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SARA MEXKO

PSICOLOGIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL: contribuições da Psicanálise de


Freud e Lacan e do Materialismo Histórico

ASSIS
2017
SARA MEXKO

PSICOLOGIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL: contribuições da Psicanálise de


Freud e Lacan e do Materialismo Histórico

Dissertação apresentada à Faculdade de


Ciências e Letras de Assis – UNESP –
Universidade Estadual Paulista para a obtenção
do título de Mestra em Psicologia (Área de
Conhecimento: Psicologia e Sociedade)

Orientador(a): Prof. Dr. Abílio da Costa Rosa


Co-Orientador(a): Prof. Dr. Silvio José Benelli
Bolsista: Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (Capes)
Bolsista: Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado de São Paulo (FAPESP), processo n°
2015/01099-6.

ASSIS
2017
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – Unesp

Mexko, Sara
M611p Psicologia e assistência social: contribuições da psicanálise
de Freud e Lacan e do materialismo histórico / Sara Mexko.
Assis, 2017.
128 f.

Dissertação de Mestrado – Faculdade de Ciências e Letras


de Assis – Universidade Estadual Paulista
Orientador: Dr. Abílio da Costa Rosa
Co-Orientador: Dr. Silvio José Benelli

1. Psicologia. 2. Assistência social. 3. Política social. 4. Psica-


nálise. I. Título.

CDD 150
368.4
Aos trabalhadores – e trabalhadores em formação – do campo da
Assistência Social. Que possamos ter o olhar crítico e o desejo de lutar
para construir um mundo melhor para todos nós.
AGRADECIMENTOS

Meus agradecimentos, em especial, ao professor Abílio da Costa Rosa, meu


orientador, por ter aceitado o desafio de estar comigo nesta caminhada chamada mestrado,
pelas supervisões que possibilitaram um rico aprendizado, pela disponibilidade, dedicação e
paciência. Também agradeço, em especial, ao professor Silvio José Benelli, meu
coorientador, por ter confiado em mim, pelo incentivo, pelas ricas contribuições teóricas e
pelo cuidado que sempre teve comigo. Não tenho dúvidas de que nossa parceria tripla foi
essencial para que eu pudesse chegar ao final de jornada. Espero poder repetir a parceria com
ambos nos próximos caminhos a serem trilhados por mim.
Agradeço aos professores Isabel Fernandes de Oliveira e Marco José de Oliveira
Duarte por aceitarem o convite para a banca e pelas preciosas contribuições ao meu texto.
Certamente pude aprender muito com vocês!
Aos participantes do LATIPPSS pelas ricas contribuições nas discussões de textos que
enriqueceram meu conhecimento e pelos agradáveis momentos que compartilhamos.
Aos trabalhadores do município onde fiz a inserção institucional, por aceitarem
partilhar comigo o trabalho na Assistência Social. Um obrigada especial a psicóloga Mariana.
À minha mãe por continuar a ser meu porto seguro e minha amiga. Mãe, teu apoio e
cuidado foram imprescindíveis. Agradeço também a minha avó, ao meu tio Zé e ao meu Biel.
Ao amigo Maico Fernando Costa pela companhia e incentivo desde antes do mestrado
até o presente momento, pela amizade e parceria.
Ao amigo Waldir Périco pelas empolgantes discussões teóricas e pelo incentivo.
Ao amigo e intercessor do meu texto, William Azevedo de Sousa. Tuas críticas,
apontamentos e sugestões foram valiosíssimos!
Aos amigos mestrandos e doutorandos com quem tive o prazer de dividir as discussões
teóricas em sala de aula e as conversas (as vezes divertidas e as vezes angustiadas) fora dela.
Ao amigo Cledione Jacinto Freitas pela amizade e pelo colo quando me foi necessário.
À Roberto Duarte de Santana por me lembrar que a vida vai muito além dos estudos.
Ao amigo Eurípides pela sugestão e empréstimo de textos.
À Victor Schimidt por deixar os meus dias mais doces.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo auxílio
financeiro à pesquisa, processo n° 2015/01099-6.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo
auxílio financeiro em um primeiro momento do mestrado.
[...] Queremos um país onde não se matem crianças
que escaparam do frio, da fome, da cola de sapateiro.
Onde os filhos da margem tenham direito à terra,
ao trabalho, ao pão, ao canto, à dança,
às histórias que povoam nossa imaginação,
às raízes da nossa alegria.
Aprendemos que a construção do Brasil
não será obra apenas de nossas mãos.
Nosso retrato futuro resultará
da desencontrada multiplicação
dos sonhos que desatamos...
(PEDRO TIERRA, 1994)
MEXKO, SARA. PSICOLOGIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL: contribuições da
Psicanálise de Freud e Lacan e do Materialismo Histórico. 2017. 128 f. Dissertação
(Mestrado em Psicologia). – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2017.

Resumo: Nosso objetivo principal foi pensar o que pode fazer um psicólogo precavido
pela Psicanálise de Freud e Lacan e pelo Materialismo Histórico de Marx no campo da
Assistência Social. Partimos do Dispositivo Intercessor como um novo meio de produção
de saber na práxis comum (trabalho) e meio de produção de conhecimento na práxis
universitária. O Dispositivo Intercessor parte de dois momentos de produção
radicalmente diferentes: o momento da práxis institucional junto aos sujeitos e no coletivo
de trabalho, e o momento da reflexão teórica, produzida a posteriori, sobre as vivências,
movimentos e produções de intercessor realizadas no primeiro momento. Os referenciais
teóricos éticos que subsidiam os dois momentos são: o Materialismo Histórico de Marx,
a Análise Institucional francesa, a Filosofia da Diferença e a Psicanálise do campo de
Freud e Lacan. Esses referenciais nos oferecem a possibilidade de tanto analisarmos as
práticas e os discursos do campo da Assistência Social como também de interceder nele.
Apresentamos uma reflexão sobre a Política Nacional de Assistência Social e acerca do
Sistema Único de Assistência Social traçando alguns paralelos com o Sistema Único de
Saúde. Em seguida, abordamos a instituição Assistência Social enquanto um dispositivo
social de produção de subjetividade, destacando que há uma relação de indissociabilidade
entre a produção de atenção assistencial e a produção de subjetividade. Abordamos,
também, as bases do Dispositivo Intercessor e seus dois momentos, e apresentamos um
pouco de nossa práxis enquanto trabalhadora-intercessora, mais especificamente nossas
reflexões acerca dos acontecimentos, atravessamentos, impasses e movimentos como
psicóloga atuando em estabelecimentos assistenciais em um município de pequeno porte
do interior do Estado de São Paulo. Em nossa vivência pudemos realizar a escuta em
contextos diferentes da clínica tradicional, como por exemplo, rodas de conversa com
sujeitos e trabalhadores. A psicanálise do campo de Freud e Lacan oferece ao trabalhador
um referencial teórico e ético que possibilita a escuta do sujeito para além do sujeito de
direitos, isto é, a escuta do sujeito do inconsciente.

Palavras chave: Psicologia. Assistência Social. Política Social. Psicanálise do campo de


Freud e Lacan, Materialismo Histórico.
MEXKO, SARA. PSYCHOLOGY AND SOCIAL ASSISTANCE: contributions of
Freud and Lacan’s Psychoanalysis and of Historical Materialism. 2017. 128 f.
Dissertation (Master’s Degree in Psychology) – Faculdade de Ciências e Letras,
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, 2017.

Abstract: Our main objective was to think what a psychologist can do in the field of
Social Assistance with the guidance of Freud and Lacan’s Psychoanalysis and Marx’s
Historical Materialism. We started from the Intercessor Device as a new way of producing
knowledge in the common praxis (work) and a way of producing knowledge in the
university praxis. The Intercessor Device starts from two radically different moments of
production: the moment of institutional praxis with the subjects and in the collective
work, and the moment of theoretical reflection about experiences, produced a posteriori,
movements and productions of intercessors accomplished in the first moment. The ethical
theoretical references that support the two moments are: Marx's Historical Materialism,
French Institutional Analysis, the Philosophy of Difference and the Freud and Lacan’s
Psychoanalysis Field. These references seek us a point of view about both practices and
discourses of the field of Social Assistance as well as a mode of interceding on it. We
introduce a reflection on the Social Assistance National Policy and on the Unified Social
Assistance System for tracing some parallel aspects of the Unified Health System. Then,
we approach address the Social Assistance institution as a social device of subjectivity
production, noting that there is a relationship of inseparability between the production of
care and the production of subjectivity. We also approach the bases of the Intercessor
Device in its two moments, and we present a little about our praxis as a worker-
intercessor, but specifically our reflections on events, crossings, impasses and movements
as a psychologist working in assistance centers in a small city in the country of the State
of São Paulo. In our experience we were able to listen in different contexts of the
traditional clinic, such as, for example, conversation wheel with people and workers. The
psychoanalysis of the field of Freud and Lacan offers the worker a theoretical and ethical
reference that makes possible the listening of the subject beyond the subject of rights, this
is, the listening of the subject of the unconscious.

Keywords: Psychology; Social Assistance; Social Policy; Psychoanalysis of the field of


Freud and Lacan; Historical Materialism.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Composição dos quatro lugares da estrutura do discurso como laço social
Figura 2: Os quatro discursos como laços sociais propostos por Lacan
LISTA DE SIGLAS

AE – Aparelho de Estado
AI – Análise Institucional
AIE – Aparelho Ideológico de Estado
BPC – Benefício de Prestação Continuada
CLT – Consolidação das Leis do Trabalho
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializada de Assistência Social
CNAS – Conselho Nacional de Assistência Social
DA – Discurso do Analista
DH – Discurso da Histeria
DI – Dispositivo Intercessor
DIMPC – Dispositivo Intercessor como meio de produção de conhecimento
DM – Discurso do Mestre
DU – Discurso da Universidade
ESF – Estratégia Saúde da Família
IAPs – Instituto de Aposentadorias e Pensões
LA – Liberdade Assistida
LBA – Liga Brasileira de Assistência
LOAS – Lei Orgânica de Assistência Social
MCP – Modo Capitalista de Produção
MDS – Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
PAEFI – Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos
PAIF – Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família
PCFA – Paradigma Caridoso Filantrópico Assistencialista
PEH – Processo de Estratégia de Hegemonia
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAS – Política Nacional de Assistência Social
PSB – Proteção Social Básica
PSC – Prestação de Serviços à Comunidade
PSD – Paradigma do Sujeito de Direitos
PSE - Proteção Social Especial
PT – Partido dos Trabalhadores
SUAS – Sistema Único de Assistência Social
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade Básica de Saúde
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................................... 14
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 19

ENSAIO 1

1. A ASSISTÊNCIA SOCIAL ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA NO


CONTEXTO BRASILEIRO: CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS A UMA
INTERCESSÃO-PESQUISA ................................................................................... 22

1.1 Introdução ............................................................................................................. 22

1.2 O Modo Capitalista de Produção e a emergência da “questão social” ................. 23


1.3 A criação da Assistência Social por parte do Estado ............................................ 26
1.4 A construção da Política Nacional de Assistência Social no Brasil ...................... 28
1.5 PNAS: breves apontamentos críticos sobre seus princípios e diretrizes ............... 33
1.6 O SUAS: alguns apontamentos críticos ................................................................ 40
1.7 A questão da seleção das famílias incluídas nos projetos sociais e no programa de
transferência de renda ................................................................................................. 44
1.8 A organização da AS por níveis de complexidade: as Proteções Sociais ............. 46
1.9 A Vigilância Socioassistencial e as práticas assistenciais ..................................... 53
1.10 Produção social de qualidade de vida e uma nova ordem governativa da cidade 56
1.11 Considerações finais ........................................................................................... 56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 58

ENSAIO 2

2. A INSTITUIÇÃO ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO DISPOSITIVO SOCIAL


DE PRODUÇÃO DE
SUBJETIVIDADE..................................................................................................... 66

2.1 Introdução ............................................................................................................. 66

2.2 A instituição como palco de lutas sociais ............................................................. 68


2.3 Consistência .......................................................................................................... 71
2.4 Acerca do funcionamento institucional ................................................................. 74
2.5 As contradições na instituição ............................................................................... 75
2.6 As funções produtivas da instituição Assistência Social ...................................... 77
2.7 O intermediário necessário e suas formas de intermediação ................................ 81
2.8 Considerações Finais ............................................................................................. 83
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................................ 86

ENSAIO 3

3. O PSICÓLOGO NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: CONTRIBUIÇÕES DO


DISPOSITIVO INTERCESSOR NA PRÁXIS E NA UNIVERSIDADE
...................................................................................................................................... 90

3.1 Introdução.............................................................................................................. 90

3.2 Questões introdutórias acerca do dispositivo intercessor....................................... 91


3.3 O Dispositivo Intercessor como práxis do intercessor no campo: o trabalhador-
intercessor ................................................................................................................... 92
3.4 Apresentando o campo de inserção e seus movimentos ....................................... 96
3.5 O Dispositivo Intercessor como Meio de Produção de Conhecimento na
universidade: o intercessor-pesquisador ................................................................... 101
3.6 Qual o lugar do psicólogo precavido pela psicanálise na AS? ............................ 105
3.7 Os discursos com laços sociais de produção na Assistência Social .................... 111
3.8 Considerações finais ........................................................................................... 113
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................... 116

CONSIDERAÇÕES GERAIS ............................................................................... 121


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................................... 127
14

APRESENTAÇÃO

O presente trabalho encontrou-se em fase de finalização exatamente no momento em


que começamos a nos preocupar quanto ao que será da Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) daqui em diante. Há pouco mais de dez anos teve início a implantação da
Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e do Sistema Único de Assistência Social
(SUAS). Essa política, enquanto forma de intervenção estatal no enfrentamento das
expressões da questão social, necessita ser entendida como uma política específica, mas que
compõe o conjunto das políticas sociais brasileiras – Educação, Saúde, Habitação, Assistência
Social (AS) e Previdência Social. Essas, desde 1990 até os dias atuais, têm sido alvo da
contra-reforma neoliberal adotada pelos governos nas últimas três décadas.
Com o golpe político-jurídico, organizado por partidos políticos da direita, que
culminou no afastamento da na época presidente Dilma Roussef, do Partido dos
Trabalhadores (PT), partido um tanto sensível a questões sociais e que investiu na
implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), não temos clareza de quais
impactos afetarão a vida de trabalhadores e sujeitos (nomeados usuários). O SUAS não é
reconhecido enquanto tal por grande parte da população brasileira. Diferentemente do Sistema
Único de Saúde (SUS) e da Educação que, caso deixem de existir ou sofram uma grande
restrição poderá ter como efeito uma forte reação popular reivindicando sua manutenção, o
SUAS ainda precisa ser mais apropriado pela população enquanto um direito social.
Preocupa-nos não apenas o risco de uma retração do SUAS, mas também os impactos
que podem acontecer com a diminuição de outras políticas sociais de modo a comprometer a
qualidade de vida da população. Algumas mudanças já foram efetivadas pelo Presidente
ilegítimo, Michel Temer (Partido do Movimento Democrático Brasileiro - PMDB), tais como
a revisão de auxílio doença e de aposentadoria por invalidez. Outras mudanças vêm sendo
preparadas, como a Reforma Trabalhista que poderá flexibilizar/retirar direitos trabalhistas
conquistados na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Há ainda a Reforma da
Previdência recém enviada ao Congresso Nacional pelo Michel Temer cujo principal
conteúdo é a mudança do tempo de contribuição – será necessário trabalhar 49 anos para
quem deseja aposentadoria integral. No Congresso Nacional e Senado avançam projetos que
trazem prejuízos a classe trabalhadora como por exemplo o PL 4330/04 que propõe a
regulamentação da terceirização das atividades fim nos diversos setores e a PEC 87/15 a qual
propõe a Desvinculação das Receitas da União (DRU) até 2023 e seu aumento gradativo
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podendo chegar até 30% do total arrecadado. Essa última PEC poderá causar um impacto
nefasto para o campo da seguridade social, uma vez que parte do que for arrecadado, em vez
de ser investido em políticas sociais, poderá ser utilizado para pagar os juros da dívida pública
brasileira.
Recentemente foi votada e aprovada a Proposta de Emenda à Constituição (PEC)
241/55. Essa PEC, denominada de PEC do Teto de Gastos pelo governo federal e de “PEC da
morte” por partidos e movimentos de esquerda, apresentada pela equipe econômica de Michel
Temer (PMDB), limita os investimentos em Saúde, Educação, AS e Previdência Social pelos
próximos vinte anos. A proposta institui o nome Regime Fiscal que determina que as despesas
não poderão crescer acima da inflação acumulada no ano anterior (PEC, 2016). Quem sofrerá
o maior impacto será a população mais pobre que depende essencialmente dos serviços
públicos os quais estarão mais sucateados.
Com um menor investimento em políticas sociais e a elevada taxa de desemprego no
país, a tendência é ocorrer um crescimento da demanda por AS. Por outro lado, desde 2015,
mas essencialmente após o Presidente interino assumir, os Programas de transferência de
renda estão sendo revisados e muitas famílias tem sido excluídas dos Programas de
Transferência de Renda. Este cenário fornece uma amostra do desafio que existe para que a
AS seja tanto consolidada enquanto uma política pública quanto ampliada. Um outro desafio é
a construção de práticas profissionais que propiciem o protagonismo e a autonomia dos
sujeitos atendidos nos serviços (nomeados comumente como usuários), além da produção de
subjetividade singularizada.
A implementação do SUAS acabou abrindo um novo campo para o trabalho dos(as)
psicólogos(as) na política social, pois este passou a ser integrante das equipes dos
estabelecimentos assistenciais. Alguns trabalhos (SENRA, GUZZO, 2012; NEVES,
SANTOS, 2013; DENTS, OLIVEIRA, 2013; XIMENES, PAULA, BARROS, 2009) acerca
da atuação do psicólogo nesse campo trazem problematizações interessantes, apontando que
muitas vezes as práticas são de controle, adaptacionistas e centradas na ação individualizada,
sendo contrárias as orientações da PNAS (BRASIL, 2004) e das referências técnicas para a
atuação do psicólogo nos estabelecimentos assistenciais (CREPOP, 2007; CFESS, 2007).
Diante deste cenário surgiu a necessidade de se construírem práticas e pensarem referenciais
que subsidiem o trabalho neste campo. Alguns trabalhos já vem sendo desenvolvidos e
publicados, mas grande parcela deles são realizados a partir da ótica do pesquisador que vai a
campo investigar o objeto e escrever sobre ele. Desejávamos um outro instrumental para a
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produção de conhecimento que nos possibilitasse incluir a reflexão sobre a práxis e conjugar
um conjunto de referenciais que nos são caros para a compreensão e ação no campo.
Nosso percurso em Psicanálise do campo de Freud e Lacan e a aproximação com o
campo da Assistência Social colocou para nós uma questão: Qual poderá ser a contribuição da
psicanálise neste campo?
Este trabalho surgiu a partir de conjunto de indagações e incômodos que surgiram
desde o 3º ano de graduação em Psicologia quando iniciei a participação no Projeto de
Extensão “Direitos Humanos: um processo em conscientização”. Naquela época, como
estagiária do curso de Psicologia, pude vivenciar um pouco do trabalho do(a) psicólogo(a) na
política pública de Assistência Social, mais especificamente junto ao antigo Programa
Sentinela – Programa que atendia, no âmbito da AS, crianças e adolescentes vítimas de sexual
e suas famílias. A experiência nos proporcionou conhecer um pouco o campo, mas ainda
restou a questão de se e como a psicanálise poderia contribuir. Desta experiência surgiram as
inquietações e o tema do projeto.
O mestrado, longe de ser apenas uma etapa da formação para a docência no ensino
superior, foi também uma necessária etapa de aprendizado enquanto trabalhadora. Embora ao
ingressar no mestrado não estivéssemos trabalhando na Política de Assistência Social, a
escolha de trabalhar com o Dispositivo Intercessor (DI) nos colocou a tarefa de fazer a
reflexão a partir da vivência de trabalhadora, portanto, a necessidade de inserção no campo a
partir da posição de trabalhadora e não de pesquisadora. Isso colocou várias dificuldades e
imprevistos em nosso percurso, contudo, não impossibilitou o trabalho.
A partir do Dispositivo Intercessor (DI), criação de Abílio da Costa Rosa e que vem se
materializando e ganhando contornos por seus orientandos nos mestrados e doutorados, foi
possível se inserir no campo da Assistência Social em uma outra posição, estando precavida
por referenciais teórico técnicos e ético políticos transdisciplinares: Análise Institucional de
René Lourau e Georges Lapassade, Materialismo Histórico de Marx, Filosofia da Diferença e
a Psicanálise do campo de Freud e Lacan. Esses instrumentos teóricos possibilitam executar
um trabalho na dimensão da práxis, isto é, de uma atividade prático-crítica. O DI possui dois
momentos: a) Dispositivo Intercessor como práxis do intercessor encarnado, isto é, um tempo
de inserção na práxis comum a partir da posição de trabalhador, e, b) Dispositivo Intercessor
como meio de produção de conhecimento (DIMPC), etapa em que o intercessor, na posição
de pesquisador, irá refletir e escrever sobre a sua experiência de trabalhador, subsidiado por
seus referenciais teóricos.
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Nossa inserção aconteceu em um município de pequeno porte de uma cidade do oeste


de São Paulo. A partir de um pedido à Secretaria de Assistência Social daquele município,
que foi aceito, passamos aproximadamente um ano trabalhando junto aos estabelecimentos
institucionais da Assistência Social daquela cidade, a saber, o Centro de Referência de
Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializada de Assistência Social
(CREAS) e Casa de Acolhimento. Por um período participamos também da Rede de Atenção
à Violência Sexual e tivemos a experiência de participar de uma Conferência Municipal de
Assistência Social. Desta vivência, que suscitou mais questionamentos do que respostas,
fizemos nossas reflexões. E como sabemos não ser possível encontrar o último significante,
nesta dissertação propusemos abordar algumas questões que julgamos necessárias a um(a)
trabalhador(a) deste campo.
O processo atuação profissional-reflexão pesquisa que deu origem a esta dissertação
foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa, protocolo n◦ 46421515.6.0000.5401, em
agosto de 2015. Os participantes da intercessão-pesquisa, que inclui a Secretaria de
Assistência Social do município, os trabalhadores e os sujeitos (ditos usuários) dos
estabelecimentos assistenciais, assinaram voluntariamente o termo de Consentimento Livre e
Esclarecido, tendo claro que algumas situações vivenciadas conjuntamente com eles, e
relatadas no diário de intercessão, poderiam ser objeto de reflexão em nossos ensaios. O
diário de intercessão, antes de ser um conjunto de dados para posterior reflexão do
intercessor-pesquisador, foi também um instrumento para a reflexão do cotidiano do trabalho
enquanto o mesmo se processava no cotidiano. No que se refere aos nomes e informações que
poderiam identificar as pessoas e o município, por uma questão ética, foram excluídas e
optamos por utilizar nomes fictícios e siglas. As situações que relatamos brevemente na
dissertação, embora singulares, possuem um caráter ilustrativo de situações cotidianas que
poderiam ocorrer em outros municípios e estabelecimentos institucionais, isto é, utilizamos
como objetivo de ilustrar certas passagens e não para meramente fazer uma exposição pessoal
ou social.
Cada texto foi escrito pensando tanto nos trabalhadores quanto nos estudantes que
poderão um dia vir a trabalhar no campo da assistência social. Entendemos que uma
dissertação deva ir para além das prateleiras da biblioteca e do cumprimento das obrigações
da pós-graduação, ela precisa possibilitar uma conversa com os sujeitos daquele campo.
Conforme declarou Foucault (1979, p. 42) o papel do intelectual é “o de lutar contra as formas
de poder exatamente onde ele é, ao mesmo tempo, o objeto e o instrumento: na ordem do
saber, da ‘verdade, da ‘consciência’, do discurso”. Diante disso, nossa pretensão é se
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distanciar da produção de um “conhecimento colonizador” e se aproximar da construção de


um “conhecimento prudente” (SANTOS, 2002, p. 74) situado no que Santos (idem) nomeou
como Paradigma Emergente, pautado no princípio da responsabilidade. Nosso desejo é de
elaborar algo próximo do que Deleuze e Guattari (1995) chamaram de um livro que não fosse
livro, isto é, um livro que não fizesse metodologias a serem reproduzidas, e sim estivesse
aberto a dialogar, construir junto e produzir movimentos e devires.
Procuramos, na medida do possível, explicitar os principais conceitos com os quais
trabalhamos e escrever o texto de um modo mais acessível, ainda que procurando manter a
cientificidade e o rigor que a universidade estabelece. A trilha percorrida por nós para
elaborar a sequência de ensaios segue uma lógica específica. Partimos da pergunta: o que um
trabalhador precisa conhecer/refletir/problematizar para atuar na Assistência Social?
Seguimos questionando o que pode ser produzido na Assistência Social enquanto uma
instituição. E continuamos com algumas reflexões acerca das práticas que existem e práticas
outras que são possíveis de serem realizadas. Isso nos levou a compor um conjunto de textos
que visavam trazer alguns ensaios de resposta a estas questões.
A dissertação é composta por três ensaios. O ensaio, enquanto um outro modo de
exposição do saber construído, diferentemente do modo tradicional em capítulos, possui como
especificidade o fato de que, como escrita condensada, “obedecem à pretensão de compor um
conjunto com certa unidade, mas de tal modo que cada um possa também manter a autonomia
da circulação, dados os aspectos específicos do tema tratado” (COSTA-ROSA, 2013, p. 9).
No que se refere ao tempo verbal utilizado nos textos, o leitor encontrará dois. Na maior parte
do tempo empregamos a primeira pessoa do plural, uma vez que “o modo de construção do
saber do qual partimos é sempre coletivo” (PÉRICO, 2014, p. 18), logo, podemos dizer que o
texto foi escrito por muitas mãos, mesmo que apenas duas delas tenha efetuado o exercício de
transposição das reflexões para o papel. Em alguns pequenos trechos do texto fizemos uso da
primeira pessoa do singular; estes momentos correspondem ao relatos da minha experiência
no campo da Assistência Social.
No primeiro ensaio apresentamos um conjunto de reflexões acerca da PNAS e do
SUAS. Para introduzir a questão, situamos o Modo Capitalista de Produção (MCP), fizemos
uma breve caracterização da questão social e do processo histórico-político que deu origem a
Assistência Social como política social no Brasil. Discutimos alguns aspectos essenciais da
PNAS, problematizando cada princípio e cada diretriz. Lançamos questionamentos sobre o
processo de seleção/inclusão dos sujeitos e famílias nos Programas de transferência de renda e
programas, acerca da vigilância socioassistencial e da organização por níveis de
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complexidade. E, a título de exercício epistemológico acrescentamos um horizonte, a saber, a


Produção Social de qualidade de vida e uma nova ordem governativa da cidade.
No segundo ensaio discutimos a instituição Assistência Social como dispositivo social
de produção de subjetividade. Cabia-nos pensar que tipo de subjetividade é possível produzir
nesta instituição, se mais alienadas e sintônicas com o MCP ou se era possível encontrar
brechas e trabalhar tendo como horizonte a produção de subjetividades mais singularizadas e
desejantes. Neste percurso, conceituamos instituição a partir da Análise Institucional e
demarcamos a existência de dois paradigmas alternativos e contraditórios entre si, o
Paradigma Caridoso Filantrópico Assistencialista (PCFA) e o Paradigma do Sujeito de
Direitos conceituados por Souza (2015). Assinalamos a Assistência Social como palco de
lutas sociais, apontamos sua consistência, o funcionamento institucional, as contradições
existentes, as funções produtivas e demarcamos a instituição enquanto intermediário
necessário e suas formas de intermediação.
O terceiro ensaio traz as contribuições do Dispositivo Intercessor ao trabalhador das
Políticas Públicas. Apresentamos o Dispositivo Intercessor (DI) enquanto um meio de
produção de saber na práxis comum (trabalho) e na práxis universitária e refletimos acerca
das contribuições da psicanálise ao campo da AS. O DI consiste em dois momentos distintos:
O DI enquanto práxis do intercessor encarnado, quando o intercessor está em campo
trabalhando e produzindo saberes juntamente com os demais trabalhadores, e, o Dispositivo
Intercessor como meio de produção de conhecimento (DIMPC), momento em que, na função
de intercessor-pesquisador, o intercessor faz uma reflexão sobre sua experiência na práxis,
subsidiado pelos referências do DI. Para fazermos nossa reflexão, discutimos um pouco do
que foi possível realizarmos em nosso período de inserção institucional na Assistência Social
a partir dos referenciais teórico, ético e político que subsidiam o DI. Além disso, discutimos
as possibilidades do trabalho - nos estabelecimentos assistenciais - tendo como referência
teórica e ética a psicanálise do campo de Freud e Lacan. Aos trabalhadores e estudantes fica o
convite para a leitura. Dar-nos-emos por satisfeitos se conseguirmos “interessa-los um pouco”
(LACAN, 2006, p. 46).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRASIL. Proposta de emenda à Constituição. Altera os arts. 37, 40, 42, 149, 167, 195, 201 e
203 da Constituição, para dispor sobre a seguridade social, estabelece regras de transição e dá
outras providências. Brasília, 2016. Disponível em:
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=7607C16C1FC28
20

9926801C3EEE7943B7B.proposicoesWebExterno2?codteor=1514097&filename=PEC+287/
2016>. Acesso em 22 dez 2016.

COSTA-ROSA, A. Atenção Psicossocial além da Reforma Psiquiátrica: contribuições a uma


clínica crítica dos processos de subjetivação na Saúde Coletiva. São Paulo: Unesp, 2012.

CREPOP. Referência Técnica para atuação do (a) Psicólogo (a) no CRAS/SUAS.


Conselho Federal de Psicologia (CFP). Brasília: DF, 2007.

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22

1 A ASSISTÊNCIA SOCIAL ENQUANTO POLÍTICA PÚBLICA NO CONTEXTO


BRASILEIRO: CONSIDERAÇÕES PRÉVIAS A UMA INTERCESSÃO-PESQUISA

1.1 Introdução

Este ensaio visa a trazer uma reflexão sobre a atual Política Nacional de Assistência
Social (PNAS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Nossas análises têm como
base os documentos oficiais, um conjunto de autores do campo e também nossa experiência
de trabalho enquanto psicóloga trabalhadora-intercessora-pesquisadora nos estabelecimentos
assistenciais de um município do interior do Estado de São Paulo.
Nossa vivência partiu da proposta do Dispositivo Intercessor (DI)1 enquanto uma
ferramenta para a produção de conhecimento não apenas na práxis – nesse caso, na esfera do
saber – como também no âmbito acadêmico – ou, propriamente, do conhecimento. O DI é
composto por duas modalidades de inscrições: a) o DI como práxis do intercessor encarnado,
isto é, um(a) trabalhador(a) no campo que se posiciona frente à práxis e executa ações que
podem ter como efeito a produção de um movimento instituinte; e b) o Dimpc (Dispositivo
Intercessor como meio de produção de conhecimento) enquanto práxis universitária, ou seja,
o momento da intercessão-pesquisa, que acontece quando o intercessor, agora na posição de
pesquisador, produz reflexões acerca de sua própria experiência no campo.
A pergunta que consta como pano de fundo de nossas reflexões é: a Assistência Social
(AS) interessa/serve a quem? Nosso ponto de partida para discussão é o entendimento de que
a AS surge enquanto um agenciamento das pulsações da Demanda Social e uma resposta do
Estado brasileiro à questão social.
Em decorrência disso, para melhor situar o leitor, optamos por iniciar com uma breve
caracterização da “questão social” (CASTEL, 1998). Em seguida, realizamos uma pequena
síntese analítica do histórico da construção da política de AS. Logo após, apresentamos e
discutimos os aspectos principais da PNAS e do SUAS. Por esse último ter tido forte
inspiração do Sistema Único de Saúde (SUS), nos servimos de algumas problematizações
realizadas no campo da Saúde e transpusemos algumas questões que julgamos pertinentes
também para o campo da AS. Também nos inspiramos em um conjunto de instrumentos
teóricos não disciplinares que, longe de serem um ecletismo descuidado, possibilitam-nos a

1
No ensaio 3 apresentamos o Dispositivo Intercessor e discutiremos suas contribuições para a práxis comum e à
práxis na universidade.
23

compreensão da realidade a partir de sua complexidade e a realização de níveis diferentes de


análise.
Ao problematizarmos os princípios e diretrizes que norteiam a AS, evidenciou-se que
sua política está mais centrada na gestão dos riscos sociais do que na promoção de cidadania e
de direitos sociais. O questionamento sobre a inclusão das famílias em projetos e serviços e
também do acesso dos sujeitos aos programas de transferência de renda evidencia um
conjunto de problemas que a AS ainda precisa resolver para de fato não ser uma política de
“cidadania invertida”2 (FLEURY, 2009, p. 744).
A análise da organização do SUAS por níveis de complexidade demonstra que há uma
certa fragilidade ao se realizar um recorte dos sujeitos e de suas famílias para situá-los em um
dos níveis de proteção. Por sua vez, a problematização da Vigilância Social e das práticas
assistenciais possibilita compreender os limites desse modelo, que não pretende uma
superação do modo como está organizada a sociedade. Para contribuir com a reflexão sobre a
promoção de cidadania, introduzimos algumas considerações sobre um novo modo de fazer a
gestão das cidades com vistas à produção de qualidade de vida. Consideramos não apenas
pertinente como também necessário que os trabalhadores do campo da AS conheçam e
problematizem os documentos oficiais que subsidiam as suas práticas profissionais.

1. 2 O Modo Capitalista de Produção e a emergência da “questão social”

As políticas de proteção social e, em especial, a política da AS, não podem ser


pensadas descontextualizadas, descoladas do plano histórico, econômico e político mais
amplo que deu origem à “questão social”. Esta é compreendida enquanto “[...] fenômeno
inerente ao processo de acumulação capitalista, sendo dele ineliminável” (ALVES, 2009, p.
27).
O Modo Capitalista de Produção (MCP) tem sua base assentada na divisão da
sociedade em duas classes essenciais: a capitalista e a proletária. O capitalista detém os meios
de produção de mercadorias (matéria-prima, terra, máquinas e instrumentos de trabalho) e
compra a força de trabalho do proletário para que sejam produzidas mercadorias, que serão
vendidas por um valor maior do que o custo de produção (incluso o valor pago ao

2
Cidadania invertida, para Fleury (2007), diz respeito a uma relação na qual o sujeito precisa provar que
fracassou no mercado para poder ser objeto da proteção social. A relação com o Estado se dá quando ele é
reconhecido como não-cidadão. Possui como atributos “jurídicos e institucionais, respectivamente, a ausência de
relação formalizada de direito ao benefício o que se reflete na instabilidade das políticas assistenciais, além de
uma base que reproduz um modelo de voluntariado das organizações de caridade, mesmo quando exercidas em
instituições estatais” (FLEURY, P. 76, 2007).
24

trabalhador), gerando assim o lucro. Os proletários são obrigados a vender sua força de
trabalho, uma vez que não são donos dos meios de produção. Como resultado,

[...] o trabalhador sai do processo sempre como nele entrou: como fonte
pessoal de riqueza, porém despojado de todos os meios para tornar essa
riqueza efetiva para si. Como antes de entrar no processo, seu próprio
trabalho já está alienado dele [ihm selbst entfremdet], apropriado pelo
capitalista e incorporado ao capital, este se objetiva continuamente, no
decorrer do processo, em produto alheio (MARX, 2013, p. 675).

