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ASSIS
2017
SARA MEXKO
ASSIS
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp
Mexko, Sara
M611p Psicologia e assistência social: contribuições da psicanálise
de Freud e Lacan e do materialismo histórico / Sara Mexko.
Assis, 2017.
128 f.
CDD 150
368.4
Aos trabalhadores – e trabalhadores em formação – do campo da
Assistência Social. Que possamos ter o olhar crítico e o desejo de lutar
para construir um mundo melhor para todos nós.
AGRADECIMENTOS
Resumo: Nosso objetivo principal foi pensar o que pode fazer um psicólogo precavido
pela Psicanálise de Freud e Lacan e pelo Materialismo Histórico de Marx no campo da
Assistência Social. Partimos do Dispositivo Intercessor como um novo meio de produção
de saber na práxis comum (trabalho) e meio de produção de conhecimento na práxis
universitária. O Dispositivo Intercessor parte de dois momentos de produção
radicalmente diferentes: o momento da práxis institucional junto aos sujeitos e no coletivo
de trabalho, e o momento da reflexão teórica, produzida a posteriori, sobre as vivências,
movimentos e produções de intercessor realizadas no primeiro momento. Os referenciais
teóricos éticos que subsidiam os dois momentos são: o Materialismo Histórico de Marx,
a Análise Institucional francesa, a Filosofia da Diferença e a Psicanálise do campo de
Freud e Lacan. Esses referenciais nos oferecem a possibilidade de tanto analisarmos as
práticas e os discursos do campo da Assistência Social como também de interceder nele.
Apresentamos uma reflexão sobre a Política Nacional de Assistência Social e acerca do
Sistema Único de Assistência Social traçando alguns paralelos com o Sistema Único de
Saúde. Em seguida, abordamos a instituição Assistência Social enquanto um dispositivo
social de produção de subjetividade, destacando que há uma relação de indissociabilidade
entre a produção de atenção assistencial e a produção de subjetividade. Abordamos,
também, as bases do Dispositivo Intercessor e seus dois momentos, e apresentamos um
pouco de nossa práxis enquanto trabalhadora-intercessora, mais especificamente nossas
reflexões acerca dos acontecimentos, atravessamentos, impasses e movimentos como
psicóloga atuando em estabelecimentos assistenciais em um município de pequeno porte
do interior do Estado de São Paulo. Em nossa vivência pudemos realizar a escuta em
contextos diferentes da clínica tradicional, como por exemplo, rodas de conversa com
sujeitos e trabalhadores. A psicanálise do campo de Freud e Lacan oferece ao trabalhador
um referencial teórico e ético que possibilita a escuta do sujeito para além do sujeito de
direitos, isto é, a escuta do sujeito do inconsciente.
Abstract: Our main objective was to think what a psychologist can do in the field of
Social Assistance with the guidance of Freud and Lacan’s Psychoanalysis and Marx’s
Historical Materialism. We started from the Intercessor Device as a new way of producing
knowledge in the common praxis (work) and a way of producing knowledge in the
university praxis. The Intercessor Device starts from two radically different moments of
production: the moment of institutional praxis with the subjects and in the collective
work, and the moment of theoretical reflection about experiences, produced a posteriori,
movements and productions of intercessors accomplished in the first moment. The ethical
theoretical references that support the two moments are: Marx's Historical Materialism,
French Institutional Analysis, the Philosophy of Difference and the Freud and Lacan’s
Psychoanalysis Field. These references seek us a point of view about both practices and
discourses of the field of Social Assistance as well as a mode of interceding on it. We
introduce a reflection on the Social Assistance National Policy and on the Unified Social
Assistance System for tracing some parallel aspects of the Unified Health System. Then,
we approach address the Social Assistance institution as a social device of subjectivity
production, noting that there is a relationship of inseparability between the production of
care and the production of subjectivity. We also approach the bases of the Intercessor
Device in its two moments, and we present a little about our praxis as a worker-
intercessor, but specifically our reflections on events, crossings, impasses and movements
as a psychologist working in assistance centers in a small city in the country of the State
of São Paulo. In our experience we were able to listen in different contexts of the
traditional clinic, such as, for example, conversation wheel with people and workers. The
psychoanalysis of the field of Freud and Lacan offers the worker a theoretical and ethical
reference that makes possible the listening of the subject beyond the subject of rights, this
is, the listening of the subject of the unconscious.
Figura 1: Composição dos quatro lugares da estrutura do discurso como laço social
Figura 2: Os quatro discursos como laços sociais propostos por Lacan
LISTA DE SIGLAS
AE – Aparelho de Estado
AI – Análise Institucional
AIE – Aparelho Ideológico de Estado
BPC – Benefício de Prestação Continuada
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializada de Assistência Social
CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social
DA – Discurso do Analista
DH – Discurso da Histeria
DI – Dispositivo Intercessor
DIMPC – Dispositivo Intercessor como meio de produção de conhecimento
DM – Discurso do Mestre
DU – Discurso da Universidade
ESF – Estratégia Saúde da Família
IAPs – Instituto de Aposentadorias e Pensões
LA – Liberdade Assistida
LBA – Liga Brasileira de Assistência
LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social
MCP – Modo Capitalista de Produção
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
PAEFI – Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos
PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família
PCFA – Paradigma Caridoso Filantrópico Assistencialista
PEH – Processo de Estratégia de Hegemonia
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAS – Política Nacional de Assistência Social
PSB – Proteção Social Básica
PSC – Prestação de Serviços à Comunidade
PSD – Paradigma do Sujeito de Direitos
PSE - Proteção Social Especial
PT – Partido dos Trabalhadores
SUAS – Sistema Único de Assistência Social
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade Básica de Saúde
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 19
ENSAIO 1
ENSAIO 2
ENSAIO 3
3.1 Introdução.............................................................................................................. 90
APRESENTAÇÃO
podendo chegar até 30% do total arrecadado. Essa última PEC poderá causar um impacto
nefasto para o campo da seguridade social, uma vez que parte do que for arrecadado, em vez
de ser investido em políticas sociais, poderá ser utilizado para pagar os juros da dívida pública
brasileira.
Recentemente foi votada e aprovada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
241/55. Essa PEC, denominada de PEC do Teto de Gastos pelo governo federal e de “PEC da
morte” por partidos e movimentos de esquerda, apresentada pela equipe econômica de Michel
Temer (PMDB), limita os investimentos em Saúde, Educação, AS e Previdência Social pelos
próximos vinte anos. A proposta institui o nome Regime Fiscal que determina que as despesas
não poderão crescer acima da inflação acumulada no ano anterior (PEC, 2016). Quem sofrerá
o maior impacto será a população mais pobre que depende essencialmente dos serviços
públicos os quais estarão mais sucateados.
Com um menor investimento em políticas sociais e a elevada taxa de desemprego no
país, a tendência é ocorrer um crescimento da demanda por AS. Por outro lado, desde 2015,
mas essencialmente após o Presidente interino assumir, os Programas de transferência de
renda estão sendo revisados e muitas famílias tem sido excluídas dos Programas de
Transferência de Renda. Este cenário fornece uma amostra do desafio que existe para que a
AS seja tanto consolidada enquanto uma política pública quanto ampliada. Um outro desafio é
a construção de práticas profissionais que propiciem o protagonismo e a autonomia dos
sujeitos atendidos nos serviços (nomeados comumente como usuários), além da produção de
subjetividade singularizada.
A implementação do SUAS acabou abrindo um novo campo para o trabalho dos(as)
psicólogos(as) na política social, pois este passou a ser integrante das equipes dos
estabelecimentos assistenciais. Alguns trabalhos (SENRA, GUZZO, 2012; NEVES,
SANTOS, 2013; DENTS, OLIVEIRA, 2013; XIMENES, PAULA, BARROS, 2009) acerca
da atuação do psicólogo nesse campo trazem problematizações interessantes, apontando que
muitas vezes as práticas são de controle, adaptacionistas e centradas na ação individualizada,
sendo contrárias as orientações da PNAS (BRASIL, 2004) e das referências técnicas para a
atuação do psicólogo nos estabelecimentos assistenciais (CREPOP, 2007; CFESS, 2007).
Diante deste cenário surgiu a necessidade de se construírem práticas e pensarem referenciais
que subsidiem o trabalho neste campo. Alguns trabalhos já vem sendo desenvolvidos e
publicados, mas grande parcela deles são realizados a partir da ótica do pesquisador que vai a
campo investigar o objeto e escrever sobre ele. Desejávamos um outro instrumental para a
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produção de conhecimento que nos possibilitasse incluir a reflexão sobre a práxis e conjugar
um conjunto de referenciais que nos são caros para a compreensão e ação no campo.
Nosso percurso em Psicanálise do campo de Freud e Lacan e a aproximação com o
campo da Assistência Social colocou para nós uma questão: Qual poderá ser a contribuição da
psicanálise neste campo?
Este trabalho surgiu a partir de conjunto de indagações e incômodos que surgiram
desde o 3º ano de graduação em Psicologia quando iniciei a participação no Projeto de
Extensão “Direitos Humanos: um processo em conscientização”. Naquela época, como
estagiária do curso de Psicologia, pude vivenciar um pouco do trabalho do(a) psicólogo(a) na
política pública de Assistência Social, mais especificamente junto ao antigo Programa
Sentinela – Programa que atendia, no âmbito da AS, crianças e adolescentes vítimas de sexual
e suas famílias. A experiência nos proporcionou conhecer um pouco o campo, mas ainda
restou a questão de se e como a psicanálise poderia contribuir. Desta experiência surgiram as
inquietações e o tema do projeto.
O mestrado, longe de ser apenas uma etapa da formação para a docência no ensino
superior, foi também uma necessária etapa de aprendizado enquanto trabalhadora. Embora ao
ingressar no mestrado não estivéssemos trabalhando na Política de Assistência Social, a
escolha de trabalhar com o Dispositivo Intercessor (DI) nos colocou a tarefa de fazer a
reflexão a partir da vivência de trabalhadora, portanto, a necessidade de inserção no campo a
partir da posição de trabalhadora e não de pesquisadora. Isso colocou várias dificuldades e
imprevistos em nosso percurso, contudo, não impossibilitou o trabalho.
A partir do Dispositivo Intercessor (DI), criação de Abílio da Costa Rosa e que vem se
materializando e ganhando contornos por seus orientandos nos mestrados e doutorados, foi
possível se inserir no campo da Assistência Social em uma outra posição, estando precavida
por referenciais teórico técnicos e ético políticos transdisciplinares: Análise Institucional de
René Lourau e Georges Lapassade, Materialismo Histórico de Marx, Filosofia da Diferença e
a Psicanálise do campo de Freud e Lacan. Esses instrumentos teóricos possibilitam executar
um trabalho na dimensão da práxis, isto é, de uma atividade prático-crítica. O DI possui dois
momentos: a) Dispositivo Intercessor como práxis do intercessor encarnado, isto é, um tempo
de inserção na práxis comum a partir da posição de trabalhador, e, b) Dispositivo Intercessor
como meio de produção de conhecimento (DIMPC), etapa em que o intercessor, na posição
de pesquisador, irá refletir e escrever sobre a sua experiência de trabalhador, subsidiado por
seus referenciais teóricos.
17
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Proposta de emenda à Constituição. Altera os arts. 37, 40, 42, 149, 167, 195, 201 e
203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá
outras providências. Brasília, 2016. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=7607C16C1FC28
20
9926801C3EEE7943B7B.proposicoesWebExterno2?codteor=1514097&filename=PEC+287/
2016>. Acesso em 22 dez 2016.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Tradução Ana
Lúcia de Oliveira. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.
LACAN, J. Meu ensino (1967-1968). Tradução Andre Telles. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
PEC 55, que congela gastos sociais, é aprovada em 2º turno no Senado. Carta Capital, 13 dez,
2016. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/pec-que-congela-gastos-sociais-
e-aprovada-em-segundo-turno-no-senado>. Acesso em 22 dez 2016.
1.1 Introdução
Este ensaio visa a trazer uma reflexão sobre a atual Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Nossas análises têm como
base os documentos oficiais, um conjunto de autores do campo e também nossa experiência
de trabalho enquanto psicóloga trabalhadora-intercessora-pesquisadora nos estabelecimentos
assistenciais de um município do interior do Estado de São Paulo.
Nossa vivência partiu da proposta do Dispositivo Intercessor (DI)1 enquanto uma
ferramenta para a produção de conhecimento não apenas na práxis – nesse caso, na esfera do
saber – como também no âmbito acadêmico – ou, propriamente, do conhecimento. O DI é
composto por duas modalidades de inscrições: a) o DI como práxis do intercessor encarnado,
isto é, um(a) trabalhador(a) no campo que se posiciona frente à práxis e executa ações que
podem ter como efeito a produção de um movimento instituinte; e b) o Dimpc (Dispositivo
Intercessor como meio de produção de conhecimento) enquanto práxis universitária, ou seja,
o momento da intercessão-pesquisa, que acontece quando o intercessor, agora na posição de
pesquisador, produz reflexões acerca de sua própria experiência no campo.
A pergunta que consta como pano de fundo de nossas reflexões é: a Assistência Social
(AS) interessa/serve a quem? Nosso ponto de partida para discussão é o entendimento de que
a AS surge enquanto um agenciamento das pulsações da Demanda Social e uma resposta do
Estado brasileiro à questão social.
Em decorrência disso, para melhor situar o leitor, optamos por iniciar com uma breve
caracterização da “questão social” (CASTEL, 1998). Em seguida, realizamos uma pequena
síntese analítica do histórico da construção da política de AS. Logo após, apresentamos e
discutimos os aspectos principais da PNAS e do SUAS. Por esse último ter tido forte
inspiração do Sistema Único de Saúde (SUS), nos servimos de algumas problematizações
realizadas no campo da Saúde e transpusemos algumas questões que julgamos pertinentes
também para o campo da AS. Também nos inspiramos em um conjunto de instrumentos
teóricos não disciplinares que, longe de serem um ecletismo descuidado, possibilitam-nos a
1
No ensaio 3 apresentamos o Dispositivo Intercessor e discutiremos suas contribuições para a práxis comum e à
práxis na universidade.
