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16º Encontro Nacional da ABET

3 a 6/9/2019, UFBA, Salvador (BA)

GT02 - Regulação, políticas e instituições


públicas do trabalho

A reforma trabalhista no Brasil e o


pensamento neoliberal

Guilherme Caldas de Souza Campos


Resumo Expandido
Após quase uma década de crescimento econômico com baixas taxas de
desemprego, crescimento real dos salários e relativa diminuição das desigualdades sociais,
o Brasil passou por uma forte desaceleração de sua economia a partir do ano de 2014,
seguida de uma crise política que resultou em um golpe de Estado no ano de 2016 e em uma
eleição que elegeu um governo conservador e com tendências autoritárias em 2018. O
resultado desta crise política e econômica tem sido, até o momento, a ampliação de ofensivas
contra os direitos dos trabalhadores e do sistema de regulação social, compreendido
especialmente pelas instituições do trabalho no país. Argumentando pela necessidade de
reformas estruturais e institucionais para se enfrentar a crise, os governos que se sucederam
ao golpe de 2016 vêm engendrando uma série de reformas que afetam profundamente
direitos sociais da sociedade brasileira. Algumas delas já foram aprovadas pelo legislativo
federal.
Em forte oposição ao pensamento social desenvolvimentista que presidira os
governos anteriores, as reformas propostas pelo governo Temer apontaram para a
redefinição do papel do Estado, bem como para o desmonte de direitos sociais e trabalhistas,
tendência que se manteve no governo Bolsonaro. A principal reforma proposta e aprovada
nessa área ainda pelo governo Temer foi a reforma trabalhista, que aponta para a
flexibilização das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, de modo que o
verdadeiro custo do ajuste econômico defendido por estes governos recai sobre os
trabalhadores. A proposta de reforma trabalhista feita pelo governo Temer, que resultou na
Lei 13.467 de 13 de julho de 2017, também conhecida como Lei da Reforma Trabalhista,
incorporou uma série de propostas que já tramitavam isoladamente no Congresso e no
Senado, muitas delas propostas por parlamentares ligados aos interesses das principais
entidades patronais.
Segundo os defensores da reforma, entidades patronais e parlamentares alinhados
aos seus interesses em grande maioria, a prevalência de negociações coletivas sobre normas
legais e institucionais, bem como a flexibilização das formas de contratação e remuneração
da força de trabalho, funcionariam como elemento chave de ajuste do mercado de trabalho
pela via da oferta, de modo que o mercado poderia se “reequilibrar” rapidamente frente aos
choques de oferta e as empresas poderiam ganhar competitividade frente às oscilações da
demanda e frente à concorrência internacional.
O principal argumento apresentado pelos defensores da reforma, entre outros, é o de
que as atuais leis trabalhistas “engessariam” as relações de trabalho, aumentando o custo do
trabalho e aumentando a burocracia, dificultando assim o ajuste da empresa à conjuntura
econômica quando necessário. Alega-se ainda que haveria um descompasso entre o
crescimento da produtividade e o crescimento dos custos do trabalho, especialmente
associados aos salários e aos encargos trabalhistas. Segundo este argumento, relações
flexíveis de trabalho proporcionariam maior produtividade e competitividade, gerando mais
oportunidades de trabalho, ao permitir que as empresas tivessem mais liberdade para
adequar o nível de emprego da mão de obra à demanda e à concorrência.
Outro argumento apresentado seria a necessidade de “modernização” da legislação
trabalhista. Com a premissa de que as leis trabalhistas são “arcaicas” (a maior parte das leis
que regem o regime CLT são dos anos 1940), propõem-se mudanças que privilegiam a
negociação em detrimento da lei e flexibilizam o emprego de mão de obra, prejudicando os
trabalhadores no sentido de enfraquecer sindicatos, especialmente das categorias menos
organizadas, bem como marginalizando um contingente cada vez maior de trabalhadores,
seja com contratos precários de trabalho, seja com a terceirização irrestrita, seja com
flexibilização da jornada e com remuneração variável.
Neste sentido, as leis trabalhistas são vistas como uma fonte de “insegurança jurídica”
e de “excesso de burocracia”, de modo que os empresários só não contratariam mais
trabalhadores frente aumentos da demanda em função da insegurança e dos altos custos
que estas leis impõem a eles. O “excesso” de direitos (emprego formal) ainda seria
responsável, segundo essa visão, pela grande quantidade de trabalhadores “sem direitos”
(emprego informal), pois impossibilitariam que os empresários empregassem mais pessoas
pelas vias do emprego formal.
O modelo de mercado de trabalho defendido pela reforma trabalhista aponta, portanto,
para um mercado de trabalho extremamente flexível, onde os trabalhadores teriam pouca ou
nenhuma segurança frente as oscilações da conjuntura econômica, sem falar no acirramento
da desigualdade e do desemprego. Mediante a desproteção da legislação, os trabalhadores
estariam cada vez mais submetidos às oscilações da conjuntura econômica, uma vez que
poderiam ser facilmente dispensados, obrigados a aceitarem salários cada vez menores e a
negociarem, individual ou coletivamente, direitos historicamente conquistados, uma vez que
o negociado teria prevalência sobre o legislado.
A reforma trabalhista, portanto, assim como a aprovação da terceirização de forma
irrestrita e outras iniciativas de reforma que ainda estão em andamento (como a reforma da
previdência), visam quebrar a resistência dos trabalhadores, submetê-los à uma lógica de
competição desenfreada e abrir o caminho para a flexibilização e intensificação da
acumulação de capital no Brasil. Estas reformas, e a reforma trabalhista em especial,
baseiam-se em um corpo teórico nascido na década de 1970, que procurava explicar a crise
do Estado de bem-estar social e da relação de trabalho fordista diante da estagnação
econômica e da alta inflação (estagflação) que assolaram os países industrializados, naquele
período.
A solução proposta por esta perspectiva às crises econômicas seria a flexibilização do
mercado de trabalho, bem como a “refundação” da sua regulamentação, de modo a garantir
que os mercados conseguissem se auto ajustar rapidamente mediante choques externos de
oferta, cada vez mais comuns em um mundo cada vez mais globalizado. Assumindo que este
seria o papel do Estado e que a livre concorrência e a livre negociação entre os agentes
econômicos seriam o estado natural do capitalismo contemporâneo, essas reformas visam
atingir os mesmos objetivos que estes corpos teóricos defendiam para os países
desenvolvidos na década de 1970, constituindo o que hoje chamamos de consenso
neoliberal. O modelo de mercado de trabalho defendido pela reforma trabalhista aponta,
portanto, para um mercado de trabalho extremamente flexível, onde os trabalhadores teriam
pouca ou nenhuma segurança frente as oscilações da conjuntura econômica, sem falar no
acirramento da desigualdade e do desemprego. Mediante a desproteção da legislação, os
trabalhadores estariam cada vez mais submetidos às oscilações da conjuntura econômica,
uma vez que poderiam ser facilmente dispensados, obrigados a aceitarem salários cada vez
menores e a negociarem, individual ou coletivamente, direitos historicamente conquistados,
uma vez que o negociado teria prevalência sobre o legislado.
Os fundamentos da reforma trabalhista e das reformas sociais impostas pelos
governos pós-golpe estão assentados não apenas nas diferentes perspectivas teóricas que
compõem o mainstream ortodoxo da teoria econômica, mas também em uma visão de mundo
profundamente neoliberal, conservadora e antidemocrática, em que prevalecem os
imperativos do mercado globalizado ao invés da proteção social. A partir de uma perspectiva
crítica, este trabalho se propõe a compreender e explicitar os argumentos políticos,
econômicos, morais e sociais utilizados pelos defensores da reforma, na perspectiva de
rastrear, de forma crítica, as origens das propostas e, especialmente, dos interesses político-
econômicos que embasaram a reforma trabalhista.

