresentar rankings das pessoas mais ricas dos
Estados Unidos e do mundo, ou das celebridades mais bem-pagas, por exemplo.
121
Segundo informado na seção “Quem somos” trata-se do “maior podcast sobre fotografia no Brasil”.
199
As narrativas em torno da trajetória profissional de Fernando jogam luz sobre alguns
temas já explorados nesta tese como, por exemplo, a ideia de sucesso como um resultado de
um esforço individual, o “self-made man” (Mills, 1976 [1951]), que partiu de uma condição de
escassez para a de fotógrafo bem-sucedido, indicando que o esforço naquele segmento é algo
necessariamente recompensado. O material a respeito de Fernando Castiel também revela uma
atitude diante das possibilidades aquisitivas decorrentes do trabalho nos casamentos bastante
semelhante àquela que Lima atribui aos sujeitos sociais identificados como dotados de um
“ethos emergente”:

Entre os sujeitos sociais que fazem escolhas e mantêm um estilo de vida presidido pelo
ethos emergente, a explicitação do suor que lhes proporciona o padrão de vida atual é
tão insistente quanto os bens de consumo de luxo que sinalizam seu “sucesso” (2008,
p.188).

O traço distintivo de Fernando Castiel em relação a outros fotógrafos de casamento que


ganharam fama fazendo palestras e ministrando workshops era a ênfase dada por este
profissional ao tema da ascensão social marcada por seu acesso a bens de luxo. Enquanto outros
palestrantes apresentavam uma relação quase esquiva com o dinheiro, afirmando que ele não
devia ser encarado como um fim em si mesmo, Fernando, de maneira mais direta, conferia-lhe
sentido positivo122. Uma série de vídeos em que exibe “os bastidores dos trabalhos” veiculados
por ele em seu canal do YouTube ilustra bem esta ideia. Em especial, gostaria de me deter sobre
cinco vídeos que levam o título de “vlogs do Fernando”123, filmados na ocasião de uma viagem
para a cidade de Miami, realizada com o intuito de fotografar clientes que se casariam em breve
no Brasil.

122
Não quero dizer com isto que o discurso de Fernando fosse desprovido de ambiguidades. Por exemplo, me
pareceu um tanto quanto dúbia a forma como o tema foi abordado neste texto assinado por Fernando e veiculado
em seu site: “Para mim, ‘ser rico’ sempre representou um estado de espírito, uma forma de pensar, em vez de
apenas simbolizar o ‘poder de compra’. A partir desse entendimento, descobri que ser rico era algo muito simples,
uma vez que não tinha relação com o dinheiro. Deparei-me com a falta dele, então como eu poderia ser rico por
dentro sem ter o suficiente para viver? Como poderia vibrar como um rico se não tinha condições de manter a
minha própria vida? Foi aí que comecei a desenvolver a minha própria metodologia para enriquecer, tanto na
mente quanto na conta bancária”.
123
Os vlogs são espécies de diários virtuais em que seus autores compartilham assuntos de seu interesse através
de vídeos.

200
No primeiro vídeo, Fernando mostra o amplo apartamento onde encontrava-se
hospedado na companhia de seu filho e de um “filmmaker”124, exibindo a deslumbrante vista
que contemplava boa parte da cidade e do mar azul turquesa ao sul do balneário. Neste vídeo
que dura pouco menos de cinco minutos, Fernando exibe algumas câmeras que havia acabado
de adquirir, fazendo menção ainda a uma garrafa de champagne da marca Dom Pérignon que
teria recebido de presente e ao relógio que escolheu para a viagem, observando: “pra quem não
sabe, eu sou apaixonado por relógios”. O segundo vídeo consiste numa visita a uma loja de
equipamentos eletrônicos e o terceiro vídeo foi filmado durante um deslocamento junto com a
noiva, no qual esta falava sobre os preparativos de seu casamento que aconteceria em breve no
icônico hotel Copacabana Palace, na cidade do Rio de Janeiro. O quarto vlog da viagem de
Fernando, o mais longo da série, com pouco mais de dezoito minutos, consistia na visita do
fotógrafo a uma loja de carros de luxo e incluía o test drive de um dos automóveis à venda. O
quinto vídeo, intitulado “O poder do lifestyle”, foi realizado a bordo de um iate e apresentava
uma entrevista com um “chef de cozinha” que trabalhava na embarcação. Na entrevista,
Fernando pedia que o jovem profissional contasse para o “pessoal do Face e do YouTube a sua
história”. O rapaz (alto e bronzeado, que devia ter cerca de 30 anos de idade e cujo tórax
volumoso por baixo da dólmã sugeria a prática de exercícios regulares) disse então que, certa
vez, recebeu uma mensagem da capitã do barco, que declarava, baseada nas fotografias
postadas por ele no Instagram, ter gostado de seu “lifestyle”, razão pela qual gostaria de lhe
oferecer um emprego. “Então você está me dizendo que o lifestyle de alguém pode definir as
oportunidades da vida dele?”, perguntou Fernando, que se mostrava entusiasmado diante do
que ouvia. O jovem então respondeu:

Chef: Com certeza. Imagina se eu só postasse foto bêbado numa balada? Ninguém ia
querer me contratar por eu estar bebendo vodca, whisky numa balada. Eu posto foto
bebendo numa loja de vinhos, numa degustação… eu posto foto esquiando na Itália, na
França… posto foto treinando na minha academia. Então eu sou uma pessoa ativa e eu
demonstro ter bom gosto. E a finesse nessa indústria é a coisa mais importante.
Fernando: Uau! Muito bom! Você sabe que o meu público aqui, em sua maioria, são
filmmakers e fotógrafos… e eu tenho um papel que eu acredito ser muito importante,
que é mostrar pra essa galera que isso que você tá falando é importante. Então tudo que
você disse aqui vem a confirmar aquilo que eu já venho conversando com muita gente.
Porque, por exemplo, de nada adianta você ter uma vida, por exemplo, que não seja

124
O jovem produtor de vídeo é apresentado como alguém que os acompanha na viagem a fim de captar imagens
para um documentário sobre a vida de Fernando.
201
referência pra alguém mesmo sendo um profissional incrível, mesmo fazendo uma
comida bacana… se você não tivesse uma vida que combine com tudo isso, essa
oportunidade não chegaria, correto?
Chef: Com certeza! Acho que as oportunidades surgem de acordo com o que você
sonha. O meu sonho era ter uma vida que eu pudesse, como chef de cozinha, comprar
tudo que eu queria, todos os melhores produtos, e trabalhar pra alguém que realmente
aprecia a minha culinária. E eu acho que hoje eu cheguei nesse nível. Eu alcancei porque
eu sempre sonhei. Acho que isso é o mais importante.
Fernando: [Voltando a câmera para si, se dirige agora ao seu público] Vocês viram isso,
galera? [Um sorriso com ar irônico acompanhado de sobrancelhas erguidas faz com que
sua conclusão soe quase ameaçadora] Cuida do que posta no Instagram e no seu site!

O modo como, durante a conversa veiculada no canal de Fernando, era enfatizado como
o jovem chef fora selecionado sem que sua contratante jamais tivesse “provado sua comida”
me pareceu particularmente instigante para pensar na curiosa relação entre saber fazer e a
construção, através das redes sociais, de uma imagem de quem sabe fazer. Ao anunciar seus
cursos e workshops, Fernando prometia ensinar a seus alunos como “entender as estratégias e
a visão de negócios que um fotógrafo precisa ter para construir um negócio que gere dinheiro”,
acrescentando que este aprendizado possibilitaria que os alunos transformassem paixão em
prosperidade na vida. Sem ter eu mesma ocupado um lugar de aluna nos cursos e workshops de
Fernando, desconfio que suas lições devem cotejar estratégias de construção de reputação.

Crise para quem?