23
2
Cidadania invertida, para Fleury (2007), diz respeito a uma relação na qual o sujeito precisa provar que
fracassou no mercado para poder ser objeto da proteção social. A relação com o Estado se dá quando ele é
reconhecido como não-cidadão. Possui como atributos “jurídicos e institucionais, respectivamente, a ausência de
relação formalizada de direito ao benefício o que se reflete na instabilidade das políticas assistenciais, além de
uma base que reproduz um modelo de voluntariado das organizações de caridade, mesmo quando exercidas em
instituições estatais” (FLEURY, P. 76, 2007).
24
trabalhador), gerando assim o lucro. Os proletários são obrigados a vender sua força de
trabalho, uma vez que não são donos dos meios de produção. Como resultado,
[...] o trabalhador sai do processo sempre como nele entrou: como fonte
pessoal de riqueza, porém despojado de todos os meios para tornar essa
riqueza efetiva para si. Como antes de entrar no processo, seu próprio
trabalho já está alienado dele [ihm selbst entfremdet], apropriado pelo
capitalista e incorporado ao capital, este se objetiva continuamente, no
decorrer do processo, em produto alheio (MARX, 2013, p. 675).
3
As instituições podem ser entendidas enquanto Aparelho de Estado (AE) ou Aparelho Ideológico do Estado
(AIE). Para Althusser (1980) a diferença fundamental entre os dois é que enquanto o Aparelho Ideológico
funciona predominantemente pela ideologia, o Aparelho (repressivo) de Estado funciona predominantemente
pela violência. O mesmo autor esclarece que eles podem funcionar secundariamente de modo inverso, isto é, o
AE pela ideologia e o AIE pela violência.
26
As práticas de AS existem no Brasil há bastante tempo. Elas tiveram suas origens nas
ações caritativas e/ou filantrópicas. As ações sociais situadas no campo da solidariedade eram
realizadas por motivos que não necessariamente se excluem: acreditar que havia um dever
moral de ajudar, interesses pessoais e cálculos clientelistas.
Os estabelecimentos assistenciais religiosos, durante longo tempo, foram os principais
executores das ações sociais, que possuíam um caráter fortemente assistencialista. A elite
burguesa moderna também contribuiu com ações sociais, sob a forma de filantropia. Estas
duas formas paradigmáticas (caridade e filantropia) não eram totalmente opostas uma à outra,
elas “conviveram” (BENELLI, 2012a). Por muito tempo, perdurou a interpretação da AS
como ajuda e não como obrigação do Estado visando à garantia de direitos do cidadão
brasileiro. Nesse sentido, Yazbek destaca:
caritativas havia, no imaginário social, o pensamento de que lhes era prestado um favor e não
reconhecido um direito, dificultando o nascimento de um movimento reivindicativo por parte
desse grupo. As reivindicações dos diversos movimentos políticos, sindicais e sociais
centravam-se sobre a ampliação da previdência social, a universalização da saúde e a
democracia. Essa inserção da Assistência Social pode ser compreendida tanto como uma
tentativa do Estado de amortecer um pouco os efeitos do MCP sobre os setores mais
pauperizados da população, como também uma pequena – ainda que importante – conquista
no que se refere às políticas sociais. E por não ter sido demandada, o efeito disso foi que “[...]
a inclusão do campo particular da Assistência Social no âmbito da Seguridade Social proposto
pela CF-88, não encontrou interlocutores e interlocuções estruturadas e organizadas na
academia, na sociedade civil e nos movimentos sociais” (SPOSATI, 2007, p. 445).
A própria regulamentação do Sistema de Seguridade Social aconteceu tardiamente,
uma vez que na década de 80 do século XX o Welfare State já estava sendo criticado tanto
nos Estados Unidos quanto na Europa. Soma-se a isso uma outra questão: no Brasil, essas
políticas mal foram regulamentadas e já passaram a ser alvo de uma ofensiva conservadora,
materializada por meio de propostas e iniciativas de contrarreformas que procuravam
restringir direitos, benefícios e serviços (MOTA; MARANHÃO; SITCOVSKY, 2009). No
Governo Collor teve início a política social neoliberal, assumindo-se de modo mais claro uma
perspectiva seletiva e focal das obrigações do Estado. Essas mudanças acabaram por
desconfigurar a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) e por produzir restrições na
legislação complementar no campo da seguridade social (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2014).
O conjunto de direitos conquistados no texto da Constituição Cidadã, por terem sido
submetidos à lógica do ajuste fiscal, acabaram sofrendo uma importante defasagem entre
direito e realidade.
4
Apesar de ser uma política social e de ser tratada pelos documentos oficiais como uma política pública,
entendemos que o SUAS (ao menos ainda) é uma política de Estado ou mesmo uma Política de Governo. A
Política Pública é caracterizada como resposta do Estado a um problema surgido no bojo da sociedade e visa a
incidir na própria produção e concepção da questão (COSTA-ROSA, 2016, supervisão). A Política de Estado
também é uma resposta do Estado, mas não incidirá na raiz do problema, embora sua institucionalização seja
29
promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (BRASIL, 1993). Ela visava a
garantir os direitos e prover a cidadania dos diversos grupos da população que sofriam em
consequência das desigualdades sociais, fruto do avanço do MCP. Nela, consta como
objetivos:
forte e ela se mantenha (ainda que com algumas mudanças) apesar da troca de governo. Já a Política de Governo
é caracterizada por ser decidida pelo Executivo em um “processo elementar de formulação e implementação de
determinadas medidas e programas, visando a responder às demandas da agenda política interna, ainda que
envolvam escolas complexas” (OLIVEIRA, 2011, p. 329). Sua institucionalização é fraca, podendo a política ser
finalizada com a mudança de determinado governo. Dado o pouco tempo de existência do SUAS e o fato de
durante quase todo o período o país ter sido governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ainda não é possível
afirmar que se trata de uma Política de Estado. Os próximos anos serão decisivos para saber de qual tipo de
política social se trata.
5
O projeto original da Lei Orgânica de Assistência Social foi de autoria do deputado Raimundo Bezerra e pode
ser consultado na página:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD23FEV1990.pdf.
6
A LBA foi criada em 1942 e seu objetivo era dar suporte material às famílias que se encontravam em
dificuldades em decorrência da participação dos homens no combate da II Guerra Mundial, sendo a primeira
institucionalização da assistência social de abrangência nacional. Após a Guerra, a LBA passou a executar ações
de assistência à maternidade e à infância, dando início à política de convênios com estabelecimentos
assistenciais no âmbito da filantropia e da benemerência. Seu trabalho consistia no atendimento a famílias que
não acessavam a Previdência Social, dando suporte na ocorrência de calamidades, executando ações urgentes,
pontuais e fragmentadas. A LBA, dirigida pela esposa do então Presidente da República, Getúlio Vargas,
demarcou um modo inédito de fazer atenção assistencial, com o Estado assumindo responsabilidades. No
entanto, a concepção de assistência continuou como boa vontade e não como direito do cidadão, permanecendo
apenas como ocupação da primeira-dama. No ano de 1969 ocorreu a transformação da LBA em fundação, que
ficou vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência, tendo ampliada sua estrutura e passando a contar com
novos programas e projetos.
30
7
Paradigma é um constructo teórico formal-abstrato, composto por uma “unidade jurídico-ideológica e teórico-
técnica de ação sobre a demanda” (COSTA-ROSA, 2000, p. 143) que nos permite compreender “dinamicamente
a realidade histórica, organizando seu aparente caos” (BENELLI, 2012a, p. 613). O paradigma, no campo da AS,
estabelece os contornos de como a atenção assistencial deve ser realizada.
8
Para W. C. Souza (2015) o Paradigma Filantrópico Caridoso Assistencialista (PCFA) ou paradigma
hegemônico possui como objeto de intervenção as ditas situações de vulnerabilidade e risco, que são
consideradas enquanto fenômenos individuais, sem considerar a estrutura social e o papel do Estado na produção
dessas situações. As ações efetuadas são pontuais, visando a resolver o problema aparente e não os reais
determinantes do fenômeno. O usuário é visto como passivo. O modo de organização das equipes é
hierarquizado, assim como a relação entre os trabalhadores e os sujeitos atendidos. As intervenções das equipes
são pensadas como uma resposta a priori para as situações, enquanto as práticas têm cunho adaptacionista e
normalizador. Os efeitos assistenciais são o assujeitamento e a alienação sociopolítica.
9
O Paradigma do Sujeito de Direitos (PSD), ou paradigma alternativo, tem como objeto o sujeito de direitos,
visto como sujeito protagonista, e não assujeitado. Os fenômenos da questão social são analisados a partir de sua
complexidade e como efeito do MCP. O modo de organização das equipes é horizontalizado, do mesmo modo
que a relação dos trabalhadores com os sujeitos atendidos. As ações são realizadas junto com o sujeito (e não por
ele ou para ele), por meio de práticas que possibilitem implicação subjetiva e sociocultural. O efeito assistencial
é o reposicionamento subjetivo e sociocultural (SOUZA, W. A., 2015).
10
O modelo flexneriano fundamenta-se no Relatório Flexner, de Abrahan Flexner, realizado no início do século
XX e publicado pela Fundação Carnegire (EUA). Ele se refere à medicina orientada para o indivíduo, a
especialização, a tecnificação, o mecanicismo, o biologismo e à ênfase na prática curativa, com a exclusão de
práticas alternativas. O Relatório Flexner repercutiu não apenas na formação médica, mas sobretudo na estrutura
organizacional e no funcionamento do sistema público de saúde (MENDES, 1996).
32
Assim, as pessoas podem se beneficiar mesmo não contribuindo diretamente para seu custeio.
Apesar de não ser contributiva, diferentemente da Saúde, que é universal, a AS é ofertada
para quem dela necessitar, isto é, ela supõe o indivíduo pobre e sem meios de subsistência –
do mesmo modo que a Previdência supõe o trabalhador. E como demarcou Sposati (2007), a
introdução da AS enquanto política de Seguridade Social não foi resultado de um processo
político pela ampliação do pacto social brasileiro, tendo sido instituída “mais pelas ‘heranças
institucionais’ do que pela concepção efetiva de um novo paradigma ou novo pacto social
com base na democracia e na redistributividade” (ibidem, p. 446).
Atualmente, em virtude da orientação da política econômica posta em prática e do
acirramento e aprofundamento das características e contradições do MCP – gerando altos
níveis de desemprego – o Estado alarga o campo de atuação da assistência, incorporando
como parte dos seus usuários pessoas aptas para o trabalho e que constituem o exército de
reserva de mão de obra. Conforme assinalaram Mota, Maranhão e Sitcovsky (2009, p. 189)
“[...] a AS passa a assumir, para uma parcela significativa da população, a tarefa de ser a
política de proteção social, e não parte da política de proteção social”. A consequência dessa
ampliação é a limitação do acesso a ela, fixando critérios e promovendo as políticas de
exceção. Ademais, e principalmente, ainda que a política de AS seja importante para o
atendimento de algumas contingências sociais vividas pela população, ela não pode ou deve
ser adotada enquanto principal mecanismo de enfrentamento das desigualdades sociais
(ibidem).
Contudo, o que aconteceu desde o início da década de 1990 até o ano de 2002 foi a
adoção de adoção de uma política econômica neoliberal, por meio da manutenção do ajuste
fiscal e da focalização das políticas sociais. Já entre os anos 2003 até meados de 2016 foi
adotada uma política nacional desenvolvimentista, com o governo procurando conciliar o
investimento em políticas de cunho social com políticas econômicas que beneficiaram os
grandes empresários – donos do capital. Nos últimos anos, o que se observa é o avanço da
mercantilização e da privatização das políticas de Previdência e de Saúde e uma concomitante
redução e/ou não ampliação de serviços voltados para as necessidades da população. De
acordo com Mota (1995, p. 227),
[...] uma das prerrogativas do capital, para fazer sua reforma, é subtrair os
direitos sociais e trabalhistas estabelecidos na Constituição, substituindo-os
pelos direitos do consumidor e da assistência aos pobres, coerente com sua
proposta de privatizar e assistencializar a seguridade.
33
11
Segundo Paim (2009, p. 56) princípios são “aspectos que valorizamos nas relações sociais, na maioria
derivados da moral, da ética, da filosofia, da política e do direito. São valores que orientam nosso pensamento e
nossa ação.”
35
12
Benelli (2016b) e Benelli e Costa-Rosa (2010) apresentam interessantes discussões críticas sobre o tema do
trabalho social na modalidade de rede.
37
de uma fragilidade que necessita ser corrigida13. Neste sentido, a AS poderia se beneficiar de
um outro princípio do SUS: a “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua
integridade física e moral” (BRASIL, 1990a).
O último princípio da LOAS (BRASIL, 2011), que prevê a divulgação ampla dos
serviços, programas e projetos assistenciais, serviços, critérios de concessão e recursos
ofertados pelo Poder Público, ainda constitui um desafio para a AS. Mais uma vez torna-se
evidente a inspiração do SUS onde consta a “[...] divulgação de informações quanto ao
potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário” (BRASIL, 1990a). Em ambos
os sistemas a difusão de informações é um fator essencial para que a população tenha seus
direitos respeitados. Na AS, a restrição na divulgação dos programas e serviços e dos
benefícios e normas de concessão ainda se faz presente (GARCIA, 2011). Para que as
informações não apenas cheguem, mas também sejam compreendidas pelas camadas mais
pobres e menos escolarizadas, é imprescindível a criação de outras estratégias, para além de
panfletos e cartazes, estratégias estas a serem construídas junto ao território e à comunidade.
Dentre as diretrizes14 da LOAS (BRASIL, 2011) estão a descentralização político-
administrativa, a primazia da responsabilidade do Estado, a participação popular e a
centralidade da família. Semelhantemente ao SUS, o SUAS possui a diretriz da
descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e
o comando único das ações em cada esfera de governo. A descentralização da gestão implica
transferir poder de decisão do nível federal (MDS) para os estados e municípios. Isso traz
duas inovações: viabilizar a participação da sociedade nos processos deliberativos e
possibilitar que os municípios estabeleçam prioridades de ações mais voltadas para os
problemas locais. Contudo, o que vem ocorrendo é a “prefeituração” (ALVES, 2009, p. 129),
ou mesmo uma desconcentração – no sentido mesmo de eximir-se da responsabilidade –, pois
não há uma proporcionalidade entre o repasse de responsabilidade aos municípios e os parcos
recursos que são disponibilizadas a eles, trazendo prejuízo principalmente para os municípios
menores, que possuem pouca arrecadação.
