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Notas típicas de Direito Comercial: Responsabilidade Comercial

João Pires1
1. Notas típicas Direito comercial
1.1. Direito comercial vs direito civil
O direito comercial foi absorvido, durante anos, pelo direito civil, integrando-se nos códigos civis,
mas as suas notas típicas permaneceram intactas até hoje, aliás, o espírito do comércio, o modo
de ser e de actuar dos comerciantes se revelam (vam), indubitavelmente, incompatíveis com o
direito civil e é hoje, tendencialmente, empresarial2.
Para situar, o direito comercial surgiu3 com a criação das actio exercitória4 e actio institória5 que
visavam resolver problemas típicos que não podiam ser resolvidos pelo direito civil, a saber: a
forma de responsabilização do exercitor ou gerente de navios pelos actos praticados pelo
magister6 e de responsabilização do dono da loja pelos actos praticados pelo seu gerente7/8.
Em direito comercial, os administradores não são comerciantes porque actuam em nome alheio,
são representantes orgânico-funcional da empresa9 e, do ponto de vista jurídico, quem pratica os
actos de comércio, danosos é a “empresa”.
Ora, a empresa, enquanto ente colectivo, actua através de representantes, logo se estes causarem
danos, considera-se que os danos foram causados pela empresa, pois juridicamente é a empresa
quem pratica tanto os actos de comércio como os actos danosos. Se assim é, a responsabilidade é
própria e por danos que resultam da actuação dos representantes no exercício das suas funções.
Por esta razão, diz-se que a responsabilidade comercial é por “representação”.
Já é diferente, se o administrador causar o dano fora do exercício da sua actividade, neste caso,
estaremos diante da responsabilidade civil por facto de outrem porque não houve representação,
logo, aplicaríamos analogicamente os artigos 500.º e 800.º, ambos do CC na relação estabelecida
entre o gerente-administrador e o comerciante (a empresa).
A responsabilidade comercial visa tutelar o “mercado” que só funciona através da confiança
positiva e por meio da representação orgânica.
Em direito civil, é a própria pessoa física que actua, sem representação e quando a sua actuação
causar danos a outrem, imputa-se-lhe a responsabilidade civil. Entretanto, a pessoa física pode
fazer-se representar por alguém nos termos dos artigos 500.º e 800.º, ambos do CC.

1
Mestrando em Ciências Jurídico-Empresariais, Advogado Estagiário, Docente Universitário.
2 Neste tema, seguimos de perto, Vasconcelos, Pedro Pais de, Responsabilidade Comercial – primeira questão, in
Revista de Direito Comercial, 2019, https://www.revistadedireitocomercial.com/responsabilidade-comercial, págs. 288
e ss.
3 Quanto ao surgimento do direito comercial, recomendamos Evaristo Mendes, Breve introdução histórica ao Direito

Comercial Português, in Revista de Direito Comercial, 03-05-2015, https://www.revistadedireitocomercial.com/breve-


introducao-historica-ao-direito-comercial-portuges [28-07-2019].
4 Acção típica para responsabilizar o exercitor no comércio marítimo.
5 Acção típica para responsabilizar o dono da loja no comércio terrestre.
6 Sujeito que negociava com terceiros no comércio marítimo.
7
Sujeito que negociava com terceiros no comércio terrestre.
8 Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., pág. 786.
9 Hoje o direito comercial é um direito das empresas ou à volta das empresas, sobre esta temática, recomenda-se Abreu,

Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 10ª ed., 2016, Almedina, págs. 43 e ss.

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Esta representação é “voluntária10”. E se o representante causar danos? Como a actuação é
pessoal, a responsabilidade é, em princípio, do representante, mas se o representado for
responsabilizado, em virtude da relação existente, estará respondendo por facto de terceiro já que
não foi ele quem praticou o acto danoso11, por isso, por exemplo, o n.º 1 do artigo 800.º, do CC
diz que o representado (devedor) responde “como se tais actos fossem praticados pelo próprio
devedor12”.
Dito de outro modo, os representantes nos artigos 500.º, e 800.º actuam nome próprio, mas por
conta e sob a direcção de outrem, portanto, trata-se de situações de “responsabilidade civil por
facto de outrem13”.
Deve-se salientar que os artigos citados diferem no seguinte: no artigo 500.º imputa-se a a
responsabilidade civil e no 800.º imputa-se o “acto danoso”, pois a norma é de origem comercial,
é, por isso, que em direito civil é considerad uma situação atípica14.
A responsabilidade civil tem natureza de pena privada, por isso, é definida como “ a vinculação
do lesante à reparação de um dano sofrido pelo lesado15”.
O direito comercial e o direito civil diferem também no âmbito da confiança. É o ponto a seguir.
1.2. Tutela Positiva da Confiança em Direito Comercial
Em direito comercial vigora a confiança positiva 16 que nos conforta comprar um bem sem pedir
os documentos do representante para aferirmos se é ou não legítimo representante da empresa.
É verdade que nos negócios formais exige-se a certidão comercial mais actualizada para se aferir
se o representante é ou não legítimo, mas essa solicitação, em rigor, ocorre no início da relação,
já que nas relações duradouras, as partes perdem o interesse de solicitar sempre a documentação,
confiando que é o legítimo representante.
Esta solução é fundamentada na celeridade negocial que é uma das características típicas de
direito comercial e o formalismo exagerado é uma característica essencial do direito civil. Ou
seja, em direito comercial, a confiança positiva vale muito e é a força motora do funcionamento
do mercado. Sem a qual, não há mercado, logo a confiança positiva deve ser tutelada.
A confiança firma-se mais com a exibição da marca17 da empresa ou qualquer sinal distintivo da
actividade do comerciante18, e conforta-nos para não nos interessarmos na pessoa do
representante, mas sim no bem a adquirir.