Palavras-chave:

Neoliberalismo, Reforma Trabalhista, Mercado de Trabalho, Democracia


1. Introdução
Após quase uma década de crescimento econômico com baixas taxas de
desemprego, crescimento real dos salários e relativa diminuição das desigualdades sociais,
o Brasil passou por uma forte desaceleração econômica a partir do ano de 2014, seguida de
uma crise política e institucional que resultou em um golpe de Estado jurídico/parlamentar
que pôs fim a um governo legitimamente eleito em 2016. Mais recentemente, em 2018, a
insatisfação popular com o arrefecimento da economia e com o acirramento das tensões
sociais, especialmente por parte da classe média, colaborou para a eleição de um governo
conservador inclinado para o autoritarismo, reforçando as tendências neoliberais autoritárias
proclamadas pelo governo interino anterior. Esta tendência pavimentou o caminho para
reformas sociais draconianas, orientadas pelo mantra neoliberal de there is no alternative
(TINA)1.
O principal argumento que retoricamente justificou a legitimidade dos governos pós-
golpe seria a necessidade de profundas reformas sociais, diante de um modelo econômico-
social dito insustentável, populista e até mesmo corrupto, que teria sido praticado pelos
governos anteriores e que seria responsável pela crise econômica, política e social que o
Brasil vive hoje. Pautados por esta retórica, os governos que se sucederam ao golpe
jurídico/parlamentar de 2016 passaram a advogar pela necessidade de reformas estruturais
e institucionais de cunho neoliberal para contornar a crise econômica, de modo que várias
propostas de reformas sociais foram (e estão sendo) colocadas em andamento pelos
governos que se sucederam desde então.
Os princípios que guiariam estas reformas foram sumarizados em um documento do
então Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)2, intitulado de “Uma ponte para
o futuro” (PMDB, 2015). Em forte oposição ao pensamento social desenvolvimentista que
presidira os governos anteriores, as reformas propostas por este documento apontam para a
redefinição do papel do Estado, mudanças institucionais significativas, bem como para o
desmonte de direitos sociais e trabalhistas, tudo em nome da “produtividade” e da
“competitividade”. Assim, o papel do Estado deveria estar circunscrito à “promoção de um
ambiente econômico estável e competitivo”, e para tal finalidade o Estado não poderia incorrer
em desequilíbrios fiscais, “fonte de todo o desequilíbrio econômico e social”. Assim, “o
desequilíbrio fiscal significa ao mesmo tempo: aumento da inflação, juros muitos altos,
incerteza sobre a evolução da economia, impostos elevados, pressão cambial e retração do

1
“Não há alternativa”, em tradução literal. Um conhecido slogan político que advoga pela inevitabilidade dos
princípios econômicos e sociais neoliberais de livre-mercado e a não-intervenção. Se não há alternativa a estes
princípios, não há objeções racionais possíveis às políticas neoliberais.
2
Em 2017 o partido mudou de nome, passando a se chamar Movimento Democrático Brasileiro -MDB (sem o
P de Partido), assim como se chamava ainda durante a ditadura militar.

1
investimento privado” (PMDB, 2015, pg. 05). Neste sentido, o Estado é visto prioritariamente
como o regulador das relações econômicas e promotor da concorrência, e só deve ser
provedor de bens públicos única e exclusivamente enquanto for mais eficiente em prover
estes bens do que se fossem providos pela iniciativa privada:
Assim, segundo esta perspectiva, se o papel do Estado fosse o de promover a
estabilidade e a competitividade da economia, a origem da crise econômica pela qual o Brasil
estaria passando teria sido provocada, por um lado, na “insistência” do governo anterior em
promover políticas sociais “excessivamente caras e ineficientes”, expandindo o gasto público
de modo “irresponsável” e, por outro lado, na incapacidade do Estado em promover tais
benefícios frente a obstáculos promovidos por ele próprio, de tal modo que esta perspectiva
identifica na própria estrutura institucional do Estado os principais entraves à superação dos
problemas econômicos e sociais do país. Nessa visão, portanto, o papel do Estado deveria
ser o de eliminar “falhas de mercado” e oferecer um rol mínimo de direitos e diretrizes para a
negociação dos contratos de trabalho, além de garantir a execução e o respeito aos contratos
estabelecidos entre os atores econômicos.
Diante desse diagnóstico, em um contexto de crise política, econômica e social, e
ancoradas no princípio de “there is no alternative”, propostas conservadoras de reformas do
Estado e da sociedade ganharam força, de modo que as ideias expressas pelo documento
do PMDB acabaram por viabilizar, e até mesmo justificar, o golpe institucional ocorrido em
2016. As reformas engendradas pelo governo não teriam apenas como foco a situação fiscal
do Estado, mas também a promoção de um “ambiente de negócios estimulante” (PMDB,
2015, pg. 17), argumentando-se pela necessidade de ajuste econômico também na esfera
privada. Neste campo, a defesa do papel do Estado como promotor da concorrência e zelador
das regras de competição econômica torna-se mais acentuado. O conjunto das reformas
propostas pelos governos pós-golpe vão muito além dos gastos públicos, visando
especialmente o ajuste da economia pelo lado da oferta, ou seja, criando condições de
“competitividade” aos empresários brasileiros com vistas a superar a crise econômica. Não
por acaso, um dos principais focos dessas reformas é a regulação pública das relações
trabalhistas.

2. A Reforma Trabalhista e o pensamento neoliberal


A principal proposta sustentada nessa área pelo governo Temer foi a Reforma
Trabalhista aprovada em 2017 que, juntamente com a lei da terceirização, aponta para a
flexibilização das condições de contratação, uso e remuneração do trabalho, de modo que o

2
verdadeiro custo do ajuste econômico e social proposto recaia sobre o trabalhador3. A defesa
dos princípios neoliberais que embasaram a Reforma Trabalhista do governo Temer e outras
reformas que se anunciavam já apareciam em publicações oficiais de organizações da
sociedade civil que tratavam das relações de trabalho no país, como sindicatos patronais e
partidos políticos. Elas partiam de uma visão de mundo e de sociedade em que deveriam
predominar a livre concorrência e o empreendedorismo de si mesmo (BARBOSA, 2011), além
de pregar a livre negociação entre as partes.
A proposta de reforma trabalhista feita pelo governo Temer, que resultou na Lei 13.467
de 13 de julho de 2017, também conhecida como Lei da Reforma Trabalhista, incorporou
uma série de propostas que já tramitavam isoladamente no Congresso e no Senado, muitas
delas propostas por parlamentares ligados aos interesses das principais entidades patronais,
como a Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Confederação Nacional do Comércio de
Bens, Serviços e Turismo (CNC), a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA),
a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), entre outras.
Segundo a visão expressa por estas entidades, a prevalência de negociações
coletivas sobre normas legais e institucionais, bem como a flexibilização das formas de
contratação e remuneração da força de trabalho, funcionariam como elemento chave de
ajuste do mercado de trabalho pela via da oferta, de modo que o mercado poderia se
“reequilibrar” rapidamente frente aos choques de oferta, bem como as empresas poderiam
ganhar competitividade frente às oscilações da demanda e à concorrência internacional.
Segundo documento da Confederação Nacional da Indústria (CNI):

Para promover a modernização trabalhista no Brasil, é preciso observar que


modelo de relações do trabalho o país deseja para o futuro. Não é difícil
encontrar convergências em torno da ideia de substituir o modelo atualmente
em vigor por outro que privilegie a negociação, calcado na representatividade
dos atores e capaz de se adequar às diferentes realidades e maximizar os
ganhos para as empresas, os trabalhadores e o país. (...) Nesse sentido,
seria preciso substituir um modelo que quase tudo é definido em lei e
muito pouco é negociado, por um outro que privilegie a negociação e
reduza a tutela estatal homogênea (CNI, 2012, pg. 16) Grifo nosso

Neste sentido, o principal argumento apresentado, entre outros, é o de que as leis


trabalhistas de então “engessariam” as relações de trabalho, aumentando o custo do trabalho
e aumentando a burocracia, dificultando assim o ajuste da empresa à conjuntura econômica
quando necessário. Haveria, segundo essa visão, um descompasso entre o crescimento da
produtividade e o crescimento dos custos do trabalho, especialmente associados aos salários

3
Atualmente, em conjunto com a Reforma da Previdência, estão em discussão medidas de aprofundamento da
Reforma Trabalhista, como a chamada “carteira de trabalho verde e amarela”, onde o trabalhador poderia optar
por um regime de trabalho regido pela CLT ou por um regime de trabalho totalmente desvinculado às leis do
trabalho. Até o momento, no entanto, ainda não há maiores detalhes sobre esta proposta.

