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Direito Comercial

2ª Frequência
Capítulo IV – Das Empresas
1.- Conceções jurídicas de empresa
1.1.- Terminologia
A primeira nota que temos neste capítulo é saber se, dois termos que se usam
recorrentemente – empresa e estabelecimento –, são sinónimos, ou se querem dizer coisas
diferentes. A resposta a esta pergunta tem na doutrina conteúdos diversos:

 Há autores para quem a empresa e o estabelecimento não são sinónimos.


 Coutinho de Abreu, pensa ser legítima a utilização sinonímica dos dois vocábulos.
Contudo, ele não entende que a sinonímia implica que uma “empresa” e
“estabelecimento designam uma mesma e única realidade, pelo contrário, elas
designam realidades várias, de harmonia com os diversos contextos problemáticos,
sistemático-funcionais e local-temporais.
 A posição aqui em Coimbra, é de uma tendencial sinonímia, tendencial porque em
princípio, o estabelecimento reforça ou sublinha uma realidade enquanto objeto
de direito, ao passo que a empresa pode ter um sinónimo numa perspetiva mais
subjetiva (empresa como empresário).

Para nós é possível usarmos os dois termos como sinónimos. Para a lei talvez sim
ou não, uma vez que não há uma só noção de empresa ou de estabelecimento. Para o
legislador, por vezes estabelecimento é equivalente a empresas, e por vezes parece que tem
duas noções diferentes, pois no mesmo artigo ele utiliza dois conceitos diferentes, e se
fossem iguais não faria sentido invocar os dois. Há normas que o legislador utiliza apenas
um dos conceitos. Porém, não é clara a diferença que o legislador entende.

 Nota: na nossa doutrina, diversos autores permitem a utilização das duas expressões com
uma relação de sinonímia. Mas é também certo que, podemos dizer que a expressão
empresa designa preferencialmente o perfil subjetivo (processo produtivo), enquanto que,
o estabelecimento exprime preferencialmente o bem, o perfil objetivo da mesma realidade.

1.2.- Principais aceções de empresa


Segundo, Coutinho de Abreu, a empresa poderá ser analisada em três vertentes:

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 Em sentido subjetivo – empresa como sujeitos jurídicos que exercem uma atividade
económica (empresa-empreendimento);
 Em sentido objetivo – empresas como instrumentos ou estruturas produtivo-
económicos objetos de direitos e de negócios (empresa-estabelecimento);

Coutinho de Abreu, entende que tais aceções não se equivalem a um conceito


unitário de empresa.
Orlando de Carvalho acrescenta ainda outra vertente:

 Num perfil institucional – a empresa é uma entidade no tráfico (empresa-


empresário);

Há uma área do direito comercial em que o termo empresa, tem um sentido


vincadamente subjetivo, em que a empresa é sinónimo de um sujeito que exerce a atividade
económica – direito da concorrência. A lei nº19/2012, no artg.3º dispõe o seguinte:
“considera-se empresa, para efeitos da presente lei, qualquer entidade que exerça uma
atividade económica que consista na oferta de bens ou de serviços num determinado
mercado, independentemente do seu estatuto jurídico e do seu modo de financiamento”.
Podemos ver que, para o legislador, a empresa não é uma coisa, não é um objeto, mas sim
uma entidade, tendencialmente um sujeito. Os dizeres do legislador desta norma são
sugestivos: para efeitos do diploma, empresa é aquilo.
Desta definição, podemos retirar que, a oferta de bens em um mercado (lugar de
encontro entre oferentes e demandantes de um ou mais mercadorias e instrumento de
regulação económica baseado no mecanismo de preços), supõe precisamente a troca (não
gratuita) de bens. Não é necessário que o oferente tenha de visar, com a troca, o lucro;
contudo, não pode, em “mercado” proporcionais todos os bens gratuitamente.
Importa agora saber o que é uma empresa ou um estabelecimento. Vamos olhar
para esta matéria essencialmente numa perspetiva objetiva. A abordagem ou análise será
enquanto objeto ou bem, não vamos falar de titulares de uma empresa ou estabelecimento.
Posto isto, Coutinho de Abreu refere que não exercem atividade económica
caracterizadora de empresa:

 Consumidores privados;
 Estado ou outros entes públicos que adquirem bens para satisfação de necessidades
próprias, sem a intenção de os reintroduzir no mercado;

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 Estado ou outros entes públicos, atuando apenas no exercício de prerrogativas ou
de autoridade ou poder público;
 Trabalhadores dependentes;
 Entidades (maioritariamente públicas, mas não só) que exercem atividades
exclusivamente “sociais”, baseadas no princípio da solidariedade, sem fins
lucrativos, recebendo os beneficiários prestações gratuitas ou mediante
contraprestações não proporcionais aos custos delas.

Relativamente a estas últimas entidades referidas, importa saber que o Ac.23/04/1991


do TJ, julgou que que era uma empresa (pública), um serviço público de emprego que
exerce gratuitamente atividade de colocação de trabalhadores. Ora, tal porque, a exclusão
destas parecia estar em contradição com a parte final do artg.3º/1 (“independentemente do
seu modo de financiamento”).

 Coutinho de Abreu, critica esta solução, com base no seguinte argumento: não é
atividade económica consistente na oferta de bens em um determinado mercado a
atividade de prestação de serviços financiada integral ou maioritariamente, por via
fiscal (sem, em rigor “contraprestação”). Apesar de o escopo lucrativo não ser um
pressuposto necessário, a verdade é que a noção de “atividade económica”
pressuposta implica uma finalidade concorrencial, ou seja, o intuito de competir
com outros operadores económicos, a fim de se conseguir determinadas vantagens
económicas. As entidades que exercem atividades exclusivamente sociais, além de
não prosseguirem objetivos lucrativos, realizam trocas de bens gratuitas, pelo que
não poderão ser qualificadas como empresas para estes efeitos.

A qualificação das entidades como empresas, também não depende, do respetivo


“estatuto jurídico” (artg.3º/1). As empresas podem-se situar nos setores privados, públicos
e cooperativos (artg.2º, 1). Por outro lado, as empresas também podem apresentar diversas
formas, sujeitas a regime diferenciados. Deste modo, as empresas do setor privado podem
ser entidades coletivas, com ou sem personalidade jurídica (principalmente sociedades,
mas também ACE, AEIC, e em alguns casos associações e fundações) e pessoas humanas
e singulares. Estas incluem comerciantes, agricultores, artesãos, profissionais liberais,
cientistas que comercializam as suas invenções, etc.
No setor público, integram-se principalmente as empresas públicas estaduais,
regionais e locais, de caráter societário ou institucional (ex.: as EPE).

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No setor cooperativo relevam as cooperativas de primeiro grau e algumas
cooperativas de grau superior (mormente as uniões de cooperativas).
O nº2 do artg.3º considera como “única empresa”, o conjunto de empresas
juridicamente distintas, mas que constituem uma “unidade económica” ou mantêm “laços
de interdependência”.
Existirá unidade económica, nas “sociedades em relação de grupo” (artg.488º e ss
do CSC) e nos conjuntos de empresas em que, apesar de não haver “relação de grupo”,
uma delas domina totalmente (ou quase), de modo direto ou indireto, uma ou mais
sociedades, não gozando esta(s) de real autonomia na determinação dos seus
comportamentos no mercado.
Por sua vez, laços de interdependência decorrem, nomeadamente, do facto de uma
empresa:

 ter “participação maioritária no capital” de outra empresa (a));


 ser titular “de mais de metade dos votos atribuídos pela detenção de participações
sociais” (b));
 “possibilidade de designar mais de metade dos membros do órgão de
administração” de uma sociedade ou do órgão de fiscalização (c));
 “ter o poder de gerir os respetivos negócios de outra empresa (d));

Esta norma releva a propósito das concertações restritivas da concorrência (9º).


Considera-se que não se irá aplica o artg.9º a acordos e práticas concertadas entre empresas
do referido “conjunto de empresas” (em unidade económica), uma vez que, segundo o
artg.3º/2, estas são consideradas como uma única empresa. Por outro lado, considera-se
excessivo não aplicar esta norma a concertações entre empresas que mantêm entre si laços
de interdependência.

 Ex.: As empresas A e B pretendem eliminar a empresa C e para tal, acordam


vender a esta os bens que produzem em condições muito mais gravosas do que as
que praticam relativamente a outros parceiros comerciais (artg.9º/1 d)); A possui
uma participação em B correspondente a 51% do capital desta; considera-se por
isso como única empresa o conjunto de empresas A e B, segundo o artg.3º/2. Logo,
aquele acordo não é um verdadeiro acordo restritivo de concorrência (para o efeito,
há apenas uma parte), sendo inaplicável o 9º.

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Mas será que isto é razoável? Impõe-se uma interpretação restritivo-teleológica, de
modo a não permitir, que por relações de interdependência das empresas, que deixemos
que ocorra a falsificação de competência.
Orlando de Carvalho, por sua vez, fala do perfil subjetivo da empresa, como a
empresa enquanto processo produtivo. Da experiência da nossa vida, decorre que a
empresa é, antes de tudo, um processo produtivo, destinada à troca sistemática e vantajosa
– ou seja, à formação de um excedente financeiro que garanta quer a auto-reprodução do
processo, quer o estímulo a essa. Por isso, vemos que, a empresa é necessariamente uma
estrutura, isto é, um complexo organizado de meios ou de fatores com o mínimo de
racionalidade e estabilidade que lhe garanta o mínimo de autonomia funcional e financeira
que lhe permita emergir na intercomunicação das produções (ou no mercado, uma vez
que este é o lugar ideal das intercomunicações). Assim, podemos ver o que não é empresa,
segundo esta conceção:

 A produção para o auto-consumo ou para a benemerência;


 Especulação episódica ou ocasional (que não se intencione à auto-produção);
 A produção que apenas procure cobrir despesas com receitas;
 A produção em que a pessoa do empresário tem um peso tão grande na
formação do produto que o processo não se identifica, nem subsiste sem ele.

Orlando de Carvalho, identifica quatro notas que irremediavelmente caracterizam a


empresa moderna:

 Extroversão – é a produção para fora, para a intercomunicação das produções e,


nessa medida, o mercado é o seu horizonte.
 Auto-reprodução – produção reproduz-se ou repete-se, conseguindo, com a troca
sistemática e vantajosa, assegurar o seu autofinanciamento e o estímulo ao seu
próprio processamento.
 Racionalização – sem aquele estímulo não há lógica da empresa, que é a lógica de
um processo-estrutura que, se obedecer aos seus princípios internos, realiza
automática e autonomamente os seus fins – produzir (ou adquirir), vender, ganhar,
re-produzir, re-vender, re-ganhar.
 Dessubjetivação – a empresa é um mecanismo, meio técnico que visa, desfragilizar
a produção, libertando-a da disponibilidade física, psicológica ou financeira do
agente. A produção busca emancipar-se da pessoa do agente, o que explica a

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tendência da empresa para a objetivação, para dessubjetivação (continuando a ser
necessário, como é obvio, a iniciativa do empresário, mas não se depende das suas
específicas condições para a formação do produto).

Orlando de Carvalho, ainda menciona que a empresa é um processo e uma estrutura,


devidamente articulados entre si. São estes dois aspetos ou “perfis” da empresa que se vêm
designando, tal como na terminologia alemã, por empresa em sentido subjetivo (processo
ou ação empresarial) e empresa em sentido objetivo (mecanismo ou complexo de meios
de empresa), evitando-se a sua desarticulação completa – estão geneticamente ligados (o
que não obsta a uma relativa autonomia de projeção e realização dos perfis).

2.- As empresas em sentido objetivo


2.1.- Noção
A noção de empresa em sentido objetivo, não é algo unânime na doutrina:

 Para Coutinho de Abreu, a empresa ou estabelecimento comercial (em sentido


objetivo) é uma “unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui
um instrumento de exercício relativamente estável e autónomo de uma atividade
comercial”.
 Para Orlando de Carvalho, o estabelecimento é “uma organização concreta de
fatores produtivos como ou enquanto valor de posição no mercado”.

Iremos agora debruçar-nos sobre a definição de Orlando de Carvalho. Nesta aceção,


estabelecimento é um bem, que tanto pode ser objeto de direitos (desde logo de direitos
reais, como o de propriedade; ou de direitos obrigacionais, por exemplo, de gozo pelo
locatário), como de objeto de negócios (ex.: trespasse, locação, etc.). E tal é assim, pois o
estabelecimento é um bem que não se confunde com os bens de que é feito, o título
jurídico que incide sobre uns e outros não tem de ser o mesmo – ex.: o proprietário do
estabelecimento pode ser, apenas, arrendatário do imóvel em que este funciona.
A empresa (estabelecimento) não é uma realidade somente para o direito, ela é antes
de mais, um “fenómeno da vida”, que precede a regulamentação que a OJ lhe dispensa.
Pode-se então dizer que essa realidade antecede e se impõe ao direito. A conclusão de que
a empresa tem existência económica resulta da simples observação do tráfico, onde é
inegável que se valoriza às organizações de que os sujeitos se servem para o exercício de
uma atividade económica. Nisto reside um traço característico do estabelecimento

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enquanto objeto de negócios: o seu valor não corresponde à soma do valor dos diversos
elementos de que se componha. A empresa é um valor distinto desse mero agregado e,
por isso mesmo, é um valor novo, um valor que não existia nos seus elementos separados
– ex.: o valor de um café não corresponde ao valor da soma dos seus elementos avulsos.
Esta conclusão, resulta do facto, de as partes nos negócios de transmissão deste bem, lhe
poderem atribuir um valor que pode exceder largamente aquele que resultaria da mera
soma do valor dos elementos do conjunto.
Após constatar que a empresa constitui um valor novo, surgem diversas questões:
que valor novo é esse? Em que assenta? Porque razão vale mais esse valor do que a mera
soma das partes? Como é que se pode transmitir?

Valores do estabelecimento
A generalidade dos autores parte para o estudo do estabelecimento através de uma
observação da realidade: observa-se ou identifica-se qualquer coisa diferente entre as peças
e o todo. Sendo que essa coisa diferente, é observada de uma forma muito simples: posso
ser dono de um café e não ser titular de um direito real de nenhum dos elementos que
utilizo no café. Entre as partes que compõem o estabelecimento e aquilo que o
estabelecimento é, há-de haver algumas diferenças. Isto mostra-nos que mesmo numa visão
estática de um determinado momento conseguimos ver que há algo diferente entre os
elementos que integram a organização e a própria organização. Numa outra faceta,
podemos ver as negociações do bem – ex.: alguém que é dono de uma fábrica e transmite
a fábrica. Quando tal acontece, é frequente acontecer que nessa transmissão do bem, nem
tudo o que estava originariamente nessa organização que se transmita também (por vezes
há sinais distintivos, ou equipamentos que não acompanham a transmissão). Isto faz-nos
perceber que algo de diferente há-de haver. Naturalmente o que acontece é que quando
eu transmito este conjunto, o valor que ele tem (o valor que alguém está disposto a pagar
para o ter), é raramente o valor da soma dos elementos de cada um deles, que integram o
estabelecimento, ex.: o valor de uma pizzaria não é o valor dos equipamentos que lá estão,
ou das cadeiras, ou o valor imobiliário – o valor que existe será o valor de conjunto, que
será superior ao valor das partes, podendo ser muitíssimo superior. Outro exemplo, o
facebook tem um valor muito superior aos valores que tem, o valor dele é uma “máquina”
a funcionar.

 Às vezes, dá-se o caso de o conjunto valer menos do que a soma das partes. É estranho,
mas pode acontecer. Por exemplo, em Lisboa alguém comprou uma loja histórica para a

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fechar, acabar com ela, comprou um estabelecimento para o encerrar, para fazer lá um
projeto imobiliário – isto significa que o imóvel vale mais do que o estabelecimento. Mas
a regra não é esta, se tudo estiver a funcionar bem, a regra é que o valor do conjunto é
superior ao dos elementos que o compõem.

Os valores do estabelecimento são:

 Valor dos elementos que integram a organização – valores periféricos ou externos.


O valor de um estabelecimento não é indiferente ao valor de cada um dos seus
elementos, aliás também releva para a fixação do valor do estabelecimento. Ex.:
para se determinar o valor de uma ourivesaria, claro que também importa ver
quantos anéis tem, por exemplo, ou o valor deles.
Estes elementos são externos à essência do estabelecimento, e não são externos no
sentido em que possa haver estabelecimento sem elementos, mas são externos no
sentido de que a essência do estabelecimento não está concretamente naqueles
elementos porque eles podem ser substituídos por outros.
 Valores sui generis do estabelecimento – valores de organização e valores de
exploração. Só que, ao valor de cada um dos elementos (que não são próprios ou
específicos do estabelecimento, sendo chamados por isso, de valor externos ou
periféricos), acrescem os valores que só o estabelecimento tem, que não existem
sem o estabelecimento, nem podem ser destacados. Orlando de Carvalho apelida
estes valores de valores típicos ou sui generis do estabelecimento.

Valores ostensivos, externos ou periféricos


Os valores externos ou periféricos são todos aqueles bens, valores ou posições
patrimonialmente ativas que têm uma relativa autonomia económico-jurídica em face da
empresa e que constituem o seu lastro ostensivo. Estes valores tanto podem ter sido criados
fora da empresa e posteriormente agregados à organização (ex.: imóvel, máquina), como
podem ter surgido dentro da empresa (ex.: produtos que nela fabricam). Em qualquer dos
casos, estes valores têm vida jurídica-autónoma, porque têm existência económica e jurídica
para lá da empresa e independentemente dela.
O estabelecimento é uma organização de meios. Embora estejam todos ordenados
ao mesmo fim (desenvolvimento de uma atividade económica produtiva que não se destina
ao consumo), tais meios podem ser, em cada estabelecimento, os mais diversos: coisas
corpóreas, coisas incorpóreas, posições contratuais, direitos de propriedade industrial.

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Esta heterogeneidade dos elementos que integram a organização é uma
característica própria do estabelecimento (há conjuntos que nós criamos que são conjuntos
de elementos homogéneos que obedecem a um critério só – por exemplo, tenho um
conjunto de livros valiosos, que são diferentes de um estabelecimento). Essa
heterogeneidade, justifica-se por uma razão económica de função. Tenho elementos
associados a outros para que eles sejam, no conjunto, capazes de produzir certo resultado
– ex.: numa empresa de transportes, não me adianta ter camiões se eu não tiver camionistas
(funcionalidade económica).
Este conjunto de meios, de acordo com Orlando de Carvalho, pode designar-se
ainda de lastro ostensivo do estabelecimento, porque tais meios não só por si só o
estabelecimento, como já sabemos, mas, é neles que o estabelecimento radica e é deles
que o estabelecimento depende, ainda que numa medida variável. Não existe
estabelecimento sem um conjunto mínimo de elementos que “ostentem” ou que
“concretizem”, que permitam torná-lo “sensível, identificável e transportável”. Distingue-se
assim estabelecimento de uma ideia ou projeto de empresa, estes últimos até podem ser
bastante valiosos, mas enquanto não se concretizarem, não serão mais do que um mero
plano ou projeto – não serão a empresa. Por isso, afirmamos que o estabelecimento é uma
organização concreta de fatores produtivos – “concreto” aqui não impõe uma
materialidade física, sendo que, a concretização pode ocorre através de bens incorpóreos
ou direitos.
Como facilmente se depreende, os elementos de que o estabelecimento se compõe
estão em constante mutação.

Valores de organização
O estabelecimento não é um qualquer conjunto de meios – é um conjunto
organizado. Sendo aliás, através desta organização de meios que resultam os primeiros
valores sui generis (típicos) do estabelecimento, que por isso mesmo se designam como
valores de organização.
À reunião de elementos para se formar o estabelecimento há-de presidir uma ideia
ou plano organizatório. Com base nesta ideia ou plano, os diferentes elementos que hão-
de integrar a organização vão, apesar da sua heterogeneidade, tornar-se economicamente
complementares. Ex.: um quadro tanto pode ser integrado numa organização que consista
num hotel (função decorativa e associa-se à mobília do quarto); como numa galeria de arte,
onde aí teria uma função completamente distinta e associar-se-ia a outras obras de artes.

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Deste cruzamento, emerge um valor novo (que apenas surge com esta relação funcional
que a própria organização estabelece entre os elementos que a integram) – designa-se valor
da complementaridade económica. Cada elemento há de servir na organização para dar
valor ao conjunto.
O valor da complementaridade económica, por sua vez, assenta em outros valores,
também eles valores de organização, e que exprimem a racionalidade económica:

 Valor da seleção ótima – resultante da seleção ideal dos elementos para aquela
empresa em concreto;
 Valor da dimensão ótima – os elementos hão-de ser selecionados de acordo com
uma ideia de optimidade;
 Valor da combinação ótima – que é o valor organizativo final.

Depois de os elementos estarem organizados, e depois de adquiridos estes valores


de organização poderá já existir um estabelecimento caso se verifique um requisito
adicional: “o de a organização já ter emergido na intercomunicação produtiva com uma
posição própria, inconfundível com a posição de outras empresas”.
Segundo Orlando de Carvalho, é quando a empresa emerge ao nível da
intercomunicação produtiva (ao nível do mercado) que, pelos valores de organização que
reuniu, ela se afirma com uma presença inconfundível no mercado, ela se torna um valor
de posição no mercado. A empresa não se afirma em simples valores de organização, mas
sim com aquele valor de mercado, que acaba por ser a marca típica da empresa como valor
do tráfico.
Quando a empresa emerge ao nível desta posição vantajosa no mercado, diz-se estar
aviada, diz-se ter aviamento. O aviamento não é um bem ou elemento que integre o
estabelecimento, trata-se de “uma qualidade em que se encontra colocada a empresa
quando está pronta para fazer caminho, na conquista de clientes e de lucros, o que significa
que, como valor do tráfico, toda a empresa é uma aviada.
Atenção que, para haver aviamento, não é necessário que já tenha existido
funcionamento da organização, basta então que tenha “condições de posição
presumivelmente vantajosas na intercomunicação produtiva, que esteja em condições de
fazer caminho”.

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Valores de exploração
Apesar de o funcionamento não constituir um pressuposto da existência de
estabelecimento, daqui não decorre que tal funcionamento seja irrelevante! Aliás, é do
funcionamento que vão surgir os segundos valores sui generis do estabelecimento: os
valores de exploração. A organização de um estabelecimento que já funcionou e um que
ainda não, podem ter a mesma organização, mas não têm o mesmo valor. Ex.: quando
alguém compra um restaurante, não tem direito nenhum sobre a clientela (que se funda
sobre estes valores de exploração). Um estabelecimento quando funciona tende a
funcionar com o valor que adquire com esse funcionamento.
Estes também são valores típicos do estabelecimento, porque são valores que “não
existiam antes de haver empresa, só existem pela empresa”:

 A clientela – é uma relação de facto com valor económico com os consumidores


da empresa;
 O bom-nome – corresponde às relações de facto com valor económico com o
mundo em geral (ex.: toda a gente, conhece a marca “ferrari” como uma marca
excelente de automóveis);
 O crédito – são as relações de facto com valor económico com os financiadores da
empresa (ex.: um banco é capaz de conferir empréstimo mais facilmente a uma
empresa do que outra, por causa do seu histórico);

Um aspecto importante a salientar é que a clientela, não é um elemento do


estabelecimento. A clientela trata-se de um valor típico do estabelecimento e, justamente
por ser um valor típico do estabelecimento, ela mostra-se insuscetível de transmissão ou de
direitos autónomos do próprio estabelecimento – só existe clientela com o
estabelecimento. Ela apenas recebe tutela da OJ, enquanto valor inerente ao
estabelecimento, na medida em que, por exemplo:

 Desvio de clientela, impondo uma desvalorização do estabelecimento, constitua


um ilícito porque a lei proíbe o ato praticado:
 por constituir um constituir um ato de concorrência desleal (360º CPI);
 ou porque determinado contrato impunha ao sujeito o dever de não
praticar aquele ato (ex.: obrigação de não concorrência que impende sobre
o transmitente do estabelecimento).

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Lastro ostensivo e valores típicos do estabelecimento
A empresa enquanto valor de mercado, vai, ao longo do tempo, alterando a sua
relação com os bens do respetivo lastro ostensivo. Orlando de Carvalho ensinava que, era
possível captar uma espécie de tendência ou de lei tendencial que se estabelece entre os
valores do lastro ostensivo e o valor do estabelecimento enquanto valor de posição. Ora,
enquanto que o estabelecimento não funciona, o valor de posição no mercado do
estabelecimento, liga-se de uma maneira muito estreita ao conjunto de elementos do seu
lastro ostensivo. Todavia, quando o estabelecimento começa a funcionar, o valor de
posição começa a desligar-se desse lastro ostensivo para se passar a ligar aos valores de
exploração. Há essa tendência a desligar-se, por ter precisamente os valores de exploração.

 Lei tendencial (formulação positiva) – Quanto mais um estabelecimento funciona,


de menor número de valores do seu lastro ostensivo necessita para se apresentar
como um valor de posição no mercado.
 Lei tendencial (formulação negativa) – Quanto menos um estabelecimento
funciona, de maior número de valores do seu lastro ostensivo necessita para se
apresentar como um valor de posição no mercado.

Posto isto, tem que se ter em consideração que esta é apenas uma lei tendencial e
não uma lei absoluta. E tal é assim, uma vez que tem limites à partida e à chegada:

 Limite à partida da Lei tendencial – o estabelecimento nunca é um puro conjunto


de valores ostensivos. Mesmo antes do estabelecimento funcionar, é necessário
mais do que esse conjunto: é necessário que o estabelecimento por esse conjunto
particularmente organizados já constitua de “per si”, uma específica posição no
mercado, um valor de acreditamento referencial (a empresa já ocupa no mundo da
intercomunicação produtiva, um lugar específico – já tem que ter aviamento).
 Limite à chegada da Lei tendencial – podíamos ser levados a crer que, a certa altura,
o próprio estabelecimento se desprendia totalmente do lastro ostensivo: começava
a ganhar valores de exploração e assim, desprendia-se por completo. Mas tal não é
assim, a empresa necessita sempre de um conjunto mínimo de elementos
indispensáveis em cada negociação concreta para aquele valor de posição no
mercado seja identificado e seja transmissível. O âmbito mínimo de
estabelecimento constitui, pois, um limite à chegada da própria lei tendencial.
Se fosse uma lei absoluta, poderíamos ter valores de acreditamento referencial, que
eram negociáveis sem qualquer elemento do lastro ostensivo, que são os valores

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sensibilizantes que permitem identificar e transportar o estabelecimento como valor
de posição no mercado. Por isso há este limite à chegada: o estabelecimento carece
sempre de um mínimo de bens do lastro ostensivo que permitam em caso de
negociação, identificar, sensibilizar e transportar de uma esfera jurídica para a outra.

Caso 1- O caso da porta que não abriu


José pretende dedicar-se à construção de pranchas para saltos acrobáticos. Para exercer
essa atividade adquiriu a devida matéria prima, tendo também contratado dois
trabalhadores. Foi igualmente arrendado por José um espaçoso imóvel e celebrado um
contrato de locação relativo a variada maquinaria. Porém, antes de iniciar a referida
atividade, e já depois de ter contratado com um jornal local uma campanha publicitária
que estava em curso, José adoeceu e pretende agora vender o seu estabelecimento. O
senhorio do imóvel entende que isso só é possível se der o consentimento, pois considera
que só há estabelecimento se tiver começado a ser explorada a atividade para que o imóvel
foi arrendado. No caso, acrescenta, nada foi vendido ou comprado no imóvel, que
continua com a porta fechada ao público e sem clientela. Terá razão?

Resolução- Já há estabelecimento, apesar de ainda não ter aberto as portas ao público?


Temos de ver se há ou não elementos do lastro ostensivo, temos de ver se há valores de
organização e se há algo que nos permita falar numa posição do mercado e, eventualmente,
ver se já há valores de exploração. Estamos a falar de um estabelecimento que está no início
de vida, logo, vai depender mais dos elementos do lastro ostensivo – lei tendencial. Os
valores do lastro ostensivo não são só valores corpóreos – temos matéria-prima, 2 contratos
de trabalho, posição de arrendatário num contrato de arrendamento, posição de locatário
e posição contratual com um jornal para uma campanha publicitária. Podemos já ter um
estabelecimento a funcionar antes de ele abrir as portas ao público, não é a mesma coisa,
visto que um estabelecimento como este (de fabrico de pranchas) pode estar a funcionar
antes de abrir as portas ao público. A ideia de funcionamento não tem que andar a par da
ideia de abertura ao público. Temos assim elementos do lastro ostensivo, temos valores
que já podem ter organização (já temos assim algo mais do que um simples conjunto de
bens) e agora temos de ver se esta organização que eventualmente já pode existir se já tem
valor de posição no mercado.
A campanha publicitária já nos permite dizer que aquele estabelecimento tinha valor
de posição no mercado porque já se estava a construir uma imagem à volta daquele

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estabelecimento através dessa campanha e que eventualmente já podia ter gerado
potenciais clientes. E mesmo que não tenha potenciais clientes já pode ter gerado bom
nome e reputação, tudo vai depender da campanha publicitária. Nesta medida, já podemos
ter aqui um estabelecimento e, lá está, eventualmente, essa campanha já pode ter gerado
valores de exploração. O senhorio não tem necessariamente razão, os argumentos do
senhorio não são definitivos.

2.2.- Natureza jurídica do bem


Coutinho de Abreu e Orlando de Carvalho, também têm visões diferentes quanto
à sua natureza jurídica.

 Na posição de Coutinho de Abreu, a empresa é uma “coisa incorpórea complexa”.


À partida, pode parecer estranho classificar o estabelecimento como coisa
incorpórea, uma vez que ele, normalmente, não dispensa a existência de meios
corpóreos. Contudo, além de em certas situações não ser irrealista sustentar a
existência de estabelecimentos desprovidos de elementos materiais, há que refletir
o seguinte: o estabelecimento, integrante ou não de bens materiais, não é igual à
mera soma dos seus elementos – é antes uma organização ou um sistema, algo de
diferente dessa soma que possui individualidade e qualidades próprias.
Consequentemente, não será difícil concebê-lo como coisa incorpórea complexa
(porque pode integrar vários elementos corpóreos e não corpóreos).
 Segundo Orlando de Carvalho, a empresa é uma “coisa composta funcional”, visto
que uma coisa incorpórea sui generis porque tem no seu núcleo a ideia de
organização, a combinação de fatores produtivos utilizados naquela empresa
(pessoas e coisas), mas esta ideia organizatória não subsiste sem os fatores
produtivos que a concretizam e que corporizam o estabelecimento. Sendo um bem
com especial capacidade lucrativa está associado à ideia de mercado e daí que seja
entendido como uma coisa composta funcional. É uma coisa composta, porque é
integrada por elementos de natureza variada e é uma coisa funcional, porque tem
em vista a ideia de capacidade lucrativa. Daí que o valor do estabelecimento
comercial não se afira pelos bens materiais que o incorporam, mas pelo seu valor
de posição de mercado.

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Vemos que ambos os autores, olham para a empresa como uma coisa incorpórea.
Assim, impõe-se fazer a seguinte questão: sendo a empresa uma coisa incorpórea, será que
pode ser objeto do direito de propriedade?
Ora, o art.1302º CC restringe o direito de propriedade às coisas corpóreas. Todavia,
em algumas disposições do CC, o legislador trata o estabelecimento comercial como sendo
objeto de direitos reais. Assim, o direito de propriedade que incide sobre o
estabelecimento comercial recai sobre a sua organização, enquanto bem único, e,
simultaneamente, sobre cada um dos elementos que integra o estabelecimento.
Sendo o estabelecimento comercial uma coisa incorpórea, tem-se entendido que é
mais adequado classificá-lo, não como um bem móvel não sujeito a registo, mas um bem
móvel anómalo, porque relativamente a alguns efeitos é-lhe aplicado o regime dos bens
imóveis (por exemplo, para efeitos de alienação). Esta posição é sustentada pelo facto de
para o trespasse se exigir escritura pública, típico dos negócios que envolvam coisas
imóveis. Já para efeitos de garantia, é objeto de penhor e não de hipoteca, apesar de alguns
dos seus elementos poderem ser objeto de hipoteca.
No âmbito desta temática, ainda pode colocar-se as seguintes questões: é ou não o
estabelecimento comercial uma unidade jurídica, um bem jurídico a se stante? É ele um
objeto jurídico unitário, com tutela autónoma? Há uma disciplina diversa do todo, para
além da disciplina visando cada um dos seus elementos, e diversa da que resultaria se se
tomasse em conta tão-só a mera soma destes?
Os autores portugueses têm sustentado ser o estabelecimento comercial uma
unidade jurídica. E têm sido indicadas em apoio da tese várias normas legais (ex.: art.1112º
CC, arts.31º/5 e 304º-P/3 CPI, etc.). Estes diversos apoios normativos serão, de facto,
bastantes para que possamos considerar o estabelecimento mercantil uma unidade jurídica.
Uma vez que, concordam, não apenas com a imagem que logo dele se capta no mundo da
economia, mas também com a que se obtém da observação da praxis jurídico-negocial
envolvendo as empresas.

2.3.- Elementos que compõem o estabelecimento comercial


Na linha do conceito exposto de comércio em sentido objetivo, serão comerciais as
empresas cujo objeto se traduza na realização de atos objetivamente mercantis. É
necessário precisar o que é uma empresa comercial:

 Valor ou bem económico ou patrimonial;

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 Transpessoal (isolável da pessoa que o criou ou da pessoa a quem pertença em
dado momento);
 Duradouro;
 Reconhecível e irredutível;

Assim, podemos ver que o estabelecimento, nos aparece como um bem jurídico
distinguível, e como um bem complexo, feito de vários bens ou elementos. Não é possível
dizer os elementos com precisão, uma vez que eles variam de empresa para empresa. Mas
em termos gerais podemos apontar alguns:

 Coisas corpóreas – ex.: prédios, máquinas, ferramentas, mobiliários, matérias-


primas, mercadorias, etc.
 Coisas incorpóreas – ex.: invenções patenteadas, modelos de utilidade, desenhos
ou modelos, marcas ou logótipos.
 Bens não coisificáveis – como as prestações de trabalho e de serviços e de certas
situações de facto com valor económico: o “know-how”.

Deflui desta enumeração exemplificativa, que limitamos os elementos das empresas


aos “fatores produtivos” (objetos e instrumentos de trabalho ou capital, e o trabalho), e a
outros bens que também individualizam e identificam a empresa (ex.: logotipos, marcas).
Contudo, nem todos pensam assim. Com efeito, existem um número considerável de
juristas que entendem as empresas são compostas pelas situações e relações de facto com
valor económico (posições advenientes da organização interna das empresas, das
experiencias negociais acumuladas, do know-how, relações com fornecedores,
financiadores, clientes), por coisas (corpóreas e incorpóreas), direitos (de crédito, reais e
outros de caráter absoluto) e obrigações (ligadas à exploração de empresas).
É assim, fora o know-how, não parece que as citadas situações e relações de facto
com valor económico devam ser qualificadas de elementos ou meios empresariais:

 É certo que a empresa exige organização, mas sendo esta de meios, não se
confunde com eles, nem ela própria é elemento componente da empresa. É sim
um modo de ser ou de estar ou meios empresariais (inter-relacionados).
 Os financiadores, fornecedores e clientes também não merecem esta qualificação.
Eles estão de algum modo, ligados à empresa. Todavia, tais ligações ou relações
não são internas mas externas à mesma; “o campo de forças” onde se situam está
fora do “núcleo ”- empresa (atrativo).

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A este propósito, a discussão tem versado principalmente a clientela. Já falamos um
pouco desta temática, mas iremos agora versar sobre ela, também mais do ponto de vista
de Coutinho de Abreu. A clientela de uma empresa pode ser definida como o círculo ou
quota de pessoas (consumidores, em sentido amplo) que com essa empresa contactam. Tal
círculo pode ser constituído por consumidores relativamente habituais ou fixos. As
opiniões divergem quanto a saber se a clientela é ou não elemento de empresa:

 Em França, a opinião dominante vê-a como elemento.


 Na Alemanha, apesar de alguns “clássicos” a verem como qualidade de empresa, a
conceção que a vê como um elemento é maioritária.
 Entre nós alguns vêm-na como um elemento (Barbosa de Magalhães, Ferrer
Correia); outro não a vêm como elemento (Orlando de Carvalho).
 Coutinho de Abreu entende que a clientela não é, em rigor, elemento da empresa,
por ela não pode ser objeto de um direito real ou absoluto, nem objeto autónomo
de tutela jurídica (argumentado apontado por Orlando de Carvalho); mas
principalmente por ela não ser um meio ou instrumento estrutural-funcionalmente
inserido na organização produtiva que a empresa é.
A clientela é algo que é consequente ao funcionamento da “máquina” produtiva.
Mas também, não parece para Coutinho de Abreu, que seja uma mera qualidade
da empresa. Existe uma íntima ligação entre empresa e clientela – a empresa é
instrumento produtor de bens para troca, implicando por isso, a conquista e
assegurar cliente(s). A empresa pode existir algum tempo sem clientela, mas não é
capaz de subsistir duradouramente sem ela.

Quanto aos direitos, também considerados como alguns autores como elementos
de empresa, o que temos desde logo, a apontar, é que os meios empresariais são objeto de
relações jurídicas, logo de direitos subjetivos. Por isso, notamos uma incongruência no
discurso referido acima: qual é a necessidade de se falar em direitos e obrigações, quando
já se refere os bens e coisas objetos desses direitos e obrigações? Além disto, o que se
verifica é a referência a estes direitos e obrigações serem feitas de forma indiscriminada –
coloca um problema na medida em que, está-se a apontar a generalidade dos contratos,
créditos e débitos como elementos da empresa, quando nada têm a ver com a empresa,
exemplos:

 Um crédito de 50 000€ sobre um cliente por venda de mercadorias;

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 Um contrato de fornecimento de fios celebrados entre um empresário de
confeções e um produtor desses fios;
 Uma dívida de 200 000€ derivada da compra de uma máquina;

Não se deve considerar, em princípio, estes como elementos empresariais, pelo


simples facto de eles nem serem fatores produtivos, nem meios primordialmente
identificadores de empresa.
Por vezes como elemento empresarial é referido o dinheiro. Também, em regra,
Coutinho de Abreu entende que não se trata de um elemento empresarial, não porque se
trate de “um bem de todo neutro, incapaz de caracterizar o que quer que seja”, mas por
ser um bem exterior ao processo produtivo e à respetiva estrutura empresarial
sustentadora: está antes (na aquisição dos meios da empresa) e depois (resultado da
realização ou comercialização dos produtos). Contudo, poderá dizer-se para o dinheiro, tal
como para os créditos e para os débitos, que estes podem ser elementos (porque
verdadeiros “meios de produção” de certas empresas: das empresas bancárias (e outras de
“crédito” e “financeiras”) e de seguros.
Os bens de que o estabelecimento é feito ou, mais restritamente, os seus “fatores
produtivos” não são meramente agregados ou somados, não se encontram numa simples
relação de intermutabilidade ou comutabilidade. Estão articulados, inter-relacionados,
estruturados estavelmente, com vista à consecução (eficiente ou “racional) de um fim. Dito
de outra forma: o estabelecimento é um sistema: “um complexo de elementos de interação,
uma unidade complexa e original.
Além disso, o estabelecimento trata-se de um sistema “aberto”, em intercâmbio com
o exterior, com o “mercado”, nele se cruzam fluxos, entrando e saindo. É um centro de
trocas sistemáticas. Deste intercâmbio resultam as já referidas, relações de facto de valor
económico com clientes, fornecedores, financiadores.

2.5.- As zonas de fronteira


Esta compreensão dos valores, permite-nos avançar para os chamados “casos de
fronteira” – entre ser e o ainda não ser estabelecimento/fronteira entre ter sido e já não ser
estabelecimento.

No “começo”

I. Critério formal

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Não é fácil identificar isto, apenas seria se nos guiássemos apenas por um critério
formal –se o estabelecimento já estiver em funcionamento. Ou seja, se ainda não estivesse
em funcionamento, não possuía ainda valores de exploração, nem clientela. Há quem
entenda que, o estabelecimento comercial é identificado com a clientela. Há também quem
entenda que a razão determinante de proteção jurídica do estabelecimento está no
aviamento, e este apenas surge com os valores de exploração. Ora, mas esta não tem sido
a resposta dada pela doutrina portuguesa.
Desde logo, a existência de clientela efetiva não é necessária, e quando exista, esta é
apenas uma manifestação do aviamento do estabelecimento.
Não são poucos os casos em que alguém prepara tudo e antes de abrir o
funcionamento, outra pessoa interessa-se e paga o valor superior ao das partes (paga já
considerando o valor da organização) – não se vai deixar aplicar ao negócio o regime
próprio do trespasse de estabelecimento comercial. Assim, o critério não pode ser este.

II. Critério da organização completa

É preciso então que a organização esteja completa. Só que isto é muito difícil de
assumir como critério, a organização é por natureza aberta, logo vive num permanente
equilíbrio entre completo e incompleto (ex.: estima-se que vai ser necessário uma máquina
de café para o terceiro piso do hotel, mas ainda apenas se tem para o primeiro piso – será
que ainda não há hotel?). O critério não pode ser este.

III. Critério da aptidão de funcionamento

A organização tem de estar apta para funcionar. Mas este também não serve, uma
vez que, por exemplo, a EDP só vai realizar o fornecimento de energia daqui a uma semana
ao hotel – será que vai ser a EDP a fazer com que o hotel fique apto a funcionar? Este
critério seria arrasador, uma vez que sempre que cortassem a luz eu deixava de ter hotel.
A verdade é que já estamos perante um conjunto de bens heterógenos e complementares,
devidamente organizados com vista à consecução de determinado fim. Esses elementos
organizados já conseguem projetar no público a imagem de um bem novo.

IV. Critério adotado

Tem de ser uma organização suficientemente concretizada para se tornar


identificada no mercado, ainda que possa carecer da prática de determinados atos para a
tornar funcional. Estes atos que ainda carecem de ser praticados não vão ser eles a
configurar o hotel. Portanto algures no tempo vai surgir o hotel, contudo não é possível
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identificar com precisão quando isso aconteceu. O que é claro é o critério, depois a
concretização do critério é que não é tão obvia.

No “termo”
Quando é que o estabelecimento termina? Por exemplo, as fábricas que ficaram
destruídas com o incendio de Pedrogão deixaram de existir nesse dia? A reconstrução
permitiu construir a mesma essência da organização que existia antes? Tem-se dito que a
calamidade destrói elementos muito importantes da organização, mas esta não se destrói
instantaneamente. Apesar da atividade empresarial ter ficado temporariamente suspensa,
os bens que restam servirão para exprimir a permanência (em estado mais ou menos
latente) de uma concreta organização produtiva qualificável como estabelecimento. Os
elementos restantes continuam na esfera patrimonial do sujeito – e o direito de tutela a essa
continuação (ex.: podem restar patentes, marcas, firmas, etc.).
Há, portanto, um momento em que conseguimos reestabelecer a organização do
estabelecimento, mas com outros elementos – sendo que esta é identificável como a
mesma, porque a que foi refeita, no fundo, suporta a que já vinha de trás. Este é um critério
que vem da noção de estabelecimento, que é uma organização com valor no mercado, com
projeção pública.
Por fim, há muitos caos de negociações de bens qualificados pelas partes como
estabelecimentos, apesar de convencionada a exclusão de elementos que dos
estabelecimentos dos transmitentes faziam parte – ex.: vendem-se restaurantes sem mesas,
cadeiras, máquinas de café e de sumos, etc. Significa isto não serem verdadeiras empresas
os objetos de tais negócios?
Não é possível responder a priori. A própria lei admite expressamente a
transmissão a transmissão de estabelecimentos desfalcados de um ou outro
estabelecimento. Isto porque, apesar de desfalcado, e impossibilitado de reentrar em
funcionamento logo após o negócio, o conjunto de bens transmitidos pode ser suficiente
para continuar-se em presença da organização produtiva publicamente identificada como
sendo a empresa x. Mais ainda, porque a empresa já funcionou, porque possui “valores de
exploração”, depende agora menos dos seus elementos, dos “valores ostensivos”. Quanto
mais um estabelecimento comercial funciona, de menor número de valores ostensivos
necessita para se afirmar como valor de posição no mercado (portanto, para ser
transmitida, a empresa que já funcionou depende menos dos seus elementos).

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2.6.- As zonas de fronteira na identificação de estabelecimento comercial
Outra questão sobre as zonas de fronteira. Por exemplo, quando entramos num
supermercado, encontramos normalmente uma padaria, peixaria, etc – tudo isso é do
supermercado. Mas por vezes, pode acontecer quem lá está a explorar a peixaria não é o
próprio supermercado, mas sim outra pessoa que aproveita o movimento. Estas secções
são organizações, capazes de funcionar autonomamente, só que estão integradas num todo
(componentes da empresa), e enquanto estiverem integradas num todo elas não serão
estabelecimentos. Uma característica típica delas, é o facto de, em geral, não poderem
sobreviver ao ocaso da empresa. Mas pode acontecer que, o supermercado pode dizer
para a peixaria se identificar de forma as pessoas saberem que quando se estão a dirigir à
peixaria não estão a lidar com o supermercado – quando tal acontecer passa a ser um
estabelecimento.
Coisa idêntica acontece com uma sucursal ou uma filial: os bancos têm muitas
agências, e cada uma delas não é um estabelecimento. A sucursal (agência ou delegação)
caracterizada, por um lado, pela dependência em relação à empresa (de que é parte) e, por
outro lado, por uma certa independência. É dependente porque nela se efetuam apenas
negócios integrantes do objeto da empresa, e está sujeita à direção geral da empresa (quem
está à frente da sucursal tem de cumprir os regulamentos e diretivas estabelecidos por quem
dirige superiormente toda a empresa). Goza de certa independência, na medida em que,
além de estar separada espacialmente do estabelecimento principal, possui contabilidade
relativamente separada e personalidade judiciária. E quem está à frente da sucursal tem
certa liberdade de gestão, e competência para celebrar negócios em que o objeto da
empresa se traduz. Estas também poderão ser autonomizadas, passando assim a se
identificar com o todo empresarial de que faz parte, de se transformar em autónomo
estabelecimento comercial.

2.7.- O e.i.r.l estabelecimento comercial especial


Os bens de um “normal” estabelecimento comercial pertencente a uma pessoa
singular respondem quer pelas dívidas contraídas na exploração desse estabelecimento,
quer por quaisquer outras do respetivo titular; por sua vez, pelas dívidas resultantes da
exploração dessa empresa, tanto respondem os bens a ela afetados, como outros bens do
empresário.
Pois bem, para possibilitar que as coisas não tenham de ser assim (permitindo a
limitação da responsabilidade empresarial-mercantil das pessoas singulares), o legislador

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criou, através do DL nº248/86, um novo instituto: o estabelecimento individual de
responsabilidade limitada (e.i.r.l.).
Na verdade, o e.i.r.l é um património autónomo ou separado (do restante
património do comerciante individual): em regra, os bens afetados ao estabelecimento
respondem apenas pelas dívidas contraídas no desenvolvimento das atividades de que ele
é instrumento (art.10º/1) e, por outro lado, por estas dívidas, respondem somente aqueles
bens (art.11º/1).
O facto do e.i.r.l ser um património autónomo implica que ele não deva ser
considerado verdadeiro estabelecimento comercial? Parece que não. É certo que o
“conjunto de bens” /património autónomo pode não identificar-se com um
estabelecimento comercial em sentido próprio. Não obstante, um e.i.r.l. é constituído para
o exercício de uma atividade comercial (arts.1º/1 e 10º/1), que exige, normalmente, o
instrumento-estabelecimento mercantil. Quer isto dizer que, em regra, o património
separado tende a consubstanciar-se no estabelecimento. Assim, o e.i.r.l. será um
estabelecimento comercial propriamente dito, com a especificidade de estar “separado” do
restante património do “titular”.

Caso 2- Eirl ou não Eirl, eirl, digo, eis a questão!


Alfredo é proprietário de um EIRL, que utiliza para se dedicar à atividade de compra e
venda de produtos de eletrónica. Alfredo também é dono e explorador de um outro
estabelecimento de prestação de serviços de programação informática. Esta última
atividade tem gerado consideráveis prejuízos e as dívidas com ela relacionadas acumulam-
se. Berta, que trabalha no primeiro estabelecimento para Alfredo, pergunta a este último
se há o risco de ele perder a propriedade do EIRL por causa das referidas dívidas, pois
não gostaria de trabalhar para outro patrão. Alfredo diz-lhe que não, pois o EIRL está
blindado na sua propriedade: «por isso é que é de responsabilidade limitada!», acrescenta.
Será assim?

Resolução- O EIRL surgiu numa época onde não havia sociedades por quotas individuais,
e por isso seria um regime que permitiria ao comerciante individual limitar a sua
responsabilidade relativamente às dividas que iam sendo contraídas no exercício da sua
atividade. Este regime surgiu numa tentativa de respeitar o velho dogma do contrato em
relação às sociedades. O CC tem o regime do contrato de sociedade.