A diretriz da participação popular define a existência de espaços onde a população
possa contribuir na elaboração, implementação e fiscalização das políticas sociais. A
participação popular também é uma diretriz do SUS, em que ela aparece sob o nome de
13
Nesse sentido, a Psicologia como ciência e profissão tem discutido o tema da psicologia, da laicidade, da
espiritualidade, da religião e dos saberes tradicionais, apresentando referências básicas para atuação profissional
(CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO, 2014).
14
Diretrizes podem ser compreendidas como “orientações gerais de caráter organizacional ou técnico” (PAIM,
2009, p. 56) que balizam a execução de um conjunto de ações no campo da política pública.
38
participação da comunidade, sendo esta uma conquista oriunda da luta da Reforma Sanitária.
A participação pode se dar em organizações representativas, a saber, os Conselhos
municipais, estaduais e nacional, contribuindo “[...] na formulação e controle das ações em
cada esfera do governo” (BRASIL, 2005, p. 15). Entretanto, a população não tem exercido
sua função social nestes espaços (BENELLI, 2012b, BENELLI; COSTA-ROSA, 2013),
inclusive por não se sentir acolhida em suas demandas e devido à excessiva burocratização
das reuniões. Alves (2009, p. 258) demarcou uma questão essencial:
15
A Educação Popular parece ser uma interessante modalidade de atuação, que pode ser inspiradora para
psicólogos e demais trabalhadores no campo das políticas públicas sociais (BOFF, 1984; BRANDÃO, 2006;
DEMO, 2001, 2002).
39
[re]construir um vínculo familiar, não circulam nos territórios e construíram outros modos –
diferente do modelo burguês – de viver, como, por exemplo, no caso dos
andarilhos/trecheiros. Como fazer ofertas sem tentar discipliná-los, docilizá-los e normalizá-
los? Eis uma questão que a AS ainda não conseguiu resolver.
comportamento de risco, foi fortemente criticado pelo meio técnico e acadêmico, abrindo
espaço para que o conceito de vulnerabilidade se desenvolvesse adquirindo o sentido de
movimento de levar em consideração a chance de adoecimento de uma pessoa como
resultante de um conjunto de aspectos não somente individuais, mas também coletivos, que
produzem maior ou menor suscetibilidade ao adoecimento e, inseparavelmente, menor ou
maior quantidade de recursos para se proteger dele. Esse segundo conceito, ao sair do âmbito
pessoal e ampliar o olhar para os aspectos políticos e coletivos, traz um avanço em relação ao
primeiro.
No campo da AS e nos documentos de sua política, a vulnerabilidade surge como uma
condição dos sujeitos e de suas famílias que está relacionada a um conjunto de fatores: a não
inserção e/ou inserção precária no mercado de trabalho, o precário ou nulo acesso a serviços
públicos ou outras formas de proteção social e o baixo ou nulo nível de relações sociais e/ou
comunitárias. Os conceitos de vulnerabilidade e risco remetem-se um ao outro. O risco
comporta uma série de situações – naturais, sociais, econômicas, ambientais, políticas, ligadas
ao ciclo de vida e de saúde – que podem afetar o bem-estar dos sujeitos e de suas famílias.
Apesar de as categorias vulnerabilidade e risco serem centrais na política de AS, nos
documentos que a subsidiam não se discute profundamente a desigualdade social (BENELLI,
2016a; ROMAGNOLI, 2015). Isso produz a chance de que esses conceitos sejam utilizados
em prol da naturalização da miséria sem que haja um questionamento do MCP e de seus
efeitos, mantendo as ações de proteção social no campo meramente paliativo e a reprodução
das desigualdades sociais. Conforme aponta Monteiro (2011) o conceito de vulnerabilidade
foi gestado nos organismos internacionais enquanto alternativa ao de exclusão social16 e tem
sido largamente disseminado como orientação aos Estados para a execução das políticas
sociais, norteando a lógica dos ajustes, sobretudo nos países periféricos. A vulnerabilidade
não é entendida como produto das desigualdades sociais, pois sua concepção não considera o
caráter estrutural da sociedade capitalista, portanto toda a possibilidade de seu enfrentamento
se dá sem o confronto dos determinantes estruturais da desigualdade.
Assim sendo, as categorias vulnerabilidade e risco, indicadoras dos níveis de inclusão
perversa, expressam uma certa fragilidade na delimitação do público-alvo e dos serviços para
atendê-lo. Além disso, ao colocar a ênfase – da leitura da situação e da solução – no sujeito,
há uma culpabilização deste, além do fato de a oferta de serviços não ser adequada, uma vez
16
Entendemos que ao invés de falarmos em exclusão social seria mais apropriado falarmos de inclusão perversa,
uma vez que a produção de um contingente de trabalhadores que não possuem acesso ao trabalho, a renda e aos
bens socialmente produzidos é parte intrínseca do próprio MCP e não uma falha do sistema, ela é produto do
funcionamento do sistema.
42
que não se resolve a questão da pobreza e problemas dela derivados por meio da oferta de
serviços cujo foco de trabalho seja a convivência e o fortalecimento de vínculos. Os pobres
podem ter laços afetivos bem fortes e mesmo assim continuar na pobreza mais absoluta,
podem ainda ter sentimentos de pertença bem consolidados, e isso não os tira da condição de
pobreza.
Ao problematizar os significantes vulnerabilidade e risco no discurso da Assistência
Social, Benelli (2016a) assinala que se trata de eufemismos que tem a pretensão de substituir
certos termos considerados desagradáveis, uma vez que
vida dos sujeitos em questão”. Isso possibilita compreender qual o motivo de, ainda que no
discurso da AS ganhe destaque o termo “promoção de cidadania”, um olhar um pouco mais
aguçado e crítico permite perceber que ela atua, sobretudo, no sentido de tentar gerir os
problemas sociais por meio da inclusão dos pobres e miseráveis em diversos serviços,
programas e ações. Tem-se então o exercício da governamentalidade (FOUCAULT, 2008),
sendo a família o seu principal objeto.
1.7 A questão da seleção das famílias incluídas nos projetos sociais e no programa de
transferência de renda
18
As ações que compõem o PAIF são: acolhida, oficinas com famílias, ações comunitárias, ações
particularizadas e encaminhamentos (BRASIL, 2012b). Tais atividades, de acordo com a documentação,
costumam ser despolitizadas, oscilando entre o pedagógico e o terapêutico (BENELLI, 2015b).
48
19
Nesse sentido, é interessante perceber que o termo “assistir” que compõe a locução “Assistência Social”
remete tanto ao sentido de ajudar, auxiliar quanto ao de olhar, ver, acompanhar olhando, assistindo.
49
vulnerabilidade não é algo natural e sim um efeito do MCP. Sendo assim, o que existe são
sujeitos historicamente vulnerabilizados e situações de vulnerabilização social que poderiam
ser perfeitamente identificáveis.
A introdução da noção de vulnerabilidade no discurso da política de AS faz com que
ela realize intervenções que, ao diminuir a vulnerabilidade por meio de ações assistenciais,
produz uma diminuição do risco e, por consequência, do perigo. Logo, a instalação do CRAS
em áreas designadas como sendo de risco e de vulnerabilidade não deixa de ser uma estratégia
de gestão social, ainda que seja também um suporte público que reconhecemos como
necessário para um vasto conjunto de famílias. Mas esse estabelecimento assistencial, ainda
que traga alguns benefícios ao ofertar espaços de acolhimento e socialização, não parece ser
capaz de resolver o problema da falta de estrutura existente no Território – ausência de
escolas, de creches e de UBSs, desemprego, narcotráfico, drogadição, alcoolismo, violência,
dentre outros –, principais fatores produtores de vulnerabilização. Se, por um lado, caberia ao
CRAS realizar a articulação com outras políticas, por outro lado isso só pode acontecer se tais
políticas públicas existirem no Território.
Além disso, a partir de nossa inserção no campo da AS, notamos que as atividades
ofertadas pelos estabelecimentos assistenciais muitas vezes não correspondem,
necessariamente, aos interesses, necessidades e desejos das pessoas, mas sim à adequação aos
programas e projetos propostos (SCISLESKI; CAETANO; COGOY, 2013). Cabe, ainda, uma
reflexão: se o principal fator produtor da fragilização de vínculos familiares e comunitários é
a ausência de emprego e renda, qual seria o real impacto da oferta de atividades chamadas de
socioeducativas voltadas para adultos? Pensamos que o CRAS é um equipamento social
importante, mas seria preciso subverter sua lógica de gestão dos riscos, de modo que suas
ações estivessem essencialmente voltadas para contribuir com a organização dos espaços
comunitários – por exemplo, por meio da discussão dos problemas do Território e da
responsabilidade da gestão municipal de buscar seu equacionamento –, favorecendo a
consciência crítica e o protagonismo dos sujeitos e dos coletivos na proposição de soluções e
de reivindicações.
A Proteção Social Especial (PSE), o outro nível da AS, é voltada para famílias e
indivíduos que, de acordo com a PNAS (BRASIL, 2004a), encontram-se em situação de risco
pessoal e social em decorrência de diversos fatores: maus tratos físicos e/ou psíquicos,
negligência, abuso sexual, abandono, situação de trabalho infantil, situação de rua,
cumprimento de medidas socioeducativas, dentre outras situações de violações de direitos.
Esta PSE guarda relação de homologia com a atenção secundária e terciária ofertada pelo
50
exemplo, pois aos trabalhadores que atuam como cuidadores e educadores sociais (BRASIL,
2014, FERREIRA, 2011) e outros que fazem abordagem de rua (FERREIRA, 2011) bastaria
apenas terem o ensino médio. Não possuir ensino superior não constitui necessariamente um
problema, pois muitos trabalhadores, mesmo sem graduação, podem ser críticos e politizados.
O que falta, nesse caso, é essencialmente a capacitação logo no seu ingresso e também a
oferta de formação continuada para o trabalho na política de AS. Em virtude dessas formações
e capacitações praticamente não existirem, a consequência é a execução de práticas baseadas
no senso comum e inclusive, em certos casos, no preconceito (BENELLI, 2015c).
Outra questão, ainda relacionada à diversidade e à complexidade dos casos, é que
antes de os sujeitos/famílias acessarem a AS, estes já vivenciaram um conjunto de violações
de direitos – fruto, principalmente, da falta de acesso a serviços públicos de qualidade, que
possuem responsáveis concretos na administração municipal, estadual e federal, bem como
orçamentos específicos – que produziram efeitos negativos que não podem ser removidos ou
modificados de modo rápido e a partir de orientações, informações e da inclusão em outros
serviços socioassistenciais, normalmente frágeis. Ainda que seja trabalho da AS a articulação
com as demais políticas sociais, os encaminhamentos só podem acontecer caso a cidade oferte
as demais políticas a contento, como, por exemplo, a de Saúde.
Destacamos, ainda, algumas especificidades: nem sempre o fator econômico é o
principal determinante para essas situações, sendo que os aspectos culturais adquirem papel
de relevância em sua produção, como na questão da violência contra a mulher. Para tais casos,
o atendimento não pode ser apenas individual – ainda que este também seja necessário –, mas
ele exige, sobretudo, ações coletivas, incluindo outras instituições, estabelecimentos e
movimentos sociais, a fim de produzir modificações no plano cultural. Outro caso bastante
emblemático é o de pessoas com deficiência. Fazer acolhimento e realizar articulações para
que estas pessoas sejam atendidas pelas demais políticas públicas é necessário, mas não
resolverá os reais problemas que estão ligados à falta de estrutura adequada das cidades e à
cultura da inclusão perversa, típica do MCP. Novamente, faz-se mister um trabalho que vá
muito além das paredes de um CREAS e de esporádicas campanhas públicas realizadas por
esse estabelecimento assistencial visando a favorecer a inserção social das pessoas.
Os serviços de PSE de alta complexidade, que também são de responsabilidade do
CREAS, estão voltados à garantia de proteção integral (moradia, alimentação, higienização e
trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou em
situação de ameaça, carecendo inclusive de serem retirados do núcleo familiar e/ou
comunitário (BRASIL, 2004a). Um exemplo típico visto no cotidiano é a situação na qual um
52
sujeito a ser atendido em um dos serviços é uma criança que foi vítima de violência sexual por
parte de seu único cuidador, sendo que não existe outro familiar com quem possua vínculos e
que possa se responsabilizar por ela. Estes serviços são: Serviço de Proteção em Situações de
Calamidades Públicas e de Emergências; Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;
Serviço de Acolhimento em República; e Serviço de Acolhimento Institucional nas
modalidades: Casa-Lar, Residência Inclusiva, Casa de Passagem e Abrigo Institucional (idem,
2009).
Na proteção de alta complexidade, uma certa relação de homologia se dá com o nível
terciário do SUS, pois, se traçássemos uma analogia, os serviços da proteção de alta
complexidade da AS seriam correspondentes ao serviço hospitalar e à tecnologia de
internação do SUS. Para que possa ser executada, além dos profissionais especializados, há a
necessidade, para alguns dos serviços, de um alto montante de recursos financeiros para um
pequeno volume de atendimentos. A implantação e a manutenção de alguns desses serviços,
como, por exemplo a Casa-Lar, Residência Inclusiva e Abrigo Institucional, demandam que
os municípios próximos realizem parcerias entre si, com vistas a uma regionalização dos
serviços. No imaginário social, existe a crença de que a PSE de alta complexidade é a mais
importante, por atender as situações mais graves. Contudo, em termos de AS, é preciso
ressaltar que os investimentos nesse nível de complexidade têm muito menos impactos que os
da PSB, que abarca um número maior de pessoas. Indubitavelmente, a disponibilidade de
atenção assistencial de alta complexidade é imprescindível, pois são serviços importantes para
garantir não apenas a sobrevivência, como o bem-estar dos sujeitos que, por alguma
contingência, vierem a dela precisar. Cabe lembrar que ela é necessária para um número
restrito de casos, devendo ser acessada por meio dos outros níveis de atenção e utilizada
apenas quando já esgotadas as possibilidades neles existentes.
