Você está na página 1de 8

As Cooperativas no Direito angolano: Natureza Jurídica

Por: Hamilton Benjamim Francisco António

Introdução
Qualquer artigo que comece por dizer que “não é uma tarefa fácil…” quer evidenciar
os possíveis questionamentos surgidos das suas próprias conclusões, porquanto a ciência nos
permite questionar infinitamente os fundamentos da nossa certeza.
Ao lançarmos mãos a este debate, que pretende definir a natureza jurídica das
Cooperativas no ordenamento jurídico angolano face às classificações das pessoas colectivas
encontradas em diferentes diplomas legais e que nos remetem quase sempre a divisão entre
Sector Público e Sector Privado, procuramos fornecer as melhores respostas para a clarificação
da mesma, dada a importância que tem, não apenas teórica, mas prática.
É também um estudo que visa levantar um assunto que dada a importância não justifica
a carência bibliográfica que se encerra na nossa praça. É de todo essencial que se compreenda
o regime jurídico das pessoas colectivas quer sejam de natureza pública, privada e por
conseguinte cogitar a possibilidade de haver entre ou ao lado destas outras que possam com ela
harmonizar-se.
Adentramos também nas questões de natureza técnica e complementares que nos
permitem compreender os contornos do debate, as possíveis compreensões e diferentes
perspectivas, confronta-las para daí extrair a resposta às questões colocadas.
O Sector cooperativo tem amparo constitucional onde encontramos a raiz da questão,
dando assim sentido e legitimidade aos questionamentos sobre a natureza jurídica das entidades
que compõe este Sector.
A Lei 23/15 de 31 de Agosto Lei das Cooperativas estabelece o regime jurídico das
Cooperativas aqui objecto de estudo, que nos permite confrontar com o regime jurídico das
entidades pertencentes a outros sectores. Não é pacífica numa primeira vista, mas o trabalho
que enfrentamos remete-nos ao desafio de decifrar esta questão que tem dividido opiniões na
doutrina e jurisprudência.
A questão coloca-se quando o artigo 157.° do CC que prescreve as tradicionais pessoas
colectivas apresenta-nos a Sociedade, as Associações e as Fundações, não fazendo qualquer
referência às Cooperativas o que sugere questionar a sua natureza jurídica.
Por fim, concluir positivamente ou negativamente às questões colocadas pressupõe
assumir uma ou outra posição neste debate, por isso o que procura aqui é assumir uma postura
objectiva quanto aos factos comparando as características dos diferentes sectores e dos
diferentes regimes jurídicos das entidades nela existentes e a partir da conclusão aí tirada
responder de forma consistente, fundamentada e plausível.

I- Da origem à necessidade das cooperativas


Há relatos de que o Cooperativismo existente antecede a própria civilização, porém
mais concretamente aponta Coutinho Abreu que “o movimento cooperativo europeu teve as
suas primeiras tentativas (falhadas) na Escócia na primeira metade do século XVIII e afirmou-
se na Inglaterra no século XIX”, no mesmo sentido vai Reis Júnior citado por Sales quando
realça que de concreto “aconteceu de fato em 1844, em pleno regime de economia liberal, com
a fundação da Sociedade dos Probos Pioneiros de Rochdale (Rochdale Society of Equitable
Pioneers), em Manchester na Inglaterra; associação que, mais tarde, seria chamada de
Cooperativa” (Júnior apud João Sales, p.26).
Surgindo assim teorizada na visão de Rober Owen, Louis Blanc e outros devido a
“indignação diante das desigualdades sociais causadas pelo capitalismo”, hoje as cooperativas
representam a necessidade de uma actuação intermédia em relação aos polos público e privado
baseado na reciprocidade entre os seus membros.
Muito se tem falado nos dias de hoje sobre um possível esquecimento do Sector
Cooperativo e até em muitos casos negada a sua autonomia face aos outros Sectores. Mas dada
a ausência de forças atuantes nos vazios deixados pelos outros sectores e “numa sociedade que
está fortemente estruturada numa óptica competitiva, torna-se imperioso recuperar as formas
de produção solidária para que estas possam colmatar as falhas de funcionamento da economia
de mercado”. (De Almeida) .
Acrescenta Bruno de Almeida que existência das cooperativas é justificada pela procura
de solução para os problemas das Sociedades, que não podem ser fornecidas pelas outras
organizações, quer privadas, quer públicas.
A evolução dos tempos traz consigo desafios para a própria existência das cooperativas
em que a sua presença estará em grande parte ligada a adequação das novas estruturas e novas
formas de desempenho da actividade, ligado ao alargamento dos seus sectores de actuação e a
sua grande ligação com uma função social. É assim que em algumas Leis Constitucionais como
por exemplo a de Portugal o termo Cooperativas vem acompanhada do termo Social. Porém,
não é por isso que em outras realidades onde assim não é não tenha um importante papel social
como é o caso de Angola. Todavia, guardaremos este debate para outros fóruns, porquanto aqui
temos em vista analisar uma perspectiva diferente.
II- Da definição de cooperativas
Cooperativa – “são associações de pessoas, que reciprocamente se obrigam a contribuir
com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem
objetivo de lucro” (Victor Kochhann - Introdução ao Cooperativismo, p.16)
As definições de Cooperativas têm caminhado mais ou menos no mesmo sentido
apresentando em muitos casos pontos de encontro entre uma e outra doutrina, uma e outra
legislação permitindo que pelo menos a nível da definição haja uma harmonia no que concerne
as ideias que se tem de Cooperativas.
A Lei 23/15 Lei das Cooperativas define as Cooperativas como:
As pessoas colectivas autônomas de livre constituição, de capital e composição
variável e de controlo democrático, em que os seus membros se obrigam a
contribuir com recursos financeiros, bens e serviços, para o exercício de uma
actividade empresarial, de proveito comum e com riscos partilhados que visa a
promoção dos interesses sociais e econômicos dos seus membros com um
retorno patrimonial predominantemente realizado na proporção das suas
operações com a cooperativa.
Na primeira definição encontramos um elemento caracterizador das cooperativas que é
o exercício da actividade sem fins lucrativos e na definição legal apresentada realçamos o
aspecto “pessoas colectivas autônomas” não nos permitindo saber de que pessoa colectiva se
trata em função das tradicionais apresentadas no artigo 157.° do CC – Sociedades, Associações
e Fundações.
Outro elemento que vale a pena realçar na definição legal é o elemento “capital
variável” é mais adiante compreenderemos o porquê da importância deste elemento na
definição de Cooperativas.
Por último mas não menos importante destacamos também na primeira definição o
elemento “actividade económica” e aqui é importante realçar que este facto não é suficiente
para apontar as Cooperativas como Sociedades Comerciais é mais adiante veremos.