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Veja-se que um património autónomo como o do caso não tem de abranger no ativo
um estabelecimento no sentido objetivo como organização, sem termos no património em
causa um estabelecimento organização. O capital para a constituição poderá ser só
dinheiro, mas não deixa de ser um património autónomo. Um comerciante em nome
individual utiliza o seu estabelecimento que já tinha como entrada, e aí o estabelecimento
individual de responsabilidade limitada, começa logo a sua atividade tendo um
estabelecimento em sentido objetivo a formar o capital.
Quanto ao caso, estamos a falar de dividas que não têm a ver com o EIRL, mas sim
com dividas pela exploração de outro estabelecimento (de prestação de serviços de
programação informática). A norma do artg.10º deve ser utilizada para dizer que os
credores das dividas do 2º estabelecimento não podem pretender o pagamento dos seus
créditos, através de bens que integram o EIRL. Os credores, que têm justamente esses
créditos em resultado da atividade do segundo estabelecimento não se podem fazer pagar
desses bens individuais, não podem nomear à penhora o computador, o equipamento, etc.
Só que há a ressalva do artg.22º, que nos diz que, os credores não podem ir fazer-se pagar
através de bens individuais compreendidos nesse âmbito, mas no entanto, se provar
justamente que os restantes bens que não integram o âmbito, não forem suficientes para
pagar o crédito, eles podem mandar penhorar esse âmbito no seu total. Se obtiverem a
penhora, pode então ser vendido o estabelecimento de produtos eletrónicos.

3.- Empresas não comerciais (breve referência)


Nesta categoria incluem-se todas as empresas cujo objeto não seja o comércio.
Portanto, estão em causa empresas que não realizam atos de comércio objetivos:

 Empresas da indústria extrativa – apesar de haver autores que entendem que estas
são comerciais, tal não é a opinião de Coutinho de Abreu. Com efeito, estas não
estão previstas como comerciais em qualquer norma legal, e não se vê como será
possível admitir o recurso à analogia legis, nem à analogia iuris. Concluindo, não
parece haver uma “necessidade irrecusável do comércio jurídico” para se
qualificarem estas como empresas comerciais.
 Empresas agrícolas – as explorações agrícolas, bem como as organizações
industriais-transformadoras auxiliares da atividade agrícola do produtor, não são
empresas mercantis tanto porque não se encontram especialmente reguladas na lei
comercial, como porque a sua exclusão do âmbito da comercialidade resulta dos

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arts.230º/1 e 2 e 464º/2 CCom. Neste conceito deverão ser incluídas, note-se, além
das empresas agrícolas em sentido estrito, as empresas silvícolas, as empresas
pecuárias e as empresas de cultura de plantas.
 Empresas artesanais - a atividade artesanal é excluída da comercialidade pelo
parágrafo 1º do art.230º CCom. Deve entender-se, para estes efeitos, como
“artesão” o produtor qualificado que, podendo embora servir-se de máquinas,
utiliza prevalecentemente o seu trabalho manual e, como instrumentos,
ferramentas. As empresas artesanais (para quem as reconheça) serão, portanto,
constituídas pelo artesão e por alguns auxiliares e/ou aprendizes.
Agora, nos termos do parágrafo 1 do artg.230º, as empresas apenas não serão
comerciais quando os artífices seus proprietários ou exploradores exerçam
diretamente a respetiva atividade. Se tal não acontecer, resulta da conjugação desta
norma com o 230º/1, que essas empresas deverão ser consideradas comerciais e
comerciantes os seus proprietários ou exploradores – ex.: quando se limitam
apenas à direção administrativa, comercial, financeira, etc.
 Sociedades de profissionais liberais – as organizações amplas de profissionais
liberais não são consideradas como empresas comerciais (Menezes cordeiro tem
uma posição contrária, entendendo que se tratam de uma categoria especial) na
medida em que a atividade desenvolvida não é uma atividade comercial, mas antes
uma atividade puramente intelectual. Ademais, poderá advogar-se que tais
sociedades e os respetivos consultórios, escritórios ou estúdios, bem como
evidentemente os profissionais liberais singulares, não chegam sequer a ser
“empresas”, na medida em que os instrumentos de trabalho não têm autonomia
funcional – a atividade do sujeito exaure praticamente o “processo produtivo”; o
que avulta é a pessoa do profissional, e não a organização envolvente.
Em regra, de facto não há empresas, mas atente-se no seguinte exemplo: médico
radiologista que executa no seu escritório um ou mais tipos de radiografias. Neste
caso é notória a “despersonalização” da atividade liberal – o que ressalta é a
imprescindibilidade do equipamento tecnológico dos consultórios, sendo
indiferente a pessoa dos médicos titulares dos mesmo

4.- Conceito geral de empresa em sentido objetivo


Um conceito geral de empresas em sentido objetivo compreende, empresas
comerciais e não comerciais, de pessoas ou grupos de pessoas singulares e de pessoas

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coletivas públicas, privadas, etc. Podemos então dizer que empresa em sentido objetivo é
a unidade jurídica fundada em organização de meios que constitui um instrumento de
exercício relativamente estável e autónomo de uma atividade de produção para troca.

5.- Negócios sobre empresas


Vamos começar por explicar uma coisa da realidade jurídica – quando tenho um
bem posso transmiti-lo diretamente, mas também o posso embrulhar numa outra coisa e
depois em vez de transferir juridicamente o bem que está lá dentro, eu transfiro o embrulho
e, consequentemente, o bem que está lá dentro (indiretamente). Assim, eu constituo uma
sociedade e esta sociedade é uma sapataria, ou seja, o que a sociedade tem é a sapataria.
Pode haver alguém interessado na sapataria, e para tê-la pode fazer duas coisas
juridicamente diferentes:

 pode comprá-la (depois de celebrado o negócio continua a existir na sociedade que


continua a ter os sócios que tinha antes, mas já não tem a sapataria porque esta foi
vendida e deixa de ser da sociedade, mas passa a ser do A);
 ou pode o A comprar as ações/quotas da sociedades e todas passam a ser do dono
da sociedade, o A, que é dono da sapataria (no momento seguinte à celebração do
negócio está tudo igual, mas fez-se algo que os senhores B e C deixam de ser sócios
da sociedade, é o A o dono da sociedade e, consequentemente da sapataria).

Porque optou pelas ações? Será por motivos fiscais? Por motivos jurídicos? A maior
parte dos negócios que se fazem materialmente sobre um estabelecimento, fazem-se por
transmissão de participações sociais. É necessário sabermos distinguir o que é um “asset
deal” de um “share deal”:

 Asset deal  realizar um negócio sobre as participações ativas da sociedade


(compro a sapataria – é a própria empresa que é visada na compra);
 Share deal  Quando faço um negócio sobre as participações sociais;

Na realidade, hoje há muitos negócios que materialmente são desenhados do ponto de


vista das partes. São negócios sobre o estabelecimento, que, todavia, formalmente não o
são, sendo negócios de transmissão de ações ou de participações sociais. Isto pode fazer-
se de diversas maneiras através de um spin-off (aquilo que esteve na origem de uma grande
empresa), que foi destacado para ser transmitido. Na sociedade fez-se uma cisão da
sociedade, destacando-se uma parte da sociedade geral, o que levou a que tenhamos uma

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sociedade nova, com novos sócios que ficaram com os ativos da anterior sociedade. Ex.: A
optimus de telecomunicações da SONAE, juntaram a optimus com a PT multimédia, e
através da fusão, passou a ser uma sociedade só que hoje se chama NOS (tudo se fez por
vias societárias, por “share deals”. Não se fez nenhum trespasse).

5.1.- Trespasse
Noção e forma
O legislador português não definiu o que era o trespasse, o que deu aso a muitos
desencontros doutrinais e jurisprudenciais no domínio da compreensão e do alcance do
conceito. Contudo, Coutinho de Abreu, neste contexto retira algumas conclusões:

 O objeto do trespasse é o estabelecimento, mas não tem de ser comercial (em


sentido jurídico). Apenas terá de ser comercial para efeitos dos Artgs.100º e 145º
CDA – ex.: o artg.1112º, o “estabelecimento comercial ou industrial” abarca
também empresas não jurídico-mercantis;
 O trespasse traduz uma transmissão com caráter definitivo, é a transmissão da
propriedade de estabelecimento. Essa transmissão pode ser conseguida através de
negócios variados, tais como a compra e venda, a troca, a dação em cumprimento,
a realização de entrada social.
 Para alguns efeitos o trespasse traduz-se em negócios necessariamente onerosos
(ex.: direito de preferência do senhorio – artg.1112º/4 CC). Mas não é assim em
todos os casos: por exemplo, a doação pode operar um trespasse (100º/1 CDA).
 O trespasse é um negócio celebrado inter vivos.

Posto isto, Coutinho de Abreu, define o trespasse como transmissão da propriedade


de um estabelecimento por negócio inter vivos. Sendo este conceito suficientemente
elástico para representar o trespasse como conjunto de figuras negociais diversas e
simultaneamente para exprimir as notas essenciais comuns que, para lá das diferenças,
congregam as diversas figuras negociais sob a mesma designação.
Durante muito tempo, a forma exigida para o trespasse foi a escritura pública. Depois
do ao de 2000, deixou de estar sujeito a esta forma. De acordo com Coutinho de Abreu,
o escrito continua a ser uma forma necessária:

 É verdade que o artg.1112º/3 se refere literalmente à transmissão da posição do


arrendatário. Mas, porque sucedeu ao homólogo do artg.115º/3 do RAU; porque

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o atual 1112º abrange também a transmissão da posição de arrendatário para
continuação do exercício da profissão liberal, e porque há que entender a outras
normas do sistema, deve o preceito do artg.1112º/3 ser interpretado no sentido da
exigência de escrito para o trespasse.
 A transmissão da firma (que não pode ser feita sem a transmissão do
estabelecimento) exige escrito (44º/1/4 RRNPC); a transmissão de marca ou de
logótipo (envolvida naturalmente na transmissão do estabelecimento) exige escrito
(CPI artg.30º/4, 256º/2, 295º/2). Seria estranho que a transmissão de certos
elementos (“acessórios”) requeresse escrito e não requeresse a transmissão do
estabelecimento.
 Por outro lado, a transmissão da posição do arrendatário do trespassante deve ser
comunicada ao senhorio (1112º/3 CC). Esta comunicação precisará normalmente
de ser acompanhada de cópia ou exemplar do contrato do trespasse.

Orlando de Carvalho, no entanto, não partilha da mesma opinião. Tendo em


consideração o princípio da liberdade de forma (219º CC), parece que o trespasse já não
se contra hoje, sujeito a forma, visto que a lei deixou de exigir forma para a transmissão do
estabelecimento. Agora, claro que isto não significa que a transmissão de cada um dos
elementos que acompanhem o estabelecimento na negociação estejam também sujeitos à
mesma liberdade de forma. A liberdade de forma a que o legislador sujeitou a transmissão
do todo não reduz a exigência de forma a que a lei imponha a cada uma das partes.
Por exemplo, se no âmbito do trespasse do estabelecimento, se transmitir o direito
de propriedade sobre um imóvel, esta transmissão deverá observar a forma exigida por lei
para a transmissão de imóveis. Em caso de inobservância da forma imposta por lei para a
transmissão do direito de propriedade sobre o imóvel, ela será nula (220º CC) – tudo se
passará como se as partes, transmitindo o estabelecimento, não tivessem transmitindo um
dos elementos que integram.

Âmbito de entrega
Dada a natureza sui generis do estabelecimento, a sua transmissão suscita muitas
questões, porque se, por exemplo, se eu fosse dona do telemóvel e o quisesse vender, era
fácil ver o que estava a vender, e também o que tinha de entregar – o bem é finito neste
sentido. Num estabelecimento não é assim. Então como é que se transmite um
estabelecimento?

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Aquilo que o estabelecimento é, o valor da organização, não é palpável. É
uma organização de elementos, fatores, com estabilidade, destinados a troca e que
tem um valor que o identifica. Para se transmitir isto, vou ter que transmitir aquilo
que o identifica, alguns dos elementos que compõem o estabelecimento. Para haver
este reconhecimento externo, tem de haver uma passagem de certos elementos que
existiam antes na esfera jurídica de A, para que as pessoas externamente
reconheçam a mesma organização - princípio de livre conformação na negociação,
sendo as partes livres de acordarem aquilo que acompanha a transmissão.
É possível transmitir a sapataria sem a totalidade dos seus sapatos – as partes
são livres de conformarem o estabelecimento na negociação, sendo certo que: eles
não têm de transmitir tudo o que se encontra no estabelecimento para haver a
transmissão, mas alguma coisa tem de ser transmitida, o que significa um limite à
liberdade das partes na conformação do estabelecimento. Assim aquilo que fica na
transmissão tem de ser suficiente para a tal transmissão de valores de organização
e de exploração. Se as partes retirarem tanto que, a dado momento aquilo que estão
a transmitir já não é identificável, com o estabelecimento já não estamos perante a
transmissão do estabelecimento – a transmissão terá de respeitar o âmbito mínimo
de entrega, que iremos ver a seguir.
Quanto aos atos de entrega, a diversidade destes âmbitos responde a
diversas perguntas:

 Âmbito natural
 Âmbito máximo (convencional)
 Âmbito mínimo
 Âmbito imperativo ou legal (Coutinho de Abreu não identifica este)

Na ausência de uma vontade das partes, quais são os elementos que se transmitem
com o acordo sobre a transmissão do estabelecimento? A e B celebram um contrato
dizendo que “transmito a minha sapataria por 20mil” – quais foram os elementos da
sapataria transmitidos, sendo que não houve acordo de vontades?

I. Âmbito mínimo

A transmissão de um estabelecimento, precisamente porque não dispensa a presença


de um mínimo de elementos do lastro ostensivo que “aprisione” os valores típicos (valores
de organização e valores de exploração), carece da transmissão de um conjunto de

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elementos que se designa de âmbito mínimo: aquele conjunto de elementos do lastro
ostensivo necessário para identificar, sensibilizar e transportar o valor da posição no
mercado que o estabelecimento essencialmente é.
O âmbito mínimo constitui, por conseguinte, um limite ao princípio de livre
conformação do estabelecimento na respetiva negociação – princípio corolário do
princípio da liberdade contratual (405º CC). Na ausência de transmissão de tais elementos
mínimos não haverá transmissão do estabelecimento e, portanto, seria inconciliável a
vontade de transmitir o estabelecimento com a vontade (contraditória) de não transmitir os
elementos imprescindíveis àquela mesma transmissão.
Os elementos de que o âmbito mínimo poderá compor-se, tanto podem ser bens
corpóreos como incorpóreos, assim como coisas ou direitos, etc. A determinação dos
elementos que integram o âmbito mínimo só se poderá efetuar em concreto, assim o
âmbito mínimo é fixado:

 Para determinada negociação – o âmbito mínimo não será o mesmo para um


trespasse ou para uma locação do estabelecimento;
 De determinado estabelecimento – o âmbito mínimo de negociação de um
restaurante e de um hotel não é, evidentemente, o mesmo;
 Num determinado momento – por força da referida lei tendencial, quanto mais o
estabelecimento funcionar de menor número de elementos se irá compor o seu
âmbito mínimo.

Assim, com base no que acabamos de ver, cada um dos elementos pertence ao âmbito
mínimo ou não pertence ou âmbito mínimo: o âmbito mínimo contrapõe ao não âmbito
mínimo (aquele conjunto de elementos cuja transmissão pode ser excluída pelas partes, ao
abrigo da liberdade de conformação do estabelecimento na negociação)

II. Âmbito natural

Os elementos do âmbito natural, são aqueles que na ausência de uma vontade


específica (não havendo cláusulas a excluí-los), passam com o estabelecimento, daí advém
o adjetivo, uma vez que eles passam de uma forma natural. A vontade de transmitir o
estabelecimento abrange naturalmente a transmissão de tais elementos. Estaremos perante
um problema de determinação do âmbito natural de entrega, quando, por exemplo, em
um escrito de trespasse o estabelecimento é identificado apenas pelo seu objeto e

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localização – não se inventariando quaisquer elementos e posições jurídicas a transmitir;
ou mencionando-se alguns elementos, mas a título exemplificativo.
É possível, de certo modo, enumerar os elementos que integram normalmente este
âmbito de entrega. Vejamos primeiros, os meios empresariais cuja propriedade pertença
ao trespassante.
Por força da lei supletiva, incluem-se no âmbito natural os logótipos e as marcas.
No CPI atual, voltou a ficar expressa a transmissão natural tanto dos logótipos (artg.295º)
como das marcas (artg.256º/2) – com a ressalva prevista no 30º/3, se deles não constar o
nome individual ou a firma.
Quanto aos restantes elementos, o silêncio das partes é acompanhado pelo silêncio
da lei. Relativamente aos meios e bens da empresa, sejam ou não essenciais, para a sua
existência, todos esses bens contribuem para a organização e são parte do estabelecimento.
O mais razoável é que, aqueles elementos sobre o que pesa o silêncio se transmitem
naturalmente – trespassado o estabelecimento, fica o trespassado obrigado a entregar o
complexo de bens que o compõem. Exemplos destes bens: máquinas, utensílios,
mobiliários, matérias-primas, mercadorias, inventos patenteados, modelos de utilidade,
desenhos ou modelos.
Poderá perguntar-se agora pelos prédios. Os prédios têm suscitado mais
controvérsia. A jurisprudência entendia tradicionalmente que, na falta de estipulação
específica, o trespasse não implica a transmissão do prédio onde o estabelecimento
funciona. Na doutrina:

 A pertinência dos imóveis ao âmbito natural é afirmada por alguns – Barbosa de


Magalhães e Ferrer Correia.
 É negada por outros – Orlando de carvalho.
 Coutinho de Abreu, entende que quando num contrato de trespasse não se faça
menção à transmissão do prédio e não se conclua, por interpretação do negócio,
que ele foi excluído, deve concluir-se que a propriedade do mesmo foi
naturalmente transmitida:
o O prédio, também faz parte do estabelecimento, sendo um dos seus
elementos e como tal, não fazia sentido estar a estabelecer-se um tratamento
diferenciado para estes (até porque em alguns casos, há bens
patrimonialmente mias valioso do que o prédio, inseridos no âmbito
natural).

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o Além disso, é inegável o peso que alguns imóveis, têm na estrutura
organizatória-exploracional das empresas, como no caso dos hotéis, nos
cinemas, parques de estacionamento, etc.
o Em muitos outros casos os prédios são “feitos à medida” das empresas
respetivas, são projetados em função de específicas atividades empresariais.
 Pedro Maia, entende que nos termos gerais, tem de se compreender ou apreciar,
mesmo não tendo as partes expressamente mencionado a transmissão do imóvel,
decorre do contrato que as partes quiseram transmitir o direito real sobre imóvel.
Pode haver uma clausula explícita no contrato ou basear-se em momentos pré-
contratuais. Pode existir um momento muito relevante nesta matéria: o preço pago.
As partes alguma coisa, direta ou indiretamente, tem de refletir sobre a matéria.

A este respeito, há uma questão que é suscitada: Se um trespasse que envolvesse


um prédio, basta-se com um documento particular, ou se necessitaria de uma escritura
pública? Coutinho de Abreu, por sua vez, respondia que, atendendo às finalidades de cada
uma das formas, ao facto de o negócio ser uno e uno ser o seu objeto, e ao facto de a lei
não distinguir trespasse com ou sem transmissão do prédio, propende-se para a resposta
de afirmação da suficiência do documento particular. Para tal, apontam-se as seguintes
razões:

1) O imóvel, quando integrado na empresa, perde a sua individualidade, passando a


constituir “parte” do “todo” unitário que é a empresa. Assim, também o negócio
que incide sobre a empresa (trespasse) é um negócio unitário, que abrange toda a
empresa. Consequentemente, não é compreensível que se exija uma forma para a
transmissão de certos elementos e outra forma para a transmissão de outros. Todos
estes elementos são constituintes de um objeto jurídico uno e é sobre este objeto
que incide o negócio, sendo que a lei apenas exige para ele a forma de escrito
simples.
2) Se o legislador pretendesse exigir a forma de escritura pública nestes casos não teria
alterado o preceito que exigia essa forma para o trespasse ou então, quando o fez,
salvaguardaria esta hipótese. Ao eliminar a exigência da escritura pública, o
legislador deu a entender que não exigia aquela forma solene para o trespasse em
caso algum (portanto, mesmo que ele implique transmissão de imóvel).
3) O art.101º/1/g) CRPred. dispõe que “são registados por averbamento às respetivas
inscrições (...) a transmissão de imóveis por efeito (...) de trespasse de

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estabelecimento comercial”. Portanto, a própria letra da lei menciona que a
transmissão do imóvel se dá “por efeito” do trespasse. E uma vez que para o
trespasse baste o escrito simples, então também bastará para a transmissão do
imóvel, porquanto esta é uma decorrência daquele.
Coutinho de Abreu, termina dizendo que, o trespasse coenvolve naturalmente a
transmissão da propriedade de todos os elementos que a esse título pertencem ao
trespassante, (podendo, todavia, nalguns casos, um ou mais desses elementos não se
transmitir, como por exemplo, se prever-se uma cláusula negocial).
Vejamos agora os elementos empresariais na disponibilidade do trespassante (o
trespassante tem o gozo destes bens por ser titular de direitos de crédito):

 Prestações laborais a que os trabalhadores subordinados se haviam obrigado


perante o trespassante, continuam em princípio a contar-se entre os elementos do
estabelecimento trespassado – 285º/1 CT (contudo, há que ter em conta o direito
de oposição do trabalhador – 286º-A CT).
Quanto ao regime comum da cessão da posição contratual, exige-se, para que a
posição seja cedida, o consentimento desta? Eu, A, tenho uma posição contratual
com B e faço um trespasse. Quer se entende que integra o âmbito máximo ou
convencional, há uma questão que prevalece: isto vai ser eficaz a B sem o
consentimento dele? Não. A parte cedida tem de autorizar, de consentir, sob pena
de essa cessão ser ineficaz em relação a ele. Se não houve o consentimento não há
uma cessão eficaz. Este é um desenho do direito civil geral. Porém, há uma norma
específica, que é o artigo 1112º  que prescinde da autorização da outra parte. No
caso de trespasse, derroga-se ou afasta-se o regime comum.
 Posição do arrendatário, sem dependência da autorização do senhorio, no caso de
trespasse de estabelecimento comercial ou industrial.
 Posição do locatário financeiro (apesar de ser ter de ter em conta o artg.11º/3 DL
265/97, por o locador se poder opor).

Também dissemos anteriormente, acima que determinadas situações de facto com


valor económico (know-how) podem ser elementos de uma empresa. Pois, apesar de o
saber-fazer não dever ser considerado coisa objeto do direito de propriedade ou de outros
direitos reais, ele deve ser comunicado transmitido, pelo trespassante ao trespassário – tal
deve ser um efeito “natural” (quando não essencial) do negócio de trespasse.

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 É fácil ver a importância da comunicação do saber-fazer para uma efetiva entrega
da unidade funcional e jurídica que ela é. Como se diz correntemente na doutrina,
a comunicação destas diversas informações permite a imissão do adquirente na
posse do estabelecimento.

III. Âmbito máximo (convencional)

Depois há aqueles elementos que só passam, se acrescer um acordo de vontade ad


hoc, para a transmissão daquele específico elemento, pelo que, na ausência desta vontade
acrescida, esse elemento não passa. O acordo de vontades para a transmissão do
estabelecimento não é suficiente para a transmissão de tais elementos, requerendo-se um
outro acordo de vontades para que acompanhem o estabelecimento. São elementos que
se encontram no âmbito máximo (convencional), uma vez que se transmitem por
estipulação ou convenção.
Nele se integram a:

 Firma (artg.44º/1 RRNPC).


 O logótipo e a marca quando neles figurar nome individual, firma ou denominação
do titular do estabelecimento (artg.30º/3 CPI).
 Patentes, desenhos e modelos de utilidade, quando o transmitente apenas tem um
direito pessoal de gozo sobre essa patente (não é titular, mas tem uma licença).
 Créditos e débitos
 Posições contratuais

Para Coutinho de Abreu, os créditos do trespassante ligados à exploração da empresa,


mas cujos objetos não sejam meios do estabelecimento não devam considerar-se elementos
ou meios empresariais. Todavia, podem ser transmitidos juntamente com o
estabelecimento, desde que o trespassante e o trespassário acordem em tal (577º CC) –
farão parte do âmbito convencional.
Assim, como os contratos (posições contratuais do trespassante) ligados à exploração
da empresa, mas cujos objetos (imediatos) não sejam elementos do estabelecimento, bem
como os débitos resultantes da exploração do estabelecimento, também não devem ser
considerados elementos ou meios empresariais. Mas igualmente, podem ser transmitidos
juntamente com o estabelecimento trespassado. Contudo, em regra, tais posições
contratuais e os débitos, não fazem parte do âmbito convencional, pois geralmente a

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respetiva transmissão exige a intervenção de terceiros, não bastando a convenção entre o
trespassante e o trespassário.

 424º e ss CC – é necessário não apenas o acordo entre o trespassante e o


trespassário, mas também o consentimento do contraente cedido.
 Já Cassiano dos Santos, diz que o artg.1112º CC consagra uma exceção à
regra do 424º CC, consagra um princípio geral do Direito Comercial,
segundo o qual, numa situação de trespasse, dispensa-se o consentimento
do contraente cedido. Por força deste entendimento, o autor defende uma
aplicação analógica do artg.1112º CC às situações da posição contratual em
caso de trespasse.
 Relativamente à transmissão singular de dívidas, na vigência atual do CC, a
jurisprudência e a doutrina dominantes negam a referida transmissão automática
das dívidas (com razão). De acordo com o artg.595º, a transmissão a título singular
de dívidas referentes a estabelecimento só se pode verificar com o acordo entre o
trespassante o trespassário, “ratificado” pelos credores, ou por acordo entre o
trespassário e os credores (sem ser necessário o consentimento do trespassante).
o Assim, mesmo que num escrito se diga que o estabelecimento é trespassado
“com todo o seu ativo e passivo”, esse facto, só por si, não significa assunção
pelo trespassário das dívidas do trespassante relativas ao estabelecimento –
exige-se o consentimento dos credores.
o Excecionalmente, porém, o trespassário pode ter de responder por dívidas
anteriores ao trespasse. É assim nos casos do 285º/6 CT (créditos do
trabalhador), 209º/2 CRCCSPSS e nos casos de trespasse de e.i.r.l.

Orlando de Carvalho, difere neste ponto de Coutinho de Abreu, quanto aos créditos
e aos débitos. O Doutor distingue créditos “impuros” e débitos “impuros”:

 Enquanto um crédito estiver associado a um débito, ele é elemento e acompanha


naturalmente a transmissão do estabelecimento – créditos e débitos “impuros” e
inserem-se no âmbito natural.
 Quando não houver aquela correspondência, então estes pertencerão ao âmbito
convencional – créditos ou débitos “puros”.

Orlando de Carvalho também entende de forma diferente a questão relacionada com


as posições contratuais: o consentimento é uma questão diferente da transmissão de

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estabelecimento. Posteriormente terá que se ver quais efeitos é que tal transmissão produz
relativamente ao terceiro – o contraente cedido (sendo que o mesmo se aplica aos créditos
e débitos): poderá haver a oponibilidade a essa transmissão.

IV. Âmbito imperativo ou legal

Temos ainda o âmbito imperativo ou legal, que Coutinho de Abreu não reconhece,
mas que Orlando de Carvalho identifica. Este âmbito compõe-se daqueles elementos que
a lei impede que as partes, transmitindo o estabelecimento, excluam da transmissão.
Depende da vontade das partes transmitir o estabelecimento; mas transmitindo-o, já não
depende da vontade delas a transmissão do elemento. Sendo isso que se sucede com os
contratos de trabalho.

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Esquema
Autor Coutinho de Abreu Orlando de Carvalho
Âmbito
Âmbito natural  Elementos cuja  Direitos obrigacionais
propriedade pertença ao sobre imóveis;
trespassante (logótipos,  Direitos reais sobre móveis
marcas, equipamentos, (matérias-primas,
matérias-primas, direitos equipamentos, etc.);
reais sobre imóveis, etc.);  O logotipo e a marca
 Elementos empresariais na (quando não figurar o
disponibilidade do nome individual, a firma
trespassante a título ou denominação – 31º/5
obrigacional (prestações CPI);
laborais, posição do
 Posições contratuais;
arrendatário, posição de
 Créditos impuros;
locatário);
 Débitos impuros;
 “Know-how”
Âmbito convencional  Firma;  Direitos reais sobre
 Logótipo e marca (31º/5 imóveis;
CPI, quando figurar o  Direito sobre a firma do
nome individual, a firma comerciante;
ou denominação);  Logótipo e a marca (31º/5
 Direitos de propriedade CPI quando figurar o
intelectual (patentes, nome individual, a firma
desenhos e modelos de ou denominação);
utilidade);
 Créditos e débitos puros;

Âmbito imperativo Não reconhece Contratos de Trabalho

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Problema suscitado pelo não preenchimento do âmbito mínimo – direito de
disponibilidade simples
Pode acontecer a situação de se verificar que os elementos transmitidos, ficam aquém
do âmbito mínimo. Perante esta circunstância, terá que acontecer uma de duas coisas: ou
esses elementos passam; ou não haverá a transmissão do estabelecimento.
A primeira coisa a fazer, será “re-apreciar” a interpretação do negócio celebrado:

a) Pode-se concluir que as partes não pretenderam transmitir o estabelecimento, e


daqui decorre que, afinal, não havia nenhum problema respeitante ao não
preenchimento do âmbito mínimo para resolver, visto não ter sido celebrado um
negócio sobre o estabelecimento;
b) Mas se concluírem que a vontade das partes consistiu na transmissão do
estabelecimento, então tem que se encontrar uma via que permita conjugar essas
duas vontades aparentemente contraditórias – vontade de transmitir o
estabelecimento e a vontade de não transmitir determinados elementos do âmbito
mínimo.

Segundo, Orlando de Carvalho, a conjugação desta vontade faz-se através de um


direito de disponibilidade simples sobre elementos do âmbito mínimo que não tiverem
passado. Ex.: para um adquirente de um hotel termal é com certeza, necessário que lhe
seja atribuído o direito de usar o respetivo imóvel, mas já não é necessário que esse uso se
funde num direito idêntico àquele que o anterior titular tinha (de propriedade) – nada
obsta a que o novo titular venha a usufruir do imóvel como arrendatário.
O direito de disponibilidade simples é o direito de usar o imóvel no âmbito da
exploração do estabelecimento adquirido, que permite assegurar ao adquirente do
estabelecimento o uso de um elemento imprescindível à transmissão:

 Direito obrigacional (e não um direito real);


 Direito atípico (não se encontra previsto na lei);
 À exploração pessoal (trata-se de um direito intransmissível, com ou sem
o respetivo estabelecimento);
 Produtiva (o direito apenas existe na medida em que sirva a exploração
produtiva do estabelecimento objeto de transissão);

Este é um direito temporário, uma vez que visa permitir a passagem de um


elemento do âmbito mínimo, compreende-se que o direito de disponibilidade simples só

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dure pelo tempo necessário a que o adquirente “cristalize” na sua esfera esse valor de
posição no mercado. Os elementos do âmbito mínimo servem para a transmissão daquele
valor específico do estabelecimento: uma vez transportado esse valor para a esfera do
adquirente, este poderá dissociar o valor de posição no mercado daquele elemento em
concreto, deixando então de existir motivo para que persista o direito de disponibilidade
simples.
Só não será assim, se tratar de um estabelecimento vinculado a tal elemento, caso
em que, uma vez que não é possível dissociar um do outro, o direito de disponibilidade
simples tenderá a converter-se num direito à locação.
Obrigação implícita de não concorrência
A obrigação de não concorrência decorre implicitamente dos negócios de alienação
de empresas (sem necessidade de qualquer estipulação ad hoc) e é deste há muito
reconhecida pela nossa doutrina e jurisprudência. O trespassante do estabelecimento fica
em princípio obrigado a, num certo espaço e durante um certo tempo, não concorrer com
o trespassário (e sucessivos adquirentes) – nomeadamente, fica vinculado a não iniciar
atividade similar à exercida através do estabelecimento trespassado.
Qual o fundamento para esta obrigação? Têm sido avançados vários:

 Princípio da boa fé na execução dos contratos;


 Princípio da equidade;
 Usos do comércio;
 Concorrência leal;
 Garantia contra evicção;
 Dever de o alienante entregar a coisa alienada e assegurar o gozo pacífico dela –
tem sido aquele usado por nós, e parece, segundo Coutinho de Abreu, ser o
preferível.
o Ferrer Correia entende que se trata de “um princípio geral de direito civil
que impõe ao vendedor o dever de entregar ao comprador a coisa vendida.

A empresa que o trespassante tem de entregar é um bem complexo, com certos


valores de organização e exploração. Normalmente, o alienante conhece as características
organizativas da empresa e mantinha relações pessoais com financiadores, fornecedores e
clientes. A natureza do bem sui generis em causa impõe ao trespassante a abstenção de
concorrer com o adquirente, pois que, de outro modo, o bem seria desfalcado de valores
importantes de aviamento ou acreditamento público (clientela, por ex.), que o caracterizam

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– o trespassário não receberia afinal o estabelecimento que adquirira, mas uma revestido
de um aviamento (ou acreditamento) menor. Seria assim, particularmente perigosa a
concorrência por ele exercida – essa concorrência “diferencial” poria em risco a
subsistência da empresa alienada, impediria uma efetiva entrega da mesma ao adquirente,
uma vez que existe uma tendência natural para a clientela ser atraída para o (novo)
estabelecimento do trespassante.

 Entre nós, nem todos reconhecem a obrigação de não concorrência (Nuno Aureliano).
Recorre para isso à analogia com o artg.9º DL 178/86 – após a cessação do contrato de
agência, o agente fica apenas obrigado a não concorrer se tal for acordado por escrito. Mas
esta questão coloca-se quanto ao contrato respeito, enquanto que no trespassante, o
problema surge por causa da celebração de um contrato e, por efeito do negócio, é
obrigação do trespassante entregar efetivamente o estabelecimento. Além disso, o direito
de iniciativa económica privada não é inconstitucionalmente ilimitado (61º/1 CRP). O
trespassário tem direito a receber devidamente o estabelecimento que adquiriu e a usá-lo
e fruí-lo, nos termos permitidos pelo direito de propriedade.

A obrigação implícita de não concorrência pode intervir na generalidade dos negócios


incluídos no trespasse: venda (voluntária, executiva e falencial), na troca, realização de
entrada social, dação em cumprimento, doação.

 A alienação de participações (ou partes ou quotas sociais; que se distingue da alienação da


empresa social) também se aplica a obrigação de não concorrência? Os “formalistas” dirão
que não, por o objeto de uma e outra ser diverso. Mas a verdade é que aquela alienação,
opera uma transmissão indireta da empresa, assim, se o alienante for capaz de exercer uma
concorrência particularmente qualificada ou diferencial, fica obrigado a não concorrer
perante os adquirentes das quotas.

Além do trespassante, que outras pessoas é que podem ficar vinculadas pela obrigação
implícita de não concorrência?

 O cônjuge do trespassante (sendo indiferente a questão do regime de bens). Fora


o facto de o trespassante poder intervir na administração de empresa adquirida pelo
cônjuge (1678º nº2 f) e g) e nº3; 1679º CC) e de as dívidas provenientes da
exploração de tal empresa poderem responsabilizar ambos os cônjuges (1691º/1;
1695º CC), o cônjuge do trespassante beneficiaria normalmente dos
conhecimentos deste relativos à organização, clientes, fornecedores, etc. A sua
concorrência seria por isso particularmente perigosa para o trespassário.

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 Os filhos do trespassante – para lá de terem podido tirar proveito financeiro, direito
ou indireto, da exploração em que participaram e do trespasse, eles possuem
aptidão para uma concorrência diferencial.
 No caso em que o trespassante é uma sociedade, ficam vinculados pela obrigação
os sócios? Alguns podem ficar – nomeadamente aqueles que possuem
conhecimentos relativos à empresa trespassada indispensáveis a uma concorrência
qualificada (ou porque exerciam ativamente funções de administração, ou porque
detinham participação social dominante e exerciam efetivo controlo sobre a
sociedade).

o Esta é uma solução que incomoda dr. Pedro Maia, pois a sociedade é
composta por muitos sócios que nem todos tiveram algo a ver com a
empresa. Não estão abrangidos os trabalhadores, por tutela deste mesmo,
mas já estão abrangidas as sociedades.
Entre os sujeitos ativos ou credores da obrigação implícita de não concorrência
conta-se o primeiro trespassário e os eventuais sucessivos trespassários (cada um deles será
credor do primeiro sujeito passivo da obrigação), enquanto a obrigação durar.
A obrigação de não concorrência, está funcionalizada para garantir a entrega do
estabelecimento ao trespassário, o que implica duas coisas: ela só existe para isso, e não
pode existir para além disso. Como se depreende, ela tem limites, caso contrário tal
consubstanciaria uma violação do princípio da liberdade de iniciativa económica (artg.61º
CRP) e das regras da defesa de concorrência:

 Limite objetivo – os sujeitos passivos da obrigação não ficam proibidos de exercer


qualquer atividade económica. Não podem é (re)iniciar o exercício de uma
atividade concorrente com a exercida através da empresa trespassada, de uma
atividade económica no todo ou em parte igual (se o trespassante já exercia
atividade similar noutra empresa, não fica impedido de continuar). Todavia, eles
também ficam impedidos de outros comportamentos:
o Passarem a desempenhar funções de administração/direção em empresa
alheia e concorrente;
o Entrarem em sociedade com objeto idêntico ao do estabelecimento
alienado, nela passando a exercer funções de administração ou ficando a
deter posição controladora.

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 Limite espacial – vale apenas nos lugares delimitados pelo raio de ação do
estabelecimento trespassado.
 Limite temporal – durante o tempo suficiente para se consolidarem os valores da
organização e/ou exploração da empresa transmitida na esfera de um adquirente-
empresário razoavelmente diligente.
o A resposta apenas poderá ser encontrada no caso concreto, porém,
Orlando de Carvalho, avança com determinados critérios que ajudam na
determinação:
 A proibição varia consoante o tipo de estabelecimento em causa,
tratando-se de um estabelecimento que se relacione constantemente
com os seus clientes, a proibição durará menos tempo (ex.: um café,
os clientes repetem mais facilmente as suas dias lá, pelo que, em
pouco tempo já se terão esquecido do anterior titular); do que num
estabelecimento no qual o relacionamento com a clientela seja
menos assíduo (companhia de um avião).
 A duração da obrigação não atende às qualidades pessoais do sujeito
concreto que adquire. Ou seja, o trespassante não está obrigado a
não concorrer por mais ou menos tempo, consoante o adquirente
se mostre mais ou menos apto.
 A obrigação não assegura um resultado (que o adquirente se
apodere dos valores do estabelecimento), mas sim os meios
para que esse resultado possa ser alcançado.

Se os obrigados a não concorrer, violarem a obrigação, pode o trespassário:

 Exigir a indemnização por perdas e danos (artg.798º CC);


 Resolver o contrato de trespasse (artg.801º/2 CC);
 Intentar uma ação de cumprimento (artg.817º CC);
 Requerer uma ação pecuniária compulsória (artg.829º-A CC);
 Exigir que o novo estabelecimento seja encerrado (artg.829º/1 CC);

Note-se por último, que a obrigação pode ser afastada por estipulação contratual (o
sujeito dos interesses patrimoniais tutelados pela obrigação é o trespassário, que deles pode
dispor livremente). Significa a cláusula de livre concorrência a inexistência de um

2019/2020 Rita Nina – FDUC 41


verdadeiro trespasse ou uma efetiva transmissão do estabelecimento? Só conseguimos
responder com a análise dos casos concretos.

Caso 3- O caso das duas funerárias


A Paz Eterna, Serviços fúnebres, Lda, era proprietária de um estabelecimento em que
exercia a atividade funerária. Em janeiro de 2019, a Paz Eterna vendeu à Sublime
Descanso, Funerária de Coimbra, S.A., aquele estabelecimento. Em junho de 2019, a Paz
Eterna abriu, a escassos 200 metros do estabelecimento vendido, um novo estabelecimento
para se dedicar à mesma atividade. A Sublime Descanso pretende reagir, mas não sabe
como. O que diria aos administradores da Sublime Descanso?

Resolução- O que está em causa é se há ou não a obrigação de não concorrência. Neste


caso a doutrina costuma chamar, a obrigação implícita de não concorrência, do trespasse.
É possível afirmar a existência da obrigação desde que se possa dizer que neste caso de
exercício de atividade concorrente por parte do trespassante, ponha em causa o
estabelecimento trespassado. Não é qualquer concorrência após o trespasse que viola esta
obrigação. Esta obrigação apenas vale dentro dos limites, ela não tem carater absoluto.
Quem vende este estabelecimento está a vender uma coisa muito especial, se o
estabelecimento é uma organização e se é uma de fatores produtivos, vai ter valor de
organização, valor diferencial, tem uma natureza muito especifica. Se na organização vamos
encontrar esses valores de organização, é fácil de perceber se quem vende o
estabelecimento e depois começa a semear uma atividade, está em condições de
desenvolver uma concorrência particularmente perigosa. É perigosa, uma vez que está em
condições de reproduzir a organização que existia antes e evidentemente procurar ocupar
a mesma posição no mercado.
O adquirente poderá reagir perante esta violação. Mas é necessário que a obrigação
esteja dentro do limite temporal – ele não pode reagir para sempre, deve valer apenas pelo
período de tempo concreto que seja considerado necessário que se consolide aquele
estabelecimento na titularidade do adquirente (não é o tempo que o trespassado vai
precisar para fazer isso, mas o tempo em que ele precisaria para tal). Quanto ao tempo, foi
de facto em Janeiro de 2019, ou seja, ainda nem fez um ano, por isso muito dificilmente o
adquirente iria conseguir consolidar a sua titularidade naquela realidade que é o
estabelecimento comercial – o trespassante obrigou-se a não interferir na atividade do
adquirente. O vendedor se depois iniciar uma atividade concorrente logo a seguir, está a

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assediar a clientela, os fornecedores, a recuperar o bom nome associado ao antigo
estabelecimento, etc. Não podemos dizer que o juiz iria concordar necessariamente com a
ideia de que esse âmbito temporal tinha sido ultrapassado, mas o professor entende que
neste caso em concreto, que esse prazo não seria suficiente para consolidar a titularidade
do estabelecimento no adquirente.
Claro que isto vai depender muito em concreto da prova que se vai fazer, vai ter de
se mostrar que a clientela que se manteve com o adquirente, as famílias que procuravam o
trespassante, continuavam a procurar o trespassário em numero significativo, os
fornecedores continuaram a agir da mesma maneira, etc.
Ainda temos um âmbito/limite espacial, se abrir um estabelecimento no outro lado
do país, será muito difícil que o raio de ação se estendesse também para esses lados. Mas
não nos podemos esquecer que hoje são cada vez mais, os estabelecimentos que vendem
para todo o mundo (endereços na internet) – o raio de ação é muito maior. Em todo o
caso, há casos em que tal não acontece. Vamos supor que não é isto que acontecia com as
funerárias.
O segundo estabelecimento vai estar a 200m do estabelecimento vendido, ora,
podemos perceber que, tendo em conta o tipo de atividade em causa, não é esta distancia
que vai evitar a deslocação da clientela para o 2º estabelecimento, se quiserem ir para o paz
eterna não são esses 200m que vão impedir as pessoas de tal.
Quanto ao âmbito da atividade em causa, estamos perante a mesma atividade, não
há dúvida que são âmbitos concorrentes.
Estando dentro do âmbito destes limites, podemos afirmar a obrigação de não
concorrência no caso. Que meios é que o adquirente teria ao seu dispor?
 A resolução do contrato por incumprimento (violação da obrigação de entrega),
como tal, em regra, a indemnização seria pelo interesse contratual negativo – vamos
colocar o sujeito na situação em que estaria se não tivesse celebrado aquele negócio;
mas também podendo pedir pelo interesse contratual positivo.
Pode interpor uma ação para que o trespassante cumpra o contrato, portanto que mande
encerrar o estabelecimento. O CC prevê no 829º, da prestação de facto negativo, não está
pensada para o encerramento do estabelecimento, ela está pensada para uma obrigação de
não construção. Mas parece que podemos aplicar a esta situação, nem que seja por analogia
ou extensão teleológica – resultando numa sanção pecuniária compulsória (por cada dia
que mantiver o estabelecimento aberto).

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Trespasse de estabelecimento instalado em prédio arrendado
Por força do 1059º/2 CC, a cessão da posição do locatário está sujeita ao regime geral
previsto nos artgs.424º CC, salvo disposição especial prevista na lei. Uma destas disposições
especiais é o artg.1112º/1 a) CC que dispõe que, o trespassante-arrendatário pode ceder a
sua posição de arrendatário sem necessidade de autorização do senhorio.
É uma norma de tutela ou de defesa da circulação negocial dos estabelecimentos e,
eventual e concomitante, da própria manutenção deles – isto porque, dada a importância
dos prédios, a necessidade de autorização do senhorio significaria muitas vezes à quebra
da referida defesa. Protege-se assim:

 Interesses dos trespassantes – em transmitirem sem entraves dos senhorios,


estabelecimentos integrando direito de arrendamento.
 Interesses dos trespassários – em adquirirem as empresas o mais possível valiosas
e funcionais
 Interesse económico-geral – que o direito tem, na continuidade e desenvolvimento
das empresas.
 Orlando de Carvalho, entende que o que a lei visa tutelar é o valor económico que,
para o respetivo titular, o estabelecimento representa. A fácil transmissibilidade do
bem aumenta o seu valor — justamente, o seu valor de transmissão —, podendo
mesmo dizer-se que aquela constitui uma nota genérica do direito comercial: a de
tornar valiosos no tráfico os bens de que os empresários se servem (sejam eles uma
marca, um crédito, o próprio estabelecimento, etc.).

Para que a cessão da posição de arrendatário fique dispensada do consentimento do


senhorio é necessário verificarem-se, cumulativamente, dois requisitos:

 É necessário que a cessão ocorra no âmbito de um trespasse — o art.1112º CC não


se aplica se não houver sequer trespasse ou se, mesmo havendo trespasse, a cessão
do arrendamento estiver dissociada dele (por ex., A trespassa a B o
estabelecimento, mas cede a posição de arrendatário a C);
 É necessário que o trespasse corresponda a um negócio entre vivos — à transmissão
mortis causa não se aplica o disposto no art.1112º, mas sim o regime do art.1113º
CCiv.

Verificados estes dois requisitos, a cessão da posição de arrendatário não carece do


consentimento do senhorio.

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Ora, o nº2 do 1112º CC diz que, não há trespasse:

a) “quando a transmissão não seja acompanhada de transferência, em conjunto, das


instalações, utensílios, mercadorias ou outros elementos que integram o
estabelecimento;

Interpretando esta alínea, de acordo com Coutinho de Abreu, poderíamos concluir


que o trespasse de um estabelecimento exigiria a transferência de todos os seus elementos,
bastando que a falta de um deles para que não se pudesse falar de um trespasse. Porém, já
sabemos que, o estabelecimento se transmite quando se transferirem os elementos do seu
“âmbito mínimo”, sendo que, nesse caso haverá o trespasse, mesmo que não tenham sido
transferidos todos os elementos do estabelecimento (basta apenas os do âmbito mínimo).
Deste modo, para que o artg.1112º/1 CC não tenha aplicação, o senhorio terá de provar
que sem aqueles elementos que não foram transferidos, o estabelecimento não subsiste. Se
ele conseguir provar isto, então não existiu um verdadeiro trespasse, tendo havido antes
uma simulação de trespasse, sendo a cessão da posição do arrendatário ilícita sem o
consentimento do senhorio, e fundamento de resolução do contrato de arrendamento
(1083º/2 e) CC).
Segundo Orlando de Carvalho, surgiram diversas interpretações em redor desta
alínea:

 presunção de inexistência de trespasse, com a consequente inversão do ónus da


prova;
 mero indício da inexistência de trespasse, sem outro efeito que não seja o de impor
ao juiz um especial cuidado na averiguação de uma possível simulação de negócio;
 mais recentemente, imposição de que o “estabelecimento passe, no essencial, tal
como existia na esfera do arrendatário” (não se mostrando necessário que passem
todos os elementos do lastro ostensivo, mas também não bastando a simples
observância do âmbito mínimo);
b) Quando a transmissão vise o exercício, no prédio, de outro ramo do comércio ou
indústria ou, de um modo geral, a sua afetação a um outro destino”;

A redação deste preceito não se mostrava clara, desde logo porque parecia assentar
numa aparente contradição lógica: a de que um comportamento do trespassário posterior
ao negócio — que desse ao imóvel um novo destino— pudesse vir a afetar a prévia
qualificação do próprio negócio.

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 Se A transmitisse a B o seu estabelecimento e se, posteriormente, este viesse a
destinar o imóvel a outro fim, então… teria deixado de, antes, haver trespasse.