A AS constitui-se em uma das ferramentas para ativar um novo contrato social na
direção de um conjunto de direitos de civilização. Ela não se reduz e nem pode se reduzir ao
papel de provedora quando o sujeito está numa situação de destituição plena, como em casos
de trabalho infantil, prostituição e situação de rua. A superação de situações complexas que
chegam cotidianamente aos estabelecimentos assistenciais (CRAS, CREAS, dentre outros)
demanda soluções complexas que, na maioria das vezes, não podem ser resolvida apenas no
âmbito da própria AS, necessitando uma articulação e um trabalho intersetorial. Nesse
sentido, Sposati (2007, p. 452) demarca que “[...] a superação dessas situações exige ação
intersetorial e integrada não só das políticas sociais, mas também entre estas e as políticas
econômicas e do sistema de justiça e defesa de direitos humanos”.
53
Para que as proteções sociais sejam efetivadas é imprescindível que as práticas sejam
operadas pelos trabalhadores. No encontro entre trabalhadores e sujeitos produz-se o
“trabalho vivo feito em ato” (MERHY; FRANCO, 2009, p. 282). A produção de AS realiza-
se sobretudo por meio do trabalho vivo em ato, ou seja, o trabalho no momento em que é
realizado determina a produção de assistência. À semelhança do trabalho em Saúde, o
trabalho na AS é centrado nessa modalidade de atuação. Mas, no processo de trabalho, o
trabalho vivo interage com um conjunto de normas, instrumentos e máquinas, configurando
um certo sentido de produzir assistência. Os instrumentos e máquinas utilizados são “trabalho
morto”, ou seja, trabalho objetivado, trabalho feito antes e que só chega por meio do seu
produto (ibidem). Todo trabalho é mediado por tecnologias e, dependendo da forma como
elas são utilizadas, é possível ter “processos mais presos à lógica dos instrumentos duros”
(ibidem, p. 282) ou processos mais criativos e centrados nas relações.
Do mesmo modo em que na saúde, o trabalho da AS é sempre realizado por um
trabalhador coletivo. Os trabalhadores auxiliares, técnicos e universitários são fundamentais.
O trabalho de um dá sentido ao trabalho do outro, na direção da verdadeira finalidade da AS:
a garantia dos direitos mínimos aos sujeitos. Na produção de assistência, o trabalhador pode
fazer uso de “tecnologias duras” (instrumentos), “tecnologias leve-duras” (o saber técnico
estruturado) e “tecnologias leves”, ou seja, as relações – entre trabalhadores e sujeitos – que
só possuem materialidade em ato (ibidem, 2009). Na melhor das hipóteses, há a
predominância dos processos relacionais, o que proporciona um “processo de trabalho com
maiores graus de liberdade, tecnologicamente centrado nas tecnologias leves e tecnologias
leve-duras” (ibidem, p. 283). E no que se refere à pactuação do processo de trabalho onde se
define o modelo tecnológico de assistência social, esta não se dá apenas em processos de
negociação, mas estrutura-se também a partir de tensões e conflitos vividos no cenário de
produção de AS, seja na própria assistência (na ponta) ou na gestão.
20
A prática sanitária, de acordo com Mendes (1999, p. 241) é a “forma como uma sociedade, num dado
momento, a partir do conceito de saúde vigente e do paradigma hegemônico, estrutura as respostas sociais
organizadas ante os problemas de saúde”.
55
1.10 A produção social de qualidade de vida e uma nova ordem governativa da cidade
estamos lutando pela e atuando na área da AS enquanto política pública brasileira? Questão
elementar, cuja resposta dará o colorido da política e da prática que pretendemos construir.
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2.1 Introdução
Tomamos como ponto de partida para pensar a AS, enquanto instituição, a afirmação de
Deleuze de que o homem não tem instintos, ele faz instituições (ESCOBAR, 1991). Essa ideia
fornece subsídios para a compreensão de que as instituições são criações essencialmente
humanas. O termo instituição inclui a ideia de uma atividade constitutiva de modelos, de
formas múltiplas de viver no coletivo. De acordo com Baremblitt (2012), a sociedade seria
composta por uma rede de instituições as quais têm por função produzir a regulação das
relações sociais. Sintetizando a concepção sobre o que seriam as instituições, no âmbito da
Análise Institucional (AI), Baremblitt (2012) as apresenta como composições lógicas,
implantadas por meio de leis e normas. Essas leis e normas tanto podem estar materializadas
como podem existir de forma abstrata, e proscrevem e prescrevem o que é indicado, o que não
é permitido e o que é indiferente. Portanto, podemos considerar como instituições a Educação,
a Saúde, a Família, a Religião e o Trabalho, dentre outras, inclusive a AS.
Compreendemos que as instituições são produtoras de processos de produção de
subjetividade21; o modo de produção institucional é que irá determinar qual o tipo de
subjetividade será produzida – se mais alienada ou mais singularizada. Subjetividade alienada
e serializada diz respeito ao sujeito que se reconhece apenas em imagens identitárias,
ofertadas pelo mercado, “as quais ele consome e reproduz, posicionando-se como uma vítima
impotente e sem implicação nos problemas dos quais se queixa” (BENELLI, 2006, p. 30).
Denominamos produção de subjetividade singularizada o processo de produção no qual os
sujeitos são participantes diretos e protagonistas, isto é, agentes produtivos por excelência. A
produção de subjetividade singularizada compreende um processo complexo, no qual o
sujeito se implica subjetiva e socialmente nos conflitos que atravessa e pelos quais é
atravessado. O resultado dessa implicação subjetiva é deixar de ser apenas objeto de um
assujeitamento que produz sofrimento em excesso para tornar-se um sujeito que capaz de
produzir deslocamentos nesses impasses e no posicionamento que ocupa na relação com eles
21
Concordamos com Benelli (2003, p. 101) que a produção de subjetividade refere-se “fundamentalmente ao
plano micropolítico, microfísico das relações instituintes e instituídas da formação no contexto institucional”.
Assim, as relações entre as equipes de trabalhadores e os sujeitos não são estáticas entre polos constituídos, isto
é, elas estão em permanente constituição e constante transformação das posições e lugares no interior das
relações.
67
(Costa-Rosa, 2013). Para tal, de acordo com Costa-Rosa (2013, p. 74) o sujeito “deve ser
concebido muito além do indivíduo; homem que constrói seu cotidiano em condições dadas e
também ‘sujeito do sentido’, sujeito do inconsciente”.
Considera-se que existe uma relação de homologia entre os modos dos processos de
trabalho e os modos dos processos de produção de subjetividades, uma vez que, ao produzir, o
homem produz a si mesmo (MARX, 2004). Neste texto, almejamos fazer uma análise do
processo de produção de assistência social aos sujeitos, seus modos de execução e as
consequências de cada modalidade dessa assistência. A hipótese da qual partimos é que há
uma indissociabilidade da produção de assistência social e da produção de subjetividade.
Nossa análise tem como base as reflexões teóricas de Costa-Rosa (2013) acerca da instituição
de Saúde Mental, sendo que suas reflexões foram transpostas e ressignificadas para o campo
da AS, e acrescidas da discussão paradigmática proposta por Souza (2015). Ainda nos
servimos de outros campos transdisciplinares, como o Materialismo Histórico de Marx e a
Psicanálise do campo de Freud e Lacan, para a realização das nossas análises.
Entendemos que o modo de produção institucional guarda relação direta com a
produção comum descrita nos textos de Marx sobre o Modo Capitalista de Produção (MCP) e
os que o antecederam, os Modos Cooperados. Segundo Costa-Rosa (2013), é possível extrair
conclusões e questões esclarecedoras no que diz respeito à configuração dos modos de
produção, “[...] aos efeitos produtivos em termos do excedente de produção (mais-valia), aos
efeitos da divisão do trabalho e quanto às relações entre produção e apropriação.” (p. 55).
Pensamos que a análise sobre como uma instituição se configura atualmente pode ser
mais bem vislumbrada em termos dos efeitos de luta entre dois paradigmas22 que coexistem
em determinado momento da história (KUHN, 2010); ou, em termos dos efeitos de um
processo de transição paradigmática23 (SANTOS, 2011), por isso, a título de exercício
epistemológico, apresentaremos dois paradigmas24 definidos por Souza (2015), a saber, o
Paradigma Caridoso Filantrópico Assistencialista (PCFA) e o Paradigma do Sujeito de
22
Para Thomas Kuhn (1991), paradigmas são “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência.” Ele acredita que o desenvolvimento da ciência não se dá pelo acúmulo de experiências, mas por
revoluções de paradigmas, onde uma teoria explicativa suplanta a anterior, por se mostrar melhor que ela. Sua
análise das revoluções da ciência não se dá pelo método dialético.
23
Boaventura Souza Santos (2002) concebe a existência de dois paradigmas da ciência – um dominante e outro
alternativo – que coexistem em determinado momento histórico. O autor entende que a mudança para um novo
paradigma se dá por meio de uma transição paradigmática; o paradigma dominante entra em crise, fornecendo as
bases para o paradigma emergente, o qual vai surgindo, sendo que, no período de transição, os paradigmas
convivem lado a lado e essa transição se dá de forma processual.
24
Benelli e Costa-Rosa (2012, p. 613) definem paradigma como “[...] um constructo teórico que nos permite
entender dinamicamente a realidade histórica, organizando seu aparente caos, e alcançar uma compreensão de
sua forma, de seu sentido e de seus processos de produção.”
68
25
Os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) funcionam “[...] de um modo massivamente prevalente pela
ideologia, embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta
seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica.” (ALTHUSSER, 1980, p. 47).
26
Formação Social ou formação econômico-social é um termo que “[...] designa uma sociedade historicamente
determinada, um todo social em um momento de sua existência.” (FIORAVANTE, 1978, p. 32). A Formação
Social constitui por si mesma uma unidade complexa; é uma combinação particular, específica, de vários modos
de produção, sendo que um certo modo de produção será dominante e determinará o caráter dos outros. Uma
Formação Social historicamente determinada é resultante de uma articulação particular (matriz) de seus diversos
níveis ou instâncias, a saber, ideológica, jurídico-política e econômica.
69
27
Processo, porque não se refere a uma imposição feita de uma vez por todas, “[...] é uma estratégia que inclui
uma tática na medida em que a base sobre a qual se assenta exige constantes rearranjos, visando conjugar um
grupo de aspirações e interesses contraditórios.” (COSTA-ROSA, 1987, p.31).
70
No momento histórico atual, é possível observar os efeitos de uma emergente luta pela
hegemonia ideológica, técnica, cultural, teórica e ética na instituição AS. Essa observação
torna-se muito nítida, quando situamos as práticas institucionais nos dois paradigmas, o PCFA
e o PSD. Dependendo de qual paradigma estiver prevalecendo e orientando a prática de certo
estabelecimento institucional, pode produzir subjetividades mais alienadas ou então produzir
subjetividades mais singulares. O processo de luta pela hegemonia tem produzido tentativas
de organizar a AS nos Centros de Referência de AS (CRAS), nos Centros de Referência
Especializados de AS (CREAS), nos Centros de Referência Especializados da População de
Rua (Centro Pop), estabelecimentos de acolhimento institucional e entidades assistenciais que
oferecem proteção social, sendo que tais estabelecimentos estão presentes no território onde
as pessoas que demandam seus serviços moram e vivem.
A análise da conjuntura na qual surge a instituição de AS – que teria como objetivo
lidar com os processos e problemas associados ao crescente empobrecimento de grande parte
da população – exige que tomemos “o problema social” em geral como fruto do avanço do
MCP. Segundo Costa-Rosa (2013), podemos assinalar que o mesmo processo que produz a
instituição enquanto dispositivo social irá se produzir com os demais efeitos da demanda
social. Assim, “[...] a isso não escapam os efeitos para cuja lida a instituição se considera
feita.” (p. 57). A instituição enquanto resposta a certa demanda social é dotada de uma certa
função positiva que consistiria em ofertar atenção socioassistencial a quem dela necessitar,
dispensando também os programas de transferência de renda; função que sofre
atravessamentos do imaginário social e do simbólico. Esse imaginário social, por sua vez,
também é atravessado pela instituição, visto que as modalidades de oferta de atenção
socioassistencial possuem influência direta na maneira como se expressa tal demanda.
Dizendo de outra forma, a encomenda – tradução parcial das pulsações da Demanda Social –
está diretamente relacionada com os modos de representação do que seja o que “falta” e
também depende da representação das “ofertas” da instituição e de seus estabelecimentos. Por
exemplo, se um CRAS ou um CREAS oferta com frequência apenas benefícios sociais e saber
de mestria (pedagógico/educativo) – ofertas típicas do PCFA –, pode ser bastante comum que
boa parte das pessoas que cheguem a esses estabelecimentos assistenciais solicite esses
recursos. Já por outro lado, se as modalidades de ofertas transferenciais (possibilidades de
vínculos) forem de cunho mais simbólico, abrindo possibilidades para uma escuta que
promova a implicação subjetiva e sociocultural – típicas do PSD –, ainda que não exclua o
acesso aos direitos e aos bens socialmente produzidos, os pedidos de ajuda têm mais chances
de se configurar de outra maneira que não apenas pelo viés pedagógico e econômico e que
71
tende a escamotear os nítidos efeitos do MCP, processos que incluem tanto a precarização do
trabalhador quanto o empobrecimento da população.
2.3 Consistência
28
Para Marx o trabalho é a categoria fundante do ser social, condição da produção da vida social, por isso
categoria ontológica, ou seja, central na vida dos homens. O trabalho como categoria central existe independente
de qualquer formação social.
72
abstrata instituída e verdadeira, como se houvesse uma forma única de realizar os modos de
assistir, organizada por intermédio do SUAS.
