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Contrato de Abertura de Crédito e a Covid-19

Tendo em conta a situação pandémica do novo coronavírus, o executivo angolano, no âmbito do Decreto
Presidencial n.º 98/20, de 9 de Abril – Medidas de alívio do impacto económico provocado pela
pandemia da Covid-19 sobre as empresas, as famílias e o sector informal da economia (adiante DP1),
previu algumas medidas no n.º 2 do ponto i) do DP1 que consistem em financiar as Micro, Pequenas e
Médias Empresas (adiante MPME1) para fazer face ao problema de tesouraria e liquidez destas empresas.

Nesta sequência, aprovou-se um crédito de 488 mil milhões de kwanzas para concretizar os planos gizados
no decreto supracitado que serão levados a cabo pelo FADA, BDA, FACRA no sentido de celebrarem
contratos com as MPMEs.

A título ilustrativo, o n.º 2. ii) do i) do DP1, diz, em síntese, que o BDA deve disponibilizar uma “linha de
crédito” de 26,4 mil milhões de kwanzas, maturidade de 2 anos, taxa de 9%, 180 dias de carência de
capital.

Diante desta orientação, pretende-se indagar se o contrato que melhor salvaguarda os interesses das
MPMEs, nesta fase da Covid-19, é o “Contrato de abertura de crédito” (adiante CAC) ou o Contrato de
empréstimo bancário (adiante CEB).

Se fôssemos responsáveis deste projecto, elegeríamos o CAC como instrumento jurídico ideal para aliviar
e financiar as actividades das MPMEs mediante a disponibilização do crédito que seria utilizado por estes,
se houver necessidades, ou seja, “a quantia a disponibilizar se adequa às necessidades do creditado e o
pagamento dos juros seja calculado com base na quantia disponibilizada e com o tempo de utilização do
crédito2”.

Diferentemente no CEB, o creditado (MPMEs) responsabiliza-se pelos: i) valores efectivamente utilizados;


ii) comissão de abertura; iii) juros; iv) e uma eventual comissão de imobilização pelos valores
disponibilizados mas não utilizados. Isto significa se o creditado (MPMEs) não utilizar os fundos
disponibilizados ou se não tiver necessidades para os utilizar, responsabiliza-se pela comissão de
imobilização e juros.

Esta solução está associada ao direito de crédito de que o creditado é titular apesar de estar condicionado
aos tipos de produtos ou actividades a financiar, por isso, a “disponibilização de crédito” visa a apresentação
de um projecto junto do creditante (ex.: BDA) sob pena de recusa.

Ora, o CAC e o CEB diferem-se pelo seguinte:

a) O CAC tem como objecto a disponibilização de crédito e a conclusão do contrato não depende da
entrega do dinheiro, enquanto, CEB tem como objecto o “dinheiro” e a conclusão do contrato
depende da entrega do dinheiro; no CAB, o creditado tem um direito de crédito3 usado quando
houver necessidade já que não sabe e nem tem a certeza quando a terá, no CEB, o mutuário tem
uma “obrigação” e fica logo obrigado a reembolsar e a pagar os juros ao mutuante;
b) No CAC quem se obriga é o creditante (banco), já no CEB quem se obriga é o mutuário. No CAC,
o creditado precisa da solvabilidade alheia (banco), já no CEB, o mutuário precisa de quantia certa
e não a solvabilidade alheia. No CAC, o creditado prevê a utilização de fundos disponibilizados
quando houver razões, mas não tem a certeza de que vão ocorrer, já no CEB, o mutuário tem fins
já preexistentes, concreta a dar o dinheiro mutuado.