Na sua letra, o preceito apresentava ainda uma outra (e intransponível) dificuldade:


o facto de o comportamento de somente uma das partes no trespasse — o trespassário —
vir a afetar a qualificação daquele negócio, celebrado com base no acordo entre
trespassante e trespassário.

 Não faria decerto sentido que, tendo A celebrado um negócio de compra e venda
do estabelecimento mediante acordo com B, aquele visse a qualificação e,
consequentemente, o regime desse mesmo negócio alterados por força de um
comportamento posterior e unilateral de B. Se a qualificação do negócio como
trespasse assentava no acordo das partes, só de um acordo poderia resultar a “des-
qualificação” desse mesmo negócio.

Com base nestas e noutras considerações, a doutrina limitou, por via da interpretação,
o alcance do referido art.115º, nº 2, b), do Regime do Arrendamento Urbano. Para a
inexistência de trespasse seria necessário que, logo à data da celebração do negócio, as
partes (ambas) pretendessem a mudança de destino, isto é, tivessem simulado um trespasse
para dissimular a transmissão da posição de arrendatário. Nesse caso não haveria trespasse.
Se, ao invés, a mudança de destino fosse posterior ao trespasse ou fosse resultado da
vontade do trespassário apenas, nenhuma consequência se verteria sobre o regime da
cessão da posição de arrendatário: o consentimento do senhorio continuaria a ser
desnecessário para este efeito, posto que, tendo efetivamente ocorrido um trespasse se
preenchera a hipótese do nº 1 da norma.
Hoje, a interpretação do disposto na al. b) do nº 2 não pode deixar de conjugar-se com
o nº 5 do mesmo artigo: “quando, após a transmissão, seja dado outro destino ao prédio,
ou o transmissário não continue o exercício da mesma profissão liberal, o senhorio pode
resolver o contrato”.
Ora, a leitura conjugada da redação do atual art.1112º, nº 2, b) e do nº 5, CC permite
concluir que a lei distingue dois tipos de casos:

 aqueles em que as partes, no momento da celebração do negócio, visam (ambas) a


mudança de destino do prédio (art.1112º, nº 2, al. b));
o neste caso, não há trespasse, uma vez que teria que haver consentimento do
senhorio (alteração do destino).

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 aqueles em que uma das partes (o trespassário), em momento posterior ao do
trespasse e da concomitante cessão da posição de arrendatário, altera o destino do
imóvel (art.1112º, nº 5).
o no segundo caso, emerge para o senhorio, no momento da mudança do
destino, um direito de resolução do contrato – que fora válida e eficazmente
cedido sem o consentimento do senhorio, visto ter sido incluído num
trespasse.

Na verdade, até à introdução do atual regime do arrendamento (2006) o


arrendatário beneficiava de dois aspetos de regime que conferiam um especial valor de
transmissão ao seu direito:

• por um lado, o arrendamento estava sujeito ao chamado regime vinculístico, isto é,


o contrato renovava-se automaticamente independentemente da vontade do
senhorio, que, pela sua parte, só o podia resolver com base nalguma das situações
expressamente previstas na lei;
• por outro lado, a cessão da posição de arrendatário, efetuada no âmbito de um
trespasse, colocava o cessionário (o adquirente do estabelecimento) na mesma
posição previamente ocupada pelo cedente, conferindo-lhe os mesmos direitos
quanto à duração do contrato e também quanto ao uso do imóvel.

Ora, sempre que o valor da renda estivesse abaixo do valor de mercado (o que
facilmente podia suceder, visto que o regime vinculístico permitia que os arrendamentos
vigorassem ao longo de décadas sem atualização material de rendas), o arrendatário podia
usufruir de uma especial valorização do estabelecimento, caso negociasse acompanhado
do direito sobre o imóvel: o adquirente do estabelecimento tomaria a posição de
arrendatário, o que lhe facultava o gozo do prédio contra o pagamento de uma renda de
escasso montante. E o adquirente do estabelecimento passava a ter o direito (na mesma
medida que o anterior titular o tivesse também) de instalar no prédio arrendado outro
estabelecimento, desde que respeitasse os limites eventualmente fixados no contrato de
arrendamento.
Esta circunstância levou a que persistissem valores de renda muito baixos em imóveis
cujo contrato de arrendamento fora objeto de sucessivas cessões sem o consentimento do
senhorio: sempre incluída em trespasses, a posição de arrendatário circulava ao longo de
décadas, mantendo sempre o montante das rendas tendencialmente inalterado. Só não
seria assim se não tivesse havido trespasse.
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À luz do novo regime do arrendamento urbano, parece claro que tal já não acontece,
por vários motivos.
Desde logo, porque é natural que, sendo permitido limitar a duração do contrato,
passe a ser menor o valor que a cessão pode incorporar: o adquirente não estará disposto
a pagar um montante elevado para que o trespasse inclua a posição de arrendatário se o
contrato estiver perto do seu termo (por exemplo, a 1 ou 2 anos). Encurtando-se,
temporalmente, o direito de arrendamento sobre o imóvel, encurta-se, do mesmo passo, o
valor económico desse direito.
Ora, a circunstância de à posição de arrendatário em causa estar associada uma
renda de valor abaixo do mercado não justificará, economicamente, o pagamento de um
preço elevado pelo trespasse: a duração limitada do arrendamento determinará que,
decorrido o prazo, o senhorio venha logicamente a opor-se à renovação, ao menos sem
uma revisão do montante da renda. Recorde-se que, anteriormente, não era assim, visto
que os contratos de arrendamento — mesmo que celebrados com prazo — ficavam sujeitos
a renovação automática, bastando, para o efeito, que o arrendatário a ela não se opusesse.
Mas acresce ainda que, quem adquire o estabelecimento acompanhado da posição
de arrendatário ficará, por força do disposto no art.1112º, nº 5, CCiv, numa posição
diminuída: o seu direito sobre o imóvel ficará à mercê da resolução pelo senhorio logo que
seja dado “outro destino ao prédio”. Aquilo que era permitido ao primitivo inquilino
(dentro do âmbito estabelecido no contrato de arrendamento), já não o será ao cessionário.
O direito sobre o imóvel fica, por força da cessão não autorizada, limitado por lei, visto
que o direito do novo arrendatário se sujeita a uma causa de resolução específica (Orlando
de Carvalho).
A interpretação deste preceito está longe de ser consensual na doutrina:

 Não tem relevância autónoma, uma vez que, já cobre a hipótese do 1112º/2 b) CC
– Sousa Ribeiro;
 Coutinho de Abreu, entende que a norma é criticável, mas considera que é
fundamento autónomo de resolução, uma vez que existiu trespasse, e esta se trata
de uma alteração de destino lícita, uma vez que como proprietário do
estabelecimento, o trespassário podia perfeitamente converter o estabelecimento
adquirido em outro. Assim, neste caso, dá-se fundamento ao senhorio para a
resolução do contrato (artg.1112º/5 CC), mas sem direito a indemnização (a cessão
da posição de arrendatário foi lícita).

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A ratio da norma será a de que a lei concede ao trespassante e ao trespassário o
benefício consagrado no nº1 a), do artg.1112º (não interferência do senhorio) a fim
de facilitar a transmissão; mas se este estabelecimento, cuja circulação se promoveu,
não se mantiver, deverá então o senhorio poder interferir na relação arrendatícia,
resolvendo o contrato.
o Ao invés na b), como inexistiu trespasse a cessão de posição de arrendatário
foi ilícita, o senhorio poderá ainda responsabilizar civilmente o trespassante
e/ou o trespassário quando os atos ilícitos e culposos destes lhe causem
danos.
 Cassiano dos Santos: o nº 5 constitui uma causa objetiva de resolução (posição
próxima de Coutinho de Abreu), que só opera quando a alteração de destino
ocorra “logo após a cessão da posição de arrendatário”, isto é, quando, entre a
cessão e o novo destino, não se tenha interposto nenhum ato relevante,
designadamente não tenha havido exploração “estável e consistente” do
estabelecimento trespassado;
 Ricardo Costa: o nº 5 só se aplica à mudança geral de destino – de comércio e
indústria para outro fim não habitacional (instalação da sede de uma pessoa
coletiva, realização de eventos, etc.) ou para fim habitacional. Pelo que o âmbito de
aplicação do nº 2, al. b), é maior do que o do nº 5: este só diria respeito a esta
mudança geral de destino, ao passo que aquela al. b) do nº 2 abrangeria também a
mudança de um ramo de comércio ou indústria para outro ramo de comércio ou
indústria ou até a simples alteração de destino do estabelecimento em causa.

Como se não bastasse, a Lei nº 6/2006 impôs uma outra diminuição aos contratos
de arrendamento cedidos no âmbito do trespasse. Por força do arts.28º e 26º, nº 6, al. a),
daquela lei (que aprovou o NRAU, agora constante do CCiv), os contratos sem duração
limitada (celebrados antes da entrada em vigor do NRAU) sujeitam-se a uma denúncia livre
pelo senhorio com pré-aviso de cinco anos, sempre que “ocorra trespasse ou locação de
estabelecimento após a entrada em vigor da presente lei”.
Ou seja:

 Se se tratar de um contrato de duração indeterminada anterior ao NRAU, o simples


facto de ocorrer trespasse (que inclua a transmissão da posição de arrendatário)
atribui ao senhorio um direito de denúncia livre, que poderá operar passados 5
anos (arts.28º e 26º, nº 4, al. c), NRAU e art.1101º CC); neste caso, mesmo que

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não venha a ser dado outro destino ao prédio (como se requer no art.1112º, nº 5),
o senhorio poderá, através de denúncia ad nutum, pôr fim ao arrendamento;
 Se se tratar de um contrato com prazo certo anterior ao NRAU, o direito caducará
com o decurso do prazo e, antes disso, o senhorio também poderá resolver o
contrato se se verificar o pressuposto do art.1112º, nº 5;
 Num caso como noutro, se o contrato for anterior ao Decreto-Lei nº 257/95 (que
alterou o RAU), então o senhorio poderá, em vez de denunciar ou resolver o
contrato, optar pela atualização imediata das rendas.

Assim, a cessão da posição contratual de arrendatário (não obstante dispensada do


consentimento do senhorio) importará a alteração substancial do regime do que contrato
de arrendamento: o contrato de arrendamento em que o trespassário irá ser parte é o
mesmo, mas não será o mesmo o regime a que ele ficará sujeito.
Tudo junto, parece inevitável concluir que a inclusão, no âmbito do trespasse, de
um direito de arrendamento sobre o imóvel passou a ter, com o NRAU, um valor e uma
importância prática muito menores: o senhorio pode denunciar com um pré-aviso de 5
anos, caso de trate de contrato por tempo indeterminado; e pode resolver logo que o novo
inquilino dê um novo destino ao imóvel; e, como quer que seja, os novos contratos já não
estão sujeitos ao regime vinculístico.
Para que a transmissão da posição do arrendatário seja eficaz, é necessário que esta
seja comunicada ao senhorio – 1112º/3. Como a lei, não especifica, o prazo para a
comunicação, vale o previsto no artg.1038º g): 15 dias a contar do dia seguinte ao do escrito
de trespasse que inclui a transmissão da posição do arrendatário. Quanto à forma, deverá
ser feita mediante escrito assinado (por ambos). Contudo, não basta que passe os 15 dias
para se decretar o incumprimento, sendo normalmente necessário, vários meses que
tenham impedido o senhorio de denunciar mais cedo, livremente (1083º/2). Neste caso,
ele poderá resolver o contrato de arrendamento, de acordo, com o previsto no 1083º e).
Obviamente que interessa ao senhorio, a comunicação, pois ele tem o direito de
saber quem aparece como novo inquilino e de verificar se houve ou não trespasse válido
que lhe imponha um novo inquilino. Havendo trespasse válido, o senhorio não poderá
recusar o trespassário como arrendatário.

Caso 4- E (quase) tudo o fogo levou

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Armindo, dono e explorador, há mais de 10 anos, de uma fábrica de máquinas agrícolas
em que emprega 100 trabalhadores, tem créditos sobre os seus clientes no valor de um
milhão de euros. Nessa fábrica estão instaladas máquinas que Armindo comprou. Além
disso, Armindo registou um logótipo e adotou firma, também registada. Tendo a fábrica
sido destruída por um violento incêndio (escaparam as viaturas de transporte de
mercadorias estacionadas no parque contíguo e de que Armindo tem o uso através de
contratos de locação financeira em que é locatário), Armindo pretende saber se, querendo
vender o seu «estabelecimento», está obrigado a pedir o consentimento do senhorio. O
que lhe diria? Armindo também quer saber se os créditos sobre os clientes se transmitem
para o adquirente do «estabelecimento». Que resposta lhe daria?

Resolução- Este caso já diz respeito às negociações sobre o estabelecimento,


nomeadamente, o trespasse. Temos um estabelecimento industrial que Armindo explora
há mais de 10 anos, que emprega mais do que 100 trabalhadores (logo, vamos encontrar
aqui contratos de trabalho, iremos analisar as posições contratuais dos trabalhadores) e
ainda tem créditos sobre os seus clientes no valor de um milhão de euros. Também temos
aqui um contrato de locação financeira, no qual Armindo é locatário. Temos de saber se
ainda existe um estabelecimento. Porque é que isto é relevante do ponto de vista da questão
de saber se tem de pedir ou não consentimento ao senhorio.
Artigo 1112º CC – dispensa o consentimento do senhorio. Tendo havido este
violento incêndio, continua ou não a haver um estabelecimento? Temos de saber, antes de
mais, o que é um estabelecimento, apresentamos duas noções a este propósito (a do
Doutor Orlando e a do Doutor Coutinho). O Doutor Coutinho apresenta a seguinte noção
– novidade jurídica que se funda numa organização relativamente estável e autónoma que
serve de instrumento de uma atividade comercial. Esta ideia da organização de meios que
vai servir de instrumento para o exercício estável e autónomo de uma atividade comercial
é uma ideia fundamental. Quando falamos de autonomia estamos a referir-nos de
autonomia relativa ao sujeito, por isso, esse instrumento tem essa relativa autonomia, as
prestações do sujeito diferenciam-se do próprio instrumento, este tem uma certa
estabilidade e autonomia e permite esse exercício da atividade. Já o Doutor Orlando
entende que o estabelecimento seria uma organização concreta de fatores produtivos como
e enquanto valor de produção para a troca. Temos novamente a ideia de organização, em
ambos os casos esta ideia de organização surge para fazer a distinção entre estabelecimento
e um mero conjunto de bens. De acordo com a ideia do Doutor Orlando esta organização

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é uma ideia que se concretiza em fatores produtivos, portanto, tem de haver um mínimo
de fatores produtivos organizados. Por exemplo, eu tenho um imóvel e tenho uma ideia
de organização, mas isto não faz um estabelecimento, só temos um elemento e uma ideia.
Não basta também valores organizados, é necessário um valor no mercado, em que já
ocupa uma posição no mercado, já se diferencia aquela organização de outras organizações
que também atuam no mercado. Já há no mercado uma identificação de autonomia dessa
organização.
Para haver estabelecimento tem de haver organização, na perspetiva do Doutor
Orlando, para termos organização temos de encontrar os valores de organização. Antes de
mais, o valor da complementaridade económica do que é organizado, aqueles valores
organizados vão apresentar-se com complementaridade económica entre eles. Esta
complementaridade é o primeiro valor da organização, mas este valor vai fazer-nos assenta
noutros valores de organização. Temos o valor de seleção ótima que é acompanhado pelo
valor de combinação ótima. Depois ainda temos a dimensão, a ideia de que não podemos
meter na organização muita coisa para não colocar em causa a eficiência da organização.
Muitas empresas atualmente têm a necessidade de fazer uma rotação nos stocks,
poupando-se muitas despesas de armazenamento.
Os valores de organização não bastam, é necessário que esta organização respeite
estes valores com o acreditamento diferencial – já ganhou uma posição no mercado, que a
diferencia das outras organizações. O que existe depois do incêndio permite-nos ou não
dizer que aquilo que ali está ainda é um estabelecimento? É importante, para a análise
destes casos, referir os valores de exploração. Evidentemente, à medida que os
estabelecimentos funcionam vão adquirindo mais valores de exploração, vai adquirindo
clientela, reputação, crédito. Um estabelecimento pode existir sem valores de exploração,
mas não pode é existir sem os valores de organização e sem a tal posição no mercado.
O Doutor Orlando fala de uma lei tendencial de desenvolvimento de
estabelecimento – quanto mais um estabelecimento funciona menos o estabelecimento
depende dos seus valores do lastro ostensivo e mais passa a depender dos valores de
exploração e de organização. Apesar de se dizer que o estabelecimento quanto menos
tempo funcionou mais depende dos elementos do lastro ostensivo, é sempre necessária a
tal posição no mercado (limite à partida) Para além disto, por mais que um estabelecimento
funciona nunca pode apenas depender dos valores de organização e dos valores de
exploração, tem de haver sempre um mínimo de elementos do lastro ostensivo (limite à

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chegada). Uma simples ideia de organização eventualmente com contactos (com potenciais
clientes) só isto não faz estabelecimento porque não temos elementos do lastro ostensivo.
Armindo é explorador há mais de 10 anos, portanto, nós sabemos que estamos a
falar de uma realidade que já funcionava há algum tempo. Se as coisas se passaram
normalmente aquele estabelecimento depende menos hoje dos elementos do lastro
ostensivo (do que há 10 anos atrás) e depende mais dos valores de organização e dos valores
de exploração. Do incêndio sobrou os contratos de trabalho, a posição de arrendatário, o
logótipo, a firma, as viaturas de transportes e mercadorias e a posição contratual de
locatário financeiro. Numa situação destas, havia argumentos para dizer que aquele
estabelecimento, enquanto valor de posição no mercado, podia subsistir após o fogo. Do
ponto de vista dos valores de organização, sabemos que também há créditos sobre os
clientes. A clientela não é elemento do estabelecimento é um valor de exploração, que
permite dizer que aquele estabelecimento tinha valor-posição no mercado e se os créditos
subsistem, então, a relação com os clientes não desapareceu.
As posições contratuais dos trabalhadores integram o lastro ostensivo do
estabelecimento. Quanto aos créditos, o Doutor Coutinho diz que os créditos nunca são
elementos do estabelecimento, são elementos do património do dono do estabelecimento,
já o Doutor Orlando diz que os créditos são valores do lastro ostensivo, podendo integrar,
consoante os casos, o âmbito natural (se forem créditos impuros – são transmitidas com o
estabelecimento sem necessidade de convenção expressa nesse sentido), ou integrar o
âmbito máximo (créditos puros – só se transmitem se houver convenção dirigida a essa
mesma transmissão). Os créditos impuros são aqueles que resultam de relações jurídicas
que se mantém, por exemplo, um contrato de fornecimento pode gerar vários créditos do
fornecedor, o contrato de fornecimento pode durar muitos anos. Por exemplo, um
contrato de compra e venda, o vendedor tem de pagar o preço -crédito puro. Assim, temos
aqui a relevância da durabilidade da relação jurídica. Se estamos a negociar um
estabelecimento em funcionamento que tem relações contratuais duradouras com
terceiros, este estabelecimento, ao ser transmitido para o adquirente, é natural que
queiramos abranger essas relações e as dinâmicas que se geram no seio dessas mesmas
relações.
Temos no caso elementos suficientes que subsistiram, há um estabelecimento que
mantem relações com os seus clientes, vai ter, portanto, valores de exploração. Também
temos o logótipo e a firma que são sinais distintivos para marcar uma posição no mercado
e isso não desapareceu. Por outro lado, temos o contrato de locação financeira – este é um

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contrato de financiamento, ou seja, Armindo obteve crédito (valores de exploração), por
isso, podemos dizer que aquela realidade já se libertou um pouco mais dos seus elementos
do lastro ostensivo. Havendo estabelecimento pode negociá-lo sem consentimento do
senhorio.
E os créditos vão ser transmitidos para o adquirente do estabelecimento? O Doutor
Coutinho entende que os créditos não fazem parte dos âmbitos de entrega do
estabelecimento. O crédito pode ser negociado, mas não estou a negociá-lo como elemento
do estabelecimento. Se nada for dito a propósito do crédito, ele não se transmite porque
nem sequer é elemento do estabelecimento. Para o Doutor Orlando, vai depender se se
trata de créditos puros ou impuros. Ainda temos de considerar os elementos do âmbito
imperativo-legal, elementos que as partes não podem impedir a sua transmissão. A lei
permite que o trabalhador se oponha e nesses casos não há transmissão. No caso de se
tratar de créditos impuros temos o âmbito natural, se se tratar de créditos puros temos o
âmbito máximo ou convencional. Se forem créditos que eventualmente podem enfrentar
dificuldades na cobrança até pode ser benéfico para Armindo incluir na transmissão os
créditos.
Hoje em dia acontece muito que em vez de se negociar estabelecimentos, se
constituam sociedades que vão adquirir estabelecimento já montados, sobretudo, se
estivermos a falar de sociedades de pequena dimensão que só têm aquele estabelecimento
e que depois de venderem o estabelecimento já não têm interesse naquela atividade, assim,
em vez de venderem o estabelecimento, podem preferir vender as participações sociais
daquele sociedade e hoje isto acontece muito. Com esta possibilidade de transmitir as
participações, há quem diga que o trespasse perdeu importância, mas não é bem assim
(por exemplo, vai depender de questões fiscais).

Caso 5- O caso do trespasse lacónico, do trespassante destruidor e do senhorio


ganancioso
Felismino, dono e explorador do estabelecimento que explorava com o logótipo
«Superligeiro» e em que revendia automóveis usados, vendeu esse estabelecimento a
Gualter. Quando as chaves lhe foram entregues, Gualter verificou que Felismino tinha
retirado da frontaria do estabelecimento com um martelo hidráulico as letras contendo o
logótipo e que o cofre ali existente estava «a zero». Gualter quer saber se pode continuar a
usar o logótipo e se tem direito a exigir de Felismino o dinheiro que deveria estar no cofre.
O que lhe diria, tendo em conta que o contrato relativo ao estabelecimento nada diz a esse

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respeito? Por sua vez, Hipólito, senhorio dono do imóvel em que funciona o
estabelecimento em causa, quer intentar uma ação de despejo relativamente ao espaço
arrendado porque no negócio entre Felismino e Gualter nada foi estabelecido quanto à
transmissão dos automóveis expostos para venda e, por isso, o estabelecimento não foi
transmitido no seu conjunto. Terá razão?
Resolução -
1º parte
O negócio já se realizou, já houve o trespasse – negócio de natureza definitiva sobre
um estabelecimento. O trespasse pode ser compra e venda, doação, etc. No entanto, às
vezes, as normais legais podem utilizar o termo trespasse num determinado sentido, temos
de ter esse cuidado, em que pode haver elementos interpretativos que nos diga que aquele
termo foi utilizado para se referir a uma compra e venda, por exemplo. Temos de ver aqui
os âmbitos de entrega, nada foi dito quanto ao dinheiro, nem quanto ao logótipo. O
logótipo pertence ao âmbito natural, como nada foi dito, o logótipo considera-se
transmitido – Código da Propriedade Industrial, artigo 295º?
Temos agora de ver a questão do dinheiro que estava no cofre, na perspetiva de
Coutinho de Abreu o dinheiro nem sequer é elemento do estabelecimento, em regra. No
entanto, apresenta exceções quando o objeto da atividade é o dinheiro, por exemplo, um
banco, empresas seguradoras, etc. Mesmo que tivesse sido dinheiro recebido no âmbito
de exploração do estabelecimento, para Coutinho não é elemento do estabelecimento.
Provavelmente, se o Doutor Orlando tivesse referido expressamente esta matéria, o
dinheiro como bem móvel talvez o teria integrado no âmbito natural (mas isto é só uma
suposição)! Aquele dinheiro não é elemento do estabelecimento e, portanto, não se fala
aqui de integrar qualquer dos âmbitos, não é alvo da transmissão. Não faria sentido
comprar dinheiro, incluir no âmbito de transmissão do estabelecimento.

2º parte
Mais uma vez temos de ver que é necessário saber o que é estabelecimento. Se
houver trespasse, está dispensado o consentimento do senhorio. Aquele estabelecimento
ainda subsiste sem os automóveis, vai depender de caso para caso, o âmbito mínimo é
apurado em concreto. Perante o que existia na titularidade do trespassante temos de ver o
que é necessário abranger na transmissão para se poder dizer que o estabelecimento
enquanto tal se transmitiu do trespassante para o adquirente. Os automóveis fazem parte
do âmbito mínimo? Vai depender da lei tendencial. Quanto mais o estabelecimento vai

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funcionar, menos vai depender dos elementos do lastro ostensivo (os automóveis).
Podemos ter um estabelecimento que tenha como objeto a revenda de automóveis, mas
que já funciona há bastante tempo e cuja posição no mercado não depende dos automóveis
porque aquele estabelecimento foi ganhando crédito, nome, reputação e clientela.
Isto serve para dizer que o argumento do senhorio não vale, no entanto, temos de
acrescentar que os automóveis que pertencessem ao trespassante, de qualquer forma,
sempre pertenceriam ao âmbito natural. Não foi estabelecido, nem é preciso estabelecer,
porque na ausência de convenção contrária à transmissão, seriam naturalmente abrangidos
na negociação do estabelecimento. Por outro lado, o que o senhorio está a querer convocar
o artigo 1112º, nº2, alínea a) CC – se não se transmitiram todos os elementos, não há
trespasse e então tinha de dar o consentimento. Artigo 1083º, nº2, alínea e). O senhorio
não tem razão porque os automóveis consideram-se transmitidos. Para além disto, tudo vai
depender se o âmbito mínimo de entrega foi respeitado. A cessão ilícita ainda tem de ser
apreciada à luz da cláusula do nº2, mesmo havendo cessão ilícita temos de ver se há
gravidade e consequências.

Caso 6- O caso da sapataria que se tornou supermercado


A «Calçaqui, Comércio de calçado, Lda», é dona e exploradora de uma sapataria instalada
em prédio arrendado. Como a «Calçaqui» pretende alterar o seu objeto social e passar a
dedicar-se à exploração de Tuk-tuks, vendeu a sua sapataria a Vanda. Esta começou de
imediato a realizar obras no imóvel para o transformar em supermercado. No dia da
inauguração desse estabelecimento, Gualter, dono do imóvel e senhorio de Vanda, ao
saber que no seu belo prédio já não existia a sapataria, decide intentar uma ação de despejo.
Porém, o advogado de Gualter diz-lhe que a ação será improcedente porque não há provas
de que não tenha existido trespasse. Além disso, seria necessário demonstrar que a
mudança tornava inexigível a manutenção da relação contratual. No entanto, Gualter logo
acrescenta que sabe que a venda não abrangeu os sapatos de homem tamanho 45, que o
gerente único da «Calçaqui» pretende usar. «Ótimo», diz o advogado. «Assim sendo, não
houve trespasse e podemos intentar uma ação de despejo de desfecho certamente favorável
para si». Pronuncie-se sobre as opiniões do advogado de Gualter.
Resolução- Na ausência de estipulação em contrário, o trespasse irá abranger os elementos
integrados nesse âmbito natural, portanto serão transferidos para a titularidade do
adquirente. Temos evidentemente ainda eventuais direitos que sejam abrangidos na

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negociação, como direitos da propriedade industrial, por exemplo sabemos que a firma
não se transfere, pois esta só se transfere se houver expressa transferência.
Quanto à primeira afirmação ele tem razão, não é pelo simples facto de o adquirente
alterar o que fazia no prédio, que se pode dizer que não houve trespasse, na realidade o
vendedor e a entidade compradora podem efetivamente terem transferido o
estabelecimento. Quanto aos sapatos, Gualtar fala que eles não foram transferidos, sendo
que esses são mercadorias em armazém e fazem parte do âmbito natural, mas no caso
concreto eles excluíram esses.
Poderíamos dizer que se a transmissão é feita em conjunto, e se faltasse um
elemento do conjunto, não haveria trespasse, portanto a transmissão dependeria do
consentimento do senhorio, se não houvesse esse consentimento, seria uma transmissão
ilícita – artg.1111º/2 a) CC. Poderia então haver uma ação de despejo, mas antes pressupõe
se que tenha havido uma resolução do contrato. Mas tem-se entendido que essa norma
não pode ser interpretada desta norma, ou seja, apenas tem de se respeitar o seu âmbito
mínimo – elementos necessários e suficientes para identificarem o estabelecimento e para
transferirem esse estabelecimento. O facto de se ter excluído os sapatos, não significa que
não tenha havido o trespasse, só se poderia dizer isso se os sapatos de 45 integrassem o tal
âmbito mínimo. Temos é de ver se em concreto, a exclusão daqueles elementos pôs em
causa a transmissão do estabelecimento. Ninguém diria que os sapatos de 45 integravam o
âmbito mínimo de entrega. Assim, a propósito da 1ª e 2ª afirmação, ficam assim
respondidas.
Quanto à 3ª afirmação, o que está em causa é demonstrar que a mudança (de
sapataria para supermercado) tornava inexigível a manutenção da relação contratual.
Temos aqui uma questão que diz respeito ao artg.1111º/5. Atente-se no 1111º/2 b). Como
é que as duas situações (artigos) são diferentes? No caso da alínea b) do nº2, quando tem
a expressão “vise”, a doutrina diverge, uma parte basta-se com a intenção do adquirente, o
professor por sua vez, entende que aqui apenas pode estar em causa uma intenção comum
(vendedor e adquirente) – se quisesse apenas abranger o adquirente, utilizar-se-ia a
expressão “aquisição”. Mas também não basta a intenção, se essa intenção comum das
partes realmente existir é muito provável que tenha havido reflexos no foro negocial, logo
é necessário ver se efetivamente essa comunicação entre as partes levou a que não tivesse
sido respeito o âmbito mínimo de entrega. Assim o adquirente não precisaria de elementos
do estabelecimento, pois não precisaria deles para a nova indústria. Isto seria apenas um
mero indício (Orlando de Carvalho), convinha fazer uma análise do que foi abrangido pela

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negociação, através dos elementos do âmbito natural que foram incluídos e os que foram
excluídos. Há quem diga que o que está ali é uma presunção legal de que não houve
trespasse, portanto seria necessário provar que houve. Sendo uma transformação ilícita, o
senhorio teria direito a uma indemnização.
No caso do nº5 temos uma situação diferente, sendo uma norma para proteger o senhorio,
mesmo que tenha havido negociação efetiva, se o trespassário muda o destino do prédio,
então o senhorio tem direito a resolver o contrato, desde que a mudança do destino não
esteja referida no contrato de arrendamento. Aquela mudança de destino seria uma
mudança lícita, desde que não esteja a violar os fins do contrato de arrendamento. Olhando
para os interesses, não devemos prejudicar o senhorio, uma vez que ele já foi obrigado a
suportar a mudança de arrendatário, ele não deve ter ainda de suportar que se dê um
destino diferente. Na prática, o professor diz que, se formos propor uma ação de resolução,
vamos dizer que é inexigível a manutenção da relação contratual (apesar de não ser
necessário acharmos isso).

Nota: nem todas as obras precisam da autorização do senhorio. Mas poderia haver algumas
que dessem aso à resolução do contrato.
Existe uma outra questão importante, relativamente a esta diferença. O que se pode
eventualmente discutir é se a afetação a outro destino se refere a um ramo diferente do
exercício do comércio. Em Lisboa, devido ao aumento das rendas dos apartamentos, muita
gente imigrante que estava a arrendar pequenos espaços para lojas, passou a utilizar o
espaço para arrendamento para fins habitacionais. O que temos no nosso caso é a mudança
de um ramo do comércio para outro ramo do comércio – caberá no nº5? Se couber pode-
se aplicar, se não couber não se poderá aplicar o artigo. O tipo de atividade tem diferenças
consideráveis, podemos dizer que ainda houve alguma alteração da mudança da sapataria
para o supermercado, mesmo que seja apenas uma mudança parcial. Isto tem relevo, uma
vez que, o tipo de clientela muda, é um tipo de procura que trás mais ruido. O Doutor
Ricardo Costa, diz que estas não seriam abrangidas pelo art.5º, pois na alínea b) uma parte
diz “ de outro ramo do comércio”, e outra diz “a sua afetação a outro destino” – faz-se
assim esta divisão. Mas o professor entende que a separação é superficial, a utilização de
“um modo geral”, diz mesmo isso a lei partiu de uma situação especial para uma situação
geral.
O problema adicional é de saber até quando é que a mudança de destino é relevante.
A longo prazo, muita coisa pode acontecer naquele imóvel. Até quando é relevante a

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mudança de destino para que o nº5 se pode aplicar? O nº5 apenas se pode aplicar se iniciar
o trabalho para a mudança de destino, muito pouco tempo depois – o enunciado diz que
as obras ocorreram logo depois da transmissão.

5.2.- Locação de estabelecimento


Noção e regime
A locação de estabelecimento é definível como o “contrato pelo qual uma das
partes se obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de um estabelecimento,
mediante retribuição”. Esta noção ajusta-se perfeitamente à noção de locação do art.1022º
CC. Pretendemos com isto destacar 3 aspetos:

• Os estabelecimentos podem ser “locados”;


• A locação de estabelecimento é contrato nominado – tanto na doutrina, como na
lei;
• Tal contrato também é típico, isto é, está regulado na lei.

A locação de estabelecimento rege-se pelas normas relativas ao arrendamento para fins


não habitacionais (art.1109º CC), que são aplicáveis com as necessárias adaptações.
Vejamos, então, as normas desta subsecção aplicáveis: nos termos do art.1110º/1 CC: “as
regras relativas à duração, denúncia e oposição à renovação dos contratos de arrendamento
para fins não habitacionais são livremente estabelecidas pelas partes, aplicando-se, na falta
de estipulação, o disposto quanto ao arrendamento para habitação”.

 Normas relativas à duração do contrato: as partes, na locação de estabelecimento,


estipulam livremente a duração do contrato. Todavia, se nada tiverem estipulado a
este respeito, não se aplica o disposto quanto ao arrendamento para a habitação
(art.1094º/3 CC), antes se considerando o contrato celebrado com prazo certo, pelo
período de 5 anos (art.1110º/2 CC).
o O contrato celebrado por prazo certo renova-se automaticamente no seu
termo e por períodos sucessivos de igual duração ou de 5 anos, se ela for
inferior, mas salvo estipulação diferente (1110º/3).
o Se o prazo do contrato for inferior a 5 anos, o locado do estabelecimento
não pode opor-se à renovação ou renovações sucessivas até que a duração
perfaça os 5 anos (1110º/4).

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 Normas relativas à denúncia do contrato de locação de estabelecimento: o regime
da denúncia é estabelecido livremente pelas partes; na falta de estipulação, aplica-
se, em princípio, o disposto para o arrendamento habitacional (art.1110º/1 CC).
Posto isto, tendo o contrato sido celebrado com prazo certo, na falta de regime
convencional para a denúncia, vale o previsto no art.1098º/3, 4 e 5 CC (só o
locatário é que tem direito a renunciar), exceto se o prazo certo de duração for o
supletivo – caso em que o locatário não poderá denunciar o contrato com
antecedência inferior a 1 ano (art.1110º/2). Se o contrato foi celebrado por tempo
indeterminado, o regime supletivo da denúncia (pelo locatário e, agora, também
pelo locador), será o constante dos arts.1100º e 1101º/ c (por remissão do
art.1110º/1).
 Quanto à forma do contrato de locação de estabelecimento: é aplicável a primeira
parte do art.1112º/3 – sob pena de nulidade, deve o contrato ser celebrado por
escrito.
 Por último, a locação de estabelecimento não caduca por morte do locatário,
embora podendo os sucessores renunciar à transmissão (art.1113º).

Para além das normas da secção VII, são aplicáveis à locação de estabelecimento outros
preceitos fora dessa secção (exs.: arts.1031º a 1050º e arts.1057º, 1058º e 1059º/2 CC).

Âmbitos de entrega
Tal como nos casos de trespasse, a locação de empresa não pode prescindir dos
elementos necessários ou essenciais para a identificação da empresa objeto do negócio – o
âmbito mínimo da empresa tem de ser locado.
Aliás, qualquer negócio jurídico que pretenda ter como objeto a “empresa” (como
bem jurídico unitário e autónomo, pois ela não é um mero conjunto ou soma de vários
elementos) terá de incidir, pelo menos, sobre esse âmbito mínimo, pois caso contrário não
estaremos em face de um negócio sobre a empresa, mas sim de vários negócios sobre os
vários elementos empresariais, enquanto elementos individuais.
Salvo quando outra coisa resulte da lei ou de contrato, é de entender que os
elementos empresariais se transferem naturalmente para o locatário. É que o
estabelecimento locado transmite-se a título meramente temporário (transfere-se para a

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esfera do locatário, mas sempre para regressar à esfera do locador), mantendo-se ligado ao
locador. Deste modo, integra-se no âmbito natural de entrega:

 A generalidade dos meios empresariais pertencentes em propriedade ao locador


(ex.: prédios, máquinas, ferramentas, mobiliários, matérias-pimas, etc.):
o A propriedade de cada um dos elementos empresariais permanece no
locador, porquanto o negócio de locação incide sobre a empresa (unidade
jurídica) e não sobre esses elementos individualmente. O que locatário
adquire, e que lhe permite exercer a atividade empresarial, é um poder-
dever de exploração do estabelecimento – o locatário tem não apenas o
poder de explorar-gozar o estabelecimento, mas tem também o dever de o
fazer. Pois bem, esse exercício implica necessariamente o gozo, consumo e
alienação dos bens empresariais de que é proprietário o locador, não
significando isso que o locatário se torne seu proprietário.
 O logótipo e as marcas (arts.31º/5 e 304º-P/3 CPI adaptados ao caráter temporário
desta “transmissão”);
 Elementos empresariais que se encontrem na esfera jurídica do locador, a título
obrigacional:
o A posição de empregador (art.285º/3 CT);
o O gozo do prédio arrendado onde funciona a empresa;
o Os bens empresariais detidos pelo locador do estabelecimento a título de
locação financeira ou de aluguer;
o As patentes, modelos de utilidade, desenhos e modelos ou marcas objeto
de licença de exploração (art. 32º CPI a contrario sensu);
o As situações de facto com valor económico, como o know-how.

Em face do art.44º/1 RRNPC, entende-se que a firma integra o âmbito convencional


de entrega.

Obrigações de não concorrência


Enquanto durar a locação de estabelecimento, o locador (bem como as pessoas
supramencionadas a respeito do trespasse) está obrigado a não concorrer num
determinado espaço com o locatário. Tal obrigação não é, aqui, implícita, antes resultando
de expressas disposições legais, como os arts.1031º/b) e 1037º/1 CC. Neste contexto,
entende-se que igual obrigação se verifica em sentido inverso: o locatário também não

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poderá, durante a duração do contrato de locação, iniciar o exercício de atividade
concorrente com a exercida através da empresa locada, sob pena de estar a violar o seu
dever de “manutenção e restituição da coisa no estado em que a recebeu” (art.1043º CC),
pois o exercício de atividade concorrente implicaria a diminuição do valor da coisa-
empresa.
Terminado o contrato de locação e na ausência de um possível pacto de não
concorrência, pergunta-se: fica o locatário obrigado a não concorrer? As respostas têm sido
diversificadas. Todavia, entre nós entende-se que o ex-locatário fica livre para concorrer. E
isto porque o princípio nesta matéria sempre será o da livre concorrência e da livre
iniciativa económica. É certo que o locatário pode aproveitar conhecimentos sobre a
clientela e organização empresariais adquiridos durante a locação, mas este será um risco
que caberá ao locador acautelar. De facto, igual risco se verifica em relação a assalariados
após o término do contrato de trabalho, e é certo que eles podem iniciar atividade
concorrente subsequentemente a esse término.

Locação de estabelecimento e arrendamento


A locação de estabelecimento, mesmo quando envolve o prédio onde funciona a
empresa, não é contrato de arrendamento. Também não é um contrato misto, associando
o arrendamento de prédio ou fração ao aluguer de estabelecimento. O nº 1 do art.1109º
CC sugere, em alguma medida, essa perspetiva. Não obstante, a locação de estabelecimento
aí prevista é um negócio unitário que tem como objeto um bem jurídico unitário – a
empresa. O gozo do prédio não é transmitido a título autónomo (o prédio não é dado em
arrendamento); ele é, isso sim, transmitido enquanto componente de um todo, o todo que
é a empresa.
Quanto à necessidade de consentimento do senhorio para a cedência de gozo do
prédio (que vai dentro da locação da empresa), o nº 2 do art.1109º CC é hoje claro a afastar
essa necessidade. Não obstante, tal como no trespasse, essa cedência do gozo do prédio
acarretada pela locação da empresa deve ser comunicada ao senhorio, no prazo de 1 mês.
Faltando a comunicação, a cedência do gozo do prédio é ineficaz em relação ao senhorio,
que poderá, por isso, resolver o contrato de arrendamento, também aqui nos termos
expostos acerca de igual situação em caso de trespasse (para nós, não basta o
incumprimento do prazo para que se possa falar em incumprimento contratual grave que
justifique a resolução).

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Caso 7- O caso do estabelecimento locado sem identificação expressa de prazo de
duração do contrato
A celebrou com B um contrato de locação do seu café. No entanto, nada ficou estabelecido
quanto ao prazo de duração do contrato. Cinco anos e um dia depois da data da celebração
do contrato referido, A exige que B abandone o espaço onde o café está instalado, pois diz
que quer retomar de imediato a exploração do estabelecimento uma vez que o prazo de
duração do contrato terá terminado. Será assim?

Resolução-
O artigo 1109º/1 e o 1110º CC, na falta de estipulação em contrário aplica-se as
regras relativas à duração, denuncia e oposição dos contratos de arrendamento para fins
não habitacionais. Ainda temos outra norma a ter em conta, relativamente ao
arrendamento para habitação (disposições especiais) – 1096º, há uma renovação
automática (já sabemos que a lei manda aplicar ao contrato o prazo de 5 anos). Existe outro
regime que permite a oposição à renovação, mas esta terá de ser dentro dos prazos (120
dias), caso contrário fica sem efeito. O professor defende a renovação automática.

6.- Recuperação de empresas por vias judiciais e extrajudiciais


Para a recuperação de empresas, pode-se seguir uma de três vias (dois processos
judiciais e um processo extrajudicial):
 No âmbito de um processo de insolvência – em Portugal não há o hábito de ver a
insolvência como uma coisa positiva, mas tal pode acontecer, e nesse caso temos
aqui o plano de insolvência. É aplicável a devedores (entidades coletivas e
patrimónios autónomos com ou sem empresas, e pessoas singulares com empresas
não pequenas) em situação de insolvência equiparada (iminente – artg.3º CIRE).
 Via do processo especial de revitalização (PER) – O PER é aplicável agora, não a
qualquer devedor, mas somente a “empresa” que esteja em situação económica
difícil ou em situação de insolvência meramente iminente (não ainda em situação
de insolvência – 17º-A CIRE).
 Via extrajudicial do RERE – aplica-se a pessoas singulares, entidades coletivas (com
ou sem personalidade jurídica) e patrimónios autónomos que tenham, ou
explorem, ou sejam empresas e que estejam em situação económica difícil ou em
situação de insolvência iminente.
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As três vias são distintas, mas pode haver ligações entre elas. A vida extrajudicial, não
decorre em tribunal, mas há a possibilidade de se estabelecer um bypass- ponto de
passagem para o processo especial de revitalização. Outro aspecto, é que pode existir outra
ligação do processo de revitalização para o de insolvência.
Hoje é preciso ter em atenção que as dificuldades económicas e financeiras afetam
grandes empresas, nos últimos anos tivemos empresas de grande dimensão a recorrer a
processos especiais de revitalização.

6.1.- Plano de insolvência


O CIRE, logo no artg.1º, a propósito do plano de insolvência, refere-se à
“recuperação de empresa compreendida na massa insolvente”. Passemos agora a chamar
a atenção para alguns pontos.

a) O plano de insolvência tem de ser obtido no âmbito de um processo de insolvência.


Este plano não tem de visar a recuperação de empresas. A recuperação vai
depender de, se os credores com as maiores exigidas por lei assim o quiserem.
b) A recuperação da empresa que o CIRE trata, deve ser entendida em sentido amplo.
Em sentido estrito, a recuperação implica uma reorganização da empresa, de modo
a (re)adquirir as condições de “vida” autónoma. Ora, é possível que o plano de
insolvência preveja tão-só a continuidade ou manutenção da empresa, na
titularidade do insolvente ou de terceiro (arts.195º/2/b) e c), 199º). Esta
manutenção está igualmente compreendida no significado normativo de
“recuperação de empresa”.

c) Mesmo que se siga a via da liquidação do património do insolvente, está


possibilitada, e potenciada, a recuperação-manutenção de empresa; mas já não,
naturalmente, na esfera jurídica do insolvente (art.162º/1 CIRE).
i. O plano de insolvência pode também prever a transmissão de empresa para
terceiro.
d) À via da liquidação nos termos do CIRE e à via do plano de insolvência não
correspondem duas formas (especiais) de processo; há unicamente o “processo de
insolvência” (art.1º/1 CIRE).

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O CIRE oferece também uma “noção de empresa” no art.5º: “Para efeitos deste
Código, considera-se empresa toda a organização de capital e de trabalho destinada ao
exercício de qualquer atividade económica”. Esta definição tem, todavia, escassa utilidade
no CIRE, sobretudo pelas seguintes razões:

 A empresa, embora importante para efeitos vários, não é essencial para a


determinação do âmbito de aplicação subjetivo do Código;
 A grande latitude da atividade-objeto empresaria relevante (“qualquer atividade
económica”) resulta já no art.2º do CIRE;
 O significado normativo das dezenas de referências à empresa que aparecem no
Código alcança-se, em regra, com facilidade.

Não obstante, é de notar que agora o Código, quando se refere à empresa, o faz
quase sempre respeitando a noção adiantada no art.5º (exs.: arts.3º/3/b; 53º/2; 55º/4;
161º/3/a; 195º/2/c; 249º/1/a).
O plano de recuperação não está ao dispor de todos os empresários. Na verdade,
há uma nota no CIRE, um pouco traiçoeira – artg.250º CIRE, que dispõe que, se
recuarmos uns artigos vemos que o artg.9º trata do plano de insolvência, por sua vez, o
artg.250º dispõe que relativamente aos processos de insolvência aí em causa, não se aplica
o artg.9º a tais. Estamos a falar de um conjunto de normas que abrange os devedores,
pessoas singulares, que não são empresários, ou que sendo empresários, são apenas
titulares de pequenas empresas (249º e ss.). O que são pequenas empresas? São pequenas
como tal entendidas no CIRE (critérios específicos distintos das pequenas e médias
empresas). Serão muitos poucos devedores singulares empresários para este efeito. O
artg.249º a), faz referência a devedores, que são apenas meros consumidores (não nos
interessa agora, uma vez que estamos a falar da recuperação de empresas).

O artg.1º do CIRE, dá ideia de que haveria uma primazia do plano de insolvência


sobre a liquidação. Contudo, nada obriga ao juiz a dar essa primazia, na verdade o que
resulta da norma, é que apenas haverá plano de insolvência se os credores, em número
suficiente, assim quiserem (votarem a favor a proposta apresentada). Se os credores não
quiserem não há plano de recuperação nenhum.

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 Este é um código que foi elaborado no tempo das “vacas gordas”, e realmente há aqui um
movimento pendular que vai seguindo os ciclos produtivos – quando anda muita gente a
fazer dinheiro há uma certa tendência, a olhar para aqueles que falham como “losers”;
quando as coisas começam a correr mal, a escassear o crédito, afinal vemos que mesmo os
grandes podem falhar e aí começa-se a perceber que afinal temos um problema social em
mãos. Pois quando a economia está a florescer, há maiores recursos humanos, quando as
empresas começam a ter dificuldades, é mais difícil essas pessoas arranjarem emprego.
Portanto, este nosso código propõe a aprovação ou não nas mãos dos credores
(exclusivamente), daí ser um código que revela essa visão de uma economia próspera.

O plano de insolvência é um instrumento de natureza jurídico-negocial utilizável


pelos credores que contém (em documento particular) primordialmente medidas de
recuperação da empresa do devedor insolvente. Se este continuar a explorar a empresa, os
credores esperam satisfazer-se basicamente com os resultados empresariais; no caso de a
empresa ser transmitida, satisfazem-se os credores principalmente com o produto da venda
e/ou aquisição de participações em nova sociedade por troca de créditos sobre o insolvente.