Mas a instituição não é composta apenas de enunciados discursivos. Segundo apresenta
Baremblitt (2012), a instituição, para cumprir concretamente sua função oficial, precisa se
materializar sob as formas sociais de organizações e estabelecimentos. Os CRAS, os Centro
Pop, os CREAS, as casas de acolhimentos, as organizações sociais governamentais, as
organizações não governamentais e as entidades assistenciais compõem os estabelecimentos
da Assistência Social e costuma ser neles que as principais ações institucionais são realizadas,
sendo operadas por meio dos agentes institucionais – trabalhadores do campo, e, na melhor
das hipóteses, também pelos sujeitos29.
É na esfera das práticas, no momento da particularidade, que a instituição adquire
status de dispositivo. Segundo Foucault (1996, p. 244-245) dispositivo refere-se a um
práticas da instituição com seu discurso, revelando a negatividade e também uma face de
produção de saber novo. Por exemplo, é possível verificar quais seriam as relações entre as
práticas de trabalhadores dos CRAS, CREAS e das entidades assistenciais com o discurso
institucional oficial. Ao realizar essa análise, podemos notar, majoritariamente, a existência de
práticas disciplinares e tuteladoras, no sentido que Foucault (2015) atribui a esses termos,
além de tentativas de gestão dos riscos sociais (CASTEL, 1984), ao invés de ações de
proteção social contra os efeitos do MCP, incluindo o acesso a direitos sociais e a bens
socialmente produzidos, além da construção de novas formas de habitar a realidade e fazer
laço social.
Costa-Rosa (2013), tendo em vista a definição de instituição como um conjunto de
saberes e práticas articulados por um discurso, levanta uma hipótese quanto às exigências de
sua compreensão por parte dos trabalhadores que a compõem. Para o autor, “[...] a análise das
contradições que atravessam a instituição e mais amplamente o manejo de um referencial de
análise de discurso são ferramentas imprescindíveis para quem deseja inserir-se numa
instituição de um modo não apenas funcionalista.” (p. 61). Isso não significa que o
trabalhador necessite se tornar um especialista em AI, mas consideramos que essa capacidade
de leitura crítica pode contribuir no sentido de a instituição poder tomar certa consciência de
si e para si.
30
A lógica paradigmática é expressa por concepções teóricas, técnicas, políticas, ideológicas e éticas (COSTA-
ROSA, 2013).
77
Mas uma interpretação desse discurso, quando se realiza o confronto desse com os
saberes e as práticas institucionais, torna possível visualizar uma função negativa da
instituição, a qual pode ser subdividida em três subfunções: produção de “mais-valia”,
reprodução de relações sociais e intersubjetivas dominantes e ainda a criação de outras formas
de relações sociais (alternativas às formas de relações institucionalizadas); esta última seria a
78
parte mais importante das funções negativas, pois possibilita pensar em formas alternativas
aos processos de dominação.
A primeira subfunção, produção de mais-valia, pode se dar de maneira direta ou
indireta. Marx (1996), em suas análises sobre o Capital, demarcou a diferença entre duas
modalidades de trabalho e descreveu como se produz a mais-valia. Para Marx (1985) a
distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo consiste no fato de que somente o
primeiro produz mais-valia. Essa é a porção do valor total da mercadoria em que se incorpora
o sobretrabalho do operário, ou seja, daquela parte do trabalho não remunerado e que é
apropriada pelo capitalista. Mas e no caso dos trabalhadores dos serviços públicos, isto é, de
instituições que não tem como objetivo primordial a produção de mais-valia? Carcanholo
(2007), relendo Marx, apresenta uma nova leitura sobre o trabalho produtivo. Para ele, os
profissionais do setor público – por exemplo, das áreas da Educação e da Saúde – produzem
valor e excedente-valor “que não é pago pelos que imediatamente usufruem que, se são
trabalhadores, têm o valor da sua força de trabalho reposto ou ampliado” (idem, p. 6). Esses
trabalhadores do setor público produzem valores de uso, como no caso do professor que
produz conhecimento (formação para o trabalho) e do médico que produz cuidado em saúde.
Esse valor (de uso) produzido pelos servidores públicos reaparece nas mãos dos capitalistas
que contratam os trabalhadores sem que lhes custe nada (salvo o que pagam de impostos). E
se esses trabalhadores contratados são produtivos:
31
Os convênios com entidades assistenciais e organizações sociais é previsto pela AS. Para ter o convênio a
entidade precisa receber a Certificação de Entidade de Assistência Social, concedida pelo Governo Federal. O
convênio é feito entre o município e a entidade e esta recebe um repasse financeiro da AS para realizar
atividades socioassistenciais.
79
empresas terceirizadas32 para a realização de cursos, e b) nos casos em que certas figuras
públicas, as quais deveriam apenas estar cumprindo seu dever de trabalhadores da AS, fazem
uso da maquinaria do Estado para aumentar seu prestígio e conseguir mais votos, usando a
justificativa de que estão atendendo a população. Ainda no que diz respeito à produção de
mais-valia indireta, esta pode acontecer quando a AS prepara – por meio de programas como
o “Time de Emprego”33, por exemplo - e realiza a introdução do sujeito no mercado de
trabalho e do consumo de modo alienado, uma vez que a entrada no mercado de trabalho
relaciona-se com a produção de lucro para o capital.
Costa-Rosa (1987), subsidiado pela AI, amplia o conceito de mais-valia, destacando que
nas instituições se produz mais-valia de uma outra natureza, ou seja, a reprodução das
relações sociais de produção – na medida em que as instituições são capazes de recriar a
forma das relações sociais. A segunda subfunção negativa da instituição, pela natureza dos
efeitos que produz, merece destaque. Os efeitos referem-se à reprodução das relações sociais e
intersubjetivas dominantes, isto é, “[...] as mesmas relações sociais da produção de mais-valia
no campo social; basicamente relações verticais de domínio e subordinação” (COSTA-ROSA,
2013, p. 66). No PCFA, as relações estabelecidas entre os trabalhadores e sujeitos estão
baseadas na verticalização, na qual os trabalhadores ocupam essencialmente a posição de
supridores, enquanto os sujeitos ocupam essencialmente a posição de carentes. Além disso, o
pequeno grupo de trabalhadores fica situado e se posiciona como aquele que detém o saber-
poder-ajudar, saber esse que é expropriado dos próprios sujeitos, através de um arcabouço de
práticas e saberes de controle e disciplina, acumulados tanto no período de formação quanto
no dia a dia de trabalho. Todavia, a verticalização das relações acontece também entre os
próprios trabalhadores, visto que o trabalho se estabelece de sorte que há alguns (nos cargos
de coordenação) que mandam e outros (subordinados) que obedecem. Resultado: ao produzir
o produto que está no discurso oficial da instituição (disponibilizar atenção socioassistencial a
quem necessitar), “[...] reproduz-se uma forma de subjetividade que é a própria reprodução
32
Nos últimos anos tem acontecido terceirizações nos serviços públicos. A terceirização pode ser compreendida
como uma locação de serviços, ou seja, quando uma empresa ou instituição transfere para uma terceira a
responsabilidade por suas atividades-meio. Nos serviços públicos a terceirização acontece em atividades tais
como serviço de limpeza e vigilância. Nos últimos anos tem acontecido terceirizações na Saúde por meio da
contratação de Organizações Sociais e empresas de venda de consultas médicas especializadas. Na AS, a
terceirização acontece por meio da contratação de empresas para dar cursos de informática, atividades físicas,
dentre outras, no CRAS e no CREAS. Isso tem produzido a precarização do trabalho e a baixa qualidade dos
serviços.
33
O Time do Emprego é um Programa de orientação profissional do Governo Estadual de São Paulo e possui
como objetivo auxiliar a inserção ou o retorno de sujeitos ao mercado de trabalho. O conteúdo programático
abrange alguns temas, tais como: autoconhecimento, construção de currículo, técnicas de procura de emprego,
planejamento financeiro, dentre outros.
80
34
De acordo com Lacan (1992), toda forma de enlace social se dá por meio de modalidades discursivas. Essas
modalidades são: Discurso do Mestre, Discurso da Universidade, Discurso da Histeria ou do Sujeito e Discurso
do Analista. Cada um se apresenta como um algoritmo de quatro lugares: o agente, o outro, a produção e a
verdade. Estes, por sua vez, serão ocupados por quatro elementos da álgebra lacaniana, a saber, S barrado, a, S1,
S2; e, dependendo de qual lugar cada elemento ocupar na estrutura discursiva, o elemento possuirá uma
conotação específica. Como a ordem entre os elementos é fixa, a permuta circular (em movimentos de meio
quarto de volta, em sentido horário) desses elementos resulta nas quatro modalidades de discurso. Dessa
maneira, no Discurso do Mestre (DM), encontramos o Mestre (S 1) agenciando o outro (S2), enquanto detentor de
um saber-fazer, impulsionando-o para que ele produza um saber, o qual será expropriado e útil ao Mestre, uma
vez que é a partir desse saber expropriado do outro que ele proferirá uma ordem (“faça isso”, “seja assim” etc.).
A verdade escamoteada pelo mestre é sua condição de sujeito faltante (S barrado). No Discurso da Universidade
(DU), temos o saber enciclopédico (S2) agenciando o outro como objeto de ensino ou de pesquisa (a), obtendo
como resultado a supressão da singularidade do sujeito (S barrado). A existência do autor (S 1) é a verdade
recalcada desse discurso. No Discurso da Histeria (DH), encontramos o sujeito em sua divisão subjetiva (S
barrado) interpelando o outro-mestre (S1) para que ele produza um saber (S 2), supondo que este saberia sobre o
que o faz sofrer (a). No Discurso do Analista (DA), temos o analista que, ao posicionar-se como semblante do
objeto [causa] do desejo no lugar do agente (a), impulsiona o sujeito (S barrado) a produzir seus próprios
significantes mestres (S1). A verdade desse discurso é o fato de o analista colocar seu saber enciclopédico (S 2)
em suspenso.
81
cisão entre quem produz e os meios e fins da produção, e entre os atos produtores e os atos de
apropriação daquilo que é produzido.” Cabe lembrar que a produção de subjetividade
singularizada constitui um horizonte ético do PSD.
No atual contexto, uma questão importante, quando pensamos sobre as práticas de AS, é
a cisão/separação entre o trabalhador e os meios de produção, tal como acontece na produção
em geral. Para poder produzir, os trabalhadores precisam se combinar com os meios de
trabalho e, como não são os donos desses meios, necessitam “[...] apelar a um intermediário
que é dono dos meios de produção e remunerador direto da força de trabalho.” (COSTA-
ROSA, 2013, p. 69). A lógica geral pela qual se rege a produção de AS, em sua modalidade
dominante – PCFA –, é a do MCP.
Para caracterizar o MCP, a referência tomada será a conceituação de Modos e Processos
de Produção e a descrição daqueles por Marx (2011), em texto no qual discute acerca dos
Modos de Produção Cooperados e o Modo de Produção Capitalista. É necessário esclarecer
que modo de produção representa um conceito formal abstrato, o qual serve como um
instrumento analítico na interpretação e conhecimento de uma realidade social. Um modo de
produção é “[...] uma combinação específica de diversas estruturas e práticas que aparecem
como instâncias ou níveis, isto é, como estruturas regionais com uma autonomia e dinâmicas
próprias, ligadas a uma unidade dialética.” (FIORAVANTE, 1978, p. 31). Já processo de
produção – ou processo de trabalho – refere-se a todo processo de transformação de um
objeto, por meio da atividade humana utilizando-se de instrumentos, em um objeto específico.
Esse processo é composto por alguns elementos – objeto a ser transformado, instrumentos, a
atividade humana (força de trabalho) e o produto – e a forma como se combinam esses
elementos determina o modo do processo produtivo.
Quanto aos modos de produção, Marx (2011), ao apresentar como se dava a relação do
trabalhador com os meios de produção, antes da existência do capitalismo, demonstra que o
que era comum, nessas formações econômicas pré-capitalistas, é a não existência de uma
separação radical entre os trabalhadores e os meios de produção, pois os trabalhadores eram
proprietários desses meios. Percebemos certa relação de homologia entre esses modos e o
Modo Cooperado. Por outro lado, na formação econômica capitalista, há uma separação
radical entre os proprietários da força de trabalho (o trabalhador) e os meios de produção (o
capital), porque estes são de propriedade do não trabalhador (capitalista); e a força de trabalho
82
se transforma em um instrumento nas mãos do capital. Costa-Rosa (2013) ainda lembra que a
razão de ser do ato produtivo já não é mais apenas a criação de “valores de uso”, mas,
sobretudo, a produção de “valores de troca”. O excedente produzido pelos trabalhadores não
se transforma em objeto da apropriação coletiva: a apropriação acontece por apenas um dos
polos de interesse (polo capitalista) presentes no campo social. Logo, a separação entre
trabalhador e meios de produção, a qual também ocorre na produção em geral no MCP, marca
de forma importante a natureza do modo de produção e da relação dos produtores com o
produto do seu trabalho, no campo da AS, alterando de maneira radical o processo de
produção de atenção socioassistencial e seus efeitos produtivos.
Em se tratando da instituição AS enquanto política pública brasileira, o intermediador
necessário é o Estado, que “[...] assume as feições da própria instituição como intermediadora
da relação entre trabalhadores da instituição e usuários de seus serviços.” (COSTA-ROSA,
2013, p. 69-70). A instituição, por conseguinte, pode ser organizada de dois modos distintos
de produzir – modo capitalista ou modo cooperado – e possuir várias funções produtivas que
têm a capacidade de se atualizarem ao mesmo tempo em que se produzem. Devido ao fato de
haver essa intermediação, não existe ato produtivo puro. A forma como a instituição se
organiza, isto é, se é de acordo com as características do MCP ou se segundo uma forma
capaz de driblar os efeitos desse modo de produção, será decisiva para o que resultará dos
seus atos produtivos, pois haverá uma mudança radical na natureza da produção, do produto,
do excedente produzido e de quem dele se apropria e como o faz, em cada uma das formas.
