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17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais

MODELO DE RELAÇÕES TRABALHISTAS: REFLEXÃO


SOBRE PROPOSTAS DE REFORMA - O NEGOCIADO E
O LEGISLADO

MODELO DE RELAÇÕES TRABALHISTAS: REFLEXÃO SOBRE PROPOSTAS


DE REFORMA - O NEGOCIADO E O LEGISLADO
Revista de Direito do Trabalho | vol. 101 | p. 71 | Jan / 2001
Doutrinas Essenciais de Direito do Trabalho e da Seguridade Social | vol. 3 | p. 1381 | Set /
2012DTR\2001\64
Nelson Mannrich

Área do Direito: Constitucional

; Trabalho
Sumário:

O tema que submeto à reflexão é a proposta de reforma do nosso modelo de relações individuais
de trabalho, formulada pelo Min. Francisco Dorneles, que se resume numa frase: "O negociado
prevalece sobre o legislado". *
Ao art. 7.º da Constituição simplesmente seria acrescida a seguinte expressão: "Salvo acordo
entre as partes".
Assim, os direitos sociais, inscritos na Constituição, poderiam ser reduzidos ou mesmo suprimidos,
mas sempre por meio de negociação coletiva.
A questão, aparentemente simples, implica mudanças substanciais, provocando duras críticas e
reações de todo tipo. Minha intenção nesse momento é de apenas fazer algumas observações.
Não me atrevo a sugerir a revogação de qualquer lei nem apresentar qualquer projeto, pois não
quero correr o risco apontado por Montaine: 1
Um certo legislador "ordenou que toda pessoa que desejasse abolir umas das velhas leis ou
estabelecer uma nova se apresentasse ao povo com a corda no pescoço, para que, se a novidade
não fosse aprovada por todos, ele fosse enforcado incontinenti".
A proposta do Ministro revela o cenário de mudança - a passagem para uma nova era, ainda
desconhecida para nós, mas cujos efeitos agitam as instituições jurídicas e sociais.
O Direito do Trabalho certamente corresponde a uma das áreas mais sensíveis do Direito, pois nele
confluem o econômico e o social. Nesse campo, a batalha é mais acirrada.
Efetivamente, não podemos ignorar os efeitos da mundialização da economia sobre as empresas e
sobre os empregos. Não podemos ficar inertes ante às transformações a que assistimos com a
passagem da sociedade industrial para sociedade do conhecimento, da informação, que alguns
preferem denominar "sociedade pós-industrial".
O Direito do Trabalho vai se adaptando a essas transformações, como já ocorreu em fases
anteriores, dominadas pela compaixão social e impregnadas de protecionismo. Essa primeira fase
cedeu lugar ao período de ouro, quando o Direito do Trabalho atuou como instrumento de
progresso social.
Com a crise do Estado Providência ou do bem-estar, o Direito do Trabalho, mantendo sua
tradicional vocação e capacidade de adaptação, transformou-se num mecanismo remediador das
crises econômicas (Magano).
A proposta do Ministro do Trabalho, que deverá ser apresentada ao Congresso Nacional no início
de 2001, deve merecer nossa reflexão. Dela espera-se efetiva contribuição para a modernização
de nossas relações de trabalho, como pressuposto para o progresso econômico e social.
A indagação que ora fazemos - deve o negociado prevalecer sobre o legislado? - leva-nos a
refletir sobre a revisão do sistema de fontes do Direito, sobre a importância da negociação
coletiva em face da norma estatal e do constitucionalismo social arraigado em nossa cultura.
A proposta ministerial suscita opiniões contrastantes, inconciliáveis. Para alguns, constitui
verdadeiro dogma a manutenção do predomínio da lei, cuja expressão máxima é o art. 7.º da CF/
1988 (LGL\1988\3), além da própria Consolidação das Leis do Trabalho. Para outros, há que