O plano de insolvência segue os seguintes passos:

1) Pedido de declaração de insolvência:


a. O devedor (24º/3) - O facto de o devedor em situação de insolvência
iminente, pode-se apresentar à insolvência e esta possibilidade deve ser
encarada com grande seriedade por parte do devedor, uma vez que, ele vai
ter muito maior facilidade de negociar com os credores relativamente a um
plano de recuperação. Ele não tem de falar nisto a todos os credores, vai
ter de falar com aqueles que têm créditos suficientes para aprovar o plano.
Claro que isto em termos estratégicos não funciona de qualquer maneira –
funciona mais como devedores de grandes empresas, com credores
também mais sofisticados, em que sabem que como já ganharam muito
dinheiro com aquele devedor, com a recuperação de empresas, poderão
no futuro ganhar muito mais dinheiro.
Se é o devedor que se apresenta à insolvência, seja atual ou iminente, as
coisas vão-se passar muito mais depressa.
2) O juiz terá 3 dias uteis para declarar a insolvência.
a. Ora, entre o início do processo de insolvência e a verificação de condições
do 209º/2, há o risco de serem tomadas decisões que comprometam a

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manutenção da empresa. O Código prevê algumas medidas que diminuem
esse risco, por exemplo:
i. Antes da declaração de insolvência, o juiz pode ordenar medidas
cautelares, designadamente nomear um administrador judicial
provisório para administrar o património do devedor ou assistir este
na administração (31º, 33º).
ii. Antes da assembleia de credores de apreciação do relatório, o
administrador, da insolvência deve prover à continuação da
exploração da empresa (55º/1 b)), a menos que considere mais
vantajoso encerrá-la.
3) Declarada a insolvência vai seguir-se a assembleia de apreciação do relatório (36º
n)), sendo designado um administrador de insolvência antes.
4) Na assembleia de apreciação do relatório, os credores vão verificar qual a situação,
se há perspetivas de sobrevivência do devedor, e aí poderão encarregar o
administrador de elaborar uma proposta de recuperação. Não se inibe a
possibilidade ser o devedor, ele próprio a elaborar a proposta.
5) Podem apresentar proposta de plano de insolvência:
a. O devedor (24º/3);
b. Administrador de insolvência (arts.36º/n; 155º/1/c e 156º/3 e 4);
c. Qualquer pessoa que responda pela divida de insolvência – 99º (sociedade
de responsabilidade ilimitada, qualquer sócio dessa pode apresentar);
d. Credores cujo crédito tenham uma certa importância, que representem
pelo menos 1/5 dos créditos não subordinados (precisamente porque os
créditos subordinados mostram alguma relação com o própria com o
devedor);
6) Se o juiz admitir a proposta de plano de insolvência, ele notificará as entidades
mencionadas no 208º para emitirem um parecer sobre elas. E convoca a assembleia
de credores (presidida pelo juiz) para discutir e votar a proposta (209º)
a. A assembleia não se poderá julgar sem já ter esgotado o prazo para a
impugnação da lista de credores conhecidos, e obviamente que não poderá
acontecer sem antes de transitar em julgado a declaração de insolvência.
b. Têm direito a participar os credores (com ou sem direito de voto), bem
como outras pessoas (sem direito de voto) – 72º.

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A proposta do plano da insolvência vai ser apresentada tendo em conta aquilo que
é legal e ilegal, contudo não há um conteúdo taxativo para o plano de insolvência. No
entanto, a lei vai apresentar uma série de possibilidades a encontrar no 145º e ss. Vai-se
encontrar aqui a possibilidade de os credores, de aprovarem reduções do capital social das
sociedades e de aprovarem, o aumento do capital social, de exclusão de sócios,
transformação da sociedade, alterações dos estatutos da sociedade.
Até há pouco tempo, falou-se da possibilidade de os credores aprovarem aumentos
e reduções relativamente a sociedades anónimas – é muito discutido. 191º a) + b) – viola
ou não a diretiva da EU relativa ao capital das sociedades anónimas? Nessa diretiva
resultava que nas sociedades anónimas, aumentos e reduções do capital social teriam de
ser decididas pelos sócios. Esta discussão segundo o professor, perdeu sentido com a
diretiva de 2019, que se debruçou sobre esta matéria e a ver do professor, passou a permitir
que os credores deliberassem sobre o aumento e reduções do capital social destas
sociedades.
Vai-se apresentar a proposta numa assembleia de credores. O artg.212º estabelece
particulares exigências quanto à aprovação do plano da insolvência:
 A proposta do plano de insolvência considera-se aprovada estando presentes ou
representados os credores cujo crédito constituam pelo menos 1/3 do total dos
créditos.
 Quorum deliberativo – nesse 1/3, tem de haver uma dupla maioria (duplo
controlo):
o Depois da votação vai-se ver quem votou e nesses votos emitidos vamos ver
se temos mais de 2/3 a favor da proposta apresentada (212º/1)
o Desses votos emitidos a favor, temos de ver se eles correspondem a mais
de metade de créditos não subordinados (212º/1). Isto tem a ver com a
razão de se ter considerado os créditos não subordinados. Artg.48º
estabelece o que são créditos subordinados – pessoas especialmente
relacionadas com o devedor. Por isso é que se exige que haja esta segunda
maioria, para evitar que um plano de recuperação seja aprovado por quem
tenha uma especial relação com o devedor – para evitar conluios.
 Controlo pelo juiz – este controlo vai ser efetuado para ver se o plano pode ou não
homologado. Pode haver dois casos que podem levar à recusa:

2019/2020 Rita Nina – FDUC 68


o Casos a pedido para a não homologação (216º). Está aqui em causa como
motivo para pedir a recusa de homologação, uma de duas situações
(eventualmente até se pode verificar as duas):
 Violação do princípio da igualdade dos credores – quando o plano
proporciona a algum credor um valor patrimonial superior ao
montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido
do valor de eventuais contribuições a que fique obrigado.

 o juiz não recusará a homologação quando o plano cumpra


as condições previstas nas alíneas do art.216º/3 e o
oponente seja o devedor, seu sócio, associado ou membro,
ou um credor comum ou subordinado (uma vez mais, se
salvaguarda a posição dos credores garantidos ou
privilegiados) – art.216º/3.

 Violação do princípio de que o credor não pode ficar pior no plano


de insolvência se ficaria em vez do plano se fosse para a via da
liquidação. Veja-se a alínea a). O juiz terá de comparar com o que
aconteceu (plano) com o que aconteceria (se fosse para a
liquidação), tarefa nada fácil de demonstrar.
 Ex.: um credor titular de hipoteca sobre prédio do
insolvente com valor bastante para satisfazer o crédito, mas
que vê estatuído no plano de redução do valor de todos os
seus créditos de insolvência.
o Casos de recusa oficiosa da não homologação (215º) – iniciativa do juiz:
 Violação “não negligenciável” de regras procedimentais.
 Ex.: credor sem direito de voto, tenha sido admitido à
votação e os seus votos se revelem decisivos para a obtenção
de alguma das maiorias exigidas no 212º/2;
 Ex.: quando um credor tenha vendido um dos seus votos
(194º/3);
 Violação “não negligenciável” de conteúdo (215º/1).
 por exemplo, é ilegal o plano segundo o qual o devedor
pessoa singular deva continuar a exploração da empresa

2019/2020 Rita Nina – FDUC 69


sem que ele tenha declarado por escrito disponibilidade
para o efeito – arts.202º/1 e 224;
Aqui o que tem divido a doutrina é se o requisito da não negligência,
se também aplica a normas por violação do conteúdo. Esta
discussão é muito importante, pois está-se a questionar se houve ou
não uma violação de uma norma legal que leva à não homologação.
Pode haver muitos credores que fiquem prejudicados com o que a
maioria aprovou, visto que apenas tem de ficar aprovado por aquela
maioria referida – logo estes credores que ficaram prejudicados,
têm todo o interesse em encontrar estas violação para o juiz recusar
a não homologação.
 Quando, no prazo razoável que o juiz estabeleça, não se verifiquem
as condições suspensivas do plano ou não sejam praticados os atos
que devem preceder a homologação (201º/1/2).

As providências ou medidas de recuperação de empresa que é possível estatuir num


plano de insolvência são muito variadas, dependendo fundamentalmente da imaginação e
vontade dos credores. O CIRE não mantém a taxatividade das providências de recuperação
que o antigo Código dos Processos Especiais de Recuperação e Falência (CREF)
consagrara. Ainda assim, o legislador do novo Código não se coibiu de indicar numerosas
medidas. Algumas delas, aliás, não podiam ser acordadas pelos credores na ausência de
permissão legal (nomeadamente o art.198º/2).
O saneamento por transmissão (art.199º CIRE), que assenta na constituição de uma
ou mais sociedades para a exploração de um ou mais estabelecimentos adquiridos à massa
insolvente, aproxima-se da “reconstituição empresarial” que era regulada no CREF. Mas o
novo Código não reincide em alguns pontos de regime criticáveis no anterior instituto, não
suscitando, por isso, juízos de inconstitucionalidade.
Normalmente, a nova sociedade será constituída principalmente por credores da
insolvência, que adquirem as respetivas participações sociais (quotas, partes ou ações) em
contrapartida da cessão à sociedade de créditos sobre o insolvente (apesar de não ser
vedada a participação a terceiros). O plano de insolvência, em anexo, contém o estatuto
social e provê quanto ao preenchimento dos órgãos. Deve ainda o plano discriminar o(s)
estabelecimento(s) a adquirir pela nova sociedade à massa insolvente, “mediante
contrapartida adequada” (art.199º). A sentença homologatória do plano de insolvência

2019/2020 Rita Nina – FDUC 70


constitui título bastante para a “constituição da nova sociedade ou sociedades e para a
transmissão em seu benefício dos bens e direitos que deva adquirir, bem como para a
realização dos respetivos registos (217º/3).
O “saneamento” da empresa pode ser tentado mantendo-se a empresa na
titularidade e exploração do devedor insolvente (art.195º/2/b) e c)). Cabe neste quadro,
inclusive, a “administração pelo devedor” (arts.223º e ss). Apesar de estar prevista num
título próprio (Título X), ela pressupõe um plano de insolvência, embora sujeito a uma
disciplina específica – arts.224º/2/b, 3; 228º/1/e).
Surpreendentes são algumas das “providências específicas de sociedades
comerciais” indicadas no art.198º.
Apesar de o disposto no nº1 ser razoável (o plano de insolvência pode ser
condicionado à adoção e execução, pelos órgãos sociais competentes, de certas medidas –
por exemplo, um aumento de capital deliberado pelos sócios), o mesmo não se pode dizer
do nº2 (associado a outros números).
Na opinião de Coutinho de Abreu, o disposto no nº2 é desajustado, pois permite
a adoção “pelo próprio plano de insolvência”, isto é, pelos credores da sociedade
insolvente, sem qualquer intervenção (decisiva) dos órgãos sociais, o seguinte:

a) Redução do capital social para a cobertura de prejuízos, incluindo a redução a zero


ou a montante inferior ao mínimo legal se, neste caso, for acompanhada de
aumento de capital para montante igual ou superior àquele mínimo.
i. Porém, a redução a zero “só é admissível se for de presumir que, em
liquidação integral do património da sociedade, não subsistiria qualquer
remanescente a distribuir pelos sócios” (nº3).
b) Aumento de capital social a subscrever por terceiros ou por credores, com ou sem
respeito pelo direito de preferência dos sócios previsto legal (arts.266º e 458º CSC)
ou estatutariamente.
i. Porém, a supressão do direito de preferência só é lícita se o capital social for
previamente reduzido a zero, ou se ela não acarretar “desvalorização das
participações que os sócios conservem” (nº4).
• Na primeira hipótese, a supressão do direito de preferência significa
a exclusão de todos os sócios da sociedade (tenham ou não
responsabilidade pela situação de insolvência, estejam ou não
disponíveis para recapitalizar a sociedade);

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• Quanto à segunda hipótese, dificilmente se poderá dizer que a não
participação dos sócios em aumento de capital não acarreta
desvalorização das suas participações.
c) Outras alterações dos estatutos da sociedade (além dos aumentos e reduções de
capital); transformação da sociedade (adoção de um tipo diferente); alterações dos
órgãos sociais (mudança de titulares dos órgãos de administração e de fiscalização
– art.198º/2/c), d) e e)).
i. Porém, a adoção destas medidas depende geralmente da estatuição no plano
de um aumento de capital que proporcione a credores e/ou terceira maioria
de votos (nº5).
d) Exclusão de todos os sócios de sociedade em nome coletivo ou em comandita
simples (acompanhada de admissão de novos sócios) ou dos sócios comanditados
de sociedade em comandita por ações (acompanhada de redução do capital a zero),
recebendo os sócios excluídos “contrapartida adequada, caso as partes sociais não
sejam destituídas de qualquer valor”.
i. Ou seja, permite a exclusão de todos os sócios de responsabilidade ilimitada,
gerentes ou não, com ou sem influência na criação ou agravamento da
situação de insolvência, seja ou não culposa a insolvência.

Segundo Coutinho de Abreu, é notável que tantas medidas que, segundo a


legislação societária, em regra somente aos sócios é facultado tomar, poderem ser impostas
pelos credores da sociedade. Para além disso, é estranho que o Código não se baste com
permitir aos credores disporem do património da sociedade ou condicionarem a
continuação dela a adoção de medidas pelos órgãos respetivos (art.198º/1) e lhes permita
ainda infundirem alterações tão drásticas na organização pessoal da sociedade.

Caso 8- Dever ou não dever


José, proprietário de uma empresa em que emprega 5 trabalhadores, tem dívidas para com
10 credores no valor de 305.000 euros. X, um desses credores, pretende avançar com um
pedido de declaração de insolvência de José para tentar negociar um plano de insolvência
que permita a José ir pagando.
Porém, o contabilista certificado de X diz-lhe que não vale a pena avançar com esse pedido
uma vez que só o crédito de X está vencido, que é preferível tentar negociar um plano de
insolvência sem avançar com o processo de insolvência e que, se este processo sempre for

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para a frente, mais vale tentar adotar um plano de pagamentos. Pronuncie-se sobre as
observações do mencionado contabilista.

Resolução- Esta é uma matéria que não é tratada nas lições. José é uma pessoa singular,
tendo em conta isso, tal obriga a ter em mente o regime 249º e ss (capítulo da insolvência
de pessoas singulares). Claro que apenas nos interessa este regime, se estiver em causa uma
insolvência de empresas, não nos interesses a insolvência de não empresas. A norma do
artg.249º é importante porque nos permite ver, o que é uma pequena empresa para este
efeito. Tudo isto é relevante porque o 250º diz que, não são aplicáveis as normas do
capítulo IX neste âmbito.
No 249º b): trata do que é considerado pequeno empresário – quem não tiver dividas
laborais; o nº dos seus credores não pode ser superior a 20; o passivo global não pode ser
superior a 300 mil euros. Uma nota importante deste regime: estamos a falar do passivo
global, a pessoa singular aqui em causa, vai ter necessariamente de ponderar para este
efeito, todo o seu passivo (não apenas o da empresa) – ex: pagar durante mais de 10 anos
o empréstimo da casa, este é considerado no passivo global. Facilmente extravasa este valor.
Por um lado, este regime é absurdo porque não é possível recorrer ao plano do
pagamento, se tiver dívidas laborais. O que significa que se um devedor quiser o plano de
insolvência, basta que ele deixe de pagar aos credores para recorrer ao título IX em causa.
Parece ter estado na mente do legislador, que o regime aqui em causa é um regime que
tem muitas vantagens para o devedor, portanto um titular de uma pequena empresa, se
quiser beneficiar deste regime tem muitas vantagens e como tal não pode deixar de pagar
aos seus trabalhadores. O regime que estamos a falar, tem algumas vantagens: a insolvência
pode ser requerida pelo credor ou algum dos legitimados do artg.20º, e o devedor pode
por sua vez, apresentar em alternativa o plano de pagamentos à contestação na petição
inicial.
Se ele quiser apresentar o plano de pagamentos, este depois tem de ser aprovado
pelos credores. Se o plano de pagamentos é aprovado pelos credores, o 259º diz-nos que
nesse caso o juiz promulga o plano de pagamentos por meio de sentença de homologação.
Após o trânsito em julgado desta sentença, emite-se a declaração de insolvência. No
processo de insolvência que não siga estes termos, apenas vamos ter um plano de
insolvência após a declaração de insolvência.
Mas, até agora, não vimos nenhuma vantagem do devedor de pequena empresa.
As vantagens são as seguintes: a sentença de declaração de insolvência, que vai ter um

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conteúdo muito reduzido. No artg.36º CI, a) e b), refere o conteúdo que a sentença vai ter
(muito pouco). Para fazer uma comparação, vamos ver o que fica de fora da sentença, por
exemplo, não se vai nomear administrador de insolvência; vai ficar de fora a apreensão de
bens. Logo estes dois aspetos são fundamentais. 259º/2, ambas as sentenças são notificadas
apenas aos credores (?)– vai ter muito menor publicidade. Também as sentenças não são
objeto de publicidade ou registo – do ponto de vista de imagem do devedor pode ter muita
importância.
Ora, no nosso caso, José apenas tinha dividas a 10 credores, mas não preenche os
requisitos todos: têm um passivo de 305 mil euros, como os requisitos são cumulativos, já
não pode recorrer a este regime. Portanto poderá haver um processo de insolvência. Há
fundamento para pedir a declaração de insolvência? Vemos aqui que apenas se diz, que
ele só tem dividas perante 10 credores e apenas um dos créditos está vencido e no entanto,
o facto de apenas ser um, não impossibilita a declaração de insolvência. Apesar de isto ser
discutível, há quem entenda que não é possível (não sendo esta a posição do credor). Se
for apenas um crédito vencido, e se ele está impossibilitado de cumprir esse mesmo, já há
situação de insolvência.
Para o credor pedir a declaração de insolvência do José, é necessário que o crédito
esteja mesmo vencido e que o José não consiga de todo cumprir esse crédito. Por outro
lado, o credor, qualquer credor, apenas pode pedir a declaração de insolvência se tiver
legitimidade, e essa é apreciada nos termos do artg.20º CI. Veja-se que, qualquer credor
vai ter que alegar necessariamente pelo menos algum dos factos enumerados nas alíneas
do artg.20º (caso contrário não tem legitimidade).
O argumento de que é preferível tentar negociar um plano de insolvência sem
avançar com o processo de insolvência, não faz sentido nenhum. Ao contrário do plano de
pagamentos, o plano de insolvência pressupõe necessariamente a declaração de
insolvência. Na realidade, a negociação do plano de insolvência, pode ocorrer antes da
declaração, mas nunca poderá haver a aprovação válida desse mesmo sem a declaração de
insolvência!
Claro que o conteúdo do plano de insolvência ser semelhante ao do plano de
pagamentos – não há uma limitação legal nesse sentido. Mas como já vimos, não será
possível recorrer ao plano de pagamentos neste caso.
O regime previsto no 17º-I, pressupunha que antes do PER, era necessário um
acordo extrajudicial entre a empresa e os credores, que representavam créditos que
pretendiam superar, para a aprovação do plano de revitalização do PER. Não houve PER,

2019/2020 Rita Nina – FDUC 74


mas é apresentado um acordo. É o que resulta do 17º-I. O que se diz é que neste caso será
nomeado à mesma um AJP, e também haverá a possibilidade de os credores que não
intervieram no acordo, etc. Acontece que há um primeiro momento em que o devedor
vem dizer que conseguiu obter um acordo com credores com as maiorias exigidas para a
aprovação do plano, apresentando uma lista com aqueles credores. Só que o juiz vai fazer
o controlo, por isso é que a lei diz que há a publicidade do despacho. Pode acontecer que
apareçam a reclamar os seus créditos no prazo de 30 dias, de credores que o devedor
escondeu. Se aparecerem esses credores, podem revelar que afinal, somando os créditos
que o devedor apresentou com os que escondeu, o acordo não respeitou as maiorias
exigidas pelo PER (17º/4). Como se pode ver agora não vamos ter o período de negociação,
justamente porque se pressupõe que as maiorias já foram tratadas.
Nota: os números presentes no BPI, relativos à atividade, são relevantes no âmbito do
princípio da especialidade. Para mostrar em comparação com outra marca a querer ser
registada, que ainda se encontra dentro da mesma atividade.

6.2.- Processo especial de revitalização (PER)


O PER, na modalidade regulada nos artgs.17º-A a 17º-H CIRE, destina-se a
permitir à “empresa” em crise ou desvitalizada estabelecer negociações com os seus
credores, a fim de concluir com eles acordo (“plano de recuperação”) conducente à sua
revitalização.
Se o processo de insolvência se inicia eventualmente por um devedor, ou a pedido
de outro legitimado (neste caso, só na situação de insolvência atual, legitimados do
artg.20º), no caso do PER só pode iniciar-se se ainda não houver uma situação de
insolvência atual. O PER apenas pode-se iniciar na situação de insolvência iminente ou na
situação económica difícil.
O devedor tem de ser necessariamente um empresário. Antes discutia-se se o PEV
poderia ser utilizado por um devedor não empresário, mas hoje é claro que não. O que
um devedor não empresário pode fazer é ter ao seu dispor o processo especial para acordo
de pagamentos.
O PER tem vários passos:

1) O PER vai iniciar-se necessariamente com um requerimento apresentado pela


empresa ao tribunal. Este requerimento tem de ser acompanhado por uma série
de documentos (arts.1º/2, 17º-A/2 e 17º-C/1, 2 e 3 CIRE):

2019/2020 Rita Nina – FDUC 75


a. Uma manifesta voluntária de credores com uma certa importância e com
crédito de célere natureza (pelo menos 10% de créditos não subordinados)
b. É evidente que, como o que está em causa é a suscetibilidade de
recuperação, a empresa tem de arranjar uma declaração escrita e assinada
de que reúne as condições necessárias para a recuperação (mais uma
exigência).
c. Para este controlo de seriedade, também se exige que se apresente uma
declaração, de um contabilista certificado ou por ROC, atestando, que a
empresa não está numa situação da insolvência atual.
d. Proposta do plano de recuperação.
Com isto o que se pretende é dar alguma seriedade ao processo, ou seja, é um
requerimento que tem alguma “margem para andar”, de ter sucesso, porque logo
no início vem acompanhado da manifestação de vontades de credores com certa
importância. Mas ainda nada está garantido.
O regime do PEV permitiu um certo fechar de olhos, pois não havia grande
controlo relativamente a não estar em situação de insolvência atual.
2) Verificando-se os pressupostos para o prosseguimos, o juiz nomeia por despacho
administrador judicial provisório, que é designado por AJP. Tendo sido este
nomeado, vamos ter uma série de consequências importantíssimas: as previstas no
artg.17º-E, sendo por isso é que muitas vezes os devedores querem utilizar o PEV:
a. Não podem ser instauradas ações para a cobrança de dívidas contra aquela
empresa (“porto seguro”);
b. Enquanto durarem as negociações, suspende-se as ações que já estão
pendentes.
c. Estas ações extinguir-se-ão se e quando o plano de recuperação for
aprovado e homologado (com trânsito em julgado), salvo se ele previr a sua
continuação (17º-E/1).
d. Por outro lado, o nº2 também vai obrigar agora a empresa a não praticar
atos de especial relevo sem que previamente obtenha autorização do AJP.
Ex.: vender património.
e. Artg.17º-E nº6, esse mesmo despacho vai conduzir à suspensão de
processos a recorrer contra o devedor, a menos que tenha sido proferida a
sentença de declaração de insolvência.

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f. Se na realidade é proferido um despacho a nomear um administrador
judicial provisório isso vai implicar que os credores tenham um preço para
reclamar créditos – 17º-B/2. Se quiserem, depois de ter direito de voto após
a proposta do plano, têm de reclamar o crédito. Este prazo para
reclamarem conta no momento da publicação do despacho, eles não são
notificados individualmente. Por isso é que grandes empresas têm
funcionários para verem as publicações que vão sendo publicadas. Porque
se não reclamarem os créditos, não vão ter possibilidade de votar.
i. Findo o prazo de publicações da lista provisória dos créditos, as
negociações (sob a orientação do AJP), devem ser concluídas no
prazo de dois meses, ou (se houver prorrogação – 1 mês) 3 meses.

Atente-se o artg.17º-H, que protege certos negócios que sejam realizados no âmbito
do PEV, para o caso de depois ser declarada a insolvência do devedor. Porque é que estas
garantias são importantes? No processo de insolvência pode haver margem para o
administrador de insolvência resolver em benefício da massa, certos negócios celebrados
antes da declaração de insolvência. Assim, as garantias convencionadas entre a empresa e
os credores, com a finalidade de proporcionar à empresa meios financeiros para o seu
desenvolvimento, mantêm-se, mesmo que seja declarado o processo de insolvência (nº1);
o nº2 é referente aos negócios de financiamento. Ora tanto as garantias do nº1 como os
negócios do nº2 são insuscetíveis de resolução em beneficio da massa insolvente (no caso
de o devedor vir a ser declarado insolvente) – 120º/6.
Outra nota diz respeito à apresentação do plano, que tem de ser aprovado durante
as negociações. O artg.17º-F é dedicado à aprovação desse plano de recuperação. Este
artigo diz-nos que o plano deve ser apresentado até ao último dia de negociações. Plano
esse que, depois deverá ser apreciado pelos credores, que deverão pronunciar-se sobre ele
e seguidamente haverá uma votação. Para a aprovação desse plano (duas alternativas, por
um de dois caminhos):

 O plano é aprovado unanimemente quando todos os credores o subscreverem


(art.17º-F/1) – quase nunca acontece.
 Não se verificando esta unanimidade, a aprovação faz-se mediante votação escrita
organizada pelo AJP (art.17º-F/4):
o Têm de estar credores cujos créditos representem pelo menos 1/3 do total
dos créditos com direito de voto;

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o Mais de 2/3 dos votos emitidos sejam a favor e mais de metade dos votos
favoráveis corresponder a créditos não subordinados (a));
o Ou se obtiver a favor, a maioria dos votos emissíveis e mais de metade
desses corresponda a créditos não subordinados (b));

Isto é importante pois o nº10 do artg.17º-F, diz que o plano de recuperação objeto
de decisão de homologação ou a não homologação e a decisão de homologação do plano
vincula a empresa e os credores mesmo que não hajam reclamados os seus créditos ou
participados nas negociações. O devedor deve convidar os credores a participar nas
negociações, mas mesmo que não tenham participado, eles ficam vinculados uma vez
homologado o plano.
O 17º-G tem um regime importantíssimo, trata dos casos em que chega ao fim do
período das negociações sem ter acordo, em que nesse caso, o processo negocial é
encerrado (diferente do PEV). O AJP publica esse facto, e este terá que ver se a empresa
está em situação de insolvência atual ou não, se concluir que a empresa não está nessa
situação, o juiz vai declarar o encerramento do PEV.
Pode acontecer uma coisa diferente: pode o AJP concluir que a empresa está numa
situação de insolvência atual, aqui encontramos o referido “bypass” para o plano de
insolvência – 17º-G/3. O AJP vai então requerer a declaração de insolvência do devedor
(17º-G/4). Devemos olhar para o Ac. do TC 675/2018, que veio declarar a
inconstitucionalidade com força obrigatória geral do 17º-G/4, quando é entendido como
dever de apresentação à insolvência, por não assegurar o contraditório. Tem de se ver se,
uma vez que é o AJP a apresentar o pedido da declaração de insolvência, tem de se ver se
o pedido é encarado como um pedido apresentado por terceiro com legitimidade (não há
garantia de qualquer contraditório, o devedor não tem de ter um prazo para se pronunciar
quanto àquele), ou se deveria ser equiparado à situação de apresentação pelo próprio
devedor. No entanto, o professor Soveral Martins já em 2012, entendia que a solução era
inconstitucional, uma vez que, o devedor deveria ter a possibilidade para se pronunciar
sobre o requerimento apresentado pelo AJP, tinha de ter a possibilidade de exercer o
contraditório – o TC também foi no sentido desta posição, uma vez que a garantia do
contraditório é uma garantia constitucional. É certo que o devedor é ouvido antes de se
apresentar o requerimento, mas tal não é a mesma coisa que exercer o contraditório, ou
seja, de se defender do pedido que foi feito de declaração de insolvência. Assim desde que
se assegure o prazo para o devedor exercer o contraditório, não há qualquer problema a
nível constitucional.
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A segunda modalidade do PER está regulada no art.17º-I, que remete
abundantemente para artigos anteriores. O que importa aqui realçar é o facto de o PER,
nesta modalidade, iniciar-se com a apresentação ao tribunal, pelo devedor, de um acordo
extrajudicial de recuperação assinado por ele e por credores seus, que representam, pelo
menos, a maioria dos votos prevista no art.212º/1, acompanhado de outros documentos
(art.17º-I/1).

Caso 9- O PER si muove


A apresentou em tribunal uma petição requerendo a abertura de um PER. Foi designado
o competente AJP e iniciaram-se as negociações. Terminado o período de negociações
sem que se tenha alcançado qualquer acordo e verificando o AJP que o devedor se
encontrava em situação de insolvência, apresentou o requerimento para a declaração da
mesma. O juiz proferiu sentença de declaração de insolvência no prazo legal e o devedor
recorreu, alegando, entre outras coisas, que deveria ter podido deduzir oposição ao
requerimento e que não se encontrava em situação de insolvência quando apresentou a
petição inicial para a abertura de PER. Terá razão?

Resolução- Vimos que havia dois PER (dois processos especiais) – artg.17º-H e o 17º-I.
Quem tem legitimidade para pedir um PER é o próprio devedor com o acordo de alguns
credores. AJP – administrador provisório. O prazo inicial é de dois meses para as
negociações, podendo ser prorrogado (17º-D/5) por um mês, por acordo com o AJP e a
empresa. O prazo acabou sem qualquer acordo no nosso caso, e o 17º-F diz-nos que se foi
negociando com os credores que deveriam participar em tal. Após isto, há um prazo de 5
dias em que qualquer credor pode alegar algum inconveniente que tenha – visa a
possibilidade de evitar a recusa da negociação. Depois temos o prazo da votação, que vai
ter lugar por escrito (17º-F/6) – importante para orais. Não está proibido que eles façam a
votação por escrito em assembleia, apesar de não ser isso que está na lei.
Dentro do prazo de negociações tem de ser apresentado um projeto (projeto uma
vez que ainda não foi aprovado). Se dentro daquele prazo, nada é apresentado, então
evidentemente decorreu o prazo. Segue-se uma série de consequências.
Quando se diz no enunciado que terminou o período de negociações sem ser
alcançado nenhum acordo, pode não haver no âmbito das negociações qualquer proposta
obtida – hipótese do artg.17º-G/1, de não ter sido alcançado um acordo. Pode também
dar-se o caso de haver a recusa do projeto do plano de revitalização – isso é uma outra

2019/2020 Rita Nina – FDUC 79


situação. No nosso caso, não foi alcançado nenhum acordo, o que significa que vai haver
aqui uma situação, em que se aplica o 17º-G CI – o AJP vai ter várias alternativas. Mas
antes de avançarmos para estas alternativas há que ver outros aspetos. O AJP verificou que
o devedor estava em situação de insolvência, e apresentou o requerimento para a
insolvência, e o que se diz no 17-G/3, é que o encerramento do processo negocial acarreta
o processo de insolvência – se na realidade não há acordo naquele prazo, se não há
apresentação do plano, então o AJP vai ter que apurar se a empresa está ou não na situação
de insolvência.
Foi isso que aconteceu, o juiz veio então a proferir a declaração de insolvência (3
dias úteis para tal), no entanto, o devedor em causa veio recorrer, alegando que poderia ter
podido deduzir oposição ao requerimento (1º argumento) e que não se encontrava em
situação de insolvência quando apresentou a petição inicial do PER (2º argumento).
Quanto ao 1º argumento, uma coisa é o devedor ser ouvido antes da apresentação
do requerimento da insolvência (que é exigido pelo CI no artg.17º-G), outra coisa é ele ter
a possibilidade de ele poder apresentar oposição ao requerimento. Uma coisa é ser ouvido
antes do requerimento e outra coisa seria ser ouvido depois – é totalmente diferente. O
artg.30º/1 estabelece prazo para deduzir oposição, mas esta é uma norma que pode ser
afastada mediante acordo – está pensada para os casos em que a insolvência é pedida pelas
pessoas legitimadas pelo artg.20º CI (outros sujeitos para além do devedor), é para esses
casos que está pensado o artigo. Há numerosa jurisprudência que entendeu que, o facto
de o PER se iniciar a requerimento do devedor e de esse regime conter a possibilidade de
o AJP requerer a insolvência, e do facto de prever que a insolvência ter de ser declarada
em 3 dias uteis, deveria ser equiparada à própria apresentação insolvência do devedor.
Como é o devedor que se apresenta ao PER, e o AJP dever pedir declaração de insolvência,
isto equivale a que esse requerimento pelo AJP seja o equivalente à apresentação à
insolvência pelo próprio devedor. Isto porque o devedor quando recorreu ao PER já sabia
deste regime, que se não houvesse acordo no período das negociações, então o AJP iria
averiguar da situação da insolvência. Ou, também havia jurisprudência que dizia que era
como se o AJP estivesse a atuar em representação do devedor.
O professor, defendia que este regime era inconstitucional uma vez que violava o
direito de defesa constitucionalmente considerada, e que violava desnecessariamente e
desproporcionadamente. Justamente, o TC veio pronunciar-se pela inconstitucionalidade
deste regime de equiparação. Assim, a ver do professor, o deve haver o prazo de 10 para
apresentar oposição. Contudo isto não impede que o devedor não acompanhe o

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requerimento do AJP, em que aí nada obsta ao regime. Quanto ao primeiro argumento,
podemos então dizer que o devedor tinha razão por os motivos já referidos.
Relativamente ao 2º argumento, este argumento não é relevante para sustentar a
posição dele, uma vez que ele já poderia estar em insolvência iminente aquando da petição
inicial do PER. O devedor quando apresenta a petição inicial não pode estar em insolvência
atual, mas pode estar em insolvência iminente. Mas nada impede que a situação de
insolvência relevante para o artg.17º-G seja uma que surja no decurso do PER. Não há
nada que obste a que isso aconteça.
Um problema diferente seria o de saber se existindo apenas situação de insolvência
atual quando o PER já estava pendente, haveria nesse caso dever de apresentação à
insolvência pelo devedor (30 dias)? Dentro do prazo de dois meses pode esgotar-se o prazo
de 30 dias. A questão central é de saber se no decurso do PER, se o prazo de apresentação
de insolvência começa ou não a correr. O professor defende o seguinte argumento: na
verdade decorre do regime do PER, o próprio AJP só tem de avaliar se a empresa está em
situação de insolvência, após o encerramento do processo negocial. Se o próprio AJP, só
está obrigado a fazer essa averiguação depois de encerrar o processo negocial sem o acordo
previsto, então a ver do professor também deve valer a mesma solução para os casos em
que o próprio devedor também poderia ter o dever de apresentação de insolvência, por
identidade de razão. Ficará suspenso o inicio do prazo de apresentação de insolvência
enquanto estiver pendente o processo de negociação. Também a ver do professor esta
solução pode-se ver por outro argumento, durante o período das negociações, vamos deixá-
los lidar uns com os outros, para dar tempo para se chegar a um entendimento entre as
partes, para salvar a empresa (e assim salvar postos de trabalho, não ter de pagar subsídios
de despedimentos, etc.). Mas, esta é uma questão melindrosa.
6.3.- Regime extrajudicial de recuperação de empresas (RERE)
Existe um tipo especial do PEV. Artg.17º-I – natureza híbrida do PEV, pois
pressupõe uma fase extrajudicial de recuperação, antes de se chegar a ir a tribunal. E depois
em tribunal, pede-se a homologação desse acordo extrajudicial. O RERE foi criado pela L
8/2018.
Este é um regime jurídico que se pode ou não aplicar-se a um protocolo de
negociação, ou a um acordo de reestruturação. Qualquer um destes negócios, pode ficar
sujeito a este regime, a adesão ao RERE é voluntária. Podemos ter um protocolo de
negociação sujeito ao RERE e um acordo de recuperação não sujeito ao RERE.

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É aplicável às negociações e/ou acordos de reestruturação que envolvam entidades
devedoras referidas nas alíneas a) a h) do artg.2º CIRE – o destinatário voltou a ser o
devedor e não a “empresa”.

 Os “devedores” têm de ser titulares de empresas, se forem pessoas singulares –


3º/1 a).
 O RERE é aplicável às entidades referidas por remissão no artg.3º/1 a), mesmo
quando não sejam titulares de empresas (ex.: sociedades holding puras), estejam
sujeitas ao SNC.

Mais uma vez, só é possível recorrer a este regime se houver apenas uma situação de
insolvência iminente, ou uma situação económica difícil. Por outro lado, não é qualquer
situação que pode ficar sujeita a este regime.
Começando pelo protocolo de negociação, para que as negociações visando um acordo
de reestruturação sejam disciplinadas pelo RERE, o nº1 do artg.6º diz que, é necessário
que o devedor e os credores representem pelo menos 15% do passivo não subordinado, e
que assinem um “protocolo de negociação” e promovam o seu depósito na Conservatória
de Registo Comercial (artg.6º/1/2/4). Há aqui também um controlo de seriedade, esse vai
ser justamente realizado através da declaração exigida pelo artg.6º/4. Este protocolo de
negociação só por si não basta, para além de haver essa vontade das partes de se sujeitar ao
RERE, é necessário proceder ao depósito desse protocolo, é esse depósito que vai ter certas
consequências muito importantes também. Antes de se chegar ao protocolo de negociação
foi necessário negociar esse protocolo, esta fase não está prevista no RERE, portanto a
negociação vai-se processar como acontece nos outros contratos.
O depósito desse protocolo tem efeitos:
 Artg.9º - obriga o devedor a manter o curso normal dos negócios e a não praticar
atos de especial relevo (exceto se previstos no referido protocolo ou se previamente
autorizados) – é importante para criar confiança para quem está a negociar.
 Obrigações dos credores (10º/1) – parece que os credores, mesmo que exerçam o
direito de resolução do protocolo, continuam obrigados durante aquele período a
não instaurar as ações previstas na e) do artg.7º/1.
 Artg.11º/1 – nos casos em que haja depósito do protocolo, determina que há
suspensão de eventuais processos de insolvência onde ainda não tenha sido
declarada a insolvência do devedor.

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 Artg.12º, vem mostrar uma outra consequência deste regime, sendo ela
importantíssima. Temos uma lista dos serviços essenciais, e aquele devedor
conseguiu que os credores aceitassem esse protocolo, se o devedor tiver estas
dívidas, estes credores ficam sujeitos a este regime: os prestadores dos serviços
essenciais ficam impedido de interromper o fornecimento desses serviços (ex.:
eletricidade). Esta suspensão vai afetar todos os prestadores, mesmo aqueles que
não tenham assinado o protocolo. Vamos encontrar a mesma consequência
prevista no PER a partir do momento em que é proferido o despacho de nomeação
do AJP.
Vamos agora observar, o acordo de reestruturação. O ideal é que se chegue a um
acordo de reestruturação, mas o artg.13º é muito importante porque durante o período de
negociação (que pode ser o máximo de 3 meses), o devedor pode ficar em situação de
insolvência. Isto é relevante porque se o devedor estava sujeito ao dever de apresentação à
insolvência, o artg.13º vem dizer que a contagem do prazo de apresentação apenas se iniciar
após o encerramento das negociações – tem interesse pratico atendendo às graves
consequências associadas ao incumprimento do prazo.
Caso se tenha conseguido o acordo de reestruturação, vamos ter aqui um aspecto
importante. Este acordo pode conter muitos negócios, das mais diversas naturezas, por isso
é que é tão importante a documentação que vai ser apresentada com o acordo de
reestruturação. Tudo o que seja celebrado no âmbito deste acordo de reestruturação, só
vai vincular quem é parte no acordo de reestruturação – artg.19º/5.
É importante destacar que o artg.29º, vem permitir que, caso esse acordo for
subscrito por credores que representem as maiorias necessárias, este acordo pode ser
utilizado para iniciar um PER daqueles previstos no artg.17º. E com isto consegue-se mais
uma vez, se o juiz homologar, alargar a eficácia desse mesmo acordo também para credores
que não subscreverem ao acordo de reestruturação.
O artg.27º/1, tem uma norma que pode passar despercebida ao leitor, mas que tem
relevância. O acordo confere às partes os benefícios fiscais desde que, o acordo de
reestruturação compreenda a reestruturação de créditos que corresponda a pelo menos
30% do passivo não subordinado. Para efeitos desse nº1, é necessário que o acordo de
reestruturação seja acompanhado de um rótulo, a certificar que em virtude do acordo, a
situação financeira da empresa fica mais equilibrada por aumento da proporção do ativo
sobre o passivo – tem de haver um mínimo de prova de que esse acordo vai permitir um
“respirar” por parte do devedor.

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O artg.28º, também vem protegendo negócios que venham a ser celebrado pelo
acordo de reestruturação – são insuscetíveis de resolução os negócios que hajam
compreendido a efetiva disponibilização ao devedor de novos créditos pecuniários,
incluindo sob a forma de deferimento de pagamento, e a constituição, por este, de garantias
respeitantes a tais créditos pecuniários, desde que os negócios jurídicos hajam sido
expressamente previstos no acordo de reestruturação, ou no protocolo de negociação que
o preceder e que o acordo de reestruturação contenha a declaração prevista no nº3 do
artigo anterior.
O artg.25º trata de efeitos processuais, dá-se margem de manobra a quem celebra
esse acordo de reestruturação. O deposito desse acordo determina a imediata extinção dos
processos judiciais declarativos, executivos ou de natureza calculada que respeita a créditos
relativos ao conteúdo presente no acordo. Só não é assim em relação ao processo de
natureza laboral. Artg.19º/8, diz que os termos do acordo não podem prejudicar as
obrigações do devedor face aos trabalhadores.
Artg.23º - vem permitir um efeito retroativo de um acordo de reestruturação
relativamente às pessoas que intervêm no próprio acordo de reestruturação. Este acordo
em princípio, não tem efeitos retroativos, mas pode tê-los se as partes assim o tiverem
atribuído. Mas a ver do professor Soveral Martins, isto quer dizer que poderá haver uma
margem para produzir efeitos anteriores a esse depósito, desde que sejam para o futuro.
Veja-se o nº1 que faz referência após o deposito, outra coisa é a data.
Também pelo artg.19º/7 vemos que, aquele devedor que ficou com as devidas
reduzidas, também verá o valor da garantia a ser reduzido – qualquer garante também verá
o valor que está a garantir correspondentemente reduzido. Isto é importante porque vamos
encontrar gerentes de sociedades por quotas, que achavam que estavam a dar apenas a agir
como sócios com responsabilidade limitada e acabam por se tornar fiadores da sociedade.

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Capítulo V – Dos sinais distintivos de empresas e produtos. Invenções
1.- Introdução
Estudaremos agora de modo sistemático sinais distintivos de empresas (logótipos e
recompensas normalmente) e de produtos (marcas, denominações de origem e indicações
geográficas). Estamos a falar de uma matéria com grande importância prática e que permite
ganhar muito dinheiro. Quando falamos de sinais distintivo, falamos também de marcas,
que é muito importante para comerciantes. Consegue-se fazer muito dinheiro a partir de
marcas, também pelos direitos que dão possibilidade a usar essas marcas – ex.: contrato de
franchising assenta em marcas, a utilização que se vai fazer dessas marcas por alguém que
não é titular dê-las, vai permitir ao titular dessas marcas fazer muito dinheiro.
Podemos ver o boletim da propriedade industrial (no site inpi), em que aí podemos
encontrar pedidos de registo de marcas, logótipos, etc, (exemplos práticos).
No que diz respeito aos vários tipos de sinais distintivos, é importante realçar que
não estamos a utilizar a terminologia clássica. A terminologia clássica refere-se aos sinais
distintivos do comércio. Os sinais que vamos tratar, apesar de estarem muito ligados ao
comércio, não têm que surgir ligados a atividades estritamente comerciais, não
individualizam somente empresas mercantis e produtos mercantis e não são atos de
comércio objetivo. A terminologia que propomos, acaba por ser mais abrangente. Aliás,
daí também a inclusão destes sinais não no direito comercial propriamente dito, mas no
direito da propriedade industrial, essencialmente codificado entre nós no Código da
Propriedade Industrial. Esta temática hoje ganha especial interesse porque temos um CPI
novo (2018).
Há todo um conjunto de CI’s que, pelo menos, convém ter noção de que existem,
apesar de não estudarmos estas aprofundadamente:
 A nível mundial o mais importante é o chamado ADPIC/TRIPCS (acordo sobre
os aspetos dos direitos de propriedade intelectual relacionados com o comércio) –
está no cerne das discussões que têm decorrido entre os EUA e a China.
 Outra CI importante é a CUP (convenção da união de Paris);
 Marca: v. Diretiva 2015/2432 e regulamento 2017/1001;
 Acordo de Madrid quanto ao registo internacional de marcas (tem grande
importância);
 Acordo de Nice – (não está nas lições) é muito importante, trata da classificação de
marcas. Vem estabelecer uma série de classes que permitem arrumar as marcas
consoante a atividade em causa. Se no boletim da propriedade industrial formos
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ver determinados pedidos de registo da marca, esses pedidos vêm acompanhados
de referencias a atividades – quantas mais classes se quiserem abranger mais caro
fica, se pretender alargar a proteção obviamente que se tem de pagar mais;
 Classificação de Viena – elementos figurativos da composição de marca, também
estas figuras estão sujeitas a uma classificação internacional;
 Acordo de lisboa de 1958 sobre denominações de origem;
 Regulamento 510/2006;

2.- Logótipo
2.1.- Noção
É talvez o sinal distintivo com o regime mais confuso, ainda deixa margem para
muitas dúvidas, porque o logotipo vem fazer um sumário de 3 sinais distintivos existentes
anteriormente (nome de estabelecimento, insígnia de estabelecimento e o do logótipo que
já existia), tendo sido essa uma alteração de 2003. Esta agregação permitiu distinguir com
mais clareza as diversas modalidades de proteção da propriedade industrial, evitando o
recurso a diversos registos e a diversos pagamentos para o mesmo fim.
O logótipo é signo suscetível de representação objetiva e autónoma para distinguir
“sujeitos” ou entidade e, eventualmente, estabelecimento(s) deste (artg.281º, 282º e 295º
CPI).
Este logótipo surge como um sinal que visa fundamentalmente distinguir sujeitos
(individuais ou coletivos, públicos ou privados – 282º), que prestem serviços ou que
produzam determinados bens destinados (total ou parcialmente) ao mercado (281º/2).
Também pode servir para distinguir os seus estabelecimentos. O sujeito titular do logótipo
não tem de ser empresário. Não tem de ter empresa ou estabelecimento. Mas quando
tenha estabelecimento, é natural (mas não necessário) que use o logótipo (também) para
individualizá-lo e distingui-lo de outros estabelecimentos (função que era típica do nome
e/ou insígnia). Coutinho de Abreu, diz que o logótipo é normalmente sinal distintivo
bifuncional – distingue sujeitos e estabelecimentos.
O que a lei diz, é que este sinal depois pode ser utilizado para também ser colocado
no estabelecimento, para distinguir o estabelecimento. Esta é uma afirmação que pode ser
objeto de alguma distinção.
 Pedro Sousa Silva diz que, mesmo que o logótipo esteja colocado num
estabelecimento, desde logo, até na própria frontaria do estabelecimento, mesmo

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nesses casos, não está verdadeiramente a identificar o estabelecimento, mas estará
a identificar apenas o titular do estabelecimento ou quem o explora.
 Artg.281º/2 – o logótipo “pode ser utilizados, nomeadamente em
estabelecimentos, anúncios, impressos ou correspondência”. A ver do Professor
Soveral Martins, tal significa que o logótipo pode ser usado para identificar
estabelecimentos.
Pode requerer o registo, qualquer entidade individual ou coletiva, pública ou privada,
desde que tenha interesse legítimo em tal. Discute-se se pode registar aquele logótipo se
apenas tiver interesse em celebrar negócios que permitam a utilização do logotipo por
outras entidades – utilização lícita por outra entidade. É bastante discutida, sendo que o
Professor Soveral Martins, entende que tal não deve ser permitido.
A mesma entidade pode ser titular de vários logótipos, não há princípio da unidade
do logótipo – 283º/2 CPI. Estamos a falar de um sinal que vai identificar entidades e veja-
se que uma entidade que tenha vários estabelecimentos pode registar um logótipo para
cada estabelecimento, ou se por exemplo, é uma entidade de atividades múltiplas, pode
registar um logótipo para cada um dos setores de atividade. Aliás, na verdade, parece que
a mesma entidade, tendo ou não estabelecimento, tenha um ou vários estabelecimentos,
pode aceder à pluralidade dos logótipos. Este é um regime interessante porque contrasta
com o regime das firmas, em que vigora o princípio da unidade.
2.2.- Composição
Deste modo, relativamente aos seus elementos componentes, segundo o artg.281º/1,
são possíveis:

 Logótipos nominativos (compostos por nomes ou palavras, incluindo firmas,


denominações, completos ou abreviados, dos respetivos titulares).
 Logótipos figurativos (formados por figuras ou desenhos).
 Mistos (combinando elementos nominativos e figurativos).
 Também como vale para as marcas, os logótipos poderão ser constituídos por
outros sinais representáveis graficamente: conjunto de ltras, combinações de cores,
formas tridimensionais.