As trajetórias de Letícia Katz e de Fernando Castiel colocam em jogo duas gramáticas


do sucesso distintas. Fernando parece apoiar-se na ideia de prosperidade (Lima, 2008),
recorrendo frequentemente a um vocabulário que é tomado de empréstimo, simultaneamente,
dos mundos empresarial (ao fazer referências a ideias como “negócios”, “diferenciais dos
produtos” e “nichos”) e espiritual (por exemplo, ao aconselhar o público durante uma palestra
a “entender qual é o seu chamado da vida”). Um dos principais indicativos de sucesso
profissional, para ele, é traduzido pela remuneração do fotógrafo de casamento. Outro critério
utilizado para mensurar o sucesso de um fotógrafo de casamento tem a ver com sua clientela:
atender a “um público selecionado” ou “um público seleto” parece ser, de seu ponto de vista,
algo almejado por qualquer profissional. Já os discursos de Letícia evidenciam uma concepção
de sucesso que passa por questões outras. Sua fala, durante a entrevista que me concedeu, a

202
respeito de um trabalho que considerou penoso, indica uma atitude bastante diferente daquela
de Fernando:

Teve um casamento que a noiva era mega princesa, teve Limousine daquelas compridas
com luzes de boate, tinha uma banheira de champagne na pista, tinha arranjos na festa,
arranjos suspensos assim de folha, cada um ela pagou mil e quinhentos reais e tinha uns
quatro, sei lá. (…) E eu, quando eu comecei a ficar sabendo das coisas, foi depois que
a gente fechou o contrato, eu fiquei conversando com o cerimonial e aí ela falou “ó, vai
ter isso, vai ter isso, vai ter isso, vai ter aquilo” e eu falei “caralho”. Tudo ela queria!
Tudo que ela via ela queria. Sei lá, uma amiga dela casou e na saída teve pétalas. Outra
amiga casou e na saída teve arroz, na outra teve bolinha de sabão… ela queria todos!
(…) E eu ficava “caralho, por que que ela me contratou?” Eu não sou a fotógrafa dela,
sabe? Devia ser esse outro cara que é o que cobra mais do que eu, uma coisa mais
classicona, linda, princesa, maravilhosa, diva. Eu não era fotógrafa pra ela, ela não era
noiva pra mim. Eu perguntei pra cerimonialista “por que que ela fechou comigo? Não
tem nada a ver”. Ela falou “ah, porque falaram pra ela que você era a melhor, ela só
queria o melhor”. Melhor pra quem, né? Dizem que Romero Brito é o melhor pintor.
Cada um tem o melhor pra si, né? Acho que ela não era o melhor pra mim e não existe
isso de ser o melhor. (…) [Pergunto se a cliente ficou satisfeita com as fotografias no
fim das contas] Ela amou, mas ela sentiu falta por exemplo de uma foto dela na entrada
que ela não tivesse fazendo careta. Mas ela tava fazendo careta, eu ia fazer o quê? Ia
transformar o rosto dela no Photoshop? Queria mais foto na Limousine… Mas não ficou
legal… horrível a Limousine! [risos]

Se Letícia não chega ao ponto de indicar que a remuneração é algo irrelevante para que
um fotógrafo de casamento seja considerado bem-sucedido, ela deixa claro que sua concepção
de sucesso engloba também e, possivelmente com maior relevância, dimensões estéticas e
morais. Ela questiona a noção de luxo como um anseio universal e afirma perseguir um sucesso
antes ligado à qualidade artística de seu trabalho. Letícia não estava sozinha e, conforme
procurei explorar no capítulo anterior, também fotógrafos como Bárbara e Leonardo pareciam
colocar o acento sobre estes aspectos. Não me parece ser fruto de acaso que os três tenham
declarado enfrentar uma crise na profissão que nada tinha a ver com a incapacidade de obter
clientes ou remuneração compatível com suas aspirações materiais. Ao contrário, todos os três,
cada um ao seu modo, indicavam já ter atingido um estágio da carreira em que consideravam
ter alcançado um patamar de remuneração condizente com suas ambições financeiras. Creio
que a distinção entre a perspectiva de Fernando e a de Letícia (e também de Bárbara e de
Leonardo) pode ser proveitosamente analisada a partir da oposição entre “arte de artesão” e

203
“arte de artista”, proposta por Elias (1995 [1991]) no estudo que realizou sobre a vida e o gênio
criativo de Wolfgang Amadeus Mozart.
É refletindo sobre o episódio no qual Mozart deixa de ser empregado permanente de um
patrono para ganhar a vida como artista autônomo, “numa época que a estrutura social ainda
não oferecia tal lugar para músicos ilustres” (p.32), que Elias distingue os papéis de “artista” e
“artesão”. O autor argumenta que, ao colocar em risco sua vida e existência social, Mozart
parece ter enxergado no futuro incerto uma chance de livrar-se das restrições que o trabalho na
corte impunham, deixando de responder a um empregador que determinasse “quando e onde
deveria fazer um concerto e, muitas vezes, o que compor” (idem, p.33). Conforme explica Elias:

Em seus objetivos e anseios pessoais, em uma concepção do que fazia ou não sentido,
ele antecipou as atitudes e os sentimentos de um tipo posterior de artista.
Institucionalmente, a situação que permanecia à sua época ainda era a do artista
assalariado, oficial. Mas a estrutura de sua personalidade era a de alguém que desejava,
acima de tudo em sua inspiração individual, numa época em que a execução e a
composição da música mais valorizada pela sociedade repousavam, a bem dizer,
exclusivamente nas mãos de músicos artesãos com postos permanentes, seja nas cortes
ou nas igrejas das cidades. (p.34)

Embora a condição de “artista autônomo” não o libertasse inteiramente das limitações


impostas pelo mercado artístico (afinal, Mozart ainda dependeria de um círculo restrito de
clientes), ela parecia ser uma resposta possível ao seu anseio de poder criar livremente,
seguindo suas vozes interiores. Esta mudança estrutural na posição social do músico que passa
da condição de artesão para a de artista, conforme argumenta Elias, engendrava também
mudanças profundas no estilo e no caráter de sua música:

Na fase da arte artesanal, o padrão de gosto do patrono prevalecia, como base para a
criação artística, sobre a fantasia pessoal de cada artista. A imaginação era canalizada,
estritamente, de acordo com o gosto da classe dos patronos. Na outra fase, os artistas
são, em geral, socialmente iguais ao público que admira e compra sua arte. No caso de
seus quadros principais, o establishment dos especialistas num dado país, os artistas,
enquanto formadores de opinião e a vanguarda artística, são mais poderosos que seu
público. Com seus modelos inovadores, podem guiar para novas direções o padrão
estabelecido de arte, e então o público, em geral, pode ir lentamente aprendendo a ver
e ouvir com os olhos e ouvidos dos artistas (p.47).

204
Proponho que a distinção entre “arte de artesão” e “arte de artista” formulada por Elias
seja tomada como chave interpretativa da “crise” enunciada por interlocutoras como Letícia e
Bárbara que, de certo modo, pareciam operar uma passagem da condição de “artesãs” para a
condição de “artistas”. No caso específico de Letícia que, paulatinamente, reduzia seus
trabalhos em casamentos a fim de investir em sua carreira de fotógrafa documental e
palestrante nos circuitos de fotografia de casamento, este movimento me parecia claro. Afinal,
o fotógrafo de casamento tem sua produção artística, por definição, condicionada aos desejos
e expectativas dos patronos: no caso, os noivos e, eventualmente, também seus familiares e
convidados. Pude testemunhar, nas duas ocasiões em que acompanhei profissionais durante os
casamentos, como fazer fotos em nada parecidas com o ideal artístico dos fotógrafos é algo
corriqueiro: a noiva que chama o fotógrafo para acompanhá-la de mesa em mesa enquanto
cumprimenta os convidados, o padrinho que solicita um retrato, a mãe da noiva que pede que
o fotógrafo registre enquanto posa para fotografia junto com familiares ou a maquiadora que
fornece instruções ao fotógrafo sobre as cenas que ele deve ou não enquadrar foram algumas
das situações deste tipo que registrei. Ainda que haja alguma margem para negociação sobre
aquilo que o fotógrafo de casamento faz ou deixa de fazer (sendo que esta negociação entre
meus interlocutores se dá, prioritariamente, na atividade de selecionar os clientes que se
alinhem à proposta do fotógrafo), o profissional sabe que, no dia do casamento, ele está, em
grande medida, sujeito às vontades de seus contratantes. Dizer não, sobretudo para a noiva, mas
também para seus familiares e padrinhos 125 , é situação extremamente delicada que pode,
inclusive, incorrer em prejuízos a sua reputação junto a potenciais clientes126.
Ao se tornar uma fotógrafa-palestrante e dirigir seu produto (o conteúdo de palestras,
cursos, workshops ou lives127, por exemplo) a um mercado de consumidores anônimos que