A hipótese levantada neste trabalho, dado o fato de que não se pode excluir o
intermediário – o Estado – nas práticas de atenção sócio assistencial, é a de que a produção e
o produto que interessam aos agentes institucionais, sujeitos e os trabalhadores, supõem a
neutralização das características do MCP, sob a qual se organizam os dispositivos
institucionais da AS no PCFA. Apesar de não ser possível a exclusão do intermediário,
trabalhamos com a possibilidade de que seria possível transformar radicalmente a forma de
intermediação. A Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2013) fornece uma das
brechas, no sentido de uma transformação do modo das relações intrainstitucionais, uma vez
que prevê a participação dos usuários nos Conselhos de Assistência Social, assim como nos
fóruns; essa transformação está na direção contrária ao funcionamento das instituições
características do MCP, que usualmente se organizam de modo heterogestivo. A neutralização
das características do MCP, presentes nos dispositivos institucionais, deve, conforme indica
Costa-Rosa (2013, p. 70-71), “[...] passar pela superação das relações sociais
intrainstitucionais verticais e sua substituição por processos cooperados de gestão do
83
Seguindo as ideias de Deleuze recolhidas por Escobar (1991), podemos afirmar que as
instituições traduzem as exigências do homem, sendo criadas para tentar satisfazê-las. A
instituição AS é uma Formação Social que passou a existir em determinado momento
histórico, buscando dar respostas a determinadas pulsações existentes na sociedade.
Analisando-a historicamente, notamos que a AS assumiu uma diversidade de figuras: aparece
como ação religiosa também reconhecida pela fisionomia da caridade, surge como filantropia
da elite econômica, manifesta-se sob a forma de promoção humana, como clientelismo
assistencialista do poder público e também como Política de Estado (BENELLI; COSTA-
ROSA, 2012). Essas figuras diversas revelam sua capacidade de sobreviver e conviver e se
reatualizar, incorporando práticas, saberes e discursos, pois a promoção humana recupera o
discurso da caridade e o clientelismo assistencialista utiliza o conjunto de estabelecimentos do
Estado para operar. Todas essas diversas fisionomias ou discursos da AS – cada qual com sua
ética própria (BENELLI, 2014) – foram aglutinadas em apenas um paradigma, esse que
nomeamos de PCFA, porque sua ética e ações colocam o sujeito como objeto de ajuda e não
criam meios para que ele possa assumir o protagonismo que o discurso oficial lhe reserva.
Essa característica do paradigma hegemônico de sempre se atualizar, incorporando elementos
do PSD e das reivindicações sociais por direitos e proteção social, muitas vezes está velada,
pois mantém intacta a sua estrutura e os seus produtos: subjetividade serializada, controle,
sujeitos passivos e apolíticos. São alterações que acabam por mudar apenas a superfície, já
que não há nenhum questionamento efetivo sobre as relações de poder e dominação
socialmente instituídas.
A AS pode ser sintetizada em duas modalidades paradigmáticas, a saber, o PCFA e o
PSD. Quando organizada sob a lógica do PCFA, dominante na contemporaneidade, apresenta
como principais características os seguintes aspectos: o sujeito da atenção socioassistencial
não é visto como um participante ativo para resolução de seus impasses, o trabalhador é quem
supõe poder resolver o impasse do sujeito; os meios de trabalho, incluindo os atendimentos
psicossociais, atividades pedagógicas e educativas, inserção em programas de transferência de
renda, dentre outros, são pensados e, muitas vezes decididos, como resposta a priori para cada
situação, desconsiderando as especificidades de cada lugar, situação e sujeitos envolvidos;
84
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2004.
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que dispõe sobre a organização da Assistência Social e dá outras providências, e legislação
correlata. Brasília: Câmara dos Deputados, 2013.
COSTA-ROSA, A. Saúde Mental Comunitária: análise dialética das práticas alternativas. 1987.
Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 1987.
88
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AMARANTE, P. D. C. (Org.) Ensaios: subjetividade, saúde mental, sociedade. Rio de Janeiro:
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______. Conversações. Tradução Peter Pál Perbart. 8. Ed. São Paulo: Ed. 34, 2008.
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FOUCAULT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. 42. ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
______. O Capital: crítica da economia política. Tradução por Regis Barbosa e Flávio R.
Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1985. Livro 1, v.1, t.1. (Os economistas).
______. O Capital: crítica da economia política. Tradução Regis Barbosa e Flávio R. Kothe.
São Paulo: Nova Cultural, 1996. Livro 1, v.1, t.1. (Os economistas).
______. Formações econômicas pré-capitalistas (1857-58). Tradução João Maia. 7. ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
3.1 Introdução
Neste ensaio temos como objetivo fazer breves apontamentos sobre o trabalho do
psicólogo – precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan – na política social de AS
e apresentar o Dispositivo Intercessor (DI) como uma ferramenta de produção de saber na
práxis comum e de conhecimento na práxis universitária. Procuramos refletir acerca da
pertinência e dos limites e possibilidades das contribuições da psicanálise para esse campo
cuja característica predominante consiste em supor um sujeito marcado pela falta de direitos
(renda, convivência familiar e comunitária, inserção social, etc.) e tentar completá-lo com
aquilo que lhe falta (programas de transferência de renda, oficinas, rodas de conversa, entre
outras atividades). Nesse sentido, buscamos saber se poderíamos operar a escuta para além dos
significantes “pobreza” e “miséria”, isto é, uma escuta do sujeito do (desejo) inconsciente em um
campo em que muitas vezes apenas se considera o sujeito de direitos.
Para a psicanálise, o sujeito não se reduz à pessoa, ao indivíduo e sua personalidade,
razão, emoção e comportamentos, tampouco é a mente suscetível de estar saudável ou doente.
Ele não é o eu, “[...] aquilo que apresento ao outro, meu semelhante, igual e rival, como sendo
o que quero que o outro veja” (QUINET, 2011, p. 15). O sujeito não possui uma identidade
própria, ele é tão somente representado por significantes que existem no Outro. O sujeito do
inconsciente é constituído a partir do campo do Outro, submetido às leis da linguagem,
estruturalmente faltante, e por isso mesmo desejante.
O trabalho do psicólogo na AS comporta uma série de especificidades. Nesse campo
não se prevê que ele possa realizar psicoterapia. Por outro lado, existe um conjunto de tarefas
que são previstas, tais como acolhimentos, visitas domiciliares, oficinas, acompanhamentos,
entre outras atividades que o psicólogo precisa executar enquanto técnico do serviço. Em um
campo em que predomina a preocupação com questões materiais e sociais, como escutar para
além do sujeito de direitos, ou seja, escutar o sujeito do desejo, também nomeado por
Scarparo (2008) “Sujeito perdido”?
Partimos da hipótese de que entender se e como a psicanálise pode contribuir nesse
campo torna-se importante pois cria uma abertura para que a dimensão do inconsciente seja
considerada nas práticas institucionais e nos impasses que podem decorrer do fato de os
indivíduos estarem na posição de demandantes de ajuda.
91
relacionadas, uma vez que “formas alternativas de conhecimento geram práticas sociais
alternativas e vice-versa” (ibidem, p. 344). Alinhado com essa perspectiva de um novo
paradigma epistemológico e sociocultural encontra-se o DI. A meta ética do DI é servir de
instrumento para a superação da divisão entre os que pensam e os que fazem, entre os que
possuem conhecimento e decidem e os que não dispõem de conhecimento e obedecem; em
suma, ele pretende servir para o exercício de uma reflexão que se situe além da clássica
divisão da ciência entre sujeito e objeto do conhecimento.
O DI opera com os saberes advindos de um conjunto de referenciais teóricos, a
saber: a Psicanálise do campo de Freud (1996) e Lacan (1992, 1995, 2008), o Materialismo
Histórico de Marx (2001), a Análise Institucional (AI) de René Lourau (2014) e Georges
Lapassade (1983), a Filosofia da Diferença (de Nietzsche a Deleuze, passando por Foucault
e Guattari) e o conceito de intercessores de Deleuze (1992). Distante de ser este apenas um
aglutinamento eclético de autores e teorias, essas referências teóricas têm como eixo o fato
de constituírem campos de conhecimento e de ação transdisciplinares, isto é, fundarem-se
na meta política de seguir outra via que a do sujeito-objeto; fornecerem uma possibilidade
de olhar a realidade a partir de sua complexidade, permitindo a formação de diversos planos
analíticos suplementares. Nossa tentativa de operar com o DI baseia-se, sobretudo, no
campo da psicanálise de Freud e Lacan.
São dois os momentos que compõem o DI: o primeiro deles é o DI como práxis do
intercessor encarnado (ANDRADE, 2013), etapa em que a produção de saber se dá na própria
práxis do intercessor; e o segundo consiste no Dispositivo Intercessor como Meio (ou modo)
de Produção de Conhecimento (DImpc), momento em que a produção de conhecimento volta-
se conjunturalmente para a universidade35 e visa a instrumentalizar outros trabalhadores – e
também futuros trabalhadores – que desejarem tornar-se intercessores em seus campos.
35
Estar conjunturalmente voltada para a universidade se deve ao fato de que, no atual contexto histórico, o
grande volume das produções de conhecimento são realizadas neste campo e não haveria motivo para não
participarmos deste espaço também. Concebemos a universidade como apenas mais um espaço onde se pode
realizar a produção de conhecimento. Isso significa considerar que os trabalhadores da práxis comum também
possam realizar reflexões e ser produtores de conhecimento no próprio campo. A Educação Permanente pode ser
uma importante estratégia nesse sentido.
93
intercessor não realiza pesquisa. Ele se situa enquanto trabalhador no campo, isto é, sua
inserção se dá no mesmo plano dos demais trabalhadores do estabelecimento institucional. O
saber produzido nesse momento é designado pela psicanálise um “saber em intenção”
(JULIEN, 2002), saber na práxis.
Na dialética encontra-se um conceito chave para o intercessor, o conceito de práxis. A
dialética privilegia “contradição e conflito, predominando sobre a harmonia e o consenso; o
fenômeno da transição, da mudança e do devir sobre a estabilidade; o movimento histórico e a
totalidade como unidade de contrários” (FODRA et al, 2007, p. 92). Em uma instituição
existem conjuntos de forças instituídas e instituintes (BAREMBLITT, 2012), constituindo-se
como um espaço com certa permeabilidade a mudanças. Estas podem ser operadas a partir dos
agentes da instituição/estabelecimento, que inclui sujeitos ditos usuários e trabalhadores.
A diferença do trabalhador-intercessor em relação aos demais trabalhadores é que ele
se posiciona em relação à prática de modo especificamente planejado, resgatando o conceito
de práxis, e está instrumentalizado pelos referenciais teóricos que embasam o DI. Esse
dispositivo nada mais propõe do que instrumentar possibilidades de um trabalhador comum
da práxis posicionar-se de modo específico em relação a ela. Divisões como aquela entre o
instituído e o instituinte (até certo ponto homólogos àquela entre o consciente e o
inconsciente), entre o sabido e o não-sabido, o sujeito e o objeto, o suprido e o carente, o fazer
e o saber, são a matéria prima que o trabalhador-intercessor nunca poderá deixar de incluir
nos processos de produção dos impasses que o trabalhador é chamado a resolver, e, por
consequência, em sua reflexão sobre eles nos diferentes planos em que é necessário fazê-la.
O trabalhador-intercessor não é um intelectual (nos moldes cartesianos) que vai a
campo para ensinar aos trabalhadores como estes devem operar. Ele é, essencialmente, um
trabalhador. Sendo assim, pode atuar nos mais diversos campos e nas mais variadas
instituições (Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Meio Ambiente, entre outros), inclusos aí os
estabelecimentos institucionais que fazem parte das políticas públicas, como as Unidades
Básicas de Saúde (UBS), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as escolas municipais e
estaduais, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), os Centros de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), as Casas de Acolhimento a crianças e
adolescentes, entre outros.
De acordo com Souza (2015), o trabalhador-intercessor pode ser compreendido como
um coadjuvante nos processos de que participa. Ele compreende que os sujeitos que compõem
a instituição (trabalhadores e sujeitos nomeados usuários) são os verdadeiros protagonistas,
cabendo a ele apenas ser aquele que, aproveitando-se das brechas e potencialidades do campo,
94
37
Destacamos, no Mais-um, a possibilidade que esta posição inclui de também sobretudo elaborar o saber
segundo ou saber em segundo plano, isto é, a elaboração do saber que parte do trabalhador-intercessor quando
ele está posicionado como pesquisador-intercessor.
96
instituições em questão, sejam trabalhadores intercessores; outro modo de dizer que teriam
abolido a principal contradição da divisão do trabalho: a separação entre os que fazem e os
que pensam, e por isso lhes tem sido designado socialmente a função de produtores
específicos e especializados de saber.
Durante esse primeiro momento do DI, o intercessor constrói o diário de intercessão,
ferramenta que guarda certa similaridade com o diário de campo, com a diferença de que ali
não são anotados apenas dados e relatos de acontecimentos. Enquanto escreve, o trabalhador-
intercessor produz reflexões sobre sua práxis e a repensa. Nesse primeiro momento, o diário
de campo é empregado para “[...] ajudar a pensar a práxis e a delinear o posicionamento de
intercessor” (GALIEGO, 2013, p. 71) no campo da ação cotidiana. Após um processo de
escrita, dependendo das reflexões que pôde fazer sobre o campo e suas ações, ao voltar à
práxis, o trabalhador-intercessor pode reposicionar-se e modificar seu fazer e mesmo sua
posição no coletivo de trabalhadores. Ressaltamos que a reflexão do trabalhador-intercessor
acerca do campo e de suas ações é um exercício cotidiano, independentemente de haver ou
não a pretensão de uma reflexão no campo da universidade. Do mesmo modo que se pretende
que o conjunto de psicanalistas do campo de Freud e Lacan realizem reflexões e produções
textuais acerca de suas questões de trabalho, o que se esperaria numa circunstância em que a
divisão do trabalho estivesse superada, ao menos para um subconjunto de trabalhadores-
intercessores, é que todos escrevessem textos e produzissem avanços teóricos.
38
A Roda de Conversa, orientada pela Educação Popular, é um espaço de horizontalização das relações de poder
e de construção de um saber também coletivo. Podemos situá-la como um dispositivo que serve para driblar o
modelo de “Educação Bancária” (FREIRE, 2005) que coloca os sujeitos como meros recebedores e arquivadores
de saberes transmitidos pelo mestre.