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introduzir um novo modelo, outorgando-se ao grupo a liberdade de negociar condições de


trabalho, mesmo em detrimento dos padrões legais mínimos.
Quando se defende a prevalência do negociado sobre o legislado, o objetivo é ampliar as reformas
econômicas, tornando as empresas mais modernas e competitivas no mercado global.
Os críticos desses avanços são céticos quanto às reais vantagens dos trabalhadores e exigem a
manutenção do atual modelo, para impedir os abusos praticados em nome do livre jogo do
mercado.
Para eles, o art. 7.º da Constituição e a própria Consolidação das Leis do Trabalho correspondem
ao patrimônio inalienável do trabalhador e a um acervo de conquistas ao qual não pode renunciar.
Para enfrentar esse debate entre negociado e legislado, com eventual predomínio de um sobre o
outro, é necessário, primeiramente, afastar a visão maniqueísta, que só vê, de um lado, o
afastamento do Estado, mediante a "desregulamentação", ou, de outro lado, o intervencionismo
estatal, "garantidor" do protecionismo.
Não se pode negar que o Direito do Trabalho foi concebido como instrumento do Estado para
proteger o empregado em face de sua fragilidade econômica e social.
A negociação coletiva, por sua vez, surgiu como mecanismo voltado a complementar a lei e
ampliar a proteção, só admitindo condições mais favoráveis que as da Consolidação das Leis do
Trabalho.
Essa técnica de complementariedade, que funcionou muito bem durante várias décadas, está
sendo acossada por novos processos produtivos e pelos efeitos da globalização, afetando o
Direito do Trabalho como um todo e a negociação coletiva, em particular.
No Direito do Trabalho, observamos sua vocação expansionista, passando a abrigar novas
tipologias contratuais e outras modalidades de trabalho, como o de utilidade pública e o
socialmente útil, regulados na Itália pela Lei 196 de 1997 - bem como o trabalho voluntário, nos
termos da nossa Lei 9.608 de 1998, sem falar do avanço do terceiro setor e a superação da
summa divisio entre trabalho autônomo e trabalho subordinado, tomando lugar de destaque outras
formas de trabalho, como o parassubordinado. 2
Na negociação coletiva, reserva-se espaço cada vez maior para os grupos, que a utilizam como
instrumento para remediar a crise - admitindo-se condições in pejus. 3 Esse avanço é visto com
reservas, num modelo onde sempre se observou o predomínio da lei.
As mudanças ocorridas na Argentina são paradigmáticas, sendo apontadas pelos mais
conservadores como um modelo que não poderíamos adotar, pelo risco de abalar nossas
instituições trabalhistas. Apontam-se quatro mudanças profundas naquele país: 4
1. Prioridade à negociação no âmbito de empresa, limitando o aumento dos salários à
produtividade empresarial e permitir, progressivamente, que a negociação coletiva regule o
mercado de trabalho.
2. Desarticulação de certos conceitos profundamente arraigados na cultura trabalhista argentina,
como a crença de que as vantagens obtidas em negociação coletiva correspondam a um direito
adquirido.
3. Aceitação natural da vigência do acordo coletivo até sua renovação.
4. Resignação com a possibilidade da negociação introduzir modificações in pejus - ou seja, em
detrimento do trabalhador.
Os sindicatos desempenham funções relevantes, seja no interior das empresas, seja no âmbito da
própria sociedade, refletindo a confluência da negociação entre o Poder Público e a autonomia
coletiva.
No interior das empresas, apesar do declínio do poder sindical e do avanço do poder patronal,
observa-se expressiva mudança do papel do sindicato, onde o conflito e a ideologia cedem espaço
à negociação e à participação. Há consenso generalizado quanto ao papel imprescindível do
sindicato na governabilidade dos conflitos e na gestão das crises empresariais.

No âmbito da sociedade, novas formas de diálogo social surgem 5 e o chamado


"neocorporativismo", em especial na União Européia, dá novo impulso às negociações
transnacionais, com ou sem a participação governamental. Suas novas atribuições político-
jurídicas vinculam-se à necessidade crescente de partilhar a gestão dos processos sociais nos
sistemas de governo dos países industrializados, 6 observando-se uma confluência entre os

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poderes públicos e privados com limitações recíprocas.