III- Da natureza jurídica das cooperativas


Na Constituição da República de Angola extrai-se o princípio da coexistência entre os
sectores nos termos do artigo 92.°, isto é, Sector público “constituído pelos meios de produção
cujas propriedade e gestão pertencem ao Estado ou outras entidades públicas, Sector Privado
constituído pelos bens e unidades de produção cuja propriedade e gestão pertencem a pessoas
singulares ou colectivas privadas e Sector Cooperativo que compreende os meios de produção
geridos por cooperativas de acordo com princípios cooperativos” (Helena Prata, pp.97-98)
Dada esta realidade e analisando que se por um lado temos o leque das pessoas
colectivas Públicas e por outro lado nos termos do artigo 157.° do Código Civil temos outras
que integram o Sector privado sugere questionar se as Cooperativas se reconduzem a uma
destas pessoas colectivas descritas. Surge então a necessidade de classificarmos, no
ordenamento jurídico angolano, a figura das Cooperativas.
Como refere Fróis (p.1):
“a evolução do debate levou a que, actualmente, possamos distinguir três grandes
correntes doutrinárias sobre a natureza jurídica das cooperativas Uma primeira corrente
que nega a natureza societária das cooperativas, essencialmente por estas últimas não
terem (nem poderem ter), um fim lucrativo em sentido estrito, característica, esta, que
define as primeiras. As cooperativas seriam, portanto, um tipo de associação. Uma
segunda corrente que, recorrendo, por um lado, a um sentido amplo do conceito de
lucro, e, por outro lado, desvalorizando o fim lucrativo como traço definidor das
sociedades comerciais, vê, afinal, afinidades entre ambas de tal forma estreitas que
tendem a considerar as cooperativas como sociedades (ainda que em sentido amplo).
Finalmente, uma terceira corrente que vê nos princípios cooperativos e nas funções
mutualista e social, traços de tal forma distintivos que tornam as cooperativas num
tertium genus, diferentes quer das sociedades comerciais, quer das associações.
A par desta discussão, existiu outra, hoje menos relevante, acerca do carácter mercantil
das cooperativas.
Para a definirmos e situarmo-nos neste debate faremos mãos ao critério comparativo,
colocando lado a lado características das pessoas colectiva mencionadas no artigo 157.° do
Código Civil com exclusão das fundações,, porém aqui analisaremos apenas as características
que se afiguram essenciais para a compreensão e diferenciação das mesmas. Assim
analisaremos duas características que nos permitem distinguir as Cooperativas das Sociedades
Comerciais: 1) o fim lucrativo, 2) a natureza empresarial, 3) capital social; e por fim saber se
se trata então de uma associação ou outra pessoa colectiva distinta.
1) Escopo Lucrativo ou fim lucrativo
Se se pode considerar que não é pacífica a visão segundo a qual as cooperativas não
têm fins lucrativos, ao menos se pode afirmar que esta é a visão partilhada por boa parte da
doutrina e tem sido, por conseguinte, utilizado como forma de distancia-la da figura das
Sociedades Comerciais.
O conceito de lucro pode ser repartido em duas perspectivas que nos dizeres de David
Fróis falar em lucro em sentido amplo, se pretendermos abranger tanto o acréscimo patrimonial
como a poupança de despesas. Nesta acepção, a vantagem tanto pode ser gerada na própria
sociedade como no património de cada sócio. O que releva é que haja um benefício patrimonial
para os sócios, cuja fonte é a actividade social. Por oposição à anterior, falaremos de lucro em
sentido restrito, quando nos reportarmos ao ganho que amplia ou multiplica o capital investido,
o qual se destina a ser dividido posteriormente (seja periodicamente, no final de cada exercício,
seja no termo da actividade social) pelos sócios.
Esta divisão é importante porquanto em algumas ocasiões estaremos a falar em lucro
numa perspectiva ampla e lucro numa perspectiva restrita e chamar atenção a este aspecto fará
com que melhor se compreenda o que se pretende apresentar. É visível que entre aqueles que
defendem que as Cooperativas têm escopo lucrativo fazem uso do conceito amplo de lucro
englobando as vantagens que a actividade por elas desempenhadas representa no património
dos seus membros, porém, é o conceito de lucro restrito que tem feito carreira em matéria de
Sociedades Comerciais, de qualquer modo o conceito de lucro está para Sociedades Comerciais
assim como o conceito de excedente está para as Cooperativas.
Assumimos que as cooperativas não têm fins lucrativos e já lá vamos perceber o porquê.
É que apesar de as cooperativas poderem desempenhar actividade económica, porquanto,
podem estar organizadas em forma de empresa, o fim desta actividade não é o lucro, por isso
que para diferenciar uma realidade da outra utiliza-se, em sede das cooperativas, a expressão
excedente.
Para os defensores da visão de que o lucro é elemento essencial das Sociedades
Comerciais, “o elemento teleológico da finalidade lucrativa constitui a natureza essencial das