125
Estes atores ocupam alto posto na hierarquia em ritos matrimoniais, conforme argumentei em Marins (2017,
p.417).
126
Quando acompanhei Letícia em um casamento, ocorreu um episódio, enquanto os noivos se arrumavam para a
cerimônia em um apartamento no bairro carioca do Leblon, que considerei bastante peculiar. Na ocasião, um dos
padrinhos solicitou que Letícia fizesse um registro seu e a fotógrafa, para estupefação do rapaz, negou o pedido,
argumentando “estar ocupada”. A partir dali travou-se uma pequena batalha entre os dois: o padrinho,
inconformado com a recusa, insistia com ar sarcástico: “e agora, ainda ocupada?”, perguntava à fotógrafa de
tempos em tempos. Letícia manteve-se firme numa postura de quem indicava que ele não tinha a prerrogativa de
lhe dar ordens. Entendo que o episódio, que me pareceu tão interessante quanto incomum, ocorreu porque Letícia
atravessava um momento da carreira em que sequer tinha certeza se continuaria a fotografar casamentos e,
portanto, não se preocupava com os prejuízos que a insatisfação do padrinho poderia produzir na sua carreira.
127
Lives são transmissões de vídeo realizadas no YouTube que, por serem feitas ao vivo, permitem que o produtor
de conteúdo interaja com os espectadores enquanto grava o vídeo.
205
compõem seu público, Letícia conseguiria, a um só tempo, livrar-se das amarras de ter que
produzir fotografias que julga incompatíveis com aquelas que gosta de fazer (as da noiva na
Limousine, que Letícia considera “horrível” constituem um bom exemplo destas) e, produzindo
registros que a deixam orgulhosa, poderia propor modelos inovadores de fotografia de
casamento.

Letícia declara atravessar uma longa crise traduzida em constantes incertezas quanto ao
seu futuro profissional, enquanto Fernando parece encarnar a antítese da crise ao mostrar-se
satisfeito com seus rumos profissionais que lhe permitem desfrutar de um mundo de carros
importados, grifes, relógios e sorrisos na mídia — em consonância com os valores que fizeram
fama dos empreendedores estudados por Lima (2008, pp.181-182). Ambos parecem migrar da
condição de fotógrafos de casamento para fotógrafos-palestrantes — Fernando já é
considerado um veterano nesta área enquanto a carreira de Letícia como palestrante encontra-
se em um estágio menos avançado. Também diferencia os dois projetos a motivação para
lançar-se nele: Letícia não consegue conjugar sua verve artística com o trabalho nos
casamentos. Fernando não demonstra grandes preocupações com a dimensão artística de seu
trabalho e parece encarar a fotografia como atividade comercial — não por acaso, fala
recorrentemente em suas palestras e vídeos sobre temas como a importância de “saber vender”
e de “agregar valor aos produtos”. Isto me pareceu particularmente claro quando assistindo ao
“documentário” sobre a vida de Fernando, me deparei com uma cena em que este fotógrafo
conversava com um colega diante da câmera que registrava o depoimento:

[sobre Fernando, que ouve com o queixo apoiado sobre as mãos, o colega diz] Tu fez
uma aposta num nicho de mercado que ninguém nunca atirou que é o luxo. “Ó, eu
fotografo luxo, começa em 30 e vai a 300 mil” (…) E aí aquele cara que consome dos
30 aos 300 mil basicamente hoje no Brasil só tem tu de fornecedor. Eu não vejo nenhum
concorrente em que tu encontra… né? [esticando os braços à frente do corpo num gesto
que, acompanhado de uma alteração na voz agora suavizada, me pareceu exprimir certo
deboche] “A arte… vou mostrar o que eu faço….” [retoma o tom de voz inicial] Não é
isso! O que a pessoa tá procurando é uma entrega perfeita, né cara?

Se Letícia e Fernando apresentam concepções de sucesso distintas e se eles divergem


quanto aos significados que conferem ao seu trabalho, por outro lado, percebo uma certa
semelhança entre os dois em relação ao modo como são reverenciados por outros fotógrafos de
casamento — levando-se em conta, é importante ressaltar mais uma vez, que as carreiras destes
206
profissionais não devem ser apreendidas de forma simétrica 128 . Uma olhada nos perfis de
Instagram dos dois fotógrafos me parece indicativa do lugar que eles ocupam naquele universo:
no perfil de Fernando, um post com uma imagem de um casal de noivos recebeu, dentre diversos
comentários, algumas declarações de admiração: “sou muito fã!”; “mestre sempre mestre”;
“Top top top”. Já no feed de Letícia, abaixo de uma foto de um casal de noivos dançando,
constam entre os comentários que aparecem ali: “Sou fã da tua fotografia”; “arrasa sempre!”;
“Que olhar parabéns só vitória”. Pelas reações que suscitam, tanto Letícia quanto Fernando,
guardadas devidas proporções em termos de popularidade, parecem ocupar posição elevada na
hierarquia dos fotógrafos de casamento. Ambos ministram palestras diante de grandes plateias
e são considerados fotógrafos top, mestres, referências, fontes de inspiração. Em suma, tanto
Fernando quanto Letícia usufruem de um tipo especial de autoridade no campo da fotografia
de casamento.
Dado que a atuação dupla do fotógrafo (que, além de registrar casamentos, desempenha
também o papel de ensinar fotógrafos menos experientes) está relacionada com a noção de
autoridade, proponho que recuperemos a reflexão de Pierre Clastres sobre o tema.
Considerando o contexto de sociedades “contra o Estado”, o autor constata que um “chefe” é
assim reconhecido em virtude do prestígio adquirido junto à sociedade. A autoridade depende,
portanto, da avaliação dos membros da tribo quanto à competência do “chefe” – competência
esta que, por sua vez, deve ser colocada a serviço do grupo. Posto de outro modo, a autoridade
é uma espécie de concessão e a prática do líder se dá sob estreito controle da sociedade que, ao
perceber, por parte do chefe, a tentativa de alterar a relação em seu proveito, o destitui de sua
posição de autoridade.
Entendo que a autoridade dos fotógrafos de casamento segue lógica semelhante, assim
como tenho razões para supor que a posição elevada na hierarquia dos fotógrafos em seu campo
de atuação não é uma posição estável. Ora, para que um profissional ocupe o lugar de mestre,
ele precisa, primeiro, angariar e depois manter um público interessado em frequentar suas
palestras; ver, comentar e dar likes nas fotos veiculadas em suas redes sociais; assistir aos
vídeos que veicula na internet e, claro, precisa que este público (ou ao menos, parte dele) esteja