No MCP, a força de trabalho transformou-se em uma mercadoria. Suas utilidades são


organizadas de acordo com as necessidades do capitalista e não mais de acordo com as
necessidades e os desejos do trabalhador (BRAVERMAN, 1981). O trabalhador foi reduzido
a nível de instrumento no processo produtivo. E a apropriação da riqueza produzida de modo
coletivo se dá de modo privado, isto é, apenas por parte do capitalista. Diferentemente do que
acontecia nas sociedades pré-capitalistas, cuja escassez de riqueza relacionava-se ao pouco
desenvolvimento das forças produtivas, no MCP a escassez do acesso à produção material se
deve à distribuição desigual do que é produzido coletivamente e à apropriação privada dos
meios de produção.
A instauração do capitalismo no seu estágio industrial-concorrencial produziu a
pauperização massiva da classe trabalhadora. A questão social não surge simplesmente com o
aparecimento de setores pauperizados da população, mas essencialmente com os
desdobramentos sociopolíticos derivados dele. Segundo Netto (2001) a expressão “questão
social” aparece para dar conta do fenômeno do pauperismo. De acordo com Iamamoto (2001,
p. 17), historicamente, ela está relacionada com a “[...] emergência da classe operária e seu
ingresso no cenário político, por meio das lutas desencadeadas em prol dos direitos atinentes
ao trabalho, exigindo seu reconhecimento como classe pelo bloco do poder, e, em especial,
pelo Estado”. À medida que ocorreu uma ampliação da classe trabalhadora e de sua presença
na sociedade, modificando-se seu posicionamento enquanto classe, que passa a exercer um
protagonismo político visto pela classe burguesa como ameaçador, a última precisou se
reposicionar frente à “questão social” e enfrentá-la enquanto problema que poderia derrubar a
hegemonia de sua classe.
Eis a “questão social”, que primeiramente foi tratada essencialmente como “caso de
polícia”, por meio da repressão policial. Mas, como deste modo não era possível acompanhar
a dimensão que as expressões da questão social vinham ganhando no decorrer do MCP, logo
despontou a necessidade de que o Estado criasse uma estratégia política que minimizasse os
25

conflitos entre capital e trabalho. Percebeu-se, também, o imperativo de que o Estado


incorporasse algumas das reivindicações da classe trabalhadora, sob a condição de que estas
não se chocassem com os interesses do capital (ALVES, 2009). Nesse sentido, a questão
social não se resume à existência de setores pobres, mas parte essencialmente de seu
reconhecimento enquanto classe social trabalhadora-explorada. Em suma, a questão social
deve ser apreendida como

[...] o conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista


madura, que tem uma raiz comum: a produção social é cada vez mais
coletiva, o trabalho torna-se amplamente social, enquanto a apropriação dos
seus frutos mantém-se privada, monopolizada por uma parte da sociedade
(IAMAMOTO, 2001, p. 27).

O conceito gramsciano de Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH) possibilita-nos


compreender os movimentos da classe burguesa para o enfrentamento da questão social.
Gramsci parte da tese de que a sociedade é um conjunto estratificado em torno de interesses e
valores que a compõem. Esse contexto é, então, povoado por lutas em maior ou menor
intensidade entre esse conjunto de valores e interesses. O PEH se refere a um processo
contraditório que envolve estratégias e táticas tácitas – de concessão e de recuperação – por
meio das quais uma classe social faz passar seus interesses como se fossem os interesses de
todo o conjunto da sociedade. Esse conjunto de práticas tem por função manter a Formação
Social (de uma instituição ou mesmo da sociedade) em equilíbrio dinâmico, “[...] dado se
tratar de realidades segmentares e contraditórias quanto aos interesses e visões de mundo que
aí necessariamente se atualizam” (COSTA-ROSA, 2013, p. 57).
A Hegemonia diz respeito ao domínio que uma classe social (polo dominante)
estabelece sobre todo o conjunto da sociedade. Isso é realizado por meio de um conjunto de
práticas – exercidas a partir das instituições3 e cujos efeitos podem ser ideológicos e
repressivos –, além de um conjunto de táticas de concessão seguidas de sua recuperação. Do
lado do polo subordinado também existe um conjunto de práticas que, em decorrência da
dominância material e ideológica do polo socialmente dominante, estão de acordo com os
interesses deste; mas há também um conjunto de reivindicações assim como um conjunto de
práticas alternativas que aspiram a se tornarem hegemônicas e alternativas à dominante.

3
As instituições podem ser entendidas enquanto Aparelho de Estado (AE) ou Aparelho Ideológico do Estado
(AIE). Para Althusser (1980) a diferença fundamental entre os dois é que enquanto o Aparelho Ideológico
funciona predominantemente pela ideologia, o Aparelho (repressivo) de Estado funciona predominantemente
pela violência. O mesmo autor esclarece que eles podem funcionar secundariamente de modo inverso, isto é, o
AE pela ideologia e o AIE pela violência.
26

As políticas de proteção social no MCP expressam as contradições e os antagonismos


de classe e são efeito de um processo de luta por hegemonia. De acordo com Mota, Maranhão
e Sitcovsky (2009, p. 181), estas políticas dependem “[...] tanto do nível de socialização da
política, conquistado pelas classes trabalhadoras, como das estratégias do capital, na
incorporação das necessidades do trabalho, consideradas as particularidades históricas que
definem cada formação social”. Nesse sentido, as políticas sociais podem ser compreendidas
tanto como conquistas resultantes da luta dos trabalhadores como também (e principalmente)
enquanto concessões táticas por parte do Estado de modo a garantir a manutenção e a
reprodução da ordem social vigente.
Essas políticas sociais se constituem, deste modo, enquanto uma das atribuições do
Estado de fornecer determinados bens e serviços sociais, sendo esta uma forma de
enfrentamento do processo de pauperização da população e, sobretudo, uma estratégia para
manter a classe trabalhadora conformada, desmobilizada e sem uma consciência de classe que
lhes possibilite o desenvolvimento de um projeto político pactuado coletivamente que
sustente suas reivindicações. Conforme assinala Alves (2009), as políticas sociais têm uma
vinculação ontológica com a política econômica, subordinando-se a ela no MCP.

1.3 A criação da Assistência Social por parte do Estado

As práticas de AS existem no Brasil há bastante tempo. Elas tiveram suas origens nas
ações caritativas e/ou filantrópicas. As ações sociais situadas no campo da solidariedade eram
realizadas por motivos que não necessariamente se excluem: acreditar que havia um dever
moral de ajudar, interesses pessoais e cálculos clientelistas.
Os estabelecimentos assistenciais religiosos, durante longo tempo, foram os principais
executores das ações sociais, que possuíam um caráter fortemente assistencialista. A elite
burguesa moderna também contribuiu com ações sociais, sob a forma de filantropia. Estas
duas formas paradigmáticas (caridade e filantropia) não eram totalmente opostas uma à outra,
elas “conviveram” (BENELLI, 2012a). Por muito tempo, perdurou a interpretação da AS
como ajuda e não como obrigação do Estado visando à garantia de direitos do cidadão
brasileiro. Nesse sentido, Yazbek destaca:

Desfalcada de uma legislação que a amparasse, carente de normas e


procedimentos claros de planejamento e gestão, utilizada como moeda
clientelista e facilmente apropriada pela filantropia voluntarista, a assistência
constituiu-se, historicamente, como “parente pobre” das demais políticas
27

sociais brasileiras, destinando suas ações a categorias específicas,


configurando-se como política não obrigatória e sendo constantemente
subalternizada (YAZBEK apud BOSCHETTI, 2003, p. 78).

A execução da AS pelo Estado somente teve início na década de 1930, quando a


questão social ganhou status de legitimidade no pensamento dominante, em decorrência do
forte movimento operário em busca de melhores condições de vida e de trabalho que ocorreu
nos anos antecedentes. Diante do conjunto de reivindicações do polo subordinado – nesse
caso, a classe operária –, o Estado que acabara de surgir realizou uma concessão tática como
estratégia para resgatar o clima de harmonia social e, para isso, delegou a “[...] si próprio a
responsabilidade de cuidar da reprodução de sua força de trabalho” (MARTINELLI, 2001, p.
122). Para isso, fortaleceu as alianças com a Igreja e com setores mais ricos da burguesia,
“com os quais dividiu a tarefa de circunscrever a hegemonia do poder ao restrito âmbito da
classe dominante” (ibidem, p. 122).
Nesse período, foram criados os Institutos de Aposentadorias e Pensões (IAPs), a
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e o Salário Mínimo. Em 1942, foi criada a Legião
Brasileira de Assistência (LBA), sendo esta a primeira institucionalização da assistência
social de abrangência nacional. Esta institucionalização pode ser compreendida como uma
Política de Estado que acabou por findar na década de 1990. As práticas assistenciais que
foram desenvolvidas durante as décadas de 1930 e 1940, assim como os eventuais benefícios
concedidos aos trabalhadores, serviam para abafar os movimentos dos trabalhadores e
controlar o nível de tensão social, recobrindo a dominação e a exploração burguesas.
A nova concepção de AS como política de Seguridade Social começou a tomar forma
no final da década de 80 do século XX, tendo como marco a Constituição Federal de 1988
(BRASIL, 1988). A Constituição Cidadã, como também ficou conhecida, é um dos pilares da
AS no Brasil, em que esta foi reconhecida como um dever do Estado. Em seu Capítulo II, no
artigo 6º, são assegurados como direitos sociais: a educação, a saúde, o trabalho, a proteção à
maternidade e à infância, a moradia, a assistência aos desamparados, a previdência social, a
alimentação, o lazer e a segurança. A Constituição Federal foi resultado de um longo processo
de reivindicações por parte de diversos movimentos sociais que lutavam em busca de direitos
e de democracia. Sua elaboração se deu com a participação de amplos setores da sociedade,
sua redação final sendo resultado desses jogos de forças.
A AS, especificamente no Brasil, pode ser vista enquanto uma concessão tácita do
Estado ao grupo dos excluídos/pobres, uma vez que o reconhecimento do direito a ela não foi
resultado de qualquer clamor, vindo de qualquer parte. Devido a décadas de práticas
28

caritativas havia, no imaginário social, o pensamento de que lhes era prestado um favor e não
reconhecido um direito, dificultando o nascimento de um movimento reivindicativo por parte
desse grupo. As reivindicações dos diversos movimentos políticos, sindicais e sociais
centravam-se sobre a ampliação da previdência social, a universalização da saúde e a
democracia. Essa inserção da Assistência Social pode ser compreendida tanto como uma
tentativa do Estado de amortecer um pouco os efeitos do MCP sobre os setores mais
pauperizados da população, como também uma pequena – ainda que importante – conquista
no que se refere às políticas sociais. E por não ter sido demandada, o efeito disso foi que “[...]
a inclusão do campo particular da Assistência Social no âmbito da Seguridade Social proposto
pela CF-88, não encontrou interlocutores e interlocuções estruturadas e organizadas na
academia, na sociedade civil e nos movimentos sociais” (SPOSATI, 2007, p. 445).
A própria regulamentação do Sistema de Seguridade Social aconteceu tardiamente,
uma vez que na década de 80 do século XX o Welfare State já estava sendo criticado tanto
nos Estados Unidos quanto na Europa. Soma-se a isso uma outra questão: no Brasil, essas
políticas mal foram regulamentadas e já passaram a ser alvo de uma ofensiva conservadora,
materializada por meio de propostas e iniciativas de contrarreformas que procuravam
restringir direitos, benefícios e serviços (MOTA; MARANHÃO; SITCOVSKY, 2009). No
Governo Collor teve início a política social neoliberal, assumindo-se de modo mais claro uma
perspectiva seletiva e focal das obrigações do Estado. Essas mudanças acabaram por
desconfigurar a proposta do Sistema Único de Saúde (SUS) e por produzir restrições na
legislação complementar no campo da seguridade social (YAMAMOTO; OLIVEIRA, 2014).
O conjunto de direitos conquistados no texto da Constituição Cidadã, por terem sido
submetidos à lógica do ajuste fiscal, acabaram sofrendo uma importante defasagem entre
direito e realidade.

1.4 A construção da Política Nacional de Assistência Social no Brasil

Apesar de a AS ser reconhecida como um direito social na Constituição, tendo sua


base nos artigos 203 e 204, demorou cinco anos para que os esses artigos se tornassem lei. A
AS enquanto política social4 foi regulamentada somente em 7 de dezembro de 1993, com a

4
Apesar de ser uma política social e de ser tratada pelos documentos oficiais como uma política pública,
entendemos que o SUAS (ao menos ainda) é uma política de Estado ou mesmo uma Política de Governo. A
Política Pública é caracterizada como resposta do Estado a um problema surgido no bojo da sociedade e visa a
incidir na própria produção e concepção da questão (COSTA-ROSA, 2016, supervisão). A Política de Estado
também é uma resposta do Estado, mas não incidirá na raiz do problema, embora sua institucionalização seja
29

promulgação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (BRASIL, 1993). Ela visava a
garantir os direitos e prover a cidadania dos diversos grupos da população que sofriam em
consequência das desigualdades sociais, fruto do avanço do MCP. Nela, consta como
objetivos:

I - a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;


II - o amparo às crianças e adolescentes carentes;
III - a promoção da integração ao mercado de trabalho;
IV - a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a
promoção de sua integração à vida comunitária;
V - a garantia de 1 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa
portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de
prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família (ibidem).

A LOAS (ibidem) também definiu os princípios, as diretrizes, as competências, a


gestão e o financiamento da AS, trazendo um importante avanço ao elevá-la ao estatuto de
política pública social. Não obstante, o projeto original5 da LOAS (BRASIL, 1990b), que
contemplava históricas demandas da sociedade, não foi aprovado, tendo sofrido inúmeras
alterações que provocaram a deformação da proposta original (MARTINELLI, 2001) e
reduziram sua potência como política de direitos sociais mínimos (SOUZA W. A., 2015). As
diversas alterações foram decorrentes da forte influência exercida pela Legião Brasileira de
Assistência (LBA)6, que procurou manter seus interesses e principalmente sua existência, uma
vez que um dos artigos da LOAS tratava de sua extinção. E a demora na aprovação esteve

forte e ela se mantenha (ainda que com algumas mudanças) apesar da troca de governo. Já a Política de Governo
é caracterizada por ser decidida pelo Executivo em um “processo elementar de formulação e implementação de
determinadas medidas e programas, visando a responder às demandas da agenda política interna, ainda que
envolvam escolas complexas” (OLIVEIRA, 2011, p. 329). Sua institucionalização é fraca, podendo a política ser
finalizada com a mudança de determinado governo. Dado o pouco tempo de existência do SUAS e o fato de
durante quase todo o período o país ter sido governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), ainda não é possível
afirmar que se trata de uma Política de Estado. Os próximos anos serão decisivos para saber de qual tipo de
política social se trata.
5
O projeto original da Lei Orgânica de Assistência Social foi de autoria do deputado Raimundo Bezerra e pode
ser consultado na página:
http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD23FEV1990.pdf.
6
A LBA foi criada em 1942 e seu objetivo era dar suporte material às famílias que se encontravam em
dificuldades em decorrência da participação dos homens no combate da II Guerra Mundial, sendo a primeira
institucionalização da assistência social de abrangência nacional. Após a Guerra, a LBA passou a executar ações
de assistência à maternidade e à infância, dando início à política de convênios com estabelecimentos
assistenciais no âmbito da filantropia e da benemerência. Seu trabalho consistia no atendimento a famílias que
não acessavam a Previdência Social, dando suporte na ocorrência de calamidades, executando ações urgentes,
pontuais e fragmentadas. A LBA, dirigida pela esposa do então Presidente da República, Getúlio Vargas,
demarcou um modo inédito de fazer atenção assistencial, com o Estado assumindo responsabilidades. No
entanto, a concepção de assistência continuou como boa vontade e não como direito do cidadão, permanecendo
apenas como ocupação da primeira-dama. No ano de 1969 ocorreu a transformação da LBA em fundação, que
ficou vinculada ao Ministério do Trabalho e Previdência, tendo ampliada sua estrutura e passando a contar com
novos programas e projetos.
30

diretamente relacionada ao modelo neoliberal de governo do então Presidente Collor de Melo,


que vetou integralmente o projeto de lei. Ademais, ao ser implementada a partir de 1995,
ficou clara uma acentuada tendência à focalização, à fragmentação e à seletividade do projeto,
comprometendo o princípio da universalidade, da continuidade e da sistematicidade de suas
ações.
Para que a AS se tornasse de fato uma política pública, a LOAS determinava que fosse
elaborada uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS). No ano de 2003 foi realizada
a IV Conferência Nacional de AS, na qual foi deliberada a construção e a implantação do
SUAS. Em cumprimento às deliberações desta Conferência, no ano de 2004, o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) apresentou a PNAS (BRASIL, 2004a) e
no ano seguinte teve início o processo de implantação do SUAS (idem, 2005). Essa proposta
de uma nova política de AS foi fruto de um conjunto de fatores, a saber: 1) alguns aspectos do
modelo de assistência, tais como a ausência de uniformidade e de articulações entre as ações e
projetos, se configuraram enquanto objeto de exigências e negociações entre sociedade e
governo; e 2) tratava-se de um governo sensível a questões populares, visto que foi eleito com
base em seu discurso e história de lutas a favor dos setores mais pobres.
Sem desconsiderar sua importância, a criação da PNAS se deu, em certa medida, em
concordância com os organismos internacionais que defendem a equidade como diretriz para
as políticas sociais. De acordo com Mota, Maranhão e Sitcovsky (2009, p. 188) “[...] o
objetivo das políticas pró-equidade não é a igualdade das rendas, mas a expansão do acesso
por parte das pessoas de baixa renda, aos cuidados da saúde, educação, emprego, capital e
direitos de posse da terra”. Sendo assim, não existe uma relação de incompatibilidade entre a
política econômica adotada pelo governo e o processo de reorganização da AS. Ela surge,
então, a partir de uma concepção assistencial negativa, isto é, de assistência como remoção da
falta de acesso a outras políticas sociais e, essencialmente, à renda para suprir as necessidades
básicas (subsistência).
Para a implantação do SUAS foi necessária a criação da Norma Operacional. A Norma
Operacional Básica (NOB/SUAS) (BRASIL, 2006), aprovada pelo Conselho Nacional de
Assistência Social (CNAS) por meio da resolução nº 130 de 17 de julho de 2005, foi o marco
oficial da implantação do SUAS. A NOB/SUAS conceituou e definiu um conjunto de normas
que determinavam como deveria acontecer a operacionalização da AS e transição do antigo
para o novo modelo.
No ano de 2011, ocorreu a reformulação e atualização da LOAS (idem, 2011) a partir
das transformações legais e institucionais na área da AS. O CNAS aprovou também uma nova
31

Norma Operacional Básica da Assistência Social (NOB/SUAS) (idem, 2012a). No que se


refere ao paradigma7 assistencial, todas estas mudanças no plano político e organizativo
abriram a possibilidade para que se efetuasse a passagem do Paradigma Caridoso Filantrópico
Assistencialista8 (PCFA) para o Paradigma do Sujeito de Direitos9 (PSD) (SOUZA, W. A.,
2015). Entretanto, apesar dos enormes avanços que este paradigma (PSD) pode proporcionar,
seria necessário ainda mais um passo no sentido de um paradigma de Produção Social de
Qualidade de Vida (BENELLI, 2015b) – que guarda uma relação de homologia com o de
Produção Social de Saúde descrito por Mendes (1999). Este, diferentemente do Paradigma
Flexneriano10, que entende a saúde como ausência de doença e centra-se nos aspectos
curativos, prestigiando diagnóstico e terapêutica, compreende a saúde como um produto
social resultante de fatos econômicos, cognitivos, ideológicos e políticos; saúde, então,
adquire o sentido de qualidade de vida, sendo passível de acumulação ou desacumulação, a
depender de como estão organizados esses fatos. Em se tratando da AS, mesmo o PSD, mas
sobretudo o PCFA, ainda possuem um modelo bastante orientado para o indivíduo e para a
família, a especialização e a ênfase na prática protetiva (e não na promotora), guardando
certas homologias com o modelo flexneriano no campo da Saúde.
A AS, junto à Saúde (via SUS) e à Previdência Social, constituem o tripé de base do
Sistema de Proteção Social Brasileiro no âmbito da Seguridade Social (BRASIL, 2004b).
Nesse tripé, somente a Previdência Social é de acesso apenas dos contribuintes, pois tanto a
Saúde quanto a AS não são contributivas. O Estado é o responsável por garantir esses direitos.

7
Paradigma é um constructo teórico formal-abstrato, composto por uma “unidade jurídico-ideológica e teórico-
técnica de ação sobre a demanda” (COSTA-ROSA, 2000, p. 143) que nos permite compreender “dinamicamente
a realidade histórica, organizando seu aparente caos” (BENELLI, 2012a, p. 613). O paradigma, no campo da AS,
estabelece os contornos de como a atenção assistencial deve ser realizada.
8
Para W. C. Souza (2015) o Paradigma Filantrópico Caridoso Assistencialista (PCFA) ou paradigma
hegemônico possui como objeto de intervenção as ditas situações de vulnerabilidade e risco, que são
consideradas enquanto fenômenos individuais, sem considerar a estrutura social e o papel do Estado na produção
dessas situações. As ações efetuadas são pontuais, visando a resolver o problema aparente e não os reais
determinantes do fenômeno. O usuário é visto como passivo. O modo de organização das equipes é
hierarquizado, assim como a relação entre os trabalhadores e os sujeitos atendidos. As intervenções das equipes
são pensadas como uma resposta a priori para as situações, enquanto as práticas têm cunho adaptacionista e
normalizador. Os efeitos assistenciais são o assujeitamento e a alienação sociopolítica.
9
O Paradigma do Sujeito de Direitos (PSD), ou paradigma alternativo, tem como objeto o sujeito de direitos,
visto como sujeito protagonista, e não assujeitado. Os fenômenos da questão social são analisados a partir de sua
complexidade e como efeito do MCP. O modo de organização das equipes é horizontalizado, do mesmo modo
que a relação dos trabalhadores com os sujeitos atendidos. As ações são realizadas junto com o sujeito (e não por
ele ou para ele), por meio de práticas que possibilitem implicação subjetiva e sociocultural. O efeito assistencial
é o reposicionamento subjetivo e sociocultural (SOUZA, W. A., 2015).
10
O modelo flexneriano fundamenta-se no Relatório Flexner, de Abrahan Flexner, realizado no início do século
XX e publicado pela Fundação Carnegire (EUA). Ele se refere à medicina orientada para o indivíduo, a
especialização, a tecnificação, o mecanicismo, o biologismo e à ênfase na prática curativa, com a exclusão de
práticas alternativas. O Relatório Flexner repercutiu não apenas na formação médica, mas sobretudo na estrutura
organizacional e no funcionamento do sistema público de saúde (MENDES, 1996).
32

Assim, as pessoas podem se beneficiar mesmo não contribuindo diretamente para seu custeio.
Apesar de não ser contributiva, diferentemente da Saúde, que é universal, a AS é ofertada
para quem dela necessitar, isto é, ela supõe o indivíduo pobre e sem meios de subsistência –
do mesmo modo que a Previdência supõe o trabalhador. E como demarcou Sposati (2007), a
introdução da AS enquanto política de Seguridade Social não foi resultado de um processo
político pela ampliação do pacto social brasileiro, tendo sido instituída “mais pelas ‘heranças
institucionais’ do que pela concepção efetiva de um novo paradigma ou novo pacto social
com base na democracia e na redistributividade” (ibidem, p. 446).
Atualmente, em virtude da orientação da política econômica posta em prática e do
acirramento e aprofundamento das características e contradições do MCP – gerando altos
níveis de desemprego – o Estado alarga o campo de atuação da assistência, incorporando
como parte dos seus usuários pessoas aptas para o trabalho e que constituem o exército de
reserva de mão de obra. Conforme assinalaram Mota, Maranhão e Sitcovsky (2009, p. 189)
“[...] a AS passa a assumir, para uma parcela significativa da população, a tarefa de ser a
política de proteção social, e não parte da política de proteção social”. A consequência dessa
ampliação é a limitação do acesso a ela, fixando critérios e promovendo as políticas de
exceção. Ademais, e principalmente, ainda que a política de AS seja importante para o
atendimento de algumas contingências sociais vividas pela população, ela não pode ou deve
ser adotada enquanto principal mecanismo de enfrentamento das desigualdades sociais
(ibidem).
Contudo, o que aconteceu desde o início da década de 1990 até o ano de 2002 foi a
adoção de adoção de uma política econômica neoliberal, por meio da manutenção do ajuste
fiscal e da focalização das políticas sociais. Já entre os anos 2003 até meados de 2016 foi
adotada uma política nacional desenvolvimentista, com o governo procurando conciliar o
investimento em políticas de cunho social com políticas econômicas que beneficiaram os
grandes empresários – donos do capital. Nos últimos anos, o que se observa é o avanço da
mercantilização e da privatização das políticas de Previdência e de Saúde e uma concomitante
redução e/ou não ampliação de serviços voltados para as necessidades da população. De
acordo com Mota (1995, p. 227),

[...] uma das prerrogativas do capital, para fazer sua reforma, é subtrair os
direitos sociais e trabalhistas estabelecidos na Constituição, substituindo-os
pelos direitos do consumidor e da assistência aos pobres, coerente com sua
proposta de privatizar e assistencializar a seguridade.
33

Assim, a AS vem se tornando a política social central e integradora das demais


políticas. Se antes a política social estava ancorada no direito ao trabalho, agora ela está
ancorada na AS. Esse procedimento de centrar-se nos programas de AS em detrimento do
fortalecimento de políticas trabalhistas consiste no processo de assistencialização da
Seguridade Social. E, conforme alerta Behring (2008, p. 155), falar da “[...] assistencialização
como processo mais profundo associado ao desemprego estrutural, crescimento da
desigualdade em tempos neoliberais e reorientação da política social, não significa
desqualificar a importância da AS” enquanto uma política social consistente e que compõe
parte da Seguridade Social.
O problema está no crescimento da AS combinado com o esvaziamento das demais
políticas sociais, tornando-a a política integradora destas. Concordamos com Rodrigues
(2009, p. 24) no sentido de que existe um grande fetiche, pois a AS não tem capacidade de
“incorporar e integrar a massa, os inúteis para o capital. Não é capaz de alçar patamares
civilizatórios. Ela apenas é capaz de construir uma seguridade pobre, voltada para os
segmentos que se convencionou – erroneamente – chamar de excluídos sociais”.

1.5 PNAS: breves apontamentos críticos sobre seus princípios e diretrizes

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS) (BRASIL, 2004a) visa a


regulamentar a prática da AS e, para tal, fixa as bases para a consolidação dos serviços
socioassistenciais, reafirmando o papel do Estado. Ela se pauta num conjunto de princípios e
diretrizes que balizam a gestão e a execução da assistência social pública. Consta no conjunto
de princípios: “[...] supremacia no atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de
rentabilidade econômica” (ibidem, p. 25), universalização dos direitos sociais, respeito à
dignidade do cidadão, igualdade de direitos no acesso ao atendimento e divulgação ampla dos
programas de transferência de renda, dos serviços, dos projetos assistenciais, dos recursos
públicos e dos critérios para sua concessão.
Lourau (2014), ao discutir sobre o tema da instituição, demarca a necessidade de
compreendermos o conceito em seus três momentos: universalidade, particularidade e
singularidade. O momento da universalidade é o da unidade positiva do conceito, em que ele é
apresentado como verdadeiro, a saber, abstratamente verdadeiro, sem lacunas. E como revela
Chauí (1981, p. 21-22), as ideias ideológicas são lacunares:
34

O discurso ideológico é um discurso feito de espaços em branco, como uma


frase na qual houvesse lacunas. A coerência desse discurso […] não é uma
coerência nem um poder obtidos malgrado as lacunas, malgrado os espaços
em branco, malgrado o que fica oculto; ao contrário, é graças aos brancos,
graças às lacunas entre as suas partes, que esse discurso se apresenta como
coerente. Em suma, é porque não diz tudo e não pode dizer tudo que o
discurso ideológico é coerente e poderoso. […] O discurso ideológico se
sustenta, justamente, porque não pode dizer até o fim aquilo que pretende
dizer. Se o disser, se preencher todas as lacunas, ele se autodestrói como
ideologia. A força do discurso ideológico provém de uma lógica que
poderíamos chamar de lógica da lacuna, lógica do branco.

Consideramos que a AS, especialmente a partir do momento em que passou a se


configurar como uma política pública, pode ser pensada como uma instituição, de acordo com
Benelli e Costa-Rosa (2013). A PNAS e a LOAS constituem o discurso oficial de instituição,
que corresponde ao momento da universalidade, fazendo-se passar por um discurso sem
lacunas, o que possibilita considerá-lo também como um discurso ideológico. Conforme
Lourau (2014, p. 16) já advertira, “a universalidade traz em si mesma sua contradição”,
revelando o aspecto dinâmico da realidade institucional.
Por meio da reflexão acerca de alguns aspectos do discurso oficial da AS procuramos
ir além das camadas aparentes da realidade, buscando desvelar algumas de suas contradições.
Partiremos das bases legais da política de AS. Iniciaremos a discussão pelos princípios11 que
subsidiam a PNAS. Traçaremos algumas aproximações com o SUS em virtude dele ter sido
fonte de inspiração para o SUAS e deste paralelo propiciar algumas reflexões. Contudo,
ressaltamos que no próprio SUS ainda há um conjunto de problemas e contradições, conforme
assinalou Gastão Wagner:
O SUS é uma reforma sanitária incompleta. Faltam recursos, o orçamento
público cobre metade do necessário. A implantação do SUS tem sido
heterogênea, a depender da dinâmica política de cada estado, região e
cidade. Os governos brasileiros não tem sido dignos da grandiosidade da
proposta, há um esforço quase que sistemático em jogar o SUS na vala
comum do desgoverno clientelista típico do Estado brasileiro. (CAMPOS,
2007, p. 61).
Diferentemente do SUS, que tem como um princípio de destaque a universalidade, na
AS esse princípio não existe, uma vez que ela vem com o objetivo de atender a um
determinado recorte da população. O que define sua lógica de atendimento está descrito na
LOAS (BRASIL, 1993, 2011).