3
e aos encargos trabalhistas. Assim, mediante uma legislação assumida como arcaica e que
protegeria excessivamente o trabalhador, relações flexíveis de trabalho proporcionariam
maior produtividade e competitividade, gerando mais oportunidades de trabalho, ao permitir
que as empresas tivessem maior liberdade para adequar o nível de emprego da mão de obra
à demanda e à concorrência. Segundo a Confederação Nacional do Comércio de Bens,
Serviços e Turismo (CNC):

Criada para proteger o trabalhador, a Consolidação das Leis do Trabalho


(CLT) estabeleceu benefícios assistenciais que, mais do que mantidos, foram
multiplicados pela Constituição de 1988. Os direitos do trabalhador podem
ser uma ferramenta para o desenvolvimento, jamais o seu oposto. É preciso
pensar uma reforma trabalhista que incentive as empresas a contratar
parceiros, e não apenas pessoas que vão ter emprego garantido
independentemente da sua atuação como trabalhador. Esse engessamento
vai de encontro à flexibilidade exigida numa economia moderna. A
legislação trabalhista deve permitir, sempre garantindo os direitos
fundamentais dos trabalhadores, a possibilidade de negociar situações
particulares, em que seja preciso levar em conta o segmento produtivo,
a atividade e o porte da empresa. (CNC, 2010, pg. 30). Grifo nosso

O modelo de mercado de trabalho defendido pela reforma trabalhista aponta, portanto,


para um mercado de trabalho extremamente flexível e adaptável às necessidades do
empregador, onde predominariam as negociações caso a caso sobre a lei e os trabalhadores
teriam pouca ou nenhuma segurança frente as oscilações da conjuntura econômica, sem falar
no acirramento da desigualdade, do desemprego e da subutilização do trabalho.
A Reforma Trabalhista aponta para um modelo de legislação do trabalho cada vez mais
parecido com o modelo europeu4, que procura combinar a flexibilidade com um mínimo de
direitos, de modo a estabelecer parâmetros mínimos para a relação de trabalho, mas que
sempre estão em conformidade com as necessidades do capital. Segundo os defensores da
Reforma Trabalhista, a prevalência do negociado sobre o legislado visa oferecer ao mercado
de trabalho brasileiro a “necessária” flexibilidade para o empregador, com um mínimo de
proteção ao empregado, tendo na figura da negociação coletiva as “salvaguardas para
contemplar a desigualdade de poder negocial entre empregador e empregados”.

(...) a proposição em tela tem como um de seus eixos centrais a prevalência


do negociado sobre o legislado, com uma série de salvaguardas para
contemplar a desigualdade de poder negocial entre empregador e
empregados. Talvez a principal proteção se faz ao privilegiar justamente a
negociação coletiva. Trata-se de uma reforma pautada pelo imperativo da
flexibilização com proteção. (BRASIL, 2017a, pg. 16) Grifos nossos

4
A respeito das tentativas europeias de conciliar proteção com flexibilidade, ver KALLABIS, 2009.

4
Essa visão pautada pela flexibilidade e pela livre negociação expressa pela Reforma
Trabalhista no Brasil não é nova. Ela se baseia em um conjunto de escolas de pensamento
econômico consolidadas na década de 1970 que procuravam explicar a crise do Estado de
bem-estar social, bem como da relação de trabalho fordista diante da estagnação econômica
e da alta inflação (estagflação) que assolaram os países industrializados naquele período.
Segundo estas escolas, as rígidas instituições do trabalho e as formas com que os benefícios
sociais eram ofertados e financiados criavam entraves à adaptação da economia a uma
situação de choque exógeno, de modo que estas estruturas rígidas apenas perpetuariam as
condições de crise, ao invés de deixa-las reorganizar o mercado por si próprio (LEAL FILHO,
1994). Estas teorias consolidaram uma nova forma de se ver o mundo, que questionava a
intervenção do Estado na vida social e o modelo fordista de relação de trabalho.
Esta visão de mercado de trabalho proposta pela Reforma Trabalhista, em associação
com as outras reformas propostas pelo documento “Uma ponte para o futuro”, apontam,
portanto, para uma visão de mundo neoliberal, onde a concorrência e o livre mercado são as
únicas instituições que poderiam promover o crescimento econômico e o desenvolvimento.
Nesta visão, o Estado teria um papel ativo tão somente na promoção e preservação destas
instituições. Partindo-se da premissa de que não há alternativa ao livre-mercado, sob pena
de estagnação econômica, inflação e desemprego, e que qualquer interferência que
“privilegiasse” quaisquer dos atores econômicos (como subsídios, auxílios ou direitos sociais)
poderiam gerar desequilíbrios no sistema econômico, impedindo o “auto ajustamento” do
mercado, as principais alterações na legislação impostas pela Reforma Trabalhista apontam
para um mercado de trabalho extremamente flexível como forma de manutenção das
condições de auto ajustamento esperado dos mercados pelo pensamento neoliberal.
Segundo esta nova forma de pensar o mundo e a relação dos indivíduos entre si, o
mercado de trabalho deveria ser livre de quaisquer “rigidezes”, e deveria ser caracterizado
pela concorrência e pela livre-negociação entre trabalhadores e empregadores, de modo a
oferecer uma legislação mínima que fosse capaz de balizar as negociações e garantir o
cumprimento dos contratos de trabalho celebrados. Ao contrário do pensamento liberal
clássico baseado no laissez-faire, no entanto, estas escolas de pensamento a que fizemos
referência não preconizavam a não intervenção do Estado na (auto) regulação dos mercados.
Pelo contrário, “caberia ao Estado o combate e saneamento de ‘imperfeições’ nos mercados
de bens e serviços, de capital e de trabalho”, de modo a “reservar à intervenção estatal a
função de assegurar a ação dos mecanismos concorrenciais, para que o mercado mantenha
sua eficiência (auto)-reguladora” (LEAL FILHO, 1994, pg. 51).
Ou seja, em oposição ao que propunha o pensamento liberal clássico, para estas
vertentes do pensamento econômico caberia ao Estado não apenas assegurar aos agentes
econômicos maior liberdade e flexibilidade de circulação e alocação dos fatores de produção,

5
mas também promover ativamente um ambiente econômico e social marcado pela
concorrência através da regulação institucional da economia e da sociedade. Em suma, trata-
se de conferir ao Estado um papel que antes não lhe cabia, mesmo no âmbito do pensamento
liberal: o papel de promotor da generalização do mercado e da concorrência na vida social,
ou ainda, o de criar instituições que não apenas protegem a livre iniciativa e a propriedade
privada, mas promovem, ativamente, a concorrência e a competitividade dos agentes
econômicos (BELLUZZO E GALÍPOLO, 2017).
Esta concepção de economia constituiu-se como a face de um movimento mais amplo
que, impulsionado pela globalização, vem se reafirmando como o pensamento hegemônico
no mundo contemporâneo, o pensamento neoliberal. O pensamento neoliberal nasce
exatamente das consequências econômicas e sociais do laissez-faire, da crise do
pensamento liberal clássico e da necessidade de se repensar o papel do Estado diante das
alternativas “coletivistas” (comunismo, fascismo) que se puseram como alternativa à
sociedade liberal no século XX (DARDOT E LAVAL, 2016). Ou seja, o neoliberalismo, bem
antes dos anos 1970, nasce como uma forma de repensar o dogma da economia
autorregulada, como uma forma de regular a economia através de um Estado forte, capaz de
impor regras e normas que não apenas garantissem a livre concorrência, mas que também a
promovessem. O neoliberalismo surge então como uma visão de mundo, onde a sociedade
deve se autorregular baseada na competição individual, uma competição imposta e ordenada
por um Estado forte e impessoal, capaz de impor a lei e, especialmente, a ordem (mas
incapaz de ditar o quê e como os indivíduos devem ou não fazer).
A Reforma Trabalhista nasce, portanto, da concepção neoliberal de que o mercado
de trabalho deve ser determinado, em última instância, pelas necessidades do capital, e que
são os trabalhadores que devem ajustar-se às suas necessidades, pois somente através das
necessidades e dos interesses racionais dos indivíduos é que a economia e a sociedade
poderiam se autorregular eficientemente. Os argumentos que embasaram a Reforma
Trabalhista apontam, sistematicamente, para essa visão de mundo, deixando transparecer
um projeto de sociedade que nega o pacto social e o projeto civilizatório firmados pela
Constituição de 1988. A seguir, vamos dissecar os principais argumentos da Reforma
Trabalhista e demonstrar como estão alinhados com o pensamento neoliberal e com o projeto
de poder que foi imposto à sociedade brasileira desde o golpe jurídico-parlamentar de 2016.