Assim, os logótipos aproximam-se das marcas e afastam-se das firmas e


denominações (que são sempre nominativas).
Hoje o logótipo tem um regime diferente do que conhecíamos até há pouco tempo,
pois já não se exige que o logótipo tenha representação gráfica! Atualmente pode ser

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composto por sinais que não tenham representação gráfica, mas nesse caso têm que ter
uma representação que os torna determináveis (requisito fundamental) – permitem
determinar o objeto de proteção. Temos de ter um sinal que, pela representação que lhe
é dada, permita associar um sinal à entidade, mas sabendo que uma coisa é o sinal e outra
é a entidade. Representação gráfica por sua vez trata-se de nomes, palavras, bonecos,
desenhos, etc. Uma outra representação que não seja gráfica, pode ser por exemplo, uma
representação por hologramas (que não é verdadeiramente gráfica) – o legislador abriu a
porta à tecnologia.

2.3.- Princípios constitutivos

A. Princípio da capacidade distintiva

Enquanto sinais distintivos de entidades (e muitas vezes de estabelecimentos), os


logótipos, hão de ser constituídos de modo a poderem desempenhar a função
individualizador-diferenciadora (281º/2).
Vale também aqui as limitações que já conhecemos das firmas, por falta de
capacidade distintiva, não são registáveis logótipos compostos exclusivamente por sinais
referidos a entidade, estabelecimento, atividade ou produto que sejam específicos,
genéricos ou descritivos, ou que se tenham tornado de uso comum, ou sejam de forma
natural, funcional, ou esteticamente necessária a algo (288º/1 b), c)  209º/1 b), d).
Oselementos que forem exclusivamente apresentados na composição do logótipo, têm de
ter capacidade distintiva. Ex.: a palavra “bué”, como é de grande uso comum, não pode ser
registada como logotipo.
Veja-se que um logotipo, no artg.291º CPI, a duração do registo é de 10 anos,
podendo ser indefinidamente renovada por iguais períodos. A proteção dada ao logótipo
não tem de ser para sempre. Se estivermos a falar de um desenvolvimento técnico, isto não
deve permanecer num monopólio, porque mais tarde ou mais cedo tal poderá ser
apropriável pela humanidade.
Alguns destes elementos, pode suceder que os sinais distintivos, podem adquirir
um segundo significado que lhes confira caráter distintivo – 288º/2. Uma palavra que não
tinha caráter distintivo enquanto tal, poderá ganhar, por ter ganho um secondary meaning.

B. Princípio da verdade

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Aqui não se trata de garantir que o logótipo só diz algo que corresponda aos factos,
pois o logótipo pode ser uma expressão de fantasia – não contendo indicações acerca da
natureza, composição, atividade, etc. do titular. Mas se contiver estas indicações, elas terão
que necessariamente ser verdadeiras. Não é registável um logótipo enganoso ou decetivo.
Por exemplo, deve ser recusado o registo de um logótipo que contenha sinais
“suscetíveis de induzir em erro o público, nomeadamente sobre a atividade exercida pela
entidade que se pretenda distinguir” (288º/3 d); nomes ou retratos das pessoas sem a sua
devida autorização (289º/1 g)).

C. Princípio da novidade

Para cumprir a função individualizadora-diferenciadora, o logótipo de um sujeito,


deve ser distinto, inconfundível ou novo relativamente a logótipos de outros sujeitos. O
fundamento de recusa do logótipo, com base na violação deste princípio está presente no
289º/1:

a) “a reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de logótipo anteriormente


registado por outrem para distinguir uma entidade cuja atividade seja idêntica ou
afim à exercida pela entidade que se pretende distinguir, se for suscetível de induzir
o consumidor em erro ou confusão”;
b) “a reprodução do logótipo anteriormente registado para sujeito com atividade afim
à do requerente, bem como a imitação, total ou parcial, de logótipo antes registado
para sujeito com atividade idêntica ou afim da do requerente quando, em qualquer
caso, isso fosse suscetível de induzir o consumidor em erro ou confusão.
 Também poderá ser recusado o registo do logótipo que reproduza ou imite
logótipo anteriormente usado, mas não registado: quando se reconheça que o
requerente do registo “pretende fazer concorrência desleal ou de que esta é possível
independentemente da sua intenção” (289º/1 h)).

Um logótipo não é novo, relativamente a outro quando, atendendo à respetiva grafia/e


ou sonoridade, figuração ou ideografia, o consumidor médio (consumidor de normal
capacidade, diligência e atenção), não consegue distingui-los, antes os confunde, tomando
um pelo outro e um sujeito por outro ou, não os confundido crê erroneamente, referirem
sujeitos especialmente relacionados.

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Parece que a novidade dos logótipos é apenas exigida, dentro do princípio da
especialidade (em relação a entidades que exercem atividades concorrentes), mas tal é
discutível. Essa é a primeira impressão que fica. Mas há exceções.
Por exemplo, um caso em que, o logótipo, ou a proteção conferida ao logótipo,
rompe com o princípio da especialidade, são os casos em que o logótipo pode ser
considerado como logótipo de prestígio. Atente-se para a seguinte remissão: artg.289º/2 
235º - dedicado às marcas de prestígio – esta remissão nos termos em que está feita,
significa que se o logótipo for considerado como logótipo de prestígio (notoriedade mais
significativa) tem associado a si, uma imagem de qualidade. Na realidade, não se exige que
tenha uma notoriedade excecional, simplesmente tem de ser acima de média. Tem de ter
uma imagem de qualidade da atividade desenvolvida. Deste modo, é fundamento de recusa
do registo do logótipo o facto de ele ser confundível com um anterior que goze de prestígio
em Portugal, ainda que pertença a sum sujeito exercendo uma atividade não concorrente,
quando o logótipo posterior pudesse beneficiar indevidamente do caráter distintivo ou do
prestígio do logótipo anterior, ou que pudesse prejudicá-lo.

 Pedro Sousa e Silva, não entende assim esta remissão. Para ele, esta remissão, não
significa que estes logótipos tenha, uma tutela reforçada, simplesmente significa que
o próprio logotipo pode ser recusado pela existência de um logotipo de prestígio.

Este princípio, manda-nos verificar se o novo logotipo é novo relativamente ao já


registado. Como fazemos isto? Através de determinados critérios: palavra (como é
pronunciada), grafia, as figuras, as ideias que sugerem, etc.
Por outro lado, mesmo quando as respetivas atividades são idênticas ou afins, pode
um sujeito conseguir o registo válido do logótipo confundível com um já registado em nome
de outro sujeito (desde que este nisto consinta), mas não pode induzir o público em erro
(Professor Soveral Martins).

D. Princípio da licitude (princípio residual)

Segundo o artg.288º, é recusado o registo do logótipo que contenha:

 Símbolos, brasões, emblemas ou distinções de certas entidades (nº3 a));


 Sinais com elevado valor simbólico (ex.: símbolos religiosos) não usuais na
linguagem corrente ou nos hábitos leais do comércio, salvo autorização (nº3 b));
 “Expressões ou figuras contrárias à lei, moral ou ordem pública e bons costumes”
(nº3 e));

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 Denominações de origem ou indicações geográficas protegidas (nº3 e));
 Logótipos constituídos exclusivamente pela bandeira nacionais ou por alguns dos
seus elementos (nº4) ou que contenha, a bandeira nacional, quando tal seja
suscetível de provocar desrespeito ou desprestígio ou de alguns dos seus elementos
(nº5 c)).

Ex.: artg.288º/6 (pedido de má-fé, com a palavra Cristiano Ronaldo, quando o


pedido não é feito pelo próprio); Ex.: 288º/1 h) – concorrência desleal. Aqui o que se
pretende é garantir a lealdade na concorrência. Se houver a intenção de fazer essa
concorrência desleal, isso também é fundamento de recusa de registo. Nesse caso, a
concorrência desleal aplica-se, mesmo que o logotipo não esteja registado.
Artg.288º/2 – pode-se impedir o uso de um logotipo/sinal idêntico ou confundível. O
que está a pretender é impedir que esse outro sinal enquanto logotipo. Por exemplo, se eu
for jornalista, e quero fazer uma reportagem sobre uma entidade com aquele logotipo, essa
utilização do logotipo não está impedida. Trata-se de usar enquanto logotipo ou enquanto
outro sinal distintivo. Se tem o direito tem a ação – ação para obter a colaboração desse
uso artg.435º CPI (providencia cautelar).

Estes artigos são importantes porque conseguimos ver que há uma margem para
proteger logótipos não registados.
Por sua vez, o artg.289º dispõe que também é recusado o registo do logótipo que
seja reprodução ou imitação de marca anteriormente registada por outrem para produtos
idênticos ou afins abrangidos na atividade da entidade que se pretende distinguir com o
logótipo; reprodução ou imitação não autorizada de firma ou denominação de outrem - a
proteção concedida à firma pode ser estendida para impedir este tipo de situação, através
do registo da firma podemos impedir o registo de outros sinais distintivos.

2.3.- Conteúdo e extensão do direito sobre logótipo


Em princípio, o direito de propriedade sobre logótipo constitui-se pelo registo do
mesmo no INPI. O registo dura por 10 anos, mas é indefinidamente renovável por iguais
períodos (art.291º).
O titular de logótipo pode, naturalmente, usá-lo para se dar a conhecer, utilizando-
o, por exemplo, em estabelecimento, anúncios, impressos ou correspondência (art.281º/2).
Para além deste direito de uso, o titular de logótipo tem ainda outros direitos:

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 O direito de impedir terceiros de usar, sem o seu consentimento, qualquer sinal
idêntico ou confundível, que constitua reprodução ou imitação do seu logótipo
(art.293º).
o Bem entendido, os terceiros não estão impedidos de usar “qualquer sinal”
confundível com o logótipo em qualquer circunstância. Estão impedidos de
usar, em atividade económica, sinais confundíveis em função distintiva. Por
outro lado, o uso destes signos só é proibido quando suscetível de induzir
os consumidores em erro ou confusão (ressalva-se, porém, a hipótese de o
logótipo ser de prestígio).
 Tem o direito de reclamar contra pedido de registo (feito por outrem) de logótipo
ou outro sinal não “novos” (art.17º CPI).
 Tem o direito de requerer judicialmente a anulação do registo de tais sinais
(art.297º).
 O direito de exigir judicialmente (inclusive em procedimento cautelar – art.345º)
que os terceiros deixem de usar os referidos sinais (art.293º).
 O direito a ser indemnizado pelo uso indevido dos seus sinais (art.347º).
 A propriedade do logótipo é tutelada criminal e contraordenacionalmente.

2.4.- Transmissão dos logótipos


Quanto à transmissão, já falamos deste regime relativamente ao trespasse. Sendo
os logótipos sinais que distinguem primordialmente sujeitos, poderíamos pensar que estes
seriam intransmissíveis ou, tal como vale para as firmas, apenas seriam transmissíveis com
o estabelecimento. Também sabemos que o logótipo tem um regime que permite dizer
que cabe no âmbito natural de entrega de transmissão do trespasse do estabelecimento
(295º/2). Mas, o que o Professor Soveral Martins, põe aqui em causa é o entendimento
que se tem dado ao artg.295º/1 – veja-se que aqui retira-se que o logótipo apenas se pode
transmitir com o estabelecimento. O professor entende que o logótipo não tem que ser
usado no estabelecimento do sujeito em causa. A ver do Professor, se não está a ser usado
no estabelecimento, o logótipo pode ser transmitido sem o estabelecimento.
Atente-se no artg.298º a) (não vem mencionado nas lições) – se o logótipo é
utilizado num determinado estabelecimento, e se dá o encerramento ou liquidação desse,
tal implica a cessação do logótipo. Mas apenas se o logotipo é utilizado nesse
estabelecimento! Veja-se que se o titular daquele logotipo utiliza o mesmo em vários

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estabelecimentos, mas apenas liquida ou encerra um deles, não parece necessário levar
aquele logotipo à caducidade (interpretação razoável).

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3.- Marcas
3.1.- Noção
As marcas são sinais suscetíveis de representação objetiva, clara e autónoma
destinados sobretudo a distinguir certos produtos idênticos ou afins.
No artg.208º/1 CPI, diz-se que “a marca pode ser constituída por um sinal ou
conjunto de sinais suscetíveis de representação (que sejam) adequados a distinguir produtos
ou serviços de uma empresa dos de outras empresas”. Coutinho de Abreu, por sua vez,
critica esta definição presente no artigo:

 “Produtos ou serviços” é redundante, uma vez que, os “produtos” são bens que
resultam da “produção”, da atividade produtiva – bens materiais ou corpóreos e
bens imateriais ou serviços.
 Os bens assinalados por determinada marca não têm de ser “de uma empresa”;
 Não visam em regra, as marcas individualizar certos bens de determinados sujeitos
relativamente a quaisquer bens de outros sujeitos.

Temos uma diferença evidente entre as marcas e os logótipos. Os logótipos servem


para distinguir entidades, as marcas vão servir para distinguir produtos. Em regra, a marca
apenas beneficia da proteção em relação a produtos idênticos ou afins – princípio da
especialidade. Se o titular registou essa marca, pode exigir a proteção do sinal, perante
alguém que quiser registar outra marca, se essa marca for para produtos idênticos ou afins.
Todavia, aqui também há a exceção do prestígio – estende-se a proteção da marca para lá
dos produtos idênticos ou afins, desde que, a marca que estamos a proteger seja uma marca
de prestígio.
Temos aqui uma grande alteração de 2018, em relação ao regime anterior. Não é
necessário que a marca seja um sinal suscetível de representação gráfica (é isso que significa
o “ou”) – a diretiva de 2015 fez cair esta exigência. Consequentemente, o artg.208º CPI
menciona, além da representação gráfica, outras representações que permitam
“determinar, de modo claro e preciso, o objeto da proteção conferida ao titular”. Isto abre
portas para o registo, principalmente de mais marcas sonoras e de marcas de multimédia.
Hoje podemos registar como marca, um holograma. É possível registar como
marca, um som que seja suscetível de representação gráfica como uma pauta de música,
por exemplo. Agora há sons tão pouco usuais, que é impossível pôr aquilo numa pauta de
música, ou seja, sons que são insuscetíveis de representação gráfica, e estes também

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poderão ser registados como marca. Mas tem que haver sempre esta representação que
permita determinar o objeto.
O Ac.12/02/2012, fixou que tinha que ser uma representação duradoura. Isto é
importante, porque o que se trata é de garantir que o sinal registado hoje possa ser
comparado com outro sinal que queira ser registado amanhã, daqui a uns meses, daqui a
uns anos, etc. Esta representação é que nos permite fazer a comparação, com o pedido que
irá ser apresentado. Se a representação se altera estamos a comparar com algo que já não
é a marca que foi registada. Por exemplo: discute-se muito se um odor pode ser registado
como marca, já houve uma marca que foi registada como tal, sendo uma marca olfativa –
hoje é muito difícil garantir que se apresenta uma representação duradoura quando se pede
o registo para uma marca olfativa, pois será que esse cheiro será o mesmo daqui a 10 anos?
Atualmente fala-se também para detetar esses cheiros para as marcas olfativas, para fazer
esse cromatoma para representar esse cheiro. Esta exigência de representação duradoura,
também se põe a dúvida relativamente às marcas gustativas e às marcas táteis (marcas táteis
será uma tridimensional enquanto que marcas de forma são uma coisa diferentes).

3.2.- Espécies de marcas


Vejamos agora algumas espécies de marcas. Para termos um panorama das várias
realidades que estamos a falar, temos de olhar para os vários critérios de classificação:
 Critério de natureza das atividades – (211º a), b), c), e)) quem vai registar uma
marca, não tem de registar no âmbito de uma atividade comercial em sentido
jurídico, pode ser para uma atividade agrícola, ou para de serviços (o que abunda
são as marcas de serviços até):
o De indústria – assinalam produtos da indústria transformadora e extrativa;
o De comércio – assinalam bens comercializados por grossistas e retalhistas;
o De agricultura – assinalam grupos de agricultura em sentido amplo;
o De serviços – assinalam atividades do setor terciário como as agências de
viagens e de publicidade, seguradoras, bancos, etc.
 Critério dos elementos componentes – (208º, 209º/1 b))
o Nominativas – constituídas por nomes ou palavras;
o Figurativas – formadas por figuras ou desenhos;
o Letras, números ou cores;
o Mistas – juntam elementos nominativos e figurativos, ou letras e números;

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o Podem ser sonoras ou auditivas, fala-se de possibilidade de representação
dos espectrogramas ou oscilogramas (que não é propriamente gráfica) –
constituíveis de sons representáveis como por exemplo, sons musicais
sinalizadores de programas de rádio ou televisão;
o Tridimensionais
o Forma – normalmente é associada à marca tridimensional, mas a ver do
professor, ela também poderá ser bidimensional, por exemplo, querer
registar um cartão de visita, a espessura do cartão de visita é relevante;
o Podem ser simples (constituídas apenas por só elemento) ou complexas
(compostas por vários elementos) dependendo dos elementos que as
compõem.
o Podem ser tradicionais/não tradicionais
o Marcas de movimento – hoje é possível através da internet (suporte
informático)
o Marcas de posição – ex.: Loubotin que registou como vermelho na sola do
sapato (marca).
 Critério dos titulares:
o Empresários – sujeitos de empresas em sentido objetivo;
o Não empresários – tradicionalmente, as leis da maior parte dos países
apenas permitiam aos empresários serem titulares de marcas individuais
registadas. A situação hoje é diferente. Em Portugal, o art.76º/4 CPI de
1940 já atribuía o direito de usar marcas a não empresários. A possibilidade
de não empresários obterem o registo de marcas ficou alargada depois do
DL 40/87. No atual CPI, o art.211º começa por afirmar que “o direito ao
registo da marca cabe a quem nisso tenha legitimo interesse”. Por exemplo:
 Inventores não empresários adotarem marcas para assinalarem os
produtos das suas patentes;
 Celebridades constituírem marcas com os seus nomes para as
transmitirem ou cederem em licença;
 Estado pode ter marcas para produtos de organismos não
empresariais (artg.210º/2);
 Artg.212º - deve-se interpretar amplamente o “agente ou
representante”, de modo a abranger mandatários, comissários,
agentes propriamente ditos, concessionários, etc.

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o Coletivas e de certificação ou de garantia – a propriedade de marcas não
tem de ser uma pluralidade de sujeitos (214º e 215º). O CPI divide as
marcas tradicionalmente consideradas como coletivas em:
 Coletivas – pertencem a associações de pessoas singulares e/ou
coletivas e são ou podem ser usadas pelos sócios respetivos.
 Marcas de certificação ou garantia – pertencem a pessoas singulares
ou coletivas que controlam os produtos ou estabelecem normas a
que eles ficam sujeitos.
 Critério do regime de proteção – podemos ter:
o Marcas registadas
o Não registadas
o Marca notória – (234º) exemplo de proteção que é dado à marca, que não
carece de prévio registo. Não tem de estar registada em Portugal! Se for cá
notoriamente conhecida, não precisa do registo prévio para beneficiar da
proteção. Todavia, é necessário que já tenha efetuado o pedido do registo
(forma de incentivar ao registo cá).
o Marca de prestígio (rompe com o princípio da especialidade)

3.3.- Funções das marcas


Quanto às funções das marcas, temos uma evidente: função distintiva dos produtos,
ela resulta da própria definição do 208º. Trata-se da função primordial.
Segundo a conceção tradicional e dominante (até há pouco tempo), a função
distintiva das marcas equivale essencialmente ou sobretudo a uma função de indicação
origem ou proveniência dos produtos. Origem por alguns autores entendida de forma
estrita: uma empresa (a marca garante que os respetivos produtos provêm de uma mesma
e única empresa); e de modo alargado: por outros atendendo, aos fenómenos das marcas
coletivas, de grupo e das cedidas em licença. Ainda segundo esta conceção, a função de
indicação de origem era a única função das marcas juridicamente tuteladas (a função
publicitário e de garantia de qualidade seriam apenas indiretamente protegidas).
Todavia ergueram-se vozes contra esta conceção, que não implicava
necessariamente negar a função, mas sim o caráter fundamental dela (argumentos):

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 A marca é muitas vezes um sinal “anónimo”, sem qualquer menção ao titular ou à
empresa, uma mesma marca poderá ser usada por diferentes empresas de um
grupo, etc.
 Vanzetti, reparou que as marcas podem ser cedidas livremente. Se podem ser
cedidas livremente, a marca não poderá garantir uma origem empresarial constante.
O consumidor não pode ter a certeza de que determinado produto marcado
provirá amanhã da empresa de que provém hoje.
 Coutinho de Abreu, acrescenta ainda outro argumento: esta função falha
claramente nas marcas de certificação ou garantia, bem como nos casos em que é
legítimo dois ou mais sujeitos não ligados por quaisquer relações jurídico-
económicas usarem a mesma marca para produtos idênticos ou semelhantes (236º
e 261º).

Posto isto, Coutinho de Abreu afirma que a função distintiva das marcas não se
confunde ou identifica com a de indicação de origem ou de proveniência. Esta é apenas
parte daquela. As marcas destinam-se a distinguir os produtos através de outras mensagens:
o titular e/ou os utentes legítimos da marca (emissores) comunicam por ela ao público
(recetor) algo respeitante a produtos (referente) – comunicam, no mínimo, que os produtos
assinalados com a marca são produtos individualizados e distintos.
A função distintiva para muitos autores, ainda hoje, (como Pedro Sousa e Silva) é
associada a uma função de indicação de origem – aquele produto tem uma certa origem,
que daria segurança às pessoas. Mas, a verdade, como Soveral Martins diz, é que o regime
da transmissão das marcas hoje mostra que nem sempre a marca vai assegurar essa
indicação de origem. Em relação à transmissão da marca, é possível transmitir a empresa
(primitiva origem dos produtos) sem transmitir a marca – ora, por isso, nem sempre a
marca vai identificar a origem dos produtos. Aliás temos marcas de certificação e de
garantia que permitem mostrar que aquele produto segue determinados protocolos, o que
não tem a ver com a função da marca.
Mas será que esta é a única função jurídica das marcas? Se olharmos para o
artg.235º, vemos que, visa proteger a função atrativa ou publicitária ou excecional das
marcas de prestígio. Como se vê a proteção alargada das marcas de prestígio é agora
assegurada por específico normativo relativo às marcas. Proteção essa que rompe com o
princípio da especialidade, não se limitando a prevenir aqueles riscos. Já não está em causa
a função distintiva das marcas, mas sim a tutela direta ou autónoma da função atrativa ou

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publicitária excecional das marcas de prestígio. Embora radicadas em determinados
produtos, estas marcas ganham asas e libertam-se em grande medida da função distintiva,
aparecendo como símbolos de excelência.

 atente-se que a distância económico-setorial entre os produtos do titular da marca de


prestígio e os produtos de terceiro que adote sinal idêntico ou semelhante, pode ser de tal
modo grande que torne impossível a ilicitude deste – ex.: a marca “Kodak” não deixa de
individualizar e referir a certa origem de produtos fotográficos apesar de um produtor de
bicicletas adotar signo idêntico.

Ainda relativamente às marcas de prestígio, elas não têm de ser super-notórias ou


célebres. O fenómeno não é só quantitativo, mas também qualitativo. Para serem de
prestígio, as marcas, além de notórias, hão-de ter boa reputação – assenta na boa qualidade
dos produtos respetivos e, eventualmente, ma singularidade e na originalidade dos
produtos.
A proteção especial das marcas de prestígio é concedida, recorde-se, “sempre que
o uso da marca posterior procure tirar partido indevido do caráter distintivo ou do prestígio
da marca, ou possa prejudicá-los”. Tirará partida do “prestígio da marca” reputada quando
se verifique “transferência de imagem” de qualidade e de acreditamento no mercado desta
marca para aquela. E prejudicará o prestígio da marca, quando desencadeie indesejáveis
associações – por ser aplicado quer a produtos de pior qualidade, quer a produtos
incompatíveis com a marca (ex.: doces e raticidas).

 É duvidoso, contudo que se possa dizer que o CPI, tenha um regime para proteger esta
função, com exceção das marcas de prestígio.

Será que as marcas têm também uma função de garantia de qualidade direta e
autonomamente tutelada pelo direito?

 A resposta tradicional era negativa. A função de garantia de qualidade não seria


autónoma, seria apenas uma função derivada da distintiva, mais precisamente da
função de indicação da proveniência – garantindo a marca a constância da
proveniência dos produtos, garante reflexamente a constância (tendencial) da
qualidade dos mesmos.
 Nós respondemos afirmativamente. Quanto à função de garantia de qualidade, é
verdade que o regime das marcas não garante sempre a mesma qualidade. Mas
ainda é possível dizer que esta função existe quanto às marcas de certificação ou de

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garantia – os sujeitos subordinados ao seu controlo, tem no seu processo produtivo
de prosseguir de determinadas regras (aqui há uma garantia de conteúdo) – 215º e
216º/1 a).
Quanto às marcas registadas em geral, ainda se pode dizer que há uma garantia de
um mínimo de qualidade (268º b)), apesar de não podermos dizer que esta é uma
função para as marcas registadas em geral. Este artigo diz que quando a marca é
registada, é para produtos com determinada qualidade, e o registo extingue-se se a
partir de determinada altura essa marca for possível de induzir o publico em erro
quanto à qualidade da marca – ex.: se em conta dos custos, se a qualidade diminuir,
e a empresa não avisar o publico dessa diminuição, haverá essa indução em erro.
O preceito, não impõe uma constância qualitativa em sentido estrito. São
naturalmente permitidas melhoras qualitativas; e também não são ilícitas pioras não
essenciais ou sensíveis de qualidade. Ilícitas são apenas as diminuições de qualidade
suscetíveis de induzir o público em erro, isto é, as deteriorações qualitativas
sensíveis e ocultas ou não declaradas ao público.

Um ponto que é importante de referir é que não podemos concluir que a tutela
dos interesses dos consumidores é o objetivo central da legislação sobre marcas. Num
sistema capitalista e de marcas facultativas, o direito sobre a marca serve essencialmente e
primordialmente os interesses do respetivo titular. É certo que os consumidores também
beneficiam, dessa função distintiva, mas este interesse só é protegido de forma eventual e
indiretamente, dado depender da reação do titular da marca às contrafações.
Porém, também não se deve pensar que o regime de caducidade das marcas
decetivas nada tem a ver com a necessidade de tutela dos interesses dos consumidores. Os
interesses dos consumidores também aqui são tidos em conta e protegidos.

3.4.- Princípios informadores da constituição das marcas


A. Princípio da capacidade distintiva
Os sinais para serem marcas, hão de ser capazes de individualizar e distinguir
produtos (209º, 209º/1 a) CPI).
Há que ter em conta que há um conjunto de sinais que não podem ser registados
como marca porque lhes falta essa capacidade distintiva. Não tem capacidade distintiva se
olharmos para um sinal e não conseguirmos ver que produto ele pretende identificar. Não
são marcas os sinais, exclusivamente, específicos, descritivos ou genéricos:

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 Específicos – sinais que designam ou denotam a “espécie” dos produtos – nomes
comuns dos produtos ou figuras que os exprimem. Ex.: a palavra “ovo” ou um
retrato de um ovo não podem ser marcas de ovos.
 Descritivos – referem-se por exemplo à:
o “qualidade” – ex: “pura lã” para vestuário;
o “quantidade” – ex.: 1 litro de vinho;
o “destino” – ex.: “cabedais para pomada”;
o “valor” – ex.: pechincha;
o “época de produção do produto ou da prestação do serviço” – ex.: “a toda
a hora”, para os serviços de uma clínica;
o “proveniência geográfica” – “Coimbra” para louça fabricada na cidade;
 Genéricos – designam um género ou categoria de produtos onde se incluem os
produtos (espécie) que se pretende marcar com um desses sinais – ex.: refresco
para laranjadas.

Também não podem ser marcas sinais que se tenham tornado de uso comum para
designar certos bens (ex.: desenho retratando um peixe para artigos de pesca) ou para
qualificar certos produtos (ex.: “Super”, “ótimo”, etc.).
Quanto às expressões em língua estrangeira (denominações específicas, genéricas,
descritivas e de uso comum) – têm capacidade distintiva?

• Se elas forem conhecidas do público português ou dos círculos de clientes


interessados, a resposta é negativa. Portanto, se pertencerem a uma das línguas
comunitárias europeias, parece que a regra deve ser a da inadmissibilidade
delas – não é lícito, ficarem os titulares das marcas registadas a beneficiar em
face de produtos nacionais e estrangeiros sem possibilidade de noutros países
registarem e usarem tais marcas.
• Segundo o professor, se for uma língua exótica ou morta, poderá ser possível
que se utilize. Porque como em Portugal existem muito poucas pessoas que
conhecem, surgirá mais como uma expressão de fantasia – em regra será
possível registar esse sinal como marca. Sinais quando adquirem segundo
significado, por associações de ideias, que levam a criar esse segundo sentido.
Isto foi discutido nos tribunais a propósito da palavra “caixa” – a palavra caixa
referida a serviços bancários adquiriu um segundo sentido (vou levantar
dinheiro à caixa).

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Contudo, excecionalmente, são registáveis marcas constituídas exclusivamente por
sinais específicos, descritivos, genéricos ou de uso comum quando estes, antes do registo e
depois do uso e publicidade que deles foi feito, tenham adquirido caráter ou capacidade
distintiva (art.238º/3 CPI). Acolheu-se, portanto, a doutrina do secondary meaning: um
signo sem significado originário distintivo (enquanto marca) adquire através de certo uso
um segundo ou “secundário” sentido, passando a distinguir em termos de marca
determinados produtos.
São possíveis as marcas tridimensionais, que podem ser constituídas,
designadamente, pela “forma do produto ou da respetiva embalagem” (art.222º/1). Mas
nem todas as formas dos produtos ou das embalagens são suscetíveis de constituir marcas,
uma vez que não têm qualquer capacidade distintiva, nem caráter que releve no campo das
marcas (se deixasse registar, estaríamos a deixar criar um monopólio) – não são marcas as
formas natural, funcional ou esteticamente necessárias (art.209º/1/b CPI):

 “Forma imposta pela própria natureza do produto (forma natural) – forma usual
ou normal de que se revestem bens a cujo género ou espécie pertence o produto
(ex.: uma tesoura, que por definição é formada por duas lâminas que se movem
em torno de um eixo em comum);
 “Forma do produto necessário à obtenção de um resultado técnico” (forma
funcional) – forma dada por um objeto de que resulta um aumento de utilidade ou
melhoria de aproveitamento do mesmo e que poderá ser protegido como patente
ou como modelo de utilidade – 50º e ss., 119º e ss.
o Mas uma vez estamos perante uma situação em que algo que represente
uma evolução técnica, não pode ficar numa situação de monopólio.
o A lei não permite que as formas funcionais deste tipo sejam apropriadas a
título de marcas, uma vez que seriam tuteladas por tempo ilimitado
(artg.247º); ao invés, sendo tuteladas ao nível de patentes e modelos de
utilidade, estas têm uma duração que não pode exceder 20 e 10 anos,
respetivamente.
 “Forma que confira um valor substancial ao produto” (forma esteticamente
necessária) - (ex.: produtos de decoração do lar), a proteção é apenas dada também
por via dos desenhos ou modelos.

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Por conseguinte, apenas as formas “arbitrárias” ou “não necessárias” é que podem
ser marcas – ex.: forma de uma garrafa oval para aguardentes velhas, a forma invulgar para
frascos de perfumes.
Houve uma alteração importante do código, na linha da diretiva de 2015 – uma só
cor agora pode ser registada como marca, uma única cor pode ter capacidade distintiva,
atendendo ao contexto, ou com o produto (208º, 222º/1 f)). Ex.: cor-de-laranja para os
serviços de comunições, o roxo da cadbury (marca de chocolates), preto da renova, etc.

Caso 10- Alberto, fabricante de bicicletas, pretende registar como marca para os seus
produtos a palavra Sepeda (Bahasa para bicicleta – língua exótica e muito pouco
conhecida). Poderá fazê-lo?

Resolução- Este caso é referente aos princípios constitutivos da marca, em especial da


capacidade distintiva. Neste tipo de caso, se tratar de uma expressão em língua exótica,
pouco conhecida poderá ter capacidade distintiva (ao invés, se fosse numa língua
estrangeira, por exemplo inglesa, tal já não teria). Assim, Alberto poderá registar como
marca a palavra Sepeda.

Caso 11- O caso do cheiro a bolo de chocolate


A pretende registar como marca o cheiro dos bolos de chocolate que fabrica. Será isso
possível?
Resoluçã:
Registo da marca (olfativa)
Antes da questão da capacidade distintiva, há que ver outro aspecto. Estamos a lidar
com um CPI novo, no anterior apenas se admitia como marcas sinais suscetíveis de
representação gráfica, hoje alargou-se para casos também não suscetíveis de representação
gráfica. O que se exige hoje é a determinabilidade do sinal – tem que haver uma
suscetibilidade de representação, mas essa representação não tem de ser gráfica, mas que
permita determinar o objeto da proteção conferida. Mas determinar com estabilidade, no
sentido de aqui a 5 anos, 10 anos, 15 anos, etc.
Um caso muito importante quanto às marcas olfativas, é o Ac. TJ no caso
Sieckmann. O registo de marca olfativa pode valer dinheiro, por exemplo, há companhias
aéreas e automóveis que tentam registar como marcas certos aromas, para as pessoas
quando entram no avião conseguirem identificar a companhia aérea pelo aroma; o mesmo

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aconteceu nos bentleys, para as pessoas quando entrassem no carro sentissem um certo
luxo. O TJ quanto ao nosso acórdão, não afastou o facto de uma marca olfativa poder vir
a ser registada, mas o que é mais importante no acórdão foram os requisitos para ser marca:
representação clara, precisa, completa por si própria, inteligível, durabilidade. A
durabilidade é importantíssima porque se aceitássemos o registo dessa marca olfativa, daqui
a 5 anos, se aparecesse outra que se queria registar, teríamos que comparar essa com esta
e a amostra que se iria comparar hoje provavelmente não seria a mesma que era há 5 anos.
Continua a haver discussão doutrinal, e já houve exemplos de países que
reconheceram marcas olfativas – ex.: RU. A verdade é que não está afastado a hipótese de
se registar marcas olfativas, aliás até há bastantes propostas doutrinais, pois há quem
entenda que há um certo descritivo de aroma (o que parece bastante difícil ao professor),
etc. Há todo um conjunto de tecnologias a ver desenvolvidas para a representação
duradoura do sinal em causa.

Caso 12- O caso da cor da sola


A pretende registar como marca a cor que utiliza na sola dos sapatos que fabrica. Poderá
fazê-lo?

Resolução- Hoje admite-se como marca uma só cor – uma nova alteração do CPI. Ao fim
de tantos anos, começou a esgotar-se as possibilidades de marcas, e começa-se assim a
alargar o âmbito de registo, também para abranger aquilo que as novas tecnologias
permitem (ex.: holograma). No artg.222º/1 CPI f), está disposto que se poderá registar “a
cor ou as cores” em que a marca é usada. É fácil de apresentar a representação da cor. A
questão está em saber como é que uma só cor tem capacidade distintiva.
Isto foi objeto de apreciação do TJ no caso Libertel, em que nesse caso tinha-se a
cor de laranja como marca de serviços de telecomunicações (um retângulo). O problema
aqui, é que mesmo a amostra em papel se poderá alterar com o tempo, vai-se degradando,
e o TJ disse que se fosse apenas só em papel não teríamos a característica da durabilidade
presente. Evidentemente, mais uma vez, a tecnologia evoluiu, e pode vir a surgir uma outra
forma que vem a permitir um caráter duradouro. No acórdão, dá-se muito mais valor à
descrição verbal da cor, só que esta era claramente insuficiente (sendo só “laranja”),
constituía uma representação inadequada. Deste modo, quanto à descrição verbal, terá que

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ser apreciar em cada caso concreto. Não está afastado que uma cor seja registada, mas
também é necessário que a representação da cor preencha também estes requisitos.
Aqui considera-se que a designação da cor, através do código de identificação
internacional poderia ser uma representação gráfica, mas tal não significa necessariamente
que tal permita distinguir os produtos da empresa de outra empresa. Ou seja, se tem caráter
distintivo ou não. Não se deve confundir esta questão com a da durabilidade.
Posto isto, uma cor só é possível que seja representada, desde que cumpra os
requisitos para permitir a determinabilidade. Justamente a ideia de caráter distintivo
permanece aqui, para não criar o tal monopólio. O próprio uso da marca é importante. Se
estamos a falar de uma marca de uma só cor, obviamente que há uma maior possibilidade
de se criar um monopólio maior se alargarmos para muitos produtos – mas por exemplo,
quanto aos sapatos da Loubotin, já não se consegue dizer com tanta facilidade que se está
a criar um monopólio (dado ser apenas um produto).

B. Princípio da verdade
Também a propósito das marcas não tem o princípio da verdade “manifestações
positivas necessárias” (o sinal pode ser de mera fantasia). A marca é verdadeira se não for
decetiva ou enganosa.
O art.238º/4/d CPI estatui a irregistabilidade das marcas que, em todos ou alguns
dos seus elementos, contenham “sinais que sejam suscetíveis de induzir o público em erro,
nomeadamente sobre a natureza, qualidades, utilidade ou proveniência geográfica do
produto ou serviço a que a marca se destina”.

C. Princípio da licitude – (princípio residual)


De acordo com o art.231º, é recusado o registo de marca que contenha:

 Certos símbolos, brasões, emblemas ou distinções, salvo autorização (art.231º/3/ a)


e b));
 “Expressões ou figuras contrárias à lei, moral, ordem pública e bons costumes”
(nº3/c);
 Tão-só a Bandeira Nacional ou alguns dos seus elementos (nº4);
 Entre outros componentes, a Bandeira Nacional, quando tal seja suscetível de
provocar desrespeito ou desprestígio dela ou de algum dos seus elementos (5º/c).

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 O novo nº6 do artg.231º acrescenta que: “quando invocado por um interessado,
constitui também fundamento de recusa o reconhecimento de que o pedido de
registo foi efetuado de má fé”. O pedido de registo da marca deve ser recusado
quando o requerente sabe, ou devia saber, que um terceiro usa a marca idêntica ou
semelhante para produtos idênticos ou afins, e tem a intenção de impedir esse
terceiro de continuar a usar essa marca.
Outros fundamentos de recusa do registo de marca aparecem no art.232º:

 A reprodução ou imitação, total ou parcial (em marca), de logótipo anteriormente


registado pertencente a sujeito que produz bens idênticos ou afins àqueles a que a
marca se destina, se for suscetível de induzir em erro ou em confusão o consumidor
(nº1 c) e d));
 A infração de outros direitos de propriedade industrial (nº1/c));
 A reprodução de nomes ou retratos de pessoas sem autorização (nº1/d));
 A reprodução ou imitação, total ou parcial, de firma ou denominação que não
pertençam ao requerente de marca não autorizado, se for suscetível de induzir o
consumidor em erro ou confusão (nº2/a));

D. Princípio da novidade e especialidade

Em regra, as marcas devem ser novas, isto é, distintas ou inconfundíveis. Mas este
princípio apenas vale em regra no quadro do princípio da especialidade, relativamente a
sinais que visem distinguir produtos idênticos ou afins – é fundamental ter esta ideia
presente.
Tendo em vista o artg.232º/1 a) e b) CPI, é possível traçar o seguinte quadro dos casos
em que o registo de marca deve ser recusado:

 A marca cujo registo se requer é idêntica à marca anteriormente registada e os


produtos respetivos são também idênticos;
 Ambas as marcas são idênticas e os produtos afins, existindo, consequentemente,
um risco de erro ou confusão para os consumidores (ou utilizadores);
 As marcas são semelhantes e os produtos idênticos, com o risco de erro ou
confusão para os consumidores;
 Tanto as marcas como os produtos são semelhantes ou afins, derivando daí a
possibilidade de os consumidores serem induzidos em erro ou confusão.

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Põe-se agora a questão de saber quando existe afinidade entre os produtos,
semelhança entre as marcas e risco de confusão.
Produtos afins ou semelhantes são:

 Bens “concorrentes”, intermutáveis ou substituíveis, que satisfazem necessidades


idênticas:
o Aqueles produtos com natureza ou características próprias e finalidade
idênticas ou similares (ex.: vinho maduro e vinho verde).
o Produtos de natureza de marca diversa, mas com finalidades idênticas ou
semelhantes (ex.: fios de linho e fios de seda para confeções).
 Bens não intermutáveis ou substituíveis que o público destinatário crê
razoavelmente terem a mesma origem, por serem economicamente
complementares (ex.: artigos de couro e pomadas para conservar couro) ou por
outras razões.

 As semelhanças ou parecenças entre as marcas podem ser, principalmente, de


natureza gráfica, figurativa, fonética ou ideográfica (art.238º/1 c) CPI).
o No juízo sobre a similitude, devem as marcas ser apreciadas globalmente,
ou seja, o exame deverá recair sobre as marcas na sua totalidade e não sobre
as suas partes. É claro que, os elementos de caráter específico, descritivo,
genérico ou de uso comum têm menor peso do que os elementos
arbitrários ou de fantasia; ou também, nas marcas complexas, tem-se
especialmente em conta o núcleo de signos em exame.
Aqui, em relação à afinidade, não só interessa verificar se eventualmente o produto
que vai ser qualificado, satisfaz finalidades idênticas (ex.: manteiga e margarina para barrar
no pão). Discute-se se pode ainda ir a outros níveis: aos casos em que pelo menos, o
público destinatário dos sinais, não pense que tem a mesma finalidade, mas vai pensar que
tem a mesma origem – produtos afins? O professor Soveral Martins, entende que isto é
muito discutível (apesar de ser defendido nas lições). Há muitos autores que não
concordam com esta leitura.
Com efeito, Coutinho de Abreu, entende que não se deverá ir além dos exemplos
acima dados.
Para que uma marca seja considerada não nova e insuscetível de registo, não basta
ser idêntica ou semelhante à marca anteriormente registada por outrem para produtos afins
ou idênticos. É ainda necessário que tal identidade ou semelhança possa induzir em

2019/2020 Rita Nina – FDUC 107


confusão o consumidor. Não existe risco de confusão sem que exista identidade ou
semelhança entre os sinais e simultânea afinidade ou identidade entre os produtos. Mas
estas correspondências entre marcas e produtos não implicam, necessariamente, risco de
confusão.
O risco de confusão deve ser entendido em sentido amplo, de modo a abranger
tanto o risco de confusão em sentido estrito ou próprio, como o risco de associação:

 Risco de confusão – quando os consumidores podem ser induzidos a tomar uma


marca por outra e, consequentemente, um produto por outro;
 Risco de associação - a confusão enquanto associação entre os produtores daqueles
produtos.

O risco de confusão depende de vários fatores, nomeadamente do tipo de


consumidores, do grau de semelhança entre marcas e entre os produtos assinalados, a força
e notoriedade da marca registada:

 Em primeiro lugar há que considerar, os consumidores a quem os produtos


assinalados com as marcas em causa se destinam – ex.: se um produto for mais
especifico para consumidores industriais ou especialistas, estes se hão de induzir
tão facilmente em erro como consumidores normais.
 Tem que se atender ao consumidor médio, nem particularmente atento, nem
particularmente distraído. A partir desse critério, vai-se ver se há possibilidade de
erro ou confusão em sentido amplo (abrangendo também o risco de associação).
 Releva também o grau de semelhança – o risco de semelhança é tanto maior quanto
maior for a semelhança entre os sinais e entre os produtos.
 Por sua vez, fazemos agora a seguinte pergunta: e se a marca registada que beneficia
da proteção conferida pelo registo é uma marca forte, o risco de confusão aumenta
ou diminuí? O risco de confusão aumenta, pois vai surgir muito mais facilmente na
mente do consumidor médio quando olha para o novo sinal (importante para orais)
– faz-se a associação muito mais facilmente. A verdade é que uma marca forte,
tendo maior capacidade distintiva, desperta maior atenção ao público e perdura
mais na sua memória; daí que leves semelhanças ou imitações sejam suscetíveis de
provocar trocas ou associações entre a marca que se guarda na memória e o signo
que se pretende registar.

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 A notoriedade da marca releva também, ainda que seja um pouco duvidoso que o
risco de confusão em sentido estrito, aumente à medida do crescimento da
notoriedade da marca no mercado. Agora, o risco de associação é tanto maior
quando for a notoriedade da marca registada.

Caso 13- A X, S.A., é titular da marca «XPTO», que foi registada para identificar um
perfume muito caro e desejado, usado por estrelas de cinema, tv, rádio e redes sociais.
Trata-se de um produto que rapidamente se tornou muito conhecido em todo o mundo
desenvolvido e que é o resultado de combinações de elementos muito felizes, dando-lhe
um toque de extremo bom gosto. Alberto ofereceu à sua mulher, como prenda de
aniversário de casamento, um frasco de 250 ml do famoso «XPTO», mas viu que houve
uma reação de algum desagrado por parte daquela. Após alguma insistência, Alberto ficou
a saber que a entidade que limpa a fossa sanitária da fábrica em que a mulher trabalha tem
como marca… «XPTO», sinal que utiliza na própria cisterna com que presta os serviços
em causa. Alberto contou a história a Carlos, administrador da X, S.A., que pretende saber
se esta tem fundamento para reagir. O que lhe diria?

Resolução-
A marca XPTO trata-se de uma marca de prestígio – associada a uma boa imagem,
imagem de qualidade. Tem um regime próprio presente no artg.235º - tem uma tutela
especial, uma vez que, relativamente, ao princípio da especialidade, apenas se pode
proteger as marcas registadas quando estejam em causa produtos afins, no caso das marcas
de prestígio, não terão que ser produtos afins -
Se virmos o artg.260º, vemos que justamente o registo da marca é anulável se for
infringido o artg.235º. Assim, ele poderia reagir solicitando que parassem de utilizar a
marca, tendo também um procedimento cautelar previsto (artg.345º).

3.5.- Conteúdo e extensão do direito sobre a marca


Registo
Para que se constituam um direito de propriedade sobre uma marca é preciso que
a mesma seja registada (no INPI) – artg.210º CPI. Relativamente, ao registo, é fundamental

2019/2020 Rita Nina – FDUC 109


olhar para as várias alternativas. Temos a via tradicional do pedido de registo, que vem
regulada nos artg.222º e ss.
Pelo DL 125/2006, de 29 de Junho (que estabeleceu um regime especial de
constituição on-line de sociedades por quotas e anónimas e alterou o regime da “empresa
na hora”), estabeleceu um processo muito mais simples para aquelas situações: na
constituição imediata e na constituição on-line de sociedades é possibilitada a simultânea
aquisição do registo da marca (“marca na hora”) associada a firma idêntica. Entretanto este
regime foi alargado com o DL 218/2017, permitindo-se registar imediatamente uma marca,
desde que se recorra à base de dados a favor do estado, de que podem beneficiar não só
sociedades mas quaisquer sujeitos com legitimidade para adquirir marcas – é muito mais
rápido o registo da marca.
Certos sujeitos têm prioridade para constituírem o registo sobre uma marca. Têm
prioridade para o registo:

 Quem primeiro apresentar regularmente o respetivo pedido (art.12º CPI);


 Quem tiver apresentado regularmente em qualquer país da União de Paris ou da
OMC, ou em qualquer organismo intergovernamental com competência para
registar marcas que produzam efeitos em Portugal, um pedido de registo gozará,
para apresentar o mesmo pedido em Portugal, do direito de prioridade durante 6
meses a partir da data do primeiro pedido (art.13º CPI; artg.4º CUP). o que vamos
encontrar aqui é um direito de prioridade do registo.
o Ex.: alguém começa a fabricar utilizando uma determinada marca registada,
pois não quer pagar as taxas do registo e ele quer ver como o mercado
reage. Ao final de 3 meses o mercado reage bem ao sinal e ao produto, e
outra pessoa vê isto, e essa pessoa corre a pedir o registo daquela marca. Se
a situação (marca não registada) não se tiver mantido mais de 6 meses, o
produtor pode utilizar esta via para exigir o direito de prioridade do registo
– vamos utilizar uma regra que se sobrepõe à regra da prioridade temporal.
É um regime que protege, mas dentro de certos limites.
 Aquele que usar marca livre ou não registada por prazo não superior a 6 meses
tem, durante esse prazo, direito de prioridade para efetuar o registo, podendo
reclamar contra o que for requerido por outrem (art.213º/1 CPI).

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Os direitos conferidos pelo registo de marca no nosso país são eficazes em território
nacional (art.4º/1 CPI). O titular de marca registada no INPI que pretenda a proteção do
sinal como marca noutros países requererá o registo nesses Estados. Contudo, não terá de
o fazer em relação aos Estados partes no Acordo de Madrid relativo ao Registo
Internacional de Marcas ou do Protocolo relativo a esse Acordo.
Relativamente às marcas comunitárias: também se tem a alternativa da marca da
EU, que têm caráter unitário, produzem os mesmos efeitos em toda U.E., sendo o seu
registo (único) efetuado no Instituto de Harmonização do Mercado Interno.
Há vários fundamentos de recusa previsto no CPI, mas é fundamental ter presente
esta distinção:
 Fundamentos de recusa absolutos – pode ser oficiosa. É por causa do conteúdo da
marca em si. Ex.: reprodução da bandeira nacional.
 Fundamentos de recusa relativos – é necessária a invocação. Neste caso, o que surge
como causa de recusa é a relação com outras realidades, não é pela composição
em si do sinal (232º a 235º). Ex.: reprodução de marca anteriormente registada 
por relação a outra marca anteriormente registada.