128
Um parâmetro para comparar os diferentes graus de popularidade atual dos dois fotógrafos poderia ser o número
de seguidores de ambos no Instagram: no momento que redijo este capítulo (em novembro de 2018), Letícia possui
11,6 mil seguidores enquanto Fernando possui por 162 mil. Fernando é considerado um pioneiro na área de
coaching, cursos e palestras voltados a fotógrafos de casamento, enquanto Letícia procura consolidar-se na área
há poucos anos apenas.
207
disposto a pagar por workshops e cursos, apostando que o seu conteúdo lhe trará o retorno por
ele esperado. A questão que se coloca neste ponto é: quais são os requisitos necessários para
que o fotógrafo de casamento de destaque seja considerado merecedor de prestígio junto grupo?
Não me recordo de ter visto qualquer palestra ministrada por fotógrafos de casamento
que não compreendesse, já em seus minutos iniciais, uma apresentação de slides contendo
fotografias de sua própria autoria. A espécie de portfólio ali apresentado, quase sempre
acompanhado de música (de variados estilos, sendo os mais comuns, baladas que figuravam
nas paradas nacionais ou internacionais, mas também rock, indie ou música clássica)
funcionava como espécie de credencial. Exibir fotografias de casamento cuja qualidade técnica
e artística fosse apreciada pelos pares constituía uma espécie de requisito básico, uma condição
indispensável para que alguém fosse considerado um bom profissional. Porém, a fim de se
consolidar em posição de autoridade era preciso que o fotógrafo excedesse este papel.
Pensando nos diversos fotógrafos que ocupavam posições de destaque nos circuitos que
pesquisei, notei alguns outros elementos, para além da avaliação das fotografias que produziam,
que pareciam habilitar os profissionais a frequentar aqueles espaços de consagração. Os
prêmios concedidos por associações de fotógrafos, tanto nacionais quanto internacionais,
constituíam uma espécie de chancela que lhes conferia prestígio entre os pares. O número de
prêmios importava, mas havia também uma qualificação destes a partir de critérios muito
específicos. Via de regra, um prêmio internacional parecia pesar mais na avaliação positiva dos
fotógrafos de casamento do que um prêmio nacional129. Também ouvi de alguns interlocutores
que um prêmio concedido a um trabalho completo (um álbum de casamento, especificamente)
vale mais do que um prêmio concedido a fotos avulsas, já que “um álbum inteiro de qualidade
demonstra que o fotógrafo tem consistência”.
Como já deve ter ficado claro até aqui, a remuneração dos fotógrafos participava da
produção de prestígio entre os pares. Com efeito, parecia haver uma espécie de curiosidade
geral em torno de quanto um ou outro fotógrafo cobrava por seu trabalho. Neste sentido, um
interlocutor confidenciou que criar uma conta de e-mail com o objetivo de se passar por cliente
e então descobrir quanto cobravam os colegas é algo corriqueiro, que “todo mundo faz!”. Daí

129
Deve estar relacionado a este fato o esforço de associações como a Inspiration Photographers, promotora do
Lente de Ouro, em estabelecer-se como associação internacional (o que me parecia claro, por exemplo, quando
eles apresentavam o prêmio como “o Oscar da fotografia mundial” ou procuravam garantir a participação de
alguns profissionais estrangeiros na premiação. O mesmo parece valer para os congressos que pareciam
especialmente preocupados em assegurar a presença de palestrantes internacionais na programação.
208
um tipo de fofoca depreciativa bastante popular no universo pesquisado: a dos fotógrafos que
diziam cobrar vários milhares de reais pela cobertura fotográfica, mas que diante de pedidos de
orçamento dos clientes, enviavam propostas com preços muito abaixo daqueles que divulgados
entre os pares.
O número de vezes em que um determinado fotógrafo proferia palestras — bem como
as características destas — era outro aspecto importante para a construção de sua reputação
entre os pares. Quanto mais numerosas suas plateias, maior o prestígio obtido pelo palestrante.
Ministrar palestras no exterior constituía experiência ainda mais valiosa para sua reputação
profissional. Este podia ser, inclusive, o ponto determinante para que um fotógrafo-palestrante
fosse apresentado (por ele mesmo ou por terceiros) como “fotógrafo de casamento de renome
internacional” ou “profissional reconhecido no mundo todo”, por exemplo.
Se os ritos matrimoniais propriamente ditos não eram espaços nos quais os fotógrafos
construíam suas reputações diante de seus pares, as fotografias ali capturadas eram manejadas
de modo a cumprir este propósito. Assim, fotografar casamentos que acontecessem em lugares
banhados pelo “verniz de glamour” do qual fala Kulick (2008 [1998], p.190) para explicar o
alto valor atribuído por suas interlocutoras aos produtos de países considerados de Primeiro
Mundo, impactava positivamente no prestígio dos fotógrafos de casamento130: isto vale tanto
para casamentos realizados no exterior, quanto para casas de festas que gozavam de certo
renome. Não menos importante eram os clientes fotografados pelos profissionais: ser
contratado por celebridades em geral (modelos, atores, esportistas famosos e grandes
empresários, por exemplo) podia render fotografias valiosas no sentido de permitir que o
fotógrafo de casamento acumulasse capital simbólico junto aos colegas de profissão.
A fim de manter sua posição de autoridade entre fotógrafos de casamento, os
profissionais que ocupavam este posto empreendiam esforços contínuos alimentando suas redes
sociais (muitas vezes com depoimentos de alunos que forneciam testemunhos sobre a
transformação que seus mestres operavam em suas vidas), divulgando novas fotografias de sua
autoria, comunicando ao seu público potencial os seus feitos enquanto
palestrantes/professores/mentores. Mas, para além da questão técnica, estética e artística de seu
trabalho, havia um importante elemento a ser levado em conta quando tratamos dos fotógrafos-

130
Certa vez, ouvi Alexandre lamentar por ter “perdido a grande oportunidade” de ir fotografar um casamento que
aconteceria em Paris, projeto para o qual estava disposto a abrir mão da remuneração (já que os noivos arcariam
com as despesas da viagem). Já os Werneck, foram mais afortunados neste sentido e me contaram ter conseguido,
num esquema semelhante, ser levados por seus noivos à capital francesa a fim de fotografar um ensaio.
209
palestrantes que ocupavam posições de proeminência no universo da fotografia de casamento:
eles eram também porta-vozes e representantes de certos “mundos morais”. Eles colocavam em
jogo concepções sobre o amor, sobre o casamento, sobre família e sobre o trabalho, ao mesmo
tempo reificando e construindo posições morais.

Sobre a dimensão técnico-moral

Ao exibir as fotografias dos casamentos que registravam, ao enunciar os predicados que


consideravam necessários para que o fotógrafo de casamento tivesse uma carreira bem
sucedida, ao dirigir críticas aos colegas de profissão ou ao tratar sobre os modos como se
relacionavam com seus clientes, os fotógrafos de casamento atribuíam significados ao seu
trabalho ao passo que também delineavam moralidades. Assim como a relação entre fotógrafos
e noivos pressupunha, ao menos idealmente, uma compatibilidade entre os “mundos morais”
— aqui compreendidos como o conjunto de “suas experiências, seus saberes adquiridos, seus
convencimentos, certezas e crenças, suas emoções e sentimentos” (Pita, 2010, sem paginação,
tradução minha131) —, também a relação dos fotógrafos-palestrantes e público parecia repousar
sobre esta premissa. Fotógrafos que ocupavam posição de proeminência nos circuitos de
consagração aparentavam ter consciência disto e, em alguma medida, faziam concessões a fim
de estabelecer (ou em alguns casos, de preservar) sua autoridade naquele universo132. A história
que me foi contada por Letícia na ocasião de nosso último encontro, quando me colocava a par
de seus feitos nos meses anteriores, parece ilustrar bem isto. A fim de apresentá-la ao leitor, um
breve preâmbulo faz-se necessário.
Ao longo dos meses de trabalho de campo, em minhas conversas com Letícia, volta e
meia ela fazia referência a algo que chamava, não sem certa dose ironia, de Photogod.
Photogod, segundo Letícia, era “o deus da fotografia”, a força misteriosa que fazia com que
coisas interessantes acontecessem diante de sua câmera, contanto que ela tivesse paciência para
esperar por elas e sensibilidade para capturá-las. Neste deus, minha interlocutora declarava

131
Do original: “sus experiencias, sus saberes adquiridos, sus convencimientos, certezas y creencias, sus
emociones y sentimientos”.
132
Nesse sentido, a conformação desses “mundos morais”, mais uma vez, pode ser pensada através da noção de
“moralidades situacionais”, proposta por Eilbaum (2012), no sentido de enfatizar como as moralidades são
construídas e mobilizadas a partir das interações (negociações, tensões e alianças) entre atores específicos em
contextos particulares.
210
acreditar piamente. O tema apareceu, por exemplo, em uma de nossas conversas pelo aplicativo
do Facebook:

Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:02 UTC-03


eu não acredito em deus
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:02 UTC-03
mas eu acredito no deus da fotografia
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:02 UTC-03
e se vc acredita nele, ele faz as coisas aparecer no seu quadro de forma mágica
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:02 UTC-03
hahahah
Cristina Marins, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:02 UTC-03
!!!
Cristina MarinsQuarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
Tipo, não reza na turbulência, mas quando tá fotografando sim
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
outro dia, num casamento, eu apontei a câmera pra uma cena que tava uma criança
brincando na igreja, na hora que apontei, um cara atrás dela bocejou
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
isso foi ele ☝
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
heauheu
(…)
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
photogod
Cristina MarinsQuarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
Hahahahahaha
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:03 UTC-03
no geral é só ter paciência
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:04 UTC-03
enquadrar a cena e esperar
Letícia Katz, Quarta, 27 de julho de 2016 às 20:04 UTC-03
pq sempre vai acontecer alguma coisa

Pois bem. Durante nosso encontro, Letícia descreveu sua participação na edição de 2018
do Wedding Brasil, desta vez como palestrante do palco principal. A fotógrafa contou ter falado
ao público sobre Photogod, mais ou menos nos mesmos termos que apresentou o conceito para
mim. O problema que ela não fora capaz de prever é que, assim que ela introduziu o tema
afirmando não acreditar em Deus, pessoas que estavam na plateia se incomodaram com a
declaração — algumas a tal ponto que se levantaram e deixaram o auditório no mesmo instante.

211
Letícia contou ainda que, após sua palestra, ouviu dos organizadores do evento um pedido para
que ela “tomasse cuidado” com este tipo de declaração já que uma parte do público poderia se
ofender. Tratando o episódio como uma “mancada”, Letícia admitia que era preciso ficar mais
atenta, embora também não se furtasse de demonstrar espanto com a reação do público e dos
organizadores: “você acredita numa coisa dessas?”.
Assim como Letícia, outros fotógrafos demonstravam preocupação a respeito do que
poderia ou não ser dito nos circuitos de produção de consagração. Isto me levou a constatar que
a busca pela legitimidade a partir da produção de um discurso afinado com valores do grupo,
não raro requer que os fotógrafos façam determinadas concessões — como é o caso de Letícia
que, embora continue falando sobre seu ateísmo em outras situações, entende que é mais
prudente evitar o tema ao discursar para certas plateias. Outras situações me fizeram pensar
neste processo. Francisco Salles, por exemplo, quando perguntado sobre eventuais reveses de
sua bem-sucedida carreira sobre o palco do Congresso Fotografar, mencionou em sua resposta
o fim de seu casamento acrescentando que considerava ter se tornado “um pai de verdade”
apenas quando sua filha fez quatro anos. Ao meu ver, o que Francisco fazia, se aproximava de
formular publicamente um pedido de desculpas por não ter, durante alguns anos, correspondido
à figura idealizada de “bom pai e bom marido”, tantas vezes apregoadas naquele universo.
Em investigação sobre as perturbações físico-morais que acometem classes
trabalhadoras urbanas, as dimensões físicas e morais do indivíduo são conjugadas por Duarte
(1986) como estratégia analítica. Inspirada em sua tese, meu argumento é o de que o trabalho
dos fotógrafos que conformam meu universo de pesquisa deve ser analisado a partir da
articulação das dimensões técnicas e morais que concernem às atividades profissionais de meus
interlocutores. A técnica, espero ter sido capaz de demonstrar até aqui, é fundamental para a
inserção dos fotógrafos de casamento nos circuitos de consagração. Contudo, a técnica não se
sustenta sozinha e, ao que tudo indica, requer uma qualificação moral.
A fim de galgar posições na escala de prestígio daquele universo, meus interlocutores
parecem engajar-se em um processo coletivo de engrandecimento da atividade, o que se faz,
em grande medida, através de determinadas modalidades de moralização da figura do fotógrafo
de casamento. Os sujeitos que se ocupam de registrar ritos matrimoniais e que, integrando
circuitos de consagração, elaboram sobre as imagens que ali produzem e sobre os significados
a elas atribuídos, ao fazê-lo, prescrevem formas de família, de casamento, de amor e, por que
não dizer, de sociedade.

212
Entre tretas e polêmicas: moralidades em disputa

A imagem postada em um grupo de Facebook que reunia milhares de fotógrafos de


casamento em muito se assemelhava a tantas outras publicadas ali diariamente. O cenário era
uma praia e, pela suavidade da luz, a fotografia deve ter sido capturada ao nascer ou ao pôr-do-
sol. Pelo modo como se olhava, o casal abraçado parecia prestes a se beijar. Sem saber o
contexto em que a foto foi produzida, mas considerando as incontáveis imagens deste tipo que
vi durante o trabalho de campo, diria que ela fora capturada no próprio dia do casamento ou
talvez semanas antes, como parte de uma sessão fotográfica que meus interlocutores
convencionavam chamar de ensaio ou pré-wedding. A legenda escolhida pelo autor da foto
soava quase como uma justificativa para o fato de se tratar de um casal de rapazes:
“consideramos justa toda forma de amor”.
Na caixa destinada aos comentários, surgiram diversas mensagens de congratulação ao
autor da foto. Estas mencionavam, em especial, a composição, as cores e a sensibilidade do
fotógrafo, que teria sido capaz de “captar o sentimento do casal”. Um ou outro comentário
sugeriam uma correção no enquadramento: “o casal deveria estar um pouco mais para o centro”.
O tom da conversa foi alterado pela reação que, segundo indicavam a foto de perfil e o nome
que ladeavam o comentário, partira de um rapaz: “Que bosta ### hem, onde isso é
bonito?!?!?!”. Em novo comentário, publicado logo abaixo, acrescentou: “Será que estou errado
em achar ridículo?!?!”.
O autor da foto foi o primeiro a responder: "Pode até não gostar da foto! Agora ser
preconceituoso! chamando de merda! Não é legal! Respeito é bom!”. Logo, outras pessoas se
empenharam em repreender o que classificavam como “comentários homofóbicos”: “Acho que
vc deveria ter o mínimo de respeito”, disse alguém. “Homofobia além de ser errado é crime,
querido... preconceituosos é que são uma bosta!”, comentou outra pessoa. Houve quem
intercedesse em defesa do rapaz que classificava a imagem como ridícula: “A composição tá
boa, mas nunca vou achar bonito dois homens…”. Sinais de polegar para cima que surgiam ao
lado dos comentários indicavam que a aprovação da fotografia em questão superava, em muito,
às críticas que ela recebera. Ainda assim, o debate se estendera:

213
Rapaz 1: Vou parar por aqui, vou acabar sendo enquadrado na lei Mário da Penha !!
Rapaz 2: Se eu fosse o adm [o administrador do grupo, que tinha o poder de banir a
presença de certos participantes — o que parecia ser feito naquele grupo de tempos em
tempos] vc já estaria fora há muito tempo seu homofóbico ignorante hipócrita
Moça 1: #saidogrupo
(…)
Rapaz 1: fico pensando o que meu avô diria sobre isso, fale o que quiser amigo.
Rapaz 1: Se o Adm quiser me tira tranquilo, falei o que penso e essa sempre será minha
opinião.
Rapaz 2: Vaza daqui seu homofóbico
Rapaz 2: Pense antes de falar essas suas ignorâncias
Rapaz 1: Vou continuar com o msm meu camarada até o fim da ultima respiração.
Rapaz 1: Ah… só pra vc ficar sabendo, tive um gay como padrinho do meu casamento,
abç pra vc blz.
Rapaz 2: teve um gay como padrinho e pq é tão ignorante falando essas coisas animal
Rapaz 1: Não tenho nada contra ninguem, cada dar o quer é seu kkk sou contra essa
viadagem toda como se fosse a coisa mais bonita do mundo. Eu animal???