3. Os principais argumentos político-ideológicos que embasaram a Reforma


Trabalhista
Os argumentos que embasaram a Reforma Trabalhista propriamente dita já se
apresentavam em documentos editados por sindicatos patronais e think tanks neoliberais,
bem como por partidos políticos e pela mídia. Muitas das propostas de reforma apresentadas

6
no substitutivo aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal já constavam
no documento “101 Propostas para modernização trabalhista”, da CNI (2012), mas foi durante
a sua rápida tramitação que os principais argumentos foram trazidos à opinião pública,
especialmente em vídeos e artigos na internet de professores e pensadores, bem como nos
relatórios das comissões designadas para analisar a proposta. A seguir, exploraremos os
principais argumentos político-ideológicos, que nos auxiliarão a demonstrar as origens
ideológicas da Reforma Trabalhista e seus nexos lógicos com as reformas que os governos
que se sucederam ao golpe de 2016 vêm implementando no Brasil.

Leis ultrapassadas
Um dos argumentos mais comuns utilizados para defender a Reforma Trabalhista seria a
“antiguidade” da Consolidação da Leis do Trabalho (CLT) e sua inadequação às relações de
trabalho “modernas”. Segundo o deputado Rogério Marinho, relator da Reforma Trabalhista
na Câmara dos Deputados (BRASIL, 2017b), a legislação trabalhista nascida nos anos 1940
refletiria as estruturas sociais do Brasil daquela época, de industrialização nascente e grande
contingente de trabalhadores rurais, de modo que a legislação precisou ser outorgada por um
governo ditatorial para que pudesse defender os trabalhadores, em sua maioria
hipossuficientes, e preparar o caminho para a industrialização do país5. Porém, seguindo o
argumento, a sociedade teria se transformado de lá para cá, e novas relações de trabalho
teriam surgido, especialmente com o avanço de novas tecnologias e novas formas de
organização da produção.

O Brasil de 1943 não é o Brasil de 2017. Há 74 anos éramos um país rural,


com mais de 60% da população no campo. Iniciando um processo de
industrialização, vivíamos na ditadura do Estado Novo, apesar disso, o
governo outorgou uma legislação trabalhista que preparava o país para o
futuro. Uma legislação que regulamentava as necessidades do seu
tempo, de forma a garantir os patamares mínimos de dignidade e
respeito ao trabalhador. Hoje, estamos no século XXI, na época das
tecnologias da informação, na época em que nossos telefones celulares
carregam mais capacidade de processamento do que toda a NASA quando
enviou o homem à lua. As dinâmicas sociais foram alteradas, as formas
de se relacionar, de produzir, de trabalhar mudaram diametralmente.
(BRASIL, 2017b, pg.17) Grifos nossos

5
O sistema de regulação pública do trabalho no Brasil e no mundo desenvolveu-se a partir das lutas dos
trabalhadores que foram, paulatinamente, traduzindo suas lutas e conquistas em termos de direitos,
constituindo um rol de direitos próprios, os direitos sociais. Mais especificamente, as lutas de trabalhadores
resultaram em um sistema legal próprio, o direito do trabalho, que a despeito do direito civil clássico que trata
a todos como iguais, tornou-se um direito especial, que reconhece a assimetria na relação capital x trabalho.
Para uma breve sistematização da história do direito do trabalho e suas instituições, ver CESIT, 2017, pgs. 29 a
40.

7
Segundo essa lógica, as novas tecnologias e as novas formas de organização social
do trabalho permitiriam o surgimento de novas profissões e novas oportunidades,
especialmente para os trabalhadores, mas que para isso necessitariam de uma legislação
trabalhista mais flexível, que desse maior espaço para a liberdade dos indivíduos, sem a
“tutela estatal excessiva” do período do Estado Novo. As transformações do mundo do
trabalho que se deram desde os anos 1940 até os dias de hoje são consideradas como uma
“evolução” ou “modernização” do mercado de trabalho, e para tal deveria corresponder uma
“modernização” da legislação trabalhista, para que esta se adequasse às novas formas de
organização do trabalho.
As transformações que ocorreram no mundo do trabalho, no entanto, especialmente
após a década de 1970, estiveram em sua grande parte em consonância com os princípios
neoliberais de flexibilidade, reestruturação produtiva e acumulação flexível, exigindo novas
formas de organização do trabalho (ANTUNES, 2009). Na indústria, essas novas formas de
organização do trabalho primaram pela diminuição e especialização da mão de obra,
deslocando grandes massas de trabalhadores para o setor de serviços, muitas vezes com
grande precarização das atividades e das condições de trabalho. A transição do fordismo
para o toyotismo, bem como os processos de desindustrialização e de desconcentração
industrial exigiram das legislações trabalhistas mundo afora o crescimento da flexibilidade e
da precarização, de modo que a “modernização” trazida pela Reforma Trabalhista nada mais
é do que a flexibilização total de direitos trabalhistas e sociais, ensejando um mercado de
trabalho mais precário, com trabalhadores mais explorados e menos mobilizados.
Neste sentido, a “modernização” pressuposta pela Reforma Trabalhista na verdade
está eivada de sentido, longe de ser uma mera “atualização” das formas de organização do
trabalho na sociedade contemporânea; esta “modernização” trata de adequar as relações de
trabalho às necessidades de acumulação flexível e descompromisso social do capital. Em
uma sociedade caracterizada por grande desigualdade social e excedente estrutural de mão
de obra, essa “modernização” não significa mais do que crescimento da pobreza e da
precariedade.

Leis impedem escolhas individuais


O segundo argumento utilizado pelos defensores da Reforma Trabalhista é que a CLT,
antes da reforma, era rígida e inflexível, de modo que a legislação impunha aos atores
econômicos o quê e como deveria ser feito, dando pouca margem de manobra aos atores,
com diferentes necessidades (levando os empregados e empregadores, muitas vezes, à
informalidade e, consequentemente, à ilegalidade). Essa característica da legislação
trabalhista, segundo os defensores da Reforma, ainda traria excessiva insegurança jurídica,

8
pois um empregador jamais saberia com certeza se estaria atendendo a todas as exigências
da lei.
Sob este argumento, é assentado um dos principais princípios da Reforma
Trabalhista, a prevalência do negociado sobre o legislado. Segundo este princípio, os
indivíduos devem ter liberdade para negociar entre si os termos de seus acordos e contratos,
de modo que cada um, usando de sua liberdade e racionalidade, possa buscar o que é melhor
para si, permitindo assim o equilíbrio entre ofertantes e demandantes de trabalho. Ao Estado,
caberia oferecer as normas mínimas de regulação do trabalho e garantir o respeito aos
contratos firmados, de modo que qualquer direito ou benefício negociado à parte entre
empregadores e empregados deveria prevalecer sobre a legislação.
A prevalência do negociado sobre o legislado se assenta, portanto, sobre a tese
da autonomia da vontade6. Segundo esta tese, os indivíduos têm a prerrogativa de fazer
valer suas vontades ao celebrarem contratos, sem que ocorra a ingerência de poderes
externos a eles, sendo seus contratos, portanto, válidos e legítimos perante o Estado e a
sociedade. Segundo os defensores da Reforma, a autonomia da vontade é um princípio
constitucional que garantiria a livre negociação entre partes iguais e esclarecidas,
pressuposto fundamental para a manutenção de uma ordem social pautada pelos princípios
liberais. Assumindo, portanto, que os trabalhadores, individualmente ou representados por
seus sindicatos, são racionais e podem livremente negociar seus contratos e condições de
trabalho, a autonomia da vontade garantiria a validade do negociado sobre o legislado, de
forma que a legislação apenas precisaria garantir patamares mínimos para esta negociação.
Assim, segundo Rogério Marinho:

Um dos pilares do projeto encaminhado para apreciação por esta Casa


Legislativa é a possibilidade de que a negociação coletiva realizada por
entidades representativas de trabalhadores e empregadores possa
prevalecer sobre normas legais, em respeito à autonomia coletiva da
vontade. De fato, a justificação do projeto menciona que o seu objetivo com
tal medida é a de “garantir o alcance da negociação coletiva e dar segurança
ao resultado do que foi pactuado entre trabalhadores e empregadores”.
(BRASIL, 2017b, pgs. 25-26) Grifos nossos

No caso das negociações coletivas, o sindicato é visto como uma associação de


trabalhadores para a negociação coletiva dos contratos de trabalho, de modo que os
indivíduos é que deveriam avaliar se o respectivo sindicato estaria correspondendo às suas
expectativas individuais, como um serviço de representação, contratado trabalhador por

6
A autonomia da vontade é um princípio jurídico, aplicado especialmente no direito civil, que postula que os
contratos são válidos quando celebrados por livre iniciativa e livre negociação dos contratantes. É um princípio
que, ao ser aplicado ao direito civil, pressupõe a igualdade e o esclarecimento dos contratantes, de modo que o
Estado não deve intrometer-se no conteúdo do contrato (desde que não infrinja nenhuma lei), mas tão somente
garantir o seu cumprimento.