11
Segundo Paim (2009, p. 56) princípios são “aspectos que valorizamos nas relações sociais, na maioria
derivados da moral, da ética, da filosofia, da política e do direito. São valores que orientam nosso pensamento e
nossa ação.”
35

O inciso um do quarto artigo da LOAS (idem, 1993), que contém o primeiro


princípio, explicita que as necessidades sociais – e não a questão econômica – determinam a
lógica da política da AS. De acordo com Garcia (2011, p. 9) é nesse princípio que “se
escancara, de fato, o direito independente de qualquer questão relacionada com a economia”.
Embora essencial, na prática é possível observar que, devido à possibilidade de oferta bastante
limitada, ainda hoje a baixíssima renda ou mesmo sua ausência muitas vezes acaba sendo
critério para selecionar os sujeitos que serão ou não atendidos em programas e projetos
ofertados nos estabelecimentos assistenciais e mesmo em entidades assistenciais vinculadas à
política de AS. Outro princípio do SUS que não consta no SUAS é o da integralidade de
assistência, isto é, que diz respeito ao conjunto de ações para promoção da Saúde, prevenção
de riscos e assistência aos doentes, rompendo com a dicotomia entre as diferentes ações e
configurando um modelo de Saúde Integral. Trata-se de um princípio que poderia ser de
grande valia para o SUAS, pois assinalaria a importância de as ações se constituírem como
complementares umas às outras.
O princípio da universalização dos direitos sociais, com a finalidade de “tornar o
destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas” (BRASIL, 2005,
p. 26), dentro do modo como está configurada a própria política e organizado o SUAS,
também traz em si uma contradição. A LOAS (idem, 1993, 2011) prevê a garantia dos
Benefícios de Prestação Continuada (BPC) pagos às pessoas com deficiência e aos idosos
com mais de sessenta anos que não possuam outra fonte de renda, assim como o pagamento
de auxílio natalidade e auxílio funeral e a cobertura prioritária para crianças, gestantes,
nutrizes e à família em caso de calamidade pública. Ora, ser idoso e não possuir renda própria
não é suficiente para ter direito ao benefício, faz-se necessário comprovar não a pobreza, mas
a situação de miserabilidade. O mesmo acontece com a pessoa com deficiência, que precisa
não somente comprovar sua situação para conseguir o benefício, como também renovar tal
comprovação a cada dois anos para continuar recebendo esse auxílio.
Tendo em vista que muitas famílias, embora possuam renda um pouco superior ao
estabelecido pela LOAS (ibidem), dependem do BPC devido às inúmeras despesas com
deficiente ou idoso, o critério de renda familiar per capita inferior a ¼ do salário mínimo
somado à falta de outros critérios para a demonstração de hipossuficiência acaba
inviabilizando o acesso de muitos sujeitos ao benefício de que necessitam. Sendo assim,
apesar de definir a AS como um direito do cidadão, ao estabelecer os critérios de concessão, a
própria lei já realiza um recorte ao classificar como seus beneficiários uma população que
mais se aproxima da miserabilidade. Ao se realizar esse recorte, reproduz-se a exclusão. E,
36

conforme demarcou Okabayashi (1998, p. 119) “[...] ao excluir, deixa[-se] de assegurar os


direitos de assistência social de forma ampla e irrestrita”.
Outra questão que precisa ser discutida refere-se a como possibilitar que o sujeito
possa acessar outras políticas públicas. Isso implica uma necessária articulação da AS com as
demais políticas, uma vez que ela sozinha não se basta (SPOSATI, 2011). Segundo Sposati
(2004) a intersetorialidade deve ser promovida na produção de informações e na realização de
ações articuladas. Isso demanda que os trabalhadores dos estabelecimentos assistenciais ajam
em articulação com políticas de saúde, educação, cultura, esporte e habitação. Para a
construção da intersetorialidade, é imprescindível a estruturação da rede12, pois, se isto não
ocorrer, os estabelecimentos riscam ofertar atendimentos semelhantes, concorrendo entre si.
Há, ainda, uma outra problemática: como garantir o acesso a essas outras políticas
quando algumas delas não são disponibilizadas (ou o são de modo bastante restrito) no âmbito
da realidade do município, tal como discutem Penariol e Benelli (2015)? Tomemos como
exemplo uma família que passe a ser atendida pelo CRAS e seja encaminhada para a Saúde
com a finalidade de atendimento médico e dentário, mas cujo município não possua um
dentista trabalhando na rede de Saúde do município, resultando na falta de atendimento
odontológico da família. Outra situação um tanto comum em diversos municípios é a falta de
vagas para crianças menores de cinco anos em pré-escolas. Não se trata aqui de supor que a
AS deva ser responsável por realizar as outras políticas sociais, mas de explicitar o limite com
que se deparam os seus trabalhadores ao procurarem a articulação com as demais políticas
públicas e os sujeitos ao tentarem acessá-las.
Um princípio importante é o da igualdade de direitos no acesso ao atendimento. Esse
princípio é bastante homólogo ao do SUS, que demarca “[...] igualdade da assistência à saúde,
sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie” (BRASIL, 1990a). Na Assistência
Social, embora a igualdade seja contemplada na letra da lei, nem sempre ela é respeitada na
prática. Conforme comentou Garcia (2011) a existência de rígidos valores religiosos no
cotidiano dos técnicos tem fortalecido vetores de preconceito e discriminação. Os
profissionais acabam agindo como “[...] técnico[s] do comportamento, engenheiro[s] da
conduta ou ortopedista[s] da individualidade” (FOUCAULT, 2014, p. 243) e policiando as
famílias (DONZELOT, 2001). De acordo com nossa experiência de campo, apesar de a
equipe técnica do CRAS, por exemplo, não dever interferir no jeito das famílias serem e
viverem com base em valores religiosos, isso ainda tem acontecido sistematicamente. Trata-se

12
Benelli (2016b) e Benelli e Costa-Rosa (2010) apresentam interessantes discussões críticas sobre o tema do
trabalho social na modalidade de rede.
37

de uma fragilidade que necessita ser corrigida13. Neste sentido, a AS poderia se beneficiar de
um outro princípio do SUS: a “preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua
integridade física e moral” (BRASIL, 1990a).
O último princípio da LOAS (BRASIL, 2011), que prevê a divulgação ampla dos
serviços, programas e projetos assistenciais, serviços, critérios de concessão e recursos
ofertados pelo Poder Público, ainda constitui um desafio para a AS. Mais uma vez torna-se
evidente a inspiração do SUS onde consta a “[...] divulgação de informações quanto ao
potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário” (BRASIL, 1990a). Em ambos
os sistemas a difusão de informações é um fator essencial para que a população tenha seus
direitos respeitados. Na AS, a restrição na divulgação dos programas e serviços e dos
benefícios e normas de concessão ainda se faz presente (GARCIA, 2011). Para que as
informações não apenas cheguem, mas também sejam compreendidas pelas camadas mais
pobres e menos escolarizadas, é imprescindível a criação de outras estratégias, para além de
panfletos e cartazes, estratégias estas a serem construídas junto ao território e à comunidade.
Dentre as diretrizes14 da LOAS (BRASIL, 2011) estão a descentralização político-
administrativa, a primazia da responsabilidade do Estado, a participação popular e a
centralidade da família. Semelhantemente ao SUS, o SUAS possui a diretriz da
descentralização político-administrativa para os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, e
o comando único das ações em cada esfera de governo. A descentralização da gestão implica
transferir poder de decisão do nível federal (MDS) para os estados e municípios. Isso traz
duas inovações: viabilizar a participação da sociedade nos processos deliberativos e
possibilitar que os municípios estabeleçam prioridades de ações mais voltadas para os
problemas locais. Contudo, o que vem ocorrendo é a “prefeituração” (ALVES, 2009, p. 129),
ou mesmo uma desconcentração – no sentido mesmo de eximir-se da responsabilidade –, pois
não há uma proporcionalidade entre o repasse de responsabilidade aos municípios e os parcos
recursos que são disponibilizadas a eles, trazendo prejuízo principalmente para os municípios
menores, que possuem pouca arrecadação.
A diretriz da participação popular define a existência de espaços onde a população
possa contribuir na elaboração, implementação e fiscalização das políticas sociais. A
participação popular também é uma diretriz do SUS, em que ela aparece sob o nome de

13
Nesse sentido, a Psicologia como ciência e profissão tem discutido o tema da psicologia, da laicidade, da
espiritualidade, da religião e dos saberes tradicionais, apresentando referências básicas para atuação profissional
(CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO, 2014).
14
Diretrizes podem ser compreendidas como “orientações gerais de caráter organizacional ou técnico” (PAIM,
2009, p. 56) que balizam a execução de um conjunto de ações no campo da política pública.
38

participação da comunidade, sendo esta uma conquista oriunda da luta da Reforma Sanitária.
A participação pode se dar em organizações representativas, a saber, os Conselhos
municipais, estaduais e nacional, contribuindo “[...] na formulação e controle das ações em
cada esfera do governo” (BRASIL, 2005, p. 15). Entretanto, a população não tem exercido
sua função social nestes espaços (BENELLI, 2012b, BENELLI; COSTA-ROSA, 2013),
inclusive por não se sentir acolhida em suas demandas e devido à excessiva burocratização
das reuniões. Alves (2009, p. 258) demarcou uma questão essencial:

Como, então, as camadas sociais subalternas poderão ocupar espaços


“abertos” pelo Estado, para o exercício do “controle social”, no caso
particular da avaliação das políticas sociais, se não estão preparadas para
verdadeiramente ocuparem esses espaços como sujeitos coletivos,
conscientes de sua condição de classe?

A falta de participação tem resultado no preenchimento desse espaço por entidades


assistenciais que defendem os seus próprios interesses (SOUZA, W. A., 2015) e na redução
dos conselhos a “[...] a instâncias burocráticas que simplesmente sancionam tudo o que o
executivo determina, de modo cartorário e subordinado” (BENELLI, COSTA-ROSA, 2013,
p. 298). O controle social, por conseguinte, permanece circunscrito ao plano protocolar, pois
apesar de os conselhos estarem instituídos na sua forma jurídico-legal, sua participação nos
processos de decisão é submissa aos interesses organizacionais (BENELLI, 2012b). Mas
como é possível que os conselheiros possam exercer seus papéis adequadamente se eles
mesmos revelam uma visão despolitizada e mesmo desinformada (por desconhecerem os
documentos que subsidiam a política de AS)? Para que possa existir uma verdadeira
participação da população na defesa dos interesses dos sujeitos que usufruem da AS é
essencial que haja espaços de formação e politização dos participantes, assim como a
construção de relações horizontalizadas nestes espaços15.
No que se refere à centralidade da família, houve um avanço no sentido de desfocar a
culpabilização do indivíduo, contudo, isso pode servir apenas para que se promova o
deslocamento da culpabilização do sujeito para a família, pois, conforme destacou Couto
(2010, p. 53) “[...] no trato da política de assistência social é comum ser o trabalho
parametrado pelo enfrentamento das dificuldades individuais e/ou familiares do sujeito que,
dessa forma, perde a perspectiva de classe social”. Também não se deve confundir a

15
A Educação Popular parece ser uma interessante modalidade de atuação, que pode ser inspiradora para
psicólogos e demais trabalhadores no campo das políticas públicas sociais (BOFF, 1984; BRANDÃO, 2006;
DEMO, 2001, 2002).
39

centralidade da família com centralidade na família, pois a família é o coletivo protagonista e


não o grupo-alvo de ações de intervenção as mais variadas (DONZELOT, 2001). A
matricialidade sócio-familiar, de acordo com Prates (2013, p. 13), é “[...] uma tendência das
políticas públicas desde a introdução do ideário neoliberal na gestão pública”.
Diferente de outros países, onde vigora um regime vinculado à social democracia, no
Brasil vigora o Regime Familista, ou seja, uma aposta incondicional na família enquanto
principal instância de provisão de bem-estar. No âmbito da política social, a tradição familista
vem se constituindo a partir do pressuposto de que existem dois canais de satisfação das
necessidades das pessoas, a saber: o mercado (via trabalho) e a família, e somente quando
estes canais falham é que o Estado intervém de forma temporária. Essa lógica político-
econômica está pautada em agências internacionais, havendo a expectativa de que a família
possua um papel significativo – e até substituto – no que se refere ao acesso, cada vez mais
reduzido, às políticas sociais. Profundamente arraigada na sociedade brasileira, a concepção
de que, independentemente de das condições de vida, as famílias devem ser capazes de cuidar
de seus membros e de protegê-los possui desdobramentos importantes na operacionalização
da política de AS, pois promove uma distinção entre famílias capazes e incapazes, assim
como de famílias mais capazes e menos capazes. E na execução da política de AS pelos
profissionais, muitas vezes ainda mergulhados nessa concepção tradicionalista, as ações
realizadas acabam por produzir resultados inversos aos que eram esperados na concepção dos
programas sociais (MIOTO, 2015). Ademais, as políticas de caráter familista tendem a
reforçar os papéis tradicionais de homens e mulheres e a responsabilização da família na
proteção social de seus membros acaba por produzir uma sobrecarga para a mulher na medida
em que ela fica responsável por dar conta do cuidado com os familiares mais frágeis
(crianças, idosos e deficientes) sem o devido suporte público (CASTILHO; CARLOTTO,
2010; ROMAGNOLI, 2015).
Faz-se essencial compreender que a família, enquanto sujeito coletivo, por viver na
sociedade ser organizada sob a égide do MCP, integra um sistema de classes sociais
antagônicas e encontra-se sujeita à “inclusão perversa” (SAWAIA, 2001, p. 7) e à pobreza.
Sendo assim, é imprescindível que a atenção assistencial seja ampliada para além da família a
fim de não arriscar um retorno a ações focalistas historicamente construídas no campo da AS.
O fortalecimento não pode ser apenas da família, mas principalmente das organizações
comunitárias dos bairros, dos Movimentos Sociais, enfim, dos espaços democráticos
existentes e/ou que possam surgir no seio da sociedade. Além disso, cabe perguntar como a
AS poderá executar um trabalho com aqueles sujeitos que não possuem como demanda
40

[re]construir um vínculo familiar, não circulam nos territórios e construíram outros modos –
diferente do modelo burguês – de viver, como, por exemplo, no caso dos
andarilhos/trecheiros. Como fazer ofertas sem tentar discipliná-los, docilizá-los e normalizá-
los? Eis uma questão que a AS ainda não conseguiu resolver.

1.6 SUAS: alguns apontamentos críticos

O Sistema Único da Assistência Social (SUAS), inspirado no Sistema Único de Saúde


(SUS), configura a AS como política pública, tendo como função realizar a proteção social, a
vigilância socioassistencial e a defesa de direitos. Esse sistema busca organizar, de forma
descentralizada e participativa, os serviços socioassistenciais no país, com ações voltadas para
o fortalecimento da família. Ele traz algumas modificações fundamentais no modo de
organizar a atenção assistencial. Com ele, os serviços passam a ser organizados por níveis de
proteção. Ele também modifica a forma como é realizada a prestação de contas e o modo de
repasse de recursos federais para Estados e municípios. Além disso, o SUAS prioriza a
família como foco da atenção e o território como base das ações. Sua organização se dá
respeitando três vertentes de proteção: as pessoas, as circunstâncias nas quais elas vivem e seu
núcleo de apoio primordial, que passa a ser a família.
A partir do SUAS, começou a se consolidar um novo modo de atenção às pessoas
consideradas em situação de pobreza e/ou com fragilização ou rompimento de vínculos
sociais e/ou familiares. As várias ações e iniciativas de atendimento a setores mais
pauperizados da população passam do campo do voluntarismo (no sentido de um mero favor)
para o plano de estrutura de uma política social brasileira. Os programas de transferência de
renda da AS passaram a constituir um direito do cidadão, ao menos teórica e formalmente.
Trata-se de um esforço para romper com o modelo assistencialista que até então vigorava no
Brasil. Contudo, o alargamento do público-alvo da política de AS, por envolver um leque de
situações tão diversas, pode levar a um comprometimento do processo de normatização e de
padronização dos serviços prestados (MOTA; MARANHÃO; STICOVSKY, 2009).
No discurso da AS aparecem os significantes “situação de vulnerabilidade” e “situação
de risco”. Em sua origem, o termo vulnerabilidade designa, segundo Ayres et al (2003, p.
118) “[...] grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção
ou garantia de seus direitos de cidadania”. No campo da Saúde essa discussão nasce a partir
da epidemia de Aids, tentando dar conta da compreensão da realidade e propor modos de
enfrentamento do problema. O conceito de risco, mais especialmente de grupo de risco e
41

comportamento de risco, foi fortemente criticado pelo meio técnico e acadêmico, abrindo
espaço para que o conceito de vulnerabilidade se desenvolvesse adquirindo o sentido de
movimento de levar em consideração a chance de adoecimento de uma pessoa como
resultante de um conjunto de aspectos não somente individuais, mas também coletivos, que
produzem maior ou menor suscetibilidade ao adoecimento e, inseparavelmente, menor ou
maior quantidade de recursos para se proteger dele. Esse segundo conceito, ao sair do âmbito
pessoal e ampliar o olhar para os aspectos políticos e coletivos, traz um avanço em relação ao
primeiro.
No campo da AS e nos documentos de sua política, a vulnerabilidade surge como uma
condição dos sujeitos e de suas famílias que está relacionada a um conjunto de fatores: a não
inserção e/ou inserção precária no mercado de trabalho, o precário ou nulo acesso a serviços
públicos ou outras formas de proteção social e o baixo ou nulo nível de relações sociais e/ou
comunitárias. Os conceitos de vulnerabilidade e risco remetem-se um ao outro. O risco
comporta uma série de situações – naturais, sociais, econômicas, ambientais, políticas, ligadas
ao ciclo de vida e de saúde – que podem afetar o bem-estar dos sujeitos e de suas famílias.
Apesar de as categorias vulnerabilidade e risco serem centrais na política de AS, nos
documentos que a subsidiam não se discute profundamente a desigualdade social (BENELLI,
2016a; ROMAGNOLI, 2015). Isso produz a chance de que esses conceitos sejam utilizados
em prol da naturalização da miséria sem que haja um questionamento do MCP e de seus
efeitos, mantendo as ações de proteção social no campo meramente paliativo e a reprodução
das desigualdades sociais. Conforme aponta Monteiro (2011) o conceito de vulnerabilidade
foi gestado nos organismos internacionais enquanto alternativa ao de exclusão social16 e tem
sido largamente disseminado como orientação aos Estados para a execução das políticas
sociais, norteando a lógica dos ajustes, sobretudo nos países periféricos. A vulnerabilidade
não é entendida como produto das desigualdades sociais, pois sua concepção não considera o
caráter estrutural da sociedade capitalista, portanto toda a possibilidade de seu enfrentamento
se dá sem o confronto dos determinantes estruturais da desigualdade.
Assim sendo, as categorias vulnerabilidade e risco, indicadoras dos níveis de inclusão
perversa, expressam uma certa fragilidade na delimitação do público-alvo e dos serviços para
atendê-lo. Além disso, ao colocar a ênfase – da leitura da situação e da solução – no sujeito,
há uma culpabilização deste, além do fato de a oferta de serviços não ser adequada, uma vez

16
Entendemos que ao invés de falarmos em exclusão social seria mais apropriado falarmos de inclusão perversa,
uma vez que a produção de um contingente de trabalhadores que não possuem acesso ao trabalho, a renda e aos
bens socialmente produzidos é parte intrínseca do próprio MCP e não uma falha do sistema, ela é produto do
funcionamento do sistema.
42

que não se resolve a questão da pobreza e problemas dela derivados por meio da oferta de
serviços cujo foco de trabalho seja a convivência e o fortalecimento de vínculos. Os pobres
podem ter laços afetivos bem fortes e mesmo assim continuar na pobreza mais absoluta,
podem ainda ter sentimentos de pertença bem consolidados, e isso não os tira da condição de
pobreza.
Ao problematizar os significantes vulnerabilidade e risco no discurso da Assistência
Social, Benelli (2016a) assinala que se trata de eufemismos que tem a pretensão de substituir
certos termos considerados desagradáveis, uma vez que

[...] já não parece de bom tom denominar os indivíduos que precisam da


Assistência Social como pobres, pois o termo conota dimensões políticas,
sociais e econômicas demasiado fortes e algo incômodas para a gestão social
que implementa procedimentos técnicos assepsiados para lidar com o
problema social e suas múltiplas refrações na sociedade (ibidem, p. 740-
741).

Estes novos significantes remetem à “sociedade de controle” (DELEUZE, 2008),


reeditando, com uma nova roupagem, os antigos temas cunhados na “sociedade disciplinar”
(FOUCAULT, 2014) e que serviram para mistificar a questão social, como, por exemplo:
delinquência perigosa, marginalidade e anormalidade psíquica, afetiva, cognitiva e moral. De
acordo com Coimbra (2001), do ponto de vista das classes dominantes, a pobreza é
identificada com as classes perigosas. Essa questão é discutida por Donzelot (2001).
O discurso da AS, ao utilizar-se da categoria de risco, deixa implícito que o que se
produz atualmente é muito mais uma gestão dos riscos sociais (CASTEL, 1984) do que a
emancipação da classe pobre, que incluem os trabalhadores e os desempregados. Busca-se
prevenir os riscos sociais, antecipando o surgimento de acontecimentos indesejáveis no seio
da população que foi detectada como portadora de riscos (ibidem). Essa prevenção tem como
um de seus ingredientes primordiais a vigilância, mas o modo desta vigilância é
completamente novo se comparado com as técnicas disciplinares explanadas por Michel
Foucault (2014) quando este descreve a Sociedade Disciplinar.
Na Sociedade Disciplinar, o objetivo era o governo da vida em sua extensão, via uma
técnica de adestramento do homem-corpo. O controle sobre os homens era exercido por um
conjunto de instituições ou estabelecimentos de aprisionamento e captura – escolas, fábricas,
manicômios, presídios, hospitais, dentre outros – que tinham como marca disciplinas
expressas por regras e como técnica básica o confinamento (BENELLI, 2015b). O exercício
da disciplina se dava por meio de práticas que tinham como alvo direto o corpo do sujeito,
43

disciplinando-o e docilizando-o. A disciplina, operada a partir de instrumentos simples (o


olhar hierárquico, a sansão normalizadora e o procedimento do exame), buscava regular a
multiplicidade dos homens, transformando-os em indivíduos objetivados e em sujeitos tanto
mais obedientes quanto úteis.
A partir da metade do século XVIII surgiu uma nova tecnologia de poder chamada
biopolítica, composta por estratégias e técnicas que investem no fazer viver. A biopolítica,
então, diz respeito ao conjunto de técnicas e saberes específicos para tratar a população
garantindo que esta seja gerida de modo a afirmar e fortalecer o papel do Estado. Por meio
dos biopoderes, a biopolítica ocupa-se da gestão da natalidade, da alimentação, da higiene, da
saúde, da sexualidade, etc. Essa nova tecnologia que surge também se dirige à multiplicidade
de homens, mas desta vez não de maneira individual e sim na medida em que ela forma “[...]
uma massa global, afetada por processos de conjunto que são próprios da vida, que são
processos como o nascimento, a morte, a produção, a doença etc.” (FOUCAULT, 1999, p.
291). Assim, torna-se um problema a ser antecipado e prevenido tudo aquilo que foge da
norma e que pode vir a produzir um modelo indesejável de população. Busca-se, então
produzir práticas para gerir determinadas camadas da população de modo a permitir um
controle regular da circulação, tendo como ferramenta estratégica a governamentalidade17.
Nessa lógica, aparecem políticas mais sutis e com maior penetração no tecido social.
Deleuze (2008) realça o surgimento das sociedades de controle, que estão substituindo
as sociedades disciplinares, como um dos efeitos do estágio atual do capitalismo. Na
sociedade de controle, as instituições e os estabelecimentos da sociedade disciplinar
encontram-se diluídos e, de modo inverso, o controle que opera em meio aberto está
maximizado, uma vez que vai para além dos estabelecimentos institucionais, penetrando de
modo capilar em todos os espaços, inclusive nos territórios dos sujeitos. Na sociedade de
controle, o cotidiano das famílias passa a ser vigiado – e mesmo normalizado – sem que isso
seja percebido facilmente, pois são realizados por um conjunto de instituições já cristalizadas.
Scisleski, Caetano e Cogoy (2013, p. 97) apresentam um exemplo de como isso acontece nas
políticas públicas: “para efetuar o controle, localiza-se a dita população de risco em
microrregiões, o que permite focalizar especificamente as ações que precisam ser dirigidas à
17
Foucault entende por governamentalidade o “o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos,
análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito
complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e
por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por ‘governamentalidade’
entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a
preeminência desse tipo de poder que pode chamar de governo sobre todos os outros – soberania e disciplina – e
que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda uma série de aparelhos específicos de governo [e por outro
lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes” (FOUCAULT, 2008, p.143-144).
44

vida dos sujeitos em questão”. Isso possibilita compreender qual o motivo de, ainda que no
discurso da AS ganhe destaque o termo “promoção de cidadania”, um olhar um pouco mais
aguçado e crítico permite perceber que ela atua, sobretudo, no sentido de tentar gerir os
problemas sociais por meio da inclusão dos pobres e miseráveis em diversos serviços,
programas e ações. Tem-se então o exercício da governamentalidade (FOUCAULT, 2008),
sendo a família o seu principal objeto.

1.7 A questão da seleção das famílias incluídas nos projetos sociais e no programa de
transferência de renda

Embora apresentados pela LOAS como sujeitos de direitos, o acesso à AS não é


disponibilizado de forma universal a todos que dela necessitam. Apesar de, segundo a
Constituição (BRASIL, 1988), a assistência dever se dirigir aos segmentos que não são
capazes de suprir as necessidades básicas de subsistência por si mesmos, em decorrência de
estarem excluídos do mercado de trabalho formal e informal, uma significativa parcela das
pessoas aptas ao trabalho encontra-se em situação de dependência da política da AS. Pela
impossibilidade de garantir o direito ao trabalho, o campo de atuação da AS acaba sendo
ampliado, incorporando esses sujeitos aptos ao trabalho – porém, desempregados – como
usuários da política. A consequência disso é a limitação do acesso, fixando critérios, como,
por exemplo, a renda, e promovendo as políticas de exceção (MOTA; MARANHÃO;
SITICOVSKY, 2009, p. 189). E essa limitação não se refere apenas ao programa de
transferência de renda chamado Bolsa Família, mas também ao atendimento assistencial por
meio dos programas e projetos direcionados a certos segmentos populacionais
predeterminados legalmente, classificados por critérios de idade (idosos, crianças, jovens) e
de “anormalidade” (deficientes físicos, desadaptados sociais), que constituem o seu público-
alvo e são transformados em “fracassados”, “desadaptados” e “anormais” (ALVES, 2009).
Na prática, o público real para o qual a política de AS está voltada é aquele conjunto
de pessoas consideradas “mais necessitadas”, “carentes”, os mais pobres dentre os pobres
(BENELLI, 2014; BENELLI, 2012a). Recorrem à AS aqueles sujeitos cujos direitos sociais e
trabalhistas tem sido constantemente violados e vivem nos limites da sobrevivência.
Marcados pelo discurso da “exclusão social”, estes acabam sendo enquadrados sob o rótulo de
“desintegrados sociais”, o que oculta sua origem de classe e encobre “os processos históricos
que efetivam a superexploração do capital sobre o trabalho” (ALVES, 2009, p. 89).
45

As ações assistenciais focalizadas em grupos (de idosos, crianças, deficientes)


impedem ou ao menos dificultam que os sujeitos possam perceber-se como pertencentes à
classe social explorada. A perspectiva que norteia as ações assistenciais, conforme destacou
Alves (ibidem, p. 91), “[...] é aquela balizada pelo princípio da equidade, pela via da
redistribuição”. Busca-se compensar os segmentos sociais tidos como “desfavorecidos” –
eufemismo que evita utilizar a categoria “pobre”, que é sociologicamente densa –, com pouca
ou sem renda e que estão excluídos da partilha dos bens socialmente produzidos por meio de
ações “integradoras” que atuam sobre os sujeitos, mas sempre “disciplinando” (FOUCAULT,
2014) e docilizando, objetivando sustentar, no plano das aparências, um suposto e adequado
processo de integração social, de notável viés funcionalista.
Quanto à transferência de renda, esta acontece por meio do Benefício de Prestação
Continuada (BPC) e do Programa Bolsa Família. O BPC é voltado a idosos que não possuem
fonte de renda e a pessoas com deficiência incapacitante para o trabalho, não havendo a
exigência do cumprimento de condicionalidades. No caso de quem possui deficiência existe
uma avaliação periódica (bianual) realizada para comprovação (ou não) da necessidade de
recebimento do BPC. Mas, se para serem atendidos pelo benefício eles precisam comprovar a
incapacidade, que possibilidade terão de inserção social e de exercício da capacidade de
trabalho? Esta avaliação, em vez de medir o quanto o BPC tem contribuído para alterar a
condição de vida dos sujeitos e ampliar sua implementação, possui como função – ainda que
velada – promover economia por meio do corte de gastos.
No caso do Bolsa Família (BF), voltado para famílias com renda per capita inferior a
¼ do salário mínimo, é obrigatório que as famílias cumpram um conjunto de
condicionalidades. Mas, uma vez que ele é um direito, qual a razão para a existência de tais
condicionalidades? Elas são apresentadas como uma maneira de o sujeito adotar um papel
ativo, entretanto, este se situa apenas no plano do reforço à ordem estabelecida, ou seja, da
obediência ao que é posto como dever para que se possa continuar com o BF. E a interface
que o BF vem estabelecendo com as políticas de Saúde e Educação é derivada dessas
condicionalidades. Porém, exige-se o seu cumprimento sem que exista uma melhora efetiva
na prestação desses serviços. Além disso, “[...] o SUAS não faz uma referência clara à
articulação que deve ser estabelecida com a política de geração de emprego e renda”
(ALVES, 2009, p. 217). Sem possibilidade de conquistar emprego e renda, dado o
desemprego estrutural, qual a chance os sujeitos atingirem a autonomia, na medida em que
isso não é factível numa sociedade capitalista?
46

Os programas de transferência de renda, segundo a NOB/SUAS (BRASIL, 2005, p.


94) criam “possibilidades para a emancipação, o exercício da autonomia das famílias e
indivíduos atendidos e o desenvolvimento local”. Todavia, de que emancipação se trata?
Como emancipar ofertando uma quantidade ínfima de recursos? De acordo com Alves (2009),
trata-se de uma emancipação orientada pela lógica da “cidadania liberal” que cria o “cidadão-
consumidor”, interessada em explorar o poder de consumo das camadas mais empobrecidas
da população. Se já não são explorados enquanto trabalhadores, que sejam lucrativos ao
menos na condição de consumidores! Na linguagem neoliberal, emancipar tem o significado
de desligar os sujeitos das ações desenvolvidas pelo Estado, que necessita conter gastos.
Ainda que os programas de transferência de renda possam ser necessários a muitos sujeitos –
e muitas vezes acabam sendo a única fonte de renda de algumas famílias –, fica evidente que
o valor pago por si só não promove a emancipação dos sujeitos e suas famílias.

1.8 A organização da Assistência Social por níveis de complexidade: as Proteções Sociais

As ações e os serviços da AS estão atualmente organizados a partir de níveis de


complexidade: Proteção Social Básica (PSB) e Proteção Social Especial (PSE). Essa
organização em níveis se dá tanto na distribuição dos estabelecimentos de atendimento quanto
na decisão sobre as formas de acompanhamento e no que diz respeito a considerar sua
gravidade e urgência. Trata-se de um modelo de organização bastante semelhante ao do SUS
– centrado no paradigma flexneriano da Saúde (MENDES, 1999) –, inclusive no que diz
respeito à divisão por níveis de complexidade.
Semelhantemente ao SUS, cuja ênfase está na oferta de serviços de atenção médica e
curativa, a ênfase assistencial desses serviços está nos tipos de ação preventiva (de
rompimento de vínculos familiares e comunitários) e restaurativa (dos mesmos), em
detrimento de ações promotoras e produtoras de realidades sociais mais alinhadas aos
interesses do polo subordinado. Esse modo de organização do atendimento assistencial a
partir de níveis de complexidade tende a produzir um recorte dos sujeitos e das famílias
atendidas ao enquadrá-las nos diversos níveis de proteção, mas desconsiderando que as
necessidades deles “já são reveladoras da multiplicidade de expressões da ‘questão social’”
(MOTA; MARANHÃO; SITCOVSKY, 2009, p. 195).
De acordo com a PNAS, a Proteção Social Básica (PSB) visa a “prevenir situações de
risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de
vínculos familiares e comunitários” (BRASIL, 2004a, p. 27). Esse nível de proteção é
47

direcionado à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da


pobreza, privação e/ou fragilização de vínculos afetivos, características que nos parecem
recortar a “questão social” a partir de tons bastante psicologizantes. Os serviços, programas e
projetos estão voltados para o acolhimento, a convivência e a socialização de indivíduos e de
famílias, numa acepção pedagógica e psicológica.
O Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) é o principal estabelecimento
de Proteção Básica, sendo que o Serviço de Proteção Integral à Família18 (PAIF) é o principal
serviço da PSB. Nesse nível de proteção, deve prevalecer o atendimento às famílias
desprotegidas, seja por problemas econômicos ou por fragilização de vínculos, mas que ainda
são capazes de responder às exigências legais e afetivas de convivência humana. O notável é
que não se questiona sobre as causas da situação de desproteção das famílias. O discurso
oficial contido na documentação orienta que o CRAS deve ser instalado em regiões
consideradas de “risco e vulnerabilidade social”, uma vez que ele constitui a porta de entrada
dos usuários para a rede de PSB (BRASIL, 2004a). Mas por que as cidades possuem regiões
com tais características? Como primeiro nível do SUAS, a PSB guarda certa relação de
homologia com o nível de Atenção Primária da Saúde, centrada nas Unidades Básicas de
Saúde (UBSs) e na Estratégia Saúde da Família (PSF). Conforme define o próprio discurso
oficial, sua atuação seria preventiva, suas intervenções deveriam estar estruturadas de modo a
antecipar situações de risco, atuando a partir da oferta de programas de transferência de renda
e de atividades oferecidas nos CRAS. O que não fica explícito é quem são os grandes
produtores das situações de vulnerabilidade e risco. Pensamos que a sociedade capitalista e a
elite dominante é que criam situações de risco para grande parte da população, por meio de
ações, omissões, descaso e negligência.
Castel (1984) descreve como ocorrem as transformações contemporâneas na gestão
das populações: a ênfase tradicional no controle das patologias e do tratamento sintomático
vem sendo substituída pelo enfoque no risco de certos grupos poderem se desviar daquilo que
foi posto como a norma. As novas estratégias médicas e sociais objetivam ser, sobretudo,
preventivas, sendo que essa prevenção aspira a, primeiramente, detectar possíveis riscos. Um
“[...] risco não é o resultado da presença de um perigo concreto para uma pessoa ou para um
grupo de indivíduos, mas uma relação de dados gerais impessoais ou fatores (de risco) que

18
As ações que compõem o PAIF são: acolhida, oficinas com famílias, ações comunitárias, ações
particularizadas e encaminhamentos (BRASIL, 2012b). Tais atividades, de acordo com a documentação,
costumam ser despolitizadas, oscilando entre o pedagógico e o terapêutico (BENELLI, 2015b).
48

tornam mais ou menos provável o acontecimento de condutas indesejáveis” (ibidem, p. 155,


tradução nossa). Desse modo, prevenir é sobretudo vigiar19.
No novo modelo de vigilância, as políticas preventivas se dirigem, ao menos em um
primeiro momento, não ao indivíduo, mas aos fatores de risco e às suas correlações
estatísticas. O sujeito concreto da intervenção é decomposto para que seja recomposto “a
partir de uma combinação sistemática de todos os agrupamentos suscetíveis de produzir risco”
(HILLESHEIM; CRUZ, 2010, p. 77). Trata-se de antecipar todas as figuras possíveis da
irrupção do perigo, sendo que o que marca o lugar do perigo é a sua distância avaliável em
relação às normas médias. Ao utilizar essa categoria, fica implícito que o que se produz
atualmente é muito mais uma gestão dos riscos sociais do que a emancipação das classes mais
desfavorecidas da população.
O discurso oficial da vulnerabilidade também marca um direcionamento importante da
política de AS. O termo vulnerabilidade é complexo e multifacetado, podendo assumir uma
série de significações. Castel (1994) destaca que a produção da vulnerabilidade é efeito de
dois vetores: a integração ou não integração pelo trabalho e a inserção ou não inserção em
uma sociabilidade sociofamiliar. Ele assinala quatro zonas possíveis nas quais um indivíduo
pode estar situado: uma pessoa encontra-se na zona de integração se possui um trabalho
estável e forte inserção relacional (vínculo familiar e comunitário); ela está na zona de
vulnerabilidade se tem relações de trabalho precárias e se há fragilidade nos apoios relacionais
(família e comunidade); situam-se na zona de desfiliação as pessoas que vivenciam um duplo
processo de desligamento marcado pela ausência de trabalho e isolamento relacional; e
encontram-se na zona da assistência aqueles que não podem trabalhar e que são assistidos em
suas necessidades pelos serviços sociais. Para Castel (1997), a vulnerabilidade não é
produzida apenas pela insuficiência de recursos materiais, mas pela ausência de integração
pelo trabalho e de inserção e pertencimento familiar e social.
O texto da PNAS (BRASIL, 2004a) afirma que a situação de vulnerabilidade seria
decorrente da pobreza, da ausência de renda e/ou do acesso precário ou nulo a serviços
públicos, ou, ainda, da fragilização de vínculos afetivos com a família e a comunidade.
Segundo Hillesheim e Cruz (2010) a concepção de vulnerabilidade tem a pretensão de
superar, ao mesmo tempo em que incorpora, o conceito de pobreza. Vulnerabilidade é um
conceito complementar ao de risco e, portanto, sua compreensão demanda essa associação.
Abrimos um parêntese para salientar que a ideia de vulnerabilidade social é ideológica, pois a