Todas estas transformações atingem em cheio o Direito do Trabalho, determinando a revisão do
modelo que encontrava no Estado se não a única pelo menos a principal fonte de produção
normativa.
A reflexão sobre a proposta do Ministro, de que o negociado deve prevalecer sobre o legislado,
implica rever, também, o papel que reservamos ao Estado e a função a ser desempenhada pelo
Direito do Trabalho.
Tal discussão nos leva a encontrar propostas conciliatórias entre visões bipolares de Estado
mínimo de um lado, e Estado intervencionista de outro, ou função desregulamentadora do Direito
do Trabalho para uns ou protecionista para outros - concepções essas que, a nosso ver, devem
ser rejeitadas, pois acentuam as distâncias entre o econômico e o social.
No lugar desse cenário estreito, devemos imaginar que ao Estado foi reservada a função
promocional, segundo Norberto Bobbio.
Ao Direito do Trabalho, por sua vez, cabe o papel da adaptação às mudanças determinadas pelas
transformações econômicas e sociais, tornando possível o progresso econômico, sem prejuízo do
social.
Para desempenhar a função promocional, cabe ao Estado garantir valores fundamentais - a serem
inscritos na Constituição, que não se sujeitam a qualquer negociação, como propõe o Senhor
Ministro; para cumprir seu papel de adaptação, cabe ao Direito do Trabalho promover a
negociação, observado apenas o espaço vital correspondente aos direitos inalienáveis,
assegurados constitucionalmente a todos os trabalhadores.

Na lição de François Terré, 7 dois séculos de legalismo nos fazem esquecer do poder da
criatividade. Basta uma simples investigação no Direito Internacional para descobrir que o contrato
está entre as primeiras regras aplicáveis. Não se trata de abandonar o Direito ou perder a paixão
por ele - mas utilizá-lo como técnica útil ou, se preferir, utilitária.
Não se observa apenas grande atividade do legislador brasileiro por meio de decretos, portarias e
inúmeros outros atos normativos. Há uma verdadeira euforia, uma explosão judiciária, na forma de
enunciados, súmulas, orientações jurisprudenciais, precedentes, instruções e outras formas de
legislar, inclusive o decadente poder normativo da Justiça do Trabalho.
A crítica ao excesso de leis e intensa intervenção estatal nas relações trabalhistas vem de longa
data. Após as obras de Geny, aparecem as de Ripert, Burdeau, Bonnard entre outros, denunciando
a "inflação legislativa", a crise da lei, a indigestão do corpo social. 8
A originalidade das fontes do Direito do Trabalho encontra na convenção coletiva seu paradigma.
Trata-se de um contrato no que se refere à sua elaboração e conclusão, mas, quanto aos efeitos,
tem natureza normativa. Aqui se fundem o legislado e o negociado, para dar lugar ao fenômeno
mais original do Direito do Trabalho: a convenção ou acordo coletivo.
Embora as cláusulas normativas não se incorporem definitivamente aos contratos de trabalho, a
eles se aplicam pela sua natureza normativa, aproximando a convenção da lei de tal modo que se
observa uma articulação entre o contratual e o estatutário: há um vínculo profundo entre o
exercício de direitos subjetivos que favorece a criação de regras de direito objetivo (François
Terré).
Nessa perspectiva, a relação entre norma coletiva e estatal deixa de ser concorrencial e de
subordinação, mas institucional e de complementariedade, abandonando a convenção coletiva o
tradicional papel suplementar. Passa a constituir verdadeira fonte do Direito do Trabalho e, como
tal, respeitada pela Administração Pública do Trabalho e prestigiada pelo próprio Judiciário.
A passagem das convenções e acordos coletivos, de função acessória a mecanismo central de
regulação das condições de trabalho, depende de muitos fatores, a começar pelas transformações
culturais e pela efetiva prática da negociação, 9 que passa pela reforma do modelo sindical, da
representação dos trabalhadores na empresa e pela revisão do poder normativo da Justiça do
Trabalho.
Para tanto é imprescindível o protagonismo dos sujeitos coletivos, com o abandono da tradição
corporativista, responsável pela delegação ao Estado da responsabilidade pelas questões
trabalhistas e pela supremacia dos interesses de classe em detrimento dos interesses ditados pelo
bem comum. 1 0
Como desdobramento do corporativismo, temos a tradição da outorga da legislação trabalhista, a
preponderância do direito individual sobre o coletivo; a falta de incentivo à negociação coletiva; a
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supremacia da solução estatal dos conflitos; o poder normativo da Justiça do Trabalho; a