100
Não se almeja grandes revoluções a partir das intercessões. Aspira-se a que, a partir
das brechas que são visualizadas, seja possível contribuir para que se produzam pequenos
deslocamentos no modo de produção institucional e no saber daquele coletivo a fim de que o
instituído (enquanto verdade) seja questionado e possibilite o surgimento de novos saberes
potencialmente singulares (GALIEGO, 2013). E como esclarece Lacan (1992), não é o desejo
de saber que interessa, mas, sobretudo, a postura questionadora que conduz ao saber. Essa
postura dá acesso ao não-sabido, ao recalcado, do sujeito e também ao grupo.
Sendo a tarefa do intercessor contribuir para que os jogos de força e os movimentos da
instituição/estabelecimento adquiram expressão, a fim de que o próprio coletivo de trabalho
possa criar formas de resolver os impasses institucionais, é de suma importância que ele “não
force um movimento para o qual ainda não haja abertura e não precipite uma situação”
(GALIEGO, 2013, p. 58), pois isso pode tornar inviável o processo de intercessão e fazer
surgir barreiras às possibilidades de construção coletiva de movimentos instituintes e de
mudanças efetivas. Dessa forma, é necessário que o intercessor perceba qual é o ritmo do
coletivo de trabalhadores, de modo a se manter próximo deles e a acompanhá-los.
Experimentamos estar em um estabelecimento (CREAS) em que o coletivo de
trabalhadores, embora vivenciasse incômodos e frustrações em decorrência de casos que não
conseguiram solucionar, naquele momento não desejava repensar suas práticas e o próprio
funcionamento institucional. Uma situação foi bastante exemplar. Durante nossa inserção
tivemos contato com algumas pessoas que estavam e/ou estiveram em situação de rua e que
quase cotidianamente frequentavam aquele estabelecimento. F. era um destes sujeitos. A
escuta dele, realizada na sala de espera, propiciou que ele fizesse um trabalho subjetivo que
dificultou seu sono por algumas horas naquela noite. Como isso foi sabido pelo CREAS, a
coordenadora me procurou para dizer que a escuta não poderia mais acontecer, pois o
estabelecimento não era um local para isso. Mas como trabalhar com os sujeitos sem levar em
conta o desejo deles?!
Nem sempre os coletivos de trabalhadores de um dado estabelecimento institucional
estão dispostos a refletir e realizar mudanças, algumas vezes eles pretendem somente
continuar como estão. É no coletivo que se realizam as negociações, tanto no sentido do recuo
quanto no do avanço, caso se pretenda ser coerente com a ética dos intercessores. E conforme
demarca Galiego (2013, p. 58-59) “A forma e a velocidade com que isso se processará,
dependerão das possibilidades de avanço ou dos desejos de recuo do próprio estabelecimento
institucional, das forças (instituinte/instituído) em luta no campo.
101
decisões que tomara e do desejo de cursar inglês (que não aprendera até então). O que fez
operar a mudança nesses casos foi o posicionamento da intercessora de não responder no
imaginário, de modo que os sujeitos puderam começar a tratar o Real39 pelas ferramentas do
Simbólico40 (LACAN, 1995), produzindo um saber sobre si.
Em nosso percurso de inserção institucional não houve uma linearidade quanto às
intercessões. Somente em poucos momentos foi possível que nos posicionássemos como
intercessora junto aos coletivos de trabalho dos estabelecimentos assistenciais.
Compreendemos que esta dificuldade, ao menos em parte, relacionava-se ao próprio campo
de intercessão e ao momento histórico que vivíamos. Embora a existência dos
estabelecimentos assistenciais – CRAS, CREAS e Casa de Acolhimento – nos municípios
esteja prevista pela PNAS, devido a algumas características do próprio município parecia não
haver uma demanda que fosse muito além da concessão dos programas de transferência de
renda. Além disso, a cultura da caridade, da filantropia e do assistencialismo (BENELLI,
2014a; BENELLI; COSTA-ROSA, 2012) ainda permanecia muito presente no imaginário dos
sujeitos e até de alguns trabalhadores, o que dificultava a construção coletiva da AS enquanto
direito social. Conforme salienta Galiego (2013, p. 60), o posicionamento do intercessor “está
sujeito às vicissitudes dos encontros, às aberturas ou restrições que o contexto apresentar, e à
possibilidade do intercessor de se sustentar neste lugar”.
39
O Real não é o mesmo que realidade e nem que a realidade psíquica (a realität freudiana). O Real é aquilo que
pulsa, que não para de não se inscrever. Ele é o que não possui um significante que sirva de anteparo, gozo. Sua
emergência pode ser detectada, por exemplo, a partir da experiência da angústia, quando se é tocado pelo Real.
40
O Simbólico pode ser compreendido como “o que diz respeito a um sistema de representações calcado na
linguagem, ao campo do Outro regido pela Lógica do Significante, que estrutura o desejo como falta-a-ser e
autoriza nossa ascensão ao campo propriamente humano” (PÉRICO, 2014, p. 41).
103
intercessores para que estes possam produzir outras intercessões. Cabe salientar que não se
trata de ensiná-los como operar no campo, mas de instrumentalizá-los, ajudá-los a saber-fazer.
O intercessor sabe que a realidade está sempre em movimento e o conhecimento também, por
isso não pretende uma produção de conhecimento universal. Sabe que tanto a produção de
saber na práxis quanto a produção de conhecimento na universidade são produções locais e
datadas, portanto jamais universalizáveis, mas com potencial de produzir novos devires e
novos intercessores nesses campos.
A universidade é práxis de trabalhadores de outro plano da práxis. Na produção
científica comum, baseada no modelo cartesiano, a produção de conhecimento exclui a
subjetividade e a ciência produz uma única verdade (COSTA-ROSA; PEREIRA, 2011). A
questão que se coloca é: como construir um outro tipo de conhecimento que não apenas
aquele que já tem sido produzido? Eis o que move o intercessor-pesquisador no trabalho de
escrita. Com o DIMPC, pretendemos fazer a crítica a divisão social do trabalho e produzir
reflexões teóricas a partir da posição de trabalhador que pensa sobre seu fazer e sobre seu
campo. Nesse sentido, podemos considerar como um conhecimento outro (saber segundo) que
questiona o modo comum de fazer ciência e possa se inscrever nas brechas de uma
modalidade discursiva que Lacan (1992) nomeou como Discurso Universitário (DU).
O intercessor-pesquisador, ao inserir-se nas brechas do DU, realiza sua produção a
partir de uma outra modalidade de discurso, o “Discurso da Histeria” – DH (LACAN, 1992)
ou Discurso do Sujeito. A estrutura do DH é a função de enigma enquanto tal. Nesse discurso,
o agente é um sujeito dividido que possui uma interrogação. Do mesmo modo que a histérica,
o intercessor detém uma questão. Isso significa que o intercessor-pesquisador se coloca como
sujeito (na posição de agente) e, na sua produção (trabalho) de um conhecimento sobre sua
práxis, “coloca em discussão os saberes estabelecidos que, a partir da experiência da práxis,
poderão ser discutidos, questionados, complementados ou até mesmo redirecionados”
(MIRANDA, 2011, p. 35). Ao intercessor cabe realizar a reflexão no campo epistemológico
porque, no primeiro momento (o do DI enquanto práxis do intercessor), ele era o agente da
práxis junto aos os demais trabalhadores.
Para realizar a reflexão no campo epistemológico, o intercessor-pesquisador retoma
seu Diário de Campo. Os escritos que, no primeiro momento do DI serviam para, a partir da
reflexão, reposicioná-lo na práxis, no segundo momento adquirem uma nova função, a de
servir de ponto de apoio para uma reflexão de cunho epistemológico. No que se refere à
pertinência e à validação dos registros no formato de Diário, entendemos que, assim como as
anotações ou escritas posteriores do psicanalista são cabalmente legítimas, conforme destacou
105
Mezan (2002), também são autênticos os relatos do intercessor. O que dá base ao raciocínio
analítico é o teor dos elementos e suas similaridades, e não um fato isolado, de modo que, se
comparada ao teor geral do discurso, a transcrição fidedigna – que, de fato, jamais seria
possível, sem mesmo com as gravações ou filmagens - possui pouquíssima importância.
Sendo assim, importa a compreensão geral das situações. Destacamos, ainda, que o material
mais precioso é a experiência vivida pelo intercessor, material este que está em sua memória,
mas que não pode ser totalmente transposta para um escrito. Ao servir-se do Diário,
recuperando parte experiência vivida, o intercessor precisa ter claro que esse material deve ser
confrontado com os referenciais teórico e ético que subsidiaram sua práxis, visando a “[...]
abrir campos de discussão” (GALIEGO, 2013, p. 72).
Nesse momento de elaboração de conhecimento no campo da universidade, o
intercessor-pesquisador tem duas funções: 1) a de analista, quando observa os efeitos dos
analisadores no campo; e 2) de analisador, capaz de disparar problematizações em relação aos
saberes instituídos, tendo por consequência a promoção da elaboração de novos saberes, de
novas possibilidades de intercessões. Enquanto agente questionador do saber instituído, o
intercessor-pesquisador procura fazer movimentar a rede não somente de conceitos como
também de significantes instituídos, resultando na produção de um saber dinâmico e de uma
verdade não-toda, pois como disse Lacan (1992, p. 36) “[...] a verdade, nunca se pode dizê-la
a não ser pela metade”. O saber produzido nesse momento é nomeado pela psicanálise “saber
em extensão” (JULIEN, 2002), um saber sobre os processos de produção de saber na práxis.
Poder-se-ia perguntar sobre a finalidade da produção textual no DIMPC. Partimos do
reconhecimento de que a Universidade também pode ser um campo de intercessão com suas
brechas e pulsações. Por isso, interessa ao intercessor produzir um saber segundo, com a
particularidade de não pretender ensinar aos estudantes e aos trabalhadores como devem fazer
as coisas ou produzir uma metodologia ou manual de como operar no campo.
Mas como produzir um texto ou um livro que não se transforme em um manual?
Deleuze e Guattari (1995) almejavam escrever um livro que não fosse livro, cópia da
natureza, um livro que não prescrevesse metodologias. Para eles, o ideal de um livro seria
“expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma
mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados,
indivíduos, grupos e formações sociais”. A solução encontrada por eles foi a do livro-rizoma.
Permanência para Idosos (ILPSs). Se há um lugar para o psicólogo na AS, ele não é previsto
no caso dos psicanalistas, no entanto isso não significa que trabalhadores precavidos pela
psicanálise não possam tê-la como um referencial teórico e ético para suas práticas nos mais
diversos âmbitos institucionais. Para pensar a especificidade da psicanálise do campo da AS é
necessário levantar alguns pontos fundamentais: traçar o percurso da psicanálise na AS e falar
da população atendida por ela e de seu contexto.
Mas quais circunstâncias estão colocadas no campo da AS? Situar a população
atendida e seu contexto tem como função marcar a diferença desse trabalho e delimitar o lugar
de onde intervimos. As pessoas que vêm solicitar ajuda ou mesmo aquelas que são abordadas
por meio da busca ativa geralmente trazem como marca o sofrimento de estarem à margem da
sociedade, vivendo em condições precárias, excluídas do acesso aos bens socialmente
produzidos, muitas vezes vivenciando situações de violência e desamparadas socialmente.
Esse desamparo diz respeito à falta de ações das políticas públicas que proporcionem aos
sujeitos e suas famílias condições para uma vida digna. De acordo com Soares, Susin e
Warpechowski (2010), a violência que esses sujeitos vivenciam tem início muitas vezes no
desamparo que viveram durante a infância, na ausência de reconhecimento de sua origem e de
sua história, e mesmo na violência de não possuir “um lugar para viver, sendo expropriados
de seus bens em prol de interesses políticos, sociais e econômicos, alijados dos espaços da
cidade e sem lugar no tecido social” (ibidem, p. 152).
À medida que lhes é negado o direito a um lugar no tecido social, esses sujeitos são
separados de sua condição de cidadãos. A cidade não os acolhe e eles muitas vezes não se
sentem parte dela. Essa perda da condição de cidadania pode começar muito cedo, desde a
infância. Muitas crianças e adolescentes perdem o tempo de constituição subjetiva por
necessitarem trabalhar, e acabam abandonando a escola. Em alguns casos ocorre a inversão
dos lugares e os pais não conseguem exercer seu papel de protetores das crianças. Os
adolescentes não encontram a possibilidade de circulação em espaços onde impera o
consumo. Para muitas famílias, a única forma de conseguir uma renda é por meio da
mendicância e da catação de material reciclável, uma vez que elas são excluídas de outras
formas de trabalho socialmente valorizadas. Há ainda a questão da moradia: muitas vezes
esses sujeitos habitam áreas irregulares, até mesmo de risco, e por esse motivo permanecem
desatendidos em suas necessidades no que se refere à urbanização – água tratada, esgoto,
energia elétrica, coleta de lixo, escolas públicas e UBSs próximas –, ficando à margem do que
a cidade pode oferecer.
108
algumas camadas da sociedade e que o Estado poderia vir a ofertar o tratamento psíquico para
as pessoas menos abastadas. Conforme aponta Freud (1996, p. 180-181):
tomasse essas cenas pela via do imaginário. O trabalhador poderia, ainda, intervir a partir de
um viés pedagógico, sugestivo e normalizador, sem ter em conta que o próprio sujeito pode
construir suas próprias respostas. O diferencial da psicanálise é que ela não oferece
significantes (o pobre, o coitado, o assistido, etc.) em que o sujeito deva alojar-se e não opera
colocando ideias (sociais) às quais o sujeito precisa corresponder (FINK, 1998).
A instituição AS supõe um cidadão debilitado e tem como pretensão completá-lo, seja
por meio dos programas de transferência de renda ou de outros programas e projetos. Por
outro lado, o trabalhador precavido pela psicanálise oferta uma escuta que possibilita ao
sujeito começar a se haver com seu sintoma e sua falta-a-ser. É imprescindível que o
trabalhador esteja precavido pelos impossíveis freudianos41 para não cair na impotência de
não poder resolver pelo sujeito o que só cabe a ele resolver. A grande tarefa do trabalhador
precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan é a de sustentar um espaço de escuta
que leve em consideração os sintomas do sujeito e o modo como cada um se posiciona em
relação ao desejo. A aposta é supor um sujeito que possa interrogar-se sobre a própria história,
sobre os significantes que o marcaram, abrindo caminho para saber sobre seu próprio desejo.