1
MPME distingue-se pelo número de trabalhadores efectivos e o volume de facturação total anual, de acordo com o artigo 5.º, da Lei
n.º 30/11, de 13 de Setembro – Lei das Micro Pequenas e Médias Empresas, nos seguintes termos: i) Diz-se micro empresa a que
dispõe até 10 trabalhadores ou que durante recebe um valor total de USD 250 MIL resultante das vendas ou prestação de serviço; ii)
Diz-se pequena empresa a que dispõe no mínimo 11 a 100 trabalhadores ou que durante recebe um valor total de USD 251 MIL a
USD 3 milhões resultante das vendas ou prestação de serviço e iii) Diz-se média empresa a que dispõe no mínimo 101 a 200
trabalhadores ou que durante recebe um valor total superior a USD 3 milhões a USD 10 milhões resultante das vendas ou prestação
de serviço.
2
Luz, Gilson Jorge Santos da, Contrato de Abertura de Crédito Bancário: Efeitos e Cessação do Contrato, Lisboa, 2014, pág. 9, bem
como a nota 24.
3
Vide Esteves, Maria João Pinto, Das Garantias no Contrato de Abertura de Crédito, Lisboa, 2012, pág. 5.
Por outras palavras, lança-se à mão ao CAC quando há incertezas, i.e. não se sabe se as MPMEs terão a
necessidade de utilizar ou não fundos disponibilizados e se for o caso, terá que ser na medida das
necessidades e o creditado se torna “credor”, mas após a disponibilização integral do crédito, o “creditante”
passa a ser o “credor”. Então, face à Covid-19, o CAC é o melhor instrumento jurídico, rejeitando assim o
CEB já que o mutuário é desde já devedor e tem a certeza das suas necessidades, i.e. sabe desde já o destino
a dar o dinheiro.

Afirmamos que o creditado é titular de “direito de crédito4” já que o “crédito é o poder de compra conferido
[MPMEs] a quem não tem o dinheiro necessário para realizá-la5”, o logo não é sinónimo de dinheiro. O
termo “crédito” provém de latim, creditum que significa confiar, acreditar e é, genericamente, definido
como a prestação actual de um bem em troca de uma contraprestação futura através da remuneração6.

Deve-se salientar que o CAC não tem um regime jurídico próprio, é, pois, atípico apesar de nominativo nos
termos do artigo 362.º, do Código Comercial (adiante CCom.) e é, normalmente, reduzido a escrito ou
noutra forma mais solene, mas pode seguir o exposto no artigo 219.º, do Código Civil (adiante CC), é
contrato consensual por não necessitar da entrega de dinheiro para conclusão7 do contrato8, pois ocorre com
a definição dos termos essenciais da “disponibilização do crédito”9, reza o artigo 232.º, do CC.

É um contrato imperfeito e não sinalagmático porque é o banco (creditante) quem se vincula a colocar a
“disponibilidade”, ficando o creditado (MPMEs) com o direito de utilizar os fundos disponibilizados10.

O CAC não é um contrato de financiamento (adiante CF), mas sim contrato de crédito (adiante CC), apesar
de os CF serem CC em “sentido amplo”, mas diferem-se em sentido restricto11 na medida que o CC tem
como objecto o “adiantamento de dinheiro” ou disponibilização de dinheiro” (ex.: empréstimo, abertura
de crédito, crédito ao consumo, etc.), enquanto, o CF tem como objecto “a prestação de serviços” (ex.: a
locação financeira ou leasing, cessão financeira ou factoring, titularização de crédito ou securization,
monitorização de créditos ou forfainting e project finance).

Convém salientar que o CAC não tem definição legal12, mas é definido como aquele pelo qual o creditante
(Banco) se obriga a colocar à disposição do creditado (MPME) uma determinada quantia pecuniária
(acreditamento ou “linha de credito”), ficando o creditado obrigado, em caso de utilização, a reembolsar
as quantias efectivamente levadas, acrescido de juros (remuneratórios) e uma possível comissão de
imobilização pelo não uso das quantias13.

Na celebração do contrato, em rigor, o creditante (banco) e o creditado (MPMEs) celebram um CAC em


conta-corrente14 onde “o creditado tem a possibilidade de fazer vários levantamentos, assim como, tem a
possibilidade de efetuar depósitos (revolving credit) de modo a diminuir a quantia debitada na sua conta,
repristinando o montante do crédito, podendo efetuar novos levantamentos”15. Quer dizer que o creditado
pode fazer levantamento, bem como efectuar depósitos, mas se assim o fizer e não proceder ao
levantamento significa que procedeu ao pagamento parcial do crédito é o que se chama revolving credits16.