Direitos conferidos pelo registo


O titular de uma marca registada, goza de propriedade e do uso exclusivo dela –
artg.210º CPI:

 Pode naturalmente usá-la para assinalar os seus produtos, utilizá-la na publicidade,


transmiti-la e cedê-la em licença de exploração 8artg.30º, 31º, 256º, 258º);
 Por outro lado, podem reclamar contra pedido de registo feito por outrem de
marca idêntica ou semelhante (artg.226º, 229º);
 Requerer judicialmente providencias cautelares contra violações do seu direito
(artg.345º);
 Pedir junto do INPI a declaração de nulidade ou a anulação do registo de marcas
alheias (artg.262º);
 Pedir judicialmente indemnizações por perdas e danos (artg.347º).
 Por outro lado, ainda, o direito do titular de marca é protegido criminalmente
(artg.320º, 321º, 326º).

É proibido o uso de sinais confundíveis com a marca registada “no exercício de


atividades económicas”. Obviamente que não há qualquer ofensa do direito à marca
2019/2020 Rita Nina – FDUC 111
quando numa roda de amigos falamos depreciativamente de certa marca; ou quando um
dirigente de associação de consumires menciona determinada marca depreciativamente
para referir os malefícios de alguns dos seus componentes.

4.- Denominações de origem e indicações geográficas (apenas uma noção)

Denominação de origem é o nome de uma região, de um local determinado ou,


em casos excecionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa
zona, cuja qualidade ou características se devem, essencial ou exclusivamente, ao meio
geográfico e que é produzido, transformado e elaborado na área geográfica delimitada
(art.299º/1 CPI). São igualmente consideradas certas denominações tradicionais,
geográficas ou não, que designem produtos originários de uma região ou local
determinado, cujas características ou qualidades se devem, essencialmente, ao meio
geográfico e cuja produção, transformação e elaboração ocorrem nas áreas geográficas
delimitadas (art.305º/2 CPI).
Indicação geográfica é o nome de uma região, de um local determinado ou, em
casos excecionais, de um país, que serve para designar um produto originário dessa zona,
cuja reputação, determinada qualidade ou outra característica podem ser atribuídas a essa
origem geográfica e que é produzido, transformado ou elaborado na área geográfica
delimitada (art.305º/3 CPI).
A diferença principal entre denominações de origem e indicações geográficas está
no facto de as primeiras identificarem produtos cuja qualidade global ou características se
devem essencialmente ao meio geográfico, enquanto que as segundas designam produtos
que, podendo embora ser produzidos com idêntica qualidade global noutras zonas
geográficas, devem a sua fama ou certas características à área territorial delimitada de que
deriva o nome-indicação geográfica.
As denominações de origem e as indicações geográficas visam distinguir produtos,
tal como as marcas. Ainda assim, não se confundem com estas, sendo possível apontar
várias diferenças:

 As possibilidades de constituição das marcas (art.222º) são muito mais vastas do


que as respeitantes àqueles sinais, sempre nominativos e consistindo quase sempre
em nomes de zonas geográficas;

2019/2020 Rita Nina – FDUC 112


 As marcas pertencem a sujeitos determinados e as denominações de origem e
indicações geográficas são propriedade comum dos residentes ou estabelecidos, de
modo efetivo e sério, na localidade, região ou território demarcados (art.305º/4
CPI);
 Ao invés da generalidade das marcas, aqueloutros sinais distinguem sempre
produtos originários de certas áreas geográficas.

5.- Recompensas (noção)


As recompensas são prémios e títulos de distinção oficiais ou oficialmente
reconhecidos (condecorações, medalhas, diplomas, atestados, etc.), concedidos a
empresários por mor da bondade dos respetivos estabelecimentos e/ou produtos
(artg.270º, 271º, 272º, 273º c) e d), 275º c) CPI).
Por exemplo, quando se vai ver vinhos, costuma-se ver quantas medalhas tem. As
recompensas também têm o seu regime no CPI, são justamente esses prémios, de
reconhecimentos de especial qualidade, por parte de determinada entidade (que está
relacionada com a qualidade) – artg.270ºe ss.
As recompensas conferidas aos empresários “constituem propriedade sua”
(artg.272º). E deve entender-se que a propriedade lhes é reconhecida independentemente
do registo das mesmas. O registo não é constitutivo, serve apenas para publicitar a
titularidade das mesmas, garantir a veracidade e autenticidade dos títulos de concessão das
mesmas.

ACÓRDÃOS
Louboutin S.A v Yves Saint Laurent – a questão da cor da sola dos sapatos do Louboutin
(“the red sole mark”)
Na EU isto hoje é aceite, da localização da cor da marca (por exemplo na sola do
sapato), como algo que pode ser registado.

STJ – marca olfativa


O que estava em causa era se a marca olfativa era ou não registada enquanto sinal
suscetível de representação gráfica. No entanto, aqui não se está a dizer que uma marca
olfativa não é registada, o que se está a dizer é que se é uma marca olfativa os requisitos de
representação gráfica não são cumpridos daquela forma. Hoje é possível representar
marcas que não sejam suscetíveis de representação gráfica.

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Mesmo em relação às marcas não suscetíveis de representação gráfica, há a exigência
de determinabilidade – distinguir o produto da marca. A marca deve obviamente distinguir
o produto, mas é preciso que ela não seja confundida com o produto.
Tratando-se de marcas com representação gráfica, não podem ser uma amostra de
um odor porque pode-se alterar com o tempo, e necessita de ser uma duradoura.

Cor
Estava-se a discutir se uma cor poderia só por si, ser uma marca (tratava-se da cor-
de-laranja para atividades no âmbito das telecomunicações). Acabou por decidir que
poderia, de facto registar apenas uma cor, visto que poderia de facto, ter caráter distintivo
(tendo de ter contudo alguns requisitos). Mas atenção que a cor tem de ser vista no seu
todo, no contexto, para ter capacidade distintiva. Foi com esta jurisprudência que se deu o
impulso legislativo para a alteração relativamente a esta matéria.

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6.- Patentes de Invenção
6.1.- Introdução
A primeira lei de patentes apenas surgiu no século XV, em Veneza, mas não se pense
que antes disso não havia quaisquer invenções. De facto, hoje o entendimento dominante
é que, a existência de um sistema de patentes incrementa a atividade inventiva, sobretudo,
torna possível, porque rentável, um certo tipo de pesquisas e investigação mais dispendiosa.
A verdade é que estas pesquisas não seriam realizadas se não houvesse, no horizonte, a
perspetiva de fazer uma exploração económica do invento em condições monopolísticas,
ao abrigo do direito exclusivo resultante da patente. As patentes de invenção são encaradas
como uma recompensa, em contrapartida do acréscimo de conhecimento partilhado com
a sociedade através da divulgação pública do invento.
Esta justificação, contudo, não é isenta de críticas. Há quem entenda que o sistema
de patentes está a “asfixiar a criatividade que deveria ser estimulada”, e há outros que
entendem que se considera desnecessário o estímulo à invenção, até porque é difícil medir
ou avaliar os efeitos que um sistema de patentes está a produzir (Cornish, Llewelyn,
Applin).
Pedro Sousa e Silva, refere que continua a ser entendimento dominante, que se não
houvesse patentes, haveria muito menos invenções, em prejuízo da Ciência, Economia e
da Sociedade. Porém, ele também admite que o direito das patentes se esteja a desvirtuar,
pois tem vindo a proteger, em larga medida, banalidades e conferir direitos exclusivos sobre
coisas triviais. Isto ao ponto de que, a atividade económica se começou a transformar num
“campo de minas”, em que é cada vez mais difícil não “tropeçar” em direitos exclusivos
sobre as realidades mais vulgares.
De qualquer forma, em certos domínios de conhecimento e em certas áreas de
atividade, é manifesto que o sistema de patentes constituí um fator decisivo para a
mobilização de fundos para a investigação científica e tecnológica.

6.2.- Conceito de patente


Uma patente de invenção é um título que confere um direito exclusivo de exploração
de um invento. Este direito é concedido pelo Estado, através de uma entidade
administrativa, que em Portugal é o INPI – Instituto Nacional de Propriedade Industrial
(sem prejuízo do papel do IEP – Instituto Europeu de Patentes, quando se trate de uma

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patente europeia), a quem cabe verificar se no invento estão reunidas das condições de que
a lei faz depender a concessão de patente. O invento pode ser:

 Produto novo;
 Processo novo de obter produto já conhecido;
 Nova utilização desse produto (sob certas condições);

No caso de o invento não ser patenteado, por o invento nunca ter pedido ou por não
ser suscetível de patente, nada impede que essa invenção seja utilizada por qualquer pessoa,
uma vez que, nesse caso, o invento pertence ao domínio público.
O inventor até pode optar por não patentear invenção, tentando resguardá-la através
do segredo comercial, que goza de tutela própria. Mas esta trata-se de uma proteção mais
precária e de duração indefinida, podendo cessar a qualquer momento, caso o segredo seja
divulgado publicamente (mesmo contra a vontade do inventor).
Uma alternativa intermédia, de que falaremos mais tarde, será a de proteger o
invento através dos modelos de utilidade.
A invenção patenteável – pré-requisito do caráter técnico
A patente tem por objeto uma “invenção” – solução de um problema específico no
domínio da tecnologia. Para uma invenção ser patenteável tem que preencher não apenas
os requisitos enumerados nos Artgs.50º e 54º CPI e 52º CPE (novidade, atividade inventiva
e aplicabilidade industrial), mas também o (pré)requisito do caráter técnico – o invento
deve ter por objeto um “ensinamento técnico”, ou seja deve indicar ao perito na
especialidade como proceder para resolver um determinado problema técnico utilizando
certos meios técnicos (decorre do 50º/2 CPI e 52º/1 CPE).
As conceções intelectuais apenas se tornam patenteáveis na medida em que tenham
sido incorporadas em aplicações técnicas (51º/1 CPI 52º CPE). Consequentemente, é
recusada proteção às descobertas, às teorias científicas a os métodos matemáticos, aos
materiais já existentes na natureza, às criações estéticas, às apresentações de informação e
aos projetos, princípios e métodos do exercício das atividades intelectuais em matéria de
jogo ou no domínio das atividades económicas – pois estas realidades por mais importantes
que sejam, revestem natureza abstrata ou intelectual, sem caráter técnico.
Assim, uma patente não é uma pura teoria. Trata-se de uma solução técnica para
um problema técnico – por exemplo, como tratar de determinada doença e encontra-se
uma solução técnica para resolver essa doença.

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O Artigo 51º comporta algumas exceções. Por exemplos os medicamentes, o que
faz é criar formulas químicas que não existiam na natureza, a base é a natureza, mas o
resultado vai além disso, daí poder pantear-se os medicamentos. Os programas de
computador, o software (programa de computador) não é suscetível de patente, mas já é
suscetível de patente, por exemplo, o hardware (quando se consegue fazer uma nova forma
de processadores, por exemplo). Esta opção legislativa não se deu tanto por causa da
natureza do software, mas antes à ideia de que os programas informáticos seriam melhor
protegidos por direitos de autor: o direito da patente é um direito de acesso restrito, sendo
necessário mostrar todo o acesso e ainda registar; ao invés, no direito de autor não é
necessário registo, e o prazo de duração é muito maior (na patente é apenas 20 anos).

Exceções à patenteabilidade
Há certas invenções, que abstratamente seriam patenteáveis, mas que o legislador
não admite patentear, por opção política ou legislativa. Deste modo, os artg.52º do CPI e
53º CPE excluem a patenteabilidade de inventos cuja exploração seja contrária à lei, ordem
pública, saúde pública e aos bons costumes, fornecendo um elenco exemplificativo, de
inventos não patenteáveis: processos de clonagem de seres humanos ou de modificação da
sua identidade genética geminal, as utilizações de embriões humanos para fins industriais
ou comerciais, ou processos de engenharia genética causando sofrimento a animais sem
utilidade médica substancial.
Nós somos uma sociedade com muitas preocupações éticas, mas tal não se verifica
em todos os países (ex.: Ásia), e o que está a acontecer é que a esmagadora maioria das
invenções feitas, são maioritariamente feitas na Ásia – uma vez que podem fazer outras
experiências, que na Europa são proibidas.
São igualmente excluídas, essencialmente por motivos éticos e de interesse público,
patentes sobre o corpo humano, as variedades de vegetais ou raças animais e os métodos
de tratamento cirúrgico ou terapêutico do corpo humano ou animal. O domínio da
Biologia e das Ciências médicas ditaram diversas exceções a esta regra no artg.53º CPI (a)
e b)).

6.3.- Função
A patente confere o seu titular o exercício exclusivo de uma atividade de conteúdo
económico. Este monopólio, justificado como a recompensa do inventor ou como
contrapartida da divulgação pública do invento, tem o objetivo de incentivar o esforço

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criador, ao viabilizar a sua renumeração, que é retirada do mercado, na medida em que
este absorva os produtos fabricados ao abrigo da patente.
Só na medida em que o inventor enriqueça o domínio público com conhecimento
técnico novo é que se justifica limitar a liberdade de atuação de demais agentes económicos,
proibindo-lhes temporariamente a exploração do invento. Por isso tem que se explicar de
uma maneira pormenorizada do que se trata o objeto (artg.62º/4). Há uma obrigatoriedade
de uma descrição técnica, uma vez que tal até pode proporcionar que outra pessoa consiga
criar uma outra invenção com base naquela, originando o registo de outra patente.
A solução tem também um caráter técnico, da qual resulta uma grande discussão
sobre o que isto significa – a tendência é para o suporte técnico que é exigido ter de ser um
essencial, ou seja, ter de estar apoiada na técnica ou tecnologia para poder ser patenteadas
aquilo.
Assim, a função da patente consiste em assegurar ao inventor a possibilidade de
este extrair do mercado a renumeração do seu esforço criativo, pondo-o temporariamente
ao abrigo da concorrência. Obviamente que a patente não lhe garante qualquer espécie de
renumeração, servindo apenas para criar condições especialmente propícias
(tendencialmente monopolísticas) para tal.
Atenção que, o exclusivo conferido pela lei apenas merece tutela nos casos em que
tal função possa ser afetada ou prejudicada. É com essa preocupação que o legislador limita
o exclusivo do titular das patentes, em casos como os do artg.103º e 104º - não se
justificando proibir atos que não impedem a exploração económica, nem afetam o direito
do inventor em ver renumerado o seu esforço.

6.4.- Requisitos de proteção


O pedido de patente consiste num requerimento, incluindo:

 Resumo – utilizado para efeitos de pesquisa;


 A descrição – visa dar conta detalhada do contexto da invenção (arte prévia e o
problema técnico em causa) e da sua utilidade; tem que conter pelo menos uma
explicação de um modo de aplicação da solução técnica que contém.
 Reivindicações – através de fórmulas verbais padronizadas, visam delimitar a
invenção que se pretende ver protegida.
o podem ser independentes, valendo autonomamente (ex.: 1. um material
luminescente com a composição x);

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o podem ser dependentes, constituindo exemplos da realização/utilização da
reivindicação principal (ex.: um material tal como descrito em 1.
Combinado com um substrato mineral.
 Desenhos – têm uma função auxiliar na interpretação da patente, sendo
frequentemente mencionados através de números na descrição e nas
reivindicações.

Por exigência legal, o texto das reivindicações é dividido em duas partes:

1. Um preâmbulo que mencione o objeto da invenção e as características técnicas


necessárias à definição dos elementos reivindicados;
2. Uma parte caracterizante, que expõe as características técnicas que, em ligação com
as definidas anteriormente, definem o âmbito da proteção solicitada.
a. A análise dos requisitos faz-se a partir desta parte.

Os requisitos da patenteabilidade são enunciados nos arts.54º a 56º CPI e 54º a 57º
CPE – novidade, atividade inventiva e a aplicabilidade industrial. A estes três requisitos,
alguns autores acrescentam, mais um: a descrição do invento de modo suficientemente
claro e completo, para permitir a execução por qualquer pessoa competente na matéria,
conforme é exigido pelos Artgs.62º, 75º/1 d) e 114º d) CPI – contudo, esta exigência não
constitui propriamente um requisito substancial do objeto de invenção, mas antes um
requisito formal.
 Novidade
Uma invenção é considerada nova, quando não estiver compreendida no estado da
técnica, o qual abrange tudo o que, dentro ou fora do país foi tornado acessível ao público
(por descrição, utilização, ou qualquer outro meio) ou foi descrito em pedidos de outras
patentes ou modelos de utilidade destinados a produzir efeitos em Portugal (artg.55º/1 CPI
e 54º/1 CPE). A novidade afere-se à escala mundial – ex.: basta que a descrição do invento
tenha ocorrido antes na Nova Zelândia para destruir a novidade da invenção.
Pode suceder que alguém invente algo que, sem o seu conhecimento, já antes tenha
sido inventado por outrem. Não é que deixe de ser uma invenção (produto da criatividade
humana), mas não será patenteável por carecer de novidade.
A nossa lei consagra um princípio de novidade absoluta: a novidade do invento é
medida à luz de toda a informação disponível na data do pedido ou prioridade da patente,
independente do modo, tempo ou do local onde ocorreu a divulgação.

2019/2020 Rita Nina – FDUC 119


Em rigor aqui, o que poderá ser provado, é a falta de novidade do invento, quando
se demonstra que este foi antecedido por outro invento semelhante, que faça parte do
estado da técnica na data do pedido (ou de prioridade) da patente. Mas para haver então
esta falta de novidade, é necessário que ambos se destinem a resolver, substancialmente, o
mesmo problema técnico – que constituam meios equivalentes para a resolução do mesmo
problema. Caso contrário a novidade do segundo invento não foi destruída, uma vez que
o contributo deste para o estado da técnica foi diferente do primeiro. Além disto, é
legalmente possível patentear um novo uso, na medida em que se esteja a resolver um
problema técnico nunca antes resolvido dessa forma (a novidade aí existe).
O momento relevante para se aferir da novidade da invenção não é necessariamente a
data do respetivo pedido, mas sim a da prioridade. Frequentemente as duas datas
coincidem, mas pode acontecer que não: ex.: alguém antes de pedir a patente em Portugal,
o titular pediu noutro país membro da CUP, dentro do prazo da prioridade (12 meses). O
facto de o titular já ter divulgado no estrangeiro o seu invento ao pedir uma patente, não
destrói a novidade para efeitos do posterior pedido nacional, desde que este ocorra nos
últimos 12 meses.
Mas o que é afinal o estado da técnica? Trata-se de todo o conhecimento que, em
qualquer parte do mundo, foi tornado acessível ao público em momento anterior à data
do pedido, ou da prioridade. Basta que o público tenha podido aceder à informação. É
irrelevante o modo de divulgação, a antiguidade dela, o idioma ou local onde ocorreu.

 Por “público” deve-se entender todo o universo de pessoas que não estejam
obrigadas perante o inventor a manter a informação em segredo. Ou seja, se o
inventor contar a um amigo, pedindo-lhe que mantenha a informação secreta, ou
se essa informação for conhecida de colaboradores contratualmente vinculados à
confidencialidade, não haverá divulgação ao público.
o Contudo, se alguma destas pessoas, ainda que ilicitamente, transmita a
informação a terceiros, ela torna-se acessível ao público, para efeitos de
aferição de novidade. Apesar disso, a divulgação mediante “abuso evidente”
poderá não ter esse efeito caso o pedido de patente seja apresentado
durante os 6 meses seguintes – artg.56º/1 a) CPI.

Já será relevante neste contexto, o grau de clareza ou completude da divulgação.


Repare que uma simples alusão ou referência à invenção não deve bastar para destruir a
novidade! Exige-se que tenha ocorrido uma “divulgação habilitante”, ou seja, uma

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revelação que preste informação suficiente para habilitar uma pessoa competente na
matéria, a pôr em prática o invento (“enabling disclosure” no direito britânico, quando
habilitar alguém a executar ou a pôr em prática a invenção).
O conceito do estado da técnica é fundamental, uma vez que, serve de padrão para
aferir a novidade, mas também para avaliar o requisito da atividade inventiva.
O artg.56º CPI dispõe, que não prejudicam a novidade da invenção:

a) As divulgações em exposições oficiais ou oficialmente reconhecidas nos termos da


Convenção Relativa às exposições internacionais, se o requerimento a pedir a
respetiva patente for apresentada em Portugal, dentro do prazo de 6 meses;
b) As divulgações resultantes do abuso evidente em relação ao inventor, ou seu
sucessor a qualquer título, ou de publicações feitas indevidamente pelo INPI, I.P;

Por último, note-se que, em Portugal, não está consagrado o período de graça, isto
é, um lapso de tempo anterior ao pedido de patente, dentro do qual o requerente pode
explorar ou divulgar o invento sem o fazer cair no domínio público. Deste modo, a
divulgação pelo titular implica a destruição da novidade da invenção. E mesmo que venha
a conseguir obter uma patente, ela poderá ser declarada nula mais tarde (114º a) CPI).

 Atividade inventiva
O requisito da atividade inventiva (“non obviosness” ou “inventive step”) estabelece
um patamar qualitativo respeitante ao mérito do invento. Uma invenção goza de
“inventividade” quando, para um perito na especialidade, não resultar de maneira evidente
do estado da técnica (artg.54º/2 CPI e 56º CPE).
O artg.54º/3 CPI determina que, a análise da atividade inventiva desconsidere o
conteúdo dos pedidos de patente e de modelos de utilidade a produzir efeitos em Portugal
ainda não publicados à data de pedido da patente, dado que os mesmos não podem influir
sobre a atividade criativa do inventor – o estado da técnica aqui considerado é diferente do
que no requisito da novidade.
Na verdade, este requisito trata-se de um com uma grande dose de subjetividade. Os
peritos não são todos iguais, pelo que aquilo que é evidente para um, pode não o ser, para
outro. Exige-se um especialista no ramo, mas não alguém especialmente dotado ou acima
da média, bastando um técnico competente, adequadamente experiente e atualizado.
Não é fácil determinar aquilo que é ou não “evidente”. Mas exige-se ao inventor uma
certa dose de criatividade ou imaginação, pois a invenção tem que ser algo mais que a

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dedução. Se a solução encontrada for a que um técnico normal tivesse previsivelmente
chegado usando os seus conhecimentos disponíveis, então não há atividade inventiva – ao
inventor não chega “transpiração: exige-se alguma dose de “inspiração”.
A doutrina e a jurisprudência têm desenvolvido alguns métodos ou técnicas de
avaliação da atividade inventiva, mas a dificuldade de avaliação tem levado os tribunais a
recorrer à prova pericial, apoiando a sua decisão no parecer de especialistas na matéria a
que respeita a patente. Existem alguns indícios secundários de inventividade: efeito técnico
inesperado, sucesso comercial da invenção, ceticismos dos especialistas quanto à
viabilidade da solução, etc.
De qualquer forma, a verdade é que este requisito tem sido levado a cabo de forma
bastante benevolente: na prática, um invento que goze de novidade apenas
excecionalmente deixará de ser qualificado como inventivo. Segundo Pedro Sousa e Silva,
tal poderá a levar que na prática estes dois requisitos sejam praticamente sinónimos.

 Aplicabilidade industrial
De acordo com o artg.54º/4 CPI, o invento é suscetível de aplicação industrial se o
seu objeto puder ser fabricado ou utilizado em qualquer tipo de indústria ou na agricultura.
Este requisito exprime a ideia de que o invento não pode situar-se apenas no plano abstrato
das criações intelectuais, devendo ter uma concretização tangível e concreta. É necessário
que a solução técnica a patentear possa ser executada com um grau de homogeneidade e
repetibilidade suficientes para tornarem a invenção apta à produção em série.
Este requisito na prática é muito pouco utilizado. Porque, na verdade não se sabe
bem qual é que a aplicabilidade que terá no futuro, e há várias legislações estrangeiras que
o excluem. Porém, ele continua a ser de alguma utilidade, exclui aspetos do domínio do
lunático – tentativas de patentear ideias que manifestamente não atingem os fins que se
propõem, tais como máquinas destinadas ao movimento perpétuo.

Caso 14- O caso do método de análise filosófica


Arnaldo, filósofo da FLUC, pretende registar uma patente que tem por objeto o seu
método de análise filosófica da realidade atual. Poderá fazê-lo?

Resolução- Em primeiro lugar há que ter caráter técnico, e o método filosófico atual não
parece ter esse requisito. Além disso, não se tem aqui uma invenção que permita resolver
um problema técnico, uma descoberta e uma invenção não são a mesma coisa. Veja-se que

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as próprias teorias científicas, o próprio artg.51º/1 a), afasta do objeto das patentes as teorias
científicas, e a verdade é que o método da análise científica aproxima-se mais de uma teoria
cientifica. Como tal, não é algo que possa ser objeto de uma patente.
Os requisitos da patente estão previstos no artg.50º.

 Capacidade inventiva
 Aplicabilidade industrial

O artg.54º tem um aprofundamento destes requisitos:

 A invenção tem de ser nova, e ela é considerada nova quando não está
compreendida no estado da técnica. Tem de haver um certo grau de surpresa, de
inesperado do que se está a descobrir, que não seja algo que flui naturalmente do
estado da técnica, porque se for, então não haverá verdadeiramente uma novidade.
 Suscetibilidade de aplicabilidade industrial (nº4). É evidente que parece que este
método de análise filosófica, não poderá ser utilizado, nem na indústria, nem na
agricultura, só por si.

É verdade que podemos ter patentes de produto e patentes de processo, mas agora
aqui não há então a possibilidade de registar este método.
Caso 15- O caso do tapa-gravatas
Bernardo inventou um produto invisível que permite proteger as gravatas enquanto se
come sopa. Eufórico, contou aos amigos Carlos e Diana, seus companheiros de sueca.
Estes últimos contaram isso mesmo a Eduardo, que tem um ódio secreto por Bernardo.
Eduardo quer saber se, pelo facto de Bernardo ter revelado nos termos referidos o que
inventou, está afastada a possibilidade de este registar uma patente que tenha aquela
invenção por objeto. O que lhe diria?

Resolução- Em primeiro lugar, temos de ver se depois do que aconteceu, Bernardo pode
registar a patente. A partir do artg.50º (objeto de patente), qual será o requisito que se
pretende discutir aqui? Eduarda está a falar dos requisitos da patenteabilidade, mais
precisamente a novidade da invenção. Pode ser objeto de patente as invenções novas e o
nº1 do artg.54º dispõe que uma invenção será nova quando não estiver compreendida no
caso da técnica. Houve ou não esse tornar acessível ao público a invenção? Sim, quando
avaliamos a novidade da invenção ela não é aferida apenas relativamente aquilo que já
esteja registado – artg.55º/2, é considerado compreendido no estado da técnica, desde que

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aquela invenção já esteja no pedido de registo, já deixou de ser novidade, pois já está
incluída no estado da técnica. O estado da técnica é apurado em termos mundiais. Mas
não houve este pedido de registo.
Temos de questionar se a divulgação feita pelo Bernardo feita aos amigos, se pode
chamar uma divulgação habilitante. Tem de se averiguar, se pela divulgação, se consegue
reproduzir aquilo que o Bernardo fez. O bernardo ao dizer que inventou um produto que
protege gravatas quando come sopa, não permite a ninguém reproduzir o produto. Assim,
não houve a introdução do estado da técnica da invenção. Se pelo contrário, ele contou
pormenores de como o produto funciona, então aí já se poderia reproduzir o produto,
assim já tinha sido uma divulgação habilitante. E isto porque ele contou aos amigos, e os
amigos contaram ao Eduardo, que pode revelar às restantes pessoas – porque o facto de o
Bernardo contar aos amigos não se trata de uma divulgação ao público, mas o facto de
estes terem contado ao Eduardo, e de este depois poder divulgar (com os pormenores), já
poderá tornar-se numa divulgação ao público.

6.5.- Titularidade
O direito à patente, pertence ao respetivo inventor ou aos seus sucessores por
qualquer título (artg.57º CPI e 60º CPE). No entanto, a maior parte das invenções são hoje
feitas no âmbito de empresas ou universidades que têm ao seu serviço equipas de
investigadores, que “são pagos para inventar”. De quem é a invenção? Existem normas
específicas para regular os casos de invenções realizadas no âmbito de execução de
contratos de trabalho:

 A invenção pertence à entidade patronal, quando a atividade inventiva esteja


contratualmente prevista – artg.58º CPI.
o Quando a invenção do trabalhador esteja contratualmente prevista, e
especialmente renumerada, o direito pertence à empresa, sem que esta
tenha de pagar outra contrapartida, para além daquela prevista no contrato.
 Esta renumeração especial pode ser fixa, pago independentemente
dos resultados, ou pode consistir num prémio ou compensação,
cujo pagamento depende dos frutos do trabalho. O importante é
que esta renumeração esteja claramente “assinalada” no contrato,
pois a lei exige uma renumeração específica.

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o Faltando alguma destas condições, a empresa tem o direito de opção de
compra, mas o trabalhador tem direito a uma renumeração equitativa
(artg.58º nº2 a 6).
 Por remissão do artg.58º/7/8, este regime aplica-se também às invenções feitas por
encomenda e às relações entre o Estado e os seus funcionários e servidores, com
exceção de trabalhador ou colaborador pessoa coletiva pública em cujo escopo
estatutário se incluam atividades de investigação e de desenvolvimento (sujeitas às
regras do artg.59º).

Na hipótese de a patente ficar da empresa, o nome do trabalhador poderá ficar


associado à patente, ele tem este direito, a ser reconhecido como o inventor. Mas também
ele terá direito a impedir a empresa mencione o seu nome na patente.
Por último, a obtenção indevida de uma patente sobre uma invenção pertencente
a outrem constitui crime, previsto e punido pelo artg.325º, com pena de prisão até 1 anos,
sem prejuízo de transmissão a favor do inventor.

Caso 16- O caso do trabalhador inventor


José, investigador contratado pela Empresa X, inventou uma nova máquina para produzir
espuma anti-fogo. Quando diz ao seu chefe de Departamento que vai registar uma patente
para o invento, aquele proíbe-o de o fazer, pois afirma que, por natureza, o invento
pertence à Empresa X e esta última é que pode pedir o referido registo. Será assim?

Resolução- O artg.58º é aqui decisivo. Temos que dar atenção aos requisitos presentes no
artigo. Desde logo, José como investigador contratado, tem-se que se ver se a atividade
inventiva esteja prevista no trabalho de José (o que é muito provável, sendo José, um
investigador). Se previa a atividade inventiva, e se a descoberta foi feita durante a duração
do contrato de trabalho, nomeadamente, nas horas de trabalho. Segundo o artg.58º/1, se
estiverem preenchidos todos os requisitos a patente pertence à empresa.
Depois, temos de ver se há alguma renumeração pela atividade inventiva no contrato,
se não estiver uma especialmente prevista, será uma dada depois. O nº6 do artg.58º diz
precisamente que se as partes não chegaram a acordo, devem recorrer à arbitragem.
O artg.58º/3 dispõe que, independentemente das situações previstas no nº2, se a
atividade inventiva não estiver prevista no contrato (foi o que aconteceu no nosso caso), e
se ela se integrar na atividade da empresa, então a empresa tem o direito de opção

2019/2020 Rita Nina – FDUC 125


relativamente ao registo (e terá que mais uma vez, renumerar o trabalhador) – direito de
opção à patente. Se a atividade inventiva, for então durante o contrato, o trabalhador terá
de avisar a empresa nos termos da alínea d) – senão poderá ser responsabilizado. E a
empresa irá então decidir no prazo de 3 meses, quanto ao direito de opção à patente. Esta
solução acaba por ser justa, pois foi por isto que o trabalhador foi contratado, e além disto,
ele utilizou os recursos da empresa para a invenção e utilizou também a experiência da
empresa para tal.

6.7.- Âmbito de proteção


Duração
O direito exclusivo resultante da patente vigora um máximo de 20 anos, a contar
da data do pedido, na condição de que vão ser pagas as taxas anuais cobradas pelo INPI,
a partir da 5º anuidade, de valor crescente até à 20º anuidade. Decorrido este prazo, a
patente extingue-se por caducidade, cessando automaticamente o direito exclusivo do seu
titular.
Porém, embora este prazo de 20 anos comece a correr na data do pedido, a
proteção decorrente da patente não nasce logo nesse momento. Entre o pedido e a
concessão da patente, desenrola-se um processo administrativo moroso. Sendo o despacho
o ato constitutivo do direito de patente, até à decisão definitiva daquele procedimento ainda
não existe um verdadeiro exclusivo que o titular possa valer contra terceiros. Poder-se-ia
afirmar então, que o titular ficava numa situação desprotegida resultante dessa demora –
até porque a comercialização e produção de alguns produtos, como medicamente, estão
sujeitos a autorizações ou homologações prévias das autoridades públicas, o que contribui
para retardar a sua exploração económica. Estas circunstâncias levaram à instituição de dois
mecanismos compensatórios:

 Regime de proteção provisória dos direitos de propriedade industrial (artg.5º CPI),


que confere ao requerente um direito precário e condicional, que lhe permite
demandar judicialmente os usurpadores do seu direito em formação pedindo
desde logo uma indemnização, dependente da concessão definitiva da patente.
 Certificado complementar de proteção, regulado nos Artgs.116º a 118º CPI, sendo
este um mecanismo de prorrogação do prazo de duração da patente.
o Esta possibilidade é apenas permitida para os medicamente e produtos
fitofarmacêuticos, tendo em conta que estes, carecem de uma autorização

2019/2020 Rita Nina – FDUC 126


de introdução no mercado (AIM), que reduz ainda mais, o tempo
disponível para o titular da patente explorar economicamente o monopólio.
 A prorrogação tem uma duração correspondente ao tempo que
mediou entre a data do pedido da patente e a data da concessão da
AIM; sendo que o período da validade não pode exceder 5 anos a
contar da data em que produzir efeitos.
 Pode beneficiar de uma prorrogação adicional de 6 meses, quando
respeitar a medicamentos de uso pediátrico.
o Os certificados devem ser pedidos no INPI, no prazo de 6 meses a contar
da data em que o produto obteve a AIM, ou da data de concessão de
patente, se esta for posterior.

Âmbito substancial de proteção


Tendo uma patente, o titular poderá gozar plenamente o monopólio de exploração
que a lei lhe confere, fazendo valer os seus direitos exclusivos.
A patente permite-lhe, impedir terceiros de explorar a invenção em qualquer parte
do território nacional, opondo-se a todos os atos que constituam violação do seu direito
(artg.102º/2 CPI). Prevê-se agora a possibilidade de o titular da patente atuar contra a
“oferta ou disponibilização a qualquer pessoa que não tenha o direito de explorar a
invenção patenteada dos meios para executá-la no que se refere e um seu elemento
essencial, se o terceiro tem ou devia ter conhecimento de que tais meios são adequados e
destinados a essa execução” (102º/3 CPI), sendo que, a esta hipótese não se aplica se os
meios forem produtos que se encontrem correntemente no mercado, salvo se o terceiro
induzir a pessoa a quem faz a entrega a violar a patente (102º/4 CPI). No fundo, está em
causa a prevenção de um risco e não a prática de um ilícito a título próprio pelo fornecedor
desses meios. Daí que a hipótese não exige culpa e não implique necessariamente a
responsabilidade civil do fornecedor.
Em caso de violação do seu exclusivo, o titular da patente poderá lançar mão dos
meios repressivos previstos nos artgs.337º a 350º CPI, nomeadamente instaurando ações
de condenação, acompanhadas ou não de procedimentos cautelares ou apresentando
denúncias com vista à instauração de procedimentos criminais ou contraordenacionais,
pela prática das infrações tipificadas nos Artgs.318º, 325º e 333º CPI.
Mas quais são os limites objetivos deste “direito de proibir”? O âmbito do exclusivo
é determinado pelo conteúdo das reivindicações, servindo a descrição e os desenhos para
as interpretar (98º/1 CPI). As reivindicações são a medida da inovação e consequentemente
2019/2020 Rita Nina – FDUC 127
a medida da proteção. Sendo assim, em caso de suspeita de infração ao direito de patente,
é à luz de reivindicações que se avalia a conduta do potencial infrator. Haverá infração, se
um terceiro utilizar um produto ou um processo que esteja abrangido por uma ou mais
reivindicações reconhecidas aquando da concessão da patente.
Ora, isto é, quando se compara dois produtos ou processos para saber se um deles
constitui violação do uso exclusivo a patente que recai sobre o outro, apenas há que atender
à parte inovadora do produto patenteado, pois é apenas essa que beneficia da proteção. As
restantes qualidades ou características do produto que incorpora o invento, pertencem ao
domínio público.

As patentes de processo
Quando alguém obtém uma patente de processo de fabrico de um dado produto,
adquire o direito de impedir terceiros de empregar o mesmo processo para fabricar o
produto (98º/2 CPI). Porém o titular não se poderá opor ao fabrico desse produto através
de um processo alternativo, já conhecido ou inédito. Neste caso o seu direito não está a ser
violado, pois versa apenas sobre uma das formas possíveis de fabricar o produto.
Neste tipo de situações, quando ocorre um litígio, é crucial saber quem tem o ónus
da prova relativamente ao processo que foi empregue para fabricar o produto suspeito de
contrafação. É claro que o titular da patente, pode sentir grandes dificuldades quanto à
prova, quanto mais não seja por falta de acesso às instalações do terceiro, ou ao
desaparecimento de meios de prova. Já a prova de diversidade do processo será muito
mais fácil, uma vez que a única coisa que o alegado infrator terá de apresentar é a
documentação e demais material probatório necessário para tal. Deste modo, o artg.99º
prevê uma presunção favorável ao titular da patente, que apenas funciona relativamente a
patentes de processo de fabrico de produtos novos. Será então o terceiro a fazer a prova
em contrário, mostrando que, fabricou um produto por um processo diferente daquele
protegido pela patente.

Caso 17- O caso das proteínas


Francisco inventou um processo de produção de uma proteína que está protegido por uma
patente. Gualter inventou um novo processo de produção da mesma proteína. Francisco
quer saber se a sua patente permite impedir Gualter de registar uma patente que tenha por
objeto o processo que este inventou. O que lhe diria?

2019/2020 Rita Nina – FDUC 128


Resolução- É um caso relativo a patente de processo, para a produção de uma proteína.
Discute-se se Francisco poderá inventar a sua patente, e os direitos que dela resultam, para
impedir o registo de um novo processo. À partida, é possível obter o registo de um processo
que permite atingir produtos, que também é possível chegar a eles através de outros
processos? É possível registar dois ou mais processos de produção, desde que sejam
processos que constituam uma invenção nova e tem de preencher os restantes requisitos
(resolução de um problema técnico, atividade inventiva, suscetibilidade de aplicação
industrial).
A questão é de saber se há alguma forma de o Francisco se opor ao registo. Temos
de fazer a distinção entre duas situações diferentes: ou o processo inventado por Francisco
foi o que permitiu pela primeira vez chegar àquela proteína; ou não foi isso que aconteceu.
Isto é importante por causa do artg.99º, a proteção que o Francisco consegue obter será
maior se, na realidade, foi graças ao seu processo se alcançou pela primeira vez aquela
proteína. O artg.99º dispõe que, se o Gualter na realidade alcança a mesma proteína através
do processo, é o Gualter que tem o ónus da prova que aquela proteína foi alcançada por
um processo novo. À partida, os dois processos podem ser protegidos por uma patente,
mas se efetivamente o Francisco inventou um processo que permitiu atingir aquela proteína
ele vai beneficiar de uma vantagem em termos de prova. Teria que ser o Gualter a provar
que atingiu aquela proteína com um processo diferente do Francisco. Isto é assim, porque
se estamos a falar de um processo da produção, tudo vai depender daquilo se procedeu
nas instalações do Gualter, e o Francisco teria muito mais dificuldade em aceder às
instalações do Gualter para provar que o processo dele adveio do processo do Francisco.
É uma regra para permitir superar os entraves fácticos que conduziram à produção de
prova.
Se o primeiro processo é que permitiu obter o produto novo, então o Francisco vai
beneficiar desta presunção que resulta do 99º. Evidentemente, se o Gualter não conseguir
ilidir a presunção, considerar-se-á que ele está a violar a patente do Francisco – copiando
o processo protegido pela patente do Francisco.
Nota: o artg.91º faz referência ao âmbito de proteção da patente: a patente protege no
âmbito das chamadas reivindicações. É essa reivindicação que vai definir a proteção, se
aquela realidade faz constar nesse âmbito.
Nota: tem havido uma grande litigiosidade relativamente a patentes de medicamentos. Há
que ter em atenção que, a duração da patente é de 20 anos, mas acontece, porém, que no
caso dos medicamentos, há um problema sério, pois para os medicamentos serem

2019/2020 Rita Nina – FDUC 129


comercializados, é necessária uma autorização de introdução ao mercado, porque estamos
a falar de algo que pode colocar a vida das pessoas em risco. Quando alguém pede o registo
da patente, significa, que até poer começar a utilizar o medicamente já pode ter passado
muito tempo do registo da patente até conseguir retirar proveitos económicos daquele
medicamento. Aqueles 20 anos teóricos podem-se reduzir muito. Por isso é que nos
Artgs.116º e ss, vem-se estabelecer a possibilidade de pedir um certificado complementar
de proteção – que vem dar mais tempo de proteção do medicamento (sendo aí vistos os
efeitos colaterais, por exemplo).

Limites de proteção
Para além dos limites objetivos que resultam do âmbito das reivindicações, a
exclusividade de que goza o titular de uma patente tem ainda outros limites, que resultam
de imperativos de interesses públicos, e da natureza e da função destes direitos privados.
Deste modo, importa assinalar as exceções enunciadas no artg.103º/1 CPI, que dispõe que
os direitos conferidos pela patente não abrangem:

a) Os atos realizados num âmbito privado e sem fins comerciais – é necessário estes
dois requisitos cumulativos. Ex.: se alguém, produz uma grande quantidade de
exemplares de um produto patenteado e os distribui gratuitamente pelo público,
apesar de não haver uma finalidade comercial, o titular da patente poderá ser
manifestamente lesado com isto.
b) A preparação de medicamentos feita no momento e para casos individuais,
mediante receita médica nos laboratórios de farmácia, nem os atos relativos a
medicamentos assim preparados – esta tem hoje uma menor importância, tendo
em conta que é cada vez mais rara a preparação de medicamentos em farmácia.
c) Os atos realizados exclusivamente para fins de ensaio ou experimentais, incluindo
experiências para preparação dos processos administrativos à aprovação dos
produtos pelos organismos oficiais competentes – esta previsão assume uma
enorme importância estratégica, pois permite realizar livremente investigação a
partir de conhecimento técnico abrangido pela patente, que pode acabar por gerar
novas patentes.
d) A utilização de material biológico para fins de cultivo ou descoberta e
desenvolvimento de novas variedades vegetais – trata-se da exceção do produtor de
variedades vegetais, que, conjugada com o previsto no nº3 deste 103º, lhe permitirá
produzir e comercializar essa variedade.
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e) Atos relacionados com a utilização a bordo de navios de outros países membros da
União ou da OMC, ou de veículos de locomoção terrestre ou aérea desses países,
quando estes meios de transporte entrarem temporária ou acidentalmente em
território nacional – visa permitir a livre circulação internacional dos meios de
transporte.
f) Prevê-se ainda a possibilidade de um agricultor utilizar para fins agrícolas o produto
da sua colheita para fins de reprodução pi multiplicação na sua exploração (103º/1
h) CPI), bem como de animais protegidos ou outro material de reprodução animal
– desde que os materiais em causa tenham sido vendidos ou comercializados de
outro modo ao agricultor, ao titular da patente ou com o seu consentimento.
g) A fim de garantir que as utilizações livres estabelecidas na diretiva/24/CE relativa à
proteção de programas de computador por direito de autor, transposta em Portugal
pelo DL 252/94, de 20 de Outubro, não são neutralizadas pelo direito de patente,
o legislador consagra que ainda são uma exceção relativa aos atos e a utilização das
informações obtidas em termos permitidos pela legislação vigente me matéria de
proteção jurídica dos programas de computador, nomeadamente pelas respetivas
disposições em matéria de descompilação e interoperabilidade (103º/1/j) CPI).

Outra exceção a referir prende-se com a inoponibilidade da patente relativamente às


invenções independentes anteriores à data do pedido ou da prioridade, prevista pelo
artg.105º CPI. Esta norma permite que um terceiro de boa fé, que tenha chegado pelos
seus próprios meios ao conhecimento da invenção e a utilizava ou fazia preparativos sérios
e efetivos com vista a tal utilização, possa prosseguir ou iniciar a utilização da invenção, na
medida do seu conhecimento anterior. No entanto, esta possibilidade excecional, e
dependente de prova, cujo ónus recai sobre o terceiro, apenas permite uma utilização para
os fins da própria empresa.
Por fim, o uso exclusivo do titular está sujeito à regra do esgotamento dos direitos,
que opera em relação aos produtos abrangidos pela patente, após a sua comercialização no
território do Espaço Económico Europeu, feita pelo titular da patente ou com o seu
consentimento (114º).

6.8.- Exploração da patente

2019/2020 Rita Nina – FDUC 131


O nosso código impõe ao titular da patente uma obrigatoriedade de exploração do
invento (artg.107º), devendo comercializar os resultados obtidos por forma a satisfazer as
necessidades do mercado nacional:

 Diretamente – fabricando e comercializando os produtos patenteados ou utilizando


o processo protegido;
 Indireta – celebrando contratos de licença, que ficam desse modo autorizados a
praticar atos de exploração que a lei reserva de modo exclusivo ao titular;
 Alienar o direito de patente, através de um contrato de transmissão (artg.30º e 31º
CPI).

Não se obriga, contudo, a uma obrigação de produção no território nacional que,


além do mais seria contrária ao Direito da União Europeia.
Na falta ou insuficiência de exploração da invenção patenteada, por parte do titular,
qualquer interessado poderá requerer ao INPI que o autorize a explorar esse invento,
independentemente da vontade do titular, mediante o pagamento de uma renumeração
adequada – licenças obrigatórias (108º a 113º CPI). Contudo, este mecanismo reveste
muito pouco interesse prático.
O titular pode ser privado de patente mediante expropriação por utilidade pública,
nos termos do artg.106º CPI, se a necessidade de vulgarização da invenção, ou da sua
utilização pelas entidades o exigir.
A patente também pode ser objeto de penhora e posterior venda em processo
executivo, podendo ser dada em garantia de obrigações, ao abrigo do disposto no artg.6º
CPI.

6.9.- Extinção da patente


O direito de patente pode-se extinguir de várias maneiras:
 Caducidade – opera automaticamente, podendo ocorrer antes do termo daquele
prazo, caso deixem de ser pagas as taxas anuais (36º CPI)
 Declaração de invalidade, quando ocorre alguns dos motivos de nulidade ou de
anulabilidade, previstos nos Artgs.32º e 33º CPI.
 Fundamentos específicos de nulidade das patentes enunciados no artg.14º (pode
ser declarada a tempo inteiro):
o Falta de requisitos de patenteabilidade;
o Insusceptibilidade de proteção do seu objeto (artg.50º, 51º, 52º)
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o Quando a invenção ainda não tenha sido descrita de forma a permitir a sua
execução por qualquer pessoa competente na matéria.
o Título ou epígrafe dado à invenção abrange objeto diferente.
 Pode ser declarada a invalidade parcial da patente quando ocorra a invalidade de
parte das reivindicações (115º CPI).

7.- Modelos de utilidade


Qual a diferença entre estes e patentes? Intrinsecamente, enquanto tais são idênticos
e são tão que o legislador dispõe que a mesma invenção pode ser objeto de patente e de
modelo de utilidade. Isto parece não fazer muito sentido, e de facto era assim que
funcionava antigamente – a patente era a mesma coisa, com uma tutela mais extensa do
que o modelo de utilidade. Deste modo, ninguém queria o modelo de utilidade.
Tradicionalmente os modelos de utilidade são descritos como uma “pequena patente”.
Atualmente não é assim: o âmbito temporal nas patentes é 20 anos, e nos modelos
de utilidade é só 6 anos. O tempo de utilidade, justamente porque é menos na extensão,
tem um processo de conversão mais ligeiro e mais rápido. É mais fácil de obter um modelo
de utilidade do que uma patente. Assim sendo, a pessoa tem de ponderar se quer optar
pela celeridade sobre a invenção ou se quer uma tutela bastante maior e se sujeita a um
processo mais demorado.