As divergências entre os membros do grupo que debatiam sobre as formas de


classificação das fotografias publicadas naquele espaço não eram exceção, mas surgiam de
tempos em tempos. No caso dos registros realizados por ocasião de casamentos homo afetivos,
a polêmica não era de todo incomum, embora houvesse também diversas outras situações nas
quais fotografias deste tipo eram publicadas sem que provocassem qualquer agitação.
Outra postagem, do ano de 2015, que deu início a uma intensa discussão entre os
fotógrafos de casamento que integravam um grupo de Facebook, exibia um par de alianças.
Mais uma vez, a fotografia seria comum, não fosse por um detalhe: no caso, os anéis
repousavam sobre duas pistolas, postas lado a lado, sendo que a fim de capturar a imagem, o
fotógrafo deve ter se colocado de frente para as bocas dos canos — o que dava o sentimento,
para quem via a imagem, de estar sob a mira das armas. Lendo os 136 comentários que seguiam
à publicação da fotografia, notei que boa parte deles expressava, com poucas palavras, apreço
pela imagem: “foto top”; “muito loko”; “fodástica”; “adorei”; “parabéns pela ousadia”. Houve
também quem tivesse deixado na caixa destinada aos comentários, de maneira igualmente
sucinta, sua reprovação: “de péssimo gosto”. Embora fossem poucas as críticas negativas ali
(por exemplo, alguém escreveu “em um momento que se discute a violência urbana, esse cara
me vem com essa. Nem pensou no que produziu”), estas despertaram reações inflamadas, por
assim dizer. A frase que reproduzo a seguir é mostra disso: “Esses politicamente corretos de
merda me dão ódio”. Não foram poucos os que argumentaram a favor das armas, replicando
214
que estas evocavam, não a ideia de violência, mas de proteção: “Sim, a violência está
generalizada, mas isso foi pq tiraram as armas das pessoas de bem, e deixaram as de pessoas
criminalizadas. Linda foto. E #foraPT.” Eram numerosos ainda aqueles que procuravam
justificar a fotografia a partir de uma associação entre as pistolas e a ideia de “amor”: “Isso
demonstra o amor por trás das fardas! Muito bonito!! Se eu fosse policial faria o mesmo!
Parabéns ao casal e ao fotógrafo”; ou ainda:

No mínimo os noivos devem ser policiais e, possivelmente, se conheceram lá dentro,


tornando a arma, símbolo de sua função, algo importante, algo que os uniu. Galera
escrota na moral. Quer ser correto? Diferente? Ore pela situação do nosso país, Ore pela
redução da violência. Ore pelos bandidos, para que se arrependam de seus atos. E
PAREM DE TANTO MIMIMI

Não seria difícil encontrar dezenas de casos ilustrativos da dinâmica assumida pelas
tretas no Facebook. Com efeito, minha participação naquela rede social facultava meu acesso
a situações de disputas e enfrentamentos, algo que eu não fora capaz de observar nos circuitos
off-line de consagração. Ao contrário, a julgar pelo que eu observava sobre os palcos, tudo me
parecia deveras harmonioso. No máximo, os conflitos entre os integrantes daqueles circuitos se
revelavam em um ou outro diálogo entreouvido durante os intervalos das palestras ou ainda,
em certos casos, em conversas privadas que pude travar com alguns fotógrafos. Concebendo o
Facebook como locus privilegiado no qual moralidades distintas eram postas em disputa,
procurei entender como se construíam essas diferenças e, especialmente, essas formas de
administração dos conflitos surgidos nesse espaço. Ao final, eles pareciam se vincular também
com os modos de construção (e de destruição) de reputação, sobretudo se levarmos em conta o
papel das fofocas elogiosas e depreciativas propostas por Elias e Scotson (2000[1965]).
Diferentemente de outras perspectivas antropológicas sobre “moral” que trabalham em
contextos de moralidades radicalmente distintas e as consideram parte possível de uma
comunidade de argumentação (Oliveira, 1994, sem paginação 133 ), meus dados de campo
apontavam para uma ausência do processo de negociação dos distintos pontos de vista ali
apresentados. Ao contrário, os posts que os próprios fotógrafos de casamento classificavam

133
Nesse artigo, Oliveira apresenta um caso observado, por ele e por Charles Wagley, de choque entre valores
ocidentais (ou cristãos) e valores tribais, em encontro entre os Tapirapé e missionárias católicas presentes na aldeia,
em relação à prática classificada como “infanticídio”.
215
como polêmicos apresentavam o confronto de moralidades distintas, sem o “padrão
democrático de sociabilidade” ao qual se refere Oliveira.
Antes, tratavam-se de situações de disputa marcadas pela pretensa eliminação do outro
nas discussões. Neste sentido, aqueles que compartilhavam aqueles espaços lançavam mão de
expedientes observados de maneira recorrente. A sugestão para que o indivíduo que defende
posição contrária se retirasse (ou fosse retirado) do grupo era um deles. A deslegitimação do
debate (quando, por exemplo, era classificado como mimimi ou, de maneira pejorativa, como
politicamente correto) constituía outro artifício. Nesse sentido, o modo de lidar com as tensões
e disputas suscitadas e atravessadas por moralidades distintas evidenciava formas de
administração de conflitos repressivas e intolerantes da diferença entre pontos de vista distintos,
conforme já apontaram Roberto Da Matta (1997) e Roberto Kant de Lima (2008) como formas
características da sociedade brasileira.
Por sua vez, observando as tretas no Facebook e considerando que, segundo
sinalizavam meus interlocutores, o prestígio dos fotógrafos de casamento era (não só, mas
também) sinalizado pelo número de curtidas e comentários que eram capazes de angariar em
suas redes sociais, não deixo de pensar que as polêmicas constituíam meios eficazes para a
construção de reputação dos fotógrafos — em especial para aqueles que não possuíam (ainda)
notoriedade dentro do grupo.

216
Considerações finais

Numa manhã de novembro do ano de 2016, adentrei as instalações de um teatro na


região sul do país para acompanhar mais um evento como parte de meu trabalho de campo. O
espaço, segundo meus cálculos, tinha capacidade para abrigar algo em torno de três centenas
de pessoas. Por ali passariam, durante o dia inteiro, alguns dos fotógrafos de casamento mais
conhecidos em meu universo de pesquisa. Eu sabia, pela minha experiência já de alguns meses
no campo, que aqueles eram palestrantes habituados a falar diante de plateias numerosas. Foi,
portanto, com certa surpresa que, observando o teatro no horário previsto para o início das
palestras, constatei que os presentes não somavam número suficiente para ocupar sequer um
décimo dos assentos disponíveis ali. Suspeitando que o fracasso de público seria encarado com
preocupação pelos organizadores, presumi que eles aguardariam a chegada de novos
espectadores antes de iniciar as atividades. Tratei assim de me acomodar em uma das muitas
poltronas vazias ao fundo do teatro, aproveitando para colocar em dia alguns registros em meu
caderno de campo.

Quarenta minutos após minha chegada, o número de espectadores mal havia sido
alterado. Diferente, contudo, era a atitude dos presentes que começavam a dar claros sinais de
inquietação: remexiam-se nas cadeiras, iluminavam as telas de seus smartphones repetidas
vezes a fim de verificar as horas e, os mais impacientes, se levantavam e teciam queixas aos
colegas. Eu começava a me convencer de que, aos organizadores, não havia remédio senão
iniciar as atividades com o auditório esvaziado – o que, de fato, não demoraria a ocorrer. Antes
disso, porém, um rapaz jovem, vestindo uma camiseta preta que estampava a logomarca de uma
empresa de filmagem subiu ao palco e disse: “pessoal, eu preciso pegar todo mundo
chegando!”. Em seguida, sem maiores explicações, pediu que todos deixássemos nossos lugares
e que nos dirigíssemos até o exterior do teatro.