9
trabalhador. A própria prática das negociações coletivas já é vista como uma forma de
negociar vários contratos simultaneamente, sem que haja a necessidade de se negociar os
contratos um a um, configurando-se como uma prática vantajosa para as empresas.
Do ponto de vista neoliberal, a prevalência do negociado sobre o legislado
corresponderia à liberdade dos indivíduos de decidirem quais os rumos de suas trajetórias
pessoais e profissionais, responsabilizando o próprio indivíduo pelo seu sucesso ou
insucesso. Neste sentido, o indivíduo, empreendedor de si mesmo, deve ser o único
responsável pela sua condição de vida, de modo que a livre negociação e a concorrência
entre os indivíduos levaria a economia e a sociedade a uma situação “ótima” de equilíbrio,
proporcionando oportunidades adequadas para todos. Se os trabalhadores pudessem se
responsabilizar pelas suas trajetórias profissionais e passassem a negociar diretamente com
seus empregadores, abrindo mão de direitos quando necessário, o mercado de trabalho
encontraria um equilíbrio entre demanda e oferta de trabalho, de modo o mercado geraria
mais empregos e maiores salários através da qualificação e disputa entre trabalhadores. Esta
visão pressupõe que os trabalhadores sejam hiperssuficientes (o que veremos mais a frente),
e que se responsabilizem pelas próprias escolhas, desconsiderando a assimetria natural
entre capital e trabalho.
A aplicação do princípio da autonomia da vontade ao direito do trabalho, no entanto,
subverte o princípio de proteção social a que os direitos sociais estão submetidos, pois ao se
considerar que os contratantes são iguais, ignora-se a assimetria natural da relação entre
capital e trabalho, de modo a impor aos trabalhadores os custos das oscilações conjunturais
da economia.

Ao procurar estabelecer “a autonomia da vontade coletiva como forma


prioritária de regulação trabalhista” (...), a reforma em curso desfere um
golpe mortal no direito do trabalho pois, ao invés de reconhecer a
assimetria das relações entre capital e trabalho, supõe que o contrato
de trabalho é um contrato entre “iguais”. Trata-se, desse modo, de criar
as condições para prevalência do mercado na determinação da relação
de emprego, submetendo os indivíduos ao assalariamento conforme a
correlação de forças vigente em cada setor de atividade ou conjuntura.
Ora, o mercado, como sabemos, é promotor de desigualdades e não de
igualdade. Na ausência de proteção social, consagra-se a prevalência do
mais forte, o que expõe os trabalhadores a uma série de riscos e
inseguranças. (CESIT, 2017, pg. 42) Grifos nossos

Naturalização de relações flexíveis de trabalho


Partindo-se do princípio de que there is no alternative, e de que as relações de
trabalho “evoluíram” após a crise do fordismo para as relações mais incertas e flexíveis da
era toyotista, os defensores da Reforma afirmam que as relações precárias de trabalho são
um fato da economia de mercado, estariam “dadas”, e que não adiantaria impedir por lei que

10
elas ocorressem. Estas relações trabalhistas “flexíveis” ocorreriam de qualquer maneira, por
imposição das necessidades de mercado, mesmo que à margem da lei, “condenando” assim
muitos trabalhadores à informalidade. A precariedade do trabalho, sob o eufemismo de
“flexibilidade”, seria, sob este ponto de vista, uma necessidade “natural” em uma economia
moderna, e impor padrões rígidos para as relações de trabalho apenas condenaria uma
infinidade de pessoas à informalidade. Nas palavras de Rogério Marinho:

(...) ao examinar a proposição, não pode se restringir ao universo dos


empregados formais, é preciso pensar naqueles que estão relegados à
informalidade, ao subemprego, muitas vezes por que a sua realidade de vida
não se encaixa na forma rígida que é a atual CLT. A legislação trabalhista
brasileira vigente é um instrumento de exclusão, prefere deixar as
pessoas à margem da modernidade e da proteção legal do que permitir
contratações atendendo as vontades e as realidades das pessoas.
(BRASIL, 2017b, pg. 19) Grifos nossos

Neste sentido, argumenta-se que determinadas relações de trabalho, normalmente


caracterizadas por instabilidade e por precariedade, flexíveis portanto, seriam características
inerentes às economias “modernas”, e que portanto não poderiam ser ignoradas. Logo, estas
relações deveriam ser legalizadas, para que os trabalhadores submetidos a estes tipos de
relação de trabalho tivessem um mínimo de proteção social, bem como que se evitasse que
os empregadores não praticassem qualquer ilegalidade. Não por acaso, a Reforma
Trabalhista prevê modalidades de trabalho mais ou menos inéditas no Brasil, extremamente
flexíveis e precárias, como o contrato de trabalho intermitente, o teletrabalho (homeoffice) e
o autônomo exclusivo, modalidades de contratação consideradas pelos defensores da
Reforma como formas modernas de relação de trabalho7. A Reforma Trabalhista é vista,
portanto, como uma modernização das relações de trabalho, de modo a ajustar a legislação
ao que deveria ser considerado uma economia moderna.

Excesso de direitos constituem privilégios


Segundo os defensores da Reforma, haveria um excesso de direitos imposto pela
legislação trabalhista, que por um lado criaria uma casta de trabalhadores privilegiados, aos
quais teriam acesso a todo o arcabouço de direitos inscritos na lei, mas que por outro lado
criariam uma legião de trabalhadores que não teriam acesso ao mínimo de direitos, fosse

7
Muitas vezes confunde-se a modernidade dos meios de informação e comunicação que subsidiam estas
modalidades de trabalho com a modernidade das relações em si. Quanto mais mediado por tecnologias
impessoais de controle do trabalho, como aplicativos de celular e plataformas de gestão do trabalho, ou mesmo
tecnologias que permitem o trabalho remoto, mais as relações de trabalho são consideradas “modernas”,
quando muitas vezes remontam à práticas antigas de exploração do trabalho, antes coibidas exatamente pelo
avanço das conquistas sociais, inscritas nas legislações sociais e trabalhistas de diversos países.