unicidade sindical, que entra em choque com a efetiva liberdade e autonomia sindical.
No contexto do plurinormativismo jurídico, há vários centros de positivação jurídica. Além do
Estado desempenhar papel secundário, deverá abandonar sua posição de protagonista e
"garantidor" dos direitos do empregado por meio da legislação.
O que se pretende não é a retirada do Estado das relações entre empregado e empregador, para o
surgimento de um vazio normativo. 1 1
A intervenção proposta deve ser diferente, para garantir aos agentes econômicos e atores sociais
a regulação e funcionamento do mercado, mediante a substituição do corporativismo pela
autonomia coletiva dos parceiros sociais.
A equação, portanto, não se resume a "mais mercado" e "menos Estado"; o que se pretende é:
mais sociedade, mais mercado e um melhor Estado, onde este não compareça apenas como
poder transcendente à sociedade civil, mas como servidor dela, assegurando de forma igualitária e
contínua o acesso aos serviços essenciais e garantindo o respeito aos direitos fundamentais (Alain
Supiot).
Em outras palavras, cabe aos interlocutores sociais assegurar o que lhes é mais favorável, nos
termos da lei, passando as condições de trabalho a serem reguladas pela negociação - observados
os limites do Estado, nos termos da Constituição, que representa o espaço vital (Rodriguez-
Piñero). Amplia-se o espaço dos grupos pela retração do Estado diante dos imperativos da nova
ordem econômica e social.
A proposta de reforma parte do pressuposto de que o nosso modelo de relações trabalhistas,
implantado na década de 30 e estruturado na década de 40, encontra-se esgotado, embora a
cultura corporativista continue viva e criativa.
Isso se deve ao fato de que o modelo implantado no Brasil por Getúlio Vargas não resultou
necessariamente da intervenção do Estado, mas da fraqueza dos sindicatos, criando condições
para o Estado chamar a si a organização sindical. O vazio ideológico foi ocupado pelo populismo de
Getúlio Vargas, ao implantar o modelo corporativista (Leôncio Martins Rogrigues).
Tivemos muitas projetos de mudança e modernização, que não passaram de paliativos,
confirmando a natureza conservadora de nossas reformas, como a tentativa de implantar a
arbitragem, do Min. Murilo Macedo, ou o contrato coletivo, do Min. Barelli, apenas para
exemplificar.
As atuais propostas do Min. Dorneles implicam a fixação de patamares mínimos, cujo conceito é
variável no tempo e no espaço, vinculando-se não apenas a valores, mutáveis conforme a época,
mas à própria economia. Depende da reação da sociedade aos desafios da globalização e dos
mecanismos de defesa contra os excessos do mercado, com proteções e direitos mais ou menos
cristalizados.
A expressão "patamares mínimos" compreende o conjunto dos direitos e garantias fundamentais
dos trabalhadores. Sua fixação envolve as normas de ordem pública.
No Direito em geral, consideram-se normas de ordem pública as destinadas a garantir o correto
funcionamento das instituições imprescindíveis à comunidade e estabelecer os valores
fundamentais da sociedade. Traduzem-se em preceitos concernentes à organização das
instituições estatais tendentes a assegurar a ordem pública e a defesa do Estado.
O avanço da intervenção do Estado determina o aparecimento da ordem pública econômica e
social, segundo Ripert, 1 2 pelo interesse do Estado em introduzir mecanismos para disciplinar a
economia de mercado, garantindo sua estabilidade e funcionamento e, assim, proteger os
trabalhadores. 1 3
No passado, deu-se interpretação abusiva a essa expressão, para indicar toda e qualquer
proteção dispensada pelo Estado ao trabalhador. As normas trabalhistas contidas na Consolidação
das Leis do Trabalho, pelo seu caráter protecionista, sempre foram consideradas de ordem pública
e, portanto, indisponíveis, cabendo à negociação apenas complementá-las, para melhor.
A expressão ordem pública não pode mais ter tal amplitude. Deve-se estabelecer uma separação
entre as normas de ordem pública absoluta, relacionadas com os valores da própria sociedade e
que encerram, portanto, interesses gerais - e as normas de ordem pública relativa, destinadas a
proteger interesses diretos dos trabalhadores.
Portanto, as normas de ordem pública devem ser entendidas como o conjunto de valores que
dizem respeito, não aos interesses individuais, decorrentes das relações entre empregado e
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empregador, nem aos interesses coletivos, perseguidos nas negociações coletivas, mas ao
interesse público, inerente à própria sociedade.
Daí por que fixar o âmbito reservado à negociação envolve determinar quais os valores da
sociedade a serem preservados, em determinado momento histórico, tornando-os indisponíveis, de
sorte que, nesse contexto e apenas nele, o negociado venha a se sobrepor ao legislador.
Como se vê, a discussão em torno das normas de ordem pública absoluta é muito mais abrangente
e representa uma verdadeira armadilha. Trata-se de discutir a questão das fontes do direito - ou
seja, qual a relação entre as normas estatais, chamadas heterônomas e, portanto, indisponíveis,
destinadas a preservar valores e o próprio Estado, e as resultantes dos grupos - negociadas,
chamadas autônomas, passíveis de derrogação e transação.
Mas não é só isso. Dever-se-ia indagar se as normas coletivas, oriundas da autonomia coletiva,
apenas complementam as normas estatais ou se é possível reservar aos grupos um amplo campo
para negociação, observado um determinado espaço, delimitado pelo Estado, que se poderia
chamar espaço vital (Rodriguez-Piñero).
Em outras palavras, deve-se determinar qual o papel reservado à negociação coletiva para
adaptar a legislação estatal e protecionista às novas realidades, mantido na Constituição aquele
conjunto mínimo de normas, denominadas de ordem pública, não sujeitas à negociação.
A distinção entre ordem pública absoluta e ordem pública relativa evoca a problemática da
renúncia. Presume-se a coação do trabalhador que, individualmente, não tem condições de
enfrentar o poder econômico, não sendo razoável esperar a aceitação espontânea de
desvantagem. Desse modo, os direitos trabalhistas, por integrar as normas de ordem pública, são
de cunho imperativo e, portanto, indisponíveis e irrenunciáveis na órbita individual.
Ora, no plano coletivo, aparentemente desaparece a presunção de coação econômica, pois o
grupo, representado pelo respectivo sindicato, encontra-se em posição de igualdade perante o
empregador, justificando-se qualquer renúncia, desde que resultante de genuína negociação
coletiva.
No entanto, a questão da renúncia não reside no sujeito, mas no bem tutelado que, pela sua
natureza, é irrenunciável, individual ou coletivamente.
Daí a necessidade de se estabelecer a exata delimitação entre a ordem pública absoluta, não
sujeita à renúncia, e ordem pública relativa, esta sim passível de renúncia mediante negociação
coletiva.