Mariano (2011) demarca a Intervenção Retificadora (IR) como uma ferramenta do
trabalhador – precavido pela psicanálise – na AS. Esta acontece em quatro momentos. O
primeiro momento é o da queixa, quando o sujeito chega queixando-se de sofrer. É no
esvaziamento da queixa que se abre caminho para o segundo momento, que é o da demanda,
ou seja, quando o sujeito elabora um pedido de ajuda dirigindo-se para o outro, que o escuta.
O terceiro momento é o da Intervenção, em que, diante da fala do sujeito, o trabalhador o
confronta com a questão: “Qual é a parte de responsabilidade que lhe cabe sobre a sua
queixa?”, abrindo caminho para a retificação subjetiva, isto é, a passagem da queixa dos
outros para a queixa acerca de si. No quarto momento da IR, pode abrir-se para o sujeito um
enigma – relacionado à verdade do sujeito – que seja capaz de produzir a sua divisão
subjetiva. A IR não pretende funcionar como uma oferta de análise para um sujeito atendido
no âmbito da AS e sim proporcionar-lhe uma primeira oportunidade para que possa
responsabilizar-se por sua posição frente às coisas que o fazem sofrer, uma vez que ele
também é parte responsável pelas mazelas que ocorrem em sua vida.
Concordamos com Soares, Susin e Warpechowski (2010, p. 153) quando demarcam
que o trabalho na AS implica “romper com a identificação do sujeito que recorre à AS como
41
Quanto ao sujeito humano, aprendemos com Freud (1975, p.282) que “[...] quase parece como se a análise
fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a
resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito tempo, são a educação e o governo”.
111
alguém que vem ‘pedir algo’, visando não devolver a resposta somente na via do recurso
material, mas, sim, abrir um espaço de fala”, o que possibilita recolocar a condição de sujeito
desejante e, nessa medida, abrir via para o exercício da cidadania. Contudo, necessitamos ter
claro que:
42
“No plano da assistência aos pobres de todas as idades, as práticas realizadas e os discursos enunciados por
diversos conjuntos de atores sociais ao longo da história, incluindo-se grupos de diferentes denominações
religiosas, de industriais e de empresários, de autoridades políticas, de juristas, de médicos, de psiquiatras, de
pedagogos, assistentes sociais, educadores e psicólogos, podem ser nomeados com muitos significantes: ajuda,
auxílio, proteção, fazer o bem, assistir, promover, reprimir, prevenir, corrigir, reformar, regenerar, reeducar,
aconselhar, ressocializar, formar pessoas de bem. É importante enunciá-los todos, de modo sistemático, pois
radicalizar a análise permite dar mais visibilidade ao que se pretende superar, incluindo tanto a crítica quanto a
denúncia, sem concessões suavizadoras”. (BENELLI, 2016, p. 741-742).
112
Figura 1. Composição dos quatro lugares da estrutura do discurso como laço social
O que caracteriza cada discurso é aquilo que ocupa o lugar de agente. Teremos a
configuração de um discurso a cada um quarto de giro em sentido horário na permutação
circular dos elementos.
Desse modo, no Discurso do Mestre (DM) temos o mestre (S1) agenciando o outro
(S2) como detentor de um saber-fazer, impulsionando-o a produzir um saber que será
expropriado dele e útil ao mestre, uma vez que é a partir desse saber extraído do outro que ele
proferirá uma ordem (“Faça isso!”). Nesse discurso, a verdade escamoteada pelo mestre é sua
condição de falta-a-ser. Nele, “o que domina é o poder sobre o outro e a produção é o gozo
(a), ‘mais gozar’ que, tal como a mais-valia na luta de classes, não é apropriado por aquele
que produz” (PÉRICO, 2014, p. 74). Não seria exatamente desse modo que muitos
profissionais da AS se posicionam ao atender os sujeitos?
Com o movimento de um quarto de giro em sentido anti-horário partindo do discurso
do mestre, temos o Discurso da Histeria (DH). Nesse discurso, vemos um sujeito em sua
divisão subjetiva ($) interpelando o outro tomado como mestre (S1) para que este produza o
saber (S2) que supostamente daria conta de seu sofrimento ou de sua questão (a). No DH, o
desejante “se autoriza de seu gozo impelindo o outro, elevado à categoria de mestre, a
produzir um saber sobre sua verdade sexual” (QUINET, 2012, p. 56). E em virtude de colocar
o outro no lugar da mestria, esse laço social também pode ser referido como “discurso da
114
demanda” (PÉRICO, 2014, p. 77). Os sujeitos, quando procuram a AS, muitas vezes chegam
situados a partir dessa modalidade de discurso, demandando aos trabalhadores (mestres) que
estes possam resolver sua questão.
Partindo do discurso do mestre, se realizarmos um quarto de volta em sentido anti-
horário teremos o Discurso da Universidade (DU). Neste, encontramos o saber enciclopédico
(S2), saber dos livros, agenciando o outro (a) como objeto de ensino ou de pesquisa, tendo
como resultado a supressão da singularidade do sujeito ($). Esse discurso possui como
verdade recalcada o autor (S1). O DU, segundo Quinet (2012, p. 55), “é também o laço que
constitui a burocracia, em que o burocrata se autoriza de uma regra (S1) para mandar no
funcionário”. No campo assistencial podemos encontrar um conjunto de práticas que podem
ser situadas nessa modalidade de laço social, por exemplo nos cursos ofertados nos
estabelecimentos assistenciais (artesanato, culinária, entre outros), mas também nas oficinas
em que se trabalham os direitos sociais.
Se, a partir do DU, dermos mais um quarto de volta em sentido anti-horário,
chegaremos ao Discurso do Analista (DA) que é o único que trata o outro como sujeito ($).
No DA, o analista, no lugar de agente, ao não responder à demanda do sujeito no DH,
posiciona-se como semblante do objeto (causa) de desejo, impulsionando o sujeito ($) a
produzir seus próprios significantes mestres (S1). O sujeito, nesse discurso, é um sujeito ativo
e que trabalha, que “produz o significante de sua singularidade – os seus significantes
mestres” (ibidem, p. 56). A verdade nesse discurso é o fato de o analista colocar seu saber
enciclopédico em suspenso para operar com o que Lacan nomeou “ignorância douta”.
Conforme disse Lacan (1992, p. 35), “Se o analista não toma a palavra, o que pode advir
dessa produção fervilhante de S1? Certamente muitas coisas”. Entendemos que o DA,
enquanto modalidade de enlace social, pode ser um necessário posicionamento quando se tem
como horizonte ético não somente o protagonismo e a autonomia do sujeito, como a produção
de subjetividade singularizada e desejante.
privilegiar a escuta do sujeito, abre caminho para que ele possa sair do lugar de objeto –
inclusive da instituição/estabelecimento e dos trabalhadores – e começar a se colocar no lugar
de sujeito desejante, possibilitando que ele dê passos na direção da construção de sua
cidadania.
Ao retomarmos nossas próprias perguntas, começamos a deparar-nos com alguns
ensaios de respostas. Operar com a psicanálise de Freud e Lacan na AS se mostra não apenas
pertinente, como também relevante, uma vez que possibilita a escuta para além do sujeito de
direitos, isto é, a escuta do Sujeito do Desejo inconsciente, possibilitando a implicação tanto
subjetiva como sociocultural. Partilhamos da posição de Benelli (2014b, p. 283) que afirma
que
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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DELEUZE, G. Conversações. Tradução Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1992.
FREUD. S. Linhas de progresso na terapia psicanalítica (1919 [1918]). In: ______. Edição
Standard Brasileira das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 17. Tradução
Jayme Salomão. 2a ed. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 173-184.
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______. Análise terminável e interminável (1937). In: ______. Edição Standard Brasileira
das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Vol. 23. Tradução Jayme Salomão. 2.
ed. Rio de Janeiro: Imago, 1975. p. 239-287.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Refletir sobre as políticas sociais em geral, e, de modo mais particular, sobre a política
de AS e o trabalho do psicólogo – precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan –
neste campo demanda considerá-la no contexto das contradições de uma sociedade organizada
pelo MCP. De acordo com Vieira (1992, p. 22) “a política social é uma maneira de expressar
as relações sociais cujas raízes se localizam no mundo da produção”. Na sociedade capitalista
o Estado é perpassado pelas contradições do MCP e, objetivado por meio de instituições,
organiza a reprodução das relações sociais fazendo o papel de regulador dessas relações. A
forma com que o Estado está organizado e suas características possuem um papel
determinante no surgimento e ampliação de políticas que fazem face aos interesses dos
diferentes membros de uma sociedade, seja da elite ou dos pobres. Sendo assim, as políticas
sociais necessitam ser pensadas enquanto respostas do Estado às expressões da “questão
social” e estando situadas no confronto de interesses de classes sociais distintas. Elas
constituem-se enquanto uma resposta do Estado à materialização das contradições entre
capital e trabalho e tem como objetivo reduzir ou mesmo compensar os efeitos nefastos de um
modo de produção organizado sob a égide do Capital, expresso nas mais variadas expressões
da “questão social”. Contraditoriamente, há uma dupla funcionalidade nestas políticas, pois se
por um lado asseguram a reprodução do Capital, por outro lado incorporam algumas
demandas dos trabalhadores. O Estado, na busca de obter legitimação por meio do jogo
democrático, é permeável a demandas dos setores empobrecidos da população que podem
fazer incidir suas reivindicações na agenda política.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 demarcou a obrigação do Estado de garantir
um conjunto de ações cuja finalidade é assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência
Social e à AS, enquanto tripé da Seguridade Social brasileira. Essa representa uma das
principais conquistas da Constituição, pois houve um avanço na concepção e ampliação do
acesso aos direitos sociais após 1988. A constituição da Seguridade Social trouxe algumas
inovações no campo das políticas sociais, principalmente para a AS, no que se refere a gestão
e organização. Enquanto política de proteção social, inserida na Seguridade Social, a AS
passou a situar-se no campo dos direitos e da responsabilidade estatal. Mas apesar do avanço
constitucional, a AS só foi regulamentada em 1993 e efetivada a partir de 1995.
A regulamentação por meio da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (BRASIL,
1993) e o início da implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) inauguraram
a construção de um novo tempo para a AS. Mas devido à sua forte vinculação histórica com a
122
mesmo plano há, ainda, outros entraves: a desarticulação da rede, a falta de equipes
consolidadas e capacitadas e o pouco conhecimento dos trabalhadores e sujeitos sobre o
SUAS.
No plano das práticas psicológicas no SUAS evidencia-se que muitas delas acabam
sendo muito mais de controle do que de cuidado e defesa de direitos, realizando a gestão da
pobreza e a ortopedia das condutas dos sujeitos atendidos. Nesse sentido, ao problematizar a
construção do objeto de intervenção da Psicologia e seus efeitos, Canguilhem (1972) assinala
que, apesar dos inúmeros projetos metodológicos, a Psicologia historicamente fez ciência
referenciada na teoria geral das condutas, definindo o que é conduta normal e patológica. E
apesar de que, nas últimas décadas vem acontecendo um movimento de crítica a esse modelo
e a proposição de novos olhares e modos de atuar, conforme Pedro e Moreira (2013, p. 74)
destacam “[...] a Psicologia parece ainda deambular por entre vias que, com certa frequência,
silenciam o outro: os sujeitos com quem trabalha e/ou os objetos de sua intervenção na AS”.
Por outro lado já há um conjunto de trabalhadores que vêm se propondo a executar novas
práticas mais condizentes com o desejo e necessidade dos sujeitos atendidos. Também é
possível encontrar na literatura um conjunto de trabalhos que fazem a crítica às tecnologias
disciplinares e aos processos de normalização social e que avançam para uma clínica
ampliada – inspirada no que se tem feito do SUS – no campo da AS, contudo, muitos desses
trabalhos ainda permanecem somente no plano do sujeito social e histórico (BENELLI, 2014).
Quando se visa ao homem como sujeito é fundamental incluir, além das dimensões
culturais, sociais, políticas e históricas, também uma característica que o distingue: ser um
sujeito de linguagem e de desejo (BENELLI, 2014). O Sujeito é desejo! Lacan (1988) afirma
que a única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo. Mas afinal, o que
um sujeito deseja? O que é possível, a partir de Freud, é cada um se interrogar acerca de seu
próprio desejo. A ética da psicanálise coloca o sujeito diante da pergunta formulada por Lacan
(idem, p. 364) “Agiste em conformidade com teu desejo?”, cuja resposta só poderá ser dada
pelo próprio sujeito, portanto, uma resposta singular. Eis a essencial contribuição da
Psicanálise do campo de Freud e Lacan para o campo da AS: ofertar a possibilidade do sujeito
se interrogar acerca do seu desejo, produzir saber sobre si e resolver os seus impasses. A
grosso modo deslocar-se do lugar de objeto (coadjuvante) de intervenção da caridade,
filantropia e assistencialismo para assumir o lugar de sujeito de direitos, ou melhor,
protagonista de sua história, sem desconsiderar as contradições da realidade onde habita.
A Psicanálise de Freud e Lacan considera que a subjetividade inclui necessariamente o
plano do inconsciente, os três registros – real, simbólico e imaginário –, os processos de
125
muito bom! Por isso mesmo há a possibilidade de novas buscas, novas interrogações,
reflexões e produções desejantes. É exatamente a falta (falta-a-ser) que coloca a possibilidade
do desejo. Ainda há muito que ser, não somente pesquisado, como também experimentado e
criado no campo da AS. Nosso desejo, no que se refere a essa dissertação, é que um conjunto
de outros sujeitos desejem continuar nossas reflexões teóricas e que os trabalhadores do
campo possam se servir delas não como uma manual que apresenta modelos de como fazer,
mas como um ponto de partida para a construção de práticas que tenham como meta ética a
produção de subjetividade singularizada e de uma AS comprometida com a defesa de direitos
dos sujeitos por ela assistidos.
REFERÊNCIAS
VIEIRA, E. Democracia e Política Social. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1992.
YAZBEK. C. Classes Subalternas e Assistência Social. 6ª ed. São Paulo, Cortez Editora,
2007.