19
Nesse sentido, é interessante perceber que o termo “assistir” que compõe a locução “Assistência Social”
remete tanto ao sentido de ajudar, auxiliar quanto ao de olhar, ver, acompanhar olhando, assistindo.
49

vulnerabilidade não é algo natural e sim um efeito do MCP. Sendo assim, o que existe são
sujeitos historicamente vulnerabilizados e situações de vulnerabilização social que poderiam
ser perfeitamente identificáveis.
A introdução da noção de vulnerabilidade no discurso da política de AS faz com que
ela realize intervenções que, ao diminuir a vulnerabilidade por meio de ações assistenciais,
produz uma diminuição do risco e, por consequência, do perigo. Logo, a instalação do CRAS
em áreas designadas como sendo de risco e de vulnerabilidade não deixa de ser uma estratégia
de gestão social, ainda que seja também um suporte público que reconhecemos como
necessário para um vasto conjunto de famílias. Mas esse estabelecimento assistencial, ainda
que traga alguns benefícios ao ofertar espaços de acolhimento e socialização, não parece ser
capaz de resolver o problema da falta de estrutura existente no Território – ausência de
escolas, de creches e de UBSs, desemprego, narcotráfico, drogadição, alcoolismo, violência,
dentre outros –, principais fatores produtores de vulnerabilização. Se, por um lado, caberia ao
CRAS realizar a articulação com outras políticas, por outro lado isso só pode acontecer se tais
políticas públicas existirem no Território.
Além disso, a partir de nossa inserção no campo da AS, notamos que as atividades
ofertadas pelos estabelecimentos assistenciais muitas vezes não correspondem,
necessariamente, aos interesses, necessidades e desejos das pessoas, mas sim à adequação aos
programas e projetos propostos (SCISLESKI; CAETANO; COGOY, 2013). Cabe, ainda, uma
reflexão: se o principal fator produtor da fragilização de vínculos familiares e comunitários é
a ausência de emprego e renda, qual seria o real impacto da oferta de atividades chamadas de
socioeducativas voltadas para adultos? Pensamos que o CRAS é um equipamento social
importante, mas seria preciso subverter sua lógica de gestão dos riscos, de modo que suas
ações estivessem essencialmente voltadas para contribuir com a organização dos espaços
comunitários – por exemplo, por meio da discussão dos problemas do Território e da
responsabilidade da gestão municipal de buscar seu equacionamento –, favorecendo a
consciência crítica e o protagonismo dos sujeitos e dos coletivos na proposição de soluções e
de reivindicações.
A Proteção Social Especial (PSE), o outro nível da AS, é voltada para famílias e
indivíduos que, de acordo com a PNAS (BRASIL, 2004a), encontram-se em situação de risco
pessoal e social em decorrência de diversos fatores: maus tratos físicos e/ou psíquicos,
negligência, abuso sexual, abandono, situação de trabalho infantil, situação de rua,
cumprimento de medidas socioeducativas, dentre outras situações de violações de direitos.
Esta PSE guarda relação de homologia com a atenção secundária e terciária ofertada pelo
50

SUS por meio de alguns estabelecimentos de Saúde. Suas intervenções estão


fundamentalmente dirigidas para indivíduos e famílias e ocorrem no sentido de procurar
assegurar a não reincidência da violação de direitos e a inserção dos sujeitos na rede de
proteção social. Na PSE existem dois níveis de complexidade: média e alta. Os serviços de
PSE de média complexidade ofertam atendimento para famílias e indivíduos com seus
direitos violados, mas que continuam com os vínculos familiares e comunitários preservados,
ou seja, cujos vínculos não tenham sido rompidos. O atendimento é restrito a alguns casos,
dentre eles: situação de rua, casos de violência e exploração sexual, situação de trabalho
infantil, maus tratos físicos e/ou psíquicos, negligência e cumprimento de medidas
socioeducativas em meio aberto. Dentre os serviços estão: Serviço de Proteção e Atendimento
Especializado a Famílias e Indivíduos (PAEFI); Serviço Especializado em Abordagem Social;
Serviço de Proteção Social a Adolescentes em Cumprimento de Medida Socioeducativa de
Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviços à Comunidade (PSC); Serviço
Especializado para Pessoas em Situação de Rua; e Serviço de Proteção Especial para Pessoas
com Deficiência, Idosos e suas Famílias (idem, 2009).
O Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), serviço
responsável pela PSE de média complexidade, deve garantir o acolhimento de famílias cujos
vínculos não foram rompidos, embora estejam comprometidos. As famílias atendidas podem
apresentar dificuldades diversas no estabelecimento de vínculos afetivos ou mesmo ter
problemas no cumprimento dos cuidados com crianças, adolescentes, idosos ou pessoas com
deficiência. Na PSE de média complexidade a relação de homologia é estabelecida com o
nível secundário de atenção à Saúde, sendo composto por ações e serviços que demandam
profissionais especializados e também o uso de recursos tecnológicos de apoio diagnóstico e
terapêutico, ofertados em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), centros de especialidades
médicas e odontológicas, dentre outros. A atenção assistencial também demanda profissionais
especializados, incluindo nesta proteção o trabalho de advogado(a), além do de assistente
social e de psicólogo(a), e tem por função promover o acesso das famílias e sujeitos a direitos
socioassistenciais e à prevenção de agravamentos e da institucionalização.
Dada a diversidade dos casos e a complexidade de cada um deles, faz-se
imprescindível que os profissionais voltem o olhar não apenas para a situação de violação,
mas para o conjunto de fatores econômicos, culturais e sociais que produziram tal caso, o que
coloca um enorme desafio não somente para a prática, como essencialmente para a formação
dos profissionais. Essa formação crítica e qualificada nem sempre é exigida (e, muito menos,
fomentada) pela própria política pública oficial, o que se pode ver pelos documentos, por
51

exemplo, pois aos trabalhadores que atuam como cuidadores e educadores sociais (BRASIL,
2014, FERREIRA, 2011) e outros que fazem abordagem de rua (FERREIRA, 2011) bastaria
apenas terem o ensino médio. Não possuir ensino superior não constitui necessariamente um
problema, pois muitos trabalhadores, mesmo sem graduação, podem ser críticos e politizados.
O que falta, nesse caso, é essencialmente a capacitação logo no seu ingresso e também a
oferta de formação continuada para o trabalho na política de AS. Em virtude dessas formações
e capacitações praticamente não existirem, a consequência é a execução de práticas baseadas
no senso comum e inclusive, em certos casos, no preconceito (BENELLI, 2015c).
Outra questão, ainda relacionada à diversidade e à complexidade dos casos, é que
antes de os sujeitos/famílias acessarem a AS, estes já vivenciaram um conjunto de violações
de direitos – fruto, principalmente, da falta de acesso a serviços públicos de qualidade, que
possuem responsáveis concretos na administração municipal, estadual e federal, bem como
orçamentos específicos – que produziram efeitos negativos que não podem ser removidos ou
modificados de modo rápido e a partir de orientações, informações e da inclusão em outros
serviços socioassistenciais, normalmente frágeis. Ainda que seja trabalho da AS a articulação
com as demais políticas sociais, os encaminhamentos só podem acontecer caso a cidade oferte
as demais políticas a contento, como, por exemplo, a de Saúde.
Destacamos, ainda, algumas especificidades: nem sempre o fator econômico é o
principal determinante para essas situações, sendo que os aspectos culturais adquirem papel
de relevância em sua produção, como na questão da violência contra a mulher. Para tais casos,
o atendimento não pode ser apenas individual – ainda que este também seja necessário –, mas
ele exige, sobretudo, ações coletivas, incluindo outras instituições, estabelecimentos e
movimentos sociais, a fim de produzir modificações no plano cultural. Outro caso bastante
emblemático é o de pessoas com deficiência. Fazer acolhimento e realizar articulações para
que estas pessoas sejam atendidas pelas demais políticas públicas é necessário, mas não
resolverá os reais problemas que estão ligados à falta de estrutura adequada das cidades e à
cultura da inclusão perversa, típica do MCP. Novamente, faz-se mister um trabalho que vá
muito além das paredes de um CREAS e de esporádicas campanhas públicas realizadas por
esse estabelecimento assistencial visando a favorecer a inserção social das pessoas.
Os serviços de PSE de alta complexidade, que também são de responsabilidade do
CREAS, estão voltados à garantia de proteção integral (moradia, alimentação, higienização e
trabalho protegido) para famílias e indivíduos que se encontram sem referência e/ou em
situação de ameaça, carecendo inclusive de serem retirados do núcleo familiar e/ou
comunitário (BRASIL, 2004a). Um exemplo típico visto no cotidiano é a situação na qual um
52

sujeito a ser atendido em um dos serviços é uma criança que foi vítima de violência sexual por
parte de seu único cuidador, sendo que não existe outro familiar com quem possua vínculos e
que possa se responsabilizar por ela. Estes serviços são: Serviço de Proteção em Situações de
Calamidades Públicas e de Emergências; Serviço de Acolhimento em Família Acolhedora;
Serviço de Acolhimento em República; e Serviço de Acolhimento Institucional nas
modalidades: Casa-Lar, Residência Inclusiva, Casa de Passagem e Abrigo Institucional (idem,
2009).
Na proteção de alta complexidade, uma certa relação de homologia se dá com o nível
terciário do SUS, pois, se traçássemos uma analogia, os serviços da proteção de alta
complexidade da AS seriam correspondentes ao serviço hospitalar e à tecnologia de
internação do SUS. Para que possa ser executada, além dos profissionais especializados, há a
necessidade, para alguns dos serviços, de um alto montante de recursos financeiros para um
pequeno volume de atendimentos. A implantação e a manutenção de alguns desses serviços,
como, por exemplo a Casa-Lar, Residência Inclusiva e Abrigo Institucional, demandam que
os municípios próximos realizem parcerias entre si, com vistas a uma regionalização dos
serviços. No imaginário social, existe a crença de que a PSE de alta complexidade é a mais
importante, por atender as situações mais graves. Contudo, em termos de AS, é preciso
ressaltar que os investimentos nesse nível de complexidade têm muito menos impactos que os
da PSB, que abarca um número maior de pessoas. Indubitavelmente, a disponibilidade de
atenção assistencial de alta complexidade é imprescindível, pois são serviços importantes para
garantir não apenas a sobrevivência, como o bem-estar dos sujeitos que, por alguma
contingência, vierem a dela precisar. Cabe lembrar que ela é necessária para um número
restrito de casos, devendo ser acessada por meio dos outros níveis de atenção e utilizada
apenas quando já esgotadas as possibilidades neles existentes.
A AS constitui-se em uma das ferramentas para ativar um novo contrato social na
direção de um conjunto de direitos de civilização. Ela não se reduz e nem pode se reduzir ao
papel de provedora quando o sujeito está numa situação de destituição plena, como em casos
de trabalho infantil, prostituição e situação de rua. A superação de situações complexas que
chegam cotidianamente aos estabelecimentos assistenciais (CRAS, CREAS, dentre outros)
demanda soluções complexas que, na maioria das vezes, não podem ser resolvida apenas no
âmbito da própria AS, necessitando uma articulação e um trabalho intersetorial. Nesse
sentido, Sposati (2007, p. 452) demarca que “[...] a superação dessas situações exige ação
intersetorial e integrada não só das políticas sociais, mas também entre estas e as políticas
econômicas e do sistema de justiça e defesa de direitos humanos”.
53

Para que as proteções sociais sejam efetivadas é imprescindível que as práticas sejam
operadas pelos trabalhadores. No encontro entre trabalhadores e sujeitos produz-se o
“trabalho vivo feito em ato” (MERHY; FRANCO, 2009, p. 282). A produção de AS realiza-
se sobretudo por meio do trabalho vivo em ato, ou seja, o trabalho no momento em que é
realizado determina a produção de assistência. À semelhança do trabalho em Saúde, o
trabalho na AS é centrado nessa modalidade de atuação. Mas, no processo de trabalho, o
trabalho vivo interage com um conjunto de normas, instrumentos e máquinas, configurando
um certo sentido de produzir assistência. Os instrumentos e máquinas utilizados são “trabalho
morto”, ou seja, trabalho objetivado, trabalho feito antes e que só chega por meio do seu
produto (ibidem). Todo trabalho é mediado por tecnologias e, dependendo da forma como
elas são utilizadas, é possível ter “processos mais presos à lógica dos instrumentos duros”
(ibidem, p. 282) ou processos mais criativos e centrados nas relações.
Do mesmo modo em que na saúde, o trabalho da AS é sempre realizado por um
trabalhador coletivo. Os trabalhadores auxiliares, técnicos e universitários são fundamentais.
O trabalho de um dá sentido ao trabalho do outro, na direção da verdadeira finalidade da AS:
a garantia dos direitos mínimos aos sujeitos. Na produção de assistência, o trabalhador pode
fazer uso de “tecnologias duras” (instrumentos), “tecnologias leve-duras” (o saber técnico
estruturado) e “tecnologias leves”, ou seja, as relações – entre trabalhadores e sujeitos – que
só possuem materialidade em ato (ibidem, 2009). Na melhor das hipóteses, há a
predominância dos processos relacionais, o que proporciona um “processo de trabalho com
maiores graus de liberdade, tecnologicamente centrado nas tecnologias leves e tecnologias
leve-duras” (ibidem, p. 283). E no que se refere à pactuação do processo de trabalho onde se
define o modelo tecnológico de assistência social, esta não se dá apenas em processos de
negociação, mas estrutura-se também a partir de tensões e conflitos vividos no cenário de
produção de AS, seja na própria assistência (na ponta) ou na gestão.

1.9 A Vigilância Socioassistencial e as práticas assistenciais

A Vigilância Socioassistencial (VS) compõe a área da gestão da informação do SUAS.


Ela é dedicada a apoiar as atividades de planejamento, supervisão e execução dos serviços
socioassistenciais, sendo portanto um mecanismo necessário não somente para a elaboração
de programas sociais, como para avaliação da atuação dos serviços sociais. Enquanto uma das
funções do SUAS, ela está prevista na PNAS (BRASIL, 2004a) e regulamentada pela
NOB/SUAS (BRASIL, 2012a). Segundo esta norma, a VS deve ser realizada por intermédio
54

da produção, sistematização, análise e ampla divulgação de informações territorializadas,


tanto sobre “situações de vulnerabilidade e risco que incidem sobre famílias e indivíduos e
[sobre] eventos de violação de direitos em determinados territórios”, como relacionadas ao
“tipo, volume e padrões de qualidade dos serviços ofertados pela rede socioassistencial”
(ibidem, p. 40). É de responsabilidade da gestão municipal de AS a criação de um sistema de
VS, que deve ser enquadrado na estrutura dos níveis municipal, estadual e federal. Enquanto
condição imprescindível para a PNAS formular estratégias de intervenção social, a VS é
estruturada a partir de dois eixos: a Vigilância de Riscos e Vulnerabilidades e a Vigilância de
Padrões e Serviços. A função da vigilância não é específica do campo da AS, ocorrendo
também e há mais tempo no campo da Saúde Pública. Devido à estrutura do SUAS ter sido
inspirado no SUS, pode ter ocorrido a importação do tema da vigilância, portanto é
importante compreender sua origem.
O conceito de vigilância surgiu na década de 1950, quando passou a considerar-se a
possibilidade de uma guerra bacteriológica, sob a forma de inteligência epidemiológica
(MENDES, 1999). No Brasil, a partir da mesma década, o conceito adquiriu o sentido de
acompanhamento sistemático de situações adversas à Saúde da comunidade, com a finalidade
de melhorar as medidas de controle de doenças.
Atualmente, a Vigilância em Saúde tem por objetivo observar e analisar
permanentemente a situação de saúde da população, articulando um conjunto de ações
voltadas para o controle de determinantes, riscos e danos à Saúde da população (BRASIL,
2010). Ela constitui um meio para identificar fatores de risco e populações vulneráveis e é
pré-requisito para a elaboração de programas de Saúde e instrumento para avaliação dos
impactos da atuação na área da Saúde. Observa-se, então, uma certa homologia entre
vigilância em Saúde e a VS. Mas importar um modelo formal-abstrato, construído em um
campo teórico cuja base organizacional é a epidemiologia, e transladá-lo para o campo das
ciências sociais pode ser bastante problemático, pois “ao limitar à análise teórica à
manipulação de dados empíricos, pode criar barreiras à análise das complexas relações
presentes na totalidade social” (MOTA; MARANHÃO; SITCOVSKY, 2009, p. 195).
A vigilância da Saúde diz respeito ao modo como se organiza a prática sanitária 20,
enquanto a VS se relaciona ao modo como se organiza a prática assistencial. A prática
assistencial é o modo como uma sociedade, a partir do conceito vigente de AS – e de proteção

20
A prática sanitária, de acordo com Mendes (1999, p. 241) é a “forma como uma sociedade, num dado
momento, a partir do conceito de saúde vigente e do paradigma hegemônico, estrutura as respostas sociais
organizadas ante os problemas de saúde”.
55

social – e do paradigma hegemônico vigente, estrutura as respostas sociais organizadas para


os supostos problemas sociais. O conceito de AS, tomado em sua negatividade, isto é, como
ausência de miséria e de inclusão social perversa, e o paradigma assistencial dominante
estruturam diversas respostas sociais organizadas sob a forma da prática de atenção
assistencial.
A prática assistencial em vigor na atualidade pretende ofertar à população, por meio
dos estabelecimentos assistenciais, serviços de AS reduzidos a serviços de convivência e de
fortalecimento de vínculos, além dos programas de transferência de renda. Nesse modelo, a
pobreza e a falta de acesso aos bens produzidos socialmente, assim como às demais políticas
públicas sociais, devem ser enfrentados com “benefícios sociais” e programas e projetos,
independentemente de os fatores determinantes (econômicos, políticos e sociais) estarem
orientados para a produção da pobreza e inclusão perversa. Trata-se de uma prática que se
instituiria como uma ação a jusante, uma vez instalada a pobreza/miséria e inclusão perversa,
negando a atuação eficaz a montante, com a deliberada intenção de interromper os fatores
sociais produtores da pobreza.
A lógica da prática assistencial hegemônica faz com que o SUAS responda
socialmente aos problemas econômicos e sociais gerados pelo MCP no âmbito restrito dos
semblantes da baixa, perda e/ou ausência de renda e/ou pertencimento social, mediante a
oferta de “benefícios sociais” e/ou atividades socializantes – de cunho cultural, pedagógico e
psicologizante. Mas, de acordo com nossa percepção, tal lógica não encontra respaldo
empírico, pois ofertar mais atividades assistenciais não garante, necessariamente, que a
população pauperizada possa superar a situação de pobreza, uma vez que isso demandaria
também uma expansão concreta e efetiva dos direitos sociais e, fundamentalmente, uma
mudança político-econômica na direção dos interesses da classe trabalhadora.
Isso não significa que o Estado deva deixar de executar uma política de AS, e sim que
sua ação deve estar centrada na Promoção Social, ofertando Saúde e Educação de qualidade,
garantindo saneamento básico e água tratada a todos, facilitando o acesso à habitação, à
qualificação e ao emprego, ampliando a oferta de experiências culturais e esportivas, enfim,
estruturando a gestão das cidades de forma a garantir qualidade de vida à população
(BENELLI, 2015b).
No que se refere especificamente à política pública social de AS, uma modalidade de
prática assistencial singular, que designamos Atenção Assistencial, pretenderia ofertar à
população serviços de AS de qualidade – para além dos serviços de convivência, de
fortalecimento de vínculos e dos programas de transferência de renda – por meio de uma
56

atuação avisada e precavida dos trabalhadores dos estabelecimentos assistenciais. Entendemos


que a pobreza e a falta de acesso tanto às políticas públicas quanto aos bens produzidos
socialmente devem ser enfrentadas considerando criticamente os seus reais determinantes e de
modo coletivo – com os trabalhadores tendo clareza de sua posição de classe social explorada.

1.10 A produção social de qualidade de vida e uma nova ordem governativa da cidade

A produção de maior qualidade de vida para a população depende da mudança no


modo de realizar a gestão da cidade. A maneira como as cidades e a oferta de serviços
públicos estão organizadas não atende às necessidades da maioria da população. “A cidade
em si, como relação social e como materialidade, torna-se criadora de pobreza, tanto pelo
modelo socioeconômico, de que é suporte, como por sua estrutura física, que faz dos
habitantes das periferias (e dos cortiços) pessoas ainda mais pobres” (SANTOS, 2005, p. 10).
É nas periferias que se encontra uma massa de pessoas, e também é nesses espaços que muitas
vezes há falta de saneamento básico, de água tratada, de escola de qualidade, de creches, de
UBSs, de estruturas e projetos de esportes e lazer e de transporte coletivo adequado.
Conforme assinalou Mendes (1999, p. 254) “O desenho institucional do governo da
cidade não favorece um governo com equidade, eficiência alocativa e democracia”. Um
problema básico é que a estrutura governamental está baseada na divisão técnica do trabalho,
sendo que cada secretaria (Educação, Saúde, AS, dentre outras) se move a partir de suas
próprias regras internas, estruturadas por seu corpo teórico e por um modo de agir
padronizado. Essa lógica institucional não propicia o trabalho social articulado em rede e nem
privilegia espaços de inclusão social, resultando na reprodução e na manutenção de situações
de iniquidade e injustiça social. Como os exíguos recursos financeiros são distribuídos por
áreas temáticas, não se pode concentrar os gastos em lugares que demandam uma intervenção
mais ampla e urgente para resolver problemas agudos. Outra questão é que há uma tendência
das políticas públicas realizadas na cidade, ao repartir os cidadãos em usuários da Saúde, da
Educação, da AS etc., que cria subcidadanias (SOUZA, J., 2003), não contribuindo para o
incremento da consciência de cidadania. Além disso, ao focalizar a análise das questões a
partir do que se pode produzir em cada setor, acaba por impedir-se que a complexidade dos
problemas possa ser vista por outros setores.
Mendes (1999) discute sobre a mudança da ordem governativa da cidade pensando a
partir do campo da Saúde. Utilizaremos suas proposições para fazer, a título de extrapolação
teórica, alguns apontamentos de como seria a gestão de uma cidade voltada para a produção
57

do bem-estar de seus habitantes. Destacamos que o prefeito, enquanto gestor social, é o


primeiro ator político responsável pela produção social de qualidade de vida. Sob sua
condução – que precisa ter como norte os interesses da maioria da população, sobretudo dos
pobres – a equipe de governo deve atuar organicamente sobre o conjunto de problemas
societários que existem na cidade, centrado sobre a ideia de intersetorialidade, buscando
articular as “[...] ações de governo sobre problemas concretos, de pessoas concretas,
identificados em territórios concretos e transformados em demanda política” (ibidem, p. 255).
As secretarias devem continuar existindo, mas a compreensão dos problemas deveria
acontecer de modo compartilhado e seu enfrentamento envolveria todos os setores
governamentais por meio de uma ação conjugada – criando um conjunto articulado de
respostas que buscariam incidir sobre todas as causas do problema. A isso poderíamos
denominar de trabalho social em rede (BENELLI; COSTA-ROSA, 2010). As especificidades
seriam mantidas, mas haveria um encontro em um ponto comum: a cidadania como direito
dos sujeitos e como dever da administração pública, concretizada por intermédio de um
processo comunicacional produzido pelo método do planejamento participativo (DEMO,
2001, 2002). E como os recursos advindos dos diversos setores se alimentariam mutuamente,
esse modo de agir afiançaria a eficiência da ação, e também contribuiria para a equidade,
focalizando os espaços e grupos que mais necessitam de investimentos governamentais. Isso
não significaria prescindir da AS, mas que ela adquiriria um outro status, focada
essencialmente em situações específicas, como, por exemplo, situações de emergência e
calamidade pública. Essa mudança na ordem governativa da cidade não é e nunca será um
processo acabado, mas deveria ser uma construção cotidiana e coletiva em busca de maior
qualidade de vida para todos.

1.11 Considerações finais

O SUAS enquanto organização de AS executada pelo Estado e a PNAS comportam


uma série de avanços, em especial no que diz respeito a superar o paradigma da caridade e
elevá-los a direito dos cidadãos. Mas há também uma série de problemas que vão desde as
suas formulações discursivas problemáticas até o modo como os serviços estão sendo
prestados na prática cotidiana dos municípios.
Neste ensaio, apresentamos alguns questionamentos, com vistas a contribuir para um
debate crítico, mas há ainda outras questões a serem formuladas e devidamente discutidas.
Assim como a construção e efetivação do SUAS está em processo, há também a necessidade
58

de constante avaliação analítica e de reflexão crítica, tendo como horizonte a promoção da


qualidade de vida para os diversos setores sociais, e, em especial, para as camadas sociais
populares, que são as mais espoliadas e pauperizadas. A abertura para o processo de transição
paradigmática do PCFA para o PSD está dada, mas ainda precisa ser construída cotidiana e
coletivamente.
Concordamos com Benelli (2012a, p. 641) no sentido de que no discurso oficial da AS
é notável a “[...] ausência de uma perspectiva política crítica, dialética e transformadora”.
Temos clareza de que a PNAS e o SUAS, a partir de uma análise do discurso oficial, não
visam a resolver o problema da pobreza e da inclusão perversa, e sim apenas amenizá-lo,
tornando as expressões da questão social mais palatáveis. Por outro lado, sabemos que,
provavelmente, um grande conjunto de sujeitos e famílias talvez não tivessem acesso à renda
e a algumas das outras políticas sociais, não fosse pela AS. Dada sua importância, ressaltamos
a necessidade de sua compreensão a partir de um olhar crítico e dialético e a necessidade de se
procurar construir – junto com e tendo os sujeitos assistidos como principais protagonistas –
uma outra sociedade e uma democracia alinhada aos interesses dos membros da classe pobre.
Conforme o pensamento de Gramsci sobre o PEH (GRUPPI, 1978), no polo
dominante há a tentativa de manter sua hegemonia de classe, enquanto no polo subordinado
pode haver um conjunto de reivindicações e de práticas alternativas que aspiram a tornar-se
hegemônicas. A Análise Institucional corrobora este pensamento demonstrando que, além do
instituído, pode haver também um movimento instituinte, produtor de mudanças. Para Luz
(1979) as instituições são um lugar privilegiado de lutas políticas, visto que a hegemonia de
classes está centrada nas instituições. A PNAS encontra-se instituída, mas existem brechas
para que se possa fomentar processos instituintes, de modo a produzir movimentos e
mudanças que vão mais ao encontro das necessidades e dos desejos dos setores mais
empobrecidos da população. A produção desses movimentos instituintes dependerá tanto dos
trabalhadores quanto dos sujeitos ditos usuários da política. Os trabalhadores poderão
encontrar na Educação Popular (FREIRE, 1987; BRANDÃO, 2006) e na psicanálise do
campo de Freud (1996) e Lacan (1992) importantes e necessárias ferramentas para essa
construção coletiva.
Para contribuir com este processo e sem pretensão de esgotar o assunto, deixamos
algumas questões para reflexão. Até que ponto AS está sendo um mecanismo de inclusão não
perversa? De fato ela está promovendo uma verdadeira inclusão ou, ao criar o grupo dos
pobres assistidos, está produzindo uma exclusão pela inclusão? E a serviço de que e de quem
59

estamos lutando pela e atuando na área da AS enquanto política pública brasileira? Questão
elementar, cuja resposta dará o colorido da política e da prática que pretendemos construir.

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66

2. A INSTITUIÇÃO ASSISTÊNCIA SOCIAL (AS) COMO DISPOSITIVO SOCIAL


DE PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE

2.1 Introdução

Tomamos como ponto de partida para pensar a AS, enquanto instituição, a afirmação de
Deleuze de que o homem não tem instintos, ele faz instituições (ESCOBAR, 1991). Essa ideia
fornece subsídios para a compreensão de que as instituições são criações essencialmente
humanas. O termo instituição inclui a ideia de uma atividade constitutiva de modelos, de
formas múltiplas de viver no coletivo. De acordo com Baremblitt (2012), a sociedade seria
composta por uma rede de instituições as quais têm por função produzir a regulação das
relações sociais. Sintetizando a concepção sobre o que seriam as instituições, no âmbito da
Análise Institucional (AI), Baremblitt (2012) as apresenta como composições lógicas,
implantadas por meio de leis e normas. Essas leis e normas tanto podem estar materializadas
como podem existir de forma abstrata, e proscrevem e prescrevem o que é indicado, o que não
é permitido e o que é indiferente. Portanto, podemos considerar como instituições a Educação,
a Saúde, a Família, a Religião e o Trabalho, dentre outras, inclusive a AS.
Compreendemos que as instituições são produtoras de processos de produção de
subjetividade21; o modo de produção institucional é que irá determinar qual o tipo de
subjetividade será produzida – se mais alienada ou mais singularizada. Subjetividade alienada
e serializada diz respeito ao sujeito que se reconhece apenas em imagens identitárias,
ofertadas pelo mercado, “as quais ele consome e reproduz, posicionando-se como uma vítima
impotente e sem implicação nos problemas dos quais se queixa” (BENELLI, 2006, p. 30).
Denominamos produção de subjetividade singularizada o processo de produção no qual os
sujeitos são participantes diretos e protagonistas, isto é, agentes produtivos por excelência. A
produção de subjetividade singularizada compreende um processo complexo, no qual o
sujeito se implica subjetiva e socialmente nos conflitos que atravessa e pelos quais é
atravessado. O resultado dessa implicação subjetiva é deixar de ser apenas objeto de um
assujeitamento que produz sofrimento em excesso para tornar-se um sujeito que capaz de
produzir deslocamentos nesses impasses e no posicionamento que ocupa na relação com eles

21
Concordamos com Benelli (2003, p. 101) que a produção de subjetividade refere-se “fundamentalmente ao
plano micropolítico, microfísico das relações instituintes e instituídas da formação no contexto institucional”.
Assim, as relações entre as equipes de trabalhadores e os sujeitos não são estáticas entre polos constituídos, isto
é, elas estão em permanente constituição e constante transformação das posições e lugares no interior das
relações.
67

(Costa-Rosa, 2013). Para tal, de acordo com Costa-Rosa (2013, p. 74) o sujeito “deve ser
concebido muito além do indivíduo; homem que constrói seu cotidiano em condições dadas e
também ‘sujeito do sentido’, sujeito do inconsciente”.
Considera-se que existe uma relação de homologia entre os modos dos processos de
trabalho e os modos dos processos de produção de subjetividades, uma vez que, ao produzir, o
homem produz a si mesmo (MARX, 2004). Neste texto, almejamos fazer uma análise do
processo de produção de assistência social aos sujeitos, seus modos de execução e as
consequências de cada modalidade dessa assistência. A hipótese da qual partimos é que há
uma indissociabilidade da produção de assistência social e da produção de subjetividade.
Nossa análise tem como base as reflexões teóricas de Costa-Rosa (2013) acerca da instituição
de Saúde Mental, sendo que suas reflexões foram transpostas e ressignificadas para o campo
da AS, e acrescidas da discussão paradigmática proposta por Souza (2015). Ainda nos
servimos de outros campos transdisciplinares, como o Materialismo Histórico de Marx e a
Psicanálise do campo de Freud e Lacan, para a realização das nossas análises.
Entendemos que o modo de produção institucional guarda relação direta com a
produção comum descrita nos textos de Marx sobre o Modo Capitalista de Produção (MCP) e
os que o antecederam, os Modos Cooperados. Segundo Costa-Rosa (2013), é possível extrair
conclusões e questões esclarecedoras no que diz respeito à configuração dos modos de
produção, “[...] aos efeitos produtivos em termos do excedente de produção (mais-valia), aos
efeitos da divisão do trabalho e quanto às relações entre produção e apropriação.” (p. 55).
Pensamos que a análise sobre como uma instituição se configura atualmente pode ser
mais bem vislumbrada em termos dos efeitos de luta entre dois paradigmas22 que coexistem
em determinado momento da história (KUHN, 2010); ou, em termos dos efeitos de um
processo de transição paradigmática23 (SANTOS, 2011), por isso, a título de exercício
epistemológico, apresentaremos dois paradigmas24 definidos por Souza (2015), a saber, o
Paradigma Caridoso Filantrópico Assistencialista (PCFA) e o Paradigma do Sujeito de

22
Para Thomas Kuhn (1991), paradigmas são “[...] realizações científicas universalmente reconhecidas que,
durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma
ciência.” Ele acredita que o desenvolvimento da ciência não se dá pelo acúmulo de experiências, mas por
revoluções de paradigmas, onde uma teoria explicativa suplanta a anterior, por se mostrar melhor que ela. Sua
análise das revoluções da ciência não se dá pelo método dialético.
23
Boaventura Souza Santos (2002) concebe a existência de dois paradigmas da ciência – um dominante e outro
alternativo – que coexistem em determinado momento histórico. O autor entende que a mudança para um novo
paradigma se dá por meio de uma transição paradigmática; o paradigma dominante entra em crise, fornecendo as
bases para o paradigma emergente, o qual vai surgindo, sendo que, no período de transição, os paradigmas
convivem lado a lado e essa transição se dá de forma processual.
24
Benelli e Costa-Rosa (2012, p. 613) definem paradigma como “[...] um constructo teórico que nos permite
entender dinamicamente a realidade histórica, organizando seu aparente caos, e alcançar uma compreensão de
sua forma, de seu sentido e de seus processos de produção.”
68

Direitos (PSD). De imediato, postulamos que, na AS, no atual cenário brasileiro, há a


predominância do PCFA, organizando sob sua lógica os saberes, as práticas e os discursos
desse campo institucional. Seu oposto dialético seria o PSD, o qual se configura mais como
um horizonte de possibilidades do que um paradigma efetivamente instituído.