8.- Desenhos ou modelos


A aparência dos produtos é um dos fatores que mais decisivamente pesa nas escolhas
dos consumidores. A primeira impressão, quando favorável, predispõe o cliente a avaliar
positivamente o produto, à luz dos demais critérios, influenciando consciente ou
inconscientemente, todo o processo de decisão que conduz à compra. Por isso, as
empresas investem crescentemente na criação de novos modelos de produtos e na
conceção de novos padrões decorativos. Mas todo esse esforço decorativo, e os
investimentos que o suportam necessitam de proteção contra as imitações – é aqui que
entra os desenhos ou modelos.
Previstos no artg.173º CPI, há indústrias hoje cheias de desenhos e modelos, por
exemplos a indústria automóvel (assentos, tabliet, etc.). Não se trata de uma marca, está-se
a tutelar uma aparência estética de um produto (cor, formas, etc.). Não se tutela algo que
não estava no estado da técnica, o que se tutela é a singularidade: olhando para aquele

2019/2020 Rita Nina – FDUC 133


desenho, consigo distinguir especificamente aquele produto de outro. A singularidade é o
critério de mais difícil aplicação no caso.
Há indústrias que não assentam na inovação, mas podem ter formas e aparências
singulares, e ter o modo exclusivo de tal dá-lhes uma vantagem enorme, porque aquele
bem é verdadeiramente um exclusivo.

2019/2020 Rita Nina – FDUC 134


Capítulo VI – Títulos de crédito
Dos títulos de crédito em geral
1.- Sobre uma noção de título de crédito
A lei faz referência a títulos de crédito, tal como o código. Porém, a nossa lei não
dá uma noção de título de crédito e não existe entre nós um regime legal unitário e
completo que seja de aplicar depois de realizada a qualificação de um documento como
título de crédito e que seja de aplicar a todos. Por isso, existem diversas noções de títulos
de crédito.
No que diz respeito a este capítulo inicial, vamos começar com uma noção de título
de crédito, clássica de início do século XX (Vivante), mas que tem elasticidade para se
adequar aos tempos atuais e contém uma conotação pedagógica. Há uma grande variedade
de títulos de crédito, que nos permitirão classificar grandes tipos de crédito, que por sua
vez, têm regimes jurídicos que nos permitem encontrar notas comuns que nos levam à
noção de títulos de crédito.
Um título de crédito é um “documento (que não tem de ser necessariamente em
papel, vai depender do regime jurídico em causa – grande parte é), necessário para exercitar
um direito literal e autónomo nele mencionado” (Vivante). Estamos a dizer que é isto que
se retira do regime jurídico, não se trata de nenhuma abstração, é verdade que é feita uma
certa abstração, mas essa é feita a partir dos vários regimes jurídicos do título de crédito.
Para este autor, o título de crédito é um documento necessário para o exercício do direito,
e esse direito é literal e autónomo. Quando se diz que o direito representado no título é
literal ou autónomo, o que estamos a falar é de uma literalidade ou de uma autonomia,
que resulta daquele documento! Não tem de ser absoluta, tem é uma certa literalidade ou
autonomia. Aspetos principais a reter da noção:

 Esta noção parte do regime jurídico.


 Esta noção parte também do momento em que o portador do documento vai
exercitar o direito mencionado no documento.

Ascarelli por sua vez, criticou a noção de Vivante por considerar que a mesma
partia exclusivamente dos regimes jurídicos de cada documento em causa, e não da
realidade para que esses regimes tinham sido pensados. Ascarelli dizia que a nota
dominante é colocada no momento da circulação: “documento socialmente considerado
como destinado à circulação que ateste a qualidade de sócio de uma sociedade por ações”.
Esta noção é muito menos precisa, estamos a partir de uma conceção social, a forma como

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uma comunidade encara o documento. Isto acaba por ser muito impreciso, porque
obviamente que não há uma máquina para determinar a consideração de uma determinada
sociedade.

Ferri, coloca agora a tónica não na consideração social, mas na vontade de quem
cria o documento, se o emitente do documento o destinava à circulação. É impreciso à
mesma, uma vez que estamos a depender da vontade do sujeito, sendo que por vezes é um
pouco impossível saber da vontade do sujeito.
Há muitos autores alemães que escrevem sobre esta matéria, como Brunner
(Alemanha): “o documento que incorpora um direito de caráter privado de tal forma que
para o exercício do mesmo é necessária a posse do documento”. O que ele destacava era,
a incorporação de um direito de caráter privado, e o momento necessário para o exercício
do direito (era necessário ter o documento na posse para exercer o direito). Quanto à
incorporação do direito no papel, esta também era importante.
Um outro autor alemão, Ulmer, criticou brunner por último autor acentuar
somente o momento do exercício do direito. Ulmer, por sua vez, realça a vertente da
disposição – disposição do direito através da disposição do documento (realça-se o
momento da transmissão/disposição do direito).
Não obstante as críticas e alternativas enunciadas, reconhecemos na noção de
Vivante méritos descritivos e um alto valor pedagógico, que permitem a sua utilização para
clarificar o regime dos títulos de crédito. Por isso a exposição que se segue recorrerá com
frequência a essa noção.

2.- O título de crédito é um documento necessário para o exercício do direito


nele mencionado

Lendo a noção de título de crédito que Vivante elaborou, verificamos que a


primeira nota contida na mesma é a de que o título de crédito é um documento. Esse
documento era, na época em que Vivante escrevia, um documento em papel.
Se o documento surge como necessário para o exercício do direito, nele
mencionado, então aquele documento desempenha uma função de legitimação. O
documento é necessário para o exercício do direito nele mencionado porque “enquanto o
título existe, o exercício do direito está subordinado à detenção e exibição do próprio

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título”. Esta relação especial entre o direito e o documento é que leva os autores a falar de
uma incorporação do direito no título. Vivante dizia, que o documento era necessário para
o exercício do direito porque, existindo título, o credor deve exibi-lo para exercitar
qualquer direito nele mencionado. Por exemplo, conhecimento de carga é normalmente
feito pelo capitão de um navio a dizer que foi carregado, e este é um título de crédito – o
direito que o portador tem, é mostrar este conhecimento para receber a mercadoria (direito
à mercadoria).
Evidentemente, este documento necessário para o exercício direito, vai tornar mais
fácil a circulação dos direitos em causa, porque este documento vai conferir uma especial
proteção – assim, a função do documento não é apenas enquanto meio para permitir o
exercício do direito, mas sim também a de particular tutela de posição daquele que estava
legitimado para o exercício. O portador mediato daquele documento vai beneficiar dessa
proteção – é lhe aplicado regras que vão proteger os ulteriores portadores do documento.
E como há esse regime jurídico que protege, em certa medida, o portador mediato, vai-se
facilitar a circulação do documento e o direito mencionado no mesmo.
Este documento tem também uma função constitutiva da literalidade e da
autonomia do direito – sem o documento, o direito mencionado lá, não beneficia dessa
literalidade e autonomia. Só beneficia dessa autonomia e literalidade a partir do momento
da circulação. Esta literalidade e autonomia visam proteger os ulteriores portadores.

3.- Literalidade do direito mencionado


De acordo com o princípio ou característica da literalidade, “a letra do título é
decisiva para a determinação do conteúdo, limites e modalidades do direito”. No entanto,
esta literalidade apenas vale quando se começa a circular. Se o A, portador da letra,
endossar a letra a B, B passa a estar nas relações imediatas – há literalidade. Trata-se de
permitir que um terceiro possa depositar confiança naquilo que o título diz. Desde logo,
esse terceiro não teria, em regra, possibilidade de saber o que foi combinado para além do
texto do título.
Na definição de Vivante, o título de crédito seria o documento necessário para
exercitar o direito literal nele mencionado. Os títulos de crédito caracterizar-se-iam por
aquela literalidade. Mas, se a letra é decisiva, isso não significa que a letra do título tenha
de dizer tudo.
Em relação às ações, a literalidade é muito reduzida, é uma literalidade por
remissão, tanto que, há quem entenda que não faz sentido falar-se nesta característica para

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o título de ação. Porque o documento que representa as ações, vai remeter de forma
meramente tácita ou indireta, para os estatutos da sociedade, muitos dos direitos do
acionista não estão todos enunciados no título da ação, mas são encontrados por referência
nos estatutos da sociedade, por exemplo. Por isso, fala-se de uma literalidade “imperfeita
ou incompleta”.
Quando olhamos para os títulos de crédito estamos a identificar na sua caracterização
uma série de aspetos que resultam do regime legal. Quando dizemos que um título
incorpora um direito, tal é uma certa literalidade. Uma das normas onde se pode ver uma
certa literalidade é a do artg.17º da lei uniforme. No caso dos cheques iremos encontrar
uma norma semelhante. Entre outras coisas, o portador da letra não pode ser prejudicado
pelas relações pessoais que eventualmente o sacador tivessem com o obrigado cambiário,
como nomeadamente relações pessoais, convenções que tenham sido combinadas e que
não podem ser invocadas perante o portador atual – ex.: A aceita uma letra sacada por B
e B endossa a letra a C. Vamos supor que B quando saca a letra sobre A, fá-lo sem
indicação da data de vencimento, o que quer dizer que a letra seria paga à vista. Mas vamos
agora supor que A e B, combinaram que B apenas iria apresentar pagamento quando A
tivesse dinheiro – convenção extracartolada. O C, está protegido porque é uma convenção
extracartolada. Diríamos uma coisa diferente se esta convenção fosse entre A, B e C, nesta
situação, não se pode dizer que ele esteja nas relações mediatas, pois ele está nas relações
imediatas quanto ao acordo. Há aqui uma certa literalidade. Porquê aqui uma certa
literalidade? Não é absoluta, a própria lei estabelece um limite: se o portador ao adquirir a
letra atuou conscientemente, não tem esta proteção.

4.- Autonomia do direito mencionado no documento


A autonomia do direito a que se referia Vivante consistia no facto de se dever
considerar que o direito surgia como que de novo na esfera do possuidor de boa fé – o
direito era autónomo “porque o possuidor de boa fé exercita um direito próprio, que não
pode ser restringido ou destruído em virtude de relações existentes entre os anteriores
possuidores e o devedor”. Diz-se que é autónomo, porque é adquirido “de um modo
originário, isto é, independentemente da titularidade do seu antecessor e dos possíveis
vícios dessa titularidade”.
Quando se fala em autonomia, estamos a dizer que o regime jurídico dos títulos de
créditos, vai proteger, em certa medida, o direito do portador, em relação a vícios perante

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as relações entre anteriores possuidores e o devedor – A sacou uma letra à sua própria
ordem a B, e endossou a C (vai-se proteger C naquilo que eventualmente pode afetar o A
nas suas relações com o B).
Esta proteção do portador não é absoluta, pois não protege em relação a tudo. O
regime jurídico dos títulos de crédito vai proteger o portador mediato, em relação a certos
vícios. Pretende-se apenas fazer menção a uma autonomia como mínimo comum a todos
os títulos de crédito, por isso, podemos encontrar títulos de crédito em relação aos quais
essa autonomia será mais marcada do que noutros.

5.- Circulabilidade
O professor Soveral Martins acrescenta uma nota à noção de Vivante:
circulabilidade – aptidão para circular de acordo com regras próprias que a favorecem.
Vivante não menciona expressamente esta nota característica, mas consideramos que esta
encontra-se pressuposta.
Esta autonomia e literalidade protegem de certo modo, mas também revelam esta
circulabilidade. Só respeitando estas regras, é que o portador pode invocar a literalidade e
autonomia, sendo que estas, vão proteger o portador mediato. Só que esta literalidade e
autonomia apenas podem ser invocadas se aquele documento chegou às mãos do portador
imediato (não valem nas relações imediatas) – ou seja, foram respeitadas as regras da
circulação, impostas pela lei para aquele título de crédito.

6.- Especiais funções dos títulos de crédito


Os títulos de crédito desempenham uma função de transmissão do direito neles
mencionado. A transmissão do título de crédito de acordo com as respetivas regras de
circulação acarreta também a transmissão do direito referido. E pelo menos quanto aos
títulos ao portador, a transmissão surge bastante facilitada.
O título de crédito também tem uma função de legitimação, ativa e passiva.

 Ativa, o portador do título que o tenha recebido, de acordo com as regras de


circulação do mesmo, pode exercer o direito mencionado no documento. A esta
legitimação, está subjacente a presunção de que o portador é o titular do
documento.

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 Passiva porque o obrigado, vai cumprir bem a sua obrigação se cumprir a favor de
quem tenha legitimidade ativa do documento.

A função constitutiva, é a função da literalidade e da autonomia do documento,


trata-se do direito que aparece no documento é diferente, que surge com características
diferentes, porque vai beneficiar da autonomia e da literalidade (sendo por isso
constitutiva). Por exemplo, há algo que justifica a emissão de titulo de crédito: A compra
um automóvel a crédito, e para garantir parte do preço, aceita uma letra que o vendedor
do automóvel saca sobre ele – temos aqui uma relação jurídica fundamental que serve
como causa para a emissão daquele titulo de crédito, e na compra e venda já tínhamos uma
obrigação de comprar o preço, o crédito do vendedor já existia, mas o que a emissão do
título de credito vai trazer de novo é que na realidade, vai transformar o crédito num crédito
literal e autónomo (daí a função constitutiva), dizendo por isso que é um crédito novo.

7.- Classificações dos títulos de crédito


Podemos classificar os títulos de crédito. As classificações são úteis porque nos
permitem ver quais as várias realidades que estamos a falar. Há dois critérios mais
importantes, pois são mais utilizados:

 Classificação dos títulos de crédito fundado no direito incorporado – o conteúdo


da prestação incorporada nos títulos de crédito pode ser de diversa natureza:
o Direito a receber uma prestação em dinheiro – ex.: cheque, livrança, letra);
o Direito de natureza real sobre as coisas – ex.: conhecimento de carga, que
dá direito a receber mercadorias; guias de transporte; depósito, etc.
o Direitos de participação – são títulos que representam uma participação
numa determinada pessoa coletiva, que em regra é uma sociedade de certo
tipo. Ex.: títulos de ação, que representam uma participação social numa
sociedade anónima ou, quanto aos sócios comanditários, em comandita por
ações.
Não parecem ser títulos de créditos os meros títulos de legitimação, uma vez que,
estes são emitidos com caráter pessoal, isto é, para serem utilizados apenas por
aquela pessoa a favor de quem são emitidos.
 Classificação dos títulos de crédito fundada no modo normal de
circulação/transmissão – o regime normal de transmissão não significa que não se
pode circular de mais maneiras, mas o ele traz consigo determinadas

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consequências. O modo normal permite classificar os títulos de crédito de três
formas:
o Títulos ao portador – circulam por entrega, por mera tradição do
documento. Como tal, compreende-se que tais títulos não revelem no seu
texto quem é o respetivo titular. Ex.: títulos de ação ao portador (artg.101º
CVM).
o Títulos à ordem – circulam por endosso, ficando assim a constar do título
um comprovativo da transmissão. Além disto, os títulos à ordem
identificam o seu primeiro titular, o que torna normalmente possível
estabelecer uma cadeia de endossos a partir daquele. Ex.: letra e livrança.
o Títulos nominativos – estes têm um aspecto particular, sendo que, além de
terem de ser emitidos a favor de um sujeito determinado, na sua circulação
vão exigir a intervenção do próprio emitente do título. Hoje apenas é
possível emitir ações nominativas (97º/1 c) CVM), os valores ao portador
foram proibidos. Estas ações nominativas transmitem-se através de
declaração a favor do adquirente, seguida de registo junto do emitente, isto
significa intervenção do emitente. Esta intervenção será através do registo.
 Classificação dos títulos de crédito fundada nas consequências da emissão do título
no direito incorporado – de acordo com este critério podemos ter:
o Títulos declarativos – é um título que nada acrescenta relativamente a uma
relação jurídica fundamental. Há quem diga que este não é um verdadeiro
título, uma vez que o título de crédito tem uma função constitutiva. Ex.: o
título de ação, em que o título não constitui participação ou uma outra
participação adicional.
o Títulos constitutivos – os títulos de crédito são geralmente apresentados
como constitutivos, e assim são porque, o direito incorporado é distintivo
do direito resultante da relação jurídica subjacente.
 Classificação fundada no relevo da relação fundamental – não podemos afirmar
que a característica da abstração se encontra em todos os títulos de crédito, com
efeito:
o Título abstrato – é um título que não é afetado por aquilo que afeta a relação
causal.
 Mas não podemos dizer que os negócios relativos a eles não tenham
causa, apenas significa que eles, são, em maior ou menos medida,

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independentes da causa. O que afeta a compra e venda, não vai
afetar o título de crédito em questão.
o Título causal – tem o seu valor determinado por aquilo que pode ser
afetado pela relação causal.
 Ex.: o título de ação é visto como um título causal, pois está ligado
à causa da sua emissão no que diz respeito ao conteúdo da relação
entre a sociedade e pelas deliberações sociais relevantes.

8.- Títulos de crédito desmaterializados?


Os títulos de ação têm sido encarados por grande parte da doutrina como títulos
de crédito. Contudo, o CVM torna possível, designadamente, a representação de ações
através de registos em conta, que serão então ações escriturais. Esses registos carecem de
um suporte, que pode ser em papel ou informático. Mas uma coisa é o suporte, e outra
coisa é o registo. Os suportes são apenas isso, suportes de registo.
Por exemplo, ações emitidas em negociações em mercado, têm de ser registadas
em suporte informático. aqui a celeridade é fundamental, daí exigir-se que essas ações
sejam registadas com recurso a suporte informático. Quando não é necessário, até
podemos ter em suporte em papiro. Ex.: em mercearias, pode ter-se um livro de fiado
(tinha-se registado contas abertas em nomes de clientes) que eram registo em conta; com
as ações é parecido, faz-se o registo de quantas ações estão em nome da pessoa.

Poderá perguntar-se se por exemplo, as ações escriturais, os registos ou os suportes


desses registos são títulos de crédito. As ações representadas não serão títulos de crédito:
são o próprio valor representado. O registo é um documento. O professor entende que
não, o registo em conta não é um título de crédito, e não é porque quando transmitimos
uma ação escritural não transmitimos um registo. O que se faz em termo de contabilidade
é fazer um cancelamento daquele registo e fazer um novo registo em nome de adquirente,
não há um documento que circule de um titular para outro. Por isso, não se pode dizer
verdadeiramente, que esse registo é um título de crédito. Se temos uma letra que é
representada em papel, é aquele mesmo documento que sucedendo-se nos portadores, vai
permitindo o exercício do direito.

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A representação eletrónica acontece com vários tipos de documentos. Os
conhecimentos de carga eletrónicos, quando a mercadoria transportada em navio, o
capitão emite conhecimento de cargo atualizando em representação do transportador.
Hoje, já há tecnologia suficiente, para substituir o conhecimento em papel para eletrónico,
o problema aqui é garantir a segurança, pois é preciso ter a certeza que apenas é emitido
conhecimento de carga, se for emitido mais que um, corremos o risco de aparecer alguém
que não é proprietário dessas mercadorias, e exigir essa entrega. Este risco aumenta
exponencialmente com a representação eletrónica. Há um conjunto de entidades que
pretendem garantir essa segurança a nível mundial, inclsucivamente:

• Bolero (Bill of Lading Electronic Registry Organization), sendo esta a mais


conhecida;
• Uncitral
• Convenção de Roterdão, é a mais recente e mais moderna sobre o transporte de
mercadorias. Esta convenção já é uma convenção multimodal.

É importantíssimo, haver um controlo exclusivo por parte de quem emitir o


documento eletrónico. Para isso é necessário recorrer a uma terceira entidade para garantir
que há apenas um documento em relação à mercadoria.
Temos também uma outra agência das NU para o transporte internacional, tendo
regras para o transporte multimodal.
O Comité Marítimo Internacional, tem regras para conhecimento de carga
eletrónico.
O sistema Bolero, é uma terceira entidade distinta que vai atestar que só há um
conhecimento de carga eletrónico, assim, um carregador que recebe um conhecimento de
vende as mercadorias, isso significa que a terceira entidade tem de cancelar um
conhecimento de carga e emitir um novo a favor de quem tem as novas mercadorias. Ex.:
um camião de soja cheio a caminho dos EUA, esta mercadoria pode ser emitida muitas
vezes e um conhecimento de carga pode dar lugar a vários conhecimentos de carga. No
caso do sistema SeaDoc, não é um documento que circule.
Outra vertente em que os títulos de crédito revelam o seu interesse atual, e que está
ainda relacionado com o comércio mundial é a vertente que tem a ver com o crédito
documentário. Ao nível das trocas internacionais, isto é bastante frequente, por ex.: quando
um exportador pretende vender a mercadoria a um cliente estrangeiro, quem vai receber

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a mercadoria quer algumas certezas e uma das formas para garantir o pagamento é o crédito
documentário. O vendedor da mercadoria quer receber o seu preço, e o comprador quer
as mercadorias, como é que se pode fazer tudo isto se eventualmente o comprador ainda
não tem todo o dinheiro para comprar? Através do crédito documentário, o comprador
contrata o seu banco e este emite a chamada “carta de crédito”, esta é algo que será entregue
ao vendedor mediante a entrega por parte do vendedor do conhecimento de carga.
Por um lado, o comprador sabe que a mercadoria foi carregada (loaded) – o
conhecimento de carga limpo, e isto já dá alguma certeza ao comprador, tendo o mínimo
de garantias que vai receber as mercadorias. O banco emitente emite a carta de crédito que
deve ser trocada pelo conhecimento de carga limpo, o que significa que o banco em função
da carta de crédito vai pagar ao vendedor, atendendo ao que foi combinado. O banco
emitente faz o pagamento porque ou o cliente já pôs o dinheiro na conta, ou porque o
banco concede crédito ao cliente. Tudo isto pode ser muito mais complicado, pois o banco
pode eventualmente ter de se relacionar com o banco do vendedor; o lado do comprador,
podemos ter do lado do vendedor um banco notificador, etc. Tudo vai depender da força
negocial das partes.

9.- Tipicidade/atipicidade dos títulos de crédito


Não existindo um regime legal unitário aplicável aos títulos de crédito, assume maior
interesse em saber se só serão admissíveis os títulos de crédito previstos na lei ou se, pelo
contrário, a criação dos mesmos é livremente permitida.
No que diz respeito à criação de títulos de crédito através de negócios unilaterais, não pode
ser deixado de lado o disposto no art.457º CC. De acordo com este último preceito “a
promessa unilateral de uma prestação só obriga nos casos previstos na lei”. Assim, a criação
de títulos de crédito através de negócios unilaterais está sujeita a esse limite.
Por outro lado, a criação livre de títulos de crédito que mencionassem direitos
literais e autónomos introduziria perigosa insegurança no comércio. E isto porque
aumentava assim a impossibilidade de prever quando é que alguém se estava a obrigar em
termos particularmente gravosos. Deve, pois, afastar-se, em regra, a possibilidade de livre
criação de títulos de crédito que confirmam direitos literais e autónomos.
Por isso, parece adequado sustentar a referida tipicidade taxativa, salvo quando a
lei preveja regime diferente (como acontece no art.1º CVM).

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A LETRA
1.- Breves apontamentos históricos
Tradicionalmente a chamada “letra de câmbio”. O regime da letra vai ser o regime
base para a livrança, por exemplo.
A letra tem uma origem história que se situa na Idade Média, sendo esta origem
muito semelhante à origem do cheque. Historicamente, o documento nas géneses da letra
tinha como função a troca de moedas de diferentes praças e não circulava à ordem. Como
se deve calcular, hoje não é muito aconselhável andar com muito dinheiro no bolso, e na
altura ainda mais perigoso era. Para evitar esse perigo, o comerciante em Florença, por
exemplo, indo fazer negócios a Antuérpia, ia falar com o seu banco, e entregava-lhe
dinheiro em moeda com circulação em Florença e queria receber o equivalente em moeda
que tenha situação legal em Florença. O banco diz que tem correspondente em Antuérpia,
e recebe o dinheiro e emite um documento a dar ordem ao correspondente em Antuérpia.
Isto era assim, porque justamente quem fazia isto (bancos), também recebia por tal,
para pagar o serviço a ser prestado. Está aqui em causa uma concessão de crédito em
Antuérpia e a renumeração por esse crédito. Tudo isto é magicado para fugir à proibição
de juros, receber juros era visto pela Igreja Católica como algo condenável (a usura), que
era associado aos judeus, para evitar a perseguição que se faria. A proibição da usura, do
juro, foi contornada assim pelo recurso a contratos de câmbio.
Aquele documento que é emitido por um banqueiro florença não era um que
circulasse à ordem, era a própria pessoa que tinha de apresentar na Antuérpia. Tudo isto
sofreu uma evolução:

• Período italiano – encontrávamos a letra associado ao contrato de câmbio


• Período francês – introdução da clausula à ordem (que permite que o documento
circule).
• Período germânico

Hoje, encontramos a lei uniforme relativa às letras e livranças (Anexo I da convenção


de genebra de 1934). Quando falamos da convenção destinada a revelar justamente o
regime das letras e livranças, temos que ver que a convenção de genebra, tem uma lei
uniforme, mas também tem uma convenção para conflitos de leis e sobre o imposto – é
muito importante do ponto de vista prático, porque quando falamos das trocas
internacionais, vamos ter problemas que nos obrigam a convocar estas duas convenções.
Há uma convenção mais recente de 1988, mas que ainda não vincula Portugal: United

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Nations Convention on Internacional Bills of Exchange and internacional promissory
notes.
A letra e a livrança continuam a ser muito utilizadas para a celebração de contratos de
forfaiting. Nestes contratos aparecem muitas vezes associadas trocas internacionais com
recurso a conhecimentos de embargue, estes apenas são entregues contra a entrega de uma
letra aceite (pelo comprador ou eventualmente pelo banco). Podemos ter situações mais
complexas em que o conhecimento apenas é entregue contra a entrega de uma letra aceite,
mas também contra entrega de um aval.
Hoje, em França já há um recurso a bandas magnéticas para a emissão de letras, o
emitente representa o conteúdo de uma letra numa banda magnética. O que acontece aqui,
é que o eminente da letra entrega a banda ao seu banco, o seu banco vai entregar essa letra
magnética ao banco de França, sendo que este entrega a banda magnética do obrigado a
pagar que depois vai apresentá-la ao seu cliente, que terá de pagar.

2.- Noção
O que é uma letra? É um documento em papel, que contém uma ordem de
pagamento (“saque”) de uma quantia determinada dada pelo sacador ao sacado e à ordem
do tomador. Quem dá a ordem de pagamento é o “sacador”, e quem recebe é o “sacado”,
à ordem do tomador (o tomador pode ser o próprio sacador, ou um terceiro). Em regra, a
emissão de uma letra ocorre porque existe relação entre o sacador e o sacado e uma relação
entre o sacador e o tomador, que justificam aquela emissão.

A grande diferença entre a letra e a livrança, é que na letra temos uma ordem de
pagamento e na livrança é uma promessa de pagamento. No cheque, vamos ter na mesma
uma ordem de pagamento, só que essa ordem é dada sobre o banqueiro. E o banqueiro
vai ter fundos à disposição do sacador, e esses fundos resultam de uma convenção que
pode ser eventualmente um contrato de abertura de conta, depois de depósito. Há uma
convenção do cheque que levou à entrega de uma caderneta de cheque, e que autoriza o
cliente a mobilizar fundos que tem à disposição junto do banco. O cliente do banco pode
ter esta disposição, por ter aberto lá uma conta. Também podem estar à disposição, porque
o banco concede crédito (contrato de concessão de crédito), que será mobilizado através
do cheque. Já a letra não tem de ser sacada sobre um banqueiro; o sacado também não
terá fundos à disposição do sacador da letra de câmbio.

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A letra é um tipo de crédito, e como tipo de crédito podemos identificar uma função
de transmissão e uma função de legitimação.

 Função de transmissão – como título à ordem, o modo normal de circulação é por


endosso. Com o endosso circula a letra com o direito de crédito nela representado.
O portador da letra poderá exigir o pagamento da quantia se ou é o tomador inicial
ou é alguém que aparece legitimado por uma série ininterrupta de endossos.
 Função de garantia de pagamento – vai permitir a concessão de crédito, por isso é
que há uma data de vencimento no futuro, que permite essa conceção de crédito.

A letra de câmbio permite, desde logo, diferir no tempo a realização de um


pagamento. Em vez de pagar agora, o aceitante pagará uma quantia na data de vencimento
da letra: instrumento de crédito. ex.: uma letra vence-se dia 25/01, mas imaginemos que
ele necessita do dinheiro agora, ele pode ir ao banco, para o banco pagar o valor da letra,
fazendo um desconto que é uma aplicação da taxa de juro em função do tempo que falta
até à data do vencimento, por exemplo, o banco em vez de pagar 1000€, ele paga menos a
taxa de juro que será descontada (serviço). Como pode circular através do endosso, a letra
também permite a circulação do crédito. Mas, por outro lado, o tomador pode obter
imediatamente o pagamento através, designadamente do desconto. Por último, a letra
constituindo um título executivo, permite o recurso ao processo executivo para obter o
pagamento – artg.703º CPC.
Com o saque da letra de câmbio, o próprio sacador torna-se obrigado cambiário
perante o tomador. Torna-se obrigado cambiário porque é garante da aceitação e do
pagamento da letra perante o tomador da letra e posteriores portadores da mesma. Por
isso se fiz que, atendendo a que o sacador assume o papel de garante, é ele o obrigado
inicial.
Como a ordem pode ser dada sobre o próprio sacador, é possível que o sacador dê
a ordem de pagamento a si próprio. Mas, se não aceitar também apenas responde como
sacador. Além disso, o sacador pode sacar a letra à sua própria ordem – nesse caso
corresponde também ao tomador.
O sacado só por ser sacado não fica obrigada a pagar! O sacado apenas fica obrigado
a pagar se aceitar, e aí temos um outro negócio cambiário, o “aceite” – pelo aceite, o sacado
faz sua responsabilidade pelo pagamento da letra: aceita a ordem de pagamento contida no
saque. Com o aceite, o sacado torna-se no obrigado principal. Mas a letra já é título de

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crédito com o saque, mesmo sem o aceite, porque o sacador também se obriga aos
ulteriores portadores da letra, a pagar se ele não for a pagar.
Da letra também pode constar o aval. O avalista garante o pagamento da letra, no
todo ou em parte. E garante esse pagamento por parte de alguns dos restantes obrigados
cambiários.

3.- Requisitos externos da letra


A letra pode conter várias declarações cambiárias, para ser letra ela tem que conter
necessariamente “saque”. Pode ainda ter o aceite, o endosso e um avale.
O artg.1º da LULL, indica quais são os requisitos formais da letra:

 Tem que constar a palavra “letra” inserta no próprio texto e expressa na língua
empregada para a redação desse título – a obrigatoriedade da inserção da palavra
“letra” resulta da necessidade de alertar qualquer subscritor para a importância do
ato que vai realizar. Isto, tendo em conta que a letra e cada um dos negócios
cambiários têm um regime próprio, que pode implicar consequências gravosas para
o subscritor.
 Mandato de uma quantia determinada – no sentido de ser uma ordem de
pagamentos, pura e simples, precisamente por causa da literalidade (é necessário
que tudo resulte do documento). Aquele mandato é o que constitui o saque –
declaração do sacador.
 O nome daquele que tiver de pagar (sacado) – é, portanto, a essa pessoa que a letra
será apresentada ao aceite. O nome do sacado deverá ser indicado com a
determinação suficiente para que se possa identificar o sujeito em causa através do
documento.
 Data do vencimento – há que ter em conta que a lei determina como ela pode ser
feita: sacada à vista; a um certo termo de vista; a um certo termo de data; ou ser
pagável em dia fixado. Não são admissíveis indicações de épocas de pagamento não
previstas na lei.
 Indicação do lugar onde se terá de efetuar o pagamento – lugar de pagamento é,
aqui, não apenas uma localidade (ex.: Coimbra), mas na opinião do Professor
Soveral Martins, um endereço concreto. A letra até pode ser pagável no domicílio
de terceiro. Teremos então uma letra domiciliada. Tendo em conta o disposto no

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120º/1 Cód.Notariado, o lugar do pagamento indicado na letra é importante ainda
para identificar o cartório notorial onde se possa realizar o protesto.
 O nome da pessoa a quem ou à ordem de quem deve ser paga (pode ser o próprio
sacador) – A pessoa a quem deve ser paga a letra, pode fazer o endosso (“ou à sua
ordem”). Quando a pessoa endossa, dá ordem a pagar ao endossado (a quem
estiver a endossar a letra). Por isso é que se diz que o endosso da letra é como se
fosse um novo saque.
 A indicação da data em que e do lugar onde a letra é passada – é importante, porque
aqui é que vamos saber qual a lei aplicável. Também assim sabemos, tendo em
conta a data, se a pessoa que passou tinha capacidade. Aquela data será também
importante para calcular os prazos de apresentação do pagamento das letras à vista
e a certo termo de data, e para apresentação ao aceite das letras a certo termo e
vista.
 Assinatura de quem passa a letra – (do sacador) Permite afirmar que foi emitida a
declaração cambiária que deu origem à letra. Aquela assinatura obriga desde logo
o sacador, nos termos referidos no artg.9º LULL.

A letra apenas pode ter uma das modalidades previstas na lei uniforme. O artg.33º
dessa lei identifica as modalidades da letra.
Quando estamos a falar de negócios cambiários, estamos a referirmo-nos a realidade
que podem surgir em momentos diferentes. O documento em causa pode vir a recolher
essas declarações em momentos diferentes. A letra pode primeiro recolher a assinatura do
aceitante, depois a letra é entregue ao tomador indicado que coloca a declaração de
endosso, e só posteriormente é que é colocada a assinatura do sacador (em que apenas aí
é letra). Outro exemplo, o sacador pode colocar a letra da circulação, endossá-la sem ter o
aceite e assim sucessivamente. É evidente que quem recebe a letra por endosso, sem ter a
declaração do aceitante, deve saber que o sacado não assumiu a obrigação cambiária, ele
assume esse risco. A letra pode cumprir já as suas funções, sem ainda ser aceite. Até porque
o sacado pode ter várias razões para não aceitar logo a letra, mas combinar com o sacador
que na data de vencimento aceitará a letra e procederá ao pagamento.

4.- Falta de requisitos externos


Estes requisitos formais do artg.1º são importantíssimos, porque se lermos o artg.2º,
vemos que, se faltar algum daqueles, tal implica que o documento não irá produzir efeitos

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como letra. Não é, porém, necessariamente esse o resultado, se faltar a indicação da época
de pagamento (data de vencimento), do lugar do pagamento e do lugar onde foi passada a
letra. A LULL contém algumas normas que permitem ou podem permitir que o
documento ainda produza efeitos como letra, apesar de não terem sido respeitados todos
os requisitos externos:

 A época do pagamento – é considerável como “pagável à vista”. Deverá entender-


se que á pagável à apresentação.
 O lugar do pagamento – junto do nome do sacado, surge o “domicílio”, que será o
lugar do pagamento. Mas se faltar também o lugar do domicílio, aí não será possível
integrar a lacuna.
 Ao lugar onde foi passada a letra – o lugar ao lado do nome do sacador. Na falta
deste também, o documento também não produz efeitos como letra.

Caso 18- o caso da letra assim-assim


José sacou à sua própria ordem sobre Manuel uma letra pagável no dia 5 de janeiro de
2020. Porém, a letra não indica o lugar de pagamento. Por isso, Manuel entende que não
tem de pagar a quantia constante da letra no dia de vencimento, pois afirma que a letra «é
nula». Será assim?

R.18. A letra não tem todos os seus elementos. Esta letra tem uma data de vencimento
(05/01/2020). Só é possível o saque da letra se esta respeitar as modalidades previstas no
artg.33º.
O artg.1º/5 dispõe que a letra deve conter o lugar do pagamento, o que é
importante, porque permitia à pessoa que tinha de pagar, os meios para o local onde teria
de pagar. Com a falta de local para pagar, tal pode ser preenchido através de uma norma
que vai equiparar o lugar do domicílio ao lugar de pagamento. Evidentemente, que pode
dar-se o caso de não haver sequer lugar de domicílio. Numa situação destas, o documento
não valerá como letra, podendo valer apenas como documento particular ou como
documento de reconhecimento de dívida. O documento não é nulo, simplesmente não
produz efeitos como letra.
Veja-se que o lugar do domicílio e o lugar do pagamento, podem às vezes envolver-
se em situações curiosas. O lugar do pagamento pode ser por exemplo, as instalações de
um banco, em que normalmente, haverá um acordo entre o obrigado a pagar e o seu

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banco, sendo este o seu representante do aceitante. Não tem de ser o domicílio ou a sede
do aceitante.

5.- A letra em branco/a letra incompleta

Relativamente à letra, podemos falar de requisitos essenciais e requisitos não


essenciais: requisitos não essenciais – estão enumerados no nº1 da LULL, mas podem ter
a sua falta suprida nos termos definidos pelo artg.2º; requisitos essenciais – são os restantes
a que alude o artg.1º.
Pode dar-se o caso de faltarem requisitos essenciais da letra. Nesse caso, importa
verificar se foi ou não celebrado um acordo de preenchimento da letra.

 Se faltar este acordo, o documento não pode valer como letra – estaremos perante
uma letra incompleta.
 A lei admite a existência de acordos de preenchimento entre, desde logo, o sacador
e o tomador. Tal admissibilidade resulta do disposto no artg.10º LULL. Se assim
for, se existir um acordo de preenchimento, estaremos perante uma lei em branco.
Neste caso, a imperfeição é apenas tida como passageira.

Mas será que todos os requisitos podem ser deixados para preenchimento posterior?
Na opinião do Professor Soveral Martins, a letra em branco, para poder ser considerada
como tal, terá de conter necessariamente a palavra “letra” e, a assinatura do sacador (que
deverá ter sido colocada com a intenção, por parte do subscritor, de se obrigar
cambiariamente) – estes dois são requisitos que desde o início devem ser cumpridos pelo
documento.
Mesmo que exista acordo de preenchimento, a letra em branco não produzirá efeitos
como letra enquanto for letra em branco – isto é, antes do preenchimento com os requisitos
essenciais em falta.

Relativamente ao artg.10º da LULL: “Se uma letra incompleta no momento de ser


passada tiver sido completada contrariamente aos acordos realizados, não pode a
inobservância desses acordos ser motivo de oposição ao portador, salvo se este tiver
adquirido a letra de má fé ou, adquirindo-a, tenha cometido uma falta grave.”, põe-se a
questão de saber se em caso de violação do pacto de preenchimento de uma letra se tal
nunca é oponível ao portador mediato de boa fé.

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 Ferrer Correia entenda que, segundo a letra do artg.10º, deveríamos proteger o
portador, independentemente de a letra ter sido preenchida pelo sacador (portanto
quando o tomador a recebeu, ela já estava preenchida), ou de ter sido preenchida
pelo próprio portador – ambas as situações em violação do acordo (preenchimento
abusivo).
 O Professor Soveral Martins, entende que, nos casos em que o portador recebe a
letra ainda não preenchida, parece mais coerente, considerar que ele não merece
a tutela referida no artg.10º:
o Até ao preenchimento dos elementos essenciais da letra, esta não produz
efeito. Aquilo que ele recebe ainda não é uma letra, como tal não poderá
invocar o regime do artg.10º.
o O endossado é “representante do endossante quanto ao contrato de
preenchimento e, como tal, pode ver o subscritor opor-lhe as mesmas
exceções que podia opor a este”.

É muito frequente quando o banco concede o crédito, que obriga o cliente a realizar
determinadas prestações, é frequente o banco exigir que além de o cliente ficar obrigado a
prestar prestações, fique também obrigado a ir buscar fiadores. Exigem então que o
devedor assine uma letra ou uma livrança, normalmente uma letra ou livrança promessa
de pagamento, em branco quanto a alguns elementos. Normalmente os elementos por
preencher são o valor e a data de pagamento. Porque se trata de um crédito a prestações,
portanto não se sabe quanto vai estar em divida quando ele deixar de pagar. Assim, como
a letra/livrança é a garantia da dívida, e a assinatura do sujeito já lá está, fica em branco o
espaço da quantia e a data. Depois o banco irá preencher de acordo com o acordo de
preenchimento.
Normalmente além do seu cliente, vamos encontrar um aval da mãe, do pai, etc. Isto
significa que quando ele deixa de pagar, vai haver uma série de pessoas que serão arrastadas
pelas obrigações cambiárias.

Caso 19- O caso da letra que ainda não era e passou a ser
Alberto, vendedor de eletrodomésticos, sacou uma letra sobre Joana, que a aceitou, para
garantia do pagamento de uma quantia em dinheiro que esta devia àquele por lhe ter
comprado um frigorífico no-frost. A letra foi sacada à ordem de Alberto, que a endossou
posteriormente a Bernardo, seu fornecedor. Na data de vencimento da letra, Bernardo

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exigiu o seu pagamento a Joana, que recusou o pagamento alegando que a quantia nela
aposta era muito superior ao que tinha sido combinado com Alberto. Na verdade, a letra
tinha sido sacada sem indicação da quantia a pagar e da data de vencimento, pois Joana
comprometera-se a fazer o pagamento da quantia em dívida em prestações. Bernardo diz
que preencheu a letra exatamente como Alberto disse que o deveria fazer. Estará Joana
obrigada a pagar a Bernardo a quantia que este colocou na letra?

Resolução- A Joana quando aceita, é o obrigado principal, porque é ao aceitante que deve
ser apresentado na data de vencimento (aceitante porque aceita a ordem que é dada). No
entanto, normalmente quem emite a primeira declaração é o sacador, e o artg.9º diz que o
sacador quando emite a declaração cambiário, é logo obrigado a cambiar, portanto o
primeiro obrigado a cambiar é o sacador, só que é o obrigado de garantia, o obrigado
principal será o aceitante.
A letra foi sacada à ordem de Alberto, sendo ele simultaneamente, sacador e
tomador, podendo ele endossar a letra se quiser. Que foi precisamente o que ele fez,
endossando a letra a Bernardo – o endosso é como se fosse uma nova ordem de
pagamento, por isso é que a letra é um documento à ordem. O Bernardo é um portador
mediato em relação ao que se passou entre Alberto e Joana, agora nas relações entre
Alberto e Bernardo, Bernardo é portador imediato (ele está nas relações imediatas). A
Joana recusa o pagamento, alegando que a quantia era muito superior ao que tinha sido
combinado.
Acontece que a letra tinha sido sacada sem indicação da quantia em dívida em
prestações. Quando a letra é apresentada ao pagamento ela já está totalmente preenchida
(sendo que Bernardo preencheu a quantia). O problema é que Joana alega que o que lá
está não foi o que ficou estabelecido entre Alberto e Joana – acordo de preenchimento.
O artg.10º é o ponto de partida. Por um lado, se realmente a letra foi sacada e aceite
sem conter ainda o montante da quantia e a data de vencimento (ou há acordo de
preenchimento; se não houver, vale a regra do artg.5º/2 e será considerada uma letra “à
vista”), sendo que Joana nada diz relativamente à data de vencimento. O problema está na
quantia da dívida. Havendo acordo de preenchimento quanto a essa quantia temos uma
letra em branco e não uma letra incompleta, porque embora falte elementos essenciais há
um acordo de preenchimento. No artg.10º, a letra incompleta é mal utilizada do ponto de
vista dogmático, tendo-se aí uma letra em branco.

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Se olharmos para o artg.10º, o Bernardo poderia invocar este artigo ou não (para o
argumento da Joana não valer)? O artigo não faz a distinção entre casos em que o portador
preencheu e casos em que o portador não preencheu. O Bernardo pretendia agarrar-se a
uma interpretação do artg.10º, e a Joana iria tentar sustentar a posição que aqui
defendemos. Na posição do curso, o artg.10º apenas se aplicaria quando o portador já
recebeu a letra preenchida, deste modo, se o portador quando recebeu a letra e esta ainda
não estava preenchida, então ainda não será uma verdadeira letra. Por outro lado, quanto
ao acordo de preenchimento se a letra chega ao portador ainda por preencher, o nosso
Bernardo deve ser visto como alguém que vai preencher a letra em representação do
Alberto, e como tal, tudo o que poderia ser invocado perante o Alberto, também deverá
ser possível invocar perante o Bernardo.
Mesmo que não aceitássemos esta posição, há uma 2ª via para proteger a Joana.
Sempre poderíamos dizer que o portador de uma letra a vai preencher, estaria de má-fé ao
não contactar o aceitante para ser como tinha combinado preencher a letra (má-fé do
portador que apenas confia o que o Alberto lhe diz).

6.- O saque
O saque é a ordem de pagamento que o sacador dá ao sacado. O saque é o negócio
cambiário é o que dá origem à letra.
O saque, está desde logo previsto no artg.1º. Este artigo, referencia a necessidade
de a letra conter o mandato (ordem) puro e simples de pagar numa quantia determinada.
Isto é assim, para garantir uma das características deste tipo de crédito – a literalidade, o
portador mediato deve poder confiar no teor literal do documento, e portanto, não ter que
ser obrigado a realizar indagações fora do título. Isto, permite ter mais confiança no
documento e se é possível depositar mais confiança, torna-se mais fácil negociá-lo. A
circulação é maior, quanto maior for a confiança que se possa depositar.
Quanto às modalidades do saque:

 Normalmente, a letra é sacada pelo sacador sobre o sacado a favor do tomador ou


à sua ordem;
 O saque pode ser feito sobre o próprio sacador – artg.3º LULL.
 Eventualmente pode se notar ser possível à ordem do sacador e a favor do sacador
(ex.: sucursal).

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O sacador dá uma ordem de pagamento ao sacado, mas o sacador quando dá essa
ordem está logo a assumir uma responsabilidade. Justamente, o sacador assume a
responsabilidade de garantia, que é uma garantia de pagamento nos termos do artg.9º da
LULL. O artg.9º dispõe que o sacador garante o pagamento, mas ele não garante apenas
o pagamento, garante também a aceitação, garante as duas coisas. Isto é importante,
nomeadamente, porque a letra nasce como letra, antes mesmo do sacado declarar o aceite.
Portanto pode começar a circular e a ser utilizada como letra, assim se o sacador endossa
a letra ainda não aceite, apesar de não haver um aceite, a letra funciona como tal.
O artg.9º permite, no entanto que o sacador se exonere da garantia da aceitação.
Isto é muito importante para compreendermos a mecânica deste instrumento. Se não há
aceite, poderá ter lugar protesto por falta de aceite. Em regra, a letra é pagável no
vencimento, mas também há uma serie de circunstâncias no artg.43º, que tradicionalmente
são designadas de antecipação do vencimento (na verdade é antecipação do momento em
que podem ser exercido os direitos de ação): nº1 – a recusa total ou parcial do aceite,
implica precisamente a antecipação do vencimento, o portador poderá então exercer os
seus direitos de ação antes do vencimento, nos termos do artg.43º LULL, contra os
endossantes, sacador e outros co-obrigados (as chamadas “ações de regresso”). Daí a
importância de o sacador se poder libertar da garantia. Claro que, se ele ganha por um
lado, perde pelo outro, pois se ele se exonera da responsabilidade, vai pôr em circulação
uma letra que já não conta com essa garantia o que pode tornar difícil que outras pessoas
queiram receber a letra.
Uma nota importante também para os restantes negócios cambiários: o artg.47º
estabelece um regime de responsabilidade solidária, o que significa que o portador legitimo
da letra, pode exigir a totalidade montante a qualquer um dos obrigados (sacador,
endossante, o avalista, etc.). Esta solidariedade é um pouco diferente da solidariedade que
vamos encontrar no CC:

 No regime geral das obrigações solidárias, vemos que a culpa entre os diversos
obrigados é diferente, portanto pode-se distribuir de maneira diferente
(internamente) – eles vão responder na medida das suas culpas.
 Na LULL, o artg.49º da LULL diz que, a pessoa que pagou a letra, pode reclamar
a soma integral daquilo que pagou (sem ter em consideração a culpa de cada
obrigado).

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7.- O aceite
O aceite é a declaração do sacado pela qual este se obriga “a pagar a letra à data do
vencimento” da mesma. Tem o seu regime no artg.21º e ss, veja-se o artg.28º que trata da
responsabilidade do aceitante. Se não aceitar a letra, o sacado não fica obrigado pela letra.
Pode é dar-se o caso de se ter comprometido antes de a aceitar, em que a posterior recusa
pode gerar uma obrigação de indemnizar aquele perante o qual se comprometeu nos
termos referidos.
O sacado torna-se o obrigado principal, o que quer dizer que na data de
vencimento, o portador deve apresentar em primeiro lugar, ao aceitante.
O aceite deverá ser escrito na própria letra, com a palavra “aceite” ou outra
equivalente, e deve ser assinado pelo sacado. No entanto, o sacado deve ter particular
cuidado, porque a sua assinatura valerá como aceite, mesmo que desacompanhada da
palavra aceite ou outra equivalente.
É no domicílio do sacado que a letra deve ser apresentada ao aceite. Se na letra,
esse domicílio não está expressamente indicado, considera-se como tal o lugar indicado ao
lado do nome do sacado. A letra pode eventualmente ser uma letra domiciliaria (pagável
em domicílio de terceiro), neste caso, o aceitante continua a ser o obrigado principal, mas
pode indicar lugar diferente do seu domicílio, para aí ser efetuado o pagamento, por um
terceiro (quem vai pagar não é o obrigado). Esse terceiro irá pagar por conta e em nome
do aceitante. O aceitante será sempre o obrigado principal. Isso é muito importante na
prática, pois vai possibilitar que o aceitante indique o seu banco para fazer o seu pagamento.
Veja-se que esta é a letra domiciliaria em sentido próprio, o terceiro faz o pagamento por
conta do aceitante em lugar diferente do domicílio do aceitante. Podemos ter uma letra
domiciliaria em sentido impróprio, em que, será o próprio aceitante a fazer esse
pagamento, em vez do terceiro, só que em lugar diferente do seu domicílio.
A apresentação ao aceite deve ter lugar até à data do vencimento da letra – regra
geral do artg.21º. Após o vencimento aquela apresentação para o aceite já não pode ter
lugar: a apresentação que se faça deverá ser para o pagamento.
Em regra, o aceite não tem de ser datado, mas deve ser datado se a letra é pagável
a certo termo de vista ou se deve ser apresentada ao aceite em prazo fixado por estipulação
especial. Nestes casos:

 A data deve ser o dia em que o aceite é dado, a menos que o portador exija a data
de apresentação ao aceite.