sociedades comerciais e da manifestação de vontade típica de criação ou de adesão à
sociedade.” (Pereira de Almeida apud Fróis p. 54). Assim se compreende que as Sociedades
Comerciais são orientadas para a busca do lucro e distribuí-los aos seus sócios.
Sobre a questão de poderem ser os excedentes distribuídos tal como os lucros Fróis
destaca dois aspectos importantes: primeiro que ab início as vantagens ingressam directamente
para o património dos cooperadores sem passar pela cooperativa e segundo que os excedentes
não visam ampliar o capital investido pelo cooperador.
No entendimento do artigo 96.° da Lei das Cooperativas extrai-se que a distribuição de
excedentes é uma actividade que ocorre da relação entre os membros constituindo deste modo
uma vantagem pré-existente é resultante da cooperação entre ambos, uma vez que o n.°1 deste
artigo proíbe a distribuição de excedentes que tenham resultado da relação com terceiros é
impróprio falar-se de lucro nas cooperativas.
Finalmente, outra diferença de monta reside no facto de, “nas cooperativas, só ser
distribuível o resultado obtido nas relações com os próprios cooperadores, ao passo que nas
sociedades é absolutamente indiferente a origem dos resultados” (Fróis, p.69)
Além do escopo lucrativo existente nas Sociedades Comerciais e ausente nas
Cooperativas, existem outros pontos capazes de estabelecer uma diferenciação nítida entre as
Cooperativas e Sociedades Comerciais como por exemplo o Capital Social que nas
Cooperativas é variável nos termos do artigo 31.° da Lei das Cooperativas e nas Sociedades
Comerciais é fixo. Enfim, como se mencionou a princípio as Cooperativas não são Sociedades.
2) As Cooperativas como Empresa
Apesar dos fins a que se propõe e do papel social que desempenham, para as
desempenhar não se pode negar que as cooperativas podem organizar-se como empresas
direccionadas ao exercício de uma actividade económica. .
Como ressalta Coutinho de Abreu Empresa (em sentido objectivo) “é uma unidade
jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de exercício
relativamente estável de uma actividade comercial” (Volume I)
Tal como realça Sofia Vale “em sentido objectivo, a empresa é, pois, uma estrutura
produtiva ou económica, a qual pode ser objecto de direitos ou de negócios”. Apesar destas
definições apresentadas para nos iluminar sobre o que vem a ser Empresa, existem outras
acepções em que se pode falar de empresas, mas esta questão não será aqui objecto de análise
e discussão.
Como realça João Pires “a cooperativa é uma empresa que abarca os dois sentidos (no
subjectivo, por ser uma entidade que exerce actividade económica), mas a cooperativa é uma
empresa de prestação de serviços”.
Porém, a Empresarialidade das cooperativas não pode a remeter para o fim lucrativo,
porquanto não é elemento de existência da Empresa e não a pode remeter a Sociedades
Comerciais, porquanto são realidades distintas, apesar da ligação.
3) Cooperativa: uma Associação pura?
Definido no artigo 2º da Lei das Associações Privadas como “pessoas colectivas
constituídas por duas ou mais pessoas singulares ou colectivas e que não têm por fim o lucro
económico dos associados.” Como se pode perceber, das coisas que se pode equiparar as
Associações às Cooperativas é o facto de ambas não terem por fim a obtenção de lucro, porém
este facto não nos remete necessariamente a concluir que as Cooperativas sejam Associações.
Se não vejamos:
Tal como se consegue depreender a Cooperativa tem estrutura empresarial e as
Associações puras não. Por outro lado, concordamos com Sofia Vale quando afirma que “as
cooperativas não são sociedades comerciais”, apesar do regime tradicional do Código
Comerciais a definem como “Sociedades Cooperativas” sabe-se hoje que tal classificação é
questionável. Ainda assim, apesar de haver muitas semelhanças entre as Associações puras e
as Cooperativas, tal como o facto de em ambas comportam regimes jurídicos que facilita a
entrada de membros como por exemplo o princípio da porta aberta, elas atendem a realidades
distintas.
Outra constatação que nos ajuda a distanciarmo-nos da ideia de Cooperativas como
Associação pura, é o facto de as primeiras terem capital social e as segundas não. Como
conseguimos constatar no artigo 31° da Lei das Cooperativas.
Pires ressalta ainda que “para além do fim cultural, social, as cooperativas visam
também fim económico e as associações visam, em rigor, fins sociais” (p.24). Tal como
referenciamos no início da abordagem as cooperativas através do seu sistema de entre-ajuda
dos seus membros procura através de uma actividade económica atingir os seus fins.
Tal como se pode perceber do dito acima não se pode reconduzir a figura das Cooperativas às
Associações, ademais há no ordenamento jurídico angolano um diploma legal específico para
tratar das Cooperativas onde conseguimos perceber a partida pela sua definição a intenção do
legislador em deixar aberta a questão ao não qualificar as Cooperativas nem como Sociedade
nem como Associação.