11
pela impossibilidade de alcançar um emprego formal (argumento já explorado anteriormente),
fosse pela impossibilidade mesmo de conseguir um emprego. Segundo Rogério Marinho:

Essa modernização trabalhista deve então assumir o compromisso não


apenas de manter os direitos dos trabalhadores que possuam um emprego
formal, mas também de proporcionar o ingresso daqueles que hoje não
possuem direito algum. Esse desequilíbrio deve ser combatido, pois,
escudada no mantra da proteção do emprego, o que vemos, na maioria das
vezes, é a legislação trabalhista como geradora de injustiças, estimulando o
desemprego e a informalidade. Temos, assim, plena convicção de que
essa reforma contribuirá para gerar mais empregos formais e para
movimentar a economia, sem comprometer os direitos tão duramente
alcançados pela classe trabalhadora. (BRASIL, 2017b, pg. 20) Grifo
nosso

Nesse sentido, o excesso de direitos, imposto pela rigidez da legislação trabalhista,


associado a uma conjuntura econômica recessiva, condenaria parcela considerável dos
trabalhadores ao desemprego, pois os empregadores teriam margens limitadas à contratação
de novos trabalhadores devido ao “excesso” de direitos trabalhistas que eles teriam que
garantir aos trabalhadores já empregados, impedindo a contratação de mais pessoas. Ou
desafiariam a lei contratando trabalhadores informalmente, ou simplesmente não correm o
risco e não contratam mais ninguém, contribuindo para a persistência do desemprego.
Segundo este argumento, o “excesso” de direitos trabalhistas e a “rigidez” das leis
criariam, por um lado, uma casta de trabalhadores protegidos pela legislação, o que resultaria,
por outro lado, em uma outra casta de trabalhadores sem direitos (condenados portanto, ao
desemprego, ou na melhor das hipóteses, à informalidade), constituindo os direitos
consagrados na legislação como “privilégios” de alguns poucos trabalhadores. Este excesso
de direitos criaria uma condição de desigualdade entre os trabalhadores, entre privilegiados
e excluídos, enquanto que a rigidez das leis impediria uma “melhor distribuição” destes
direitos, impedindo que empregadores pudessem fazer qualquer coisa a respeito. As novas
formas de contratação8, características de economias “modernas”, e que seriam mais
adequadas a certos tipos de trabalhadores e empregadores, não poderiam ocorrer sem
ofender a lei, condenando diversos trabalhadores ao trabalho informal ou ao desemprego.
Assim, os defensores da Reforma argumentam que se as leis e os direitos fossem
flexibilizados, poderia haver uma melhor distribuição de direitos entre os trabalhadores,
resultando no crescimento do emprego e diminuição da informalidade.

8
Contratos flexíveis de trabalho: como o contrato de trabalho intermitente, o teletrabalho (homeoffice), o
trabalho autônomo exclusivo etc. Estas novas modalidades de contratação de trabalho atendem tão somente
às necessidades dos empregadores, que a partir delas podem melhor administrar o uso e a remuneração do
trabalho, de acordo com suas próprias demandas, a despeito das necessidades do trabalhador.

12
Partindo-se desta premissa, os defensores da Reforma Trabalhista argumentaram
que a Consolidação das Leis do Trabalho havia sido criada para proteger o trabalhador
“hipossuficiente”, ou seja, aquele trabalhador que por não ter acesso à educação ou mesmo
por ser muito pobre, não teria condições de se defender sozinho na relação de trabalho,
dependendo, portanto, da tutela estatal. Essa tutela estatal, excessiva do ponto de vista dos
defensores da Reforma, teria criado então uma cultura “paternalista”, oriunda do populismo
getulista, que teria transformado os trabalhadores em “reféns” da tutela estatal (CAMARGO,
2017a).
Por outro lado, argumentam os defensores da Reforma, este excesso de proteção e
tutela estatal, associado a leis trabalhistas que estariam ultrapassadas frente às novas formas
de organização do trabalho, impediria os trabalhadores chamados de “autossuficientes” ou
“hiperssuficientes” de alcançarem salários e benefícios superiores e mais vantajosos. Ao
constituírem-se como uma casta privilegiada de trabalhadores com acesso a todos os
benefícios do emprego formal, os trabalhadores hiperssuficientes não apenas impediriam o
acesso de outros trabalhadores aos benefícios do emprego formal, mas também não
poderiam galgar benefícios superiores por não poderem negociar os próprios termos dos seus
contratos de trabalho.
Assim, segundo os defensores da Reforma Trabalhista, seria necessário criar
mecanismos de “permitir que os desiguais sejam tratados desigualmente”, de modo que
se eliminasse o “privilégio” criado pela tutela estatal e se incentivasse os trabalhadores a
buscarem por conta própria melhores condições de trabalho e salários mais elevados pela
via da qualificação e da negociação. Segundo Rogério Marinho:

(...) visa a permitir que os desiguais sejam tratados desigualmente. De


fato, a CLT foi pensada como um instrumento para proteção do empregado
hipossuficiente, diante da premissa de que esse se encontra em uma posição
de inferioridade ao empregador no momento da contratação e da defesa de
seus interesses. Todavia não se pode admitir que um trabalhador com
graduação em ensino superior e salário acima da média remuneratória
da grande maioria da população seja tratado como alguém vulnerável,
que necessite de proteção do Estado ou de tutela sindical para negociar
seus direitos trabalhistas. (BRASIL, 2017b, pgs. 51 e 52) Grifos nossos

Esta distinção entre trabalhadores hipossuficientes e trabalhadores autossuficientes


ou hiperssuficientes, bem como sua relação com a chamada “tutela estatal”, está
profundamente arraigada no pensamento neoliberal. A visão neoliberal concebe o indivíduo
como uma empresa, uma empresa em concorrência com as outras, capaz de barganhar,
empreender, negociar e correr riscos. Os direitos são vistos do ponto de vista individual, e
não coletivo ou social, de modo que os direitos derivam da capacidade de negociar contratos
e racionalizar ganhos. Se admitirmos estes pressupostos, somente aí faria sentido conferir

13
autonomia àqueles trabalhadores chamados de autossuficientes. Neste sentido, o Estado só
faria sentido também como mero protetor e balizador da concorrência e da livre-negociação,
ao permitir os autossuficientes que se desenvolvam como queiram através da livre-
negociação e da concorrência por um lado, e por outro, “protegendo” os hipossuficientes até
o ponto em que sejam capazes de concorrer por conta própria.

Legislação rígida traz insegurança jurídica


Partindo-se da visão neoliberal, a condução dos negócios precisa ser baseada na
racionalidade dos indivíduos e na sua capacidade de prever os riscos aos quais o indivíduo
racional incorre ao efetuar uma transação econômica, assinar contratos, ou mesmo realizar
investimentos. A tomada de decisões e a celebração de contratos, portanto, implicaria a
capacidade de prever custos e riscos, capacidade advinda da racionalidade do indivíduo.
Neste sentido, a segurança jurídica com relação à propriedade e aos contratos seria um pré-
requisito para se garantir que os atores econômicos possam tomar decisões intertemporais
que possibilitem o sucesso em seus negócios.
Segundo os defensores da Reforma Trabalhista, a CLT não apenas era muito rígida,
como também muito complexa e imprecisa, de modo que acarretava em insegurança jurídica
para o empresário (e, alegadamente, para o trabalhador). Argumenta-se que a
impossibilidade de prever custos e mensurar adequadamente os riscos (como, por exemplo,
um empregado mover uma ação trabalhista contra o empregador), decorrente da
complexidade da legislação trabalhista, geraria insegurança jurídica para os atores
econômicos, prevenindo muitas vezes que empregadores criassem novas vagas de emprego,
ou mesmo fazendo com que dispensassem trabalhadores antes que pudessem mover ações
trabalhistas contra seus empregadores.
Essa insegurança jurídica, segundo os defensores da Reforma, seria ainda
responsável por uma grande quantidade de processos trabalhistas tramitando na Justiça do
Trabalho, o que significaria altos custos para o Estado brasileiro e alto risco para os
empresários no Brasil, que na tentativa de minimizar riscos, simplesmente optariam por não
contratar mais empregados do que o estritamente necessário. Por um lado, argumenta-se
que a legislação trabalhista antes da Reforma seria um “convite” ao litígio judicial por parte
de trabalhadores mal intencionados, e por outro, não ofereceria critérios objetivos para a
mensuração dos riscos ao contratar, deixando a percepção do risco totalmente subjetiva.

No que tange ao excesso de processos tramitando na Justiça do Trabalho, é


certo que muitos deles decorrem do descumprimento intencional da lei pelo
empregador, mas não podemos desprezar uma grande quantidade que
decorra do detalhamento acentuado das obrigações trabalhistas, em
conjunto com regras processuais que estimulam o ingresso de ações e a
interposição de infindáveis recursos, apesar dos esforços empreendidos pelo

14
TST para redução do tempo de tramitação dos processos. (BRASIL, 2017b,
pg. 22)

Portanto, um dos objetivos da Reforma Trabalhista seria mitigar a insegurança jurídica


ao permitir que os contratos de trabalho pudessem ser livremente negociados entre
empregados e empregadores, de modo que o que fosse negociado tivesse prevalência sobre
o legislado, e que o que fosse negociado não pudesse ser contestado pela Justiça do
Trabalho.