Em outras palavras, na lição de Romita, 1 4 deve-se distinguir entre normas de ordem pública, que
asseguram direitos cuja indisponibilidade é absoluta, e aquelas oriundas da negociação coletiva,
que garantem vantagens passíveis de renúncia e transação.
No direito italiano, a renúncia e a transação, perante as Comissões de Conciliação, por exemplo,
podem atingir direitos inderrogáveis, mas não direitos indisponíveis. 1 5 A inderrogabilidade limita a
autonomia privada e determina a nulidade do ato contrário à norma e sua automática substituição.
16
Trata-se de um mecanismo destinado a contornar a situação de inferioridade econômico-social
do empregado e do estado de subordinação e assim realizar o princípio de proteção, fundamento
do Direito do Trabalho. 1 7
A indisponibilidade, por sua vez, comporta limitação à autonomia da vontade do titular, em face da
finalidade da norma. Resulta da natureza mesma do direito, ao tutelar um interesse coletivo, acima
do interesse singular, como o direito a uma retribuição suficiente ou o direito à greve.
Isso ocorre, como já dito, em razão da natureza do interesse tutelado pelo direito, levando-se em
conta, mais que seu titular - a própria sociedade. 1 8 Assim, para o Direito italiano, são indisponíveis
direitos previdenciários, a segurança e a saúde no trabalho, o repouso semanal e as férias, para
exemplificar.
Portanto, as normas de ordem pública devem ser entendidas como os valores que dizem respeito,
não às relações individuais entre empregado e empregador, nem aos interesses perseguidos nas
negociações coletivas, mas à própria sociedade. Daí por que fixar os patamares mínimos envolve
determinar quais os valores da sociedade a serem preservados quando da implantação da reforma
das nossas relações trabalhistas ou qual o modelo de relações trabalhistas que pretendemos.
Enfrentada a questão da negociação coletiva, sob a ótica das fontes do direito, e estabelecido o
critério para determinar o espaço vital, como implantar o novo modelo, estabelecendo as relações
necessárias entre o negociado e o legislado?