CONCLUSÃO
A questão da definição da natureza jurídica das Cooperativas não é pacífica, pois a
doutrina encontra-se dividida quanto a sua classificação. Como referenciamos no início da
nossa abordagem alguns entendem que se trata de uma Sociedade, mesmo que especial, outros
entendem que se trata de uma Associação e outros não reconduzem a natureza jurídica das
Cooperativas a nenhuma das figuras admitindo assim a existência de uma pessoa colectiva
distinta das demais, que partilha ponto comuns com outras pessoas colectivas sim, mas que se
distingue quanto a natureza jurídica. Concordamos com esta última posição, pois, além dos
argumentos aqui adiantados a própria Constituição da República de Angola estabelece o
princípio da Coexistência entre os três sectores, demonstrando desde logo a intenção do
legislador angolano em dar a cada Sector pessoas colectivas com características próprias. Ora
admitindo que são as Cooperativas um tipo de pessoa colectiva distinta das outras sendo ela
mesma sem precisar de procurar similitude forçada dá margens para que se cogite e com razão
a divisão tradicional entre Direito Público e Direito Privado, incluindo assim um Sector
Cooperativo cuja regulação é feita através de um Direito Cooperativo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Jorge, 2009. Curso de Direito Comercial. 3ª Edição, Volume II, Almedina, Coimbra.
ABREU, Jorge, 2009. Curso de Direito Comercial. 3ª Edição, Volume I, Almedina, Coimbra.
FRÓS, David, 2012. A Natureza Jurídica Das Cooperativas, Lisboa.
DE ALMEIDA, Bruno, 2005. O Sector cooperativo em Portugal: aspectos econômicos.
PIRES, João. 2020, As Cooperativas no Direito Angolano – A Desqualificação como
Sociedades Comerciais.
PRATA, Helena, 2010. Lições de Direito Económico. 1ª Edição, Casa das Ideias, Luanda.
VALE, Sofia, 2015. As Empresas no Direito Angolano, 2ª Edição.
KOCHHANN, Victor, 2014. Introdução ao Cooperativismo, UFSM, Santa Maria.
SALES, João, 2010. Cooperativismo: Origens e Evolução, Revista Brasileira de Gestão e
Engenharia.

Você também pode gostar