Ativismo judicial na Justiça do Trabalho


Outro argumento que envolve a ideia da insegurança jurídica é o argumento do
ativismo judicial. Segundo os defensores da Reforma, os “excessos” e “imprecisões” da
legislação trabalhista teriam criado brechas para a interpretação das leis, permitindo que
operadores do direito do trabalho, especialmente juízes e desembargadores, pudessem
interpretar a lei de acordo com suas convicções políticas, ou mesmo, inclinada a beneficiar
os trabalhadores em detrimento dos empregadores, ou mesmo “contra a lei”, constituindo o
que eles chamam de ativismo judicial. De acordo com este argumento, o ativismo judicial
não se constituiria apenas em interpretar as leis de acordo com as convicções políticas dos
operadores do direito, mas também na “imposição unilateral” de decisões e súmulas que
regulamentariam questões omissas na legislação, invadindo as competências constitucionais
da Justiça do Trabalho. Conforme José Marcio Camargo, a própria CLT, da forma como foi
editada desde a sua criação, criaria as condições para esse “desrespeito à democracia”:

A CLT desrespeita um dos pilares básicos da democracia, a separação e


independência entre os Três Poderes, o Executivo, o Legislativo e o
Judiciário. Esse princípio é rompido na medida em que, além de dar à Justiça
do Trabalho a função de verificar o cumprimento da lei, lhe concede também
o poder de emitir normas, ou seja, legislar. (...) A reforma trabalhista corrige
essa distorção e coloca limites claros a este poder da Justiça do Trabalho.
Como esperado, ao limitar o poder da Justiça do Trabalho, a reforma gerou
forte reação negativa de parte da Magistratura do Trabalho e de suas
associações. (CAMARGO, 2017c)

Segundo a visão dos defensores da Reforma, os tribunais da justiça do trabalho


estariam extrapolando seu papel de interpretes da lei para “legislar” sobre estas brechas que
a legislação trabalhista conteria, beneficiando assim os trabalhadores em detrimento dos
empregadores e impondo regras de forma unilateral. Esta atitude traria mais insegurança
jurídica ainda, pois o empregador, além de não poder contar com critérios objetivos para
mensurar o custo real de um contrato de trabalho ao seu término, também não teria como
confiar nas leis existentes e não poderia prever qual seria a interpretação que um dado juiz

15
poderia dar para uma norma trabalhista, antes de tomar uma decisão de investimento ou de
contratação de trabalhadores.
Esta forma de ver o papel da Justiça do Trabalho não apenas ignora a história e função
do direito do trabalho e todas as lutas sociais envolvidas, mas também impõe uma forma
peculiar de se ver o papel do Estado. Do ponto de vista neoliberal, a lei deve ser imposta por
um Estado forte, impermeável às pressões sociais e interesses particulares, para intermediar
as relações estabelecidas entre os indivíduos, de modo a trata-los de forma isonômica e
imparcial. Neste sentido, a lei deve ser aplicada igualmente para todos, pois todos seriam
iguais, com os mesmos direitos e deveres. Este princípio, traduzido na literatura pela
expressão “Império da Lei”9, expressa um ideal liberal, explorado na literatura clássica por
John Locke, resgatado pelo pensamento neoliberal moderno como o princípio de que a lei
deve ser imposta a todos, invariavelmente, e que o papel do Estado é tão somente garantir o
cumprimento da lei.
Apesar da visão liberal do papel da justiça em uma sociedade democrática, a Justiça
do Trabalho desenvolveu-se como uma justiça diferente, com o intuito de proteger o
trabalhador numa relação assimétrica com o capital, de modo a equilibrar a relação e proteger
o trabalhador dos abusos, garantindo assim as conquistas sociais duramente conquistadas
através de décadas de lutas. A visão dos defensores da Reforma Trabalhista, no entanto, é
diferente. Eles veem a Justiça do Trabalho como uma instituição permeada pelo ativismo
judicial, que segundo o princípio do “Império da Lei”, seria incompatível com o papel de um
Estado democrático. Neste sentido, os defensores da Reforma apontam para a instituição de
arbitragens, como maneira de se esvaziar a Justiça do Trabalho e “resolver os conflitos”. A
imposição de “riscos” aos trabalhadores ainda apelaria para uma visão de sujeito racional,
que mensuraria os riscos de ingressar com uma ação judicial contra o empregador, de modo
a responsabilizar o próprio trabalhador por uma eventual derrota judicial.

Em outra abordagem, mas também objetivando a diminuição dos conflitos


trabalhistas que são demandados perante a Justiça do Trabalho, estamos
propondo a adoção da arbitragem nas relações de trabalho, observadas
determinadas peculiaridades que serão examinadas mais adiante (...) Além
de valorizar os mecanismos alternativos de resolução de conflitos, a
nossa sugestão também prevê algum ‘risco’ para quem ingressar com
uma ação judicial. Hoje, a pessoa que ingressa com uma ação
trabalhista não assume quaisquer riscos, uma vez que grande parte das
ações se resolvem na audiência inicial, gerando o pagamento de uma
única indenização sem que ele tenha que arcar nem mesmo com as
custas processuais. Nesse sentido, estamos propondo que o instituto da
sucumbência recíproca seja aplicado na justiça do Trabalho. (BRASIL,
2017b, pg. 25) Grifos nossos

9
Do inglês, “Rule of Law”.

16
Estrutura sindical é enfraquecida pelo protecionismo do Estado
Do ponto de vista dos defensores da Reforma Trabalhista, os sindicatos brasileiros
não são eficientes no seu papel de representação dos trabalhadores, pois a estrutura sindical
estaria baseada em uma “tutela” do Estado, resquício do populismo e do Estado Novo, onde
eles dependeriam dos repasses do Imposto Sindical, uma fonte de renda cobrada de todos
os trabalhadores de uma mesma categoria econômica, independente de filiação ao sindicato.
Neste sentido, argumenta-se que muitos sindicatos não desempenhavam de modo fidedigno
seu papel de representar os trabalhadores frente ao empregador, com os quais ele poderia
negociar as condições de trabalho coletivamente, mas não tinham força e representatividade
graças a esta tutela estatal. Assim, muitos sindicatos seriam “sindicatos de fachada”, que não
teriam legitimidade para representar os trabalhadores.
Ignorando em sua argumentação a existência de categorias econômicas
extremamente desmobilizadas e precarizadas, com baixos níveis de organização e filiação
sindical, os defensores da Reforma apontoaram para a extinção do Imposto Sindical.
Argumenta-se que os sindicatos deveriam proporcionar resultados aos seus filiados, e assim
alcançar a legitimidade necessária para representa-los, de modo a fazer jus pela arrecadação
proporcionada pelas contribuições espontâneas de seus associados.

Os sindicatos, sejam eles classistas ou patronais, não mais poderão ficar


inertes, sem buscar resultados efetivos para as suas respectivas categorias,
respaldados em uma fonte que não seca, que eles recebem
independentemente de apresentarem quaisquer resultados. Aqueles que se
sentirem efetivamente representados por seus sindicatos,
trabalhadores ou empregadores, pagarão suas contribuições em face
dos resultados apresentados. Os que não tiverem resultados a
apresentar, aqueles que forem meros sindicatos de fachada, criados
unicamente com o objetivo de arrecadar a contribuição obrigatória,
esses estarão fadados ao esquecimento. (BRASIL, 2017b, pg. 28) Grifos
nossos

A ideia implícita nesta visão dos sindicatos é a de que estes deveriam se comportar
como um prestador de serviços que precisa apresentar resultados concretos ao seu “cliente”,
sob pena de perde-lo. É a ideia de que o sindicato não é, e nem deve ser, um instrumento de
organização e mobilização dos trabalhadores, mas tão somente um representante para a
negociação direta com vários trabalhadores ao mesmo tempo (ao invés de ter que negociar
o contrato de trabalho um a um, otimizando o processo de negociação), e somente daqueles
trabalhadores que assim o desejarem. Além disso, esta visão nega o papel do Estado de
mediador das relações de trabalho no capitalismo, reservando para ele apenas o papel de
árbitro mediante leis básicas que regem a relação de trabalho e a negociação entre indivíduos
livres e iguais. Para tanto, torna-se necessário que os sindicatos estejam “sob risco”, sob
concorrência, e que caso não desempenhem o resultado esperado de seus “clientes”, que

17
sejam abandonados e que fechem, fadados ao esquecimento. Este argumento, portanto,
opera com a lógica da mercadoria: o trabalhador pagaria pelos resultados obtidos pelo
sindicato, ao passo que o sindicato deveria concorrer com outros sindicatos pela filiação do
trabalhador.