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Vejamos as experiências no Direito Internacional e em constituições de outros países.


A busca do progresso deve estar em harmonia com a observância de princípios éticos e de justiça
social, tidos como fundamentais. Não é suficiente o crescimento econômico - embora
imprescindível - para a garantia da eqüidade, do progresso social e para assegurar a erradicação
da miséria e das desigualdades.
Tais princípios ou direitos fundamentais não integram um código universal de caráter obrigatório,
mas há uma tendência de se considerar um conjunto mínimo de direitos a serem conferidos aos
trabalhadores, como se infere de diversos documentos internacionais e de inúmeras constituições
de outros países.
Sua implantação coercitiva seria inócua, por falta de um organismo supranacional com poderes
para impor sanções pela correspondente violação. Daí o seu caráter mais político do que jurídico.
Encontramos na OIT - Organização Internacional do Trabalho, o modelo de instituição de
patamares mínimos, como se infere nos seguintes princípios, adotados já em 1919:
1.º) trabalho não é mercadoria;
2.º) direito de associação aos salariados e patrões;
3.º) salário conveniente;
4.º) jornada de oito horas e quarenta e oito horas semanais;
5.º) repouso semanal de vinte e quatro horas no mínimo, no domingo, se possível;
6.º) supressão do trabalho de crianças e limitação ao trabalho dos adolescentes;
7.º) salário igual, sem distinção de sexo, para trabalho de igual valor;
8.º) tratamento eqüitativo a todos os trabalhadores que legalmente residam no país;
9.º) inspeção do trabalho.
A par desses princípios, a OIT adotou inúmeras convenções e recomendações. Como nem todos os
países são membros da OIT e nem todos os membros ratificaram todas as convenções
internacionais, o diretor geral propôs a adoção de uma declaração solene de direitos
fundamentais, o que ocorreu em 1998.
A Conferência Internacional do Trabalho partiu do pressuposto de que a justiça social é
fundamental para garantir a paz universal e permanente; e que o crescimento econômico é
essencial, mas não suficiente, para garantir a eqüidade, o progresso social e a erradicação da
pobreza.
São os seguintes os direitos, tidos como fundamentais:
1. liberdade de associação, liberdade sindical e reconhecimento efetivo da negociação coletiva;
2. erradicação de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório;
3. abolição efetiva do trabalho infantil;
4. eliminação da discriminação em matéria de emprego e ocupação.
A Declaração de 1998 tem um valor intrínseco: foi concebida para reafirmar o caráter universal
dos princípios e direitos fundamentais dos trabalhadores, em época de incertezas e controvérsias
quanto à sua flexibilização.
O objetivo não é impor sanções, mas fomentar a justiça social com base no reconhecimento do
direito das pessoas à eqüidade e ao progresso de toda ordem, mediante a erradicação da pobreza,
fornecimento de meios efetivos de acesso ao poder, à educação e à saúde.
Em última análise, exigir o cumprimento destes direitos implica o compromisso da OIT de vincular o
crescimento econômico ao progresso social.
Além desses instrumentos internacionais, as Constituições modernas também estabelecem
patamares mínimos, apresentando uma relação mais ou menos extensa dos direitos dos
trabalhadores e, algumas, de forma sintética, garantem direitos aos trabalhadores por meio de
princípios genéricos.
Sem perder de vista nossa tradição do constitucionalismo social e para dar maior eficácia às bases
de suporte dos direitos dos trabalhadores e valorizar o Direito do Trabalho como expressão de
direitos fundamentais, devemos manter o art. 7.º para servir de freio às tendências
desregulamentadoras, principalmente nos períodos de crise.