2.2 A instituição como palco de lutas sociais

As instituições, incluindo a de AS, são agenciamentos das pulsações da demanda social,


mediadas pela ideologia, em uma conjuntura histórico-social-política específica. Tomando
como referência a AI, compreendemos a demanda como falta em sentido amplo (LOURAU,
2014), sendo que a demanda social se refere ao conjunto de pulsações criadas pelas oposições
de forças, no bojo da sociedade, em determinado momento histórico. Por outro lado, a
encomenda se refere a uma contraface da demanda, isto é, “[...] o semblante sob o qual essa
falta, esse conflito se nos apresentará.” (COSTA-ROSA, 1978, p. 69).
O Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH), conceito de Gramsci, contribui para
possibilitar a análise e entendimento da conjuntura em que uma dada instituição surge. Para
Gramsci (1978) a hegemonia não é um sistema formal fechado, além de não ser
absolutamente homogêneo e articulado. Ela é um processo e atinge não somente a
organização política da sociedade e a estrutura macroeconômica como também atua sobre as
orientações ideológicas e culturais. No caso específico da instituição AS, a compreensão do
PEH possibilita fazer uma leitura e compreender o jogo de forças existentes na instituição,
contrapondo os aspectos do PCFA aos do PSD, no que concerne a práticas, saberes, aspectos
jurídicos, ideológicos, culturais e éticos. Costa-Rosa (1978, p. 30) caracteriza o PEH enquanto
um “[...] processo contraditório através do qual uma classe social estabelece sobre todo o
conjunto da sociedade o seu domínio ideológico”, apoiando-se no conjunto das instituições –
que também podem ser englobadas no conceito de Aparelhos Ideológicos do Estado25
(ALTHUSSER, 1980). O PEH abarca um conjugado de práticas relacionadas à estratégia e a
tática, com a finalidade de manter a Formação Social26 em equilíbrio. Devido ao fato de as

25
Os Aparelhos Ideológicos de Estado (AIE) funcionam “[...] de um modo massivamente prevalente pela
ideologia, embora funcionando secundariamente pela repressão, mesmo que no limite, mas apenas no limite, esta
seja bastante atenuada, dissimulada ou até simbólica.” (ALTHUSSER, 1980, p. 47).
26
Formação Social ou formação econômico-social é um termo que “[...] designa uma sociedade historicamente
determinada, um todo social em um momento de sua existência.” (FIORAVANTE, 1978, p. 32). A Formação
Social constitui por si mesma uma unidade complexa; é uma combinação particular, específica, de vários modos
de produção, sendo que um certo modo de produção será dominante e determinará o caráter dos outros. Uma
Formação Social historicamente determinada é resultante de uma articulação particular (matriz) de seus diversos
níveis ou instâncias, a saber, ideológica, jurídico-política e econômica.
69

realidades serem sempre contraditórias e segmentares, quanto a visões de mundo e interesses


que nesse processo se atualizam, essa segmentaridade tende à polarização. É necessário
destacar que, nesse processo27, existem dois polos – polo dominante e polo subordinado – e
um vasto conjunto de práticas e saberes, que oscilam entre diferentes, alternativos e
contraditórios.
A partir do entendimento da instituição como Formação Social, Luz (1979) a define
como “palco de lutas sociais”. Do lado do polo dominante, existe uma diversidade de práticas
de efeitos repressivos e ideológicos, além de concessões e de táticas de recuperação dessas.
Do lado do polo subordinado, há um conjunto de práticas as quais estão em concordância com
o polo dominante – reproduzidas em decorrência da dominância ideológica e material deste
segundo polo –, contudo, há também uma diversidade de reivindicações e um conjunto de
práticas alternativas, as quais algumas vezes podem ambicionar a elaboração de uma
hegemonia alternativa. As instituições são fundamentais na perspectiva da hegemonia
enquanto processo, visto que a hegemonia de classes está centrada nas instituições sociais
(LUZ, 1979).
Nesse palco de lutas sociais circula um amplo conjunto de atores, desde os
trabalhadores até os sujeitos que se servem da instituição. Albuquerque (1978, p. 74) destaca
que a prática institucional é “a resultante das práticas conflitantes dos diversos atores”, sendo
que a prática de cada um deles é, frequentemente, divergente, e em diversas vezes
complementar e contraditória com respeito à de outros. E a ação institucional é o resultado de
relações sociais entre agentes e mandantes, ou melhor, entre trabalhadores e sujeitos.
As instituições podem ser situadas enquanto peças fundamentais do PEH, visto que, no
âmbito de suas práticas, podem tanto garantir a reprodução das relações sociais dominantes –
trabalhando a favor do instituído – e produzindo subjetividades capitalísticas, serializadas e
alienadas, ou ser um dispositivo de produção de novas relações sociais – abrindo espaço ao
instituinte – produzindo subjetividades mais singularizadas, criativas e desejantes.
No contemporâneo, a instituição AS, longe de representar apenas os interesses do polo
subordinado, aparece, sobretudo, como uma concessão tática do polo dominante. Ainda que a
AS oferte um mínimo de atenção e de programas de transferência de renda para os setores
mais pauperizados da população, uma leitura dialética permite considerar que ela ainda atua
no sentido de conservar as condições essenciais para que persista a dominação de classes.

27
Processo, porque não se refere a uma imposição feita de uma vez por todas, “[...] é uma estratégia que inclui
uma tática na medida em que a base sobre a qual se assenta exige constantes rearranjos, visando conjugar um
grupo de aspirações e interesses contraditórios.” (COSTA-ROSA, 1987, p.31).
70

No momento histórico atual, é possível observar os efeitos de uma emergente luta pela
hegemonia ideológica, técnica, cultural, teórica e ética na instituição AS. Essa observação
torna-se muito nítida, quando situamos as práticas institucionais nos dois paradigmas, o PCFA
e o PSD. Dependendo de qual paradigma estiver prevalecendo e orientando a prática de certo
estabelecimento institucional, pode produzir subjetividades mais alienadas ou então produzir
subjetividades mais singulares. O processo de luta pela hegemonia tem produzido tentativas
de organizar a AS nos Centros de Referência de AS (CRAS), nos Centros de Referência
Especializados de AS (CREAS), nos Centros de Referência Especializados da População de
Rua (Centro Pop), estabelecimentos de acolhimento institucional e entidades assistenciais que
oferecem proteção social, sendo que tais estabelecimentos estão presentes no território onde
as pessoas que demandam seus serviços moram e vivem.
A análise da conjuntura na qual surge a instituição de AS – que teria como objetivo
lidar com os processos e problemas associados ao crescente empobrecimento de grande parte
da população – exige que tomemos “o problema social” em geral como fruto do avanço do
MCP. Segundo Costa-Rosa (2013), podemos assinalar que o mesmo processo que produz a
instituição enquanto dispositivo social irá se produzir com os demais efeitos da demanda
social. Assim, “[...] a isso não escapam os efeitos para cuja lida a instituição se considera
feita.” (p. 57). A instituição enquanto resposta a certa demanda social é dotada de uma certa
função positiva que consistiria em ofertar atenção socioassistencial a quem dela necessitar,
dispensando também os programas de transferência de renda; função que sofre
atravessamentos do imaginário social e do simbólico. Esse imaginário social, por sua vez,
também é atravessado pela instituição, visto que as modalidades de oferta de atenção
socioassistencial possuem influência direta na maneira como se expressa tal demanda.
Dizendo de outra forma, a encomenda – tradução parcial das pulsações da Demanda Social –
está diretamente relacionada com os modos de representação do que seja o que “falta” e
também depende da representação das “ofertas” da instituição e de seus estabelecimentos. Por
exemplo, se um CRAS ou um CREAS oferta com frequência apenas benefícios sociais e saber
de mestria (pedagógico/educativo) – ofertas típicas do PCFA –, pode ser bastante comum que
boa parte das pessoas que cheguem a esses estabelecimentos assistenciais solicite esses
recursos. Já por outro lado, se as modalidades de ofertas transferenciais (possibilidades de
vínculos) forem de cunho mais simbólico, abrindo possibilidades para uma escuta que
promova a implicação subjetiva e sociocultural – típicas do PSD –, ainda que não exclua o
acesso aos direitos e aos bens socialmente produzidos, os pedidos de ajuda têm mais chances
de se configurar de outra maneira que não apenas pelo viés pedagógico e econômico e que
71

tende a escamotear os nítidos efeitos do MCP, processos que incluem tanto a precarização do
trabalhador quanto o empobrecimento da população.

2.3 Consistência

Costa-Rosa (2013) destaca que uma instituição compõe um conjunto de saberes e


práticas articuladas por um discurso lacunar. Isso exige que, quando se analisa uma dada
instituição, se considere a articulação entre saberes e prática, que podem ser de sintonia, de
contradição ou de desconhecimento mútuo. Trabalho e práticas, embora interligados, não
possuem o mesmo sentido. Segundo Marx28 (1974), de um ponto de vista geral, o trabalho é
caracterizado como a interação do homem com a natureza cuja finalidade é transformar a
natureza em produtos necessários à sobrevivência humana, ou seja, “[...] o trabalho é
condição natural da existência humana, uma condição do metabolismo entre homem e
natureza, independentemente de qualquer forma social” (idem, p. 148). Já prática se refere a
uma concretização do processo de trabalho, isto é, ao conjunto de ações – balizadas por teoria,
técnica(s) e ética – que compõem o processo de trabalho. Em se tratando da AS, as práticas
englobam as ações que colocam em funcionamento a instituição.
Lourau (2014), tomando como referência os três momentos do conceito de Hegel –
universalidade, particularidade e singularidade – propõe uma leitura das instituições a partir
dessa perspectiva. No momento da universalidade, tem-se o discurso ideológico (oficial), por
meio do qual se revela a positividade do conceito. Nesse ponto, conforme assinala Lourau
(2014, p. 16), “[...] é que o conceito é plenamente verdadeiro, a saber, verdadeiro
abstratamente, geralmente.” É importante ressaltar que todo instituído tem um propósito, uma
função institucional, e atua no sentido da reprodução e conservação de um sistema social.
Nesse sentido, Baremblitt (2012) afirma que essa função está a serviço das formas históricas
de exploração, dominação e mistificação. Embora essa função positiva apareça como objetivo
natural da instituição, por conta de um processo de mistificação, raramente se apresenta como
realmente é. No caso da AS, o discurso oficial enuncia que visaria a garantir o acesso a
direitos sociais e proteger pessoas em situação de vulnerabilidade e risco, além de buscar
promover sua autonomia. Nesse momento da universalidade, a instituição emerge como forma

28
Para Marx o trabalho é a categoria fundante do ser social, condição da produção da vida social, por isso
categoria ontológica, ou seja, central na vida dos homens. O trabalho como categoria central existe independente
de qualquer formação social.
72

abstrata instituída e verdadeira, como se houvesse uma forma única de realizar os modos de
assistir, organizada por intermédio do SUAS.
Mas a instituição não é composta apenas de enunciados discursivos. Segundo apresenta
Baremblitt (2012), a instituição, para cumprir concretamente sua função oficial, precisa se
materializar sob as formas sociais de organizações e estabelecimentos. Os CRAS, os Centro
Pop, os CREAS, as casas de acolhimentos, as organizações sociais governamentais, as
organizações não governamentais e as entidades assistenciais compõem os estabelecimentos
da Assistência Social e costuma ser neles que as principais ações institucionais são realizadas,
sendo operadas por meio dos agentes institucionais – trabalhadores do campo, e, na melhor
das hipóteses, também pelos sujeitos29.
É na esfera das práticas, no momento da particularidade, que a instituição adquire
status de dispositivo. Segundo Foucault (1996, p. 244-245) dispositivo refere-se a um

[...] conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições,


organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas
administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais,
filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo.
O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos... [e
entre estes] existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição,
modificações de funções, que também podem ser muito diferentes, [cuja
finalidade] é responder a uma urgência. O dispositivo tem, portanto, uma
função estratégica dominante.

Dispositivo diz respeito ao modo como variados componentes se conectam e se


relacionam para alcançar determinado fim. Deleuze (2011), ao aprender a noção foucaltiana
de dispositivo, demarca que ele é formado por múltiplas linhas – de visibilidade, de
enunciação, de força, de fissura, de fratura, de brechas e de subjetivação – as quais se
entrecruzam e misturam, constituindo uma certa racionalidade em uma organização.
Dispositivos são “máquinas de fazer ver e de fazer falar”. Agambem (2009), ao retomar o
conceito de Foucault, resume o dispositivo como a rede estabelecida entre diversos elementos,
é algo de geral por incluir a episteme e se inscreve em uma relação de poder. O autor ainda
demarca que os dispositivos possuem sua raiz no processo de humanização do homem.
É, portanto, na esfera das práticas institucionais que a AS se mostra mais claramente
como um dispositivo, como um aparelho capaz de determinada função (ofertar atenção
29
Optamos por utilizar o termo sujeito por considerar que ele nos parece mais adequado que o de usuário, uma
vez que se compreende o sujeito como um dos possíveis agentes/protagonistas da instituição. Além disso,
pensamos também que o sujeito não pode ser reduzido ao indivíduo, nem ao homem enquanto ator social,
tampouco ao humano como apenas um ser racional e pensante. Tendo como referência a psicanálise do campo
de Freud e Lacan, incorporamos a concepção de sujeito do [desejo] inconsciente (FINK, 1998), tendo clareza de
que considerar a dimensão do inconsciente se trata de um horizonte para a atenção socioassistencial.
73

socioassistencial ao público-alvo da política) e produzir “valores de uso”. Marx (1996)


diferenciou valores de uso de valores de troca ao produzir a análise da mercadoria em seu
livro O Capital. A mercadoria é um objeto externo que, por suas propriedades, satisfaz as
necessidades humanas. O valor de uso de uma mercadoria está ligado a utilidade que ela
possui, relaciona-se às propriedades físicas do objeto, ao quanto esse objeto pode satisfazer
uma necessidade – seja ela mais relacionada à fatores os ou à fantasia. Esse valor “realiza-se
somente no uso ou no consumo” (idem, p. 166). Enquanto o valor de troca aparece como a
relação quantitativa, “a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra
valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço”
(idem).
Esse segundo momento, a particularidade, para Lourau (2014, p. 16), evidencia a
“negação do momento precedente”, visto que é no âmbito das práticas que se revelam as
lacunas e as polissemias do discurso da instituição. No âmbito das práticas, pode-se observar
as lacunas do discurso da AS, expressando a negatividade: direitos que não são concretamente
assegurados e que só existem na legislação e práticas de fornecimentos de suplementos
pedagógicos/educativos e pecuniários que desconsideram a pluralidade de modos de vida e
suas demandas singulares. Ademais, é no particular que nos deparamos com a base social do
conceito, transfigurada em forma social concreta, criando condições materiais tanto para
reprodução do instituído quanto para a emergência do instituinte. Costa-Rosa (2013, p. 59)
indica que práticas e saberes podem “[...] superar dialeticamente a si próprios e ao discurso,
descartando-o ou elevando-o a outras características discursivas.” No momento histórico
atual, no campo da AS, constatamos os efeitos de uma nascente luta pela hegemonia das
visões ideológicas, teóricas, técnicas, culturais e éticas. Esse processo de luta pela hegemonia,
no âmbito das práticas, pode ser visualizado na passagem dos discursos: caridoso, fundado na
religião, e filantrópico, fundamentado na ajuda samaritana, ao da AS enquanto política
pública.
O terceiro momento do conceito é o da singularidade, o qual é resultante da articulação
do universal com o particular, do discurso institucional com a práxis dos agentes
(trabalhadores e sujeitos). Marx (2004, 1974) apresenta a práxis enquanto atividade humana
livre por meio da qual o homem cria e transforma o seu mundo e a si mesmo. Enquanto práxis
o trabalho não possui a dimensão de alienação, pois é autoprodutor do ser humano,
produzindo sentidos e subjetividades, transformações no próprio trabalho, no próprio homem
e na sociedade. É no cotidiano de cada estabelecimento de AS que se produzem tanto a
atividade reprodutora do instituído quanto a atividade criativa (práxis) que promove o
74

movimento instituinte. Cada estabelecimento institucional, em sua singularidade, afirma e


nega ao mesmo tempo a universalidade (do discurso institucional) e sustenta a possibilidade
de mudanças instituintes. Nesse terceiro momento, é possível visualizar a polissemia do
significante instituição, a partir do recorte de três sentidos fundamentais: instituição como
composição lógica, substantivo, efeito da atividade instituinte (BAREMBLITT, 2012);
instituição enquanto processo constante de criação, verbo, atividade de instituir, de
característica dinâmica; e instituição como Formação Social encarnada em um dispositivo de
produção social. Costa-Rosa (2013) entende que, na dimensão da instituição como verbo, é
possível tanto reproduzi-la como lógica cristalizada quanto recriá-la, produzindo um
movimento outro e transformações nessa lógica. A instituição, enquanto Formação Social
encarnada em dispositivo de produção social, possui um sentido especial que é sublinhado por
Costa-Rosa (2013), pois aí aparece a instituição enquanto amálgama de substantivo e verbo.

2.4 Acerca do funcionamento institucional

A partir da definição de instituição enquanto um conjunto de saberes e práticas


articulado por um discurso ideológico, tendo em consideração os três momentos do conceito,
Costa-Rosa (2013, p. 60) aponta duas consequências dessa definição: “[...] primeira, a
instituição consiste numa Formação Social que é articulação de contrários; segunda, é
possível considerar nela a existência de uma ordem latente, para além da ordem manifesta”.
Considerar a instituição enquanto uma Formação Social permite compreender que em
seu bojo existe um conjunto de interesses, podendo esses variar desde os diferentes até os
radicalmente opostos. Ainda que aparentemente tudo seja consenso na instituição, pode haver
não apenas variadas visões de mundo, como também diversos efeitos das ações institucionais
sobre os sujeitos. Essa diversidade pode tender à polarização, tendo como desdobramento a
luta pela hegemonia – de determinada ideologia, teoria, técnica, cultura e ética.
Levar em conta a existência de uma ordem latente inclui a necessidade de se realizar
um exercício de deciframento, a fim de encontrar o sentido do discurso e das práticas
institucionais. Essa operação consiste em duas etapas. A primeira exige realizar a análise do
discurso institucional, visto que ele prevalece como autoapresentação da instituição, ou seja,
enuncia positivamente como ela é ou pretende ser. No caso da Assistência Social, pode-se
fazer uma análise dos documentos oficiais que a embasam, tais como a Política Nacional de
AS (BRASIL, 2004, 2005), a Constituição Federal (BRASIL, 1988) e a Lei Orgânica de
Assistência Social (LOAS) (BRASIL, 2013). A segunda etapa consiste em confrontar as
75

práticas da instituição com seu discurso, revelando a negatividade e também uma face de
produção de saber novo. Por exemplo, é possível verificar quais seriam as relações entre as
práticas de trabalhadores dos CRAS, CREAS e das entidades assistenciais com o discurso
institucional oficial. Ao realizar essa análise, podemos notar, majoritariamente, a existência de
práticas disciplinares e tuteladoras, no sentido que Foucault (2015) atribui a esses termos,
além de tentativas de gestão dos riscos sociais (CASTEL, 1984), ao invés de ações de
proteção social contra os efeitos do MCP, incluindo o acesso a direitos sociais e a bens
socialmente produzidos, além da construção de novas formas de habitar a realidade e fazer
laço social.
Costa-Rosa (2013), tendo em vista a definição de instituição como um conjunto de
saberes e práticas articulados por um discurso, levanta uma hipótese quanto às exigências de
sua compreensão por parte dos trabalhadores que a compõem. Para o autor, “[...] a análise das
contradições que atravessam a instituição e mais amplamente o manejo de um referencial de
análise de discurso são ferramentas imprescindíveis para quem deseja inserir-se numa
instituição de um modo não apenas funcionalista.” (p. 61). Isso não significa que o
trabalhador necessite se tornar um especialista em AI, mas consideramos que essa capacidade
de leitura crítica pode contribuir no sentido de a instituição poder tomar certa consciência de
si e para si.

2.5 As contradições na instituição

A instituição articula um conjunto de interesses, havendo então nela um jogo de forças


em ação. Este pode ser elucidado por meio do apontamento das principais contradições que a
atravessam, da distinção entre contradição principal e as secundárias, e da compreensão das
oposições oriundas das diferenças essenciais entre saberes, práticas e discursos. Costa-Rosa
(2013) ainda lembra que, pela análise da proporção de forças estimada em cada um dos polos
de interesse – polo hegemônico e polo subordinado –, pode-se constatar o estado de
contradições na instituição. Considerando a instituição AS, no momento político e social
atual, podemos levantar a hipótese de que a contradição essencial se expressa em termos de
dois paradigmas: o PCFA, que é o paradigma hegemônico, e o PSD ou paradigma emergente,
que é alternativo e contraditório com relação ao primeiro.
O PCFA combina e representa os interesses básicos de determinado setor social, nesse
caso, o polo hegemônico, conjugando seus ideais socioculturais, suas concepções ideológicas
e teórico-técnicas, sua ética, seus interesses econômicos e sua forma dominante de produção
76

de atenção socioassistencial e de subjetividade. Esse ainda é o paradigma dominante,


articulando na instituição como dispositivo, os interesses socialmente dominantes. Sua
dominância refere-se ao fato de que, na instituição, ele ainda se apresenta como majoritário e
continua dando o tom característico da instituição de AS. Quanto ao nome “Caridoso
Filantrópico Assistencialista”, inclui diversos aspectos principais dos cinco primeiros
paradigmas da AS descritos por Benelli e Costa-Rosa (2013), a saber, a caridade, a promoção
humana, a filantropia, o clientelismo assistencialista e a AS como política de Estado, práticas
ainda encontradas nos diversos estabelecimentos da área.
Ainda são bastante incipientes as tentativas de se contrapor e superar o paradigma
hegemônico. Essas, para Souza (2015), têm como precursor o fato de a AS ter alcançado um
estatuto discursivo que a afirma enquanto uma política pública e não mais como “favor”, com
a criação de uma lei (LOAS) (BRASIL, 2013), decretos e portarias, a implantação de alguns
estabelecimentos institucionais públicos (CRAS, CREAS e Centro Pop) e o mais importante:
um conjunto de práticas, saberes e estratégias micropolíticas realizados por trabalhadores que
estariam em contraposição ao paradigma dominante (BENELLI, 2014; BENELLI; COSTA-
ROSA, 2012; SOUZA, 2015). As tentativas de ocupação de algumas brechas instituintes
permitem vislumbrar a possibilidade de pensarmos em um paradigma contra-hegemônico e
alinhado com os interesses do polo subordinado.
O paradigma que se contrapõe ao PCFA é denominado por Souza (2015) de Paradigma
do Sujeito de Direitos (PSD). Esse último configura-se como um paradigma alternativo e
contraditório ao PCFA, enunciando uma outra forma possível de hegemonia no campo da AS.
O PSD conjuga os interesses básicos de outro grupo social – do setor subordinado – presente
na instituição, aspecto que define radicalmente a sua alternatividade. Tal como indica Costa-
Rosa (2013, p. 63), esse conjunto de interesses “[...] tem estado historicamente identificado
com os interesses dos chamados usuários”, que, de fato, são os verdadeiros sujeitos das
instituições, muito embora eles sejam nomeados como seus “usuários”.
Diferentemente do PCFA, o PSD busca valorizar as pulsações instituintes veiculadas
pelos sujeitos (usuários e trabalhadores), bem como seus interesses. A lógica paradigmática30
do PSD, assim como os seus ideais e objetivos, são contrários aos do PCFA. Cabe destacar
que, atualmente, o bloco de interesses conjugado no PCFA ainda é dominante em relação ao
bloco de interesses que se conjuga no PSD. No PCFA, os interesses dos sujeitos da AS
possuem um papel secundário, uma vez que, nessa forma de organizar a instituição e em seus

30
A lógica paradigmática é expressa por concepções teóricas, técnicas, políticas, ideológicas e éticas (COSTA-
ROSA, 2013).
77

processos de produção, há a prevalência dos objetivos de realização de mais-valia e da


reprodução das relações sociais e intersubjetivas típicas desse modo de produção: relações de
dominação e subordinação, de exploração e de inclusão perversa e promoção de subjetividade
serializada.
Cada um dos paradigmas – PCFA e PSD –, por possuir concepções teóricas, técnicas,
políticas, ideológicas e éticas opostas, acaba determinando, em consequência dessa oposição,
modos antagônicos de produção institucional e também de produção de subjetividade. No
caso do PCFA, tem-se a produção de subjetividade “capitalística” (GUATTARI, 1990, p. 33)
e serializada; já no caso do PSD, tem-se como horizonte ético-político a produção de
“subjetividade singularizada” (COSTA-ROSA, 2013; BENELLI, 2014).

2.6 As funções produtivas da instituição Assistência Social

As instituições possuem um discurso ideológico – no caso da AS, trata-se de um


discurso oficial – de aspiração totalizante, que se apresenta como verdadeiro, desejável, sem
falhas e/ou lacunas. Consequentemente, acaba por mencionar, sobretudo, as funções positivas
do dispositivo institucional como Formação Social particular. Entretanto, como todo discurso
é lacunar, uma análise desse discurso, levando em consideração esse aspecto e a confrontação
do discurso com os saberes e práticas operantes nos estabelecimentos assistenciais, permite
que se possam acessar outras funções institucionais para além do discurso ideológico.
A função positiva, expressa no discurso oficial da AS como instituição, pode ser
descrita como:

a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;


b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; c) a promoção da
integração ao mercado de trabalho; d) a habilitação e reabilitação das
pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;
e e) a garantia de um salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com
deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria
manutenção ou de tê-la provida por sua família. (BRASIL, 2013, p. 9).

Mas uma interpretação desse discurso, quando se realiza o confronto desse com os
saberes e as práticas institucionais, torna possível visualizar uma função negativa da
instituição, a qual pode ser subdividida em três subfunções: produção de “mais-valia”,
reprodução de relações sociais e intersubjetivas dominantes e ainda a criação de outras formas
de relações sociais (alternativas às formas de relações institucionalizadas); esta última seria a
78

parte mais importante das funções negativas, pois possibilita pensar em formas alternativas
aos processos de dominação.
A primeira subfunção, produção de mais-valia, pode se dar de maneira direta ou
indireta. Marx (1996), em suas análises sobre o Capital, demarcou a diferença entre duas
modalidades de trabalho e descreveu como se produz a mais-valia. Para Marx (1985) a
distinção entre trabalho produtivo e trabalho improdutivo consiste no fato de que somente o
primeiro produz mais-valia. Essa é a porção do valor total da mercadoria em que se incorpora
o sobretrabalho do operário, ou seja, daquela parte do trabalho não remunerado e que é
apropriada pelo capitalista. Mas e no caso dos trabalhadores dos serviços públicos, isto é, de
instituições que não tem como objetivo primordial a produção de mais-valia? Carcanholo
(2007), relendo Marx, apresenta uma nova leitura sobre o trabalho produtivo. Para ele, os
profissionais do setor público – por exemplo, das áreas da Educação e da Saúde – produzem
valor e excedente-valor “que não é pago pelos que imediatamente usufruem que, se são
trabalhadores, têm o valor da sua força de trabalho reposto ou ampliado” (idem, p. 6). Esses
trabalhadores do setor público produzem valores de uso, como no caso do professor que
produz conhecimento (formação para o trabalho) e do médico que produz cuidado em saúde.
Esse valor (de uso) produzido pelos servidores públicos reaparece nas mãos dos capitalistas
que contratam os trabalhadores sem que lhes custe nada (salvo o que pagam de impostos). E
se esses trabalhadores contratados são produtivos:

[...] aquele valor e aquele excedente se transformam em mais lucros para o


capital global. A atividade dos mencionados profissionais funcionários
públicos é, então, duplamente produtiva; não só o excedente que produzem,
mas todo o valor reaparece como lucro do capital (idem, p. 7).

Consideramos que a instituição de AS atua na realização de mais-valia principalmente


por meio da compra e consumo dos produtos de outros setores da produção comum. Souza
(2015) expõe duas formas de produção indireta: a) quando se realizam convênios 31 com
outros estabelecimentos institucionais prestadores de serviços (entidades assistenciais e
organizações sociais) e mesmo quando se contratam profissionais terceirizados (por meio de
contrato com Micro Empreendedor Individual – MEI) para a realização de oficinas e

31
Os convênios com entidades assistenciais e organizações sociais é previsto pela AS. Para ter o convênio a
entidade precisa receber a Certificação de Entidade de Assistência Social, concedida pelo Governo Federal. O
convênio é feito entre o município e a entidade e esta recebe um repasse financeiro da AS para realizar
atividades socioassistenciais.
79

empresas terceirizadas32 para a realização de cursos, e b) nos casos em que certas figuras
públicas, as quais deveriam apenas estar cumprindo seu dever de trabalhadores da AS, fazem
uso da maquinaria do Estado para aumentar seu prestígio e conseguir mais votos, usando a
justificativa de que estão atendendo a população. Ainda no que diz respeito à produção de
mais-valia indireta, esta pode acontecer quando a AS prepara – por meio de programas como
o “Time de Emprego”33, por exemplo - e realiza a introdução do sujeito no mercado de
trabalho e do consumo de modo alienado, uma vez que a entrada no mercado de trabalho
relaciona-se com a produção de lucro para o capital.
Costa-Rosa (1987), subsidiado pela AI, amplia o conceito de mais-valia, destacando que
nas instituições se produz mais-valia de uma outra natureza, ou seja, a reprodução das
relações sociais de produção – na medida em que as instituições são capazes de recriar a
forma das relações sociais. A segunda subfunção negativa da instituição, pela natureza dos
efeitos que produz, merece destaque. Os efeitos referem-se à reprodução das relações sociais e
intersubjetivas dominantes, isto é, “[...] as mesmas relações sociais da produção de mais-valia
no campo social; basicamente relações verticais de domínio e subordinação” (COSTA-ROSA,
2013, p. 66). No PCFA, as relações estabelecidas entre os trabalhadores e sujeitos estão
baseadas na verticalização, na qual os trabalhadores ocupam essencialmente a posição de
supridores, enquanto os sujeitos ocupam essencialmente a posição de carentes. Além disso, o
pequeno grupo de trabalhadores fica situado e se posiciona como aquele que detém o saber-
poder-ajudar, saber esse que é expropriado dos próprios sujeitos, através de um arcabouço de
práticas e saberes de controle e disciplina, acumulados tanto no período de formação quanto
no dia a dia de trabalho. Todavia, a verticalização das relações acontece também entre os
próprios trabalhadores, visto que o trabalho se estabelece de sorte que há alguns (nos cargos
de coordenação) que mandam e outros (subordinados) que obedecem. Resultado: ao produzir
o produto que está no discurso oficial da instituição (disponibilizar atenção socioassistencial a
quem necessitar), “[...] reproduz-se uma forma de subjetividade que é a própria reprodução

32
Nos últimos anos tem acontecido terceirizações nos serviços públicos. A terceirização pode ser compreendida
como uma locação de serviços, ou seja, quando uma empresa ou instituição transfere para uma terceira a
responsabilidade por suas atividades-meio. Nos serviços públicos a terceirização acontece em atividades tais
como serviço de limpeza e vigilância. Nos últimos anos tem acontecido terceirizações na Saúde por meio da
contratação de Organizações Sociais e empresas de venda de consultas médicas especializadas. Na AS, a
terceirização acontece por meio da contratação de empresas para dar cursos de informática, atividades físicas,
dentre outras, no CRAS e no CREAS. Isso tem produzido a precarização do trabalho e a baixa qualidade dos
serviços.
33
O Time do Emprego é um Programa de orientação profissional do Governo Estadual de São Paulo e possui
como objetivo auxiliar a inserção ou o retorno de sujeitos ao mercado de trabalho. O conteúdo programático
abrange alguns temas, tais como: autoconhecimento, construção de currículo, técnicas de procura de emprego,
planejamento financeiro, dentre outros.
80

das relações sociais dominantes” (COSTA-ROSA, 2013, p. 66-67): relações sociais


sapiente/ignorante, dominador/subordinado, supridor/carente, trabalhadores/usuários e
mandante/obediente. Uma análise mais aprofundada dessa subfunção da instituição pode ser
feita por meio da teoria dos discursos34 como laços sociais, tal como aparece no “Seminário
17: o avesso da psicanálise”, de Jacques Lacan (1992). Situando a práxis dos trabalhadores
nesses laços discursivos, constata-se a predominância do Discurso do Mestre (DM) e do
Discurso da Universidade (DU), que são laços sociais típicos do PCFA.
Já a terceira subfunção negativa refere-se à capacidade que as instituições possuem,
fruto da segmentaridade das pulsações que as constituem e as organizam, de se contrapor –
através de suas práticas – às relações sociais instituídas e [re]criar outras formas de relações
sociais. A AI já demonstrara que, em uma instituição, há uma dimensão instituída e uma
dimensão instituinte (ALTOÉ, 2004), de sorte que há a possibilidade de se construir formas
de relações sociais que não sejam produtoras de dominação, opressão, disciplinarização, tutela
e controle. Essa dimensão produtiva (instituinte) prioriza relações sociais horizontalizadas e,
no “[...] exercício de novas formas de relação social e intersubjetiva, encontra-se a forma da
produção que nos é mais cara, uma espécie de capital-ouro da práxis” (COSTA-ROSA, 2013,
p. 68), capaz de se contrapor à do PCFA que ainda é dominante. Podemos denominá-la como
produção de subjetividade singularizada, uma vez que tem sua origem nos próprios sujeitos da
práxis, os quais assumem seus lugares de agentes produtores por excelência, produção que
pode ser apropriada por todos os envolvidos – sujeitos e trabalhadores – no próprio ato da
produção. Conforme destaca Costa-Rosa (2013, p. 68), nessa subfunção institucional, há uma
redefinição do processo de produção e do modo de produção, “[...] que já não aceita qualquer

34
De acordo com Lacan (1992), toda forma de enlace social se dá por meio de modalidades discursivas. Essas
modalidades são: Discurso do Mestre, Discurso da Universidade, Discurso da Histeria ou do Sujeito e Discurso
do Analista. Cada um se apresenta como um algoritmo de quatro lugares: o agente, o outro, a produção e a
verdade. Estes, por sua vez, serão ocupados por quatro elementos da álgebra lacaniana, a saber, S barrado, a, S1,
S2; e, dependendo de qual lugar cada elemento ocupar na estrutura discursiva, o elemento possuirá uma
conotação específica. Como a ordem entre os elementos é fixa, a permuta circular (em movimentos de meio
quarto de volta, em sentido horário) desses elementos resulta nas quatro modalidades de discurso. Dessa
maneira, no Discurso do Mestre (DM), encontramos o Mestre (S 1) agenciando o outro (S2), enquanto detentor de
um saber-fazer, impulsionando-o para que ele produza um saber, o qual será expropriado e útil ao Mestre, uma
vez que é a partir desse saber expropriado do outro que ele proferirá uma ordem (“faça isso”, “seja assim” etc.).
A verdade escamoteada pelo mestre é sua condição de sujeito faltante (S barrado). No Discurso da Universidade
(DU), temos o saber enciclopédico (S2) agenciando o outro como objeto de ensino ou de pesquisa (a), obtendo
como resultado a supressão da singularidade do sujeito (S barrado). A existência do autor (S 1) é a verdade
recalcada desse discurso. No Discurso da Histeria (DH), encontramos o sujeito em sua divisão subjetiva (S
barrado) interpelando o outro-mestre (S1) para que ele produza um saber (S 2), supondo que este saberia sobre o
que o faz sofrer (a). No Discurso do Analista (DA), temos o analista que, ao posicionar-se como semblante do
objeto [causa] do desejo no lugar do agente (a), impulsiona o sujeito (S barrado) a produzir seus próprios
significantes mestres (S1). A verdade desse discurso é o fato de o analista colocar seu saber enciclopédico (S 2)
em suspenso.
81

cisão entre quem produz e os meios e fins da produção, e entre os atos produtores e os atos de
apropriação daquilo que é produzido.” Cabe lembrar que a produção de subjetividade
singularizada constitui um horizonte ético do PSD.