Se recebi o apelo do rapaz da filmagem com certo constrangimento, meus colegas de


plateia, por outro lado, o acataram com aparente naturalidade, iniciando prontamente uma
caminhada até a parte externa do edifício. Achei por bem acompanha-los e, ao chegarmos numa
espécie de praça do lado de fora do teatro, continuamos recebendo instruções. “Ô pessoal, não
fica tão junto! Tenta se espalhar um pouco pra parecer mais natural”, disse o rapaz da camiseta
preta enquanto gesticulava indicando nossas posições. Procurando desempenhar o papel que
me foi incumbido, ao sinal dado por alguém da equipe organizadora, caminhei para dentro do
217
auditório simulando uma conversa animada com um desconhecido. Embora eu tentasse
imprimir à minha atuação alguma espontaneidade, era para mim impossível desviar a atenção
do zumbido do drone que sobrevoava nossas cabeças e do ruído das lentes operadas por
profissionais empenhados em captar imagens do grupo também pela lateral. Ao final da ação,
que durou não mais que poucos minutos, retomamos nossos lugares e foi dado início ao evento
que transcorreu sem percalços evidentes. À medida que as horas passavam, a plateia receberia
novos integrantes, mas estes, nem de longe, formavam número suficiente para preencher as
cadeiras que permaneceriam vazias até o fim do dia, em sua maior parte.

Algumas semanas após a realização do evento, foram divulgadas as imagens capturadas


na ocasião. Confirmando minhas expectativas, observei que nas fotos e vídeo divulgados pelos
organizadores, o evento parecia consideravelmente mais cheio do que eu havia verificado
pessoalmente. Posto que eu já acumulava razoável experiência de observação etnográfica, tendo
inclusive exercido o papel de aprendiz de fotógrafa, eu estava certa de que isto não era fruto de
acaso. Ao contrário, eu podia identificar ali alguns artifícios dos quais lançavam mão os
fotógrafos e videomakers (tais como escolhas dos ângulos para captura das imagens, mas
também direção e edição) que lhes permitiam criar aquele efeito.

O momento de nossa entrada no teatro não foi o único em que o público fora dirigido
naquele evento ou em outro dos quais participei. Em congressos e seminários, era de praxe ao
final de apresentações que os organizadores fizessem registros dos palestrantes em primeiro
plano com os espectadores ao fundo. Caso o auditório estivesse esvaziado, pedia-se que todos
se reunissem no centro do espaço. Mesmo diante de auditórios lotados, era comum que a plateia
acatasse pedidos dos responsáveis pelos registros: “coloquem as mãos para o alto...”; “quero
ver animação”. O que ocorreu no teatro ao sul do país foi, sem dúvida, a encenação mais
elaborada que testemunhei. Mas de modo algum tratava-se de um caso isolado – tanto que meus
companheiros de plateia prontamente compreenderam o que se passava e demostraram uma
atitude colaborativa com os organizadores.

Mesmo antes de iniciar o trabalho de campo entre fotógrafos de casamento eu tinha


ideia do importante papel destes profissionais na produção de narrativas sobre os eventos que
registram. Afinal de contas, em minha pesquisa anterior, não foram poucas as vezes em que
ouvi cerimonialistas discursarem sobre como a fotografia era elemento capaz de contribuir para
a construção de certas representações em torno de um evento. Diziam os meus interlocutores
então que o “bom fotógrafo” é capaz de fazer uma festa desanimada parecer animada ou uma
218
“decoração pobre” parecer “estilosa”, por exemplo. Tampouco foram poucas as vezes que, já
na pesquisa de doutorado, ouvi de meus interlocutores falas semelhantes – algumas das quais
foram expostas ao longo desta tese. Mas havia algo do qual eu não havia me dado conta, pelo
menos não até estágio bastante avançado do trabalho de campo, a saber: mais do que construir,
a partir de sua atividade de fotografar casamentos, representações acerca destes rituais, meus
interlocutores estavam intensamente engajados em processos de construção de narrativas sobre
sua própria profissão e sobre suas carreiras.

Após ter participado como etnógrafa de circuitos de fotógrafos de casamento (que


incluíam premiações, palestras e congressos), constatei que aqueles espaços de produção de
reputação formavam também um mercado assentado sobre duas premissas básicas. A primeira
delas era a da fotografia de casamento como uma atividade profissional promissora, uma
espécie de via expressa para uma vida próspera, tanto em termos materiais, quanto em termos
de realização pessoal. A segunda premissa era de que tal prosperidade estaria ao alcance de
qualquer pessoa, desde que ela estivesse disposta a fazer sacrifícios investindo na carreira
através dos estudos e do trabalho duro.

Por outro lado, eu achava curioso observar que muito embora as vantagens do trabalho
dos fotógrafos de casamento fossem anunciadas insistentemente, quanto mais bem-sucedidos
fossem considerados os profissionais, estes pareciam cada vez menos dispostos a exercer a
atividade para desempenhar novos papéis de palestrantes, mentores, coaches, mestres. Isto fazia
com que eu questionasse a solidez das vantagens da profissão propagadas sobre os palcos dos
eventos que eu vinha frequentando: e se, à semelhança das imagens veiculadas da plateia que
adentrava o teatro naquela manhã de novembro, parte considerável do sucesso dos profissionais
fosse produto de uma construção de narrativa sobre suas carreiras que não necessariamente
guardava relação fidedigna com a realidade?

Embora diversas tenham sido as vezes que, ao longo do trabalho de campo, eu tenha
julgado pouco verossímeis certos discursos com os quais me deparava, eu não dispunha (e não
disponho ainda hoje) de meios para aferir sua autenticidade. Contudo, após ter me colocado na
companhia – fosse ela presencial ou online – dos fotógrafos de casamento que ocupavam
posições diversas na hierarquia informal da profissão, dei como certa a existência de uma lacuna
considerável que separava as descrições arrebatadas da profissão, propaladas pelos fotógrafos-
palestrantes, e o cotidiano deles próprios e daqueles que ocupavam lugares nas plateias dos
eventos. A leitura do trabalho de Rosenblat (2018), autora que realizou pesquisa etnográfica
219
junto a motoristas que transportam passageiros com o intermédio do aplicativo Uber, foi, neste
sentido, elucidativa. E ainda que sejam substanciais as distâncias entre nossos objetos de
reflexão – dentre elas o fato de que Rosenblat trata de uma empresa multinacional que se tornou
um “símbolo da nova economia”134 (2018, pp. 1-20) – apresento ao leitor alguns pontos de
contato entre os dois estudos.

O primeiro aspecto merecedor de destaque é que, tanto o transporte de passageiros


mediado por aplicativos quanto a fotografia de casamento oferecem oportunidades de trabalho
com barreiras de entrada reduzidas135. Se para dirigir para a Uber basta que alguém disponha
de um automóvel e passe por uma verificação de antecedentes (op. cit., p.3), fotografar
casamentos é, conforme mencionei na introdução deste trabalho, atividade que pode ser
desempenhada por qualquer pessoa de posse de uma câmera que se disponha a fazê-lo. Nos
últimos anos em especial, com a disseminação de ferramentas digitais, as barreiras de entrada
na profissão se tornaram ainda menores, dentre outras razões, porque elas democratizaram o
acesso ao conhecimento de ordem técnica indispensável ao exercício da profissão.

O segundo ponto enfatizado por Rosenblat que destaco se relaciona ao contexto de


florescimento do Uber. Conforme descreve a autora, o modelo de trabalho da empresa (cujo
aplicativo fora lançado pela primeira vez em 2010) nasceu na esteira da chamada Grande
Recessão, período iniciado com a falência do banco de investimentos americano Lehman
Brothers e o estouro de uma bolha imobiliária no país que levaram à instauração de uma crise
global em 2008. Num cenário de incertezas – no debate público, ganhava destaque a
possibilidade de diversos postos de trabalho serem extintos como consequência de um crescente
processo de automação – empresas de tecnologia como a Uber empregavam uma linguagem de
criação de emprego, surgindo assim como uma promessa salvacionista para uma população
estremecida pela Grande Recessão. Tratou-se, segundo Rosenblat, de um movimento
tecnológico mais amplo que “capitalizou sobre a instabilidade econômica da Grande Recessão
para vender uma narrativa” (2018, pp. 21-22)136. A fim de recrutar a força de trabalho que
conduziria passageiros através do aplicativo, a companhia dedicou um esforço cuidadoso de
comunicação que conferia boa dose de glamour à atividade de transportar passageiros (pp.34-

134
Faço uma tradução aqui do subtítulo da introdução do livro. No idioma original: “Uber as a Symbol of the New
Economy”.
135
Traduzido do original: “Low-barrier-to-entry employment opportunities”.
136
Traduzido do original: “…capitalized on the economic instability of the Great Recession to sell a narrative”.