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Mas, no lugar do extenso rol, devemos fixar as garantias básicas e os direitos fundamentais dos
trabalhadores. Tais direitos passariam a integrar o conteúdo mínimo do contrato individual de
trabalho, atuando como limites ao poder normativo dos grupos, subtraindo, assim, do âmbito da
autonomia coletiva, os direitos considerados indisponíveis.
Por outro lado, o sistema de fixar as garantias básicas é incompatível com a técnica atual do art.
7.º, que chega a quantificar direitos dos trabalhadores.
Portanto, a fixação de patamares mínimos implica não mais regular, com força constitucional,
acréscimo nas férias ou nas horas extras, preocupar-se com proporcionalidade do aviso prévio ou
com parcelas do salário-mínimo, para exemplificar. Tal proposta não significa abandonar nossa
tradição do constitucionalismo social, nem eliminar ou suprimir direitos fundamentais, como férias,
aviso prévio ou salário-mínimo.
Na reforma do art. 7.º, os direitos previdenciários devem ser transferidos para lugar adequado da
Constituição.
Portanto, com o objetivo de modernizar o Direito do Trabalho, o novo art. 7.º deveria encerrar os
patamares mínimos de proteção ao trabalhador, cuja implantação depende de mudanças culturais,
constitucionais e infraconstitucionais.
Quanto ao aspecto cultural, conforme já acentuado mais de uma vez, implantar patamares
mínimos implica superar a dimensão corporativista das relações trabalhistas.
Do ponto de vista constitucional, é necessário rever o art. 7.º da Constituição, não para suprimir
direitos dos trabalhadores, mas determinar os princípios norteadores da negociação coletiva e da
legislação mínima. Apresentar um rol muito extenso, além de inadequado a uma Constituição, seria
fator de inibição da própria negociação coletiva.
No plano infraconstitucional, a Consolidação da Leis do Trabalho merece imediata reforma para
adaptar-se às novas ideologias e aos novos processo de produção, em especial do art. 468,
guardião dos direitos adquiridos em face da lei ou do contrato.
Em suma, os grandes traços da reforma das relações individuais de trabalho, no que se refere à
proposta do Ministro do Trabalho, poderiam ser assim enunciados:
- reforma do art. 7.º da Constituição, inscrevendo apenas os direitos fundamentais dos
trabalhadores e os princípios norteadores do Direito do Trabalho;
- reforma da Consolidação da Leis do Trabalho, que prevalecerá, na falta de negociação;
- havendo negociação, esta prevalecerá, na forma da previsão legal.
A implantação do sistema segundo o qual o negociado prevalece sobre o legislado dar-se-á no
plano infraconstitucional, observados os seguintes critérios:
- a negociação coletiva não poderá suprimir direitos constitucionais, assegurados pelo art. 7.º,
correspondente aos patamares mínimos e ao espaço vital, exceto se houver expressa previsão
constitucional, a exemplo do que já existe em relação à irredutibilidade do salário;
- a Consolidação da Leis do Trabalho será aplicável a todos os empregados não beneficiados com
a negociação coletiva;
- a negociação coletiva estabelecerá condições de trabalho diversas das previstas na
Consolidação da Leis do Trabalho apenas quando houver expressa previsão nesse sentido,
hipótese em que o negociado prevalecerá sobre o legislado.
Essa proposta de reforma parte do pressuposto de que as normas que regulam as relações entre
empregado e empregador não resultam de uma dádiva do Estado, mas da efetiva participação dos
interlocutores sociais.
É incompatível democracia pluralista e aberta a outros mercados com legislação autoritária e
paternalista outorgada pelo Estado, sem espaço para a participação dos interessados.
Está implícito, na proposta de reforma, que o avanço das relações individuais depende da
implantação efetiva da liberdade sindical. Quanto mais avançam as negoc iações, no sentido de
superar conflitos, mais se aperfeiçoam as próprias relações trabalhistas, o que impõe, no mínimo,
rever o poder normativo da Justiça do Trabalho.
Portanto, embora seja focalizada a questão dos patamares mínimos, no âmbito do direito
individual, não podem ser ignoradas outras reformas, inclusive a sindical.
Esta proposta envolve mais do que reformas conjunturais de âmbito constitucional e legal. Exige
reformas estruturais, que comportem mudanças culturais. Para Aléxis de Tocqueville "o objetivo da