2.7 O intermediário necessário e suas formas de intermediação

No atual contexto, uma questão importante, quando pensamos sobre as práticas de AS, é
a cisão/separação entre o trabalhador e os meios de produção, tal como acontece na produção
em geral. Para poder produzir, os trabalhadores precisam se combinar com os meios de
trabalho e, como não são os donos desses meios, necessitam “[...] apelar a um intermediário
que é dono dos meios de produção e remunerador direto da força de trabalho.” (COSTA-
ROSA, 2013, p. 69). A lógica geral pela qual se rege a produção de AS, em sua modalidade
dominante – PCFA –, é a do MCP.
Para caracterizar o MCP, a referência tomada será a conceituação de Modos e Processos
de Produção e a descrição daqueles por Marx (2011), em texto no qual discute acerca dos
Modos de Produção Cooperados e o Modo de Produção Capitalista. É necessário esclarecer
que modo de produção representa um conceito formal abstrato, o qual serve como um
instrumento analítico na interpretação e conhecimento de uma realidade social. Um modo de
produção é “[...] uma combinação específica de diversas estruturas e práticas que aparecem
como instâncias ou níveis, isto é, como estruturas regionais com uma autonomia e dinâmicas
próprias, ligadas a uma unidade dialética.” (FIORAVANTE, 1978, p. 31). Já processo de
produção – ou processo de trabalho – refere-se a todo processo de transformação de um
objeto, por meio da atividade humana utilizando-se de instrumentos, em um objeto específico.
Esse processo é composto por alguns elementos – objeto a ser transformado, instrumentos, a
atividade humana (força de trabalho) e o produto – e a forma como se combinam esses
elementos determina o modo do processo produtivo.
Quanto aos modos de produção, Marx (2011), ao apresentar como se dava a relação do
trabalhador com os meios de produção, antes da existência do capitalismo, demonstra que o
que era comum, nessas formações econômicas pré-capitalistas, é a não existência de uma
separação radical entre os trabalhadores e os meios de produção, pois os trabalhadores eram
proprietários desses meios. Percebemos certa relação de homologia entre esses modos e o
Modo Cooperado. Por outro lado, na formação econômica capitalista, há uma separação
radical entre os proprietários da força de trabalho (o trabalhador) e os meios de produção (o
capital), porque estes são de propriedade do não trabalhador (capitalista); e a força de trabalho
82

se transforma em um instrumento nas mãos do capital. Costa-Rosa (2013) ainda lembra que a
razão de ser do ato produtivo já não é mais apenas a criação de “valores de uso”, mas,
sobretudo, a produção de “valores de troca”. O excedente produzido pelos trabalhadores não
se transforma em objeto da apropriação coletiva: a apropriação acontece por apenas um dos
polos de interesse (polo capitalista) presentes no campo social. Logo, a separação entre
trabalhador e meios de produção, a qual também ocorre na produção em geral no MCP, marca
de forma importante a natureza do modo de produção e da relação dos produtores com o
produto do seu trabalho, no campo da AS, alterando de maneira radical o processo de
produção de atenção socioassistencial e seus efeitos produtivos.
Em se tratando da instituição AS enquanto política pública brasileira, o intermediador
necessário é o Estado, que “[...] assume as feições da própria instituição como intermediadora
da relação entre trabalhadores da instituição e usuários de seus serviços.” (COSTA-ROSA,
2013, p. 69-70). A instituição, por conseguinte, pode ser organizada de dois modos distintos
de produzir – modo capitalista ou modo cooperado – e possuir várias funções produtivas que
têm a capacidade de se atualizarem ao mesmo tempo em que se produzem. Devido ao fato de
haver essa intermediação, não existe ato produtivo puro. A forma como a instituição se
organiza, isto é, se é de acordo com as características do MCP ou se segundo uma forma
capaz de driblar os efeitos desse modo de produção, será decisiva para o que resultará dos
seus atos produtivos, pois haverá uma mudança radical na natureza da produção, do produto,
do excedente produzido e de quem dele se apropria e como o faz, em cada uma das formas.
A hipótese levantada neste trabalho, dado o fato de que não se pode excluir o
intermediário – o Estado – nas práticas de atenção sócio assistencial, é a de que a produção e
o produto que interessam aos agentes institucionais, sujeitos e os trabalhadores, supõem a
neutralização das características do MCP, sob a qual se organizam os dispositivos
institucionais da AS no PCFA. Apesar de não ser possível a exclusão do intermediário,
trabalhamos com a possibilidade de que seria possível transformar radicalmente a forma de
intermediação. A Política Nacional de Assistência Social (BRASIL, 2013) fornece uma das
brechas, no sentido de uma transformação do modo das relações intrainstitucionais, uma vez
que prevê a participação dos usuários nos Conselhos de Assistência Social, assim como nos
fóruns; essa transformação está na direção contrária ao funcionamento das instituições
características do MCP, que usualmente se organizam de modo heterogestivo. A neutralização
das características do MCP, presentes nos dispositivos institucionais, deve, conforme indica
Costa-Rosa (2013, p. 70-71), “[...] passar pela superação das relações sociais
intrainstitucionais verticais e sua substituição por processos cooperados de gestão do
83

dispositivo e do processo de trabalho, como bases imprescindíveis para a produção da


subjetividade singularizada”.

2.8 Considerações Finais

Seguindo as ideias de Deleuze recolhidas por Escobar (1991), podemos afirmar que as
instituições traduzem as exigências do homem, sendo criadas para tentar satisfazê-las. A
instituição AS é uma Formação Social que passou a existir em determinado momento
histórico, buscando dar respostas a determinadas pulsações existentes na sociedade.
Analisando-a historicamente, notamos que a AS assumiu uma diversidade de figuras: aparece
como ação religiosa também reconhecida pela fisionomia da caridade, surge como filantropia
da elite econômica, manifesta-se sob a forma de promoção humana, como clientelismo
assistencialista do poder público e também como Política de Estado (BENELLI; COSTA-
ROSA, 2012). Essas figuras diversas revelam sua capacidade de sobreviver e conviver e se
reatualizar, incorporando práticas, saberes e discursos, pois a promoção humana recupera o
discurso da caridade e o clientelismo assistencialista utiliza o conjunto de estabelecimentos do
Estado para operar. Todas essas diversas fisionomias ou discursos da AS – cada qual com sua
ética própria (BENELLI, 2014) – foram aglutinadas em apenas um paradigma, esse que
nomeamos de PCFA, porque sua ética e ações colocam o sujeito como objeto de ajuda e não
criam meios para que ele possa assumir o protagonismo que o discurso oficial lhe reserva.
Essa característica do paradigma hegemônico de sempre se atualizar, incorporando elementos
do PSD e das reivindicações sociais por direitos e proteção social, muitas vezes está velada,
pois mantém intacta a sua estrutura e os seus produtos: subjetividade serializada, controle,
sujeitos passivos e apolíticos. São alterações que acabam por mudar apenas a superfície, já
que não há nenhum questionamento efetivo sobre as relações de poder e dominação
socialmente instituídas.
A AS pode ser sintetizada em duas modalidades paradigmáticas, a saber, o PCFA e o
PSD. Quando organizada sob a lógica do PCFA, dominante na contemporaneidade, apresenta
como principais características os seguintes aspectos: o sujeito da atenção socioassistencial
não é visto como um participante ativo para resolução de seus impasses, o trabalhador é quem
supõe poder resolver o impasse do sujeito; os meios de trabalho, incluindo os atendimentos
psicossociais, atividades pedagógicas e educativas, inserção em programas de transferência de
renda, dentre outros, são pensados e, muitas vezes decididos, como resposta a priori para cada
situação, desconsiderando as especificidades de cada lugar, situação e sujeitos envolvidos;
84

quanto à equipe de trabalho, na melhor das hipóteses, constitui-se como multiprofissional, em


alguns casos, a equipe sequer chega à multiprofissionalidade; as relações entre trabalhadores e
sujeitos são verticalizadas, assim como entre os próprios trabalhadores; os sujeitos não
participam efetivamente das decisões a respeito da gestão e da política, não há valorização da
participação popular; os sujeitos são vistos como carentes, o norte das ações está pautado na
demanda manifesta e os acompanhamentos adquirem caráter assistencialista, supridor das
demandas imediatas, marcado por um viés pedagogizante; no que diz respeito aos efeitos
produtivos, estes costumam visar à eliminação da problemática [aparente] do usuário. A ética
em que se pautam as ações institucionais é da “[...] dimensão ego-realidade e carência-
suprimento cujos desdobramentos amplos talvez sejam a adaptação” (COSTA-ROSA, 2000,
p.163). A consequência é a produção de subjetividades formatadas, capitalísticas, serializadas
e alienadas. Nesse paradigma, a AS ainda permanece focada nos indivíduos e não nos
problemas sociais, de sorte que acaba por produzir a gestão da pobreza e a reinserção frágil do
sujeito no mercado de trabalho e do consumo. Enfatizam Benelli e Costa-Rosa (2012, p. 620-
621):

Os efeitos assistenciais e éticos promovidos são o assujeitamento, a


alienação sociopolítica, a consciência ingênua diante da realidade, ocultando
a exploração da classe trabalhadora pelo capitalismo, escamoteando a luta de
classes e fomentando a harmonia social por meio de estratégias assistenciais
paliativas individuais e focalizadas, cuja capacidade não tem revelado
conseguir mais do que de suprir o alívio imediato da situação do sujeito
sempre reiterada, isto é, seu lugar subjetivo e social de “objeto e decaído”
(grifos dos autores).

A mudança na concepção da AS, transitando dos discursos e práticas mais tradicionais e


clientelistas para o plano da política pública de Seguridade Social, assim como na forma de
organização dos serviços socioassistenciais – a partir das diretrizes do SUAS (BRASIL, 2005)
–, têm fornecido uma abertura, mesmo que pequena, para pensarmos num processo de
transição paradigmática, do PCFA para o PSD, alterando os fundamentos da Assistência
Social, a qual deixa[rá] de possuir um viés caridoso e assistencialista para se tornar uma
Política Pública de garantia de direitos. Esse processo de transição teve início com a
Constituição Federal da República de 1988, passando pela promulgação da LOAS (BRASIL,
2013), e vem ganhando seus primeiros contornos com a implantação do SUAS e a criação dos
estabelecimentos de assistência social e a ressignificação dos já existentes.
A AS, organizada sob a lógica do PSD – paradigma emergente ou paradigma do polo
subordinado –, enquanto direção ou horizonte de possibilidades, teria como principais
85

características: o sujeito da atenção socioassistencial é considerado como o protagonista da


sua vida, os trabalhadores operam apenas como coadjuvantes e têm o papel de impulsionar o
sujeito para o seu horizonte de possibilidades; os meios de trabalho são os mais variados
possíveis, incluindo encaminhamentos, atendimentos, grupos, oficinas, programas de
transferência de renda, dentre outros, não são pensados nem definidos como resposta a priori,
cada situação é tomada em sua singularidade e o plano de ação, chamado de Plano de
Atendimento Individual, é construído junto com o sujeito; quanto à equipe de trabalho, ela é
constituída de maneira interdisciplinar, orientando-se para a perspectiva da
transdisciplinaridade; as relações estabelecidas entre os trabalhadores e os sujeitos se pautam
pela horizontalidade, assim como entre os próprios trabalhadores; os sujeitos participam das
decisões institucionais – por meio de participação nos Conselhos Municipais, Estaduais e
Federal ou em grupos de gestão participativa nos próprios estabelecimentos institucionais –, a
participação popular é valorizada e prevista na PNAS (BRASIL, 2004); os sujeitos são vistos
como apresentando impasses sociais e subjetivos, mas também como os principais
protagonistas para sua resolução; os trabalhadores atuam no sentido de interceder junto aos
sujeitos, de sorte que possam cuidar-se, se implicando e reposicionando subjetivamente frente
a seus impasses; no que se refere aos efeitos de suas ações, em termos produtivos, a resolução
dos impasses que levaram o sujeito a buscar algum tipo de ajuda no estabelecimento
assistencial não é visada diretamente, entretanto, não deixa de ser alcançada, já que essa
resolução não é vista como ação primeira e meta final, uma vez que se compreende a
complexidade das situações que levam alguém a solicitar atenção socioassistencial (SOUZA,
2015). A ética que norteia as ações institucionais almeja o reposicionamento subjetivo e a
implicação sociocultural do sujeito, levando em conta a dimensão histórica, econômica,
política, sociocultural e subjetiva. Trata-se de uma ética que se orienta na direção do
protagonismo do sujeito, do carecimento e do desejo, isto é, “[...] que tome como duplo eixo a
dimensão ‘sujeito-desejo’ e ‘carecimento-ideais’, como aspectos relacionados daquilo que
causa o homem como homem e daquilo em relação a que ele se move.” (COSTA-ROSA,
2000, p. 163). O resultado é a abertura para a produção de subjetividades singularizadas, que
têm de trazer em seu horizonte de lutas a possibilidade de outra forma social que vai além do
sujeito – de direitos; sobretudo se pensarmos que a formação social, mesmo do sujeito de
direitos – que é a democrática – prevê que o “sujeito de direitos” é aquele que tem o direito de
“lutar por direitos”.
A análise da instituição AS como dispositivo social de produção de subjetividade e dos
efeitos éticos produzidos em cada um dos paradigmas permite levantar a hipótese de que o
86

paradigma mais interessante para os sujeitos (trabalhadores e usuários) seria o PSD. Em


concordância com Souza (2015), aposta-se que somente no PSD se poderia – de modo
articulado com outras instituições e com os movimentos sociais – gerar possibilidades de
avançar no sentido de uma mudança social na direção dos interesses do polo subordinado da
sociedade. Entretanto, compreende-se que ainda há muita luta e um longo processo de
transição paradigmática em andamento e que, no PEH, há uma diversidade de forças
trabalhando em direção oposta. O Paradigma dos Sujeitos de Direitos supõe

[...] o avanço na superação das características do MCP presentes no


dispositivo institucional, deslocando para seu lugar um modo do processo de
produção capaz de superar os efeitos principais do MCP, instalando a
organização do dispositivo institucional e a produção de Atenção em moldes
cooperados. (COSTA-ROSA, 2013, p. 73).

O processo de transição para o novo paradigma – PSD – ainda é bastante incipiente,


contudo, essa transição não depende apenas das modificações nos objetivos e diretrizes que
orientam a PNAS (BRASIL, 2004) e o SUAS (BRASIL, 2005), mas, sobretudo, da ação dos
agentes institucionais, dos trabalhadores e dos sujeitos, dos gestores, dos habitantes do
território e da sociedade. Alguns referenciais teóricos fornecem subsídios potentes aos
trabalhadores, para que possam realizar uma leitura crítica da instituição da AS, a partir da
complexidade, tendo em vista não somente o contexto social e político atual, como também a
dimensão do sujeito do [desejo] inconsciente. Dentre eles, indicamos os seguintes: o
Materialismo Histórico de Marx (2004, 2011), a Filosofia da Diferença (DELEUZE, 2013;
GUATTARI, 1990; FOUCAULT, 2015), a AI de René Lourau (2014) e Georges Lapassade
(1983), e a psicanálise do campo de Freud e Lacan (1992). Ainda que o PCFA seja o
dominante na instituição da Assistência Social, sempre é possível ocupar as brechas do
instituído, de maneira a produzir pequenos movimentos instituintes e construir novos modos
de atuar.

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90

3 PSICANÁLISE NA ASSISTÊNCIA SOCIAL: CONTRIBUIÇÕES DO


DISPOSITIVO INTERCESSOR PARA A PRÁXIS E PARA A UNIVERSIDADE

3.1 Introdução

Neste ensaio temos como objetivo fazer breves apontamentos sobre o trabalho do
psicólogo – precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan – na política social de AS
e apresentar o Dispositivo Intercessor (DI) como uma ferramenta de produção de saber na
práxis comum e de conhecimento na práxis universitária. Procuramos refletir acerca da
pertinência e dos limites e possibilidades das contribuições da psicanálise para esse campo
cuja característica predominante consiste em supor um sujeito marcado pela falta de direitos
(renda, convivência familiar e comunitária, inserção social, etc.) e tentar completá-lo com
aquilo que lhe falta (programas de transferência de renda, oficinas, rodas de conversa, entre
outras atividades). Nesse sentido, buscamos saber se poderíamos operar a escuta para além dos
significantes “pobreza” e “miséria”, isto é, uma escuta do sujeito do (desejo) inconsciente em um
campo em que muitas vezes apenas se considera o sujeito de direitos.
Para a psicanálise, o sujeito não se reduz à pessoa, ao indivíduo e sua personalidade,
razão, emoção e comportamentos, tampouco é a mente suscetível de estar saudável ou doente.
Ele não é o eu, “[...] aquilo que apresento ao outro, meu semelhante, igual e rival, como sendo
o que quero que o outro veja” (QUINET, 2011, p. 15). O sujeito não possui uma identidade
própria, ele é tão somente representado por significantes que existem no Outro. O sujeito do
inconsciente é constituído a partir do campo do Outro, submetido às leis da linguagem,
estruturalmente faltante, e por isso mesmo desejante.
O trabalho do psicólogo na AS comporta uma série de especificidades. Nesse campo
não se prevê que ele possa realizar psicoterapia. Por outro lado, existe um conjunto de tarefas
que são previstas, tais como acolhimentos, visitas domiciliares, oficinas, acompanhamentos,
entre outras atividades que o psicólogo precisa executar enquanto técnico do serviço. Em um
campo em que predomina a preocupação com questões materiais e sociais, como escutar para
além do sujeito de direitos, ou seja, escutar o sujeito do desejo, também nomeado por
Scarparo (2008) “Sujeito perdido”?
Partimos da hipótese de que entender se e como a psicanálise pode contribuir nesse
campo torna-se importante pois cria uma abertura para que a dimensão do inconsciente seja
considerada nas práticas institucionais e nos impasses que podem decorrer do fato de os
indivíduos estarem na posição de demandantes de ajuda.
91

Como, em psicanálise, clínica e pesquisa não se dissociam, mas também devido à


especificidade de estarmos em um contexto institucional da AS, nos servimos do DI como um
instrumento para nossas ações na práxis de trabalho comum e na práxis universitária. O DI é
um conceito-ferramenta inicialmente formulado por Costa-Rosa que vem sendo construído
pelos participantes do Laboratório Transdisciplinar de Intercessão-Pesquisa em Processos de
Subjetivação e Subjetividadessaúde (LATIPPSS) para trabalhar a produção de conhecimento,
rompendo com o modo tradicional de fazer pesquisa da Ciência Moderna. O LATIPPSS está
inerido no Grupo de Pesquisa Saúde Mental e Saúde Coletiva do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia e Sociedade da Faculdade de Ciências e Letras da UNESP/Assis. Os
participantes do LATIPPSS, estudantes inscritos na linha de pesquisa Atenção Psicossocial e
Políticas Públicas, têm realizado processos de intercessão-pesquisa a partir de dissertações de
mestrado e teses de doutorado em diversos campos: Saúde Coletiva, Saúde Mental,
Assistência Social, Educação e em campos intersetoriais. Esse também é o caso desta
intercessão-pesquisa que estuda o trabalho do psicólogo precavido pela psicanálise nos
estabelecimentos da política social de AS.

3.2 Questões introdutórias acerca do dispositivo intercessor

Muitas vezes, os trabalhadores, como forma de tentar lidar com o senso de


empobrecimento teórico e de driblar os sentimentos de estagnação advindos da prática –
“efeito do processo de alienação típicos das instituições sintônicas com o MCP” (GALIEGO,
2013), se propõem a voltar à universidade para fazer um curso de especialização ou mestrado,
tentando encontrar respostas para suas questões, uma vez que esta instituição (a universidade)
é vista como espaço de produção de conhecimento. Nossa hipótese é de que todos os
trabalhadores – mesmo que, às vezes, eles mesmos não se deem conta disso – possuem um
saber sobre suas práticas, mas este saber, no MCP, praticamente não é valorizado.
Diferentemente, nos estabelecimentos que funcionam a partir do Modo Cooperado de
produção (MARX, 2011), a integração saber-fazer ocupa uma posição central, o trabalho
ganha contornos de práxis e o produto sempre depende das demandas dos sujeitos que buscam
ajuda.
Santos (2002) afirma que a sociedade contemporânea está vivendo um processo de
transição paradigmática, momento em que surgiria “um novo paradigma epistemológico e
sócio-cultural (sic), embora não se descortine, por enquanto, qualquer transição para lá do
capitalismo” (ibidem, p. 117). Essas transições são autônomas, apesar de estarem intimamente
92

relacionadas, uma vez que “formas alternativas de conhecimento geram práticas sociais
alternativas e vice-versa” (ibidem, p. 344). Alinhado com essa perspectiva de um novo
paradigma epistemológico e sociocultural encontra-se o DI. A meta ética do DI é servir de
instrumento para a superação da divisão entre os que pensam e os que fazem, entre os que
possuem conhecimento e decidem e os que não dispõem de conhecimento e obedecem; em
suma, ele pretende servir para o exercício de uma reflexão que se situe além da clássica
divisão da ciência entre sujeito e objeto do conhecimento.
O DI opera com os saberes advindos de um conjunto de referenciais teóricos, a
saber: a Psicanálise do campo de Freud (1996) e Lacan (1992, 1995, 2008), o Materialismo
Histórico de Marx (2001), a Análise Institucional (AI) de René Lourau (2014) e Georges
Lapassade (1983), a Filosofia da Diferença (de Nietzsche a Deleuze, passando por Foucault
e Guattari) e o conceito de intercessores de Deleuze (1992). Distante de ser este apenas um
aglutinamento eclético de autores e teorias, essas referências teóricas têm como eixo o fato
de constituírem campos de conhecimento e de ação transdisciplinares, isto é, fundarem-se
na meta política de seguir outra via que a do sujeito-objeto; fornecerem uma possibilidade
de olhar a realidade a partir de sua complexidade, permitindo a formação de diversos planos
analíticos suplementares. Nossa tentativa de operar com o DI baseia-se, sobretudo, no
campo da psicanálise de Freud e Lacan.
São dois os momentos que compõem o DI: o primeiro deles é o DI como práxis do
intercessor encarnado (ANDRADE, 2013), etapa em que a produção de saber se dá na própria
práxis do intercessor; e o segundo consiste no Dispositivo Intercessor como Meio (ou modo)
de Produção de Conhecimento (DImpc), momento em que a produção de conhecimento volta-
se conjunturalmente para a universidade35 e visa a instrumentalizar outros trabalhadores – e
também futuros trabalhadores – que desejarem tornar-se intercessores em seus campos.

3.3 O Dispositivo Intercessor como práxis do intercessor no campo: o trabalhador-


intercessor

No primeiro momento, o do DI intercessor como “práxis do intercessor encarnado”


(ANDRADE, 2013) ou da “intercessão propriamente dita” (SOUZA, 2015), o trabalhador-

35
Estar conjunturalmente voltada para a universidade se deve ao fato de que, no atual contexto histórico, o
grande volume das produções de conhecimento são realizadas neste campo e não haveria motivo para não
participarmos deste espaço também. Concebemos a universidade como apenas mais um espaço onde se pode
realizar a produção de conhecimento. Isso significa considerar que os trabalhadores da práxis comum também
possam realizar reflexões e ser produtores de conhecimento no próprio campo. A Educação Permanente pode ser
uma importante estratégia nesse sentido.
93

intercessor não realiza pesquisa. Ele se situa enquanto trabalhador no campo, isto é, sua
inserção se dá no mesmo plano dos demais trabalhadores do estabelecimento institucional. O
saber produzido nesse momento é designado pela psicanálise um “saber em intenção”
(JULIEN, 2002), saber na práxis.
Na dialética encontra-se um conceito chave para o intercessor, o conceito de práxis. A
dialética privilegia “contradição e conflito, predominando sobre a harmonia e o consenso; o
fenômeno da transição, da mudança e do devir sobre a estabilidade; o movimento histórico e a
totalidade como unidade de contrários” (FODRA et al, 2007, p. 92). Em uma instituição
existem conjuntos de forças instituídas e instituintes (BAREMBLITT, 2012), constituindo-se
como um espaço com certa permeabilidade a mudanças. Estas podem ser operadas a partir dos
agentes da instituição/estabelecimento, que inclui sujeitos ditos usuários e trabalhadores.
A diferença do trabalhador-intercessor em relação aos demais trabalhadores é que ele
se posiciona em relação à prática de modo especificamente planejado, resgatando o conceito
de práxis, e está instrumentalizado pelos referenciais teóricos que embasam o DI. Esse
dispositivo nada mais propõe do que instrumentar possibilidades de um trabalhador comum
da práxis posicionar-se de modo específico em relação a ela. Divisões como aquela entre o
instituído e o instituinte (até certo ponto homólogos àquela entre o consciente e o
inconsciente), entre o sabido e o não-sabido, o sujeito e o objeto, o suprido e o carente, o fazer
e o saber, são a matéria prima que o trabalhador-intercessor nunca poderá deixar de incluir
nos processos de produção dos impasses que o trabalhador é chamado a resolver, e, por
consequência, em sua reflexão sobre eles nos diferentes planos em que é necessário fazê-la.
O trabalhador-intercessor não é um intelectual (nos moldes cartesianos) que vai a
campo para ensinar aos trabalhadores como estes devem operar. Ele é, essencialmente, um
trabalhador. Sendo assim, pode atuar nos mais diversos campos e nas mais variadas
instituições (Saúde, Educação, Cultura, Esporte, Meio Ambiente, entre outros), inclusos aí os
estabelecimentos institucionais que fazem parte das políticas públicas, como as Unidades
Básicas de Saúde (UBS), os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), as escolas municipais e
estaduais, os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), os Centros de Referência
Especializado de Assistência Social (CREAS), as Casas de Acolhimento a crianças e
adolescentes, entre outros.
De acordo com Souza (2015), o trabalhador-intercessor pode ser compreendido como
um coadjuvante nos processos de que participa. Ele compreende que os sujeitos que compõem
a instituição (trabalhadores e sujeitos nomeados usuários) são os verdadeiros protagonistas,
cabendo a ele apenas ser aquele que, aproveitando-se das brechas e potencialidades do campo,
94

impulsiona o movimento. A intercessão propriamente dita consiste no posicionamento e numa


série de ações específicas decorrentes dele, produzidas por parte do trabalhador assim
instrumentado e posicionado junto à práxis cotidiana. De imediato, essa posição intercessora é
realizada planejadamente por um trabalhador da práxis que se distingue por ser alguém que
possui suas próprias interrogações, que muitas vezes o “coletivo de trabalho” (OURY, 2009)
ainda não formulou. Ele tem a possibilidade de fazer essas interrogações operarem possíveis
avanços, por sua instrumentação como trabalhador-intercessor, mas sobretudo na medida em
que puder operar num campo cuja natureza pode ser abordada a partir do próprio conceito de
transferência elaborado pela psicanálise (COSTA-ROSA; PEREIRA, 2011).
A inserção do trabalhador-intercessor no campo pode ser dividida em dois tempos: o
do Um-a-mais e o do Mais-um. No primeiro tempo, o trabalhador intercessor é Um-a-mais, ou
seja, um trabalhador como os demais que compõem o estabelecimento institucional
(GARCIA, 2013). O que caracteriza o Um-a-mais é o fato de ele ser parte da equipe de
trabalhadores do estabelecimento institucional e de colocar-se como tal, reconhecer que faz
parte da classe de operários, implicando-se nessa causa, e de possuir clareza quanto aos
objetivos da instituição – ainda que se contraponha ao paradigma que baliza as práticas desta.
Nesse tempo, seu trabalho junto à equipe é essencial para que possa estabelecer-se a
transferência, uma vez que esta é imprescindível para que as intercessões sejam
operacionalizadas por ele. Esse tempo inicial para se integrar a equipe e ocorrer o
estabelecimento da transferência não é algo predefinido pelo trabalhador-intercessor, mas
depende do campo e do modo como o intercessor pode posicionar-se nele.
O segundo tempo, do trabalhador-intercessor como Mais-um, inicia-se quando o
trabalhador se situa sob um campo transferencial, recaindo sobre ele uma suposição de saber.
O Mais-um é um conceito inspirado na estrutura de Cartel da Psicanálise lacaniana e delineia
a posição do intercessor no coletivo de trabalhadores. O Cartel é um dispositivo de trabalho
composto por um grupo de no máximo cinco pessoas, em que os integrantes (psicanalistas e
psicanalistas em formação), sustentados pelo desejo de estudar e de aprofundar-se em um
tema concernente à psicanálise, se colocam na produção de escrita. No Cartel, de acordo com
Jimenes (1994), a produção de saber acontece em dois momentos: primeiramente na clínica
(psicanálise em intenção) e depois nas elaborações teóricas sobre a clínica (psicanálise em
extensão). Um dos cartelizantes ocupa o lugar de Mais-um, isto é, daquele que foi escolhido
pelo grupo e que tem por responsabilidade impulsionar os participantes para que estes
realizem suas produções escritas. Segundo Pamponet (2013) a função do Mais-um no Cartel
não é ocupar a posição de líder, de analista e nem de Sujeito Suposto Saber – posição esta
95

depositada imaginariamente pelos cartelizantes –, mas limitar o lugar do líder e, utilizando-se


da fantasia imaginária dos componentes do grupo referente à sua posição, deslocar os
participantes ao lugar de trabalho.
No DI, o Mais-um possui uma função parecida com a ocupada por ele no Cartel.
Enquanto Mais-um37, o trabalhador-intercessor continua a fazer parte do coletivo de
trabalhadores, sustenta-se por uma posição de Sujeito Suposto Saber que é colocada nele, mas
em vez de colocar-se na posição daquele que tem as respostas para as questões que surgem,
posiciona-se de modo a deslocar tanto a equipe de trabalhadores [da qual faz parte] quanto os
sujeitos atendidos pelo estabelecimento institucional – a depender de cada situação – ao lugar
de trabalho para que estes produzam suas próprias respostas e soluções para seus problemas.
Essa suposição de saber encarnada pelo intercessor – homóloga à do analista –, e que é posta
em suspenso, é denominada por Lacan “ignorância douta”. A ignorância douta diz respeito ao
saber que percebe seus limites, reconhece não poder saber pelo outro. Isso não significa que
em sua práxis o trabalhador-intercessor ocupa uma posição passiva, sua atividade encontra-se
justamente nos questionamentos, assinalamentos e pontuações que ele poderá fazer.
Assim como o Analista no Dispositivo Analítico, o trabalhador-intercessor ocupa uma
posição evanescente. Ele somente é intercessor quando é capaz de fato de ocupar uma posição
intercessora no conjunto de acontecimentos daquele campo. Só é possível dizer que houve
uma intercessão a partir da verificação de seus efeitos, isto é, em um momento posterior e que
foi produzido a partir da intercessão. Ademais, o trabalhador-intercessor tem claro a diferença
entre saber e conhecimento e visa a produção de saber – tanto pela equipe quanto pelos
sujeitos atendidos – no estabelecimento institucional.
O intercessor não busca uma verdade preexistente e absoluta, como faz a Ciência
Cartesiana. Ele sabe que a verdade é singular, tal qual a produção dos intercessores. Ainda
que, conforme assinalou Deleuze (1992), os intercessores possam ser uma diversidade de
coisas (um encontro, um acontecimento, uma planta, um artista, etc.) que produzam uma
diferença ou um movimento, o trabalhador-intercessor traz um diferencial: ele tem o “[...]
propósito de produzir uma alteração na estrutura social dominante (re)colocando os sujeitos
no lugar de agentes do laço social” (MIRANDA, 2011, p. 29), respaldando-se ética e
teoricamente por referenciais que embasam as suas ações e reflexões. No horizonte está a
perspectiva de que todos os trabalhadores, talvez apenas operários no MCP que opera na

37
Destacamos, no Mais-um, a possibilidade que esta posição inclui de também sobretudo elaborar o saber
segundo ou saber em segundo plano, isto é, a elaboração do saber que parte do trabalhador-intercessor quando
ele está posicionado como pesquisador-intercessor.
96

instituições em questão, sejam trabalhadores intercessores; outro modo de dizer que teriam
abolido a principal contradição da divisão do trabalho: a separação entre os que fazem e os
que pensam, e por isso lhes tem sido designado socialmente a função de produtores
específicos e especializados de saber.
Durante esse primeiro momento do DI, o intercessor constrói o diário de intercessão,
ferramenta que guarda certa similaridade com o diário de campo, com a diferença de que ali
não são anotados apenas dados e relatos de acontecimentos. Enquanto escreve, o trabalhador-
intercessor produz reflexões sobre sua práxis e a repensa. Nesse primeiro momento, o diário
de campo é empregado para “[...] ajudar a pensar a práxis e a delinear o posicionamento de
intercessor” (GALIEGO, 2013, p. 71) no campo da ação cotidiana. Após um processo de
escrita, dependendo das reflexões que pôde fazer sobre o campo e suas ações, ao voltar à
práxis, o trabalhador-intercessor pode reposicionar-se e modificar seu fazer e mesmo sua
posição no coletivo de trabalhadores. Ressaltamos que a reflexão do trabalhador-intercessor
acerca do campo e de suas ações é um exercício cotidiano, independentemente de haver ou
não a pretensão de uma reflexão no campo da universidade. Do mesmo modo que se pretende
que o conjunto de psicanalistas do campo de Freud e Lacan realizem reflexões e produções
textuais acerca de suas questões de trabalho, o que se esperaria numa circunstância em que a
divisão do trabalho estivesse superada, ao menos para um subconjunto de trabalhadores-
intercessores, é que todos escrevessem textos e produzissem avanços teóricos.