10 É voluntária porque decorre da vontade do representado.


11 Neste sentido, Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., pág. 316.
12 Em direito comercial, a responsabilidade é própria e o comerciante responde em nome próprio e não como se fosse.
13 Ora, o representado é responsabilizado por causa do ubi commoda ibi incommoda e também pela defesa do credor

no sentido de não ser prejudicado pela actuação de um terceiro no cumprimento da obrigação do devedor, vide
Martinez, Pedro Romano, Direito das Obrigações, 2ª ed., AAFDL, 2004, pág. 87, Leitão, Luís Teles de Menezes,
Direito das Obrigações, Vol. I, pág. 276.
14 Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., nt. 44 – pág. 318.
15 Vide Fernandes, Orlando, Direito das Obrigações: Introdução e Fontes, Vol. I, Artipol, 2017, Luanda, pág. 167.
16 Na confiança negativa, o confiante (ex.: comprador) dispõe do direito a indemnização na eventual quebra de

confiança, sobre esta temática, recomenda-se vide, Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., pág. 319, bem como a nota 47.
17 Por exemplo, os clientes ou compradores depositam a confiança na marca do comerciante e não na pessoa em

concreto que estiver a materializar o negócio. Por exemplo, quando se pretende comprar chip da Movicel ou da Unitel
o comprador não se preocupa com a pessoa que estiver a efectivar o negócio, mas confia na marca do comerciante, que
é a Unitel ou a Movicel, por isso, é indiferente saber quem materializou o negócio, essa confiança na marca do
comerciante fomenta a fungibilidade do representante do comerciante.
18 Sobre as marcas ou outros sinais distintivos, vide Vale, Sofia, As Empresas no Direito Angolano: Lições de Direito

de Comercial. Reimpressão, 2015, págs. 333 e ss; Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, Vol.
I, 10ª ed., 2016, Almedina, págs. 359 e ss.

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Por esta razão, dissemos sem a tutela da confiança positiva não há “mercado”.
Ora, a violação desta confiança gera, em direito comercial, responsabilidade pela confiança como
“primeira via” porque tutela a “confiança positiva” baseada na celeridade negocial, exigida pelo
comércio.
Já em Direito civil, a responsabilidade pela confiança é a terceira19 via20 porque tutela a
“expectativa jurídica21”, fundamentada pelo formalismo exagerado, e exigido pelo direito civil
para conclusão de negócios jurídicos.
Tomando as certeiras palavras do Prof. Pedro Pais de Vasconcelos que diz “face a esta confiança,
no mercado os terceiros não negoceiam com o comerciante, nem com a sua empresa, o seu
estabelecimento, os seus trabalhadores ou outros auxiliares. Os terceiros negoceiam com a
marca22”.
Se assim é, a confiança deve ser tutela.
Tendo em conta estas notas típicas de direito comercial, somos de opinião que o direito civil não
pode ser de aplicação imediata como faz crer certos autores23, mas é necessário cumprir a ordem
estabelecida no artigo 3.º, do CCom. 24 e só na inexistência de uma regra comercial que possa
regular o caso e que se pode aplicar subsidiariamente o direito civil, nomeadamente os artigos
500.º, e 800.º.
Esta solução é justificada pelo facto dos artigos 500.º, e 800.º, ambos do CC carregarem notas
típicas de direito civil e por tratarem a responsabilidade civil por actos de terceiros. No entanto,
atentem o exposto no ponto seguinte:
1.3. Notas sobre o artigo 500.º e 800.º, ambos do Código Civil
A responsabilidade civil surgiu por força da Lex Aquilia, desde meados do séc. III, a.C., que fixava
duas variantes de responsabilidade civil, a saber:
a) Responsabilidade civil pelos danos causados pelas pessoas livre contra a propriedade de alguém
(a fonte do artigo 483.º, do CC); e
b) A responsabilidade civil noxal pelos danos causados pelo servo (sem personalidade jurídica e
património) ou pelo animal do pater famílias25, que consistia na obrigação de o pater família
indemnizar o lesado mediante entrega do servo ou do animal que causa o dano, é o que se chamava
por noxal26.
A segunda variante tem como legado artigo 500.º, do CC, apesar de comportar um figurino
diferente, senão vejamos:

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Em direito civil, a terceira via de responsabilidade, em rigor, só ocorre em 4 situações, a saber: culpa in contrahendo,
a culpa post pactum finitum, o contrato com eficácia de protecção de terceiros e a relação corrente de negócios, vide de
forma resumida Martinez, Pedro Romano, Direito das Obrigações, 2ª ed., AAFDL, 2004, pág. 87, Leitão, Luís Teles
de Menezes, Direito das Obrigações, Vol. I, págs. 332 e ss.
20 Para este efeito, vide vide Pedro Leitão de Vasconcelos, Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., págs. 305, 320.
21 Quanto ao conceito de expectativa jurídica e certos exemplos, vide Sousa, Rabindranath Capelo de, Teoria Geral do

Direito Civil, Vol. I, Coimbra, 2003, págs. 237 e ss.


22 Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., pág. 314.
23 Por exemplo, Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 10ª ed., 2016, Almedina, págs.

58 e ss., Correia, Miguel J. A. Pupo, Direito Comercial: Direito da Empresa, 10ª ed., 2007, Coimbra, pág. 32, etc.
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No mesmo sentido, Vale, Sofia, As Empresas no Direito Angolano: Lições de Direito de Comercial. Reimpressão,
2015, pág. 42; Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., págs. 302 e ss.
25 Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., págs. 290 e ss.
26 Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., págs. 292 e ss.

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No artigo 500.º, o pater famílias foi substituído por comitente, o servo por comissário com
personalidade jurídica e dispõe de património próprio e pode ser responsabilizado, não havia
subordinação jurídica, agora a relação comitente e comissário é caracteriza pela subordinação
jurídica e já não se admite a dação noxal27.
Pedro Pais de Vasconcelos critica que o artigo 500.º foi elaborado em termos muito diferentes da
sua fonte, pois o regime original de responsabilidade noxal era de danos causados por um bem
(animal) ou servo sem personalidade jurídica e sem património, ressarcidos pelo pater famílias
ou seja responsabilidade do dono da propriedade28.
Já o artigo 800.º, do CC é uma figura de origem comercial, pensada na responsabilidade do dono
do negócio e os servos do artigo 800.º, gozavam certa liberdade e dispunham de património.
Por fim, entendemos que só teremos regimes jurídicos mais ou menos sólidos sobre a legislação
comercial se conhecermos profundamente as origens deste ramo de direito, as suas notas típicas
e as suas finalidades. Ora, o seu desconhecimento faz com que o direito comercial seja confundido
com o direito civil.

Referências Bibliográficas

Abreu, Jorge Manuel Coutinho de, Curso de Direito Comercial, Vol. I, 10ª ed., 2016, Almedina
Correia, Miguel J. A. Pupo, Direito Comercial: Direito da Empresa, 10ª ed., 2007, Coimbra
Evaristo Mendes, Breve introdução histórica ao Direito Comercial Português, in Revista de Direito Comercial, 03-05-
2015, https://www.revistadedireitocomercial.com/breve-introducao-historica-ao-direito-comercial-portuges
Leitão, Luís Teles de Menezes, Direito das Obrigações, Vol. I.
Martinez, Pedro Romano, Direito das Obrigações, 2ª ed., AAFDL, 2004
Orlando, Direito das Obrigações: Introdução e Fontes, Vol. I, Artipol, 2017, Luanda
Sousa, Rabindranath Capelo de, Teoria Geral do Direito Civil, Vol. I, Coimbra, 2003
Vale, Sofia, As Empresas no Direito Angolano: Lições de Direito de Comercial. Reimpressão, 2015
Vasconcelos, Pedro Pais de, Responsabilidade Comercial – primeira questão, in Revista de Direito Comercial, 2019,
https://www.revistadedireitocomercial.com/responsabilidade-comercial
Vasconcelos, Pedro Pais de, Responsabilidade Comercial – primeira questão, in Revista de Direito Comercial, 2019,
https://www.revistadedireitocomercial.com/direito-comercial-e-natureza-das-coisas

27 Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., págs. 299 e ss.


28, Vasconcelos, Pedro Pais de, ob. cit., pág. 301.

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