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Revolução Francesa não foi o de apenas mudar um governo antigo, senão o de abolir a forma
antiga da sociedade".
Para terminar, recordamos a lição do Rabino Henry Sobel - Urgência de viver.
Segundo ele, "esperamos demais para fazer o que precisa ser feito, num mundo que só nos dá um
dia de cada vez, sem garantia do amanhã. Enquanto lamentamos que a vida é curta, agimos como
se tivéssemos à nossa disposição um estoque inesgotável de tempo.
Esperamos demais para dizer as palavras de perdão que devem ser ditas, para pôr de lado os
rancores que devem ser expulsos, para expressar gratidão, para dar ânimo, para oferecer consolo.
Esperamos demais para enunciar as preces, para executar as tarefas que estão esperando para
serem cumpridas, para demonstrar o amor que talvez não seja mais necessário amanhã.
Esperamos demais nos bastidores, quando a vida tem um papel para desempenhar no palco.
Deus também está nos esperando parar de esperar. Nos esperando começar a fazer, agora, tudo
aquilo para o qual este dia e esta vida nos foram dados.
É hora de viver" - é hora de mudar.

(1) Michel de Montaine. Os ensaios. Livro I, Martins Fontes, 2000, p. 178.

(2) Luisa Galantino. Impresa e nuovi modi de organizzazione del lavoro. Atti delle giornate di
studio di diritto del lavoro. 22-23.05.1998, Salerno-Milão : Giufrè, 1999. p. 179. Associazione
Italina di Diritto del Lavoro e della Sicurezza Sociale. Amnnuario di Diritto del Lavoro, 33.

(3) Cf., César Augusto Carballo Mena. "Introducción al régimen jurídico de la negociación
colectiva". Revista de La Fundación Procuradoríua 20, Caracas, 1998, p. 37 et seq.

(4) Omar Moreno. Reforma laboral em Argentina. Mexico : Nueva Sociedad, 1995, p. 42 et seq.,
apud César Augusto Carballo Mena. "Introducción al régimen jurídico de la negociación colectiva".
Revista de La Fundación Procuradoríua 20, Caracas, 1998, p. 37 et seq.

(5) Amauri Mascaro Nascimento. "O debate sobre negociação coletiva revista", LTr 64-09, set.,
2000, p. 1.105 et seq.

(6) José Luiz Monereo Pérez. Concertación y diálogo social. Valadolid : Lex Nova, 1999. p. 16 et
seq.

(7) François Terré. "Sur les sources du droit em général et du droit du travail em particulier". Les
Sources du Droit du Travail. Sous la direction de Bernard Teyssié. Paris : PUF, 1998. p. 17 et seq.

(8) François Terré, ibidem, p. 25-26.

(9) Para Jeaummaud, a legislação e a realidade da negociação coletiva constituem realidades


distintas na América Latina. Anntoine Jeaummaud. "Legislación y realidad de la negociación,
apuntes para el análisis de sus relaciones". In Antonio Ojeda Avilés e Oscar Ermida Uriarte. La
negociación colectiva em América Latina. Valadolid : Trotta, 1993. p. 15 et seq.

(10) Amauri Mascaro Nascimento. "Princípios e fundamentos do anteprojeto de modernização das


leis trabalhistas". In: João de Linha Filho Teixeira (Coord.) A modernização da legislação
trabalhista. São Paulo : LTr, 1994. p. 9.

(11) Amauri Mascaro Nascimento. "O debate sobre negociação coletiva", cit.

(12) Georges Ripert. Le regime democratique e le droit civil moderne. Paris : LGDJ, 1948. p. 258.

(13) Conferir o verbete "neoliberalismo" in Paulo Sandroni. Novo dicionário de economia. 9. ed.,
São Paulo : Best Seller, 1998. p. 240.

(14) Arion Sayão Romita. "Intervalo intrajornada em turnos de revezamento", Revista Trabalho e
Doutrina 22, set., 1999, p. 75 et seq.

15 ) "(...) in uma prospettiva che distingue l'inderogabilità dall'indisponibilità, intesa la prima come
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17/04/13 Envio | Revista dos Tribunais

attinente al momento genetico del diritto e la seconda al momento funzionale dello stesso (...)".
Luisa Galantino. Diritto del lavoro, cit., p. 601.

(16) Cf. art. 1339, 1374 e 1419 do Código Civil (LGL\2002\400) italiano.

(17) Luisa Galantino. Diritto del lavoro. Turim : G. Giappichelli, 1994. p. 597.

(18) Idem, ibidem.


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