A legislação trabalhista induz a um comportamento oportunista


Um dos argumentos mais recorrentes é o do oportunismo nas relações de trabalho,
resultando em um grande número de ações trabalhistas na Justiça do Trabalho e na
incapacidade do empregador de mensurar o real custo do trabalho. Segundo o argumento, o
arranjo institucional criado pela CLT com a Justiça do Trabalho permitia que o contrato de
trabalho pudesse ser renegociado mesmo após o seu término, pois a Justiça do Trabalho
tinha o poder de alterar as condições do contrato então negociadas entre empregado e
empregador, fazendo com que as reais condições do contrato só pudessem ser conhecidas
após o seu término. Segundo José Marcio Camargo, os resultados deste arranjo seriam, por
um lado, contratos de trabalho incertos e inseguros para os empregadores e por outro,
sindicatos pouco atuantes:

Como desejado pelo legislador, este arranjo institucional gerou dois


resultados importantes: o juiz do Trabalho passou a ser, em última
instância, o agente que define o que vale e o que não vale nos contratos
de trabalho e os sindicatos de trabalhadores, com poucas exceções, se
tornaram organizações puramente burocráticas e pouco efetivas na
negociação coletiva. Em outras palavras, os contratos de trabalho no Brasil
são, a priori, falsos. Somente deixam de sê-lo quando aprovados pelo juiz no
fim da relação de trabalho. (CAMARGO, 2017b) Grifos nossos

Assim, por um lado, a possibilidade de revisão judicial do contrato de trabalho após o


seu término, ou mesmo durante a sua vigência mas por imposição de um agente externo à
relação de trabalho, colocaria em xeque o princípio do “Império da Lei”, de modo que o
empregador não teria clareza das reais condições do “negócio” ao admitir um trabalhador.
Por outro lado, os trabalhadores teriam pouco ou nenhum incentivo a respeitar as condições
negociadas do contrato, bem como os sindicatos não se empenhariam em bem representar
seus filiados, pois teriam a certeza da possibilidade de revisão dos contratos imposta por um
agente exógeno à relação de trabalho a qual poderiam apelar.
De fato, o pensamento neoliberal dá ênfase para o comportamento dos indivíduos
baseado na racionalidade e para os adequados incentivos de mercado as quais este
comportamento responderia. O sujeito maximizador responderia aos incentivos de uma
economia de mercado, onde o respeito aos contratos funcionaria como pedra angular do

18
perfeito funcionamento de mercados livres, onde cada indivíduo poderia perseguir seus
próprios interesses ao negociar livremente as melhores condições para se alcançar seus
objetivos. Dados os corretos incentivos, os indivíduos fariam as melhores escolhas e
ajustariam seus interesses aos dos outros indivíduos, fazendo com que chegassem a um
equilíbrio. Quanto ao Estado, nada mais deveria fazer do que preservar os contratos, ao invés
de interferir neles:

4. Conclusão
Os fundamentos da reforma trabalhista imposta pelo governo Temer e que está sendo
aprofundada pelo governo Bolsonaro estão assentados em uma visão de mundo neoliberal e
profundamente antidemocrática, em que prevalecem os imperativos do mercado globalizado
ao invés da proteção social. Não se trata do neoliberalismo entendido como a mera retirada
do Estado diante dos negócios privados, ou mera e simplesmente um retorno ao laissez-faire
do século XIX, mas sim o neoliberalismo ativo e portanto, autoritário, onde o papel do Estado
é convertido de promotor do desenvolvimento econômico e social a promotor da
competitividade e regulador da concorrência através de normas e instituições, “tecnicamente”
projetadas e instituídas pela teoria econômica ortodoxa e pelos ditames do mercado
globalizado e da concorrência internacional.
Longe do Estado “vigia noturno” do pensamento liberal clássico, este Estado neoliberal
deve ser um Estado forte e ativo, capaz de resistir às demandas “demagógicas” da sociedade
civil e de impor a ordem neoliberal através de regras e normas que impedem o
estabelecimento de desequilíbrios e das “rigidezes” institucionalizados (DARDOT E LAVAL,
2016). Este Estado forte, no entanto, guia suas políticas através de uma lógica supostamente
universal, a lógica da concorrência, onde os pressupostos teóricos de sua ação não podem
sequer ser questionados, dado o caráter “técnico” atribuído à realidade econômica e social
(there is no alternative).
Ou seja, a promoção da estabilidade econômica associada à promoção da
competitividade e da eficiência dos mercados seriam objetivos tecnicamente dados em um
mundo globalizado, que não poderiam estar ao alcance ou sob ameaça de “demandas sociais
populistas ou demagógicas”, como direitos sociais e trabalhistas. Neste sentido, a visão
neoliberal de como deveria se portar o Estado diante do mercado (especialmente do mercado
de trabalho) assemelha-o a uma empresa privada, que deve buscar a eficiência técnica e
administrativa ao se abster das influências negativas de demandas da sociedade civil
organizada e da democracia política. Segundo Dardot e Laval:

Essa vontade de impor no cerne da ação pública os valores, as práticas e o


funcionamento da empresa privada conduz à instituição de uma nova prática

19
de governo. Desde os anos 1980, o novo paradigma em todos os países da
OCDE determina que o Estado seja mais flexível, reativo, fundamentado no
mercado e orientado para o consumidor. O management apresenta-se como
modo de gestão ‘genérico’, válido para todos os domínios, como uma
atividade puramente instrumental e formal, transponível para todo o setor
público. Essa mutação empresarial não visa apenas a aumentar a
eficácia e a reduzir os custos da ação pública; ela subverte
radicalmente os fundamentos modernos da democracia, isto é, o
reconhecimento de direitos sociais ligados ao status de
cidadão.(DARDOT E LAVAL, 2016, pg. 274). Grifo nosso

A visão neoliberal preconiza um Estado que “paire” sob a sociedade civil, promovendo
ativamente a flexibilidade, a competitividade e a capacidade de inovação frente a
concorrência desenfreada de um mundo globalizado, mas sem se deixar influenciar por
demandas “populistas” ou interesses “corporativistas”. A democracia é vista apenas como
uma forma de não intervenção direta na vida econômica e social, de modo que cada indivíduo
possa ser livre para se “adaptar” e “concorrer” como bem achar melhor. O “excesso” de
democracia é visto como negativo, pois um Estado fraco, que sucumbisse às demandas
sociais, trabalhistas, sindicais e “corporativistas”, seria um Estado incapaz de promover a
concorrência e de melhorar a competitividade na sociedade. O indivíduo não é mais visto
como um cidadão, portador de direitos e sujeito da vida política e social da nação, mas sim
como um consumidor, que deve ser satisfeito por serviços públicos oferecidos por este
Estado, ou na melhor das hipóteses, como um “empreendedor de si mesmo”, que precisa
apenas da garantia de que seus contratos serão cumpridos e que haverá estabilidade
econômica para que ele possa realizar com segurança os cálculos dos riscos que corre.
Como afirmam Belluzzo e Galípolo:

A burocracia do Estado passou a adotar a ‘racionalidade’ privada na gestão


da coisa pública e isso afetou o comportamento de todos os agentes
públicos, desde as empresas até os órgãos encarregados de administrar a
justiça, para não falar das políticas de saúde, educação, transporte de
massa, entre outros. O projeto ocidental da cidadania democrática e
igualitária não ‘cabe’ no espartilho amarrado na ilharga das sociedades
pela ‘racionalidade’ do capitalismo contemporâneo. (BELLUZZO E
GALÍPOLO, 2017, pg. 38) Grifos nossos

Em suma, as propostas de reforma propostas pelos governos Temer e Bolsonaro


apontam para um ajuste social voltado apenas para a promoção e acirramento da
competitividade na sociedade brasileira, deixando de lado largo contingente de trabalhadores
que só poderão contar com a precarização e a flexibilização das relações de trabalho
mediante as oscilações da conjuntura econômica, o que contribuirá para o crescimento da
pobreza e aumento da desigualdade.

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