4
De natureza “potestativo”.
5
Esteves, Maria João Pinto, Das Garantias no Contrato de Abertura de Crédito, Lisboa, 2012, pág. 1.
6
Antunes, José A. Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2012, pág. 496.
7
O CAC é definitivo e autónomo, logo os levantamentos não são considerados contratos de execução contínua já que o creditado
pode ou não mobilizar os fundos disponibilizados, aliás, a disponibilização pode ocorrer de uma só vez.
8
Já no contrato de mútuo exige-se a entrega de dinheiro para conclusão do contrato.
9
Esteves, Maria João Pinto, Das Garantias no Contrato de Abertura de Crédito, Lisboa, 2012, pág. 4.
10
Sobre esta temática, vide Fernandes, Orlando, Direito das Obrigações: Introdução e Fontes, Vol. I, Artipol, 2017, Luanda, págs. 87
e ss.
11
Vale, Sofia, As Empresas no Direito Angolano: Lições de Direito de Comercial. Reimpressão, 2015, pág. 113.
12
Já no Código Civil Italiano de 1942, o art. 1842 do Código Civil italiano define- o do seguinte modo “ L’apertura di credito
bancario è il contratto col quale la banca si obbliga a tenere a disposizione dell’altra parte una somma di danaro per un dato periodo
di tempo o a tempo indeterminato”.
13
Para mais compreensão sobre este conceito, vide Gouveia Pereira, Sofia, O Contrato de Abertura de Crédito Bancário, 1ª edição,
Cascais, Principia, 2000, p. 7, Antunes, José A. Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2012, págs. 502 e ss., Luz,
Gilson Jorge Santos da, Contrato de Abertura de Crédito Bancário: Efeitos e Cessação do Contrato, Lisboa, 2014, pág. 9.
14
O CAC pode ser simples se o creditado tiver o direito a mobilizar o crédito uma só vez apesar de poder efectuar vários levantamentos
ou seja, o crédito disponibilizado pode ser levantado várias vezes, mas não pode repristinar com a entrada as quantias disponibilizadas.
15
Luz, Gilson Jorge Santos da, Contrato de Abertura de Crédito Bancário: Efeitos e Cessação do Contrato, Lisboa, 2014, pág. 17.
16
Vide vide Luz, Gilson Jorge Santos da, Contrato de Abertura de Crédito Bancário: Efeitos e Cessação do Contrato, Lisboa, 2014,
págs. 22 e ss.
Ora, o CAC em conta conta-corrente diferencia-se do contrato de conta-corrente mercantil (artigo 344.º, do
CCom) e do contrato de conta-corrente bancária nos seguintes termos: i) o CAC é um contrato imperfeito
e destina-se a conceder créditos, já o contrato de conta-corrente mercantil é sinalagmático e não se destina
a concessão de crédito e ii) o contrato de conta corrente bancária tem como objecto a prestação de serviços
de caixa17, enquanto, o CAC tem como objecto a disponibilização de crédito ou fundos ao creditado18.

Em derradeiro, o CAC pode ser a descoberto (sem garantia real ou pessoal) ou caucionado (com garantia
real ou pessoal).

Em conclusão, entendemos que só nestes termos que as MPMEs podem efectivamente sentir-se aliviadas,
pois cada MPMEs poderá utilizar os fundos disponibilizados se houver razões e na medida das suas
necessidades.

João Pires,

Advogado Estagiário

Mestrando em Ciências Jurídico-Empresariais

Fontes:

Antunes, José A. Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2012


Esteves, Maria João Pinto, Das Garantias no Contrato de Abertura de Crédito, Lisboa, 2012
Fernandes, Orlando, Direito das Obrigações: Introdução e Fontes, Vol. I, Artipol, 2017, Luanda
Gouveia Pereira, Sofia, O Contrato de Abertura de Crédito Bancário, 1ª edição, Cascais, Principia, 2000
Luz, Gilson Jorge Santos da, Contrato de Abertura de Crédito Bancário: Efeitos e Cessação do Contrato,
Lisboa, 2014
Vale, Sofia, As Empresas no Direito Angolano: Lições de Direito de Comercial. Reimpressão, 2015

17
Na relação estabelecida entre o banco e cliente, cria-se uma conta-corrente para efeitos de inscrição e registos de créditos e débitos
recíprocos porque sem essa conta, os depósitos, levantamentos, pagamentos, cobranças, empréstimos seria inscritos e registados de
forma isolada e isso criaria desorganização, portanto, para evitar isso, cria-se uma conta única, denominada conta-corrente bancária.
É, portanto, um serviço de caixa, vide Antunes, José A. Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 2012, págs. 491 e ss.
18
Por todas, vide Luz, Gilson Jorge Santos da, Contrato de Abertura de Crédito Bancário: Efeitos e Cessação do Contrato, Lisboa,
2014, págs. 17 e ss.

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