3.4 Apresentando o campo de inserção e seus movimentos

O município onde fizemos a inserção institucional visando realizar práticas


intercessoras localiza-se no oeste do estado de São Paulo, possui pouco mais de trinta mil
habitantes e o setor predominante em sua economia é o rural. Em decorrência do porte do
município, a AS é composta nele somente pela Secretaria de Assistência Social, pelo CRAS,
CREAS e Casa de Acolhimento para crianças e adolescentes.
No DI, não se trata de ensinar e nem de prescrever uma fórmula de como os
trabalhadores devem operar, mas de ofertar ferramentas para que eles possam realizar uma
leitura crítica das questões que atravessam aquele campo, de modo a possibilitar seu
posicionamento nele. Cada trabalhador-intercessor precisa construir paulatinamente sua
práxis. Mostraremos um pouco da nossa enquanto apresentamos os dois momentos do DI.
Antes disso, para situar o leitor, apresentaremos, brevemente, algumas informações sobre o
campo de intercessão institucional.
97

O CRAS foi implantado há 8 anos, acompanhando a reestruturação da AS tal como


proposta pela PNAS. No início de seu funcionamento o serviço executava as seguintes
atividades: acolhimento, atendimento individual, visitas domiciliares, grupo de convivência
com idosos, grupo de ballet e apoio à Associação de Catadores de Materiais Recicláveis.
Durante o período em que realizamos a intercessão, que ocorreu de julho de 2015 a junho de
2016, o serviço era composto por 14 profissionais, sendo eles: uma coordenadora, cinco
assistentes sociais, uma artesã, dois motoristas, uma educadora física, uma auxiliar de
serviços gerais e três técnicas de nível médio. Chamava a nossa atenção a quantidade de
assistentes sociais no serviço, quando comparada à de psicólogos que, no caso, não existia,
pois a única profissional do grupo formada em psicologia acabou assumindo o cargo de
coordenação. Havia também estagiárias de Psicologia e de Serviço Social. Na época da nossa
inserção institucional não havia mais o apoio à Associação de Catadores de Materiais
Recicláveis e o grupo de ballet era a única atividade contínua ofertada fora do CRAS. Nessa
época, todas as demais atividades, exceto festas, eram sempre realizadas dentro do CRAS.
A Casa de Acolhimento foi inaugurada no início de 2010, mediante determinação
judicial. Antes de sua implantação, as crianças e adolescentes acolhidos eram encaminhados a
estabelecimentos assistenciais de municípios vizinhos conveniados. Durante nossa inserção
institucional, a Casa contava com nove acolhidos, sendo duas adolescentes e sete crianças
entre três e onze anos. Além do acolhimento e do acompanhamento dos acolhidos, eram
realizadas ações visando ao resgate e ao fortalecimento de vínculos familiares – que incluíam
acompanhamento das famílias dos acolhidos e contato com a família extensa. A equipe do
estabelecimento era composta por uma psicóloga, um assistente social, uma coordenadora,
nove educadores/cuidadores e três auxiliares de serviços gerais. Em alguns períodos do ano, a
Casa permanecia sem receber crianças/adolescentes e os trabalhadores ficavam ociosos,
enquanto em outros ela quase chegava ao seu limite de vagas, sendo que parte das crianças
não necessitaria ter sido encaminhada para lá. Os profissionais que ingressavam na instituição
não passavam por um momento de formação, as capacitações do coletivo de trabalhadores era
quase inexistente e muitos deles não possuíam conhecimento sobre o Sistema Único de
Assistência Social (SUAS) e a PNAS, o que de certo modo comprometia um pouco a
qualidade do serviço.
O CREAS foi implantado no mesmo município no ano de 2014, em virtude da
demanda de trabalho com Pessoas em Situação de Rua. Embora o trabalho tenha começado
por conta disso, como a PNAS determina que esse estabelecimento execute um conjunto de
atividades de Proteção Social de Média e de Alta Complexidade, elas foram gradualmente
98

criadas e incorporadas ao serviço. Na época da nossa inserção institucional, esse


estabelecimento contava com uma equipe composta por uma assistente social, uma psicóloga,
uma advogada, uma auxiliar de serviços gerais, um motorista (que se dividia entre dois
estabelecimentos) e uma coordenadora (que não possuía formação na área social e não era
concursada). Havia, ainda, uma entidade que ofertava atividades socioeducativas para
crianças e adolescentes no nível da Proteção Social Básica e que recebia repasse de verba de
custeio da Assistência Social.
Em virtude de não sermos, ainda, um trabalhador contratado pela instituição, nossa
entrada em campo se deu a partir de uma oferta de trabalho, feita por nós, em troca de
aprimoramento profissional. Tínhamos como proposta nos inserirmos somente no CRAS, mas
devido ao pedido da secretária de AS na época, acabamos dividindo nosso tempo entre os três
estabelecimentos, em que permanecemos inseridas por aproximadamente um ano. Motivadas
pelo desejo de conhecer melhor a AS e aperfeiçoar a nossa práxis, procuramos nos posicionar
como trabalhadora-intercessora.
O trabalhador-intercessor, para operar, necessita sustentar a inclusão dos sujeitos e de
suas singularidades, o que requer que ele abdique da posição ortopédica, pedagógica e
colonizadora de quem detém o saber, ou seja, do mestre. Ao inserir-se no campo como
intercessor, de acordo com Martini (2010, p. 37) “[...] o que se faz é possibilitar que ali se crie
um espaço de produção que seja feita pelos próprios sujeitos [participantes da práxis]
incluindo-se o intercessor [encarnado]”. Cabe ao intercessor, na relação com o coletivo de
trabalho, contribuir de modo que os próprios sujeitos produzam o saber necessário para o
equacionamento dos problemas institucionais cotidianos. Sua função é ser alguém que
interroga os sentidos prévios, promove fissuras e rupturas no saber do grupo, ocupa brechas
do saber instituído para, a partir disso, possibilitar que os sujeitos da práxis construam um
novo saber. Para Stringueta e Costa-Rosa (2007, p. 156), o intercessor “[...] buscará romper
com campos de sentidos existentes, para que haja uma reflexão sobre o que os constitui, com
a abertura para a apropriação do que possa ser pertinente e para construções de novos sentidos
possíveis”.
No caso da nossa inserção institucional, nos posicionamos como trabalhador-
intercessor e sustentamos a posição deliberada de interceder nos processos cotidianos. Ao
colocarmos algumas breves interrogações à instituição, procuramos impulsionar os
trabalhadores a se implicarem na construção de novas perguntas e respostas, produzindo um
“movimento instituinte” (BAREMBLITT, 2012) no coletivo de trabalhadores.
99

No que se refere ao movimento institucional nos estabelecimentos assistenciais,


sabemos que a intercessão somente contribuiu para movimentar processos já em andamento.
Pudemos identificar pequenos deslocamentos, como o interesse dos trabalhadores da Casa de
Acolhimento em conhecer um pouco mais sobre a PNAS e sobre os estabelecimentos
socioassistenciais (CRAS e CREAS).
Na Casa de Acolhimento, havia um conjunto de trabalhadores que não possuía uma
clara compreensão sobre a função e a organização da AS, que inclusive não sabia a diferença
entre os estabelecimentos institucionais da AS, o que, de certo modo, tinha implicações para o
trabalho. Por outro lado, havia, por parte de alguns deles, a demanda de capacitação para o
trabalho com as crianças e os adolescentes. Naquele período não havia acolhidos na Casa.
Essa demanda de capacitação foi vista por nós como uma brecha que poderia ser ocupada. Na
tentativa de driblar a divisão de trabalho entre especialistas e trabalhadores braçais, propus
que todos (inclusive a coordenadora) participassem de uma atividade e combinamos que essa
teria um formato mais horizontal possível. Disso surgiu a Roda de Conversa38 com os
trabalhadores, em que, a partir de temas relacionados ao trabalho e da posição ocupada pela
intercessora, o coletivo de trabalho pôde problematizar, refletir e começar a construir um novo
saber. Ficou bastante explícito que a maioria dos trabalhadores de nível médio pouco
conheciam a PNAS, e, em decorrência disso utilizamos os últimos encontros para trabalhar
esta temática. Em diversos momentos foi endereçada a mim alguma questão, como por
exemplo “como a gente pode lidar com o adolescente A. se ele voltar para cá?”, “como
trabalhar com aquela família?” e “como ajudar as crianças nas tarefas?”. Procurei devolver as
questões ao grupo de modo que as respostas fossem dadas pelo “coletivo de trabalho”. Em
outros momentos, diante de uma questão, o coletivo se colocava a trabalho e passava a
produzir saber sem sequer demandar uma resposta de minha parte. Embora a Roda de
conversa tenha sido encerrada em virtude da entrada de novas crianças na casa, consideramos
que a atividade pôde servir enquanto um espaço de acolhimento aos trabalhadores (para falar
das angústias), de aprendizado sobre a PNAS, e de reflexão sobre os temas discutidos. Esse
pequeno deslocamento não foi suficiente para produzir mudanças significativas no
estabelecimento institucional, no entanto, a semente de uma construção de saber pelos
próprios trabalhadores foi plantada e talvez um dia possa florescer.

38
A Roda de Conversa, orientada pela Educação Popular, é um espaço de horizontalização das relações de poder
e de construção de um saber também coletivo. Podemos situá-la como um dispositivo que serve para driblar o
modelo de “Educação Bancária” (FREIRE, 2005) que coloca os sujeitos como meros recebedores e arquivadores
de saberes transmitidos pelo mestre.
100

Não se almeja grandes revoluções a partir das intercessões. Aspira-se a que, a partir
das brechas que são visualizadas, seja possível contribuir para que se produzam pequenos
deslocamentos no modo de produção institucional e no saber daquele coletivo a fim de que o
instituído (enquanto verdade) seja questionado e possibilite o surgimento de novos saberes
potencialmente singulares (GALIEGO, 2013). E como esclarece Lacan (1992), não é o desejo
de saber que interessa, mas, sobretudo, a postura questionadora que conduz ao saber. Essa
postura dá acesso ao não-sabido, ao recalcado, do sujeito e também ao grupo.
Sendo a tarefa do intercessor contribuir para que os jogos de força e os movimentos da
instituição/estabelecimento adquiram expressão, a fim de que o próprio coletivo de trabalho
possa criar formas de resolver os impasses institucionais, é de suma importância que ele “não
force um movimento para o qual ainda não haja abertura e não precipite uma situação”
(GALIEGO, 2013, p. 58), pois isso pode tornar inviável o processo de intercessão e fazer
surgir barreiras às possibilidades de construção coletiva de movimentos instituintes e de
mudanças efetivas. Dessa forma, é necessário que o intercessor perceba qual é o ritmo do
coletivo de trabalhadores, de modo a se manter próximo deles e a acompanhá-los.
Experimentamos estar em um estabelecimento (CREAS) em que o coletivo de
trabalhadores, embora vivenciasse incômodos e frustrações em decorrência de casos que não
conseguiram solucionar, naquele momento não desejava repensar suas práticas e o próprio
funcionamento institucional. Uma situação foi bastante exemplar. Durante nossa inserção
tivemos contato com algumas pessoas que estavam e/ou estiveram em situação de rua e que
quase cotidianamente frequentavam aquele estabelecimento. F. era um destes sujeitos. A
escuta dele, realizada na sala de espera, propiciou que ele fizesse um trabalho subjetivo que
dificultou seu sono por algumas horas naquela noite. Como isso foi sabido pelo CREAS, a
coordenadora me procurou para dizer que a escuta não poderia mais acontecer, pois o
estabelecimento não era um local para isso. Mas como trabalhar com os sujeitos sem levar em
conta o desejo deles?!
Nem sempre os coletivos de trabalhadores de um dado estabelecimento institucional
estão dispostos a refletir e realizar mudanças, algumas vezes eles pretendem somente
continuar como estão. É no coletivo que se realizam as negociações, tanto no sentido do recuo
quanto no do avanço, caso se pretenda ser coerente com a ética dos intercessores. E conforme
demarca Galiego (2013, p. 58-59) “A forma e a velocidade com que isso se processará,
dependerão das possibilidades de avanço ou dos desejos de recuo do próprio estabelecimento
institucional, das forças (instituinte/instituído) em luta no campo.
101

O trabalhador-intercessor não intercede apenas no coletivo de trabalhadores, sua


intercessão se dá também com os sujeitos ditos usuários. As intercessões sempre terão como
ponto de partida o próprio trabalho que a equipe de trabalhadores (da qual o trabalhador faz
parte) tem de realizar. Nossa breve experiência de intercessão junto a eles se deu em um
espaço denominado “Café com Cras”. Tratava-se de uma Roda de Conversa com mulheres
que aconteceu semanalmente durante aproximadamente quatro meses e que esteve sob nossa
responsabilidade. Por não ter sido uma demanda das próprias mulheres, não havia um número
expressivo de participantes. Isso assinala para nós que talvez fosse mais interessante que o
trabalho de intercessão tivesse partido de outro ponto. Diferente de uma psicoterapia em
grupo, a roda de conversa não possui finalidades terapêuticas – e sim de socialização –, mas
nem por isso deixa de produzir efeitos que são terapêuticos. Com isso, os sujeitos podem se
beneficiar dela. A Roda pode ser situada a partir da noção de clínica ampliada, a clínica fora
do setting tradicional, cujo pressuposto é estar em posição de escuta sem que haja
necessariamente um enquadre psicoterápico (SCARPARO, 2008).
Era bastante comum que direcionassem a mim um conjunto de perguntas, como por
exemplo “por que eu sou assim?” e “o que devo fazer?”. Diante de suposição de saber
colocada em mim, procurei me posicionar no Discurso do Analista (DA) para que elas
pudessem produzir seus próprios saberes. A ética da psicanálise pressupõe que o trabalhador-
intercessor se comprometa a eximir-se de uma posição de mestria e encoraje os sujeitos a
tomarem posse de suas próprias falas por meio da associação livre. Esse posicionamento por
parte do intercessor permite que o sujeito se bifurque e se insira na produção de sentidos
sempre novos.
G. foi uma das mulheres que pôde experimentar um pouco desses efeitos terapêuticos.
Em sua primeira participação, ela demandou que nós recebêssemos o seu filho para avaliar se
ele era autista, pois o diagnóstico era uma questão que a angustiava muito. Nas primeiras
participações, o discurso girava em torno daquele filho, que posteriormente passou a receber o
significante “especial”. Ela afirmava: “Ele é especial porque eu amo ele (sic) demais!”. Desde
então, seu discurso mudou e ela pôde começar a colocar em questão a si própria e ao seu
casamento.
O. também pôde se servir da Roda como um espaço com efeitos terapêuticos. Quando
chegou, queixava-se da relação com o filho, da dificuldade de conseguir a aposentadoria e da
perda de um lugar de responsabilidade na igreja – da sua condição de objeto do Outro. Nos
primeiros encontros, pôde começar a rever sua posição diante do desejo do Outro e enunciava:
“Eu sempre fiz tudo o que minha mãe mandava”. Nas semanas seguintes, chegou contando de
102

decisões que tomara e do desejo de cursar inglês (que não aprendera até então). O que fez
operar a mudança nesses casos foi o posicionamento da intercessora de não responder no
imaginário, de modo que os sujeitos puderam começar a tratar o Real39 pelas ferramentas do
Simbólico40 (LACAN, 1995), produzindo um saber sobre si.
Em nosso percurso de inserção institucional não houve uma linearidade quanto às
intercessões. Somente em poucos momentos foi possível que nos posicionássemos como
intercessora junto aos coletivos de trabalho dos estabelecimentos assistenciais.
Compreendemos que esta dificuldade, ao menos em parte, relacionava-se ao próprio campo
de intercessão e ao momento histórico que vivíamos. Embora a existência dos
estabelecimentos assistenciais – CRAS, CREAS e Casa de Acolhimento – nos municípios
esteja prevista pela PNAS, devido a algumas características do próprio município parecia não
haver uma demanda que fosse muito além da concessão dos programas de transferência de
renda. Além disso, a cultura da caridade, da filantropia e do assistencialismo (BENELLI,
2014a; BENELLI; COSTA-ROSA, 2012) ainda permanecia muito presente no imaginário dos
sujeitos e até de alguns trabalhadores, o que dificultava a construção coletiva da AS enquanto
direito social. Conforme salienta Galiego (2013, p. 60), o posicionamento do intercessor “está
sujeito às vicissitudes dos encontros, às aberturas ou restrições que o contexto apresentar, e à
possibilidade do intercessor de se sustentar neste lugar”.

3.5 O Dispositivo Intercessor como Meio de Produção de Conhecimento na universidade: o


trabalhador pesquisador

A universidade, enquanto campo privilegiado de produção de conhecimento, tem


produzido uma vasta gama de pesquisas e respectivos resultados sobre os mais diversos temas
no campo das políticas públicas. Esta produção, embora seja muito rica em conteúdo, acaba
ficando bastante restrita ao meio universitário, pois muitas vezes é vista pelos trabalhadores
como um conhecimento distante de sua realidade e/ou sem ressonância com a prática, não
servindo, portanto, como um dispositivo de diálogo entre ambos. Isso, de certo modo, reflete
a própria dicotomia saber-fazer, característica da divisão social do trabalho no MCP. A
própria ciência, sobretudo como tecnociência, é originária dessa divisão. Esta, por ser

39
O Real não é o mesmo que realidade e nem que a realidade psíquica (a realität freudiana). O Real é aquilo que
pulsa, que não para de não se inscrever. Ele é o que não possui um significante que sirva de anteparo, gozo. Sua
emergência pode ser detectada, por exemplo, a partir da experiência da angústia, quando se é tocado pelo Real.
40
O Simbólico pode ser compreendido como “o que diz respeito a um sistema de representações calcado na
linguagem, ao campo do Outro regido pela Lógica do Significante, que estrutura o desejo como falta-a-ser e
autoriza nossa ascensão ao campo propriamente humano” (PÉRICO, 2014, p. 41).
103

orientada pelo Paradigma da Ciência Moderna ou Paradigma Dominante (SANTOS, 2002),


pauta-se em um conjunto de dicotomias: ciências naturais/ciências sociais, natureza/cultura,
homem/mulher, individual/coletivo, observador/observado, vivo/inanimado, saber/fazer e
sujeito/objeto.
Uma das características mais genuínas da ciência moderna é o investimento
epistêmico na distinção entre sujeito e objeto, ou seja, entre quem produz o conhecimento e o
que se busca conhecer. Não haveria reciprocidade alguma entre eles, o que garantiria uma
separação absoluta entre as condições do conhecimento e o objeto do conhecimento. Parte-se
do pressuposto de que o produtor de conhecimento, denominado cientista, quando se engaja
na execução de uma pesquisa e escreve seus resultados, faz isso de modo totalmente
impessoal e objetivo, como se o conhecer fosse um processo abstrato no qual o cientista não
se encontrasse subjetivamente implicado, não reconhecendo que “o objeto é a continuação do
sujeito por outros meios” (idem, 1988, p. 83).
O DI como meio de produção de conhecimento (DIMPC) traz como proposta romper
com o modelo tradicional de se produzir ciência. Poderíamos situar o DI no que Santos (2002)
denominou Paradigma Emergente, cuja característica essencial é a busca da superação da
dicotomia sujeito/objeto. Diferente do modelo de pesquisa tradicional (da ciência moderna),
no DI o caráter autobiográfico da ciência é plenamente assumido e não se almeja “a
neutralidade, pois não é considerada possível” (STRINGUETA; COSTA-ROSA, 2007, p.
146). Uma particularidade do DI é que ele vai além da crítica as dicotomias clássicas da
ciência, ele também faz a crítica a divisão social do trabalho que se expressa na dicotomia
saber-fazer. O intercessor-pesquisador não toma os sujeitos do estabelecimento institucional
(trabalhadores e pessoas atendidas) como objeto. Este é sua própria práxis com seu saber, isto
é, o que ele pode vivenciar e experimentar, suas intercessões no campo e, inclusive, os
insucessos na intercessão. Sabemos que cada campo possui sua singularidade e, do mesmo
modo, cada intercessor vai construindo seu caminho, portanto o conhecimento produzido pelo
intercessor no DIMPC é sempre singular, ainda que o texto seja circunstancialmente voltado
para a universidade. Quanto a refletir e escrever sobre seus insucessos, a importância disso
está na oportunidade de buscar entender os seus motivos e em pensar quais os outros
caminhos que poderiam ser construídos naquela proposta de intercessão (MARTINI, 2010).
No DIMPC a produção de conhecimento não é sobre a instituição, seus
estabelecimentos, o trabalhador, os sujeitos atendidos, mas sim para e com estes. A
preposição para, aqui, indica relação de fim. Trata-se de produzir conhecimento a respeito do
processo de produção desse saber na ação e para a ação, de modo a poder instrumentar outros
104

intercessores para que estes possam produzir outras intercessões. Cabe salientar que não se
trata de ensiná-los como operar no campo, mas de instrumentalizá-los, ajudá-los a saber-fazer.
O intercessor sabe que a realidade está sempre em movimento e o conhecimento também, por
isso não pretende uma produção de conhecimento universal. Sabe que tanto a produção de
saber na práxis quanto a produção de conhecimento na universidade são produções locais e
datadas, portanto jamais universalizáveis, mas com potencial de produzir novos devires e
novos intercessores nesses campos.
A universidade é práxis de trabalhadores de outro plano da práxis. Na produção
científica comum, baseada no modelo cartesiano, a produção de conhecimento exclui a
subjetividade e a ciência produz uma única verdade (COSTA-ROSA; PEREIRA, 2011). A
questão que se coloca é: como construir um outro tipo de conhecimento que não apenas
aquele que já tem sido produzido? Eis o que move o intercessor-pesquisador no trabalho de
escrita. Com o DIMPC, pretendemos fazer a crítica a divisão social do trabalho e produzir
reflexões teóricas a partir da posição de trabalhador que pensa sobre seu fazer e sobre seu
campo. Nesse sentido, podemos considerar como um conhecimento outro (saber segundo) que
questiona o modo comum de fazer ciência e possa se inscrever nas brechas de uma
modalidade discursiva que Lacan (1992) nomeou como Discurso Universitário (DU).
O intercessor-pesquisador, ao inserir-se nas brechas do DU, realiza sua produção a
partir de uma outra modalidade de discurso, o “Discurso da Histeria” – DH (LACAN, 1992)
ou Discurso do Sujeito. A estrutura do DH é a função de enigma enquanto tal. Nesse discurso,
o agente é um sujeito dividido que possui uma interrogação. Do mesmo modo que a histérica,
o intercessor detém uma questão. Isso significa que o intercessor-pesquisador se coloca como
sujeito (na posição de agente) e, na sua produção (trabalho) de um conhecimento sobre sua
práxis, “coloca em discussão os saberes estabelecidos que, a partir da experiência da práxis,
poderão ser discutidos, questionados, complementados ou até mesmo redirecionados”
(MIRANDA, 2011, p. 35). Ao intercessor cabe realizar a reflexão no campo epistemológico
porque, no primeiro momento (o do DI enquanto práxis do intercessor), ele era o agente da
práxis junto aos os demais trabalhadores.
Para realizar a reflexão no campo epistemológico, o intercessor-pesquisador retoma
seu Diário de Campo. Os escritos que, no primeiro momento do DI serviam para, a partir da
reflexão, reposicioná-lo na práxis, no segundo momento adquirem uma nova função, a de
servir de ponto de apoio para uma reflexão de cunho epistemológico. No que se refere à
pertinência e à validação dos registros no formato de Diário, entendemos que, assim como as
anotações ou escritas posteriores do psicanalista são cabalmente legítimas, conforme destacou
105

Mezan (2002), também são autênticos os relatos do intercessor. O que dá base ao raciocínio
analítico é o teor dos elementos e suas similaridades, e não um fato isolado, de modo que, se
comparada ao teor geral do discurso, a transcrição fidedigna – que, de fato, jamais seria
possível, sem mesmo com as gravações ou filmagens - possui pouquíssima importância.
Sendo assim, importa a compreensão geral das situações. Destacamos, ainda, que o material
mais precioso é a experiência vivida pelo intercessor, material este que está em sua memória,
mas que não pode ser totalmente transposta para um escrito. Ao servir-se do Diário,
recuperando parte experiência vivida, o intercessor precisa ter claro que esse material deve ser
confrontado com os referenciais teórico e ético que subsidiaram sua práxis, visando a “[...]
abrir campos de discussão” (GALIEGO, 2013, p. 72).
Nesse momento de elaboração de conhecimento no campo da universidade, o
intercessor-pesquisador tem duas funções: 1) a de analista, quando observa os efeitos dos
analisadores no campo; e 2) de analisador, capaz de disparar problematizações em relação aos
saberes instituídos, tendo por consequência a promoção da elaboração de novos saberes, de
novas possibilidades de intercessões. Enquanto agente questionador do saber instituído, o
intercessor-pesquisador procura fazer movimentar a rede não somente de conceitos como
também de significantes instituídos, resultando na produção de um saber dinâmico e de uma
verdade não-toda, pois como disse Lacan (1992, p. 36) “[...] a verdade, nunca se pode dizê-la
a não ser pela metade”. O saber produzido nesse momento é nomeado pela psicanálise “saber
em extensão” (JULIEN, 2002), um saber sobre os processos de produção de saber na práxis.
Poder-se-ia perguntar sobre a finalidade da produção textual no DIMPC. Partimos do
reconhecimento de que a Universidade também pode ser um campo de intercessão com suas
brechas e pulsações. Por isso, interessa ao intercessor produzir um saber segundo, com a
particularidade de não pretender ensinar aos estudantes e aos trabalhadores como devem fazer
as coisas ou produzir uma metodologia ou manual de como operar no campo.
Mas como produzir um texto ou um livro que não se transforme em um manual?
Deleuze e Guattari (1995) almejavam escrever um livro que não fosse livro, cópia da
natureza, um livro que não prescrevesse metodologias. Para eles, o ideal de um livro seria
“expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma única página, sobre uma
mesma paragem: acontecimentos vividos, determinações históricas, conceitos pensados,
indivíduos, grupos e formações sociais”. A solução encontrada por eles foi a do livro-rizoma.

É a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro não é a imagem do


mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há
106

evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a


desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma reterritorialização do
livro, que se desterritorializa por sua vez em si mesmo no mundo (se ele é
disto capaz e se ele pode) (ibidem, p.19-20).

No DIMPC, quando escrevemos um texto – dissertação, tese, artigo ou capítulo de


livro – temos como um ponto de diálogo o que Deleuze e Guattari (ibidem) chamam de livro-
rizoma. Procuramos nos aproximarmos daquilo que a psicanálise do campo de Freud e Lacan
e o Materialismo Histórico já tem claro: há o saber dos livros, saber transformado em
conhecimento e de grande importância, mas esse não pode ocupar o lugar do saber
propriamente dito. Esse, homólogo de um saber que não se escreve por ser sempre outro, é
não-todo e está sempre em movimento.
Essa produção de um saber segundo é dirigida conjunturalmente à Universidade, mas
não obrigatoriamente apenas a ela. Ela se dirige também aos trabalhadores do campo, mas, na
relação com estes, tem vistas apenas a instrumentalizar/formar outros trabalhadores-
intercessores para atuar nos mais variados campos. Pois como escreveu Deleuze (1992, p.
156) “O essencial são os intercessores [...]. Eu preciso dos meus intercessores para me
exprimir, e eles jamais se exprimiriam sem mim: sempre se trabalha em vários, mesmo
quando isso não se vê”.

3.6 Qual o lugar do psicólogo precavido pela psicanálise na AS?

A PNAS e a implantação do SUAS têm pouco mais de dez anos e, em decorrência


disso, o trabalho do psicólogo nos estabelecimentos assistenciais da AS tais como estão
configurados – CRAS, CREAS, Centro Pop, Casa de Acolhimento, entre outros – também é
significativamente recente se comparado ao percurso desse profissional no campo da Saúde,
por exemplo.
A Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (BRASIL, 2006) determina que
os CRAS e CREAS tenham o psicólogo como parte integrante das equipes dos
estabelecimentos. Nos CRAS de pequeno porte ele é colocado como preferencial (não
obrigatório), mas nos CRAS de médio e grande porte sua presença consta como obrigatória,
assim como nos CREAS. O profissional psicólogo também faz parte das equipes de referência
para atendimento psicossocial em Abrigo Institucional, Casa Lar e Casa de Passagem. Ele
também trabalha nas equipes de referência para atendimento psicossocial vinculadas ao órgão
gestor, prestando atendimento à Família Acolhedora, à República e a Instituições de Longa
107

Permanência para Idosos (ILPSs). Se há um lugar para o psicólogo na AS, ele não é previsto
no caso dos psicanalistas, no entanto isso não significa que trabalhadores precavidos pela
psicanálise não possam tê-la como um referencial teórico e ético para suas práticas nos mais
diversos âmbitos institucionais. Para pensar a especificidade da psicanálise do campo da AS é
necessário levantar alguns pontos fundamentais: traçar o percurso da psicanálise na AS e falar
da população atendida por ela e de seu contexto.
Mas quais circunstâncias estão colocadas no campo da AS? Situar a população
atendida e seu contexto tem como função marcar a diferença desse trabalho e delimitar o lugar
de onde intervimos. As pessoas que vêm solicitar ajuda ou mesmo aquelas que são abordadas
por meio da busca ativa geralmente trazem como marca o sofrimento de estarem à margem da
sociedade, vivendo em condições precárias, excluídas do acesso aos bens socialmente
produzidos, muitas vezes vivenciando situações de violência e desamparadas socialmente.
Esse desamparo diz respeito à falta de ações das políticas públicas que proporcionem aos
sujeitos e suas famílias condições para uma vida digna. De acordo com Soares, Susin e
Warpechowski (2010), a violência que esses sujeitos vivenciam tem início muitas vezes no
desamparo que viveram durante a infância, na ausência de reconhecimento de sua origem e de
sua história, e mesmo na violência de não possuir “um lugar para viver, sendo expropriados
de seus bens em prol de interesses políticos, sociais e econômicos, alijados dos espaços da
cidade e sem lugar no tecido social” (ibidem, p. 152).
À medida que lhes é negado o direito a um lugar no tecido social, esses sujeitos são
separados de sua condição de cidadãos. A cidade não os acolhe e eles muitas vezes não se
sentem parte dela. Essa perda da condição de cidadania pode começar muito cedo, desde a
infância. Muitas crianças e adolescentes perdem o tempo de constituição subjetiva por
necessitarem trabalhar, e acabam abandonando a escola. Em alguns casos ocorre a inversão
dos lugares e os pais não conseguem exercer seu papel de protetores das crianças. Os
adolescentes não encontram a possibilidade de circulação em espaços onde impera o
consumo. Para muitas famílias, a única forma de conseguir uma renda é por meio da
mendicância e da catação de material reciclável, uma vez que elas são excluídas de outras
formas de trabalho socialmente valorizadas. Há ainda a questão da moradia: muitas vezes
esses sujeitos habitam áreas irregulares, até mesmo de risco, e por esse motivo permanecem
desatendidos em suas necessidades no que se refere à urbanização – água tratada, esgoto,
energia elétrica, coleta de lixo, escolas públicas e UBSs próximas –, ficando à margem do que
a cidade pode oferecer.
108

O lugar reservado pela sociedade a esses sujeitos é o de resto, de rebotalho social. Em


alguns casos eles sequer existem do ponto de vista formal, uma vez que não possuem
documentos – certidão de nascimento e registro geral (identidade) –, passando ao largo da
possibilidade de conquistar um emprego formal ou abrir uma conta em banco. Em diversas
situações, acaba sendo necessária a intervenção de um trabalhador da AS, inclusive para
viabilizar o acesso a documentos pessoais básicos, para que esses sujeitos possam abrir uma
conta bancária para recebimento do Bolsa Família e/ou matricular uma criança na escola. Há
também casos em que o sujeito recorre à AS para que atestem sua pobreza, pois somente
desse modo ele poderá ter acesso aos programas de transferência de renda e a outros serviços.
Diante desse cenário, cabe interrogar que sujeitos são estes que necessitam que o outro
– na figura do trabalhador da AS – lhes ateste e/ou viabilize algo. Que tipo de comprovação
e/ou mediação está em jogo? E como colocaram Soares, Susin e Warpechowski (2010, p. 153)
“O que o outro tem que lhe outorgar que o próprio sujeito não dá conta?” Essas questões dão
uma breve dimensão do lugar que está demarcado para esses sujeitos, cujas palavras e
comprovantes não tem valor e que “não conseguem se representar, se fazer ouvir e respeitar
desde seu nome próprio” (ibidem). O efeito disso muitas vezes acaba sendo o embotamento
e/ou o apagamento da posição desejante.
A AS trabalha com a perspectiva do Sujeito de Direitos, mas esta não inclui o Sujeito
do Desejo tal como define a Psicanálise do campo de Freud e Lacan, conforme indicado, por
exemplo, por Benelli (2014a, 2014b) e por Benelli e Costa-Rosa (2012). O Estado prevê o
surgimento de um conjunto de demandas sociais nos estabelecimentos assistenciais, mas “[...]
não prevê a emergência da subjetividade” (MARIANO, 2011) nesses espaços. Ainda que os
documentos da AS coloquem em destaque a autonomia e o protagonismo do sujeito, trata-se
apenas do sujeito no plano da consciência (o sujeito cartesiano), que não abarca a dimensão
de Sujeito do Desejo inconsciente.
Em presença disso, é possível levantar algumas questões: a psicanálise é pertinente
para a AS? Quais são seus limites e possibilidades? E o que pode o psicólogo – precavido
pela psicanálise do campo de Freud e Lacan – trabalhador da AS? Qual a contribuição da
psicanálise, enquanto norteadora da ética da escuta do Sujeito do Desejo inconsciente, para o
campo da AS? Quais as possibilidades de trabalho em equipe e qual posição esse(a)
psicólogo(a) ocupará nela?
Freud, o criador da psicanálise, em 1919(18), no texto Linhas de progresso na terapia
analítica, postulava que em algum momento a psicanálise deixaria de restringir-se apenas a
109

algumas camadas da sociedade e que o Estado poderia vir a ofertar o tratamento psíquico para
as pessoas menos abastadas. Conforme aponta Freud (1996, p. 180-181):

[…] é possível prever que, mais cedo ou mais tarde, a consciência da


sociedade despertará, e lembrar-se-á de que o pobre tem exatamente tanto
direito a uma assistência à sua mente, quanto o tem, agora, à ajuda oferecida
pela cirurgia, e de que as neuroses ameaçam a saúde pública não menos do
que a tuberculose, de que, como esta, também não podem ser deixadas aos
cuidados impotentes de membros individuais da comunidade […]. Pode ser
que passe um longo tempo antes que o Estado chegue a compreender como
são urgentes esses deveres […]. Provavelmente essas instituições iniciar-se-
ão graças à caridade privada. Mais cedo ou mais tarde, contudo, chegaremos
a isso.