220
38). Nas palavras da autora: “Uber e outras plataformas on-demand introjetavam um status
social mais elevado em trabalhos que por muito tempo foram associados a trabalhadores de
estratos mais baixos”137.

Espero ter consigo demonstrar ao longo desta tese que também a fotografia de
casamento foi atividade que, nos últimos anos, passou por um processo de glamourização
semelhante à descrição apresentada por Rosenblat. Os discursos idealizados que procurei
explorar, em especial, nos capítulos 1, 2, 4 e 5 parecem cumprir um papel de ressignificação da
profissão. Assim, se no passado a fotografia de casamento parecia ser atividade monótona,
repetitiva e pouco rentável, os discursos de meus interlocutores apontavam para transformações
que teriam feito dela uma prática profissional dinâmica, moralmente edificadora e promotora
de ascensão social. Contudo, assim como entre a propaganda e a realidade dos motoristas do
Uber há uma distância considerável, também percebo uma lacuna significativa entre as
representações enaltecedoras da profissão que predominavam nos discursos públicos e minhas
observações em campo. Neste sentido, chamava minha atenção o silêncio quase absoluto a
respeito de uma imensa carga de trabalho que naquele universo era realizado sem qualquer
retorno financeiro – e, não raro, consumia recursos substanciais. Em se tratando de fotógrafos
proeminentes naquele universo, por exemplo, atividades tais como gerenciar seus perfis em
redes sociais, alimentar blogs, inscrever-se em premiações ou produzir vídeos voltados para os
pares eram atividades que exigiam, ao menos, grande dedicação de tempo e energia. Nada
incomum era que a fim de ministrar palestras pelo país, os profissionais arcassem eles próprios
com elevados custos de viagens. Além disso, segundo me foi relatado em diversas ocasiões,
ainda que as empresas promotoras dos eventos lucrem com a venda de ingressos aos ouvintes,
é algo raro que os palestrantes sejam remunerados por suas apresentações: “no máximo os
palestrantes mais conhecidos recebem um valor simbólico”, conforme afirmou um de meus
entrevistados.

Em conversas privadas e pontuais, ouvi meus interlocutores tratarem de suas frustrações


diante da dinâmica dos circuitos de produção de reputação. Nestes momentos, eles
denunciavam certos organizadores dos eventos e associações, empregando expressões como
“exploração” e “falcatrua”. Além disso, afirmavam eles, em termos práticos suas participações
nestes circuitos não geravam retornos concretos. Por outro lado, eles admitiam que “pagar para

137
Traduzido do original: “Uber and other on-demand platforms project a higher social status onto work that has
long been associated with lower-status workers”.
221
trabalhar” era algo feito não só com a esperança de algum dia recuperar o investimento, mas
também pelo prazer de obter de seus pares reconhecimento. Certa vez, enquanto eu conversava
com fotógrafos de casamento reunidos em um bar na véspera da premiação mencionada na
introdução da tese, ouvi um deles contar, com evidente entusiasmo, que naquele dia havia sido
abordado diversas vezes por outros fotógrafos que declaravam sua admiração, numa atitude de
fã que encontra seu ídolo. A julgar pelo tom da fala de meu interlocutor, parecia claro que tais
encontros eram experimentados com grande deleite, o que foi confirmado quando, mais adiante
na conversa, o ouvi declarar que “no fim das contas vale a pena o esforço” de arcar com os
custos envolvidos em sua participação na premiação. Lembranças como esta me permitem
vislumbrar a dificuldade de distinguir as relações de trabalho e de consumo no universo que
pesquisei.

A constatação de que os esforços profissionais malogrados eram silenciados no discurso


público, mas se faziam discretamente presentes em conversas particulares sugeria que a
promessa de prosperidade através da fotografia de casamento constituía condição sine qua non
de um mercado que desloca os fotógrafos de casamento do papel de produtores para
consumidores. Neste sentido, a promessa das benesses materiais e imateriais possibilitadas por
uma carreira supostamente ao alcance de qualquer um, eram fundamentais para a garantia do
fluxo de público pagante de congressos, dos seguidores nas redes sociais, dos alunos de
workshop. Eu me perguntava então o que ocorreria se, nos circuitos pesquisados, os fotógrafos-
palestrantes enfatizassem que, além do senso de honra engendrado pela atividade de “registrar
o nascimento de uma família” (conforme chamei atenção no quinto capítulo), o cotidiano da
profissão era também marcado pelo tédio, dado o caráter repetitivo do ritual de casamento? E
se tratassem publicamente da ansiedade decorrente da remuneração incerta com a mesma
eloquência com que expunham as conquistas de sua carreira? E se os fotógrafos de casamento
discorressem de maneira aberta sobre os esforços dedicados à construção de suas carreiras que,
segundo eles próprios, pareciam ter sido em vão? Suspeito que, fosse este o caso, diversos
profissionais que encontrei ao longo da pesquisa perceberiam em seu trabalho condições de
precariedade, ao menos em certo grau. Contudo, não só isto não ocorria, como o insucesso era
retratado quase sempre como etapa a ser superada: caso os negócios não fossem bem, era
necessário se motivar mais, aprender mais, trabalhar mais. Frequentar eventos, inscrever-se
em cursos, assistir vídeos eram alguns dos caminhos apontados para, finalmente, “atingir seus
objetivos” – para utilizar uma expressão que aparecia com frequência nos correios eletrônicos

222
promocionais que, diariamente, inundavam minha caixa de mensagens desde que iniciei a
pesquisa junto aos fotógrafos de casamento.

Se fui capaz de testemunhar com esta pesquisa um mercado em operação no qual os


fotógrafos de casamento são, além de produtores, consumidores de bens e serviços, parece-me
fundamental a observação de que o florescimento deste mercado se dá em um contexto de
crescente centralidade das ferramentas digitais e das redes sociais no mundo contemporâneo138.
Esta tese é, assim, o registro de uma pesquisa que nasce do interesse pelos rituais matrimoniais
que é deslocado para o trabalho dos fotógrafos de casamento e que se torna, enfim, reveladora
também de transformações profundas ocorridas nesta profissão ao longo dos últimos anos.
Neste sentido, vale destacar que as ferramentas digitais reconfiguraram a atividade em termos
da estética das imagens que os profissionais produzem, do modo como se relacionam com seus
clientes e de novas disposições hierárquicas dentro deste campo profissional. Observando, em
especial, a mescla entre os papéis de produção e consumo inaugurada nos últimos anos, encerro
esta tese expondo o desafio que temos à frente nas ciências sociais para a compreensão do tema
das profissões e do trabalho na era digital. Creio, neste sentido, que será necessário, inclusive,
revisar nossos marcos metodológicos, criando condições de domesticar a fluidez de um campo
que, de maneira crescente, envolve contextos de pesquisa heterogêneos, desprovidos de limites
geográficos bem definidos e costurado pelo universo digital. Há muito trabalho pela frente,
pois.

138
Alguns trabalhos recentemente publicados apresentam reflexões sobre este fenômeno. Ver, por exemplo: Earl
e Kimport (2011), Scalco e Ribeiro (2017), Miller (2011) e Marcon (2018).
223
Referências Bibliográficas

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Representações sobre casamento, parentesco e conjugalidade em contextos de ritualização e
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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001

This study was financed in part by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior – Brasil (CAPES) – Finance Code 001

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