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 Se o aceite não tiver data (e tratando-se de letra pagável a certo termo de vista ou
que deva ser apresentada ao aceite em prazo estipulado), o portador que quiser
conservar os seus direitos contra endossantes e sacador deve “fazer constatar essa
omissão por um protesto, feito em tempo útil” (25º II LULL) - está previsto
também uma modalidade especial de protesto: protesto por falta de data de aceite
(25º/1 LULL).
o Para a letra a certo termo de vista, o artg.35º LULL dispõe que “na falta de
protesto, o aceite não datado entende-se, no que respeita ao aceitante, como
tendo sido dado no último dia do prazo para a apresentação ao aceite”. Por
isso é que a letra deve ser datada, uma vez que o prazo começa a corre com
o aceite.

A regra é de apresentação ao aceite até ao vencimento, mas se é uma letra pagável


até um certo termo de vista, então vale o prazo do artg.23º: 1 ano da sua data que foi
colocada no título em que foi feito o saque (já não é até ao vencimento).
Além disso, há que ver ainda o artg.22º, em que o sacador pode estipular um dever
de apresentação ao aceitante “com ou sem fixação de prazo”. Com a fixação do prazo para
apresentação ao aceite, estabelece-se um prazo diferente. Deste modo vemos que o prazo
para a apresentação ao aceite não é sempre o mesmo.
A falta de aceite pode dar origem à apresentação da letra a protesto – artg.53º da
LULL. O que se disse à cerca dos prazos, também é importante logo no disposto no 1º
parágrafo do artg.53º: depois de expirados os prazos para essa apresentação, só se mantém
os direitos contra o aceitante, mas perde-se os direitos contra o sacador, os endossantes e
outros avalistas. Quando os segundos obrigados de garantia, ouvem dizer que o aceitante
não pagou (um aceitante pode pagar mesmo apesar de não ter aceite, a não aceitação não
impede o posterior pagamento!) acontece muitas vezes que isto passa para as empresas de
informações comerciais, e tal fica-se a saber da falta de pagamento. Quando os segundos
obrigados ficam a saber, começam a pressionar o aceitante a pagar, e quem fica a ganhar é
o portador da letra (uma vez que se aumenta a pressão para o pagamento).
Pode-se ter a possibilidade de o aceitante fazer um aceite parcial – aceita a ordem
só por uma parte da quantia. No entanto, apesar de a lei dizer expressamente que é
possível, numa situação destas, parece que é possível fazer o protesto da falta de pagamento
da quantia que não foi aceite!

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O artg.22º dispõe a possibilidade de se proibir a sua apresentação ao aceite. Aqui
o sacado pode não querer aceitar a letra, mas combina com o sacador que pagará no
vencimento. Isto é perfeitamente admissível salvo nos casos mencionados no 22º II LULL:

 Quando a letra seja pagável em domicílio de terceiro ou em localidade diferente


do domicílio diferente da do domicílio do sacado – pois o sacado tem de estar em
condições de poder tomar as diligências necessárias para que tal pagamento se
realize;
 letra sacada a certo termo de vista – pois são pagas por um prazo a contar do aceite,
ou seja, não se poderá proibir a apresentação ao aceite, uma vez que o prazo
começa a contar do aceite;

8.- O endosso
A letra é um título à ordem, o que significa, que o seu modo normal de circulação é
um endosso. O endosso transmite os direitos emergentes da letra, portanto o endosso tem
desde logo essa função de transmissão. Essa transmissão não pode ser notificada ao
aceitante, o que constitui uma diferença importante relativamente ao regime da cessão de
créditos.
Tal endosso deve constar da letra ou de folha ligada à letra anexo e deverá ser
assinado pelo endossante. O endosso deve ser puro e simples, que funciona para permitir
a literalidade. O endosso não pode ser parcial! Tem de ser sempre total – artg.12º II LULL.
Com o endosso é dado ao sacado uma nova ordem de pagamento – é-lhe dada a
ordem para pagar ao endossado. Por isso se diz que o endosso é o novo saque.
O primeiro endosso deve ser realizado pelo tomador e os seguintes pelos sucessivos
endossados. Desta forma, se garante uma série ininterrupta de endossos. O endosso pode
também ser “em branco”, como veremos a seguir (16º I LULL).
O endosso também poderá ser feito a favor do próprio sacado, seja ou não aceitante,
ou a favor do sacador ou outro obrigado cambiário. Qualquer destas pessoas agora
referidas poderá de novo endossar a letra (reendoso – 11º III LUL).
Mais uma vez, o endosso assume uma responsabilidade de garantia e de pagamento
perante os posteriores portadores da letra – artg.15º LULL, tendo uma função de garantia.
Nessa medida o endossante, será o obrigado cambiário.
O endosso ainda tem uma função de legitimação, pois é através de uma série
ininterrupta de endossos que vamos encontrar o portador legítimo, que é aquele que
justifica a posse de títulos.

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Endosso em branco
No entanto, é possível algo que pode introduzir aqui algumas dificuldades práticas,
pois a lei permite o endosso em branco (16º) – aquele que tem lugar com a declaração de
endosso assinada, mas sem indicação de quem é o endossado. Mas também será endosso
em branco o que é realizado apenas com a assinatura do endossante escrita “no verso da
letra ou na folha anexa” (13º II LULL). Apesar de isto ser discutível, o Professor Soveral
Martins, professor considera as duas como modalidades do endosso em branco.
Aquele que recebe a letra através de um endosso em branco é considerado
portador legítimo. O endosso em branco não afeta a regularidade da cadeia de endossos –
é o que resulta do artg.16º I LULL.
O portador do endosso em branco pode (14º):

 Preencher o espaço em branco, com o seu nome ou com o nome de outra pessoa
ou pode remeter para um terceiro, sem preencher o seu nome
o Ex.: A endossa a B, o B está legitimado, o B pode endossar em branco sem
indicar C, e entrega a letra a C, C pode colocar o seu nome lá (e passa a ser
ele o indicado) ou pode querer transmitir a letra a D, colocando o nome de
D lá (C pode ter feito isto, porque não queria ter responsabilidade
cambiária, por exemplo);
 Manter consigo a letra como ela está;
 Entregar a letra a outrem, sem necessidade de preencher o espaço em branco e
sem necessidade de endossar a letra (14º II, 3º LULL). Neste ultimo caso, como
quem recebe a letra pode voltar a fazer o mesmo, a letra começará a circular como
se fosse um título ao portador.

A cláusula “não à ordem”


A letra, como vimos, é transmissível por endosso. Contudo, é possível na letra,
proibir o endosso, inserindo uma cláusula “não à ordem” (11º).
Temos que fazer aqui a distinção entre o sujeito que vai inserir a clausula: uma coisa
é a clausula ser inserida pelo sacador e outra coisa é ser inserida por algum endossante. As
consequências da cláusula inserida pelo sacador serão mais graves, por ser este que cria a
letra. A transmissão não deixa de ser possível, mas a transmissão não vai produzir os
mesmos efeitos do endosso – não vai receber os direitos que o endosso lhe confere, apenas
vai receber os direitos que a cessão de créditos lhe confere também. Neste caso, isto
significa que o portador deixou de beneficiar de um regime muito mais protetor, uma vez

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que o regime dos títulos de crédito protege mais o portador, de modo a facilitar a
circulação. Assim, o obrigado a pagar fica sujeito ao regime da cessão de créditos que tem
um regime que contém mais garantias para o obrigado – sendo mais penoso para o credor.
Isto pode ser importante a nível das exceções que possam ser invocadas pelo devedor – o
obrigado invoca muito menos defesas no título de crédito, do que no regime de cessão de
créditos.
Esta clausula será eventualmente inserida na letra, por ter sido uma condição do
próprio sacado para este aceitar a letra, o que pressupõe de algum grau de conhecimento
do regime da letra, naturalmente. No caso em que é o próprio sacador a inserir a clausula,
pode-se discutir se ainda se poderá falar verdadeiramente de um título de crédito – o
professor diz que sim, apesar de ter algumas reservas.
A clausula também pode ser inserida por algum endossante, mas agora as
consequências são diferentes. O endosso continua a ser possível, no entanto o artg.15º, diz
que não se garante o pagamento à letra das pessoas a quem a letra for posteriormente
endossada. Imaginemos que A saca uma letra, e endossa a B, que endossa a C, que inclui
uma clausula de proibição e endossa a D, que endossa a E, que endossa a F. As pessoas a
quem não serão garantidas o pagamento será o E e o F. Isto porque, a lei diz
“posteriormente endossada ao seu próprio endosso”, ele não se está a proibir a si próprio
de endossar, simplesmente não se irá garantir o pagamento a essas pessoas.

 Ferrer Correia, entendia que o endossante que introduz a cláusula não à ordem ainda
responderia nos termos em que responde o cedente de créditos. A cláusula não à ordem
apenas proíbe a transmissão por endosso mas não proíbe a transmissão por cessão, e que
a conversão do endosso em cessão corresponderia à vontade hipotética dos interessados.
o Ora, esta não é uma posição correspondente à de Soveral Martins. Este por sua
vez, entende que o endossante que proibiu o endosso “não garante pagamento”
aos posteriores endossados, ele parece excluir qualquer responsabilidade de
regresso. Se fosse de aplicar o regime de cessão de créditos às posteriores
transmissões da letra através de endosso, então também a garantia se transmitia –
coisa que a lei não quis.

Modalidades do endosso
Há duas modalidades de endosso:

A. Endosso de procuração (ou para cobrança) (18º)

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O endosso pode ser realizado para que o endossado possa exercer direitos
emergentes da letra, sem que haja transmissão da letra e dos direitos inerentes – endosso
impróprio. É o que se passa quando o endosso vem acompanhado da menção “por
procuração”, “para cobrança”, “valor a cobrar”, ou qualquer outra menção que implique
um simples mandato.
Em regra, o endossado que é o portador da letra, que a recebeu através do endosso
por procuração, pode exercer, em regra, todos os direitos emergentes da letra. Mas, o
exercício dos direitos emergentes da letra não tem lugar enquanto titular desses direitos, e
sim como representante do endossante. Daí que o endossado só possa endossar a letra na
qualidade de procurador. O titular dos direitos emergentes, continuará a ser, em princípio
o endossante.
Por sua vez, o endossante que inclui a cláusula “por procuração” ou equivalente,
não garante a aceitação e o pagamento da letra. O que tem lógica, considerando o objetivo
do endosso em causa: o de permitir ao endossado o exercício dos direitos emergentes da
letra.
Como o endosso é feito com a cláusula “por procuração” e, portanto, como o
endossado é representante do endossante, todas as exceções que podiam ser invocadas
contra o endossante também podem ser invocadas contra o endossado “por procuração”.

B. Endosso em garantia (19º)

A letra pode ser utilizada como instrumento para constituir uma garantia a favor de
um credor – contém a menção “valor em garantia”, “valor em penhor”, ou então outra
menção que implique uma caução.
O portador pode exercer todos os direitos emergentes da letra, mas os co-obrigados
não podem invocar quanto ao portador as exceções invocadas perante o endossante que
fez o endosso em garantia, ou seja, não podem invocar exceções fundadas nas relações
pessoais que tivessem com aquele que realizou o endosso em garantia (19º II LULL) – dá-
se maior proteção ao endossado.
Se o endossado em garantia por sua vez endossar a letra, esse endosso apenas vale
“como endosso a título de procuração”, sujeito ao disposto no artg.18º LULL. O
endossado em garantia não se torna por isso titular da letra e dos direitos emergentes dela.
Por outro lado, o endossante em garantia também garante o endossado imediato
quanto à aceitação e pagamento de letra.

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Outros modos de transmissão da letra
O endosso é o modo normal de circulação dos títulos à ordem, mas tal não significa
que ela não possa ser transmitida por outras vias

 Cessão de créditos (expressamente prevista no art.11º LULL);


 Sucessão mortis causa.
o Ex.: C herda a letra que estava na posse de B (portador legitimo), mas a
transmissão não se deu com o endosso, mas sim de acordo com as regras
de sucessão, tendo C tornado portador daquela letra, podendo exercer os
direitos que dela decorre. Mas acontece que C vai ocupar a posição de B,
sendo isto importante, porque não podemos dizer que C está nas relações
mediatas das relações entre A e B, estando sim nas relações imediatas, ou
seja, tudo o que A poderia invocar contra B, poderá também invocar contra
C.

Contudo, o endosso é o modo normal de transmissão da letra. Desde logo, a


transmissão da letra por endosso tem consequências que os outros modos de transmissão
não têm, designadamente em matéria de tutela do portador de boa fé (art.17º LULL).

9.- O aval
É mais um negócio cambiário, bilateral, pelo qual o sujeito que emite a declaração
garante o pagamento da letra, no todo ou em parte (30º). Poderá ser um negócio que pode
ter natureza parcial.
Este avalista pode obrigar-se a pagar como garante por qualquer obrigado cambiário
(artg.30º II LULL), pode garantir o pagamento pelo sacador, pode garantir o pagamento
por qualquer endossante, pode garantir o pagamento pelo sacado. Podemos ter aqui uma
dupla garantia: o endossante a garantir o pagamento e o avalista a garantir o pagamento
pelo endossante.
O aval deverá indicar a pessoa por quem o avalista o dá (31º). E se essa indicação
não for dada? Poder-se-ia pensar que seria pelo aceitante, mas tal não é assim. Na falta de
indicação, entende-se que o aval é dado pelo sacador (artg.31º IV LULL). Porém quando
a letra não saiu das relações imediatas, é de grande importância saber se é possível alegar
e provar que o aval sem a indicação referida foi dado por pessoa diferente do sacador:

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 Gonçalves Dias considerava que a presunção de que o aval é dado pelo sacador,
era invencível, sem quaisquer restrições; Oliveira Ascensão também entendia que
a presunção era inilidível. Pinto Coelho entendia a norma como imperativa.
 Vaz Serra por sua vez, considerava inaceitável a posição de que, mesmo no domínio
das relações imediatas, o aval que o identifique é sempre prestado a favor do
sacador. Tem sido esta a posição acolhida nas decisões judiciais mais recentes. Isto
é, vem sendo aceite, que nas relações imediatas se prove que o aval sem indicação
de avalizado foi prestado a favor de pessoa diferente que não o sacador.

Nas relações mediatas, compreende-se que, para tutela dos interesses relacionados com
a circulação da letra, a presunção não possa ser ilidida. Até porque a prova em contrário
resultaria de factos estranhos ao teor do título. Mas, nas relações imediatas, parece ser de
defender que se trata aqui da oponibilidade de uma exceção fundada nas relações causais
ou extracartulares.
Não está afastada a possibilidade de o aval ser apenas dado como assinatura, sendo
que apenas vale como aval se consta da face anterior da letra, e desde que não seja a
assinatura do sacado ou do sacador. Mas se tem expressões da praxe (ex.: “bom para aval”),
pode valer na face anterior ou posterior.

A responsabilidade do avalista
O avalista responde nos mesmos termos em que responde aquele por quem é dado
o aval (artg.32º LULL), ex.: se o avalista deu o aval pelo o aceitante, responde nos mesmos
termos que ele responde, o que significa que o avalista do aceitante continua a responder
nos mesmos termos que este último ainda quando o portador, por aplicação do disposto
no artg.53º I LULL, perdeu os direitos de ação contra endossantes, sacador e outros co-
obrigados (Ferrer Correia, Gonçalves Dias, Soveral Martins).
Contudo esta obrigação do avalista não é idêntica à obrigação do fiador (apesar do
teor literário do artg.32º LULL). Desde logo, o avalista assume uma obrigação cambiária
que tem características e regime próprio e responde quando a obrigação que garantiu é
nula (salvo em caso de vício de forma). É responsável nos mesmos termos que o avalizado.
O fiador, assume uma obrigação civil (com caraterísticas e regime próprios – arts.627º e ss.
CC) e não responde quando a obrigação principal é inválida. É responsável
acessoriamente.
Quando o avalista paga a letra, ele fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra
contra a pessoa por quem deu o aval. Além disso, fica ainda sub-rogado nos direitos
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emergentes da letra contra os que sejam obrigados cambiários para com a pessoa por quem
deu o aval. Suponha-se, então, que o avalizado é o endossante. Pagando a letra o avalista,
ele ficará sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra o próprio endossante
(avalizado), bem como nos direitos emergentes da letra contra, por exemplo, a pessoa que
havia anteriormente endossado a letra ao avalizado (um endossante anterior).
Nos termos já desvelados, se a obrigação daquele por quem é dado o aval (o
avalizado) for nula, o avalista só não responderá caso essa nulidade decorra de vício de
forma; em caso de nulidade substancial, a responsabilidade do avalista subsiste (art. 32º
LULL).

10.- Regime do crédito ao consumo


Tratando-se de uma operação de crédito ao consumo, temos um diploma
importante: DL 133/2009, se em relação a um contrato de crédito, a clausula de proibição,
deve ser necessariamente inserida pelo sacador.

11.- Características associadas aos títulos de crédito

Obrigações

 Independência das obrigações cambiárias

A letra pode conter diversas declarações cambiárias de que resultam obrigações para
os respetivos subscritores. As declarações cambiárias apostas na letra, são em regra
independentes entre si. A independência das obrigações cambiárias, resulta do artg.7
LULL. Isto significa que os vícios mencionados que afetem uma das obrigações cambiárias
não se transmitem, na medida do exposto, às obrigações dos outros subscritores.
Ex.: A endossa a B e B endossa a C (sociedade limitada), sendo que C aparece a
endossar, por seus representantes, a D. Aparecem depois dois fulanos, que aparecem a
endossar a letra a D, mas sendo que estes não eram os representantes de C! Ora, D
endossou a E, e E endossou a F. Quem endossou a letra não era gerente da sociedade,
logo não tinha poderes de representação, assim C não ficou obrigado. Mas não é por isso
que as posteriores obrigações são afetadas, E e D também são obrigados cambiários – é
aqui que está a nota da independência recíproca.
Há limitações a esta independência, não sendo ela absoluta:

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i. Uma destas limitações é o aval, em que a nulidade por vício de forma da obrigação
daquele por quem é dado o aval implica que o avalista não responde. A nulidade
repercute-se na obrigação do avalista.
ii. Se o saque, não tem aqueles requisitos externos que não podem ser supridos, então
a letra não pode ser criada, sendo que afeta as outras obrigações cambiárias.
iii. Para além disso o portador apenas é considerado legítimo se “justifica o seu direito
por uma série ininterrupta de endossos”.

Não obstante, a regra é a independência das obrigações cambiárias, pretendendo-


se, deste modo, garantir a circulabilidade da letra de câmbio, tornando-se desnecessárias
verificações que prejudicariam aquela.
Noutro prisma, aquele que endossa uma letra deve contar com a possibilidade de
antes de si se encontrarem obrigados cambiários que, afinal, não respondem. E, contudo,
esse endossante ficará obrigado perante o endossado e posteriores portadores legítimos, a
menos que proíba um novo endosso (art.15º LULL).

 Abstração das obrigações cambiárias

A obrigação cambiária caracteriza-se por ser abstrata. Tal significa que a obrigação
cambiária é independente da sua causa – a obrigação pode servir qualquer causa, uma vez
que ela lhe é indiferente. Deste modo, perante o portador mediato do título, o devedor
cambiário não poderá invocar, em regra, exceções fundadas nas relações causais
estabelecidas com anteriores portadores ou com o sacador.
Quando falamos em causa, esta pode ser uma “causa remota” ou uma “causa
próxima”. Vamos supor que A compra a B um automóvel, e como A não tem todo o
dinheiro necessário para pagar a B, combinam que A ficará a dever parte do preço.
Acordam que B sacará uma letra à sua própria ordem, A aceitará, da qual consta o
montante em dívida:

 A compra e venda do automóvel é o que podemos chamar de “causa remota” (ou


relação fundamental ou subjacente) – a obrigação cambiária é independente da
causa, não há uma causa típica.
 Por outro lado, ao lado da compra e venda podemos ter tido uma convenção pela
qual o sacador e o sacado, agora aceitante, que combinaram que um sacaria a letra
e outro aceitaria a letra – é uma convenção que não se confunde com a compra e
venda. Esta combinação é a chamada causa próxima, ou “convenção executiva” –

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pacto “que se destina a regular ou a reforçar, através de uma letra, uma obrigação
já constituída.

A obrigação cambiária é independente de tudo isto, do que pode afetar a compra e


venda, quer da convenção executiva. Mas veja-se que dizemos isto, com uma nota: a
abstração tem limites, que resultam do artg.17º: se o portador tenha procedido
conscientemente, em detrimento do devedor (má-fé – intenção de prejudicar o obrigado
cambiário, ou pelo menos que representou o prejuízo como possível, sendo este o dolo
eventual), poder-se-á opor ao portador as exceções fundadas em relações pessoais.
Continuando o exemplo do automóvel: B acaba por endossar a letra a C, que por
sua vez, faz o mesmo a D. Este último vai ter com A na data de vencimento da letra e exige-
lhe o pagamento. Contudo, A recusa efetuar o pagamento alegando que o automóvel que
comprou a B sofre de vários defeitos e que não vale o preço cobrado. Tudo isto era
desconhecido de D.
Neste caso, D é portador de boa fé. A recusa o pagamento invocando uma exceção
fundada nas relações pessoais com o B. Como decorre do artg.17º LULL essa invocação
não pode ter lugar. A não se liberta da obrigação de pagar só por alegar a relação pessoal
com B. Na verdade, essa relação subjacente é exterior ao negócio cambiário de que
resultou a obrigação. Esta obrigação é independente dessa relação e os vícios que afetam
essa relação não afetam a obrigação cambiária. Por isso se diz que a obrigação cambiária é
abstrata – porque em relação a ela, se abstrai dos vícios da relação fundamental.
Tal obviamente não será assim se estiver perante o portador imediato. Se B não
tivesse endossado a letra e se tivesse sido B a apresentar a letra de pagamento a A, este já
poderia invocar perante B as exceções causais resultantes da relação pessoal entre eles
estabelecida.
Por outro lado, o portador mediato apenas pode invocar o disposto no 17º LULL,
se estiver de boa-fé. Para estar de má-fé, é necessário que o adquirente, ao adquirido tenha
tido conhecimento de que o devedor seria prejudicado, e que a aquisição tenha sido feita
com a intenção de causar prejuízo injusto ao devedor, ou, ao menos, com representação e
aprovação desse prejuízo.

 Exige-se aqui a intenção de causar prejuízo, uma vez que se bastasse apenas com o
conhecimento de que o devedor seria prejudicado, então qualquer portador teria essa
consciência de atuar em detrimento do devedor, visto que, sabendo que existia uma
exceção que o devedor pudesse invocar contra um anterior possuidor, essa nunca poderia

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ser invocado perante ele, Subverter-se-ia assim o intuito do preceito, admitindo-se como
regra o afastamento do artg.17º LULL.

Atente-se que, caso um portador intermédio se encontre de boa fé, tal facto torna
irrelevante a má fé de um posterior portador da letra. Isto porque nestes casos a má fé do
portador posterior não causa qualquer tipo de prejuízo ao devedor, pois ele já teria que
pagar ao portador mediato anterior que estava de boa fé (pelo que estaria tutelado pelo art.
17º LULL).

Direitos

 Literalidade do direito

O obrigado cambiário tem que respeitar o direito do portador nos termos em que
tal direito é definido pelo texto da letra de câmbio. Nesta linha, ao portador mediato de
boa fé não podem ser opostas exceções que se baseiem em acordos, celebrados entre
anteriores sujeitos cambiários, que não tenham manifestação no texto da letra (art. 17º
LULL).

A literalidade anda a par do formalismo, no que diz respeito aos negócios cambiários:
a lei impõe requisitos formais rigorosos (por ex.: a letra tem que conter a palavra “letra”)
sem os quais o obrigado cambiário não está obrigado.

 Autonomia do direito

Mais uma vez é uma certa autonomia, que resulta do artg.16º. O legítimo possuidor
da letra tem um direito que é autónomo relativamente aos direitos dos anteriores
possuidores. Nesse sentido, o direito do legítimo possuidor da letra não é afetado por vícios
dos direitos sobre a letra de anteriores possuidores.
Ex.: A aceita uma letra de B endossa a letra a C, sendo que C faz um endosso em
branco, e alguém roubou essa letra, e essa pessoa que roubou entrega a letra a D, que
entrega a letra a E. O que aqui se está a dizer é que o facto de a letra de ter sido furtada,
não vai afetar a obrigação cambiária do nosso aceitante, do sacador e endossante. O que
se diz é que C não pode exigir a letra de volta. O C que ficou sem a letra, não pode exigir
a letra de volta a E.
E é portador da letra. O E justifica o seu direito por uma série ininterrupta de
endossos. Daí que E não seja obrigado a restituir a letra a C e, na data de vencimento, o E
pode exigir o pagamento a A. O direito de E é autónomo.
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Porém, E já teria de restituir a letra se, no momento da aquisição da letra, estava de
má fé ou se, adquirindo-a, cometeu uma falta grave.

 O que é má-fé? Entendemos que, má-fé existe quando o portador sabe que o
endossante não tem uma posse regular, mesmo ignorando que essa irregularidade
é consequência anterior do desapossamento.
 Falta-grave, é se ao adquirir a letra o portador ignorava a posse irregular do
endossante, mas, atendendo às circunstancias, atuou com falta grave, não merece
proteção conferida pelo preceito em causa. O portador não se rodeou do mínimo
de diligencia exigível atendendo ao caso em concreto.

Ora, face a este regime, importa saber qual o tratamento a dar aos casos em que o
portador está de má fé ou cometeu falta grave, mas em que se prova que um portador
intermédio estava de boa fé. A proteção do portador intermédio implica que a sua boa fé
como que se “estenda” ao portador atual, em termos de não se exigir deste último a
restituição da letra. De facto, como se compreende, ao exigir-se ao portador atual a
devolução da letra, estar-se-ia a prejudicar o portador intermédio, que com a entrega da
letra cumpriu uma dívida e que, em virtude da sua devolução, volta a estar em dívida.

Quando falamos destas características das obrigações e direitos, é necessário ter em


conta de que estamos a falar de características que resultam da lei, mas que têm limites.
Quando se fala destas, estamos a tentar fazer um discurso sobre o que resulta da lei, para
tentarmos compreender melhor o que está descrito nas normas legais, estamos a tentar
fazer uma abstração.

Caso 19- caso das vacas doentes


Márcio, comerciante de gado, comprou várias vacas a Godofredo. Para garantir o
pagamento do preço dos animais, Márcio aceitou uma letra que Godofredo sacou à sua
própria ordem. Este último endossou a letra ao ferrador Gabriel, a quem devia dinheiro,
e este fez a mesma coisa a favor do talhante Ramiro. Na data do vencimento da letra,
Ramiro exigiu a Márcio o pagamento da letra, mas este recusou fazê-lo alegando que as
vacas compradas estavam doentes e tiveram que ser abatidas, e que Ramiro sabia do estado
das vacas pois tinha ido com Godofredo entregar os animais. O talhante Ramiro, que
realmente tinha conhecimento do que se passara e que esperava obter o pagamento por a

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letra lhe ser endossada, alega que a letra lhe tinha sido endossada por Gabriel e que este
de nada sabia. Será que isto basta para que Ramiro possa exigir o pagamento a Márcio?

Resolução.
A questão está em saber se o Ramiro está ou não protegido em relação a esse vício
da compra e venda que deu origem à emissão da letra. Numa situação destas, podemos
afirmar que mesmo que ele não tivesse agido com intenção de prejudicar o A, ele tinha a
noção do prejuízo que resultaria dali e que aceitou esse prejuízo.
O que é fundamental nestes casos é apresentar estes critérios. Não se poderia dizer
exatamente que estava prejudicado a intenção de prejudicar, mas ele pelo menos
conformou-se com aquele prejuízo. O D poderia ser considerado de má-fé, e, portanto,
não poderia beneficiar da característica da abstração: a obrigação do A cambiária não ser
afetada em regra, pelos vícios da causa. A causa aqui é a compra e venda (causa remota),
sendo que esta sofre um vício – venda de coisa defeituosa, que se fosse invocada a tempo,
seria anulável. Este vício que afeta a compra e venda não afeta a relação, desde que esteja
dentro das relações mediatas e esta encontra-se nas relações mediatas, porque D nada tem
a ver com a compra e venda. Contudo, esta é uma abstração com limites, que resultam do
próprio 17º. Se o C estiver de boa fé, sendo C portador intermedio, (ele é de boa fe se não
tiver atuado conscientemente em detrimento de A), o C podia invocar a abstração da
obrigação cambiária, logo, se C ignorava tudo o que se tinha passado, estava claramente de
boa-fé, se a letra não tivesse sido endossada, A teria de pagar a C, logo, quando C endossa
a D não está a causar nenhum prejuízo a A, não é com o endosso que se causa o prejuízo
a A. Numa situação destas, não obstante de D ter atuado conscientemente em detrimento
de A, na verdade não há prejuízo porque A teria de pagar a C, caso a letra não tivesse sido
endossada, aqui a abstração vale totalmente. A compra e venda faz parte das relações
imediatas, pessoais entre A e B, sendo C e D estranhos. Esta compra e venda tem vícios,
mas isso não afeta a obrigação cambiária, por isso, é que se fala de uma certa abstração,
certa porque há limites. Há quem diga que a abstração só complica porque a única coisa
que aqui está em causa é um contrato de compra e venda que tem apenas eficácia
obrigacional entre A e B, logo, não há que falar da eficácia disto em relação a C e D que
são estranhos à compra e venda. Ou seja, estes autores dizem que a abstração não
acrescenta nada, estamos simplesmente perante um problema de eficácia inter partes. Mas
não é isso que está a ser discutido, diz SM. O que está em causa é saber se pelo facto de

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haver um vício se este se repercute na obrigação cambiária, a abstração explica que, em
regra, o vício não se repercute na obrigação.

Exemplos autonomia do direito sobre o título


Por exemplo, A aceitou uma letra que B sacou porque A devia dinheiro a B, B tinha-
lhe emprestado dinheiro. O B endossa a letra a C e C, porque vai encontrar-se no dia
seguinte com Z (a quem deve dinheiro) faz um endosso em branco na letra. E quando se
preparava para sair de casa para colocar a letra no correio chamam-lhe para jantar e deixa
a letra em cima da mesa. Há um individuo que entra em casa e leva a letra consigo. Há um
D que furta a letra. O D vai ter com o seu fornecedor de pó branco, E, e entrega-lhe a letra.
O E era traficante de droga e entrega a letra a um individuo que vende automóveis e devia-
lhe dinheiro, o F. Por sua vez, F endossa a letra a G a quem devia dinheiro. O G ignora
tudo o que estava para trás, não se informou. Na data do vencimento, o G vem exigir o
pagamento a A, o aceitante, mas A não paga. G faz um protesto por falta de pagamento em
tempo, depois resolve demandar todos os responsáveis solidários, nomeadamente, quem
aparece como autor do endosso em branco, formalmente, o C aparece como obrigado de
garantia. Quando o nosso C fica a saber que a letra está com G ele quer saber se pode ir
buscar a letra.
2º paragrafo do artigo 16º - C não pode exigir de G a entrega da letra, isto mostra
que o direito sobre a letra é autonomo das relações jurídicas dos anteriores titulares. É
autónoma porque na realidade C não endossou a letra a D, este apenas furtou a letra. D
não se tornou titular da letra, se não se tornou titular, também não tornou o E titular da
letra, está a entregar coisa alheia. O E quando endossa ao F também está a transmitir algo
que não lhe pertence e F também transmite algo que não lhe pertence. Apesar disto, C não
pode exigir de volta a letra, desde que a letra esteja nas mãos de quem está de boa-fé. O
artigo 16º só resolve um problema, expressamente só diz que o nosso C não pode exigir
de volta a letra, assim, o G, a menos que esteja de má-fé, mas como tudo ignorava estava
de boa-fé não tem de restituir, mas não tem de restituir a C. O artigo não nos diz se G pode
exigir o pagamento de A. Se G não estivesse de boa fé temos de ver na mesma se havia
algum portador intermédio de boa fé. Vamos supor que quem está para trás estavam de
má-fé, apenas G está de boa-fé. SM entende que G pode exigir o pagamento precisamente
por causa dos outros requisitos – está numa posição em que efetivamente tem legitimidade
para exercer os direitos decorrentes da letra, estando de boa-fé. Ele está legitimado pelo
endosso, o endosso em branco também produz efeitos dos outros endossos e quem

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aparece como endossado pode exercer os direitos inerentes ao título. O C, no ponto de
vista de SM, não pode exigir a restituição, mas também não responde perante o G porque
na verdade quando falamos de endosso não basta pôr a declaração no titulo, é necessário
que esteja em circulação, embora C tenha assinado a letra, ele não colocou a letra em
circulação, esta foi furtada, assim, SM diz que o endosso em branco não vale para gerar a
obrigação cambiária, só vale se houver simultaneamente a colocação da letra em circulação.
Vamos supor outro caso. O D furtou a letra a C e o D entregou a letra a E e este
aparece formalmente legitimado por uma série ininterrupta de endosso. Vamos supor que
E é o fornecedor de pó branco ao D e D é sem-abrigo e toxicodependente e E sabe disto
tudo. O E aparece a exigir o pagamento ao A. O E não perguntou nada nem queria saber,
logo, não se pode dizer verdadeiramente que ele estava de má-fé ele não sabia como é que
a letra tinha chegado a D. Neste tipo de situações não podemos dizer que o adquirente, E,
não tendo adquirido de má-fé, cometeu falta grave? Nestas situações SM, perante uma falta
grave (que tem de ser apreciada conforme as circunstancias do caso), o portador não pode
exigir o pagamento, não está protegido pelo artigo 16º e, além disto, C podia exigir a
restituição do título.

12.- O vencimento

Modalidades
As modalidades do vencimento das letras de câmbio vêm identificadas no art.33º
LULL. Nos termos deste preceito uma letra pode ser sacada:

 À vista: letra pagável à apresentação, isto é, letra que deve ser paga quando é
apresentada para tal – o portador pode exigir o pagamento do sacado a qualquer
momento, desde que dentro do prazo de 1 ano se outro não for estipulado pelo
sacador ou endossantes (art.34º LULL);
 A um certo termo de vista: letra que se vence decorrido certo prazo a contar da
data do aceite ou da data do protesto por falta de aceite (art.35º LULL);
 A um certo termo de data: letra que se vence decorrido certo prazo a contar da
data da sua emissão (portanto, da data em que a letra foi passada);
 Pagável no dia fixado: letra que indica o preciso dia em que a letra é pagável.

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Exigência do pagamento antes do vencimento
A lei (art.43º LULL) prevê casos em que o pagamento pode ser exigido antes do
vencimento que teria lugar segundo as regras gerais – os direitos de ação do portador
podem ser exercidos antes do vencimento se:

 Houve recusa, total ou parcial, de aceite;


 Teve lugar a declaração de falência do sacado, a suspensão de pagamentos do
mesmo (constatada ou não por sentença) ou a promoção de uma execução contra
os bens do sacada que não teve resultado;
 Foi declarado falido o sacador de letra não aceitável.

13.- Pagamento
O pagamento pode ser exigido pelo portador legítimo da letra. Esse portador será
então legítimo se justificar por uma série ininterrupta de endossos.
A apresentação ao pagamento é, em regra, feita ao sacado, pois é a este que o sacador
dá a ordem de pagamento contida na letra. O sacado que paga pode exigir a entrega da
letra e a quitação correspondente. E pode inclusivamente realizar um pagamento parcial,
que o portador não pode recusar. Contudo, nesse caso o sacado não pode exigir a entrega
da letra. Pode, isso sim, exigir que se faça menção do pagamento parcial na letra e a entrega
na quitação.
Também qualquer dos co-obrigados que foi ou pode ser obrigado, e que pagou pode
exigir a entrega da letra com o respetivo protesto e recido.
De acordo com o artg.48º LULL, o portador da letra pode exigir ao demandado
não apenas o pagamento da quantia constante da letra e dos juros estipulados, mas ainda
dos juros à taxa de 6% desde a data de vencimento. Esta questão dos juros é muito
importante, sendo que a LULL fixa uma taxa de juro de 6%, mas, entretanto, entrou em
vigor o DL 262/83, que permite que o portador possa exigir a taxa que decorre para os
juros moratórios, do artg.4º desse diploma e não a dos artigos previstos no LULL. O que
está em causa, segundo Oliveira de Ascensão, é o que aplica o artg.13º do Anexo II à
Convenção, sendo que, o artg.4º do DL 262/83 é perfeitamente legal à luz daquele artigo,
desde que se entenda aquele como dizendo respeito às “letras, livranças e cheques passados
em Portugal”. Este preceito veio a permitir que o portador exija uma indemnização
relativamente à mora correspondente aos juros legais.

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14.- Protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento

O protesto por falta de aceite ou por falta de pagamento consiste no: “ato formal de
comprovação de recusa de aceite ou de pagamento”.
A importância deste ato é evidente no art.53º LULL – são várias as hipóteses aí
previstas que conduzem à perda de direito de ação contra endossantes, sacador e outros
co-obrigados, á exceção do aceitante (e do seu avalista). Uma das hipóteses referidas é a de
o portador não realizar, nos prazos fixados, o protesto por falta de aceite ou por falta de
pagamento. Os referidos prazos encontram-se enunciados nos arts.44º LULL e 121º e
122º do Código do Notariado. O prazo para o protesto por falta de aceite é o prazo da
apresentação do aceite. Este último pode ser:

 Letras sacadas a certo termo de vista: devem ser apresentadas ao aceite dentro do
prazo de 1 ano a contar das respetivas datas;
 Letras sacadas a certo termo de data e com data certa: devem ser apresentadas ao
aceite até ao vencimento.

Quanto ao protesto por falta de pagamento, o prazo para o mesmo se realizar pode
ser:

 Letras pagáveis em dia fixo, a certo termo de data ou a certo termo de vista: o prazo
é de dois dias úteis seguintes àquele em que a letra é pagável (art. 44º LULL). Aqui
o professor entende que, tal como Oliveira de Ascensão, a LULL fala nos “dois
dias úteis seguintes para designar os dias em que a letra é apresentável ao
pagamento”: ou seja, o vencimento e os dois dias úteis seguintes. Ou seja, durantes
esses dias em que a letra é apresentável a pagamento, ela é pagável. Só depois é que
parece começar a correr o prazo de dois dias uteis para o protesto.
 Letras pagáveis à vista: o protesto deve ser feito nas condições indicadas pelo
protesto por falta de aceite. O prazo é o da apresentação a pagamento, ou seja, o
prazo de 1 anos a contar da sua data (art.44º LULL). Se a letra for apresentada no
último dia do prazo, parece que ainda é possível fazer o protesto no dia seguinte:
o Nota: Tratando-se de uma letra pagável à vista e nada foi fixado, quanto à
apresentação ao aceite, o que resulta da lei é que a apresentação é para
pagamento e não para aceite, não sendo para aceite, não há prazo para
realizar o aceite, apresenta-se a letra para pagamento, será pagável nesse
momento, se o sacado recusar o pagamento, tem que fazer o protesto pela

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falta de pagamento – a lei diz que neste caso aplica-se as condições do
paragrafo anterior, que fala do prazo para apresentação ao aceite, então a
única condição que pode ser aplicada é que se pode fazer o protesto no dia
seguinte – 44º II.

Ainda que não sejam respeitados os prazos para apresentação a protesto, tal não é
fundamento de recusa do mesmo (art.123º LULL). O apresentante pode ter interesse em
obter meio de prova da falta de aceite ou de pagamento.

Caso 20- o caso do sacador que conta com a falta de protesto para não pagar
A «Janota – Comércio de vestuário, S.A.», comprou à estilista Marie Jolie vários vestidos
de noite. Para garantia de parte do preço em dívida, Marie Jolie sacou à sua própria ordem
uma letra, que a «Janota» aceitou. A letra indicava como data de pagamento o dia 1 de
março de 2019. Marie Jolie endossou a letra ao seu fornecedor de tecidos, a quem devia
dinheiro. No dia do vencimento, o fornecedor apresentou a letra a pagamento à «Janota»,
mas esta recusou liquidar a dívida. Hoje, o fornecedor quer saber se ainda pode exigir o
pagamento da quantia aposta na letra a Marie Jolie. O que lhe diria?

Resolução-
Temos aqui uma sociedade anónima. Neste caso, a compra é feita com uma parte
do preço que fica em dívida. Aqui a questão que se coloca é a seguinte: quando uma letra
não é paga e já sabemos que o obrigado principal é o aceitante, há algo que o portador da
letra deve ter a preocupação de fazer – apresentação da letra a protesto. Isto é assim porque
se não é feito o protesto, o portador vai perder uma série de direitos: artg.53º da lei
uniforme. Qual é o prazo para efetuar o protesto? Esta é a questão central do caso. Isto
serve para analisar outras questões, qual seria o prazo para apresentar o protesto. O
protesto é um ato formal.
Fala-se em vários obrigados: temos o principal (aceitante), o obrigado garantido
(sacador). Veja-se que se a aceitação não tivesse lugar, o artg.53º também dizia para se fazer
um protesto para falta de aceite. Se o protesto não era feito dentro do prazo, o portador
perdia direito de ação contra a Marie Jolie (sacador e endossante). O endossante, por sua
vez, também vai ficar sujeito a determinadas responsabilidades – obrigada cambiária. Um
outro obrigado cambiário é o avalista, que pode dar o seu aval a qualquer outro obrigado
a cambiar (artg.30º e ss, sendo que no 32º, dispõe-se que o aval não é uma fiança).

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Estamos perante uma letra com pagamento em dia fixo. A questão do protesto por
falta de pagamento é relevante para exigir o pagamento do crédito. Ele quer saber se ainda
pode exigir o pagamento da quantia.
Temos que ver se o portador tinha apresentado a letra a pagamento, sendo
que o fez, na data de vencimento – 01/03, foi recusado o pagamento. Foi realizado em
tempo o protesto por falta de pagamento? Vamos supor que o protesto por falta de
pagamento foi realizado atempadamente – 44º 3º parágrafo, o protesto deve ser feito nos
dois dias uteis. Quando é que a letra é pagável? Vamos supor que o dia 2 e o dia 3 são dias
uteis, segundo uma opinião mais restritiva o protesto deveria ter sido feito, até ao dia 03/03.
Mas nós defendemos que a letra não é só pagável no dia 1, mas no dia 2, e 3 – se o protesto
tivesse sido feito nesses prazos, tal significaria que o portador mediato poderia exigir o
pagamento quer ao aceitante, quer à endossante. Essa responsabilidade é uma solidária
(47º).
Além do mais, há que lembrar que há prazos de prescrição (importante), o artg.70º
tem estes prazos. Se o protesto foi feito depois de 01/03/2019, ainda não prescreveu. Sendo
que, se houvesse prescrição esta teria que ser invocada.
Pode dar-se o caso de ter decorrido o prazo para a realização do protesto – vamos
supor agora que o protesto não foi efetuado. Temos que recorrer ao artg.53º, sendo que o
portador perde os direitos de ação à exceção do aceitante.

15.- Ação cambiária e ação extracambiária


A emissão ou a transmissão da letra não extinguem, só por si, o débito proveniente
da relação fundamental ou subjacente. Desse modo, a relação fundamental subsiste, com
os seus prazos de prescrição, como subsistem também as suas garantias. Só assim não será
se, nos termos do art. 859º CC, for expressamente manifestada a vontade de que a
obrigação cambiária substitua a obrigação decorrente da relação fundamental ou
subjacente.
Em regra, só após ser verificada a falta de aceite ou de pagamento é que o credor
pode optar entre a ação causal e a ação cambiária. Esta opção, contudo, só existe quanto à
relação fundamental.
Veja-se, então: A vende um carro a B. A saca à sua ordem uma letra que B aceita,
relativa ao montante restante do preço ainda não pago. Na falta de pagamento, A pode
optar por intentar uma ação cambiária ou a ação causal, relativa à relação fundamental –
compra e venda do carro –, que será, neste caso, uma ação de incumprimento contratual.

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Suponha-se, em alternativa, que A endossou a letra a C, que, subsequentemente, a
endossou a D. Na falta de pagamento, D poderá somente intentar uma ação cambiária,
respeitante à obrigação cambiária a cargo de B enquanto sacador, pois ele não é parte da
relação fundamental de compra e venda (não lhe sendo legítimo intentar a ação de
incumprimento contratual).

16.- Ação direta e ação de regresso


Se o aceitante, obrigado principal, não paga quando devia, o portador da letra tem
contra ele uma ação cambiária – a “ação direta”. Esse direito de ação subsiste ainda que se
verificando uma das situações previstas no art. 53º LULL, que levam à extinção do direito
de ação contra os obrigados cambiários aí identificados.
Além deste, o portador da letra tem ainda um outro direito de ação: o direito de ação
contra endossantes, sacador e outros co-obrigados (ex.: avalistas) – “ação de regresso”.
Os aceitantes, endossantes, sacador e avalistas são solidariamente responsáveis entre
si para com o portador da letra. Este pode acioná-los a todos, um a um ou coletivamente
(art.47º LULL).
Convém sublinhar que a responsabilidade solidária aqui em causa não se confunde com
aquela que é regulada nos arts.512º e ss. CC:

 Responsabilidade solidária cambiária: se um dos signatários da letra que não seja o


aceitante paga a letra, ele pode acionar o aceitante, o sacador, os anteriores
endossantes e os avalistas ou todos eles para exigir a soma integral do que pagou
(art. 49º LULL). Os obrigados cambiários respondem por obrigações distintas, já
que cada obrigação assumida é autónoma relativamente às restantes.
 Responsabilidade solidária civil: se um dos devedores solidários paga a dívida, ele
pode acionar os restantes exigindo de cada um dos condevedores apenas a parte
que lhes compete (presumindo-se que eles participam na dívida em partes iguais)
(arts. 516º e 524º CC). Os devedores solidários respondem por uma única
obrigação, participando nela em partes, iguais ou diferentes.

17.- Prescrição da ação cambiária

O aceitante de uma letra é o obrigado principal. Ademais, o portador da letra não


perde os seus direitos de ação contra o aceitante (e seu avalista) quando são ultrapassados

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os prazos do art.53º LULL. Contudo, mesmo as ações contra o aceitante prescrevem no
prazo de 3 anos a contar do seu vencimento (art.70º LULL).
Já as ações do portador contra endossantes e sacador (obrigados de garantia),
prescrevem no prazo de um ano, a contar do protesto feito em tempo útil, ou da data do
vencimento, se se trata de letra contendo cláusula “sem despesas” (art.70º LULL).
Se alguns dos obrigados de garantia paga a letra, pode também exigir o pagamento
dos seus garantes (art.49º LULL). Também esta ação está sujeita a um prazo de prescrição
de 6 meses a contar do dia em que o endossante pagou a letra ou em que ele próprio foi
acionado (art.70º LULL).
No que diz respeito à interrupção da prescrição, parece que devem ser consideradas
aplicáveis as disposições do Código Civil sobre a matéria. No entanto, é de referir que o
art.71º LULL dispõe que a interrupção da prescrição apenas produz efeitos em relação à
pessoa para quem a interrupção é feita.
Questiona-se, a este respeito, se a interrupção da prescrição em relação ao avalizado
também se aplica ao respetivo avalista. A este respeito a doutrina divide-se:

 Soveral Martins: uma vez que o avalista responde nos termos em que responde o
avalizado, entende-se que a interrupção da prescrição relativamente ao avalizado
também se estende ao avalista;
 Vaz Serra: de acordo com o teor literal do art.71º LULL, a interrupção da
prescrição relativamente ao avalizado não pode abranger também o avalista (eles
não são a mesma “pessoa).

Importa ainda referir que, extinto o direito de ação cambiária, por prescrição, tal não
significa que se extinga pela mesma razão o crédito decorrente da relação fundamental
subjacente. Obviamente, este crédito só subsiste entre os sujeitos parte dessa relação, e não
já quanto aos demais obrigados cambiários.

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