O mesmo Freud também já antecipava que os psicanalistas teriam o desafio de adaptar


a técnica da psicanálise a novas condições. Dadas as condições de vida sem atrativo algum
que a parcela mais empobrecida da população possui, Freud (ibidem, p. 181) já previra ser
provável que “[…] só poderemos conseguir alguma coisa combinando a assistência mental
com certo apoio material”.
Na conferência nomeada Caminhos da terapêutica analítica, realizada em 1918, ele já
explicitara que os psicanalistas não pretendiam haver chegado a um saber acabado e estavam
abertos modificar o método se isso pudesse resultar em seu progresso. Mas como Freud já
alertava desde 1923, qualquer que seja a forma com que se realize a psicoterapia voltada para
o povo, “os seus ingredientes mais efetivos e mais importantes continuarão a ser, certamente,
aqueles tomados à psicanálise estrita e não tendenciosa” (ibidem, p. 181).
Freud deu o passo inicial para pensar a psicanálise em outros lócus que não a clínica
tradicional e desde suas colocações iniciais até os dias atuais “[...] há uma longa história da
contribuição da psicanálise no âmbito das instituições públicas” (SCARPARO; POLI, 2010,
p. 126). Guerra (2010), ao pensar a psicanálise fora do seu lócus comum, explicita que um
psicanalista pode operar nas diversas circunstâncias às quais for convocado, desde que regido
pela dimensão ética. O lugar do analista é de colocar a trabalhar o sintoma, seja ele do sujeito
ou da instituição/estabelecimento. Não cabe ao analista a “[...] colaboração com os ideais do
mestre contemporâneo (pactuando com os ditames institucionais ou adaptacionistas e
carregando a miséria do mundo nos ombros)” (ibidem, p. 98).
O trabalho na AS é marcado por um conjunto de situações as mais diversas: o sujeito
que está com sua vida em risco, a adolescente que vende seu corpo para conseguir dinheiro, a
criança que precisa vender bala nos semáforos para poder se alimentar, a mãe que cuida dos
filhos sozinha por conta da ausência do pai, etc. O psicólogo poderia se sentir paralisado se
110

tomasse essas cenas pela via do imaginário. O trabalhador poderia, ainda, intervir a partir de
um viés pedagógico, sugestivo e normalizador, sem ter em conta que o próprio sujeito pode
construir suas próprias respostas. O diferencial da psicanálise é que ela não oferece
significantes (o pobre, o coitado, o assistido, etc.) em que o sujeito deva alojar-se e não opera
colocando ideias (sociais) às quais o sujeito precisa corresponder (FINK, 1998).
A instituição AS supõe um cidadão debilitado e tem como pretensão completá-lo, seja
por meio dos programas de transferência de renda ou de outros programas e projetos. Por
outro lado, o trabalhador precavido pela psicanálise oferta uma escuta que possibilita ao
sujeito começar a se haver com seu sintoma e sua falta-a-ser. É imprescindível que o
trabalhador esteja precavido pelos impossíveis freudianos41 para não cair na impotência de
não poder resolver pelo sujeito o que só cabe a ele resolver. A grande tarefa do trabalhador
precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan é a de sustentar um espaço de escuta
que leve em consideração os sintomas do sujeito e o modo como cada um se posiciona em
relação ao desejo. A aposta é supor um sujeito que possa interrogar-se sobre a própria história,
sobre os significantes que o marcaram, abrindo caminho para saber sobre seu próprio desejo.
Mariano (2011) demarca a Intervenção Retificadora (IR) como uma ferramenta do
trabalhador – precavido pela psicanálise – na AS. Esta acontece em quatro momentos. O
primeiro momento é o da queixa, quando o sujeito chega queixando-se de sofrer. É no
esvaziamento da queixa que se abre caminho para o segundo momento, que é o da demanda,
ou seja, quando o sujeito elabora um pedido de ajuda dirigindo-se para o outro, que o escuta.
O terceiro momento é o da Intervenção, em que, diante da fala do sujeito, o trabalhador o
confronta com a questão: “Qual é a parte de responsabilidade que lhe cabe sobre a sua
queixa?”, abrindo caminho para a retificação subjetiva, isto é, a passagem da queixa dos
outros para a queixa acerca de si. No quarto momento da IR, pode abrir-se para o sujeito um
enigma – relacionado à verdade do sujeito – que seja capaz de produzir a sua divisão
subjetiva. A IR não pretende funcionar como uma oferta de análise para um sujeito atendido
no âmbito da AS e sim proporcionar-lhe uma primeira oportunidade para que possa
responsabilizar-se por sua posição frente às coisas que o fazem sofrer, uma vez que ele
também é parte responsável pelas mazelas que ocorrem em sua vida.
Concordamos com Soares, Susin e Warpechowski (2010, p. 153) quando demarcam
que o trabalho na AS implica “romper com a identificação do sujeito que recorre à AS como

41
Quanto ao sujeito humano, aprendemos com Freud (1975, p.282) que “[...] quase parece como se a análise
fosse a terceira daquelas profissões ‘impossíveis’ quanto às quais de antemão se pode estar seguro de chegar a
resultados insatisfatórios. As outras duas, conhecidas há muito tempo, são a educação e o governo”.
111

alguém que vem ‘pedir algo’, visando não devolver a resposta somente na via do recurso
material, mas, sim, abrir um espaço de fala”, o que possibilita recolocar a condição de sujeito
desejante e, nessa medida, abrir via para o exercício da cidadania. Contudo, necessitamos ter
claro que:

O sujeito não é o cidadão. Um e outro representam duas posturas,


emergência ou constituição de um sentido. O cidadão é de início, um,
qualquer um; o sujeito é singularidade que se afirma por ocasião de um
acontecimento a quem ele passa a dever fidelidade (GARCIA, s.d., online).

A escuta, nos moldes da clínica ampliada ou na perspectiva de uma ampliação da


psicanálise em intensão, fornece ao sujeito um espaço de reconhecimento subjetivo em que
ele poderá se haver com os significantes que o marcaram e o alienaram. Cabe demarcar que
não se trata de produzir uma análise, mas de possibilitar que o sujeito comece a questionar-se
acerca do seu sintoma e do seu desejo. E em se tratando da construção da escuta na instituição
AS, ela implica que haja múltiplas transferências, como com os estabelecimentos
assistenciais, com o coletivo de trabalho e também com um conjunto de outros serviços – de
Saúde, de Educação, o Conselho Tutelar, o Fórum, entre outros – em que os sujeitos e suas
famílias são atendidos. Desse modo, há um atravessamento de diversos discursos
institucionais que buscam ofertar um suporte aos sujeitos e quando os serviços estão
articulados, trabalhando em rede, o sujeito pode se beneficiar. A escuta clínica realizada pelo
trabalhador da AS pode fazer a diferença, por exemplo, na discussão do caso com outros
serviços, pois o trabalhador-intercessor “[...] tem o compromisso de garantir valor à palavra
do sujeito” (SOARES; SUSIN; WARPECHOWSKI, 2010, p. 159) mesmo que isso muitas
vezes vá de encontro aos ideais das instituições sociais42. Na clínica ampliada o trabalho não
se limita a escutar o sujeito, pois pode haver desdobramentos dessa escuta como, por
exemplo, o acionamento de trabalhadores de outros setores – sob a perspectiva da
intersetorialidade – para garantir o acesso do sujeito a outras instituições e aos seus
estabelecimentos.

42
“No plano da assistência aos pobres de todas as idades, as práticas realizadas e os discursos enunciados por
diversos conjuntos de atores sociais ao longo da história, incluindo-se grupos de diferentes denominações
religiosas, de industriais e de empresários, de autoridades políticas, de juristas, de médicos, de psiquiatras, de
pedagogos, assistentes sociais, educadores e psicólogos, podem ser nomeados com muitos significantes: ajuda,
auxílio, proteção, fazer o bem, assistir, promover, reprimir, prevenir, corrigir, reformar, regenerar, reeducar,
aconselhar, ressocializar, formar pessoas de bem. É importante enunciá-los todos, de modo sistemático, pois
radicalizar a análise permite dar mais visibilidade ao que se pretende superar, incluindo tanto a crítica quanto a
denúncia, sem concessões suavizadoras”. (BENELLI, 2016, p. 741-742).
112

Falar da escuta realizada pelo trabalhador precavido pela psicanálise do campo de


Freud e Lacan implica necessariamente demarcar seu posicionamento no laço social.
Enquanto trabalhador de uma instituição/estabelecimento que tem como proposta procurar
resolver, muitas vezes rapidamente, situações consideradas problemáticas – mas
desconsiderando sua complexidade –, a psicanálise e sua ética representam uma baliza para
que o trabalhador não responda pela via do imaginário, driblando o modo comum de resposta
da instituição/estabelecimento e possibilitando que o próprio sujeito comece a elaborar
pessoalmente suas respostas para solucionar seus impasses. Isso demanda do trabalhador estar
posicionado de um modo específico no laço social.

3.7 Os discursos como laços sociais de produção na Assistência Social

De acordo com os ensinamentos de Lacan (1992) no Seminário 17: o avesso da


psicanálise, toda forma de fazer enlace social é constituída a partir de uma modalidade de
discurso. Sendo assim, esses discursos também se presentificam na práxis no campo da AS,
produzindo agenciamentos mais tuteladores e disciplinadores ou mais singularizantes. Os
quatro discursos são: o Discurso do Mestre, o Discurso da Universidade, o Discurso da
Histérica (ou do Sujeito) e o Discurso do Analista. Essas modalidades de laços sociais, de
acordo com Quinet (2012), correspondem ao que Freud indicou como profissões impossíveis:
governar, educar e psicanalisar. A estas, em termos de teorização, Lacan acrescenta um
impossível: o fazer desejar.
Lacan (1992) recorre a Teoria dos Conjuntos da Matemática e utiliza-se da
“permutação circular” para propor quatro lugares para a estrutura do discurso: o agente, a
verdade, o outro e a produção. Esses quatro lugares (quadrantes) são ocupados por quatro
elementos da álgebra lacaniana – respectivamente: a, $, S1 e S2 – sendo que cada elemento
terá uma conotação específica dependendo do lugar que ocupar na estrutura discursiva. As
barras horizontais indicam supressão ou velamento do que está embaixo e as barras paralelas
(//) indicam existir uma interdição entre produção e verdade. Desse modo, lemos a estrutura
do discurso: um agente, que movido por sua verdade, agencia um outro, que, por sua vez,
responde com uma produção.
113

Figura 1. Composição dos quatro lugares da estrutura do discurso como laço social

O que caracteriza cada discurso é aquilo que ocupa o lugar de agente. Teremos a
configuração de um discurso a cada um quarto de giro em sentido horário na permutação
circular dos elementos.

Figura 2. Os quatro discursos como laços sociais propostos por Lacan

Desse modo, no Discurso do Mestre (DM) temos o mestre (S1) agenciando o outro
(S2) como detentor de um saber-fazer, impulsionando-o a produzir um saber que será
expropriado dele e útil ao mestre, uma vez que é a partir desse saber extraído do outro que ele
proferirá uma ordem (“Faça isso!”). Nesse discurso, a verdade escamoteada pelo mestre é sua
condição de falta-a-ser. Nele, “o que domina é o poder sobre o outro e a produção é o gozo
(a), ‘mais gozar’ que, tal como a mais-valia na luta de classes, não é apropriado por aquele
que produz” (PÉRICO, 2014, p. 74). Não seria exatamente desse modo que muitos
profissionais da AS se posicionam ao atender os sujeitos?
Com o movimento de um quarto de giro em sentido anti-horário partindo do discurso
do mestre, temos o Discurso da Histeria (DH). Nesse discurso, vemos um sujeito em sua
divisão subjetiva ($) interpelando o outro tomado como mestre (S1) para que este produza o
saber (S2) que supostamente daria conta de seu sofrimento ou de sua questão (a). No DH, o
desejante “se autoriza de seu gozo impelindo o outro, elevado à categoria de mestre, a
produzir um saber sobre sua verdade sexual” (QUINET, 2012, p. 56). E em virtude de colocar
o outro no lugar da mestria, esse laço social também pode ser referido como “discurso da
114

demanda” (PÉRICO, 2014, p. 77). Os sujeitos, quando procuram a AS, muitas vezes chegam
situados a partir dessa modalidade de discurso, demandando aos trabalhadores (mestres) que
estes possam resolver sua questão.
Partindo do discurso do mestre, se realizarmos um quarto de volta em sentido anti-
horário teremos o Discurso da Universidade (DU). Neste, encontramos o saber enciclopédico
(S2), saber dos livros, agenciando o outro (a) como objeto de ensino ou de pesquisa, tendo
como resultado a supressão da singularidade do sujeito ($). Esse discurso possui como
verdade recalcada o autor (S1). O DU, segundo Quinet (2012, p. 55), “é também o laço que
constitui a burocracia, em que o burocrata se autoriza de uma regra (S1) para mandar no
funcionário”. No campo assistencial podemos encontrar um conjunto de práticas que podem
ser situadas nessa modalidade de laço social, por exemplo nos cursos ofertados nos
estabelecimentos assistenciais (artesanato, culinária, entre outros), mas também nas oficinas
em que se trabalham os direitos sociais.
Se, a partir do DU, dermos mais um quarto de volta em sentido anti-horário,
chegaremos ao Discurso do Analista (DA) que é o único que trata o outro como sujeito ($).
No DA, o analista, no lugar de agente, ao não responder à demanda do sujeito no DH,
posiciona-se como semblante do objeto (causa) de desejo, impulsionando o sujeito ($) a
produzir seus próprios significantes mestres (S1). O sujeito, nesse discurso, é um sujeito ativo
e que trabalha, que “produz o significante de sua singularidade – os seus significantes
mestres” (ibidem, p. 56). A verdade nesse discurso é o fato de o analista colocar seu saber
enciclopédico em suspenso para operar com o que Lacan nomeou “ignorância douta”.
Conforme disse Lacan (1992, p. 35), “Se o analista não toma a palavra, o que pode advir
dessa produção fervilhante de S1? Certamente muitas coisas”. Entendemos que o DA,
enquanto modalidade de enlace social, pode ser um necessário posicionamento quando se tem
como horizonte ético não somente o protagonismo e a autonomia do sujeito, como a produção
de subjetividade singularizada e desejante.

3.8 Considerações finais

As políticas públicas, como a Educação e a Saúde, em virtude de seu caráter universal,


são construídas considerando o conjunto da população como uma massa homogênea,
desconsiderando a individualidade dos sujeitos e principalmente a sua singularidade. A
política social de AS, enquanto uma resposta do Estado brasileiro ao conjunto das expressões
da questão social no MCP, traz em seu bojo – muito mais enquanto horizonte do que
115

plenamente efetivado – a dimensão do sujeito de direitos. Mas, “[...] a possibilidade de


reconhecer um sujeito de direitos vai além da legitimação de um ‘indivíduo de direitos’”
(SCARPARO; POLI, 2010, p. 137). A instituição AS sequer prevê a existência e a
emergência do Sujeito do Desejo inconsciente. Em virtude disso, coube refletirmos sobre a
pertinência e as contribuições da psicanálise do campo de Freud e Lacan para esse campo.
O DI, que tem como um dos seus pilares de sustentação a psicanálise, além de outros
referenciais, tais como o Materialismo Histórico, a AI e a Filosofia da Diferença, nos serviu,
em um primeiro momento, de ferramenta para nos posicionarmos na práxis comum e,
posteriormente, para refletir sobre aquele primeiro momento da inserção no campo. O papel
de intercessor no estabelecimento institucional é contribuir no sentido de promover e
fortalecer os processos instituintes a partir de um posicionamento que impulsione a atividade
questionadora e criativa por parte dos trabalhadores. No que diz respeito ao segundo momento
do DI, o DIMPC, procura-se tencionar o campo da ciência realizando uma inversão no modo
comum de se produzir conhecimento: em vez de haver uma apropriação do saber da práxis
pela ciência, o conhecimento produzido pela ciência é que será utilizado para impulsionar a
reflexão crítica e a construção de novos saberes na práxis.
Conforme assinalam Soares, Susin e Warpechowski (2010, p. 157) “nem sempre os
ideais institucionais coincidem com o que o sujeito quer, ou lhe é possível”. As autoras ainda
apontam que compete aos trabalhadores trazer o universal da política ao particular de cada
sujeito e “possibilitar que o que é da ordem do singular possa vir a influenciar na formulação
das políticas” (ibidem, p. 160). Sendo assim, cabe ao trabalhador precavido pela psicanálise,
por meio de sua escuta, não pretender formatar o sujeito e sim dar valor à palavra dele.
Entendemos que a AS é um campo fértil se estivermos imbuídos da perspectiva da clínica
ampliada. O trabalhador, por fazer parte de uma instituição/estabelecimento que executa uma
política social que é responsável por promover os direitos assistenciais, não pode deixar de
responder a essa função, mas pode começar a instaurar um novo modo de realizar atenção
socioassistencial que inclua a escuta clínica articulada a esses direitos.
A clínica ampliada traz como perspectiva uma ampliação do setting de atendimento,
abrindo espaço para que se realize uma escuta fora dos moldes tradicionais da clínica. A não
existência de um setting tradicional não se configura como um problema para a psicanálise,
uma vez que o que baliza a escuta não é o espaço físico, mas sim, sobretudo, a ética. Desse
modo, os mais diversos contextos – visita domiciliar, abordagem de rua, oficinas, entrevista,
passeios, entre outros – podem constituir-se como dispositivos clínicos. Atuando de modo
implicado nesses dispositivos, o trabalhador precavido pela psicanálise de Freud e Lacan, ao
116

privilegiar a escuta do sujeito, abre caminho para que ele possa sair do lugar de objeto –
inclusive da instituição/estabelecimento e dos trabalhadores – e começar a se colocar no lugar
de sujeito desejante, possibilitando que ele dê passos na direção da construção de sua
cidadania.
Ao retomarmos nossas próprias perguntas, começamos a deparar-nos com alguns
ensaios de respostas. Operar com a psicanálise de Freud e Lacan na AS se mostra não apenas
pertinente, como também relevante, uma vez que possibilita a escuta para além do sujeito de
direitos, isto é, a escuta do Sujeito do Desejo inconsciente, possibilitando a implicação tanto
subjetiva como sociocultural. Partilhamos da posição de Benelli (2014b, p. 283) que afirma
que

A luta pelos direitos de cidadania e também pela posição de sujeito desejante


da população que utiliza tais programas, projetos e serviços pode e deve ser,
hoje, um esforço visando à transformação da realidade institucional e social,
que se limita, muitas vezes, quase que somente a gerenciar os “riscos” aos
quais os pobres e seus filhos estão sujeitos.

Lutar pela posição de sujeito desejante da população traz a necessidade de se incluir a


dimensão do inconsciente na execução da atenção socioassistencial. Isso não significa que os
profissionais – psicólogos, assistentes sociais, educadores sociais, entre outros – necessitem
tornar-se psicanalistas, mas que a ética da psicanálise pode ser tomada também como uma
importante norteadora do trabalho no campo da AS. Ainda que o atendimento aos sujeitos,
muitas vezes, envolva a oferta e a garantia de recursos materiais (por meio dos programas de
transferência de renda) e sociais (por meio de inclusão em projetos, oficinas, ente outros), é
necessário e possível sair do lugar de mestria (pedagógico/educativo) e fazer ofertas
transferenciais de cunho mais simbólico. “Ali onde o sujeito não tem voz (nem vez), que a
resposta seja a escuta, antes de mais ‘nada’” (SCARPARO; POLI, 2010, p. 146). E como
efeito dessa escuta decorre a promoção da implicação subjetiva e sociocultural dos sujeitos,
um caminho rumo à cidadania.

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121

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Refletir sobre as políticas sociais em geral, e, de modo mais particular, sobre a política
de AS e o trabalho do psicólogo – precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan –
neste campo demanda considerá-la no contexto das contradições de uma sociedade organizada
pelo MCP. De acordo com Vieira (1992, p. 22) “a política social é uma maneira de expressar
as relações sociais cujas raízes se localizam no mundo da produção”. Na sociedade capitalista
o Estado é perpassado pelas contradições do MCP e, objetivado por meio de instituições,
organiza a reprodução das relações sociais fazendo o papel de regulador dessas relações. A
forma com que o Estado está organizado e suas características possuem um papel
determinante no surgimento e ampliação de políticas que fazem face aos interesses dos
diferentes membros de uma sociedade, seja da elite ou dos pobres. Sendo assim, as políticas
sociais necessitam ser pensadas enquanto respostas do Estado às expressões da “questão
social” e estando situadas no confronto de interesses de classes sociais distintas. Elas
constituem-se enquanto uma resposta do Estado à materialização das contradições entre
capital e trabalho e tem como objetivo reduzir ou mesmo compensar os efeitos nefastos de um
modo de produção organizado sob a égide do Capital, expresso nas mais variadas expressões
da “questão social”. Contraditoriamente, há uma dupla funcionalidade nestas políticas, pois se
por um lado asseguram a reprodução do Capital, por outro lado incorporam algumas
demandas dos trabalhadores. O Estado, na busca de obter legitimação por meio do jogo
democrático, é permeável a demandas dos setores empobrecidos da população que podem
fazer incidir suas reivindicações na agenda política.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 demarcou a obrigação do Estado de garantir
um conjunto de ações cuja finalidade é assegurar os direitos relativos à Saúde, à Previdência
Social e à AS, enquanto tripé da Seguridade Social brasileira. Essa representa uma das
principais conquistas da Constituição, pois houve um avanço na concepção e ampliação do
acesso aos direitos sociais após 1988. A constituição da Seguridade Social trouxe algumas
inovações no campo das políticas sociais, principalmente para a AS, no que se refere a gestão
e organização. Enquanto política de proteção social, inserida na Seguridade Social, a AS
passou a situar-se no campo dos direitos e da responsabilidade estatal. Mas apesar do avanço
constitucional, a AS só foi regulamentada em 1993 e efetivada a partir de 1995.
A regulamentação por meio da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) (BRASIL,
1993) e o início da implantação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) inauguraram
a construção de um novo tempo para a AS. Mas devido à sua forte vinculação histórica com a
122

caridade, a filantropia e o assistencialismo, ainda há um longo percurso para a consolidação


da AS como um direito social. Por muito tempo a execução da AS ficou a cargo da igreja, de
entidades filantrópicas e assistencialistas, com práticas que podem ser situadas no Paradigma
Caridoso Filantrópico Assistencialista (PCFA). A herança assistencialista que se consolidou a
partir da matriz do favor, do mando, do clientelismo e do apadrinhamento (YAZBEK, 2007)
consolidou práticas assistencialistas, clientelistas e patrimonialistas, além de uma cultura de
tutela, formas que ainda precisam ser paulatinamente rompidas para a consolidação da AS
como um direito de cidadania. Apesar dos avanços, uma das grandes dificuldades existentes
no curso das mudanças na AS é a cultura da ajuda e da caridade em detrimento da consciência
crítica acerca do dever do Estado de garantir um direito social.
A criação da Política Nacional de Assistência Social (PNAS) e a implantação do
Sistema Único de Assistência Social (SUAS) no Brasil trouxe uma série de avanços,
especialmente no que tange a instrumentos para a superação do PCFA e elevação da AS ao
estatuto de uma política social. Todavia, uma análise do SUAS mostra que, enquanto conjunto
institucional a serviço de uma política social, por ter sido baseado na estrutura do Sistema
Único de Saúde (SUS), herdou desse uma de suas formas de ação mais perversas: a de
deslocar para os sujeitos e à família a responsabilidade de resolver os problemas que são
efeitos produzidos pelo MCP. Ainda que no discurso da AS ganhe destaque o tema da
promoção de autonomia dos sujeitos, uma análise mais aprofundada dele e das práticas revela
que muitas vezes ainda se realiza, sobretudo, o controle da pobreza e a gestão dos riscos
sociais.
Ao fazer esta análise não estamos querendo dizer que o Estado não deva ser
responsável pela execução de AS e nem que os trabalhadores e sujeitos não devam lutar por
ela. A AS foi definida como um direito na Constituição Federal e deve ser não somente
garantida como também ampliada, entretanto, não deve ser tomada como a panaceia quanto à
solução da desigualdade social. O SUAS é uma conquista, no entanto, está permeado por
contradições diversas, uma vez que sua construção se dá no bojo da luta de classes. É
necessário ter claro que ainda há um longo percurso a percorrer – inclusive no que se refere a
luta por hegemonia paradigmática –, tanto no plano da política e organização do sistema (pela
manutenção e ampliação da AS) quanto no das práticas dos trabalhadores.
Enquanto peça fundamental no Processo de Estratégia de Hegemonia (PEH), a AS, no
âmbito de suas práticas, pode garantir a reprodução de relações sociais dominantes que tem
como efeito a produção de subjetividades capitalísticas, serializadas e alienadas, ou então ser
um dispositivo de produção de novas relações sociais que tenham como efeito a produção de
123

subjetividades mais singulares, criativas e desejantes. O tipo de [re]produção institucional irá


depender de qual paradigma – PCFA ou PSD – estiver organizando sob sua lógica os
discursos, os saberes e as práticas institucionais. Conforme Souza (2015), a promulgação da
LOAS e a implantação do SUAS abriu uma importante brecha para a mudança do paradigma
PCFA para o PSD, o qual possui como horizonte a produção de subjetividade singularizada e
desejante e cuja ética se orienta na direção do desejo, do carecimento e do protagonismo do
sujeito.
Os trabalhadores são peças fundamentais para os movimentos instituintes na AS e a
consequente mudança paradigmática – do PCFA ao PSD. A construção de uma AS mais
condizente com as necessidades e os desejos dos sujeitos (ditos usuários) necessita ser feita a
partir de uma parceria entre atores institucionais – trabalhadores e os próprios sujeitos
atendidos. Somente o rompimento com os discursos e práticas situadas no PCFA e a
construção de práticas orientadas por uma outra lógica paradigmática poderá promover de
fato o protagonismo e a autonomia dos sujeitos atendidos. Ainda que o PCFA pareça ser
inabalável, apostamos que seja possível ir construindo um outro modo de realizar atenção
sócio assistencial por meio das micropolíticas. O PSD, enquanto horizonte, pode servir de
inspiração aos trabalhadores que por ventura desejem se posicionar de modo crítico e ético em
prol dos sujeitos.
Há um conjunto de questões a serem consideradas pelos trabalhadores que estejam
implicados com a AS. É imprescindível que realizem uma apropriação dos documentos da AS
e possam fazer uma reflexão constante e crítica sobre eles. É necessário também um olhar
problematizador sobre as práticas desenvolvidas nos estabelecimentos assistenciais para que
essas não tenham efeitos disciplinadores e tuteladores dos sujeitos atendidos. Isso demanda
que o(a) trabalhador(a) possa se instrumentalizar com referenciais teóricos, éticos e políticos
de natureza interdisciplinar – e mesmo transdisciplinar – que possam dar subsídios para a
construção de práticas que visem a defesa da cidadania, a promoção de autonomia e o
protagonismo dos sujeitos.
No que se refere especificamente ao psicólogo, o trabalho na AS ainda constitui um
grande desafio aos profissionais por uma diversidade de motivos. No plano institucional da
política social de AS ainda estão presentes “a falta de recursos disponibilizados pelo Estado
para infraestrutura e a falta de material para capacitação dos profissionais, o que concorre para
dificuldades nas condições para o trabalho” (ALBERTO; FREIRE; LEITE, et al, 2014, p.
161). Em suma: o Estado e os municípios não ofertam suportes suficientes para que o
profissional psi e os demais trabalhadores possam efetivar a garantia de direitos. Nesse
124

mesmo plano há, ainda, outros entraves: a desarticulação da rede, a falta de equipes
consolidadas e capacitadas e o pouco conhecimento dos trabalhadores e sujeitos sobre o
SUAS.
No plano das práticas psicológicas no SUAS evidencia-se que muitas delas acabam
sendo muito mais de controle do que de cuidado e defesa de direitos, realizando a gestão da
pobreza e a ortopedia das condutas dos sujeitos atendidos. Nesse sentido, ao problematizar a
construção do objeto de intervenção da Psicologia e seus efeitos, Canguilhem (1972) assinala
que, apesar dos inúmeros projetos metodológicos, a Psicologia historicamente fez ciência
referenciada na teoria geral das condutas, definindo o que é conduta normal e patológica. E
apesar de que, nas últimas décadas vem acontecendo um movimento de crítica a esse modelo
e a proposição de novos olhares e modos de atuar, conforme Pedro e Moreira (2013, p. 74)
destacam “[...] a Psicologia parece ainda deambular por entre vias que, com certa frequência,
silenciam o outro: os sujeitos com quem trabalha e/ou os objetos de sua intervenção na AS”.
Por outro lado já há um conjunto de trabalhadores que vêm se propondo a executar novas
práticas mais condizentes com o desejo e necessidade dos sujeitos atendidos. Também é
possível encontrar na literatura um conjunto de trabalhos que fazem a crítica às tecnologias
disciplinares e aos processos de normalização social e que avançam para uma clínica
ampliada – inspirada no que se tem feito do SUS – no campo da AS, contudo, muitos desses
trabalhos ainda permanecem somente no plano do sujeito social e histórico (BENELLI, 2014).
Quando se visa ao homem como sujeito é fundamental incluir, além das dimensões
culturais, sociais, políticas e históricas, também uma característica que o distingue: ser um
sujeito de linguagem e de desejo (BENELLI, 2014). O Sujeito é desejo! Lacan (1988) afirma
que a única coisa da qual se pode ser culpado é de ter cedido de seu desejo. Mas afinal, o que
um sujeito deseja? O que é possível, a partir de Freud, é cada um se interrogar acerca de seu
próprio desejo. A ética da psicanálise coloca o sujeito diante da pergunta formulada por Lacan
(idem, p. 364) “Agiste em conformidade com teu desejo?”, cuja resposta só poderá ser dada
pelo próprio sujeito, portanto, uma resposta singular. Eis a essencial contribuição da
Psicanálise do campo de Freud e Lacan para o campo da AS: ofertar a possibilidade do sujeito
se interrogar acerca do seu desejo, produzir saber sobre si e resolver os seus impasses. A
grosso modo deslocar-se do lugar de objeto (coadjuvante) de intervenção da caridade,
filantropia e assistencialismo para assumir o lugar de sujeito de direitos, ou melhor,
protagonista de sua história, sem desconsiderar as contradições da realidade onde habita.
A Psicanálise de Freud e Lacan considera que a subjetividade inclui necessariamente o
plano do inconsciente, os três registros – real, simbólico e imaginário –, os processos de
125

constituição do sujeito (alienação e separação), as modalizações clínicas (por recalcamento,


foraclusão e renegação) e os tipos clínicos derivados delas (neurose, psicose e perversão), e os
impasses subjetivos. Quanto aos limites e as possibilidades da Psicanálise nesse campo,
Scarparo (2008, p. 117) assinala que “Os limites são os da castração no encontro com o Real,
que nos assujeita à linguagem, e as possibilidades são aquelas que encontramos quando
levamos à consequência ‘não aceder de seu desejo’”.
Em um campo no qual os sujeitos que chegam estão marcados pela ausência de
cidadania e pelo sofrimento de estar à margem da sociedade, ocupando muitas vezes o lugar
de resto na sociedade, de desamparados sociais, a psicanálise traz a potência de poder oferecer
uma escuta que permita ao sujeito que ele possa romper com esses lugares e discursos –
“coitadinho, pobrezinho, dentre outros” – que o marcaram, abrindo espaço para a enunciação
e o aparecimento não somente da demanda, mas sobretudo do desejo. “E na medida que se
possibilita a condição desejante, abre-se uma via de exercício da cidadania” (SOARES,
SUSIN; WARPECHOWSKI, 2010, p. 156).
Nosso percurso enquanto psicóloga no campo da AS foi balizado não apenas pela
Psicanálise, mas também por um conjunto de referenciais também de natureza
interdisciplinar, a saber: o Materialismo Histórico de Marx, a Filosofia da Diferença, a
Análise Institucional (AI) e o conceito de intercessor de Deleuze. Mais do que pensar a
inserção de um(a) psicanalista na AS, nosso objetivo foi refletir acerca do que pode fazer um
psicólogo – precavido pela psicanálise do campo de Freud e Lacan nos estabelecimentos
assistenciais da AS enquanto política social ofertada pelo Estado brasileiro. Encontramos no
Dispositivo Intercessor (DI) um instrumento teórico, ético e político para balizar o nosso
trabalho tanto na práxis comum (trabalho na AS) como também na práxis universitária (a
produção de um texto acadêmico como uma dissertação). O DI oferta um conjunto de
referenciais teóricos, éticos e políticos que podem contribuir com a práxis no campo da AS.
No nosso caso nos servimos, sobretudo, do Materialismo Histórico com sua dialética e da
Psicanálise do campo de Freud e Lacan com sua ética (Ética do Sujeito) e procuramos nos
posicionar enquanto trabalhadora-intercessora.
O(a) trabalhador(a)-intercessor(a), em virtude de seu posicionamento teórico, ético e
técnico, possui uma maior possibilidade de visualizar, fomentar e ocupar as brechas
instituintes que possam surgir nos estabelecimentos assistenciais. Ao ocupar essas brechas o
trabalhador-intercessor pode driblar as relações cristalizadas na instituição – que reproduzem
formas de dominação e controle da população – e ir construindo junto ao coletivo de
trabalhadores novos modos de interceder junto aos sujeitos e à instituição. Concordamos com
126

Souza (2015) que provém do próprio posicionamento de trabalhador-intercessor “[...] a


hipótese, a ser verificada em cada situação particular, de que sempre há brechas abertas nas
estruturas instituídas dominantes, ou a possibilidade de criar estratégias coletivas de abri-las.
As brechas, claro, irão depender também da permeabilidade do campo a mudanças e da
possibilidade de construí-las coletivamente. E, se na dureza do cotidiano de trabalho, o PSD
se mostra inatingível, conforme assinala Shimoguiri (2016, p. 131) “[...] por outro lado, o
trabalhador-intercessor-pesquisador já não está precavido pelos impossíveis freudianos?
Impossível governar, educar e curar o outro”. O reconhecimento, tanto das possibilidades
quanto dos limites, deve ser um antídoto para o risco da onipotência, embora não nos impeça
de sofrer com as situações adversas.
Em nossa experiência compreendemos que a Psicanálise, por incluir a dimensão do
sujeito de desejo – e como seu corolário a escuta do inconsciente –, pode trazer grande
contribuição com o campo da AS. Entretanto, entendemos também que para o trabalho nas
políticas sociais é importante que os trabalhadores possuam condições de fazer uma análise
crítica do campo institucional em que trabalham e das práticas que realizam. Isso demanda
estar devidamente instrumentalizado para tal. Os referenciais teóricos técnicos e éticos
políticos críticos e transdisciplinares devem compor a caixa de ferramenta dos trabalhadores.
Com tais ferramentas é possível interceder nos processos de produção de assistência e
também no coletivo de trabalhadores.
Os especialismos, ou seja, a falta de um objeto comum e de um referencial que
conjugue a formação e a prática dos trabalhadores tem impedido, ou ao menos dificultado, a
construção de um coletivo de trabalho que vise uma produção de assistência sócio assistencial
na direção do interesse dos sujeitos. A Psicologia, do mesmo modo que outras disciplinas, é
capaz de ofertar diferentes modalidades transferenciais para os sujeitos. Ser um(a)
trabalhador(a) intercessor(a) precavido pelos referenciais do DI e, sobretudo, pela Psicanálise
do campo de Freud e Lacan, oferece a possibilidade de ofertas transferenciais de cunho mais
simbólico – ainda que isso não exclua também a oferta de algum auxílio material –, abrindo
espaço para que o sujeito possa se implicar em sua questão e encontrar suas próprias
respostas. Ser um trabalhador-intercessor não é exclusividade dos psicólogos, ele poderá ter
outras profissões, mas precisará atender a condição mínima de ter superado o princípio
disciplinar (sujeito-objeto).
Na finalização deste trabalho mais questões se abrem do que se fecham. Não tínhamos
a pretensão de esgotar o assunto, mas de abri-lo, interroga-lo e trazer as contribuições que nos
fossem possíveis. Temos claro que não é possível encontrar o último significante. E isso é
127

muito bom! Por isso mesmo há a possibilidade de novas buscas, novas interrogações,
reflexões e produções desejantes. É exatamente a falta (falta-a-ser) que coloca a possibilidade
do desejo. Ainda há muito que ser, não somente pesquisado, como também experimentado e
criado no campo da AS. Nosso desejo, no que se refere a essa dissertação, é que um conjunto
de outros sujeitos desejem continuar nossas reflexões teóricas e que os trabalhadores do
campo possam se servir delas não como uma manual que apresenta modelos de como fazer,
mas como um ponto de partida para a construção de práticas que tenham como meta ética a
produção de subjetividade singularizada e de uma AS comprometida com a defesa de direitos
dos sujeitos por ela assistidos.

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